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O FEDERALISTA

Alexander Hamilton
James M adison
JohnJay

Tradução, introdução e notas


de
VIRIATO SOROMENHO-MARQUES
e
JOÃO C. S . DUARTE

Prefácio
de
ADRIANO M OREIRA

2.' E dição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Serviço de Educação e Bolsas
NOTA DE APRESENTAÇÃO
À EDIÇÃO GULBENKIAN
DE O FEDERALISTA

Quando a tradução portuguesa desta obra clássica che-


gou ao público leitor, em Julho de 2003, cuhninava com isso
um longo processo de trabalho académico, mas também de
coorde ação de boas vontades em torno de um objectivo
comum: permitir o acesso do leitor português, e de língua
portuguesa em geral, a este livro que consagra o maior
contributo da nação norte-americana para a diversificada
tradição do pensamento politico ocidental, com inegáveis
repercussões universais.
Já para a edição de 2003, tinha a Fundação Calouste Gul-
benkian (FCG) dado o seu contributo, ao lado de outras
entidades e instituições. Esgotada que se encontra há muito
a primeira edição de O Federalista, quis a FCG, através do seu
Director do Serviço de Educação e Bolsas, Manuel Carmelo
Rosa, integrar esta obra na prestigiada colecção «Textos
Clássicos». Também para nós, na condição de tradutores, esse
é o lugar que nos parece mais adequado para um escrito com
a natureza e a qualidade de O Federalista, no panorama editorial
português.
A edição Gulbenkian de O Federalista segue praticamente
sem alterações o texto e a estrutura da edição de 2003,
publicada pelas Edições Colibri, a quem os tradutores devem
um público reconhecimento, na pessoa do Editor Fernando

[5]
Mão de Ferro. A novidade, que constitui um claro enriqueci-
mento, consiste na integração nesta edição do Prefacio de
Adriano Moreira. Este prefacio, da autoria daquele que é,
sem margem para contestação, a referência mais brilhante do
pensamento político no Portugal contemporâneo, recupera
um notável estudo que Adriano Moreira apresentou, por
convite dos tradutores, na ocasião do lançamento desta obra,
em sessão pública realizada em 10 de Julho de 2003, na Uni-
versidade de Lisboa. Possa esta edição Gulbenkian do clássico
estudo de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay
contribuir para que a sua força inspiradora não perca energia
e intensidade, também junto do público de língua portuguesa,
numa época em que as lições do federalismo republicano
parecem mais actuais e necessárias do que nunca.

3 de Janeiro de 2011

VIRIATO SOROMENHO-MAR.QUES

JOÃO C. S. DUARTE

[6]
PREFÁCIO
À EDIÇÃO PORTUGUESA DE
O FEDERALISTA

ADRIANO MOREIRA
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
Professor Emérito da Universidade T écnica de Lisboa

A primeira nota sobre a publicação desta edição portuguesa


de O Federalista diz respeito à oportunidade do lançamento.
Talvez por isso convenha recordar que a intervenção dos
autores, Alexander Hamilton (1757-1804), James Madison
(1751-1836) e JohnJay (1745-1829), foi suscitada pelo facto
de, no mesmo dia em que a nova Constitution for the United
States foi dada a conhecer ao povo de Nova Iorque, ter aparecido
um ataque subscrito por Catão, que era o Governador Clinton.
O uso de nomes ilustres de romanos para subscrever textos
de combate aprofundou-se, e os três autores, embora insatis-
feitos por entenderem que a Constituição não garantia um
suficientemente forte governo nacional, assumiram a defesa
efectiva do texto, com Madison a liderar os federalistas na
Virgínia, e Hamilton e Jay em Nova Iorque: de facto deram
vida ao texto no sentido de o traduzirem num governo efectivo,
com acolhimento nacional.
Vamos admitir que é uma coincidência, à qual apenas a
evolução da conjuntura actual empresta significado não

[7]
previsto, o facto desta edição portuguesa aparecer na data em
que a Convenção Europeia (Maio de 2003) tornou público
o seu proposto Projecto de Constituição, estruturado fim-
damentalmente sobre uma percepção federalista do futuro
europeu.
A meditação dos federalistas americanos, lembrados pelos
actuais leitores do fim da história, e confiadamente seguidos
pelos que assumem o resultado constitucional da sua inter-
venção como um modelo observante para a reestruturação
política do espaço europeu, é uma exigência que não pode
ser ignorada.
Até porque a lição dos federalistas, que o livro perpetua,
não foi a da insegurança sobre os princípios do governo repu-
blicano, foi a do realismo da intimidade com o modelo obser-
vado a organizar, com respeito pelos princípios, as "verdades
evidentes" da Declaração de Independência redigida por
Thomas Jefferson (4 de Julho de 1776): ameaças externas,
rivalidades entre Estados, perigos internos, salvaguarda contra
facções domésticas e insurreições, vantagens económicas,
capacidades indispensáveis à defesa comum, equilíbrio de
poderes, articulação entre os Estados e a Federação, a questão
do executivo. Este sentido do real, orientado pela certeza dos
princípios, parece recomendação suficiente para voltar à leitura
dos textos.
Trata-se agora, com a responsabilidade e autoridade de
Viriato Soromenho-Marques e João C. S. Duarte, da terceira
versão em língua portuguesa.
A penúltima, da responsabilidade da Fundação Universi-
dade de Brasília, foi o volume 62 da sua linha de Pensamento
PoUtico, e apareceu em 1961 sob a responsabilidade introdutória
de Benjamim Fletcher Wright e uma vasta equipa de con-
troladores de texto: tratou-se de mais uma entre pelo menos
as quarenta edições que serviram a curiosidade de gerações
em vários paises, não tanto ou apenas por ser um tratado de
filosofia política, mas por ser o exemplo da resposta ponderada

[8]
dada por estadistas empenhados, a lidar com a urgência, sem
perder o sentido do interesse geral.
Com o respeito devido à iniciativa de Brasília, sugiro que
a presente edição se distingue pelo rigor da interpretação para
a versão em língua portuguesa, pela notável síntese da intro-
dução, pela identificação das teses fundamentais, um texto
assinado por Viriato Soromenho-Marques. Tem interesse
recordar que, não obstante a importância do livro, a sua pre-
sença no ensino curricular não foi de dimensão correspondente
à que lhe foi reconhecida quando, depois do cataclismo da
guerra de 1939-1945, e com a supervisão da Universidade
de Chicago, foi publicada (1952) a série chamada Great Books
of the Wes tern World, depositários da chamada The Great
Conversation, na qual The Federalist tem o número 43.
Recordaram os editores que até recentemente os ociden-
tais consideraram evidente que a educação assentava nos
grandes livros dos pensadores. A evolução, as revoluções
técnicas e científicas, reduziram os cidadãos, em medida
excessiva, a objecto de propaganda pública e privada, de uma
tempestade de slogans, de notícias trabalhadas, a exigirem
retornar ao apoio dos "grandes livros" para conservar ou
recuperar a capacidade de julgar os desafios, as propostas e as
soluções.
Nem todas as esperanças da juventude encontrarão apoio
suficiente nessa The Great Conversation, mas certamente não
dispomos de melhor oferta para lutar por compreender a sua
circunstância e a tradição que a enforma.
Toda a selecção é discutível, mas colocar na série Aristó-
teles, Galileu, Euclides, Arquimedes, Ptolomeu, Copérnico,
Kepler, Plotinus, S. Tomás, Descartes, Pascal, Newton, Kant,
Hegel, Marx, Freud, parece chamar à consciência a identidade
dos ocidentais.
No domínio da política, The Federalist pretendeu defender
uma organização do bom governo, uma estrutura que evitasse
os conflitos que longamente marcaram de violência interna

[9)
e externa a história da Europa, produzindo várias inovações:
a federação, urna articulação de soberanias sob o signo da sub-
sidiariedade; a república, um nome da democracia, com
dimensão antes desconhecida dos teóricos e da história; as
garantias da cidadania, derivadas da evidência de que todos
os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos
direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade, e a busca
da felicidade; a legitimidade do governo pelo consentimento;
o direito à revolta contra o despotismo.
Um ilustre americano contemporâneo, Walter Lippman,
o autor da The Public Philosophy (1955), descreveu assim a
herança da divisão e equilíbrio dos poderes: "O executivo é
o poder activo no Estado, o que solicita e propõe. A assembleia
representativa é o poder que dá o consentimento, o que
peticiona e recusa. Os dois poderes são necessários se quisermos
ordem e liberdade. Mas cada um deve ser fiel à sua natureza,
cada um limitando e complementando o outro. O governo
deve ser competente e os cidadãos representados de modo a
não serem oprimidos. A bondade do sistema depende da rela-
ção de ambos os poderes. Se um absorve ou destrói as funções
do outro, a Constituição está violada".
A leitura do Federalist, que a referida iniciativa chamada
The Great Conversation deixou desamparada à curiosidade dos
leitores, está agora apoiada pelo excelente estudo do Professor
Viriato Soromenho-Marques: "A Revolução Federal- Filo-
sofia Política e Debate Constitucional na Fundação dos EUA"
(2002), que recomendamos que acompanhe as leituras da
publicação portuguesa do The Federalist.
Este último ensaio ajudará a articular a problemática
federalista europeia de entrada do milénio, com a temática
dos convencionais que há dois séculos tiveram a ideia da Cons-
tituição escrita como norma das normas.
É certamente excessivo imaginar que o alegado fim da
história coloca a solução americana como modelo observante
único para a reorganização do mundo sem fronteiras, omitindo

[10)
que falta uma equivalente The Great Conversation para aquilo
que os euromundistas chamavam o resto do mundo.
Mas é evidente que os europeus da Convenção deste
Milénio, que se proclamaram possuídos pelo espírito mandante
dos povos e Estados europeus, se deparam, dois séculos depois,
com iguais perguntas às que inquietaram os convencionais
americanos: quem é o povo europeu, que relação entre o
povo, os Estados e a União Europeia, que subsidiariedade
regula as soberanias cooperativas e a nova entidade europeia,
que elementos são recolhidos do modelo observante ame-
ricano, que especificidade tem o modelo observado europeu,
que definição e abrangência possui urna declaração de direitos
e deveres da nova cidadania.
Depois, uma interpelação aos intelectuais: The Federalist
foi uma gigantesca intervenção ao mesmo tempo na defesa
e criação da Constituição dos Estados Unidos da América,
em dois anos de intensa participação de Hamilton, Madison
e John Jay, num tempo em que a projecção do discurso no
eleitorado não tinha o apoio dos actuais meios de comunicação.
Uma criatividade acima das circunstâncias inscreveu a
colectânea das intervenções no chamado The Great Conversation
- The Substance cif a Liberal Education.
A premissa de Hamilton foi que "tem sido frequentemente
observado que parece ter estado guardado para o povo deste
país, pela sua conduta e pelo seu exemplo, decidir esta impor-
tante questão: se as sociedades humanas são ou não realmente
capazes de estabelecer um bom governo a partir da reflexão
e da escolha, ou se estão para sempre destinadas a depender
do acidente e da força no que respeita às suas Constituições
Políticas".
A demonstração foi no sentido da participação activa, o
contrário da política furtiva que algumas vezes tem caracte-
rizado o processo europeu.
Do ponto de vista da ciência política, o mais significativo
resultado da acção dos confederados e dos interventores res-

[11]
ponsáveis pela alegação recolhida no Federalista foi a definição
do modelo federal e a explicitação dos seus princípios.
Havia experiência antiga de ligas ou confederações, na
Grécia, na Itália medieval, na Alemanha, na Holanda, como
nota Wright, mas a definição do governo era outra.
Tal governo aparecia como agente dos Estados, e não
como o gestor dependente da eleição do povo da confederação,
com tribunais e legislativo vinculados à mesma legitimidade.
Por isso os contraditares do Federalist repudiaram o que
consideraram uma ruptura com a experiência, perplexos
perante a novidade à qual os proponentes e defensores tinham
dificuldade de atribuir designação.
No Federalista o governo é chamado nacional, geral, da
União, para que finalmente a expressão governo federal se
tenha mostrado de uso dominante.
Esta hesitação é também prova da sabedoria dos legisla-
dores, que sabiam estar em trabalhos de criação de um modelo
que enquadrasse a realidade e respondesse às aspirações, e não
ocupados em submeter ambas, realidade e aspirações, a um
modelo antigo e sabido. A história, largamente invocada, é
sempre inspiração, não é uma imposição.
A brilhante análise de Madison, defrontado com a semân-
tica da época, tem, entre outros méritos, o de analisar o
governo proposto, sem temor de reconhecer a novidade: os
"fundamentos sobre os quais será criado", a origem dos pode-
res, o exercício, o equilíbrio, a revisão dos normativos constitu-
cionais, com salvaguarda, para os Estados, de "uma soberania
residual e inviolável sobre todas as outras matérias".
A dificuldade semântica era evidente, mas tiveram cons-
ciência de que, como viria a dizer Tocqueville na Democracia
na América, "a inteligência humana inventa mais facilmente
novas coisas do que palavras novas".
Toda a esperança de que o modelo substituísse a violência
das facções pela razoabilidade dos compromissos, teve apenas
a excepção brutal da guerra civil, mas esta foi ultrapassada

[12]
salvaguardando a unidade, confirmando, como previa Madison,
"que nenhuma outra forma (constitucional) estaria de acordo
com o espírito dos americanos, com os princípios fundamentais
da Revolução, com o ânimo de cada defensor da liberdade
basear as experiências políticas na capacidade do homem para
ter um governo autónomo".
Esta criatividade, que se apega à compreensão da realidade
para lhe dar enquadramento derivado dos princípios, é todo
o contrário do ilusório fim da história que advoga a transfor-
mação do modelo então criado sem precedentes em modelo
observante para o mundo sem fronteiras e suposto sem alter-
nativa, uma espécie de discurso que ao mesmo tempo oferece
a liberdade e a nega.
O legado federalista americano, parte da The Great Conver-
sation, tem tudo que ver com a atitude cívica, com os princípios
firmes, com o realismo inovador, e nada com a inversão que
se traduz em dogmatizar o modelo constitucional encontrado,
ignorando a diversidade das múltiplas vozes do mundo sem
fronteiras. Uma razão suficiente para que a oportunidade da
publicação e o esforço dos seus autores sejam reconhecidos
pela crítica que os espera.

Universidade de Lisboa
1O de Julho de 2003

[1 3)
A FILOSOFIA CONSTITUCIONAL
DO FEDERALISMO

Estudo Introdutório à edição portuguesa de


O Federalista

Para um país, tantas vezes acusado desse duvidoso e invo-


luntário pecado que é o da juventude, a existência da mais
longa tradição constitucional, a que nem .mesmo a guerra
civil de 1861-1865 foi capaz de pôr termo, não é uma proeza
pequena.
A Constituição de 1787 transformou-se numa espécie de
organismo vivo, capaz, através de sucessivas metamorfoses
que não alteraram o seu desenho inicial, de suportar- muitas
vezes como fonte de crítica e suporte para a renovação - a
travessia histórica dos EUA, desde a condição de antiga
colecção de colónias britânicas da América do Norte, com
uma economia dominantemente rural, até ao estatuto de
maior potência industrial, militar e simbólica do planeta.
O segredo desse acontecimento histórico absolutamente
invulgar encontra a sua versão mais imediata e exotérica no
próprio texto da Constituição, que ainda hoje rege os destinos
do povo norte-americano. Contudo, a sua explicação profunda
e esotérica encontra-se numa obra, O Federalista, que constitui,
a par da Declaração de Independência dos EUA, um dos dois
textos que o espírito do Novo Mundo deixou no panteão

[15]
universal da luta da humanidade pela liberdade e emancipação
políticas.
Só a uma primeira impressão poderá parecer contraditório
o facto de O Federalista ser, simultaneamente, uma obra domi-
nada pela urgência de um debate conjuntural- a necessidade
de ratificar a Constituição federal dos EUA, de acordo com
o projecto elaborado pela Convenção Constitucional reunida
em Filadélfia, entre Maio e Setembro de 1787 - e um dos
textos fundamentais de filosofia política de toda a história do
pensamento ocidental. Acrescentaria mais: O Federalista será,
muito provavelmente, o texto clássico, no dorrúnio da reflexão
política, que mais terá a oferecer à humanidade neste século,
que ainda há pouco iniciámos.
Com efeito, o esforço dos três autores de O Federalista
segue as pisadas de outros grandes textos fundamentais, onde
a marca da conjuntura não impediu que, pela primeira vez,
fossem captadas conceptualmente dimensões e facetas, até
então ocultas, da realidade social e política, que constituem
parte indissociável da experiência humana. Seria possível com-
preendermos a génese dos Dois Tratados sobre o Governo, de
John Locke, sem a presença das conturbadas paisagens políticas
que conduziram à Gloriosa Revolução inglesa de 1688? O
mesmo se poderá perguntar relativamente às relações entre
O Prfncipe de Maquiavel e a intensa luta pelo poder na cena
política florentina e italiana do Renascimento. Ou ainda: será
que Platão e Aristóteles não pensaram, também, a sua Atenas
e a sua Grécia, em obras como A República e a Política, que,
todavia, constituem clássicos, precisamente, pelo seu contributo
singular para a compreensão do fenómeno complexo da
política como parte essencial da experiência mundana do ser
humano? Compreensão que, com efeito, não se esgota na
elucidação erudita dos contextos históricos que presenciaram
a génese de quaisquer dessas grandes obras.

(16]
§I.

O Nascimento de O Federalista

As treze antigas colónias britânicas na América do Norte


tinham aprovado em 1781 a sua primeira lei fundamental, Os
Artigos da Confederação (doravante: AACC)l. Essa primeira
Constituição procurava aprofundar a vontade das antigas e
diferentes comunidades coloniais de continuarem um caminho
solidário para além do ambiente bélico, que em 1781 já parecia
augurar um fim promissor para a causa dos revolucionários.
Os AACC estabeleciam o difícil consenso entre entidades
politicas que, apesar da comum origem britânica, apresentavam
características sociais muito diferentes, com um potencial de
colisão e fragmentação muito elevado, particularmente entre
o Norte e o Sul. A Declaração de Independência tinha assinalado
a vontade de partilha em comum, por parte dos povos das
antigas colónias, dos riscos da luta pela emancipação, a partir
de um patamar de ideias normativas que estava destinado a
captar o elemento mais duradouro e influente da época das
Luzes. Os AACC, por seu turno, tinham a espinhosa missão
de permitir a complexa navegação no mundo concreto, com
os seus permanentes e inesperados desafios, de sociedades
com interesses materiais, referências constitucionais, culturais
e económicas cuja diferença nem sempre poderia antecipar
uma conjugação harmoniosa e efectiva.
Apenas um lustro após a entrada em vigor dos AACC, as
numerosas insuficiências da primeira lei fundamental dos EUA
eram cada vez mais evidentes para muitos dos lideres tanto
da Confederação como dos Estados. As barreiras tarifãrias e
as rivalidades económicas ameaçavam colocar em risco os
laços de unidade cimentados na luta comum contra o império
britânico. O Estado do Connecticut, a título de exemplo,

I Páginas 779-788 da presente obra.

[17)
cobrava taxas maiores sobre as importações do Massachusetts
do que sobre as da Grã-Bretanha. A ausência de moeda comum
acentuava as dificuldades na criação de um efectivo mercado
interno. Também no plano militar, apesar de a experiência
da Guerra da Independência ter demonstrado no terreno a
importância de um comando unificado, os Estados pareciam
estar tão longe de chegar a um acordo sobre a construção de
umas forças armadas da União como sobre o que fazer com
o pesado fardo das dívidas de guerra, que lançava um pesado
ónus de descrédito internacional sobre a Confederação Ame-
ricana, recentemente formada2.
Em Setembro de 1786, as lacunas dos AACC em matéria
comercial levaram alguns dos Estados a reunirem-se na Con-
venção de Annapolis. A mais importante das conclusões desse
evento constituiu a confirmação da necessidade de prosseguir
o trabalho no plano mais profundo do próprio texto constitu-
cional. Entretanto, a ocorrência de uma rebelião no Estado
do Massachusetts, no início de 1787, comandada por Daniel
Shays, um veterano da Guerra da Independência, precipitou
a aprovação por parte do Congresso, em Fevereiro de 1787,
da decisão de promover, em Maio desse mesmo ano, uma
Convenção de revisão dos AACC, que deveria ter lugar na
mesma cidade e no mesmo edifício onde, pouco mais de uma
década antes, havia sido assinada a Declaração de Indepen-
dência. Às dificuldades económicas e financeiras juntavam-
-se problemas de natureza politica e institucional que punham
em causa a própria estabilidade social tanto da Confederação,
como dos Estados membros. Filadélfia aparecia, pela segunda
vez, como a cidade que simbolizaria a esperança de um novo
começo, na breve história do novo país.

2 Tive ensejo de analisar longamente os contornos históricos e os debates


filosóficos desse período na obra: A Revolução Federal. Filosofia PoUtica e Debate
Constitucional na Fundação dos E. UA. Lisboa, Edições Colibri. 2002.

[18]
A Convenção deveria ter iniciado os seus trabalhos no
dia 14 de Maio de 1787. Todavia, as dificuldades de comuni-
cação da época só permitiram reunir o número núnimo de
delegados, para que a Assembleia inaugurasse os seus trabalhos,
no dia 25 de Maio. Com efeito, nessa data, 29 dos 55 delegados
que, no conjunto da Convenção, passariam por Filadélfia
deram início ao processo que conduziria à aprovação, sancio-
nada pela assinatura expressa de trinta e oito delegados, de
um projecto de nova Constituição, que só seria tornada oficial-
mente pública depois da sua aprovação na última sessão da
Convenção, em 17 de Setembro de 17873.
A Convenção de Filadélfia permitiu a realização de um
dos debates políticos com maior elevação, de que há registo
na história universal. Não foi mera cortesia a classificação que
sobre e sa Assembleia produziu Thomas Jefferson, quando a
designou como uma "Assembleia de semideuses". O teste-
munho mais notável do evento continua a ser o relato produ-
zido pelo punho de James Madison, que conseguiu a enorme
proeza de ter sido, simultaneamente, o mais importante inter-
veniente nos trabalhos da Convenção e o seu cronista oficioso4.
A aprovação de um código de sigilo vinculando todos os
delegados permitiu que os trabalhos prosseguissem com a
tranquilidade necessária para o sucesso de uma empresa que,
em menos de uma semana, ultrapassou os limites do seu man-
dato inicial. Com efeito, a Convenção rapidamente chegou
à conclusão de que seria impossível rever o texto constitucional
sem o refundar radicalmente. Desse modo, o que parecia ser

3 O projecto de Constituição seria objecto de discussão no Congresso,


reunido em Nova Iorque, entre 26 e 27 de Setembro de 1787. No dia seguinte
seria enviado para as treze legislaturas estaduais, dando início ao processo de
ratificação, previsto no último artigo do projecto constitucional.
4 James Madison, The Debates in the Federal Convention of 1787 which
Framed the Constitution of the United States of America, G. Hunt e]. B.
Scott (eds.), Buffalo-New York, Prometheus Books, 1987.

[19]
uma mera revisão de um documento já existente transformou-
-se, de facto, na elaboração de uma nova lei fundamental para
os Estados Unidos da América.
A nova Constituição propunha uma alteração profunda
na relação entre as competências e os poderes atribuídos à
União, por um lado, e aos governos estaduais, por outro.
Os delegados de Filadélfia, por muito divergentes que fossem
as suas perspectivas sobre o futuro dos EUA, tinham uma
consciência muito precisa da importância crucial da opinião
dos líderes e dos eleitores estaduais. Nada poderia ser feito
sem passar por eles. A possibilidade de submeter o novo
projecto constitucional apenas ao escrutínio do Congresso
Continental, que prosseguia com normalidade o seu labor
em Nova Iorque, pareceu tão insuficiente como deixar tudo
à decisão das legislaturas estaduais em exercício. A superação
dessa dificuldade foi encontrada no próprio texto constitu-
cional, na medida em que foi decidido deixar o destino do
projecto de Constituição ao parecer definitivo de Convenções
estaduais a eleger especificamente para o debate e a aprova-
ção ou rejeição do novo projecto. A nova Constituição só
entraria em vigor na condição de pelo menos nove dos treze
Estados a aprovarem, no cumprimento de um processo de
ratificação, previsto no sétimo e último artigo da proposta
constitucional.
A metodologia de ratificação constitucional escolhida
permitiu uma experiência democrática ímpar, mesmo no
quadro da história americana, onde a experiência de auto-
governo tinha as suas raízes nas camadas sedimentares mais
antigas do período colonial. Durante mais de um ano, os cida-
dãos dos diferentes Estados foram convidados a analisar e
discutir a nova proposta constitucional, projectando a sua opi-
nião através da eleição de representantes escolhidos exclusiva-
mente para o efeito. O processo de ratificação foi acompanhado
pela intensificação de uma verdadeira esfera pública que per-
mitiu a generalização da discussão política através não só de

[20)
reuniões públicas como também, e sobretudo, do recurso
abundante à imprensa escritas.

§ II.

Os autores de O Federalista e a sua tarefa

É neste contexto de construção de um vivo espaço de


debate público que temos de inserir o aparecimento da obra
O Federalista. O confronto de ideias, que a história registaria
como opondo antifederalistas e federalistas, respectivamente,
adversários e partidários da nova Constituição, embora genera-
lizado ao país, ganhou contornos particularmente agudos no
Estado de Nova Iorque. Aí, a atmosfera política inclinava-se
para uma posição hostil ao novo projecto constitucional.
A poderosa e influente figura de George Clinton (1739-1812),
o Governador de Nova Iorque, surgia como uma espécie de
representante dos interesses mais paroquiais das burocracias
estaduais, que a ampliação das competências da União amea-
çava colocar em causa. No caso de um Estado fortemente
comercial como Nova Iorque, as perdas com a transferência
para a União das competências em matéria de comércio
externo e interestadual apareciam como evidentes. Clinton
erguia-se como o inspirador de uma campanha de imprensa
contra as propostas de Filadélfia.

5 O s primeiros Estados a ratificarem a Constituição fizeram-no ainda em


1787: Delaware (7 de D ezembro), Pensilvânia (12 de Dezembro) e NovaJ érsia
(18 de Dezembro). Em 1788 a ratificação foi efectuada pelos seguintes Estados:
G eó rg ia (2 de Janeiro), Connec ti cut (9 de J ane iro), M assachuse tts (6 de
Feve reiro), M aryland (28 de Abril), Ca rolina do Sul (23 de Maio) , N ew
H ampshire (2 1 de Junho), Virgínia (25 de Junho), Nova Iorque (26 de Julho) .
Mais tarde a ratificação seria efectuada pela Carolina do N o rte (21 de Novembro
de 1789) e pelo Estado mais refractário em todo este processo, Rhode Island
(29 de M a1o de 1790).

[21]
O Federalista viu, assim, a luz do dia como o resultado da
tentativa de contrariar os esforços dos inimigos do novo pro-
jecto constitucional, liderados em Nova Iorque por George
Clinton. O principal responsável pela iniciativa foi Alexander
Hamilton (1757-1804), umjovem e talentoso advogado de
Nova Iorque, com uma notável folha de serviço público.
Durante a Convenção de Filadélfia, Hamilton tinha sido a
voz mais forte em defesa dos poderes da União, numa latitude
de competências que ultrapassaria mesmo o registo que ficaria
definido no texto que O Federalista visava agora defender.
Hamilton foi um dos três representantes da Nova Iorque à
Convenção Constitucional, tendo ficado sempre em minoria,
já que os outros dois delegados votaram sempre de um modo
conservador, em conformidade com as orientações do gover-
nador George Clinton6. Para além das suas credenciais jurídicas,
Hamilton tinha revelado enormes capacidades militares e
administrativas durante a Guerra de Independência, tendo
sido o ajudante de campo de George Washington, que jamais
deixou de reconhecer as suas extraordinárias capacidades.
Apesar da sua curta vida, que terminou tragicamente no
encontro de uma bala, no decurso de um duelo com um rival
político e pessoal, Aaron Burr, Hamilton estava destinado a
desempenhar ainda importantes funções públicas no quadro
da realidade constitucional de que fora um dos maiores cam-
peões. Em 1789, George Washington, ao formar o primeiro
governo federal, convidou-o para a difícil pasta de secretário
do Tesouro. Foi sob a sua direcção que o delicado problema
das dívidas de guerra dos diversos Estados da União encontrou

6 Robert Yates e John Lansing, Jr. eram os outros delegados de Nova

Iorque. Ambos abandonaram, definitivamente, os trabalhos da Convenção de


Filadélfia em 10 de Julho de 1787, como protesto contra qualquer alargamento
das competências do governo da União. Não deixa de ser um exemplo da
ironia em que a lústória é fertil o facto de George Clinton ter terminado a
sua existência em 1812, no posto de vice-presidente do governo federal , sob
a presidência de James Madison ...

[22]
uma solução definitiva. É a Hamilton que se devem as primeiras
medidas significativas tendentes à criação de um Banco nacio-
nal, bem como à promoção da indústria norte-americana,
atenuando a quase total dependência das importações. George
Washington ainda conseguiu pressionar o seu sucessor, John
Adams, a nomear Hamilton, em 1799, para o cargo de Ins-
pector-Geral das forças armadas, numa altura em que os EUA
pareciam estar na iminência de um envolvimento nas guerras
europeias. Contudo, os seus últimos anos de vida foram
passados numa segunda linha, num cruel contraste com o seu
enorme talento e capacidade de trabalho7.
Foi Alexander Hamilton quem, imediatamente após o
encerramento dos trabalhos da Convenção, resolveu reunir
aliados para o projecto de O Federalista. A informação precisa
sobre as diligências associadas à génese da empresa escasseia.
Alguns indícios vão no sentido de se poder aceitar a hipótese
de também William Duer e Gouverneur Morris - este último
delegado da Pensilvânia à Convenção de Filadélfia - terem
recebido o convite de Hamilton, mas, pelos vistos, sem con-
sequências práticass. O que sabemos de positivo é que os três
autores de O Federalista permaneceram em Nova Iorque no
período crítico da produção e aparecimento da obra, entre
Outubro de 1787 e Março de 1788. Os artigos chegaram ao
conhecimento público através de quatro jornais distintos
editado em Nova Iorque, sob o pseudónimo de Publius,
seguindo um uso muito comum na época, entre as diversas
facções em conflito. A influência de Roma e da herança repu-
blicana clássica fazia-se sentir tanto entre os antifederalistas
como entre os federalistas . Publius Valerius foi um herói

7 Uma impressionante análise histórica, filosófica, e até psicológica, das


divergências entre Alexander Hamilton e Aaron Burr pode ser encontrada
em: Joseph J. Ellis, Founding Brothers. The Revolutionary Generation, London,
Faber and Faber, 2002, pp. 20-47.
8 Jacob E. Cooke (ed.), " Introduction", The Federalist, Cleveland-Ohio,
Meridian Book, 1961, pp. IX-XII.

[23]
romano, que, de acordo com Plutarco, desempenhou em
Roma um papel análogo ao de Sólon em Atenas, na medida
em que estabilizou o regime republicano, depois de Lucius
Brutus ter derrubado Tarquino o último rei romano9. Os
outros dois autores de O Federalista são igualmente personali-
dades de primeira grandeza do período fundador dos EUA.
James Madison (1751-1836) foi sem dúvida o elemento-
-chave na Convenção de Filadélfia. No ano anterior à Con-
venção, revelando um sentido premonitório, Madison refu-
giou-se na propriedade paterna, em Orange County, Virgínia,
para um longo estudo sobre filo o fia política e história jurídica,
cujos traços de erudição se encontram claramente patentes
em O Federalista. Antes da Convenção, Madison apresentava
já um currículo político notável, tanto ao serviço da legislatura
da Virgínia, como no âmbito do Congresso Continental. Mas
a carreira mais brilhante estava ainda à sua frente. Depois da
ratificação ele serviria no Congresso, na Câmara de Represen-
tantes, entre 1789 e 1797. O seu nome está associado à apro-
vação da Bill ofRights federal (constituído pelos dez primeiros
aditamentos da Constituição norte-americana). Madison foi,
igualmente, uma das figuras da história dos EUA que mais
tempo passou nas mais altas funções federais em Washington.
Com efeito, não só serviu como Secretário de Estado nos
dois mandatos de Thomas Jefferson (1801-1809), como foi
ele próprio o quarto Presidente da Federação, ao longo de
dois atribulados mandatos (1809-1817), dominados pela
segunda guerra contra a Grã-Bretanha. À semelhança do seu
amigo e companheiro de luta, Jefferson, James Madison,
terminou a sua vida pública numa função académica, como
Reitor da Universidade da Virgínia.

9 Também os antifederalistas de Nova Iorque, como Robert Yates e


George Clinton, escolheram pseudónimos romanos para os seus artigos
polénúcos, respectivamente, "Brutus" e "Cato": Isaac Krarnnick (ed.), "Intro-
duction ", Tize Federalist Papers, London, Penguin Books, 1987, p. 77.

[24]
O terceiro autor de O Federalista, e o único que não esteve
presente nos trabalhos de elaboração da nova Constituição,
foi John Jay (17 45-1829) , um conhecido e experiente político
nova-iorquino, que contava no seu percurso, entre outras
proezas, o ter estado por duas vezes no Congresso Continental
que liderou a Revolução, em 177 4 e 1777, tendo chegado a
presidi-lo (1778). Jay foi o principal redactor da primeira
Constituição do Estado de Nova Iorque, para além de ter tido
um importante desempenho diplomático em Espanha e França.
Com Benjamin Franklin e John Adams, foi, igualmente, um
dos responsáveis pelo Tratado de Paris, o acordo assinado em
1783, q e terminou a guerra com a Grã-Bretanha em condi-
ções muito favoráveis para o novo país. O futuro reservaria
ainda a John Jay a honra de ser o primeiro juiz a presidir ao
Supremo Tribunal federal, assim como o cargo de governador
do Estado de Nova Iorque, precisamente o lugar ocupado
por George Clinton, o principal alvo contra o qual se ergueu
a empresa de O Federalista.
Como obra colectiva, pertencendo a três autores escre-
vendo sob o abrigo de um pseudónimo comum, completa-
mente desinteressados de eventuais direitos autorais, já que
os artigos componentes do livro se destinavam, como já vimos,
a serem armas ao serviço de uma luta política premente,
O Federalista não nos chegou isento de problemas no que diz
respeito à autoria segura que deve ser atribuída a todos os
seus oitenta e cinco ensaios. O que se conhece de positivo é
que o primeiro artigo saiu em 27 de Outubro de 1787 no
Independent Journal or the General Advertiser, tendo o artigo
n. 0 76 sido publicado, também no mesmo periódico, em 2
de Abril de 178810_ Todos os restantes artigos são da autoria

10 Os outros jornais que publicaram ensaios de O Federalista foram os


seguintes: The New- York Packet, editado por Samuel e John Loudon; The Daily
Advertiser, editado por Francis C hilds; The New- York journal and Daily Patriotic
R egister, editado por Thomas Greenleaf.

[25]
de Hamilton, tendo sido publicados primeiro em livro e só
depois na imprensa. Com efeito, foi Hamilton quem reviu a
primeira edição em livro de O Federalista, que foi publicada
por John McLean, também editor do Independent ]ournal, e
que saiu em dois volumes: o primeiro em 22 de Março de
1788, contendo 36 artigos; o segundo em 28 de Maio do
mesmo ano, contendo os artigos numerados de 37 a 85.
A não coincidência entre a numeração dos jornais e a do livro
tem a sua raiz nesta edição McLean. Com efeito, Alexander
Hamilton resolveu efectuar duas alterações: passou o artigo
que saíra na imprensa com o n. 0 35, para o n. 0 29 no livro;
dividiu em dois o longo artigo 31 dos jornais, que no livro
receberam os números 32 e 33.
Embora os autores desta tradução portuguesa tivessem
consultado várias edições de O Federalista, a que serve de base
a este livro é o trabalho de referência de Jacob E. Cooke,
onde as diferenças de numeração se encontram identificadas
com clareza11. Outro aspecto acerca do qual Cooke se pro-
nuncia é sobre a controversa questão da autoria de alguns dos
85 ensaios que constituem o corpo completo de O Federalista.
Se em relação aos 5 artigos de John Jay não existem dúvidas,
já sobre 15 dos restantes ensaios existe controvérsia no que
concerne a saber se a sua autoria pertence a Hamilton ou a
Madison. Na perspectiva de Cooke só se colocam verdadeiras
dúvidas sobre uma dezena de ensaios, oscilando o contributo
de Madison entre 19 e 29 ensaios e o de Hamilton entre 51
e 61. Como o leitor facilmente verificará por si próprio, em
cada ensaio é indicado o nome do autor indiscutível, ou o
nome dos autores, por ordem de probabilidade de autoria,
em caso de controvérsia.
As tarefas que os Estados Unidos tinham pela sua frente
em 1787 eram de complexa e gigantesca dimensão. A primeira

11 Jacob E. Cooke (ed.), The Federa/ist, Cleveland-Ohio, Meridian Book,


1961 , 672 pp.

[26]
revolução anticolorúal bem sucedida da história tinha de garan-
tir dois outros títulos para assegurar a sua sobrevivência e pros-
peridade como comurúdade nacional. Tinha que afirmar a
sua indefectível vocação republicana. Por outro lado, essa
tarefa, inédita numa era dorrúnada por poderes monárquicos
e despóticos, teria de realizar-se a uma escala geográfica sem
precedentes: o conjunto do território das treze antigas colórúas
britânicas em solo americano, a que se juntaria o imenso
território para oeste, que seria o berço de dezenas de novos
Estados que, com o tempo, integrariam uma Urúão em clara
dinârrúca de crescimento. Por outras palavras, os povos recente-
mente libertos do jugo do maior império coevo só poderiam
assegurar o seu futuro independente se conseguissem fazê-lo
no quadro de instituições republicanas e, mais ainda, no interior
de instituições sem qualquer paralelo ou amparo histórico,
que garantissem o primado da soberania popular numa dimen-
são geográfica continental. Esse era o desafio do novo republi-
carúsmo que teria de ser federal. Para trilharem essa estrada,
os norte-americanos não encontravam qualquer inspiração
teórica ou prática verdadeiramente tranquilizadora, tanto nos
exemplos da Antiguidade (Roma republicana e cidades-Estado
gregas), nem nas pequenas e irrelevantes experiências das
repúblicas e confederações europeias.
Os autores de O Federalista tinham consciência da tarefa
que enfrentavam. Uma consciência talvez ainda mais aguda
do que aquela que podemos detectar nos seus ilustres compa-
nheiros da Convenção de Filadélfia, já que, ao lançarem mãos
à sua obra, Hamilton e Madison acentuaram ainda mais a
compreensão da magrútude do desafio que colocava os EUA
entre a fronteira da grandeza ou o risco da fragmentação. Ou,
recorrendo a uma imagem que usei num outro estudo:
a América tinha de escolher entre seguir um caminho próprio,
mas sem grandes apoios nem marcos de referência externos
ou anteriores, ou tomar a rota bem conhecida da Europa,
reproduzindo no Novo Mundo todas as mazelas do Velho,

[27]
nomeadamente, a fragmentação belicosa dos Estados, cons-
truindo, em alternativa a uma união federal pacífica, um novo
sistema internacional, condenado a atolar-se, periodicamente,
no pântano sangrento da luta pelo equilíbrio do poder1 2_
Os problemas dos Estados Unidos, aqueles que os AACC
não tinham conseguido solucionar poderiam resumir-se a três
categorias principais: a) Como conciliar o espírito de rebeldia
contra uma autoridade distante, com a necessidade de construir
um núcleo federal unificador? Mesmo que este não colocasse
em causa o vasto can1po dos poderes onde a subsidiariedade
se exercia de modo soberano, o núcleo federal deveria surgir
como uma outra esfera de poder, para além daquela imedia-
tamente visível aos olhos daqueles que confundiam a liberdade
com o exercício da deliberação em matérias estritamente
locais. b) Como assegurar a sã convivência entre o princípio
da liberdade, que conduzia a uma desconfiança preventiva
contra todos os possíveis abusos de qualquer forma delegada
de poder, e o princípio da segurança, que era capaz de vislum-
brar os riscos e as possibilidades que se ofereciam aos Estados
Unidos no quadro mundial, quer numa visão de curto, mas
sobretudo num olhar de longo prazo? c) Como aceitar a
manutenção da escravatura, dessa "instituição peculiar", num
país que tinha começado a sua edificação, como povo e "comu-
nidade de destino", debaixo da mais firme declaração de apoio
à crença n existência de indeclináveis direitos naturais da
humanidade, sendo o direito à liberdade a coluna vertebral
em que se apoiavam os restantes?
Das três questões acima mencionadas só as duas primeiras
encontraram verdadeira resposta. A última seria sucessivamente
adiada até à prova de fogo da guerra civil, quando o argumento
de que seria preciso protelar a solução da escravatura para sal-
var a União deixou de fazer qualquer sentido. O mais notável
na resposta que Hamilton, Madison e Jay deram aos problemas

12 A Revolução Federal, pp. 151-176.

[28]
dos Estados Unidos, no delicado período de consolidação da
sua existência como entidade política autónoma, reside na
singularidade do caminho escolhido nas páginas de O Fede-
ralista. Com efeito, esta obra não se limita a ser um comentário
estrito e rigoroso do texto da proposta de Constituição, embora
também o seja. Não se limita a ser uma tentativa de resposta
às preocupações coevas dos povos das antigas treze antigas
colónias britânicas, embora essas preocupações sejam centrais
aos autores do livro em apreço. O que faz de O Federalista
uma obra clássica e duradoura assenta no facto de os seus
autores terem dirigido a sua reflexão para um auditório muito
mais universal do que o constituído pelos norte-americanos
de 1787 ou 1788. Os autores transformaram uma obra que
se poderia esgotar numa polémica circunstancial de imprensa,
numa interrogação da realidade política à luz de uma verdadeira
teoria da condição humana. O Federalista não se limitou a ser
o fruto de um trabalho de juristas com urna forte inclinação
para o direito constitucional. O Federalista transformou-se no
trabalho de argutos pesquisadores filosóficos, voltados para o
esclarecimento do modo como as instituições devem ser
medidas pelas características de uma antropologia fundamental
do ser humano em sociedade, numa relação de acção recíproca,
orientada por uma finalidade de progresso.
Sob este ponto de vista, O Federalista é o maior manifesto
das Luzes norte-americanas, na sua faceta política. Mas essa
radicação no final do século XVIII não visa qualquer datação
pensada como desprimorosa para o seu mérito intrínseco, que
se mantém ao ponto de, como já afirmámos acima, considerar-
mos esta obra como de uma extrema actualidade para os nossos
contemporâneos do século XXI. A substância dessa actualidade,
inspiradora para o nosso tempo, pode ser identificada em
quatro teses essenciais sobre a política em geral e o federalismo
republicano em particular.

[29]
§ III.

O Federalismo constitucional
em quatro teses fundamentais

1) A política como exercício transparente e racional


da procura pela justiça.

Os autores de O Federalista, em particular Hamilton,


mantêm-se fiéis a uma concepção finalista da política. Tal
como Aristóteles, eles consideram a política como uma esfera
essencial da razão prática onde a busca do bem e do aperfei-
çoamento são elementos essenciais. Contudo, contrariamente
ao Estagirita, os autores de O Federalista recusam qualquer
visão hierárquica da sociedade. Nenhum homem está con-
denado por natureza a uma situação de submissão. Nenhuma
comunidade está definitivamente arredada da possibilidade
de superar o legado sombrio do "acidente e da força", apos-
tando em reconstruir os seus fundamentos a partir de uma
"reflexão", onde a razão expõe os motivos e os argumentos,
e de uma "escolha", que consiste no movimento esclarecido
da vontade articulada dos cidadãos (Ensaio n. o 1). A força e
responsabilidade da experiência americana residem nesse valor
exemplar. O seu sucesso representará a viabilidade de uma
concepção emancipadora da política. Não um mero exercício
do poder, mas uma organização da sociedade para a multi-
plicação das forças que aumentam a possibilidade de realização
das potencialidades individuais e colectivas. Uma sociedade
mais livre, porque mais aberta à demanda dos indivíduos pela
felicidade como finalidade existencial.
Hamilton é particularmente sensível ao desenvolvimento
"das ciências da moral e da política". Ele tem uma consciência,
para o seu tempo muito percursora, do enorme surto de
crescimento que aguarda as ciências sociais e humanas. Não

[30)
seria possível fazer boas leis ou traçar um adequado sistema
fiscal sem um detalhado conhecimento empírico das caracte-
rísticas sociais complexas, que vão da demografia à economia,
da religião aos costumes, da sociedade sobre a qual essas leis
ou esse sistema incidem. Contudo, essas ciências não podem
almejar ao mesmo tipo de rigor existente nas ciências da
natureza (Ensaio, n. 0 31). O comportamento dos seres humanos
está sem dúvida envolvido pela trama das leis da natureza,
mas não se deixa determinar mecânica e inelutavelmente por
elas. A acção dos homens na vida em geral, e nos conflitos
sociais em particular, não pode ser prevista com a precisão de
um eclipse solar. A racionalidade da política é inseparável da
boa vontade ética e do risco prático associados às opções livres.
A liberdade é sempre uma navegação difícil, muitas vezes por
rotas onde as cartas ou são insuficientes, ou faltam em absoluto.
Para Hamilton, e para a visão geral contida em O Federalista,
a racionalidade da política não dispensa a coragem de decidir
num quadro de conhecimento, que, por mais amplo que,
desejavelmente, se revele, jamais será completamente satisfatório
se se quiser respeitar o princípio do tempo adequado, que
toda a deliberação política matricialmente comporta.

2) O pluralismo corno essência da sociedade.

A Revolução Americana foi a única das grandes revoluções


em que as tensões e os debates políticos não terminaram no
esmagamento físico dos seus próprios líderes em vagas sucessivas
de Terror. James Madison terá sido, entre os autores de
O Federalista, aquele que melhor traduziu as razões profun-
das para que tal holocausto não tivesse ocorrido. No Ensaio
n.0 10, ele apresenta-nos a sua fundamental teoria das facções.
Os seres humanos têm a singular tendência para se agruparem
em facções, isto é, em grupos particulares dominados por
uma paixão ou interesse específicos, que tendem, perigosa-

[31]
mente, a aspirar à hegemonia sobre os interesses e paixões das
facções minoritárias. Ora, ao contrário da improvável vontade
geral de Rousseau, Madison acredita que quem quiser liquidar
a tendência para a formação das facções em sociedade estará
a causar mais dano com essa pretensa cura do que o prejuízo
que deriva da própria existência de facções. A supressão das
facções, ou a sua consolidação numa facção monocordicamente
única, significariam o fim da liberdade, de que a facção é
como que uma manifestação potencialmente perversa, mas,
mesmo assim, uma manifestação. O objecto da política,
compreendida com sensatez, não deverá consistir em eliminar
a raiz das facções, pois tal seria semelhante a pretender acabar
com o risco de fogo, através da eliminação do próprio ar. Em
vez de terapias que se arriscam a ser mortais para a liberdade,
Madison propõe que uma sábia política se afirme pela capaci-
dade de encontrar os enquadramentos legais e institucionais
capazes de limitar os danos resultantes da inevitável existência
das facções. Ora, o sistema republicano, baseado no princípio
da representação, e o seu alargamento por via federal ao
conjunto dos Estados Unidos, são a dupla salvaguarda de que
nenhuma facção, ligada a nenhum interesse particular, assente
na propriedade, por exemplo, se poderá impor esmagadora-
mente sobre as minorias e os indivíduos.
Este princípio do pluralismo atravessa toda a filosofia polí-
tica de Madison. Uma sociedade que não seja capaz de proteger
as minorias e os indivíduos contra a vontade hegemónica das
mais poderosas facções nem sequer merece a designação de
sociedade civil, pois esta deve ser dirigida pela procura da
justiça como sua causa final. Uma sociedade onde o princípio
do pluralismo não seja respeitado merece ser entendida, pelo
contrário, como uma "anarquia", como um "estado de natu-
reza". Tendo em vista a realidade pletórica da colonização
britânica da América, Madison estabelecerá mesmo uma ana-
logia entre o pluralismo social de interesses e o pluralismo
religioso de crenças organizadas. Num e noutro caso, só uma

[32]
arquitectura institucional que garanta e proteja o pluralismo
poderá impedir a sociedade de sucumbir no primado do mais
forte, e na abdicação da justiça como horizonte fundamental13.
Publius e, em particular, James Madison transformam,
desse modo, o problema do pluralismo numa oportunidade,
em vez de tentarem seguir a via impossível de uma segunda
criação da humanidade. Nesse sentido, poderemos dizer que
a visão de sociedade patente em O Federalista está para a visão
de sociedade presente em O Contrato Social como a PoUtica
está para A República. Publius está ao lado de Aristóteles, em
favor do princípio do pluralismo, enquanto Rousseau se coloca
ao lado de Platão na defesa do primado da unidade. Contudo,
a diferença de Publius reside na modernidade e nas conse-
quências concretas da defesa do pluralismo como princípio.
Para Publius a questão não reside essencialmente num plano
teórico, mas eminentemente no domínio da acção concreti-
zadora. O pluralismo é, indiscutivelmente, um princípio
filosófico e antropológico, mas as suas manifestações estão
destinadas a produzir efeitos na vida quotidiana de todos os
cidadãos e na cultura política dos Estados Unidos. Com efeito,
o plano federal, aquele que é o alvo da proposta constitucional,
afirmar-se-á como a linha fundamental da vigorosa defesa do
direito à diferença de opinião e credo de todos e de cada um.
A procura racional da melhor sociedade implica o respeito
pelo pluralismo, quer isso se reflicta na formação do primeiro
sistema moderno de partidos políticos, quer na proliferação
de jornais ao serviço da liberdade de expressão, ou na vigilância
e controlo mútuos entre órgãos do poder político garantida
pelo sistema constitucional de "freios e contrapesos" (checks
and balances).

13 Ensaio 51. Não deixa de ser interessante verificar que, quando John
Rawls procura um exemplo para o que ele designa como "o facto do pluralismo
razoável" (the fact of reasonable pluralism), seja a James Madison que vai buscar
inspiração: The LAw of the Peoples with «The ldea of Public Reason R evisited",
Cambridge-MA/ London, Harvard University Press, 2002, p. 124.

[33]
3) O federalismo como aprofundamento da soberania
popular.

A principal acusação dirigida pelos 'antifederalistas ao


novo projecto de Constituição consistia na antecipação do
perigo da esfera de poder federal se tornar excessivamente
exorbitante, ao ponto de se arriscar a tombar numa situação
de tirania. A resposta de Publius será dupla. Por um lado, atra-
vés de uma crítica demolidora às insuficiências dos AACC,
Publius, sobretudo através de Hamilton, revela a impossibili-
dade de se pensar que a nova proposta de lei fundamental
poderia encontrar sequer uma alternativa séria na antiga Cons-
tituição, independentemente dos inegáveis aspectos positivos
que esta continha (Ensaios n. 0 21 a 23). Por outro lado, tanto
Hamilton como Madison convergem no esforço de desarmar
os receios quanto aos alegados perigos de excentricidade e
despotismo da emergente autoridade federal.
Três razões principais concorrem para diminuir essas
expectativas negativas. Em primeiro lugar, a Constituição
proposta continua a deixar a maioria das competências em
matéria de políticas públicas entregues ao dorrúnio de actuação
das autoridades estaduais. Nessa medida, a Constituição não
produz uma diferenciação vertical e hierárquica nas compe-
tências, mas antes uma divisão de trabalho determinada por
um entendimento da melhor adequação funcional dos diversos
rúveis da administração ao serviço do bem comum (Ensaios
n. o 23 e 41). Em segundo lugar, as últimas dezenas de ensaios
de O Federalista são precisamente dedicadas a analisar as
estruturas institucionais e a divisão de atribuições entre os
diferentes componentes do poder federal. A conclusão resul-
tante desse esforço minucioso de investigação e argumentação
aparece inequívoca aos olhos de Publius: a separação e controlo
mútuo entre as diversas instâncias da governação no plano
federal impedem que a Constituição proposta possa servir de
abrigo para pretensões tirânicas. Os equih'brios e mútua vigilân-

[34]
cia entre os departamentos legislativo, executivo e judi-
cial, previnem a concentração incontrolada de poder num só
órgão, ou num grupo restrito de homens a quem o povo,
temporariamente, delega funções de representação pública.
A própria divisão do braço legislativo em duas Câmaras
contribui para tornar mais difícil qualquer usurpação de poder
a partir de uma interpretação abusiva do texto constitu-
cional. Por fim, a terceira ordem de razões, funcionando como
garantia para dissipar os receios dos inimigos do novo pro-
jecto de Constituição, reside numa esfera antropológica e
psicológica profunda. Com efeito, a melhor defesa contra os
riscos de usurpação por parte da esfera federal habita no que
poderíamos designar como o suporte psicológico do princípio
político da subsidiariedade. Dito de outro modo: é próprio
da condição humana dedicar um maior grau de interesse e
afecto por tudo aquilo que se encontra no seu horizonte de
proximidade. Esta proposição tanto vale para a economia
das relações interpessoais como para a construção de uma
hierarquia de lealdades no que concerne às instituições polí-
ticas.
Publius chama a atenção para o facto de que qualquer
desvio anticonstitucional no modo de conduta de titulares de
cargos federais, mesmo que conseguisse uma quase impossível
coligação conspirativa entre os seus diversos órgãos, teria ainda
de enfrentar o último e mais decisivo obstáculo: a resistência
popular, que, em caso de conflito, faria pesar no prato da
balança o seu maior conhecimento e a sua preferência pelos
governos estaduais, conduzindo, dessa forma, mais tarde ou
mais cedo, ao restabelecimento da ordem constitucional, com
o consequente restabelecimento das competências estaduais
que tivessem sido, eventualmente, lesadas (Ensaio n.0 46).
A grande alteração no conceito de federalismo patente
na nova proposta de Constituição residia, contudo, na sua
ligação a uma profunda alteração na concepção de soberania
popular. Ao contrário dos modelos confederativos que tinham

[35]
donúnado o panorama histórico até então, o novo federalismo
propugnado por Publius não tinha o seu centro de gravidade
numa simples associação de unidades políticas anteriormente
existentes. O novo federalismo não consistia simplesmente,
à maneira de Montesquieu, por exemplo, numa união de
Estados pequenos para multiplicarem a sua força no domínio
da segurança externa contra ameaças comuns . Hamilton
salienta esse aspecto crucial. Nem a nova Constituição é um
tratado internacional, nem a acção do governo da União tem
como objecto de incidência os governos estaduais (Ensaios
n. 05 33 e 15). O centro de gravidade do federalismo consiste
na radicalização do conceito de soberania popular. O elemento
comum na diversidade de sistemas de governação - que vão
da esfera local à federal passando pela estadual - é a presença
unificadora dos cidadãos, que são, em primeira e última instân-
cia, a base de todo o complexo sistema. Cada cidadão é, ao
mesmo tempo, membro da sua comunidade política local,
eleitor e potencial candidato às magistraturas estaduais, eleitor
e potencial candidato às magistraturas federais. O sistema de
governação federal não resulta de uma articulação entre gover-
nos estaduais, através dos seus comissários, como era o caso
dos EUA regidos pelos AACC, ele é o resultado, pelo contrá-
rio, de um processo decisório que convoca os mesmos indiví-
duos na sua capacidade de dupla cidadania. O governo federal
exerce os seus poderes, definidos e limitados pela Constituição,
directamente sobre os cidadãos, sem precisar da mediação dos
Estados, porque são os cidadãos a fonte de onde deriva todo
o exercício legítimo do poder (Ensaio n. 0 39) .

4) A ideia de Constituição com o lógica política comum


no quadro de uma sociedade plural.

Em 1822, Auguste Comte queixava-se do facto de em


menos de três décadas a França ter produzido dez diferentes

[36]
constituições 14 . Tal situação constituía a simples consequência
prática da tese da soberania ilimitada do poder legislativo
defendida, por exemplo, por Rousseau. Se a vontade geral
não encontrava nada, dentro ou fora de si própria, que a limi-
tasse, isso significava que a mudança do arbítrio, ao sabor de
maiorias conj unturais, poderia traduzir-se na elaboração
prolifera de novos textos constitucionais.
Ora, uma das considerações fundamentais de Publius é a
chamada de atenção para a necessidade de encarar a Consti-
tuição como uma lei suprema e fundamental. Não significa
isto que a Constituição deva ser considerada como um
documento inamovível, como uma espécie de tabu legislativo.
Se assim fosse ela não inscreveria no seu próprio texto as
modalidades legítimas da sua alteração, mais ou menos pro-
funda. O que sucede é que, no entendimento de Publius,
uma Constituição não é somente a expressão da liberdade de
uma maioria. Ela deve ser percebida, acima de qualquer outra
consideração, como a expressão de uma limitação que a maioria
impõe a si própria, contra a voragem das paixões e dos impulsos
das maiorias conjunturais. Não deixa de ser curioso que James
Madison recorra à explicitação de uma divergência com o
seu amigo e companheiro de luta, Thomas Jefferson, para
esclarecer esta ideia da Constituição. Com efeito, ao contrário
de Jefferson, que sugeria a revisão regular da Constituição,
Madison salientava, sobretudo, o papel da lei suprema na esta-
bilização da sociedade e na garantia dos direitos, nomeada-
mente, das minorias e dos indivíduos (Ensaios n. os 49 e 50).
Não se afigurará incorrecto sustentar, portar1to, que a filo-
sofia constitucional de Publius se revela extremamente pioneira.
Ela não se limita a afirmar que a hierarquia da Constituição,
enquanto lei fundamental, se deve manifestar nos frutos em

14 Auguste Comte, "Plan des Travaux Scientifiques Nécessaires pour


Réorgani~er la Société" [1822], IA Science Sociale, Paris, Gallimard, 1972,
pp. 62-63.

[37]
matéria de direitos e garantias que a sua estabilidade acarreta.
Publius sustenta, mais de um século antes de Hans Kelsen, a
tese de que a jurisdição constitucional assume características
próprias, devendo, por isso, ser outorgada a um tribunal
específico. Ora, o que é o Supremo Tribunal, previsto como
o topo da magistratura judicial federal, senão o primeiro
tribunal constitucional que a história registalS?
Estabilidade constitucional não é equivalente de imobi-
lismo. O que a Constituição introduz é uma dinâmica de diá-
logo social formalmente regulada. A lei fundamental não
dissipa as contradições e os conflitos entre facções ou inte-
resses diversos, ou mesmo antagónicos. O que a lei suprema
procura garantir é a vitória do debate político pacífico sobre
a expressão agónica e sangrenta dessas tensões e conflitos. Nos
pleitos, que se tornarão típicos, entre os Estados e a União,
ou entre os Estados entre si, a Constituição e o Supremo Tri-
bunal serão, progressivamente, considerados como a instância
máxima para a decisão regulada e pacífica de disputas, que,
na ausência dessas instâncias, dificilmente deixariam de resvalar
para um patamar bélico.
O dinamismo constitucional transforma-se numa tarefa
permanentemente incompletat6. Em primeiro lugar, porque
o texto da Constituição federal estabelece uma dialéctica
permanente com as leis fundamentais estaduais, relativamente
às quais é umas vezes redundante, outras vezes complementar
ou mesmo correctora. Por outro lado, a Constituição federal
pode ser entendida como urna potência, no sentido aristotélico,
pronta para ser actualizada em função dos desafios da realidade
concreta. É a essa luz que deveremos entender, por exemplo,
o direito de intervenção federal na vida interna dos Estados,

IS Francisco Tomás y Valiente, "Constitución", Enciclopedia Ibero-Americana


de Filoscifia-Filosojla Política II. Teoria dei Estado, Madrid, Trotta, 1996, pp. 51-54.
16 Donald S. Lutz, The Origins cf American Constitutionalism, Baton Rouge

and London, Louisiana State University, 1988, pp. 167-170.

[38]
se nestes estiver ameaçada a forma republicana de regime.
Mais uma vez, a Constituição funciona como a garantia legal
suprema contra o risco de supressão de direitos que, inevita-
velmente, acompanharia a substituição do sistema republicano
de representação por qualquer dispositivo despótico de governo
(Ensaio n. 0 43). No mesmo sentido vai o crónico debate na
vida política norte-americana em torno da "cláusula sobre as
leis necessárias e adequadas" (necessary and proper clause) , a
também chamada "cláusula elástica". Como refere Madison,
no Ensaio n. 0 44, é a própria vitalidade da Constituição, como
instrumento ao serviço do bem comum, no quadro de uma
realidade permanentemente em mudança, que não se com-
padeceria com uma simples e mecânica enumeração exaustiva
de competências federais. A cláusula elástica limita-se a reflectir
a plasticidade da vida e dos desafios por ela colocados.
O essencial, todavia, na ideia de Constituição defendida
por Publius reside na concepção de política que lhe está
medularmente associada. No Ensaio n. 0 84, Hamilton ao
procurar justificar a ausência de uma Bill of Rights na Cons-
tituição federal toca no ponto crítico. A nova Constituição
não interfere nos pormenores pessoais e privados da vida dos
indivíduos. Ela limita-se a regular os interesses gerais da nação.
Contrariamente às visões religiosas do mundo, que tudo
determinam, da dieta à vida sexual dos indivíduos, a Consti-
tuição federal, que exprime a vontade de diferentes povos
construírem um futuro comum, é o resultado de uma filosofia
política que respeita o facto do pluralismo, nas suas diversas
facetas. Dizia Clausewitz, ao tenta formular a sua tese da
subordinação da esfera militar à esfera política, que a guerra
manifesta uma gramática própria, mas a sua lógica deverá ser
a da racionalidade políticat7. Por analogia, poderemos afirmar
que o constitucionalismo federal respeita as diferentes gra-

17 Carl von Clausewitz, Vom Kriege, Frankfurt am Main, Ullstein, 1980,


p. 675 .

[39]
máticas particulares dos interesses, das culturas, das línguas,
das religiões, mas não pode prescindir da política como sendo
a lógica onde se exprimem as leis máximas do mínimo deno-
minador comum. Essa é a crucial linha de demarcação entre
a convivência pacífica e a anarquia, entre o exercício legítimo
do poder e a violência.
No fundo, quando John Rawls- o pensador norte-ame-
ricano contemporâneo que mais profunda e universalmente
prolonga a tradição de O Federalista - nos procura explicitar
o seu entendimento do que seja uma "razão pública" (public
reason), ele não faz mais do que reactualizar a filosofia de
Publius acerca da essência da política. Na verdade, essa "razão
pública" consiste numa "concepção razoável de justiça que
suporta uma sociedade democrática e constitucional" JS_
O que poderá perturbar a emergência dessa "razão pública"
será o exorbitar do conteúdo de diferentes "doutrinas abrm-
gentes" (comprehensíve doctrines). Essas doutrinas são efectiva-
mente percorridas por uma completude que as torna potencial
e mutuamente antagónicas. Elas exprimem as distintas gra-
máticas de uma sociedade profundamente plural. A função
da política, como lógica comum, é a de traçar a rota dos inte-
resses comuns e dos valores partilhados, fazendo a cooperação
substituir-se à pulsão para o conflito.

§IV.

Tradição e universalidade

O estudo da recepção de O Federalista ao longo dos mais


de dois séculos que nos separam do seu aparecimento escapa,
evidentemente, ao âmbito desta introdução. Julgo conveniente,

IS " reasonable politicai conception ofjustice that supports a constitutional


democratic society", John Rawls, oh. cit., p. 179.

[40]
contudo, referir que um dos aspectos mais recorrentemente
controversos dessa recepção se situa na avaliação das relações
entre o conteúdo doutrinário dessa obra, bem como da Cons-
tituição que ela visava defender, e a tradição anterior das
antigas colónias britânicas dos EUA 19.
A posição virtuosa estará situada algures entre aqueles que
defendem a tese de que a Constituição se encontra como que
encapsulada no fundo doutrinário das derivações políticas das
correntes calvinistas do protestantismo, que encontraram na
América um extraordinário campo para século e meio de
experiências sociais, e aqueles que defendem a tese de que o
federalismo constitucional de 1787 constituiu uma milagrosa
ruptura com o passado e uma invenção genial, fruto do trabalho
inovador de uma aristocracia intelectual de que a história difi-
cilmente poderá apresentar um paralelo.
A questão das relações entre tradição e inovação na génese
do federalismo moderno prende-se, igualmente, com a questão
do alcance das doutrinas nele expostas, o mesmo é dizer, com
o seu maior ou menor grau de universalidade. Os autores de
O Federalista jamais pensaram o federalismo como algo que
se pudesse confinar à realidade dos EUA. Pelo contrário, toda
a geração dos Founding Fathers situou a Revolução Americana
e os acontecimentos que se prolongaram com a estabilização
da ordem constitucional no âmbito de um processo histórico
mais vasto caracterizado pelo progresso dos indicadores de
emancipação social. Os elementos universais da filosofia política
de O Federalista foram e são reconhecidos em muitas outras
regiões do mundo, onde o federalismo, ou, pelos menos,

19 Charles McCoy, "Federalism: the Lost Tradition?", Publius, vol. 31,


n. 0 2 (Spring2001), pp. 1-14: trata-se de uma das abordagens mais interessante-
mente panorâmicas da temática das relações entre tradi ção e inovação na
elaboração da Constituição dos EUA. O próprio Madison insiste várias vezes
na necessidade de perceber as linhas de continuidade, e não apenas de ruptura,
entre os AACC e a proposta para uma nova Constituição (Ensaios n.0 ' 40
e 45).

[41]
modalidades de dinâmica federal, têm ou tiveram lugar.
O que não significa, todavia, que, tal como qualquer outra
obra humana, o legado do federalismo não seja submetido a
periódicos ciclos de erosão e de esquecimento, mesmo nas
latitudes que o viram despontar.
Paradoxalmente, numa altura em que a Europa busca
novos caminhos, sendo hoje, sem dúvida, a área planetária
onde o federalismo vive os seus momentos mais críticos e
criativos, o pensamento de O Federalista, apesar do seu enorme
potencial de inspiração para uma leitura informada e anteci-
pativa dos riscos e potencialidades do processo em curso de
reformulação da geografia política e institucional do Velho
Continente, continua restringido a uma audiência académica
extremamente exígua.
O caso nacional não constitui excepção à regra. É signi-
ficativo que esta seja a primeira edição portuguesa integral,
produzida em Portugal para os leitores portugueses2o. Outras
edições existem efectuadas no Brasil21. Deve salientar-se,
todavia, que a primeira tradução de O Federalista feita por um
português ficou a dever-se à interessante e controversa figura
de José da Gama e Castro (1795-1873), que a publicou em
1840, no decurso do seu exílio no Rio de Janeiro22. A análise
desta tradução mereceria um estudo específico, todavia, o

20 21 dos 85 ensaios integrantes da obra em causa foram traduzidos por


Luísa Coelho, no âmbito de uma dissertação de mestrado apresentada ao
Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa,
em 13 de Dezembro de 2001.
21 No Brasil deve assinalar-se uma edição parcial de O Federalista, com
textos seleccionados por Francisco C. Weffort: Os Pensadores, vol. XXIX, São
Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 91-189. Uma tradução integral, da autoria
de Heitor Almeida Herrera pode encontrar-se em: O Federalista, Brasília,
Editora Universidade de Brasília, 1984.
22 O melhor estudo sobre a obra de José da Gama e Castro, bem como
o contexto da sua tradução de O Federalista encontra-se na obra de Luís Manuel
Reis Torgal, Tradicionalismo e Contra-Revolução. O Pensamento e a Acção de José
da Cama e Castro, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1973.

[42]
simples facto do médico de D. Miguel, que era ao mesmo
tempo um dos doutrinários do absolutismo monárquico, ter
recorrido à obra de três fervorosos republicanos norte-ame-
ricanos para a sua cruzada, junto do público brasileiro, em
favor de um Estado centralizado e de um governo dotado de
autoridade, é algo de muito significativo no que concerne
aos complexos caminhos da recepção de O Federalista.
Para o leitor, o mais importante começa nas páginas que
se seguem. Se o trabalho dos tradutores foi a condição necessá-
ria que tornou esta obra fundamental disponível para o leitor
português, numa altura histórica em que o seu apelo ganha
uma nova vibração, só o interesse empenhado de cada leitor
no aprofundamento do conteúdo deste livro poderá constituir
a condição suficiente para que a profunda sabedoria política
contida nas páginas de O Federalista possa fazer o seu caminho
na cultura política que se exprime na antiga língua de Camões.

Point Chevalier, Auckland,


22 de Dezembro de 2002 a 4 de Janeiro de 2003

VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

[43]
AGRADECIMENTOS

Uma empresa com a dimensão desta edição portuguesa


de O Federalista não poderia deixar de ter recebido o apoio
de pessoas e instituições, sem cujo empenhamento os autores
não a poderiam ter conduzido a bom porto.
O nosso agradecimento estende-se, assim, a Jeff Murray
e Maria João dos Santos Silva, da Embaixada dos EUA em
Lisboa; a Charles Buchanan,Jr. e Rui Machete, da Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento; a Manuel José do
Carmo Ferreira, director do Centro de Filosofia da Universi-
dade de Lisboa; ao saudoso Victor Jabouille, da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa; a Donald S. Lutz, pelo
genero o e sábio aconselhamento; a António Ataz, pelo apoio
na tradução de conceitos jurídicos; a José Adelino Maltez,
que nos chamou a atenção para a primeira tradução de
O Federalista, da autoria de José da Gama e Castro, surgida
no Brasil, em 1840; a Francisco Abreu, pela paciência com
que pesquisou as provas desta obra; ao João Cabeçadas e à
Helena Araújo, pela hospitalidade serena de um acolhimento,
nas distantes terras dos antípodas, onde este trabalho conheceu
a sua forma final. A todos, o nosso público e sentido obrigado.

[45)
NOTA À EDIÇÃO PORTUGUESA

Na presente edição conservaram-se as notas de rodapé


dos autores, que vêm indicadas como Publius, as notas de
rodapé introduzidas por Jacob Cooke, assinaladas comJC.
As notas introduzidas na presente edição portuguesa, da
responsabilidade de Viriato Soromenho-Marques, são assina-
ladas com E. P.

[47]
O FEDERALISTA N.o 1

Introdução Geral

ALEXANDER HAMILTON
27 de Outubro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

DEPOIS de uma inequívoca experiência da ineficácia do


governo federal subsistente, sois chamado a deliberar acerca
de uma nova Constituição para os Estados Unidos da América.
O assunto mostra a sua própria importância, abrangendo nas
suas consequências nada menos do que a existência da UN IÃO,
a segurança e o bem-estar das partes de que é composta, o
destino de um império a muitos títulos o mais interessante
do mundo. Tem sido frequentemente observado que parece
ter estado guardado para o povo deste país, pela sua conduta
e pelo seu exemplo, decidir esta importante questão: se as
sociedades humanas são ou não realmente capazes de esta-
belecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha,
ou se estão para sempre destinadas a depender do acidente e

* Do The lndependent j ournal, 27 de Outubro de 1787. Este artigo foi


publicado em 30 de Outubro simultaneamente no The ew- York Packet e no
The Daily Advertiser. QC) .

[49]
da força no que respeita às suas Constituições políticas. Se
existe alguma verdade na observação, a crise a que chegámos
pode ser apropriadamente olhada como a era em que essa
decisão tem de ser tomada; e uma escolha errada do papel
que devemos desempenhar pode, deste ponto de vista, merecer
ser considerada como o infortúnio geral da humanidade.
Esta ideia acrescentará o incitamento da filantropia ao do
patriotismo, para aumentar a solicitude que todos os homens
ponderados e bons devem sentir nesta ocasião. Será uma
felicidade se a nossa escolha for ditada por uma avaliação judi-
ciosa dos nossos interesses, não embaraçada nem influenciada
por considerações que não estão ligadas ao bem público. Mas
esta é uma coisa mais para ser ardentemente desejada do que
para ser seriamente esperada. O plano apresentado à nossa
deliberação afecta demasiados interesses particulares, inova
em relação a demasiadas instituições locais, para não envolver
na sua discussão uma variedade de coisas estranhas aos seus
méritos, e maneiras de ver, paixões e preconceitos pouco
favoráveis à descoberta da verdade.
Entre os mais formidáveis obstáculos que a nova Constitui-
ção deverá encontrar pode imediatamente distinguir-se o
interesse óbvio de uma certa classe de homens em todos os
Estados para resistir a todas as mudanças que podem correr o
risco de uma diminuição do poder, dos emolumentos, e da
importância dos cargos que ocupam nos sistemas de governação
desses Estados; e a pervertida ambição de uma outra classe de
homens que, ou esperarão engrandecer-se por intermédio
das confusões do seu país, ou se encantarão com perspectivas
de elevação vindas da subdivisão do império em várias con-
federações parciais mais do que da sua união debaixo de um
só governo.
Todavia, não é minha intenção alongar-me em observações
desta natureza. Estou absolutamente consciente que seria
pouco engenhoso reduzir indiscriminadamente a oposição
de um conjunto qualquer de homens (apenas porque as suas

[50]
situações os poderiam sujeitar a suspeitas) a pontos de vista
interessados ou ambiciosos. A lisura obrigar-nos-á a admitir
que mesmo esses homens podem ser movidos por intenções
honestas; e não se pode duvidar de que muita da oposição
que já se manifestou, ou poderá doravante fazê-lo, brotará de
fontes no mínimo isentas de censura, se não mesmo respeitáveis
- os honestos erros de espíritos desencaminhados por invejas
e receios preconcebidos. Na verdade, tão numerosas e pode-
rosas são as causas que servem para dar uma falsa inclinação
ao discernimento, que nós, em muitas ocasiões, vemos homens
avisados e bons tanto do lado errado como do lado certo de
questões de primeira grandeza para a sociedade. Esta circuns-
tância, se devidamente considerada, proporcionará uma lição
de moderação àqueles que estão muitíssimo persuadidos de
terem razão em todas as controvérsias. E uma outra razão para
a cautela, a este respeito, pode ser inferida da reflexão de que
nem sempre temos a certeza de que os que advogam a verdade
são influenciados por princípios mais puros do que os dos
seus antagonistas. Ambição, avareza, animosidade pessoal,
oposição partidária, e muitos outros motivos não mais louváveis
do que estes, estão aptos a operar tanto sobre os que suportam
como sobre os que se opõem ao lado justo de uma questão.
Se nem sequer existissem esses incitamentos à moderação,
nada poderia ser mais mal avisado do que esse espírito into-
lerante que sempre caracterizou os partidos políticos. Porque
na política, como na religião, é igualmente absurdo aspirar a
fazer prosélitos pelo fogo e pela espada. As heresias numa e
na outra raramente podem ser tratadas pela perseguição.
E no entanto, por mais que se possam admitir como justos
esses sentimentos, temos já indicações suficientes de que
acontecerá em relação a isto como aconteceu em casos anterio-
res de grande discussão nacional. Uma torrente de paixões
iradas e malignas será posta à solta. Julgando a partir da conduta
dos partidos opostos, seremos levados a concluir que eles terão
mutuamente a esperança de demonstrar a justeza das suas opi-

[51]
niões, e de aumentar o número dos seus conversos por meio
da sonoridade das suas declamações e da amargura das suas
invectivas. Um esclarecido zelo pela energia e eficiência do
governo será estigmatizado como o fruto de um temperamento
amante de poder despótico e hostil aos princípios de liberdade.
Uma suspeita, escrupulosa em demasia, de perigo para os
direitos do povo, que é habitualmente um defeito da cabeça
mais do que do coração, será apresentada como mero fingi-
mento e artifício, o bolorento isco para a popularidade à custa
do bem público. Será esquecido, por um lado, que o ciúme
é normalmente concomitante do amor, e que o nobre entu-
siasmo da liberdade pode ser inflectido por um espírito de
desconfiança tacanha e mesquinha. Por outro lado, será igual-
mente esq ecido que o vigor da governação é essencial para
a segurança da liberdade; que, na contemplação de um ajuizar
sólido e bem informado, o interesse dos dois nunca pode ser
separado; e que uma ambição perigosa espreita mais frequen-
temente por detrás da máscara enganadora do zelo pelos
direitos do povo do que por detrás da sinistra aparência de
zelo pela firmeza e eficiência do governo. A história nos ensi-
nará que a primeira se revelou uma estrada muito mais segura
para o despotismo do que a segunda, e que entre os homens
que derrubaram as liberdades das repúblicas, a maior parte
começou a sua carreira fazendo uma corte obsequiosa ao
povo: começando como demagogos e terminando como
tiranos.
No decurso das observações precedentes, tive em vista,
meus Concidadãos, pôr-vos em guarda contra todas as tenta-
tivas, venham de onde vierem, para influenciar a vossa decisão
num assunto da máxima importância para o vosso bem-estar,
por meio de quaisquer impressões que não sejam as que podem
resultar da evidência da verdade. Sem dúvida que, ao mesmo
tempo, tereis compreendido a partir do seu escopo geral, que
essas observações procedem de uma fonte não adversa à nova
Constituição. Sim, meus Compatriotas, confesso-vos que,

[52]
depois de lhe ter dado uma consideração atenta, sou claramente
de opinião que é do vosso interesse adoptá-la. Estou conven-
cido de que este é o caminho mais seguro para a vossa liberdade,
a vossa dignidade e a vossa felicidade. Não simulo reservas
que não sinto. Não vos divertirei com uma aparência de deli-
beração quando já decidi. Manifesto-vos francamente as minhas
convicções, e apresentarei livremente diante de vós as razões
em que elas são fundadas. A consciência das boas intenções
desdenha da ambiguidade. Não multiplicarei, todavia, declara-
ções solenes sobre este tópico. Os meus motivos devem
permanecer depositados no meu próprio coração. Os meus
argumentos serão abertos a todos, e podem ser julgados por
todos. Pelo menos serão oferecidos num espírito que não
envergonhará a causa da verdade.
Proponho-me, numa série de artigos, discutir os seguintes
tópicos particulares interessantes: -A utilidade da UNIÃO para
a nossa prosperidade política; -A insuficiência da presente Corifederação
para preservar essa União;- A necessidade de um governo pelo menos
tão enérgico como aquele que é proposto, para atingir este objectivo;
- A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros
prindpios do governo republicano; - A sua analogia com a vossa
própria Constituição estadual; - e, por fim, A segurança adicional
que a sua adopção permitirá para a preservação dessa espécie de
governo, para a liberdade e para a propriedade.
Na progressão desta discussão esforçar-me-ei para dar uma
resposta satisfatória a todas as objecções que forem manifestadas
e que possam parecer ter algum direito à vossa atenção.
Pode talvez pensar-se que é supérfluo oferecer argumentos
para provar a utilidade da UNIÃO, uma questão profundamente
gravada, sem dúvida, nos corações do grande corpo do povo
em todos os Estados, e um ponto que se pode imaginar não
ter adversários. Mas o facto é que já ouvimos segredado nos
círculos privados dos que se opõem à nova Constituição que
os treze Estados têm uma extensão demasiado grande para
qualquer sistema geral, e que temos necessariamente que

[53)
recorrer a Confederações separadas de porções distintas do
todo. l Com toda a probabilidade, esta doutrina será gradual-
mente difundida até ter adeptos suficientes para poder ser
confessada abertamente. Porque nada pode ser mais evidente,
para aqueles que são capazes de adoptar uma visão alargada
do assunto, do que a alternativa entre a adopção da nova
Constituição ou o desmembramento da União. Por conse-
guinte, será útil começar por examinar as vantagens dessa
União, os males certos e os perigos prováveis, a que todos os
Estados ficarão expostos com a sua dissolução. Isto constituirá
por consequência o tema do meu próximo artigo.
PUBLIUS

1 A mesma ideia, seguindo os argumentos até às suas consequências, é


sustentada em várias das mais recentes publicações contra a nova Constituição.
(Publius).

[54]
O FEDERALISTA N." 2

Acerca dos Perigos da Força


e Influência Estrangeiras

JOHNJAY
31 de Outubro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

QUANDO o povo da América medita que é chamado


agora a decidir uma questão, que, nas suas consequências,
deve demonstrar ser a mais importante que alguma vez pediu
a sua atenção, a conveniência de adoptar em relação a ela um
ponto de vista muito abrangente, bem como muito sério, será
evidente.
Nada é mais certo do que a indispensável necessidade de
um Governo, e é igualmente inegável que, qualquer que seja
o momento e a maneira como é instituído, o povo deve ceder-
-lhe alguns dos seus direitos naturais com o fito de o investir
dos poderes indispensáveis. Portanto, é bem merecedor de
consideração saber se contribuirá mais para o interesse do

* Do The lndependent ] ou mal, 31 de Outubro de 1787. Este artigo foi


publicado em 1 de Novembro no The Daily Advertiser e em 2 de Novembro
no The New- York Packet. OC).

[55]
povo da América que ele deva, para todos os fins gerais, ser
uma nação, debaixo de um governo federal, ou que deva
dividir-se em Confederações separadas, e dar aos dirigentes
de cada uma delas o mesmo tipo de poderes que é aconselhado
a depositar nas mãos de um Governo nacional.
Foi até há pouco tempo uma opinião aceite e não contra-
ditada que a prosperidade do povo da América dependia de
continuar firmemente unido, e os desejos, as preces, e os
esforços dos melhores e mais avisados dos nossos cidadãos
foram constantemente dirigidos para esse objectivo. Mas
aparecem agora políticos que insistem que essa opinião é
errada, e que, em vez de procurarmos segurança e felicidade
na união, devíamos buscá-la numa divisão dos Estados em
Confederações ou soberanias distintas. Por mais extraordinária
que esta nova doutrina possa parecer, tem, não obstante, os
seus defensores; e certas pessoas que anteriormente se opunham
fortemente a ela incluem-se presentemente nesse número.
Quaisquer que possam ser os argumentos ou móbiles que
forjaram esta mudança nos sentimentos e declarações desses
senhores, certamente que não seria avisado que o povo como
um todo adoptasse estes novos dogmas políticos sem estar
inteiramente convencido de que eles são fundados na verdade
e numa política sã.
Tive frequentemente o prazer de observar que a América
independente não era composta por territórios separados e
distantes, mas sim um país contínuo, fértil, estendendo-se
com amplidão, que era o quinhão dos nossos filhos ocidentais
da liberdade. A Providência abençoou-o de maneira particular
com uma variedade de solos e produções e banhou-o com
inumeráveis cursos de água, para alegria e comodidade dos
seus habitantes. Uma sucessão de águas navegáveis forma
uma espécie de cadeia à volta das suas fronteiras, como que
a uni-los uns aos outros; enquanto os rios mais nobres do
mundo, correndo a distâncias convenientes, os presenteiam
com estradas largas para uma fácil comunicação de ajudas

[56]
amigáveis e o transporte e a troca mútuos das suas diversas
mercadorias.
Reparei com igual prazer e com a mesma frequência que
a Providência quis dar este país contínuo a um só povo unido
- um povo descendendo dos mesmos antepassados, falando
a mesma língua, professando a mesma religião, devotado aos
mesmos princípios de governo, muito semelhante nas suas
maneiras de ser e seus costumes, e que, pelos seus conselhos,
armas e esforços conjuntos, lutando lado a lado durante toda
uma guerra longa e sangrenta, estabeleceu nobremente a
liberdade e a independência gerais.
Este país e este povo parecem ter sido feitos um para o
outro, e aparece, como se tivesse sido desígnio da Providência,
que uma herança tão característica e conveniente para um
grupo de irmãos, unidos uns aos outros pelos mais fortes laços,
nunca devesse ser dividida numa quantidade de soberanias
insociais, invejosas e desunidas.
Sentimentos similares prevaleceram até agora entre todas
as ordens e grupos de homens entre nós. Para todos os fins
genéricos temos sido uniformemente um só povo, com cada
cidadão individual gozando em toda a parte dos mesmos
direitos, privilégios e protecção nacionais. Como uma só
nação fizemos a paz e a guerra; como uma só nação vencemos
os nossos inimigos comuns; como uma só nação fizemos
alianças, e assinámos tratados, e entrámos em vários acordos
e convenções com Estados estrangeiros.
Um forte sentimento do valor e das bênçãos da União
induziu o povo, num período muito inicial, a instituir um
Governo Federal para os preservar e perpetuar. Formou-o
quase imediatamente após possuir uma existência política;
e não só isso, mas também num momento em que as suas
habitações estavam em chamas, quando muitos dos seus cida-
dãos sangravam, e quando a progressão da hostilidade e desola-
ção deixava pouco espaço para esses exames e reflexões calmos
e maduros que devem preceder sempre a formação de um

[57)
governo sábio e equilibrado para um povo livre. Não é para
admirar que um governo constituído em tempos tão pouco
auspiciosos devesse com a experiência ser considerado gran-
demente deficiente e inadequado para a finalidade a que tinha
como propósito responder.
Este povo inteligente percebeu e lamentou esses defeitos.
Continuando ainda não menos devotado à união do que ena-
morado de liberdade, observou o perigo que ameaçava ime-
diatamente a primeira e mais remotamente a última; e estando
persuadido de que uma ampla segurança para ambas só podia
ser encontrada num Governo nacional mais avisadamente
concebido, ele, como uma só voz, convocou a recente Con-
venção em Filadélfia, para se ocupar desse importante assunto.
Esta Convenção, formada por homens que possuíam a
confiança do povo, e muitos dos quais se tinham distinguido
brilhantemente pelo seu patriotismo, virtude e sageza, em
tempos que puseram à prova os espíritos e corações dos
homens, acometeu a árdua tarefa. Na suave estação da paz,
com os espíritos não ocupados por outros assuntos, passaram
muitos meses em consultas calmas, ininterruptas e diárias; e
por fim, sem terem sido dominados pelo desejo de poder, ou
influenciados por quaisquer paixões excepto o amor pelo seu
país, apresentaram e recomendaram ao povo o plano produzido
pelas suas conjuntas e muito unânimes deliberaçõesl.
Admitam, porque isso é um facto, que este plano é somente
recomendado, não imposto, e, todavia, deixem que se recorde
que não é nem recomendado para uma aprovação cega, nem

1 Os 55 delegados que passaram pela Convenção de Filadélfia, entre 25

de Maio e 17 de Setembro de 1787 eram, de facto, políticos experientes. Para


além de figuras incontestáveis, como George Washington e Benjamin Franklin,
42 dos delegados serviam ou tinham servido no Congresso; 7 tinham sido
governadores dos seus Estados; 6 foram subscritores dos Artigos da Confederação,
em 1781; 8 tinham assinado, nessa mesma sala onde decorreu a Convenção,
a Declaração de Independência em 4 de Julho de 1776. (Edição Portuguesa,
doravante E. P.) .

[58]
para uma reprovação cega; mas para essa consideração ponderada
e desinteressada que a grandeza e importância do assunto
requerem, e que certamente devem receber. Mas isto, que
ele possa ser considerado e examinado desta maneira (como
foi observado no artigo anterior) é mais para ser desejado do
que esperado2. A experiência numa ocasião anterior ensina-
-nos a não sermos demasiado optimistas quanto a essas espe-
ranças. Ainda não está esquecido que as bem fundadas apreen-
sões de perigo iminente induziram o povo da América a
convocar o memorável Congresso de 1774. Esse corpo
recomendou certas medidas aos seus constituintes, e os factos
provaram a sabedoria delas; não obstante está fresco nas nossas
recordações quão cedo a imprensa começou a enxamear de
panfletos e artigos semanais contra essas mesmas medidas .
Não só muitos dos funcionários do Governo, que obedeciam
aos ditames do interesse pessoal, mas também outros, por
causa de uma errada avaliação das consequências, ou devido
à influência indevida de laços anteriores, ou aqueles cuja
ambição visava objectos que não correspondiam ao bem
público, foram infatigáveis nos seus esforços para persuadir o
povo a rejeitar o conselho desse patriótico Congresso. Muitos,
na verdade, foram enganados e iludidos, mas a grande maioria
das pessoas raciocinou e decidiu judiciosamente; e são felizes
ao reflectir que o fizeram.
Eles consideraram que o Congresso era composto por
muitos homens sábios e experientes; que, tendo sido convo-
cados em diferentes partes do país, eles traziam consigo e
comunicavam uns aos outros uma grande variedade de infor-
mação útil; que, no decurso do tempo que passaram juntos
a examinar e discutir os verdadeiros interesses do seu país,

2 Jay refere-se ao facto de a aprovação da Constituição de Filadélfia depen-


der do resultado de Convenções estaduais de ratificação. Na altura da publicação
deste artigo nenhuma delas tinha ainda ocorrido. Foi Delaware o primeiro
Estado a ratificar a Constituição, em 7 de Dezembro de 1787. (E. P.).

[59]
deviam ter adquirido um conhecimento muito exacto do
assunto; que estavam individualmente interessados na liberdade
e prosperidade públicas e, consequentemente, não era tanto
sua inclinação mas seu dever recomendar apenas medidas tais
que, depois da mais madura deliberação, eles realmente
consideravam prudentes e aconselháveis. Estas e outras consi-
derações semelhantes induziram então as pessoas a confiarem
grandemente no discernimento e integridade do Congresso
e aceitaram o seu conselho, a despeito das várias artes e esforços
usados para os dissuadir disso. Mas se o povo como um todo
tinha razão para confiar nos homens do Congresso, poucos
dos quais tinham sido inteiramente postos à prova ou eram
geralmente conhecidos, ainda maior razão tem agora para
respeitar o discernimento e conselho da Convenção, porque
é bem sabido que alguns dos membros mais distintos daquele
Congresso, que desde essa altura têm sido experimentados e
justamente aprovados em patriotismo e capacidades, e que
amadureceram adquirindo informação política, foram também
membros desta Convenção, e levaram para ela o seu conhe-
cimento e a sua experiência acumulados.
É digno de nota que não só o primeiro, mas todos os
Congressos que lhe sucederam, bem como a recente Conven-
ção, se juntaram invariavelmente ao povo no pensamento que
a prosperidade da América depende da sua União. Preservá-
-la e perpetuá-la era a grande finalidade do povo ao convocar
essa Convenção, e é também a grande finalidade do plano
que a Convenção o aconselhou a adoptar. Com que proprie-
dade, portanto, ou para que bons fins, são feitas por alguns
homens, neste momento particular, tentativas para depreciar
a importância da União? Ou porque é que é sugerido que
duas ou três Confederações seriam melhores do que uma?
Estou persuadido no meu próprio espírito de que as pessoas
sempre pensaram correctamente acerca desta questão, e que
a sua afeição universal e uniforme à causa da União assenta
em grandes e pesadas razões, que me esforçarei por desenvolver

[60]
e explicar em alguns dos artigos que se seguirão. Aqueles que
promovem a ideia de substituir o plano da Convenção por
um certo número de Confederações parecem antever clara-
mente que a rejeição desse plano viria a pôr a continuação
da União no maior dos riscos. Isso aconteceria certamente,
e desejo sinceramente que possa ser tão claramente antevisto
por todos os bons cidadãos que, no caso de chegarmos à disso-
lução da União, a América tenha razão para exclamar, nas
palavras do poeta: "ADEUS, UM LONGO ADEUS A TODA A MINHA
GRANDEZA.''
PUBLIUS.

(61]
O FEDERALISTA N.• 3

Acerca dos Perigos da Força


e da Influência Estrangeiras (continuação)

JOHNJAY
31 de Outubro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Não é uma observação nova que o povo de qualquer pais


(se, como o americano, é inteligente e bem informado) rara-
mente adopta e persevera firmemente durante muitos anos
numa opinião errada a respeito dos seus interesses. Essa con-
sideração tende naturalmente a criar grande respeito pela alta
opinião que o povo da América albergou desde há tanto
tempo e tão uniformemente acerca da importância de conti-
nuar firmemente unido debaixo de um governo federal,
investido de poderes suficientes para todos os fins gerais e
naciOnais.

* Do The Independent journal, 3 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 5 de Novembro no The Daily Advertiser e em 6 de Novembro
no The New- York Packet. QC) .

(63]
Quanto mais atentamente considero e investigo as razões
que parecem ter dado origem a essa opinião, tanto mais fico
convencido de que elas são convincentes e conclusivas.
Entre as muitas coisas às quais um povo sábio e livre pensa
que é necessário dedicar a sua atenção, a de providenciar a
sua segurança parece ser a primeira. A segurança do povo tem
indubitavelmente relação com uma grande variedade de
circunstâncias e considerações e, consequentemente, permite
uma grande latitude àqueles que querem defini-la com precisão
e de uma forma abrangente.
De momento pretendo apenas considerá-la no que toca
à segurança para a preservação da paz e da tranquilidade, assim
como contra os perigos de armas e influência estrangeiras, bem
como os perigos de tipo semelhante resultantes de causas
domésticas. Como os primeiros de entre os mencionados têm
precedência na ordem, é correcto que devam ser discutidos
primeiro. Procedamos, pois, ao exame se o povo está ou não
certo na sua opinião de que uma União cordial, sob um
Governo nacional eficiente, lhe proporciona a melhor segu-
rança que pode ser concebida contra hostilidades provenientes
do estrangeiro.
O número de guerras que se travaram ou que se travarão
no mundo será sempre proporcional ao número e peso das
causas, quer reais quer alegadas, que as provocam ou as encorajam.
Se esta observação estiver correcta, passa a ser útil investigar
se é provável que tantas causas justas de guerra sejam criadas
pela América unida como pela América desunida; porque, se
se vier a revelar que é mais provável que a América Unida
crie menos, então seguir-se-á que, a este respeito, a União
tende mais para preservar o povo num estado de paz com as
outras nações.
As causas justas da guerra, na sua maior parte, originam-
-se quer na violação dos tratados quer na violência directa.
A América já assinou tratados com nada menos de seis nações
estrangeiras, e todas elas, com excepção da Prússia, são nações

[64]
marítimas, e portanto capazes de nos molestar e fazer dano.
Tem também um comércio extenso com Portugal, Espanha,
e Grã-Bretanha e, com respeito às duas últimas, tem ainda
que levar em conta a circunstância da vizinhança 1.
É da maior importância para a paz da América que ela
observe as leis das nações em relação a todas estas potências,
e apresenta-se-me como evidente que isto será mais perfeita
e pontualmente feito por um Governo nacional do que poderia
ser feito quer por treze Estados separados quer por três ou
quatro Confederações distintas.
Porque, uma vez que esteja estabelecido um Governo
nacional eficiente, os melhores homens do país não só con-
sentirão em servir no exército, mas serão geralmente nomeados
para o administrar; porque, embora a cidade ou o condado,
ou outra influência contraída, possam colocar homens nas
assembleias, ou Senados, ou tribunais, ou departamentos
executivos, dos Estados, será todavia necessária uma reputação
mais geral e extensa de talentos e outras qualificações para
recomendar homens para cargos no Governo nacional, - em
especial porque este terá o mais alargado campo de escolha,
e nunca experimentará essa falta de pessoas adequadas que
não é invulgar em alguns dos Estados. Por esse motivo, resultará
que a administração, os conselhos políticos, e as decisões
judiciais do governo nacional serão mais sábias, sistemáticas
e judiciosas do que as dos governos dos Estados individuais,
e, consequentemente, mais satisfatórias a respeito das outras
nações, bem como mais seguras no que nos diz respeito.
Porque, sob um único Governo nacional, os tratados e
artigos de tratados, bem como as leis das nações, serão sempre
interpretados num único sentido e executados da mesma

1 Portugal reconheceu formalmente a independência dos EUA em 15


de Fevereiro de 1783, mais de seis meses antes da assinatura do Tratado de
Paris (3 de Setembro de 1783), pelo qual a Grã-Bretanha reconheceu a
independência das suas antigas colónias norte-americanas. (E. P.) .

[65]
maneira, - ao passo que as decisões sobre os mesmos pontos
e questões, em treze Estados, ou em três ou quatro Confede-
rações, nem sempre concordarão ou serão consistentes; e isso,
tanto por causa da variedade de tribunais independentes e de
juízes nomeados por governos diferentes e independentes,
como em resultado das leis e dos interesses locais diferentes
que podem afectá-las e influenciá-las. A sabedoria da Conven-
ção, ao entregar essas questões à jurisdição e ao julgamento
dos tribunais nomeados por um Governo nacional único e
responsáveis unicamente perante ele, não pode ser elogiada
em demasia.
Porque a perspectiva da perda ou da vantagem presente
pode com frequência tentar o partido governante em um ou
dois Estados para se desviar da boa fé e da justiça; mas não
alcançando essas tentações os outros Estados, e tendo por
consequência pouca ou nenhuma influência no Governo
nacional, a tentação será infrutífera, e a boa fé e a justiça serão
preservadas. O caso do tratado de paz com a Grã-Bretanha
acrescenta um grande peso a este racioc:ínio 2 •
Porque, mesmo que um partido governante num Estado
estivesse disposto a resistir a essas tentações, ainda assim, como
essas tentações podem resultar, e habitualmente resultam, de
circunstâncias particulares desse Estado, e podem afectar um
grande número de habitantes, o partido governante pode não
ser sempre capaz, querendo-o, de impedir a injustiça meditada,
ou de punir os agressores. Mas o Governo nacional, não sendo
afectado por essas circunstâncias locais, nem será induzido a
ser ele próprio a cometer a injustiça, nem lhe faltará poder
para impedir ou punir a sua perpetração por outros.
Até aqui, portanto, embora as violações dos tratados, quer
planeadas quer acidentais, e a lei das nações proporcionem
causas justas de guerra, elas constituem menos motivos de

2 Jay refere-se a violações, por parte de alguns Estados, do tratado de paz


concluído entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. QC).

[66]
apreensão sob um Governo geral do que sob vários governos
menores, e neste aspecto o primeiro é o que mais favorece a
segurança do povo.
Quanto às causas justas de guerra que provêm de violência
directa e ilegal, apresenta-se-me igualmente claro que um
único bom Governo nacional proporciona muitíssimo mais
segurança contra perigos dessa espécie do que a segurança
que pode ser derivada de qualquer outro quadrante.
Porque essas violências são mais frequentemente causadas
pelas paixões e interesses de uma parte do que pelos do todo;
de um ou dois Estados mais do que da União. Nem uma só
das guerras contra os Índios foi até agora ocasionada por agres-
sões do presente Governo Federal, fraco como é; mas há
vários exemplos de hostilidades dos Índios que foram pro-
vocadas pela conduta incorrecta dos Estados individuais, que,
ou incapazes de, ou relutantes em, refrear ou punir delitos,
deram ocasião ao morticínio de muitos habitantes inocentes.
A vizinhança de territórios espanhóis ou britânicos ,
fazendo fronteira com alguns Estados e não com outros,
confina naturalmente as causas de querela mais imediatamente
aos Estados fronteiriços. Os Estados fronteiriços, mais do que
todos, serão aqueles que, sob o impulso da irritação súbita, e
um vivo sentimento de manifesto interesse ou de ofensa, serão
os mais prováveis, por meio de violência directa, a excitar a
guerra com essas nações; e nada pode obviar tão efectivamente
esse perigo como um Governo nacional, cuja sabedoria e
prudência não serão diminuídas pelas paixões que animam as
partes imediatamente interessadas.
Mas não só serão criadas menos causas justas de guerra
pelo Governo nacional, também estará mais em poder deste
harmonizá-las e resolvê-las amigavelmente. Este será mais
comedido e calmo, e nesse aspecto, bem como noutros, terá
mais capacidade de agir avisadamente do que o Estado
ofendido. O orgulho dos Estados, tal como o dos homens,
predispõe-os naturalmente para desculpar todas as suas acções,

(67]
e opõe-se a que reconheçam, corrijam, ou reparem os seus
erros e ofensas. O governo nacional, em casos como esses,
não será afectado por esse orgulho, mas procederá com mode-
ração e lisura à consideração e decisão dos meios adequados
para se desenredar das dificuldades que ameaçam o país.
Além disso, é bem sabido que reconhecimentos, explica-
ções e compensações, que são frequentemente aceites como
satisfatórios quando provêm de uma nação forte e unida,
seriam rejeitados como insatisfatórios se oferecidos por um
Estado ou Confederação de pouca importância e poder.
No ano de 1685, o Estado de Génova, tendo ofendido
Luís XIV, esforçou-se por apaziguá-lo. Solicitou que pudessem
mandar o seu Doge, ou magistrado principal, acompanhado
por quatro dos seus senadores, a França, para solicitar o perdão
do monarca e tomar conhecimento das suas condições. Foram
obrigados a submeter-se a isso a bem da paz. Teria ele em
alguma ocasião exigido ou recebido semelhante humilhação
da Espanha, ou da Inglaterra, ou de qualquer outra nação
poderosa?
PUBLIUS.

[68]
O FEDERALISTA N.• 4

Acerca dos Perigos da Força


e da Influência Estrangeiras (continuação)

JOHNJAY
7 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque

O meu último artigo apresentava várias razões pelas quais


a segurança do povo seria mais bem garantida pela união
contra o perigo a que ele pode ser exposto por causas justas
de guerra dadas a outras nações; e essas razões mostram que
tais causas não só seriam dadas mais raramente, mas seriam
também mais facilmente aplacadas por um governo nacional
do que pelos governos dos Estados ou pelas pequenas Confe-
derações propostas.
Mas a segurança do povo da América contra os perigos
da força estrangeira depende não somente de ele se abster de
dar causas justas de guerra a outras nações, mas também de
se colocar e se manter numa situação tal que não convide

* Do Th e lndependent ] ournal, 7 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 8 de Novembro no The D aily Advertiser e em 9 de Novembro
no The New-York Packet. QC).

[69]
hostilidade ou insulto, porque não é preciso observar que
existem causas de guerra tanto alegadas como justas.
É demasiado verdadeiro, por mais vergonhoso que seja
para a natureza humana, que as nações em geral farão a guerra
sempre que tenham uma expectativa de conseguir alguma
coisa por meio dela; e não só isso mas também que os monarcas
absolutos entrarão frequentemente em guerra quando as suas
nações nada irão conseguir com ela, mas para fins e objectivos
meramente pessoais, tais como sede de glória militar, vingança
de afrontas pessoais, ambição, ou acordos privados para
engrandecer ou sustentar as suas famílias particulares ou os
seus partidários. Estes e uma variedade de outros motivos,
que afectam unicamente o espírito do soberano, levam-no
frequentemente a entrar em guerras não santificadas pela jus-
tiça ou pela voz e interesses do seu povo. Mas, independente-
mente destas instigações à guerra, que são mais prevalecentes
nas monarquias absolutas, mas que bem merecem a nossa
atenção, existem outras que afectam as nações tão frequente-
mente como os reis; e ao examinar algumas delas verifica-se
que se originam na nossa situação e circunstâncias relativas.
Da França e da Grã-Bretanha somos rivais nas pescas, e
podemos abastecer os seus mercados a preços mais baratos do
que elas são capazes, a despeito de quaisquer esforços para o
impedir por meio de subvenções das suas próprias pescas ou
de direitos sobre o peixe estrangeiro.
Delas e da maior parte das nações europeias somos rivais
na navegação e na condução do comércio; e estaremos a
enganar-nos se supusermos que alguma delas se alegrará em
vê-los florescer entre nós; porque, como o nosso volume de
comércio não pode aumentar sem que o deles diminua em
certo grau, é mais do seu interesse, e será mais sua política,
restringi-los do que promovê-los.
No comércio com a China e a Índia, interferimos com
mais de uma nação, na medida em que isso nos possibilita de
tomar parte em vantagens que elas tinham de certa maneira

(70)
monopolizado, e em abastecermo-nos das mercadorias que
costumávamos comprar-lhes.
A extensão do nosso próprio comércio nos nossos próprios
navios não pode dar prazer a nenhuma nação que possui terri-
tórios neste ou perto deste continente, porque o baixo preço
e a excelência dos nossos produtos, adicionados à circunstância
da vizinhança, e o espírito empreendedor e competência dos
nossos comerciantes e navegadores, nos darão um maior
quinhão nas vantagens que esses territórios permitem, do que
o que é compatível com os desejos ou a política dos seus
soberanos respectivos.
De um lado, a Espanha pensa que é conveniente fechar-
-nos o Mississipi, e do outro, a Grã-Bretanha exclui-nos do
São Lourenço; nenhuma delas permitirá que outras águas que
estão entre elas e nós se convertam nos meios de trocas e
tráfego mútuos.
Destas e de semelhantes considerações, que podem, se
consistentes com a prudência, ser mais amplificadas e deta-
lhadas, é fãcil ver que invejas e inquietações podem gradual-
mente esgueirar-se para dentro dos espíritos e gabinetes de
outras nações, e que não devemos esperar que elas venham a
considerar o nosso progresso em união, em poder e em
importância por terra e por mar, com um olhar de indiferença
e compostura.
O povo da América está ciente de que os incitamentos à
guerra podem resultar destas circunstâncias, bem como de
outras não tão óbvias no presente, e que sempre que tais incita-
mentos possam encontrar um tempo e uma oportunidade
adequados para operar, não faltarão pretensões para disfarçá-
-los e justificá-los. Sabiamente, portanto, considera a União
e um bom Governo nacional como necessários para os pôr
e manter numa situação tal que, em vez de convidar à guerra,
tenda para reprimi-la e desencorajá-la. Essa situação consiste
no melhor estado de defesa possível, e depende necessariamente
do governo, da força armada, e dos recursos do país.

[71]
Como a segurança do todo é do interesse do todo, e não
pode ser providenciada sem Governo, seja um, sejam muitos,
examinemos se um bom Governo único não é, relativamente
à matéria em questão, mais competente do que qualquer outro
número possível.
Um Governo único pode congregar e servir-se dos talentos
e experiência dos homens mais capazes, seja qual for a parte
da União em que eles possam ser encontrados. Pode agir com
base em princípios de política uniformes. Pode harmonizar,
assimilar, e proteger as diversas partes e membros, e estender
o beneficio da sua previdência e precauções a cada um. Na
preparação de tratados, olhará o interesse do todo, e os interesses
particulares das partes como ligados ao do todo. Pode aplicar
os recursos e a força do todo à defesa de qualquer parte singular,
e isso mais facil e expeditamente do que os governos de Estados
ou as Confederações separadas são capazes de fazer, por falta
de concertação e unidade de sistema. Pode colocar a milícia
debaixo de um único plano disciplinar, e, ao colocar os seus
oficiais numa linha apropriada de subordinação ao Magistrado
Principal, consolidá-los-á, por assim dizer, num único corpo
armado, e desta forma os tornará mais eficientes do que se
estivessem divididos em treze ou em três ou quatro companhias
distintas independentes.
O que seria a milícia da Grã-Bretanha se a milícia inglesa
obedecesse ao Governo de Inglaterra, se a milícia escocesa
obedecesse ao Governo da Escócia e se a milícia galesa obe-
decesse ao Governo de Gales? Suponha-se uma invasão; seriam
esses três governos (se conseguissem estar de acordo) capazes,
com todas as suas forças respectivas, de operar contra o inimigo
com tanta eficácia como o seria o Governo único da Grã-
-Bretanha?
Ouvimos muita coisa da marinha da Grã-Bretanha, e pode
chegar o momento, se formos atilados, em que a marinha da
América possa atrair a atenção. Mas se um Governo nacional
único não tivesse regulamentado a navegação da Grã-Bretanha

[72]
de maneira a convertê-la num viveiro de homens do mar
- se um Governo nacional único não tivesse feito apelo a
todos os meios e materiais nacionais para formar uma marinha,
as suas proezas e o seu clangor nunca teriam sido glorificados.
Suponha-se que a Inglaterra tenha a sua navegação e marinha,
que a Escócia tenha a sua navegação e marinha, que Gales
tenha a sua navegação e marinha, que a Irlanda tenha a sua
navegação e marinha. Suponha-se que estas quatro das partes
constituintes do império britânico estejam sob a alçada de
quatro Governos independentes, e é facil perceber quão cedo
cada uma delas degeneraria em comparativa insignificância.
Apliquem-se estes factos ao nosso próprio caso. Deixe-
-se a América dividida em treze ou, se preferirem, em três
ou quatro Governos independentes. Que exércitos é que eles
podem convocar e pagar, que marinha poderiam alguma vez
esperar possuir? Se um fosse atacado, os outros acorreriam
em seu socorro e despenderiam o seu sangue e dinheiro em
defesa dele? Não haveria o perigo de serem persuadidos à
neutralidade por meio das suas promessas capciosas, ou sedu-
zidos por um gosto demasiado grande pela paz para declinarem
o risco da sua tranquilidade e segurança presentes para salvarem
os vizinhos, dos quais talvez tivessem sentido inveja, e que
ficam satisfeitos por verem diminuída a importância deles?
Apesar de não ser sensata, tal conduta seria, anda assim, natural.
A história dos Estados da Grécia, e de outros países, abunda
de exemplos destes, e não é improvável que o que tão frequen-
temente aconteceu viesse, em circunstâncias semelhantes, a
acontecer novamente.
Mas admitam que podiam ter vontade de ajudar o Estado
ou a Confederação invadidos. Como, e quando, e em que
proporção deveriam ser concedidas as ajudas em homens e
em dinheiro? Quem deveria comandar os exércitos aliados,
e de quem deveriam eles receber as suas ordens? Quem deveria
estabelecer os artigos de paz, e no caso de disputas que árbitro
deveria decidir entre eles e compelir à aquiescência? Várias

(73]
dificuldades e inconvenientes seriam inseparáveis de uma
situação como esta; ao passo que um Governo único, zelando
pelos interesses gerais e comuns e combinando e dirigindo
as forças e recursos do todo, estaria liberto de todos estes
embaraços e contribuiria muito mais para a segurança do
povo.
Mas qualquer que possa ser a nossa situação, quer fir-
memente unidos sob a alçada de um Governo nacional único,
quer divididos num certo número de confederações, o que
é certo é que as nações estrangeiras a conheceriam, veriam
exactamente como é e agiriam para connosco em conformi-
dade com ela. Se virem que o nosso governo nacional é
eficiente e bem administrado, o nosso comércio prudente-
mente regulamentado, a nossa milícia adequadamente organi-
zada e disciplinada, os nossos recursos e finanças circunspec-
tamente geridos, o nosso crédito restabelecido, o nosso povo
livre, contente e unido, estarão muito mais dispostos a cultivar
a nossa amizade do que a provocar o nosso ressentimento. Se,
por outro lado, nos acharem desprovidos de um Governo
eficaz (cada Estado agindo certo ou errado, consoante possa
parecer conveniente aos seus governantes), ou divididos em
três ou quatro repúblicas ou confederações independentes e
provavelmente discordantes, inclinando-se uma para a Grã-
-Bretanha, outra para a França, e uma terceira para a Espanha,
e talvez jogadas umas contra as outras pelas três, que pobre e
lamentável figura a América fará a seus olhos! Como ficaria
à mercê não somente do seu desdém mas do seu ultraje, e
quão depressa uma experiência conseguida por alto preço
proclamaria que, quando um povo ou uma família assim se
dividem, é inevitável que o façam contra si mesmos.
PUBLIUS.

(74]
O FEDERALISTA N. 0 5

Acerca dos Perigos da Força


e da Influência Estrangeiras (continuação)

JOHNJAY
10 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A RAINHA ANNE, na sua carta ao Parlamento Escocês de


1 de Julho de 1706, faz algumas observações sobre a impor-
tância da União, então em formação, entre a Inglaterra e a
Escócia, que merecem a nossa atenção. Presentearei o público
com um ou dois extractos dela: "Uma União integral e perfeita
será a fundação sólida de uma paz duradoura: defenderá a
vossa religião, liberdade, e propriedade; removerá as animosi-
dades entre vós e as invejas e divergências entre os nossos dois
reinos. Deve aumentar a vossa força, riqueza, e comércio; e
por meio desta União, toda a ilha, ficando unida na amizade
e livre de todas as apreensões de diferentes interesses, ficará
capaz de resistir a todos os seus inimigos." "R ecomendamo-vos

* Do The Independent]ournal, 10 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 12 de Novembro no The Daily Advertisere em 13 de Novembro
no The 1\'ew-York Packet. QC) .

[75]
com a máxima seriedade calma e unanimidade neste assunto
grande e ponderoso, para que a União possa ser levada a uma
conclusão feliz, dado que é o único meio EFICAZ para garan-
tir a nossa felicidade presente e futura, e frustrar os desígnios
dos nossos e vossos inimigos, que indubitavelmente, nesta
ocasião, usarão os maiores dos seus eiforços para impedir ou adiar
esta união."
Foi observado no artigo precedente que a fraqueza e as
divisões domésticas encorajarão os perigos do exterior; e que
nada tenderá mais para nos proteger deles do que a união, a
força, e o bom Governo entre nós. Este assunto é copioso e
não pode ser exaurido facilmente.
A história da Grã-Bretanha é uma daquelas com que
estamos em geral mais familiarizados, e dá-nos muitas lições
proveitosas. Podemos aproveitar da experiência deles sem
pagar o preço que ela lhes custou. Embora pareça óbvio para
o senso comum que o povo de uma ilha como essa devesse
ser uma única nação, descobrimos não obstante que ele esteve
durante séculos dividido em três nações, e que as três estiveram
quase constantemente enredadas em querelas e guerras umas
com as outras. Não obstante o seu genuíno interesse com
respeito às nações continentais ser efectivamente o mesmo,
apesar disso, pelas artes e políticas e práticas dessas nações, as
suas invejas mútuas foram mantidas em perpétua excitação,
e durante uma longa série de anos foram muito mais inconve-
nientes e conflituosas do que foram úteis e se auxiliaram umas
às outras.
Será que se o povo da América se dividir em três ou quatro
nações não acontecerá a mesma coisa? Não se levantarão inve-
jas semelhantes, que serão de igual modo acalentadas? Em
lugar de estarem "unidos em afecto" e livres de toda a apreen-
são com "interesses" diferentes, a inveja e o ressentimento
depressa extinguirão a confiança e o afecto, e os interesses
parciais de cada confederação, em lugar dos interesses gerais
da América, serão os únicos objectos da sua política e das suas

[76]
actividades. Por este motivo, tal como a maior parte das outras
nações com fronteiras comuns, elas estarão sempre envolvidas
em disputas e guerras, ou viverão no receio constante destas.
Os mais confiantes de entre os que advogam três ou quatro
confederações não podem razoavelmente supor que elas
permaneceriam por muito tempo iguais em termos de força,
mesmo se fosse possível começar por criá-las dessa maneira.
Mas, admitindo que isso é praticável, qual é todavia o artifício
humano que pode garantir a continuação de uma tal igualdade?
Independentemente dessas circunstâncias locais que tendem
a gerar e a aumentar a força de urna parte e a impedir o seu
progresso numa outra, temos de falar sobre os efeitos dessa
política superior e boa gestão que provavelmente distinguiria
o governo de uma acima dos do resto, e por meio das quais
a sua relativa igualdade em força e consideração seria destruída,
porque não se pode presumir que o mesmo grau de sã política,
prudência e previsão seria uniformemente observado por cada
uma dessas confederações durante uma longa série de anos.
Sempre que, e quaisquer que fossem as causas, pudesse
acontecer, e isso aconteceria certamente, que qualquer dessas
nações ou confederações se elevasse na escala da importância
política acima do nível das suas vizinhas, nesse momento as
vizinhas contemplá-la-iam com inveja e receio. Estas duas
paixõe levá-las-iam a encorajar, se não a promover, o que
quer que fosse que prometesse diminuir a importância dela;
e também as afastariam de medidas calculadas para aumentar
ou mesmo garantir a sua prosperidade. Não seria preciso
muito tempo para lhe dar a capacidade de discernir estas dis-
posições inarnistosas. Bem cedo começaria, não somente a
perder a confiança nos seus vizinhos, mas também a sentir
para com eles uma disposição igualmente desfavorável.
A suspeição cria naturalmente suspeição, e nada altera mais
rapidamente a boa vontade e a conduta amigável do que os
odiosos ressentimentos e as imputações pouco sinceras, quer
expressas quer implícitas.

[77)
O Norte é geralmente a região da força, e muitas circuns-
tâncias locais tornam provável que as mais ao Norte das
confederações propostas seriam, num período não muito
distante, inquestionavelmente mais formidáveis do que qual-
quer das outras. Assim que isto se tornasse evidente a colmeia
do norte excitaria nas partes da América mais a sul as mesmas
ideias e sensibilidades que excitou previamente nas partes do
sul da Europa. Nem parece que seja uma conjectura temerária
que os seus jovens enxames se sintam frequentemente tentados
a recolher o mel nos campos mais florescentes e no ar mais
suave dos seus faustosos e mais delicados vizinhos!.
Aqueles que estudarem bem a história de semelhantes
divisões e confederações encontrarão razões abundantes para
recear que estas de modo nenhum se sentiriam vizinhas como
se sentem adjacentes; que não amariam nem confiariam umas
nas outras, mas pelo contrário seriam vítimas da discórdia,
ressentimento, e danos mútuos; numa palavra, que nos colo-
cariam exactamente na situação em que algumas nações indu-
bitavelmente desejam ver-nos, a saber,Jormidáveis apenas umas
para as outras.
Destas considerações torna-se visível que estão imensa-
mente enganados esses senhores que supõem que se podem
formar alianças ofensivas e defensivas entre essas confederações,
e que elas produziriam essa combinação de união de vontades
de forças armadas e recursos que seriam necessárias para as
pôr e manter num estado formidável de defesa contra os inimi-
gos estrangeiros.
Quando é que os Estados, em que estavam anteriormente
divididas a Grã-Bretanha e a Espanha, se combinaram numa
tal aliança, ou uniram as suas forças contra um inimigo estran-
1 A metáfora "colmeia do Norte" (Northem Hive) constitui um bom
exemplo da influência da importante fabula moral e política publicada por
Bernard de Mandeville (1670-1733), em 1714 (The Fable ofthe Bees or, Private
Vices, Publick Bene.fits), na qual a sociedade humana, com todas as contradições,
era apresentada simbolicamente como uma colmeia. (E . P.) .

[78)
geiro? As confederações propostas serão nações distintas. Cada
uma delas terá o seu comércio externo regulado por tratados
distintos; e tal como os seus produtos e mercadorias são dife-
rentes e apropriados para mercados diferentes, também esses
tratados serão essencialmente diferentes. Diferentes preocupa-
ções comerciais têm de criar interesses diferentes, e, é claro,
diferentes graus de ligação política e de conexão com diferentes
nações estrangeiras. Por este motivo pode acontecer, e prova-
velmente acontecerá, que a nação estrangeira com a qual a
confederação do sul esteja em guerra seja aquela com a qual
a confederação do norte está mais desejosa de preservar a paz
e a amizade. Uma aliança tão contrária ao seu interesse imediato
não será pois facil de formar e, se for formada, não será obser-
vada nem cumprida com perfeita boa fé.
E não só isso, mas também é muito mais provável que na
América, tal como na Europa, as nações adjacentes, agindo
sob o impulso de interesses opostos e paixões inarnistosas,
sejam frequentemente vistas a tomar diferentes partidos. Con-
siderando a nossa distância da Europa, seria mais natural para
essas confederações recear o perigo vindo das outras do que
o que pode vir de nações distantes, e consequentemente que
cada urna delas estaria mais desejosa de se proteger das outras
com a ajuda de alianças externas, do que se proteger de perigos
externos por meio de alianças entre si. E aqui não esqueçamos
como é muito mais facil receber frotas estrangeiras nos nossos
portos, e exércitos estrangeiros na nossa pátria, do que é per-
suadi-los ou compeli-los a partir. Quantas conquistas fizeram
os romanos e outros sob a capa de aliados, e que inovações
introduziram sob a mesma capa no governo daqueles que
fingiam proteger.
Deixemos que os homens imparciais julguem se a divisão
da América num número qualquer de soberanias indepen-
dentes tenderia a defender-nos mais contra as hostilidades e
a inconveniente interferência das nações estrangeiras.
PUBLIUS.

[79]
O FEDERALISTA N." 6

Acerca dos Perigos


de Conflito entre os Estados

ALEXANDER HAMILTON
14 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Os três últimos números desta série de artigos foram dedi-


cados a urna enumeração dos perigos a que estaríamos expostos,
num estado de desunião, vindos das armas e ardis das nações
estrangeiras. Prosseguirei agora delineando os perigos de uma
espécie diferente e, talvez, ainda mais alarmante- os que com
toda a probabilidade fluiriam das dissensões entre os próprios
Estados, e das facções e convulsões domésticas. Estes foram
já um pouco antecipados em alguns casos; mas merecem uma
investigação mais meticulosa e mais completa.
Um homem tem de se ter perdido profundamente em
especulações utópicas para duvidar seriamente de que, se esses

* Do The Independent journal, 14 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 15 de Novembro no The Daily Advertisere em 16 de Novembro
no The 1\iew- York Packet. 0C).

[81]
Estados estiverem ou inteiramente desurúdos ou urúdos apenas
em confederações parciais, as subdivisões em que podem ser
lançados terão frequentes e violentas controvérsias umas com
as outras. Supor uma falta de motivos para tais controvér-
sias como sendo um argumento contra a sua existência seria
esquecer que os homens são ambiciosos, vingativos e rapaces.
Procurar encontrar uma continuidade de harmorúa entre um
número de soberanias independentes e desconectadas na
mesma região seria ignorar o curso uniforme dos aconte-
cimentos humanos e desafiar a experiência acumulada de
séculos.
As causas para a hostilidade entre as nações são inúmeras.
Algumas delas têm uma acção geral quase constante sobre os
corpos colectivos da sociedade. Dentro desta descrição cabem
o amor pelo poder ou o desejo de preerrúnência e domírúo
- a inveja do poder, ou o desejo de igualdade e segurança.
Existem outras que têm uma influência mais circunscrita
embora identicamente actuante dentro das suas esferas res-
pectivas. São as rivalidades e competições de comércio entre
as nações comerciais. E existem ainda outras, não menos
numerosas do que qualquer das anteriores, que têm origem
inteiramente em paixões privadas; nas amizades, irúrrúzades,
interesses, esperanças, e receios dos indivíduos mais notáveis
nas comurúdades de que são membros. Homens desta classe,
quer sejam favoritos de um rei ou de um povo, abusaram
repetidamente da confiança que possuíam; e assurrúndo o
pretexto deste ou daquele motivo público, não tiveram escrú-
pulos em sacrificar a tranquilidade nacional à vantagem ou à
satisfação pessoais.
O famoso Péricles, condescendendo com o ressentimento
de uma prostituta, I à custa de muito do sangue e dos bens
dos seus compatriotas, atacou, venceu e destruiu a cidade dos

I Aspásia, vide "Vida de Péricles" de Plutarco. (Publius) .

[82]
samianos. O mesmo homem, estimulado por um melindre
privado contra os megarenses, 2 outra nação da Grécia, ou para
evitar uma perseguição de que estava ameaçado como cúmplice
de um suposto roubo do escultor Fídias,3 ou para se livrar das
acusações preparadas para lhe serem imputadas por dissipar
os fundos do Estado na aquisição de popularidade, 4 ou por
uma combinação de todas estas causas, foi o autor primitivo
dessa guerra famosa e fatal, notabilizada nos anais gregos com
o nome de guerra do Peloponeso, que, depois de várias vicissi-
tudes, intervalos, e renovações, terminou com a ruína da
comunidade ateniense.
O ambicioso cardeal,S que foi primeiro ministro de
Henrique VIII, permitindo à sua vaidade aspirar à tripla coroa,6
acalentou esperanças de sucesso na aquisição dessa esplêndida
recompensa através da influência do Imperador Carlos V. Para
garantir o favor e o interesse desse monarca empreendedor e
poderoso, precipitou a Inglaterra numa guerra com a França,
contrária aos mais evidentes ditames políticos, e com o risco
da segurança e independência, tanto do reino a que ele presidia
com os seus conselhos, como da Europa em geral. Porque se
alguma vez existiu um soberano que prometeu realizar
o projecto de uma monarquia universal, foi o Imperador
Carlos V, de cujas intrigas Wolsey foi simultaneamente
instrumento e joguete.

2 Jbid. (Publius).
3 Ibid. (Publius) .
4 Jbid. Imputava-se a Fídias o roubo de uma certa quantidade de ouro
público, com a conivência de Péricles, para o embelezamento da estátua de
Minerva. (Publius) .
5 Thomas Wolsey (ca . 1475-1530) . QC) .
6 Usada pelos papas. (Publius).

[83]
A influência que o fanatismo de uma mulher, 7 a petulância
de outra, s e as cabalas de uma terceira9 tiveram na política
contemporânea, na agitação e na pacificação de uma parte
considerável da Europa, são tópicos que têm sido demasiado
frequentemente tratados para não serem geralmente conhe-
cidos.
Multiplicar exemplos da acção de considerações pessoais
na produção de grandes acontecimentos nacionais, quer
externos quer domésticos, segundo a sua direcção, seria uma
desnecessária perda de tempo. Aqueles que têm apenas uma
familiaridade superficial com as fontes das quais eles devem
ser inferidos, esses mesmos recordarão uma variedade de
exemplos; e os que têm um conhecimento tolerável da natureza
humana não precisarão de tais inspirações para formar a sua
opinião quer da realidade quer da extensão de tal acção. No
entanto, talvez uma referência, tendendo a ilustrar o princípio
geral, possa ser apropriadamente feita a um caso que recen-
temente aconteceu entre nós. Se SHAYS não tivesse sido um
devedor desesperado, é muito duvidoso que o Massachusetts se
tivesse visto mergulhado numa guerra civil. lO

7 Madame de Maintenon. (Publius). Casou secretamente com Luís XIV


de França em 1684. o "fanatismo" a que Hamilton se refere era provavelmente
a sua tentativa bem sucedida de persuadir Luís a perseguir os huguenotes. QC).
8 Duquesa de Marlborough. (Publius) . Como confidente e conselheira
da Rainha Anne de 1702 a 1710, era extremarnente inflluente tanto em assuntos
de corte como de Estado, até que as suas intrigas políticas e a sua arrogância
pessoal a levaram a romper com a Rainha. QC).
9 Madame de Pompadour. (Publius) . Como amante de Luís XV nos anos
1745-1765, desempenhou um papel proeminente nas intrigas da corte por
meio das quais eram escolhidos os ministros e determinadas as políticas do
país. QC) .
10 A rebelião de Shays de 1786 e princípios de 1787 no Massachusetts
central e ocidental exprimiu o descontentamento que se espalhou amplamente
através da Nova Inglaterra durante a depressão económica que se seguiu à
Revolução. Chefiados por Daniel Shays, um veterano da Guerra Revolucionária
e funcionário de Pelharn, Massachusetts, os insurrectos lançaram mão de

[84]
Mas a despeito do testemunho coincidente da experiência,
neste caso particular, ainda se podem encontrar homens visio-
nários ou intrigantes que estão prontos a advogar o paradoxo
da paz perpétua entre os Estados, apesar de desmembrados e
alienados uns dos outros. O génio das repúblicas (dizem eles)
é pacífico; o espírito de comércio tem uma tendência para
amaciar as maneiras dos homens, e para extinguir esses humores
inflamáveis que tão frequentemente incendiaram guerras. As
repúblicas comerciais, como a nossa, nunca estarão dispostas
a exaurir-se em contendas ruinosas umas com as outras. Serão
governadas pelo interesse mútuo, e cultivarão um espírito de
amizade e concórdia mútuas.
Não é verdade (podemos perguntar a esses arquitectos em
política) que o real interesse de todas as nações é cultivar o
mesmo espírito benevolente e filosófico? Se este é o seu real
interesse, promoveram-no efectivamente? Não se observou
invariavelmente, pelo contrário, que as paixões momentâneas,
e o interesse imediato têm um controlo mais activo e mais
imperioso sobre a conduta humana do que as considerações
gerais o remotas de política, utilidade ou justiça? Na prática,
foram as repúblicas menos dadas à guerra do que as monar-
quias? Não são as primeiras administradas por homens, tal
como as últimas? N ão existem aversões, predilecções, rivali-
dades e desejos de aquisições injustas, que afectam as nações
tanto como os reis? As assembleias populares não são frequen-
temente sujeitas aos impulsos da ira, do ressentimento, da
inveja, da avareza, e de outras predisposições irregulares e vio-
lentas? Não é bem conhecido que as suas determinações são
muitas vezes governadas por um punhado de indivíduos em
quem depositavam confiança, e são, é claro, propensas a ser
influenciadas pelas paixões e pontos de vista desses indivíduos?

esforços armados para intimidar e fechar os tribunais para impedir acções contra
os devedores. Em Fevereiro de 1787, tropas do Estado, sob o comando do
Major General Benjamin Lincoln, tinham suprimido a rebelião. Q. C.) .

[85]
O comércio fez até agora alguma coisa além de modificar os
objectos da guerra? Não é o amor das riquezas uma paixão
tão dominadora e empreendedora como a do poder ou da
glória? Não existiram muitas guerras fundadas em motivos
comerciais desde que o comércio se converteu no sistema
prevalecente das nações, tal como antes eram causadas pela
cupidez de território ou de domínio? O espírito do comércio
não proporcionou, em muitos casos, novos incentivos ao
apetite, tanto para uma como para a outra? Apelemos para a
experiência, como o guia menos falível das opiniões humanas,
para que responda a estas perguntas.
Esparta, Atenas, Roma e Cartago eram todas repúblicas;
duas delas, Atenas e Cartago, do tipo comercial. Não obstante
estiveram tão frequentemente envolvidas em guerras, ofensivas
e defensivas, como as vizinhas monarquias das mesmas épocas.
Esparta era um pouco melhor do que um acampamento bem
regulamentado; e Roma nunca se saciou de carnificina e
conquista.
Cartago, embora fosse uma república comercial, figurou
como agressor na própria guerra que terminou pela sua des-
truição. Aníbal levara as suas armas até ao coração da Itália e
às portas de Roma, antes que Cipião, por seu turno, lhe infli-
gisse uma derrota nos territórios de Cartago, e fizesse a con-
quista dessa comunidade.
Veneza, em tempos mais recentes, figurou por mais de
uma vez em guerras de ambição, até que, tornando-se um
obstáculo para os outros Estados italianos, o papa Júlio II
encontrou maneira de congregar essa formidável liga, 11 que
desferiu um golpe mortífero no poder e orgulho dessa altaneira
república.
As províncias da Holanda, até ficarem submersas em dívidas
e impostos, tiveram um papel principal e conspícuo nas guerras

11 A Liga de Cambray, compreendendo o Imperador, o Rei de França,

o Rei de Aragão, e a maior parte dos príncipes e estados italianos. (Publius).

[86]
europeias. Tiveram furiosas lutas com a Inglaterra pelo domínio
dos mares, e estiveram entre os mais implacáveis e mais
perseverantes opositores de Luís XIV
No governo da Grã-Bretanha os representantes do povo
formam um dos ramos da legislatura nacional. O comércio
foi durante séculos a ocupação predominante desse país. Apesar
disso, poucas nações estiveram mais frequentemente envolvidas
em guerras; e em numerosas ocasiões, as guerras em que esse
reino se envolveu procederam do povo.
Houve, se assim o posso exprimir, quase tantas guerras
populares como reais. Os gritos da nação e as importunidades
dos seus representantes arrastaram, em várias ocasiões, os seus
monarcas para a guerra, ou mantiveram-nos nela, contraria-
mente às suas inclinações e, por vezes, em contradição com
os verdadeiros interesses do Estado. Nessa memorável luta
pela superioridade das casas rivais de Áustria e Bourbon, que
por tanto tempo manteve em chamas a Europa, é bem sabido
que as antipatias dos ingleses contra os franceses, secundando
a ambição, ou melhor, a avareza, de um chefe favorito, 12 pro-
longou a guerra para lá dos limites traçados por uma política
sã, e durante um tempo considerável em oposição aos pontos
de vista da corte.t3
As guerras destas duas nações que acabam de ser mencio-
nadas originaram-se em grande medida em considerações
comerciais- o desejo de suplantar e o medo de ser suplantado,
quer em ramos particulares do tráfico quer nas vantagens
gerais do comércio e da navegação, e por vezes o desejo ainda
mais culpável de partilhar o comércio de outras nações sem
o consentimento delas.

12 O Duque de Marlborough. (Publius) .


13 A Guerra de Sucessão de Espanha, 1701-1714. Em 1709 Marlborough,
comandante em chefe dos exércitos unidos inglês e holandês, recusou-se a
considerar um pedido de paz francês, embora o partido Tory de Inglaterra se
opusesse à continuação da guerra. QC).

[87)
A antepenúltima guerra entre a Grã-Bretanha e a Espanha
brotou das tentativas dos mercadores britânicos para praticar
um comércio ilícito com o mar das Antilhas. Estas práticas
injustificáveis da parte deles produziram severidades da parte
dos espanhóis para com os súbditos da Grã-Bretanha, igual-
mente injustificáveis, porque excediam os limites de uma
retaliação justa e podiam ser acusados de desumanidade e
crueldade. Muitos dos ingleses que foram aprisionados na
costa espanhola foram enviados para trabalhar nas minas de
Potosi; e através dos progressos usuais de um espírito de
ressentimento, os inocentes foram, depois de algum tempo,
confundidos com os culpados num castigo indiscriminado.
As queixas dos mercadores despertaram uma violenta defla-
gração por todo o país, que pouco depois irrompeu na Câmara
dos Comuns e se comunicou dessa assembleia ao ministério.
Foram emitidas cartas de represália e seguiu-se uma guerra,
que nas suas consequências derrubou todas as alianças que
apenas vinte anos antes tinham sido formadas com a esperança
·optimista dos mais benéficos frutos.
Deste resumo do que aconteceu noutros países, cujas
situações tiveram as maiores semelhanças com o nosso próprio,
que razão podemos ter para confiar nesses devaneios que nos
seduziriam para uma expectativa de paz ·e cordialidade entre
os membros da presente confederação, num estado de sepa-
ração? Não vimos já o suficiente da falácia e da extravagância
dessas teorias ruteis que.nos divertiram com promessas de uma
isenção de imperfeições, de fraquezas e de males que incidem
em todas as configurações da sociedade? Não é tempo de
despertar desse sonho traiçoeiro de uma idade de ouro, e
adoptar, como máxima prática para a orientação da nossa
conduta política, que nós, tal como os outros habitantes do
globo, estamos ainda tão longe do reino feliz da sabedoria
perfeita e da virtude perfeita?
· Deixemos que falem por si: o ponto de depressão extrema
a que desceram a nossa dignidade nacional e o nosso crédito;

[88]
os inconvenientes de uma administração do governo laxista
e incompetente sentidos por toda a parte; a revolta de uma
parte do Estado da Carolina do Norte; os últimos distúrbios
ameaçadores na Pensilvânia; e as presentes insurreições e
rebeliões no Massachusetts!
Tão longe está a opinião geral da humanidade de corres-
ponder às doutrinas daqueles que se esforçam por embalar
para adormecer as nossas apreensões de discórdia e hostilidade
entre os Estados, no caso de desunião, que, a partir de urna
longa observação do progresso da sociedade, se tornou uma
espécie de axioma em política que a vizinhança, ou a
proximidade de situação, constituem as nações em inimigos
naturais. Um escritor inteligente exprime-se desta maneira
sobre o assunto: "As NAÇÕES VIZINHAS (diz ele) são natural-
mente I !MIGAS umas das outras a menos que as suas fraquezas
comun as forcem a coligar-se numa REPÚBLICA CONFEDE-
RADA, e as suas Constituições antecipem as diferenças que a
vizinhança ocasiona, extinguindo essa inveja secreta que dispõe
todos os Estados para se engrandecerem à custa dos seus
vizinhos."14 Esta passagem, de uma só vez, aponta o MAL e
sugere o REMÉDIO.
PUBLIUS.

14 Veja-se " Principes des N egociations" pelo Abade de M ably. (Publius).

[89)
O FEDERALISTA N.o 7

Acerca dos Perigos de Conflito


entre os Estados (continuação)
com a Enumeração de Casos Particulares

ALEXANDER HAMILTON
17 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Pergunta-se por vezes, com um ar de aparente triunfo:


Que motivações poderiam ter os Estados, se desunidos, para
guerrearem uns contra os outros? Uma resposta cabal a esta
pergunta seria dizer - precisamente as mesmas motivações
que, em diferentes momentos, têm banhado de sangue todas
as nações no mundo. Porém, infelizmente para nós, a pergunta
admite uma resposta mais específica. Há causas de querela
que podemos observar imediatamente e, mesmo sob as restri-
ções de uma Constituição federal, tivemos experiência sufi-
ciente da tendência para essas querelas para nos habilitar a

* Do The Independent Journal, 17 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 19 de Novembro no T11e Daily Advertiser e em 20 de Novembro
no The New- York Packet. QC).

[91]
formar um juízo do que poderia esperar-se se essas restrições
fossem afastadas.
As disputas territoriais têm sido sempre uma das mais
férteis fontes de hostilidade entre as nações. Talvez a maior
proporção de guerras que devastaram a terra tenha brotado
desta origem. Esta causa existiria entre nós com plena força.
Temos uma vasta extensão de território não colonizado dentro
das fronteiras dos Estados Unidos. Ainda existem pretensões
discordantes e não resolvidas entre vários dos Estados, e a
dissolução da União lançaria os alicerces para reivindicações
semelhantes entre todos eles. É bem sabido que eles sustentaram
até agora uma discussão séria e animada a respeito do direito
às terras que foram concedidas no tempo da Revolução, e
que em geral se denominaram "terras da coroa". Os Estados
dentro dos limites dos governos coloniais em que elas estavam
compreendidas reclamaram-nas como propriedade sua; os
outros litigaram que os direitos da coroa nesta matéria tinham
passado para a União; e em especial no que toca a toda essa
parte do território do Oeste que, quer através da posse efectiva,
quer através da submissão dos proprietários índios, estava sub-
metida à jurisdição do rei da Grã-Bretanha, até que foi cedida
pelo tratado de paz. Isto, disse-se, foi para todos os efeitos
uma aquisição da Confederação através de um pacto com
uma nação estrangeira. A prudente politica do Congresso foi
a de apaziguar esta controvérsia, persuadindo os Estados a
fazer cedências aos Estados Unidos em benefício de todos.
Isto foi feito até agora de modo a permitir, no caso de conti-
nuação da União, uma franca perspectiva de um fim amigável
para a disputa. Todavia, um desmembramento da Confederação
faria reviver essa disputa e criaria outras sobre a mesma questão.
Presentemente, uma grande parte do território devoluto do
Oeste é, pelo menos por cedência, se não por direito anterior,
propriedade comum da União. Se isso viesse a findar, os Esta-
dos que fizeram a cedência, com base num princípio de
compromisso federal, estariam em condições, quando o motivo

[92]
da outorga tivesse cessado, de reclamar as terras a título de
devolução. Os outros Estados por certo insistiriam numa
divisão proporcional, por direito de representação. O seu
argumento seria que uma outorga, uma vez feita, não pode
ser revogada, e que a justiça da sua participação em território
adquirido ou obtido graças aos esforços conjuntos da Confede-
ração permanecia intocada. Se, contrariamente a todas as
probabilidades, fosse admitido por todos os Estados que cada
um possuía um direito de partilhar deste fundo comum, have-
ria ainda uma dificuldade a ser vencida, a da regra justa de
partilha. Seriam avançados diferentes princípios por diferentes
Estados, com este objectivo, e, como eles afectariam os inte-
resses opostos das partes, poderiam não ser facilmente suscep-
tíveis de um acordo pacífico.
No vasto campo do território do Oeste vislumbramos,
por consequência, um amplo teatro para pretensões hostis,
sem que haja um árbitro ou juiz comum a interpor entre as
partes em contenda 1. Raciocinando para o futuro com base
no passado, temos boas razões para recear que a espada seja
por vezes chamada a arbitrar as suas disputas. As circunstâncias
da disputa entre o Connecticut e a Pensilvânia, a respeito das
terras do Wyoming, alertam-nos para não sermos muito opti-

1 A 13 de Julho de 1787, na mesma altura em que a Convenção de

Filadélfia atingia um momento crucial dos seus trabalhos, o Congresso, reunido


em Nova Iorque, aprovava um documento fundamental para permitir a ocupação
e povoamento pacíficos dos territórios do Oeste, seguindo um modelo não
imperial de ocupação do território: a Nortwest Ordinance. Esses novos territórios,
de onde emergiriam Estados como Indiana, Michigan, Illinois e Wisconsin,
ficariam submetidos a uma administração federal , sem escravatura, até que se
reunissem as condições demográficas e políticas para poderem ser recebidos
na União como novos Estados. Foi Thomas Jefferson, já em 1784, o grande
obreiro dessa política de expansão ocidental que seria, essencialmente, respeitada
no Congresso sob a nova Constituição de 1787 (através do Nothwest Territory
Act de Agosto de 1789) . Este mesmo assunto volta a ser tratado por Madison
no Artigo 38. (E. P.).

[93]
mistas, contando com uma fàcil harmonização de tais diferen-
ças.2 Os Artigos da Confederação obrigavam as partes a
submeter o assunto à decisão de um Tribunal Federal. O caso
foi submetido, e o Tribunal decidiu a favor da Pensilvânia.
Mas o Connecticut deu fortes indicações de insatisfação com
essa decisão; e também não pareceu estar inteiramente resig-
nado a ela, até que, por meio de negociações e subtilezas, foi
encontrado algo semelhante a um equivalente para a perda
que ele supunha ter sofrido.3 Nada do que é dito aqui tem a
intenção de exprimir a mínima censura acerca da conduta
desse Estado. Sem dúvida que ele acreditava sinceramente ter
sido injustiçado pela decisão; e os Estados, como os indivíduos,
aceitam com grande relutância decisões que lhes são desfa-
voráveis.
Os que tiveram a oportunidade de estar por dentro das
negociações que acompanharam o progresso da controvérsia
entre este Estado [Nova Iorque] e o distrito de Vermont,4
podem certificar a oposição que sofremos, tanto da parte de
Estados não interessados como daqueles que estavam interessa-
dos na pretensão; e podem atestar o perigo a que poderia ter

2 De acordo com as respectivas cartas constitucionais, a Pensilvânia e o


Connecticut tinham ambos base para reivindicar a jurisdição sobre o Vale do
Wyoming. A disputa, começada antes da Revolução, foi resolvida da maneira
aqui exposta. QC).
3 Este "equivalente" era a Reserva do Oeste, um extensão de aproxima-
damente 3 SOO 000 acres defrontando o Lago Erie, no que é agora o nordeste
do Ohio. QC) .
4 Antes da Revolução, as terras que formavam o Vermont eram reivin-

dicadas diversamente por New Hampshire, Massachusetts e "este Estado"


(Nova Iorque), sendo o último o mais bem sucedido em fazer valer a sua
jurisdição. Em 1777 o Vermont proclamou a independência, adoptou urna
constituição, e requereu a admissão na União; mas, em grande parte por causa
da oposição de Nova Iorque, essa admissão não tinha sido concedida no
momento em que este artigo foi escrito. Foi só depois de 1791, depois de ter
sido adoptada a Constituição, que o Vermont foi admitido como décimo
quarto estado. QC).

(94]
sido exposta a paz da Confederação, se este Estado tivesse
tentado fazer valer os seus direitos pela força. Houve dois
motivos preponderantes nessa oposição: um, uma suspeita
albergada em relação ao nosso poder futuro; e o outro, o
interesse de certos indivíduos influentes nos Estados circunvizi-
nhos, que obtiveram concessões de terras do governo actual
desse distrito. Mesmo os Estados que apresentaram pretensões
em oposição às nossas pareceram mais solícitos em desmembrar
este Estado do que em estabelecer as suas próprias pretensões.
Foram eles New Hampshire, Massachusetts e Connecticut.
New Jersey e Rhode Island, aproveitando todas as ocasiões,
descobriram um zelo caloroso pela independência do Vermont;
e Maryland, até se alarmar com o aparecimento de uma cone-
xão entre o Canadá e aquele Estado, partilhou convictamente
os mesmos pontos de vista. Dado que eram Estados pequenos,
viram com um olhar pouco amigável a perspectiva da nossa
grandeza crescente. Ao revermos essas negociações podemos
seguir o traço de algumas das causas que provavelmente
enredariam os Estados uns com os outros, se o seu malfadado
destino viesse a ser a desunião.
As rivalidades comerciais seriam outra pródiga fonte de
disputas. Os Estados em circunstâncias menos favoráveis esta-
riam desejosos de escapar aos inconvenientes da sua localização
e de comparticipar nas vantagens dos seus vizinhos mais afor-
tunados. Cada Estado, ou confederação independente, pro-
curaria criar para si um sistema de política comercial especial.
Isto acarretaria distinções, preferências e exclusões, que gera-
riam descontentamentos. Os hábitos do intercâmbio, com
base em privilégios iguais, a que temos estado acostumados
desde as primeiras colonizações do país, tornariam essas causas
de descontentamento mais constantes do que elas seriam
independentemente dessa circunstância. Deveríamos estar prontos
a chamar ofensas a coisas que seriam na realidade os actos justificáveis
de soberanias independentes considerando um interesse distinto.
O espírito empreendedor, que caracteriza a actividade comercial

[95)
da América, em nenhuma ocasião se mostrou ocioso. Não é
nada provável que este espírito desenfreado mostrasse muito
respeito pelos regulamentos comerciais de certos Estados
particulares que pudessem esforçar-se por assegurar benefícios
exclusivos para os seus próprios cidadãos. As infracções destes
regulamentos, por um lado, os esforços para os evitar e repelir,
por outro, conduziriam naturalmente a excessos, e estes a
represálias e guerras.
As oportunidades que teriam alguns Estados para converter
outros Estados em tributários seus seriam impacientemente
sofridas pelos Estados tributários. A situação relativa de Nova
Iorque, Connecticut, e NovaJérsia, permitiria um exemplo
deste tipo. Nova Iorque, porque necessita desse rendimento,
tem de lançar direitos sobre as suas importações. Uma grande
parte desses direitos tem de ser paga pelos habitantes dos dois
outros Estados na qualidade de consumidores daquilo que
importamos. Nova Iorque não teria boa vontade nem capaci-
dade para renunciar a esta vantagem. Os seus cidadãos não
consentiriam que os direitos pagos por eles devessem ser per-
doados para favorecer os cidadãos dos seus vizinhos; nem seria
praticável, se não existisse este impedimento no caminho,
distinguir os consumidores nos nossos próprios mercados.
Será que o Connecticut e Nova Jérsia se submeteriam por
muito tempo a serem taxados por Nova Iorque para exclusivo
beneficio deste último? Será que nos seria permitido por
muito tempo permanecer no gozo tranquilo e imperturbado
de uma metrópole, da posse da qual derivaríamos uma vanta-
gem tão odiosa para os nossos vizinhos, e, na opinião deles,
tão opressora? Seríamos capazes de a preservar contra o peso
inevitável do Connecticut de um lado, e a pressão cooperante
de NovaJérsia do outro? São perguntas a que só a temeridade
responderá pela afirmativas.

5 As novas atribuições fiscais da União em matéria de comércio externo,


previstas pela nova Constituição federal, eram encaradas negativamente pelos

[96]
A dívida pública da União seria mais uma causa de colisão
entre os Estados ou confederações independentes. A distribui-
ção equitativa, primeiro, e depois a progressiva extinção da
dívida seriam também geradoras de mau humor e animosi-
dade. Como seria possível concordar numa regra de distribui-
ção satisfatória para todos? Dificilmente se encontra alguma
que possa ser proposta e que esteja inteiramente livre de sérias
objecções. Estas, como de costume, seriam exageradas pelo
interesse adverso dos partidos. Há até pontos de vista disseme-
lhantes entre os Estados quanto ao princípio geral de liquidação
da dívida pública. Alguns deles, ou menos impressionados
com a importância do crédito nacional, ou porque os seus
cidadãos têm pouco, se é que têm algum, interesse imediato
na questão, sentem uma indiferença, quando não uma repug-
nância, pelo pagamento da dívida interna, seja por que modo
for. Estes estariam inclinados a aumentar as dificuldades de
uma distribuição. Outros, em que um conjunto numeroso
de cidadãos é credor público em proporção maior do que a
do Estado no valor total da dívida nacional, seriam estrénuos
a pedir uma cláusula equitativa e eficiente. As protelações dos
primeiros excitariam os ressentimentos dos últimos. Enquanto
isso, o estabelecimento de uma regra seria adiado por diferenças
de opinião reais e atrasos artificiais. Os cidadãos dos Estados
interessados clamariam e as potências estrangeiras pediriam
insistentemente a satisfação das suas justas exigências, e a paz
dos Estados seria ameaçada pela dupla contingência da invasão
externa e de contendas internas.
Suponhamos que sejam superadas as dificuldades de aceitar
uma regra e a distribuição se efectue. Ainda assim há muita

dirigentes políticos de Estados que beneficiavam das tarifas do comércio externo.


Tal era o caso de George Clinton (1739-1812), Governador do Estado de
Nova Iorque na altura em que •O Federalista» foi publicado. Curiosamente,
George Clinton veio a falecer, em 1812, como Vice-Presidente de James
Madison. (E. P.).

[97]
margem para supor que a regra acordada seria, depois de
experimentada, considerada como incidindo sobre alguns
Estados mais duramente do que sobre outros. Os que fossem
prejudicados por ela procurariam naturalmente uma mitigação
do fardo. Os outros, também naturalmente, não estariam
inclinados para uma revisão, que provavelmente acabaria num
aumento das suas próprias dificuldades. A sua recusa seria um
pretexto demasiado plausível para os Estados queixosos sus-
penderem as suas contribuições, para que não fossem adoptadas
avidamente; e o incumprimento das suas obrigações por parte
desses Estados seria um terreno de amargo desentendimento
e de altercação. Mesmo que a regra adoptada viesse a justificar
na prática a igualdade do seu princípio, ainda assim os delitos
nos pagamentos por parte de alguns Estados resultariam de
uma diversidade de outras causas: da deficiência real dos
recursos, da má administração das suas finanças, de desordens
acidentais na administração do governo e, a acrescentar a tudo
o resto, da relutância que os homens habitualmente sentem
em entregar dinheiro para fins que sobreviveram às exigências
que os produziram e que interferem com a satisfação de neces-
sidades imediatas. Os delitos, independentemente das causas,
seriam produtores de queixas, recriminações e querelas. Talvez
não haja nada que mais provavelmente perturbe a tranquilidade
das nações do que estarem elas amarradas a contribuições
mútuas para um qualquer fim que não produz um benefício
igual e coincidente, porque é uma observação, tão verdadeira
como trivial, que não há nada que os homens adiem tão
prontamente como o pagamento de dinheiro.
As leis em violação dos contratos privados, como equiva-
lem a agressões aos direitos desses Estados cujos cidadãos são
prejudicados por elas, podem ser consideradas como uma
outra fonte possível de hostilidade. Não estamos autorizados
a esperar que um espírito mais liberal ou mais equitativo venha
a presidir daqui para o futuro às legislações dos Estados indi-
viduais, se estes não fossem refreados por controlos adicionais

[98]
aos que vimos até aqui, em demasiados casos, desacreditando
os seus vários códigos. Observámos a disposição para a retalia-
ção de encadeada no Connecticut em consequência das
enormidades perpetradas pela legislatura de Rhode Island;6
e podemos com razão inferir que, em casos semelhantes,
debaixo de outras circunstâncias, uma guerra, não de per-
gaminho, mas da espada, castigaria tão atrozes infracções da
obrigação moral e da justiça social.
A probabilidade de alianças incompatíveis entre os dife-
rentes Estados, ou confederações, e diferentes nações estran-
geiras, e os efeitos dessa situação sobre a paz de todos, foram
suficientemente expostos em alguns dos artigos precedentes7.
Da visão que eles deram desta parte do assunto, deve tirar-se
a conclusão de que a América, se não estiver unida, ou se o
estiver apenas pelo fraco elo de uma simples liga ofensiva e
defensiva, será, pela acção de alianças díspares e contrárias
dessa natureza, gradualmente enredada em todos os perniciosos
labirintos da política e das guerras europeias; e por causa das
lutas destruidoras das partes em que estava dividida se tornará
com toda a probabilidade numa presa dos artifícios e maqui-
nações de potências igualmente inimigas de todas elas. Divide
et imperas deve ser a divisa de toda a nação que nos odeia ou
nos rece1a.
PUBLIUS.

6 O papel moeda e as leis de residência de Rhode Island, às quais se


opunham os credores nesse Estado bem como em outros, eram particularmente
levadas a mal no Connecticut, onde se aprovou urna lei proibindo aos seus
tribunais o julgamento de casos de credores de Rhode Island contra devedores
do Connecticut. Quando esta medida retaliatória falhou, o Connecticut enviou
ao Congresso, em 1787, um protesto contra as leis de Rhode Island como
violações dos Artigos da Confederação. QC) .
7 Ver em particular o artigo S. QC).
8 Divide e comanda. (Publius).

(99]
O FEDERALISTA N.• 8

Consequências das Hostilidades


entre os Estados ·

ALEXANDER HAMILTON
20 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Admitindo, portanto, como uma verdade estabelecida,


que os vários Estados, em caso de desunião, ou os agrupamen-
tos que possam vir a ser formados a partir das ruínas da
confederação geral, estariam sujeitos a essas vicissitudes de
paz e guerra, de amizade e inimizade uns para com os outros,
que couberam em sorte a todas as nações adjacentes não unidas
por um governo único, pormenorizemos concisamente
algumas das consequências que acompanhariam tal situação.
A guerra entre os Estados, nos períodos iniciais da sua
existência separada, será acompanhada de muito mais miséria
do que o é comummente nesses países onde prevalecem há

* Do The N ew- York Packet, 20 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 21 de Novembro tanto no The Independent journal como no The
Daily Advertiser. (JC) .

(101]
muito as forças militares regulares. Os exércitos disciplinados
mantidos em pé de guerra permanente no continente europeu,
embora apresentem um aspecto pernicioso para a liberdade
e para a economia, têm produzido a assinalada vantagem de
tornar impraticáveis as conquistas repentinas, e de impedir
essa súbita devastação que costumava assinalar o progresso da
guerra antes da criação de ses exércitos. A arte da fortificação
contribuiu para os mesmos fins. As nações da Europa estão
rodeadas de cadeias de praças fortificadas, que mutuamente
dificultam uma invasão. As campanhas são consumidas a
submeter duas ou três guarnições fronteiriças para conseguir
entrar no país inimigo. A cada passo ocorrem impedimentos
similares, que esgotam as forças e retardam o progresso do
invasor. Antigamente, um exército invasor penetraria no
coração de um país vizinho quase ao mesmo tempo do que
se recebia a informação da sua aproximação; mas agora uma
força comparativamente pequena de tropas disciplinadas,
agindo defensivamente, com a ajuda de estafetas, é capaz de
impedir, e por fim frustrar, os ataques de outra força muito
mais considerável. A história da guerra, nessa parte do globo,
já não é uma história de nações submetidas e impérios derru-
bados, mas de cidades tomadas e reconquistadas, de batalhas
que nada decidem, de retiradas mais benéficas do que vitórias,
de muito esforço e poucas compensações.
Neste país, o quadro seria inteiramente invertido. A suspeita
que recai sobre as organizações militares adiá-las-ia o mais
possível. A ausência de fortificações, deixando as fronteiras
de um Estado abertas aos outros, facilitaria as incursões. Os
Estados populosos dominariam sem grande dificuldade os
seus vizinhos menos populosos. As conquistas seriam tão fãceis
de fazer como difíceis de manter. A guerra, portanto, seria
sem método e predatória. A PILHAGEM e a devastação marcham
sempre no rastro dos exércitos de irregulares. Os sofrimentos
individuais constituiriam o aspecto principal dos aconteci-
mentos que caracterizariam as nossas façanhas militares.

[102]
Esta imagem não é demasiado elaborada, embora eu con-
fesse que ela não permaneceria por muito tempo uma imagem
correcta. A segurança em relação ao perigo externo é o mais
poderoso orientador da conduta nacional. Mesmo o amor
ardente da liberdade, depois de algum tempo, cederá o passo
aos seus ditames. A destruição violenta da vida e da propriedade
associada à guerra - o contínuo esforço e alarme concomitante
com um estado de perigo permanente - compelirá as nações
mais devotadas à liberdade a recorrer, para sua tranquilidade
e segurança, a instituições que terão uma tendência para des-
truir os seus direitos civis e políticos. Para ficar mais seguros,
acabam finalmente por aceitar correr o risco de serem menos
livres.
As principais instituições aludidas são os EXÉRCITOS
PERMANENTES e os correspondentes complementos, represen-
tados pelas instalações militares. A nova Constituição, diz-se,
não contém nenhuma disposição contra os exércitos perma-
nentes e infere-se, portanto, que eles podem existir na vigência
dela. t A sua existência, todavia, a partir dos próprios termos
da proposição, é, quando muito, problemática e incerta. Mas
os exércitos permanentes, pode responder-se, deverão inevita-
velmente resultar de uma dissolução da confederação. A guerra
frequente e a apreensão constante, que exigem um estado de
constante preparação, farão inevitavelmente com que sejam
criados. Os Estados ou confederações mais fracos seriam os
primeiros a recorrer a eles, para se colocarem em pé de igual-
dade com os seus vizinhos mais poderosos. Esforçar-se-iam
por compensar a inferioridade de população e recursos
por meio de um sistema de defesa mais regular e efectivo, de

1 Esta objecção será profundamente examinada no lugar próprio, e será


mostrado que foi tomada a única precaução natural que podia ter sido tomada
nesta matéria; e uma precaução muito melhor do que a que se pode encontrar
em todas as constituições que até agora foram feitas na América, a maior parte
das quais ::1ão contém absolutamente nenhuma protecção nesta matéria .
(Publius) . Ver Artigos 24-29. QC).

[103]
tropas disciplinadas e de fortificações. Ao mesmo tempo,
teriam necessidade de fortalecer o ramo executivo do governo,
e, ao fazê-lo, as suas Constituições adquiririam uma incli-
nação progressiva para a monarquia. É da natureza da guerra
aumentar o poder executivo a expensas da autoridade legis-
lativa.
Os expedientes mencionados depressa darão aos Estados
ou confederações que os utilizem uma superioridade sobre
os seus vizinhos. Estados pequenos, ou Estados com menor
poderio natural, conduzidos por governos vigorosos e com
a assistência de exércitos disciplinados, triunfaram frequente-
mente de grandes Estados, ou de Estados com maior poderio
natural, que estavam desprovidos dessas vantagens. Nem o
orgulho nem a segurança dos Estados ou confederações mais
importantes lhes permitiria por muito tempo submeter-se a
essa superioridade mortificante e acidental. Rapidamente
recorreriam a meios semelhantes àqueles à custa dos quais
tinham sido inferiorizados, para readquirirem a sua preeminên-
cia perdida. Deste modo, em pouco tempo, veríamos esta-
belecidos em todas as partes deste país os mesmos instrumentos
de despotismo que foram o flagelo do Velho Mundo. Este,
pelo menos, seria o curso natural das coisas, e os nossos argu-
mentos serão provavelmente mais justos na medida em que
sejam acomodados a este critério.
Isto não são vagas inferências extraídas de defeitos supostos
ou especulativos de uma Constituição, cujo poder total está
depositado nas mãos do povo, ou dos seus representantes e
delegados. Trata-se de conclusões sólidas, extraídas do progresso
necessário e natural dos assuntos humanos.
Pode talvez perguntar-se, como objecção a isto: Porque
é que não brotaram exércitos permanentes das contendas que
tão frequentemente perturbaram as antigas repúblicas da
Grécia? Diferentes respostas, igualmente satisfatórias, podem
ser dadas a esta pergunta. Os hábitos diligentes do povo dos
nossos dias, absorvido na busca de ganhos, e devotado aos

[104]
aperfeiçoamentos da agricultura e do comércio, são incompa-
tíveis com a condição de uma nação de soldados, que era a
verdadeira condição do povo dessas repúblicas. Os meios de
rendimento, que em tão grande medida foram multiplicados
pelo crescimento do ouro e da prata e pelo desenvolvimento
das artes industriais e da ciência das finanças, que é produto
dos tempos modernos, combinados com os hábitos de vida
das nações, produziram toda urna revolução no sistema da
guerra, e tornaram os exércitos disciplinados, distintos dos
corpos de cidadãos, em companheiros inseparáveis de hos-
tilidades frequentes.
Há também uma grande diferença entre os efectivos
militares de um país raramente exposto, pela sua localização,
a invasões do seu território, e outro que está frequentemente
sujeito a elas, e que permanentemente as receia. Os governantes
do primeiro podem ter um bom pretexto, se estiverem
inclinados para isso, para manter em pé de guerra exércitos
tão numerosos como os que os últimos têm de manter por
necessidade. Sendo esses exércitos, no primeiro caso, raramente
ou nunca chamados à actividade para a defesa interna, o povo
não corre perigo de ser submetido a uma subordinação militar.
As leis não se relaxam em prol das exigências militares - o
estado civil mantém-se com todo o vigor, não corrompido,
nem an lado pelos princípios do estado militar. A pequenez
do exército confere à força natural da comunidade um domínio
sobre ele. E os cidadãos, não acostumados a olhar para o poder
militar em busca de protecção, ou a submeterem-se às suas
opressões, não amam nem receiam os soldados . Vêem-nos
com um espírito de desconfiada aquiescência com um mal
necessário, e mantêm-se prontos a resistir a um poder que
supõem que pode ser exercido em detrimento dos seus direitos.
O exército pode, nessas circunstâncias, ajudar utilmente o
magistrado para suprimir uma pequena facção, ou uma turba
ou insurreição ocasionais, mas será incapaz de impor usurpa-
ções contra os esforços unidos da maioria do povo.

[105]
Num país na difícil situação que acaba de ser descrita,
acontece o contrário de tudo isto. As constantes ameaças de
perigo obrigam o governo a estar sempre preparado para o
repelir- os seus exércitos devem ser suficientemente numerosos
para uma defesa imediata. A contínua necessidade dos seus
serviços acentua a importância do soldado, e degrada propor-
cionalmente a condição do cidadão. O estado militar eleva-
-se acima do civil. Os habitantes dos territórios que são fre-
quentemente teatro de guerra estão inevitavelmente sujeitos
a repetidas violações dos seus direitos, que servem para
enfraquecer o sentido desses direitos, e, gradualmente, o povo
é levado a considerar os soldados não somente como seus
protectores, mas como seus superiores. A transição desta dis-
posição para a de os considerar senhores não é remota nem
difícil: mas é muito difícil persuadir um povo assim influenciado
a praticar uma arrojada ou efectiva resistência às usurpações
apoiadas pelo poder militar.
O reino da Grã-Bretanha enquadra-se na primeira descri-
ção. Uma situação insular e uma marinha poderosa, prote-
gendo-o em grande medida contra a possibilidade de invasão
estrangeira, suplantam a necessidade de um exército numeroso
no interior do reino. Uma força suficiente para fazer frente
a um súbito ataque, até que a milícia tenha tempo para se
reunir e organizar, é tudo o que tem sido julgado necessário.
Nenhum motivo de política nacional exigiu, nem a opinião
pública o teria tolerado, um grande número de tropas nos
seus efectivos internos. Houve, durante muito tempo, pouco
espaço para a intervenção das outras causas que foram enume-
radas como consequências da guerra interna. Esta peculiar
felicidade da situação contribuiu, em grande medida, para
preservar a liberdade de que esse país desfruta até hoje, apesar
da venalidade e corrupção prevalecentes. Pelo contrário, se
a Grã-Bretanha estivesse situada no continente, e tivesse sido
compelida, como certamente o seria, por essa situação, a tor-
nar os seus efectivos militares equiparáveis aos das outras gran-

[106]
des potências da Europa, então, tal como elas, seria com toda
a probabilidade, nos dias de hoje, uma vítima do poder absoluto
de um único homem. É possível, embora não seja facil, que
o povo dessa ilha possa ser escravizado por outras causas, mas
não pelo poder de um exército tão insignificante como aquele
que normalmente tem sido mantido no interior do reino.
Se formos suficientemente sensatos para preservar a União
podemos desfrutar durante séculos de uma vantagem seme-
lhante à de uma situação insular. A Europa está a uma grande
distância de nós. As suas colónias que são nossas vizinhas
continuarão provavelmente demasiado desproporcionadas em
força para serem capazes de nos dar qualquer aborrecimento
perigoso. Deste modo, não podem ser necessários para a nossa
segurança grandes efectivos militares. Mas se nos desunirmos
e se as partes permanecerem separadas ou, o que é mais pro-
vável, se se agruparem em duas ou três confederações, estare-
mos, num curto espaço de tempo, na mesma difícil situação
das potências continentais da Europa - as nossas liberdades
serão presa facil dos meios para nos defendermos da ambição
e da inveja mútuas.
Esta é uma ideia que não é superficial nem rutil, mas sólida
e de muito peso. Ela merece a mais séria e amadurecida
consideração de todos os homens prudentes e honestos seja
qual for o seu partido. Se esses homens fizerem uma pausa
firme e solene, e meditarem desapaixonadamente sobre a
importância desta interessante ideia, e se a analisarem sob
todos os seus aspectos e derivarem dela todas as suas conse-
quências, não hesitarão em abster-se de apresentar objecções
triviais a uma Constituição, cuja rejeição poria com toda a
probabilidade um ponto final na União. Os espectros etéreos,
que perpassan1 diante das imaginações desenfreadas de alguns
dos adversários desta última, rapidamente cederiam o lugar
às formas mais substanciais de perigos, reais, certos e aterra-
dores.
PUBLIUS.

[107]
O FEDERALISTA N. 0 9

A Utilidade da União como Salvaguarda


contra a Facção e Insurreições Domésticas

ALEXANDER HAMILTON
21 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Uma União Firme será da maior importância para a paz


e liberdade dos Estados, como uma barreira contra as facções
e insurreições internas. É impossível ler a história das pequenas
repúblicas da Grécia e da Itália sem um sentimento de horror
e desgosto pelas loucuras com que eram continuamente agi-
tadas, e com a rápida sucessão de revoluções em consequência
das quais eram mantidas num estado de perpétua vibração
entre os extremos da tirania e da anarquia. Se é verdade que
atravessam calmarias ocasionais, estas servem apenas como
um contraste de curta duração com as furiosas tempestades
que lhes vieram a suceder. Se é verdade que vemos, de vez
em quando, abrirem-se intervalos de felicidade, contemplamo-

* Do The !~Jdependentjournal, 21 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado no mesmo dia no The Daily Advertiser e em 23 de Novembro no
The New-York Packet. QC) .

[109]
-los com uma mistura de mágoa, brotando da reflexão que
as cenas agradáveis diante de nós em breve serão submersas
pelas vagas tempestuosas da sedição e do furor partidário. Se
irrompem das trevas momentâneos raios de glória, embora
nos ofusquem com um brilho transitório e fugaz, eles exortam-
-nos ao mesmo tempo a lamentar que os vícios da governação
tivessem pervertido a direcção e manchado o esplendor desses
brilhantes talentos e exaltados dons pelos quais a favorecida
terra que os produziu foi tão justamente celebrada.
Nas desordens que desfiguram os anais daquelas repúblicas
colheram os defensores do despotismo os seus argumentos,
não só contra as formas de governo republicano, mas contra
os próprios princípios da liberdade civil. Desacreditaram todos
os governos livres como inconsistentes com a ordem da
sociedade, e com maliciosa exultação, regozijaram-se perante
os seus amigos e sequazes. Felizmente para a humanidade, as
estupendas estruturas erguidas com base na liberdade, que
floresceram durante séculos, refutaram, em alguns casos glo-
riosos, os seus obscuros sofismas. E acredito que a América
venha a ser a ampla e sólida fundação de outros edifícios, não
menos magnificentes, que serão também as pedras tumulares
definitivas dos erros deles.
Mas não se pode negar que os retratos que esboçaram do
governo republicano eram cópias demasiado perfeitas dos ori-
ginais dos quais foram tiradas. Se tivesse sido julgado imprati-
cável ter ideado modelos de uma estrutura mais perfeita, os
esclarecidos amigos da liberdade teriam sido obrigados a
abandonar a causa dessa espécie de governo como indefensável.
A ciência da política, todavia, como muitas outras ciências,
teve um enorme progresso. Compreende-se bem agora a
eficácia de vários princípios, princípios que eram totalmente
ou imperfeitamente conhecidos dos antigos. A distribuição
regular do poder por departamentos distintos, a introdução
de balanços e controlos legislativos, a instituição de tribunais
compostos por juízes que detêm os seus cargos enquanto bem

[110]
cumprirem, a representação do povo na legislatura por
deputados que ele próprio elegeu, tudo isto são descobertas
inteiramente novas, ou que tiveram nos tempos modernos o
seu principal progresso em direcção à perfeição. Existem meios,
e meios poderosos, pelos quais as excelências do governo
republicano podem ser preservadas e as suas imperfeições
diminuídas ou evitadas. A este catálogo de circunstância que
tendem para o aperfeiçoamento dos sistemas populares de
governo civil, aventurar-me-ei, por mais original que possa
parecer a alguns, a acrescentar mais uma, acerca de um prin-
cípio que foi apresentado como fundamento de uma objecção
à nova Constituição: refiro-me ao ALARGAMENTO da ÓRBITA
em que tais sistemas se devem mover, quer a respeito das
dimensões de um Estado singular quer da consolidação de
vários Estados mais pequenos numa grande Confederação.
O último caso é o que respeita imediatamente ao assunto que
estamos a considerar. Todavia, será útil examinar o princípio
na sua aplicação a um Estado singular, que será tratada noutro
lugar. 1
A utilidade de uma Confederação, tanto para suprimir as
facções e proteger a tranquilidade interna dos Estados, como
para aumentar a sua força e segurança externas, não é na reali-
dade uma ideia nova. Foi praticada em diferentes países e
épocas, e recebeu a sanção dos mais aplaudidos escritores
sobre assuntos políticos. Os opositores do plano proposto têm,
com grande assiduidade, citado e difundido as observações
de Montesquieu acerca da necessidade de um território
reduzido para haver governo republicano. Mas não parecem
estar informados acerca dos sentimentos que o grande homem
exprimiu noutra parte da sua obra , nem dar atenção às
consequências do princípio que subscrevem com tão pronta
aquiescência.

1 Ver Artigos 10 e 14. QC) .

[111)
Quando Montesquieu recomenda uma pequena extensão
territorial para as repúblicas, os exemplos que tinha em vista
eram de dimensões muito mais pequenas do que os limites
de qualquer dos nossos Estados. Nem a Virgínia, Massachusetts,
Pensilvânia, Nova Iorque, Carolina do Norte, nem a Geórgia
podem de maneira nenhuma ser comparados com os modelos
a partir dos quais ele raciocinou e aos quais se aplicam os ter-
mos da sua descrição. Por esse motivo, se tomarmos as ideias
dele acerca deste ponto como critério de verdade, seremos
arrastados para a alternativa de nos refugiarmos imediatamente
nos braços da monarquia, ou de nos dividirmos numa infini-
dade de comunidades pequenas, invejosas, conflituosas e
tumultuosas, deploráveis viveiros de discórdia incessante, e
miseráveis objectos da piedade ou do desprezo universais.
Alguns dos escritores que defenderam o outro lado da questão
parecem ter estado conscientes do dilema e chegaram mesmo
a ser suficientemente ousados para insinuar a divisão dos
Estados mais vastos como uma coisa desejável. Uma política
insensata desse tipo, um expediente desesperado como esse,
poderiam, pela multiplicação de cargos menores, atender aos
desígnios de homens que não possuem qualificações para
alargar a sua influência para lá dos estreitos círculos da intriga
pessoal, mas nunca poderia promover a grandeza ou felicidade
do povo da América.
Remetendo o exame do próprio princípio para outro
lugar, como já foi mencionado, será suficiente observar aqui
que, no sentido que lhe deu o autor que foi mais enfaticamente
citado a este respeito, ele apenas ditaria uma redu ção do
TAMANHO dos MEMBROS mais consideráveis da União; mas
não militaria contra o facto de eles estarem todos abrangidos
por um único Governo Confederado. E esta é a verdadeira
questão, em cuja discussão estamos presentemente interessados.
Tão distantes estão as sugestões de Montesquieu de estarem
em oposição a uma União geral dos Estados, que ele encara
explicitamente uma república confederada como o meio de

[112]
alargar a esfera do governo popular e reconciliar as vantagens
da monarquia com as do republicanismo.
"É muito provável" diz ele2 "que a humanidade tivesse
acabado por ser obrigada a viver constantemente sob o governo
de uma só pessoa, se não tivesse imaginado um tipo de
Constituição que tem todas as vantagens internas do governo
republicano, juntamente com a força externa do governo
monárquico. Quero referir-me à REPÚBLICA CONFEDERADA3.
Esta forma de governo é uma convenção pela qual vários
Estados mais pequenos acordam em tornar-se membros de
um só Estado mais vasto, que pretendem criar. É uma espécie
de reunião de sociedades constituindo uma sociedade nova,
capaz de crescer, graças a novas adesões, até que chegue a um
tal gra de força que seja capaz de providenciar a segurança
do corpo unido. 4
Uma república segundo este modelo, capaz de enfrentar
uma força exterior, pode sustentar-se a si mesma sem qualquer
corrupção interna. A forma desta sociedade impede todo o
tipo de inconvenientes.
Se m só membro viesse a tentar usurpar a autoridade
suprema, não poderia esperar-se que tivesse igual autoridade
e crédito em todos os Estados confederados. Se tivesse uma
influência demasiado grande sobre um deles, isso alarmaria
os restantes. Se viesse a submeter uma parte, os que perma-
necessem livres poderiam opor-se-lhe com forças indepen-
dentes das daqueles que tivesse usurpado e dominá-lo antes
que pudesse consumar a sua usurpação.

2 "Spirit of LAws", vol. 1., Livro IX., cap. I. (Publius).


3 N o texto francês original o conceito usado por Montesquieu é o de
"république féderative" (república fed erativa), o que parece confirmar a
utilização indiferenciada, no final do século XVIII, dos conceitos de federação
e confederação, mesmo numa obra como «Ü Federalista•). (E. P.)
4 Esta frase final na versão inglesa não encontra correspondência no texto
francês: "till they arrive to such a degree of power as to be able to provi de for
the security of the united body." (E . P.)

[113]
Se ocorrer uma insurreição popular num dos Estados
confederados, os outros têm capacidade para dominá-la. Se
os abusos se infiltrarem numa parte, serão corrigidos por
aqueles que permanecem sãos. O Estado pode ser destruído
de um lado, e não de outro; a confederação pode ser dissolvida,
e os [Estados] confederados podem preservar a sua soberania.
Como este governo é composto por pequenas repúblicas,
desfruta da felicidade interna de cada uma delas e, com respeito
à sua situação externa, está de posse, por meio da associação,
de todas as vantagens das grandes monarquias."
Julguei conveniente citar na íntegra estas interessantes
passagens, porque contêm um claríssimo resumo dos principais
argumentos a favor da União, e devem afastar eficazmente as
falsas impressões que houve a intenção de produzir com uma
errada aplicação de outras partes da obra. Ao mesmo tempo,
apresentam uma íntima conexão com o desígnio mais imediato
deste artigo, que é ilustrar a tendência da União para reprimir
as facções e as insurreições internas.
Foi apresentada uma distinção, mais subtil do que exacta,
entre uma confederação e uma consolidação dos Estados. Afirma-
-se que a característica essencial da primeira é a restrição da
sua autoridade aos membros na sua qualidade colectiva, sem
chegar aos indivíduos de que eles são compostos. Argumen-
ta-se que a assembleia nacional não devia ter intervenção em
nenhum assunto da administração interna. Insiste-se também
numa exacta igualdade de sufrágio entre os membros como
sendo uma característica importante de um Governo Confe-
derado. Estas posições são, de uma maneira geral, arbitrárias;
não têm o apoio nem de um princípio nem de precedentes.
De facto aconteceu que governos deste tipo agiram em geral
da maneira que a distinção observada supõe ser inerente à sua
natureza- mas houve na maior parte deles numerosas excep-
ções a essa prática que servem para provar, tanto quanto o
exemplo o permite, que não há regra absoluta nessa matéria.
E será claramente mostrado no decurso desta análise que, na

[114]
medida em que prevaleceu, o princípio defendido foi a causa
de confusão e imbecilidade incuráveis no governo.
A definição de uma República Confederada parece ser
simplesmente "urna reunião de sociedades," ou urna associação
de um ou mais Estados num só Estado. A extensão, as modi-
ficações e os objectos da autoridade federal são meras questões
de prudência. Desde que não seja abolida a organização inde-
pendente dos membros, desde que e ta última exista, por uma
neces idade constitucional, para fins locais, embora deva estar
perfeitamente subordinada à autoridade geral da união, será
ainda, de facto e na teoria, uma associação de Estados, ou
uma confederação. A Constituição proposta, longe de implicar
uma abolição dos governos dos Estados, faz deles partes
constituintes da soberania nacional, concedendo-lhes uma
representação directa no Senado, e deixa na posse deles certas
partes exclusivas e muito importantes do poder soberano. Isto
corresponde inteiramente, em todos os significados racionai
dos termos, à ideia de um governo federal.
Na confederação da Lícia, que consistia em vinte e três
CIDADES ou repúblicas, as maiores tinham direito a três votos
no ONSELHO GERAL, as da classe intermédia a dois, e as mais
pequenas a um. Ao CONSELHO GERAL cabia designar todos os
juíze e magistrados das respectivas CIDADES. Esta era certa-
mente a mais delicada espécie de interferência na administração
interna daquelas, porque, se existe alguma coisa que parece
exclusivamente apropriada para as jurisdições locais, é a desig-
nação do seus próprios funcionários. E todavia Montesquieu,
falando dessa associação, diz: "Se eu tivesse que dar um modelo
de uma excelente República Confederada, seria a da Lícia."
Assim percebemos que as distinções em que se insiste não
estavam incluídas na contemplação desse esclarecido civilista,
e seremos levados a concluir que elas são novos refinamentos
de uma teoria errada.
PUBLIUS.

[115]
O FEDERALISTA N." 10

A Utilidade da União como Salvaguarda


contra a Facção e Insurreições Domésticas
(continuação)

JAMES MADISON
22 de Novembro de 1781

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

ENTRE as numerosas vantagens prometidas por uma


União bem idealizada, nenhuma merece ser mais meticulosa-
mente desenvolvida do que a sua tendência para quebrar e
controlar a violência das facções. O adepto de governos popu-
lares nunca fica mais alarmado quanto ao carácter e destino
deles do que quando contempla a sua propensão para este
perigoso vício. Não deixará, portanto, de atribuir o devido
valor a qualquer plano que, sem violar os princípios aos quais
se devota, providencia um remédio adequado. A instabilidade,
a injustiça e a confusão introduzidas nos conselhos públicos
têm sido, na verdade, doenças mortais sob cujos golpes os

* Do The Daily Advertiser, 22 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado no TI1e New York Packet em 23 de Novembro e no The Independent
j ournal em 24 de Novembro. (JC).

[117]
governos populares por todo o lado pereceram, tal como
continuam a ser os tópicos favoritos e frutíferos de que os
adversários da liberdade extraem as suas mais ardilosas decla-
mações. Os valiosos aperfeiçoamentos introduzidos pelas
Constituições americanas nos modelos mais populares, tanto
antigos como modernos, certamente que não podem ser
admirados em demasia, mas seria urna injustificável parcialidade
argumentar que têm evitado o perigo vindo deste lado tão
eficazmente como era desejado e esperado!. Ouvem-se por
todo o lado queixas dos nossos mais considerados e virtuosos
cidadãos, igualmente amigos da honestidade pública e privada,
e da liberdade pública e pessoal: que os nossos governos são
demasiado instáveis; que o bem público é menosprezado nos
conflitos de partidos rivais; e que as medidas são com demasiada
frequência decididas, não de acordo com as normas da justiça
e com os direitos do partido minoritário, mas pela força supe-
rior de uma maioria interessada e opressora. Por mais ansiosa-
mente que possamos desejar que essas queixas não tenham
fundamento, a evidência dos factos conhecidos não nos permite
negar que elas sejam em parte verdadeiras. É verdade que,
num simples reexame da nossa situação, descobriremos que
algumas das aflições que nos esmagam foram erradamente
imputadas à operação dos nossos governos; mas descobriremos,
ao mesmo tempo, que outras causas não explicam por si sós
muitas das nossas mais pesadas desditas, e, em particular, essa
prevalecente e crescente desconfiança face às obrigações
públicas, e inquietação relativamente aos direitos privados,
que ecoam de uma ponta à outra do continente. Isto deve
ser principalmente, se não totalmente, o efeito da instabilidade
e injustiça com que um espírito faccioso tingiu as nossas
administrações públicas.

1 O debate constitucional nos EUA em 1787, ou hoje, não pode ser


confinado ao simples plano federal, já que os Estados possuem leis fundamentais
próprias. (E. P.).

[118]
Por facção entendo um determinado número de cida-
dãos, q er constituam uma maioria ou uma minoria face ao
todo, que são unidos e animados por algum impulso comum
de paixão, ou de interesse, adverso aos direitos dos outros
cidadãos, ou aos interesses permanentes e globais da comu-
nidade.
Existem dois métodos para remediar os males das facções :
um, eliminar as suas causas; outro, controlar os seus efeitos.
Por sua vez, existem dois métodos de eliminar as causas
das facções: um, destruindo a liberdade que é essencial para
a existência delas; outro, dando a cada cidadão as mesmas
opiniões, as mesmas paixões e os mesmos interesses.
Do primeiro remédio, nada mais verdadeiro se pode afirmar
do que ser ele pior do que a doença. A liberdade está para as
facções como o ar está para o fogo, um alimento sem o qual
ele instantaneamente se extingue. Mas não seria menor loucura
abolir a liberdade, porque alimenta as facções, do que desejar
a supressão do ar, que é essencial à vida animal, só porque ele
dá ao fogo a sua capacidade destruidora.
O segundo recurso é tão impraticável como o primeiro
seria insensato. Enquanto a razão humana continuar a ser
falível e o homem tiver a liberdade de exercê-la, formar-se-
-ão diferentes opiniões. Enquanto subsistir a conexão entre
a sua razão e o seu amor-próprio, as suas opiniões e as suas
paixões influenciar-se-ão reciprocamente umas às outras e
as primeiras serão objectos aos quais as últimas se afeiçoarão.
A diversidade das faculdades humanas, em que têm origem
os direitos de propriedade, não é menos um obstáculo insu-
perável a uma uniformidade de interesses. A protecção dessas
faculdades é o primeiro objectivo do governo. Da protecção
de faculdades diferentes e desiguais de adquirir propriedade
resulta imediatamente a posse de diferentes graus e espécies
de propriedade; e da influência destes nos sentimentos e pontos
de vista dos respectivos proprietários segue-se uma divisão da
sociedade em diferentes interesses e partidos.

[119]
As causas latentes de facção estão assim disseminadas na
natureza do homem e vemo-las por toda a parte conduzidas
a diferentes graus de actividade, segundo as diferentes
circunstâncias da sociedade civil: um desvelo por diferentes
opiniões a respeito da religião, a respeito do governo, e muitos
outros pontos, tanto na especulação como na prática; uma
fidelidade a diferentes chefes, competindo por preeminência
e poder, ou a pessoas de outros géneros cuja sorte foi inte-
ressante para as paixões humanas. Estas causas têm, sucessiva-
mente, dividido a humanidade em partidos, inflamado estes
com uma animosidade mútua, e têm-nos tornado muito mais
dispostos para provocar e oprimir-se mutuamente do que para
cooperar para o bem comum de todos. Tão forte é esta pro-
pensão da humanidade para cair em animosidades mútuas
que, quando não se apresenta nenhuma razão de peso, foram
suficientes as mais frívolas e extravagantes distinções para
despertar paixões inamistosas e provocar os violentos conflitos.
Mas a mais comum e duradoura fonte de facções tem sido a
diversa e desigual distribuição de propriedade. Os que têm e
os que não têm propriedade constituíram sempre interesses
distintos na sociedade. Os que são credores e os que são deve-
dores enquadram-se numa discriminação semelhante. Um
interesse terratenente, um interesse manufactureiro, um inte-
resse mercantil, um interesse financeiro, com muitos interesses
menores, desenvolvem-se todos necessariamente nas nações
civilizadas, e dividem-nas em diferentes classes, movidas por
diferentes sentimentos e pontos de vista. A regulamentação
destes interesses, vários e em interferência, constitui a tarefa
principal da Legislação moderna, e envolve o espírito de par-
tido e de facção nas necessárias e ordinárias operações do
governo.
A ninguém é permitido que seja juiz em causa própria,
porque o seu interesse decerto que influenciaria o seu discer-
nimento, e não é improvável que corrompesse a sua integri-
dade. Com igual, mais ainda, com maior razão, uma assembleia

[120]
de homens não serve para ser simultaneamente juiz e parte.
E, todavia, o que são muitos dos mais importantes actos de
legislação senão outras tantas determinações judiciais, que na
verdade não respeitam aos direitos de pessoas singulares, mas
respeitam aos direitos de vastos grupos de cidadãos? E o que
são as diferentes classes de legisladores senão advogados e
partes nas causas que eles próprios decidem? É uma lei respei-
tante a dívidas privadas? Trata-se de uma questão em que os
credores estão de um lado e os devedores do outro. A justiça
deve manter o equilíbrio entre eles. E, todavia, os partidos
são, e devem ser, os próprios juízes, e deve esperar-se que
prevaleça o partido mais numeroso, ou, por outras palavras,
a facção mais poderosa. Devem as manufacturas domésticas
ser encorajadas, e em que medida, por meio de restrições
aplicadas às manufacturas estrangeiras? São perguntas que
serão decididas de maneira diferente pelas classes terratenentes
e manufactureiras, e é provável que nenhuma delas considere
apenas a justiça e o bem público. A distribuição dos impostos
pelos vários tipos de bens é um acto que parece requerer a
mais rigorosa imparcialidade; e, todavia, talvez não haja acto
legislativo em que sejam dadas ao partido predominante tanta
oportunidade e tanta tentação para menosprezar as regras da
justiça. Cada centavo com que sobrecarregam os de menos
posses é um centavo poupado para as próprias algibeiras.
É em vão que se diz que os estadistas esclarecidos serão
capazes de harmonizar estes interesses desencontrados, e de
os tornar a todos subservientes do bem público. Nem sempre
estarão ao leme estadistas esclarecidos. E em muitos casos é
absolutamente impossível conseguir essa harmonização sem
ter em atenção considerações indirectas e remotas, que
raramente prevalecerão sobre o interesse imediato que um
partido pode obter por menosprezar os direitos de outro ou
o bem de todos.
A inferência a que somos conduzidos é a de que as
causas da facção não podem ser eliminadas; e que o lenitivo

[121]
só pode ser procurado nos meios para controlar os seus
efeítos2 •
Se uma facção não tem a maioria, o lenitivo é fornecido
pelo princípio republicano, que permite à maioria derrotar os
sinistros planos das facções através de votações regulares.
A facção pode emperrar a administração, pode convulsionar
a sociedade, mas será incapaz de fazê-lo mascarando a sua vio-
lência sob as formas da Constituição. Por outro lado, quando
a facção possui a maioria, a forma de governo popular permite-
-lhe sacrificar à sua paixão ou interesse, tanto o bem público
como os direitos dos outros cidadãos. Proteger o bem público
e os direitos privados contra o perigo de uma facção desse
tipo, e preservar simultaneamente o espírito e a forma do go-
verno popular é, pois, o grande objectivo para que se orientam
as nossas investigações. Deixem-me acrescentar que é o grande
desiderato, o único por meio do qual esta forma de governo
pode ser salva do opróbrio que tão longamente pesou sobre
ela, e ser recomendada à estima e à escolha da humanidade.
Por que meios se pode atingir este objectivo? Evidente-
mente por um de entre dois únicos meios. Ou a existência
ao mesmo tempo da mesma paixão ou interesse numa maioria
tem de ser impedida; ou a maioria, tendo essa paixão ou inte-
resse coexistente, tem de ser, por meio do seu número e
situação local, tornada incapaz de se concertar e levar a efeito
esquemas de opressão. Se for tolerado que coincidam o impulso
e a oportunidade, sabemos bem que não se poderá confiar
em motivos morais ou religiosos como constituindo um
controlo adequado. Estes não funcionam assim na injustiça e
violência dos indivíduos, e perdem a sua eficácia em proporção

2 Através da sua teoria das facções, Madison defende uma concepção de


interesse comum determinada por uma interpretação profundamente pluralista
da essência da sociedade humana . A uma imensa distância encontra-se a con-
cepção de sociedade unitária contida nas teses de Rousseau acerca da "vontade
geral" , expostas no Contrato Social (1762). (E. P.) .

[122]
ao número dos que juntamente se reúnem, isto é, na proporção
em que a sua eficácia se torna necessária.
Desta maneira de ver o assunto pode ser concluído que
uma Democracia pura, termo com que pretendo referir-me
a uma sociedade consistindo num pequeno número de
cidadãos, que se reúnem e administram o governo em pessoa,
não pode admitir um remédio para as acções prejudiciais das
facções. Em quase todos os casos, uma maioria do todo sentirá
uma paixão ou terá um interesse comum; a comunicação e
a concertação resultam da própria forma do Governo; e não
existe nada para manter em respeito os incitamentos a sacrificar
o partido mais fraco ou um indivíduo odioso. Por isso é que
essas democracias deram sempre um espectáculo de turbulência
e discórdia, e nunca foram consideradas compatíveis com a
segurança pessoal ou os direitos de propriedade, e tiveram
em geral vidas tão curtas como violentas foram as suas mor-
tes. Os políticos teóricos, que patrocinaram essa espécie de
governo, supuseram erradamente que, dando aos homens
uma perfeita igualdade de direitos políticos, estes ficariam, ao
mesmo tempo, perfeitamente igualizados e assimilados nos
bens, nas opiniões e nas paixões.
Urna República, e refiro-me a um governo no qual existe
o esquema de representação, abre uma perspectiva diferente,
e promete o remédio que temos estado a procurar. Examine-
mos os pontos nos quais ela varia em relação à Democracia
pura, e compreenderemos tanto a natureza do remédio como
a eficácia que terá, derivada da União.
Os dois grandes pontos de diferença entre uma Democracia
e uma República são, primeiro, a delegação do governo, na
última, a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos
restantes; segundo, a maior quantidade de cidadãos e a maior
esfera de território sobre o qual a última se pode estender3 .

3 A demarcação, efectuada por M actison, entre democracia (tendo como


referência os paradigmas arcaicos da Antiguidade) e República, a partir do

[123]
O efeito da primeira diferença é, por um lado, refinar e
ampliar os pontos de vista do público, filtrando-os através de
uma assembleia escolhida de cidadãos, cuja sageza pode
discernir melhor o verdadeiro interesse do seu país, e cujo
patriotismo e amor da justiça terá menor probabilidade de
sacrificar esse interesse a considerações temporárias ou parciais.
Com tais normas, pode muito bem acontecer que a opinião
pública, expressa pelos representantes do povo, seja mais
consonante com o bem público do que se fosse expressa pelo
próprio povo, reunido para o efeito. Por outro lado, o efeito
pode ser inverso. Os homens de temperamento faccioso, com
preconceitos locais, ou com desígnios sinistros, podem, por
meio da intriga, da corrupção ou de outros meios, começar
por obter os sufrágios, e em seguida trair os interesses, do
povo. A questão resultante é saber se as repúblicas pequenas
são mais favoráveis do que as grandes à eleição dos guardiães
adequados do bem-estar público, e é claramente decidida em
favor das últimas por causa de duas considerações óbvias.
Em primeiro lugar, deve notar-se que, por mais pequena
que possa ser a república, os representantes não devem ser
demasiado poucos, de maneira a precaver contra as cabalas
de urna minoria; e que, por maior que possa ser, devem ser
limitados a um certo número, de maneira a precaver o tumulto
das multidões. Por este motivo, não sendo o número de
representantes nos dois casos proporcional ao número dos
constituintes, e sendo proporcionalmente maior na república
pequena, segue-se que, se a proporção de pessoas capazes na
república maior não for inferior à da mais pequena, a primeira
oferecerá mais opções, e, consequentemente, uma maior
probabilidade de uma boa escolha.
Em seguida, como cada representante será escolhido por
um maior número de cidadãos na república grande em

lugar crucial de uma teoria da representação política, será partilhada por Kant
nos seus escritos políticos da década de 1790. (E. P.).

[124]
comparação com a república pequena, será mais árduo para
os candidatos sem mérito a prática com sucesso das artes
viciosas por meio das quais as eleições são tantas vezes ganhas;
e sendo mais livres os sufrágios do povo, será mais provável
que se centrem em homens que possuem o mais atraente dos
méritos e as personalidades mais expansivas e dotadas.
Deve confessar-se que nisto, como em muitos outros casos,
há um termo médio, em ambos os lados do qual se encontrarão
inconvenientes. Alargando demasiado o número de eleitores,
faz-se com que os representantes estejam pouco familiarizados
com todas as suas circunstâncias locais e interesses menos
importantes; tal como, reduzindo-os demasiado, se tornam
aqueles indevidamente afectos a essas circunstâncias e interesses,
e muito pouco capazes para compreender e promover objec-
tivos grandes e nacionais. A Constituição federal constitui
uma feliz combinação a este respeito; os interesses grandes e
globais ão confiados à legislatura nacional, os locais e parti-
culares às dos Estados.
O outro ponto de diferença é que o número de cidadãos
e a extensão de território que podem ser abrangidos pelo
Governo Republicano são maiores do que pelo Governo
Democrático, e é principalmente esta circunstância que torna
a combinação facciosa menos de temer no primeiro caso do
que no segundo. Quanto menor é a sociedade, menores serão
provavelmente os partidos e interesses distintos que a com-
põem; quanto menores os partidos e interesses distintos, mais
frequentemente será encontrada uma maioria de um só partido;
e quanto menor o número de indivíduos que formam uma
maioria e menor a área em que estão situados, mais facilmente
se concertarão e executarão os seus planos de opressão. Alargue-
-se a esfera e admitir-se-á nela uma maior variedade de partidos
e interesses; far-se-á com que seja menos provável que uma
maioria venha a ter um motivo comum para usurpar os direitos
dos outros cidadãos; ou, se existir um tal motivo comum, será
mais dificil para todos os que o sentem a descoberta da sua

[125]
própria força, e a actuação em uníssono uns com os outros.
Além de outros impedimentos, pode observar-se que, onde
existe uma consciência de desígnios injustos ou desonrosos,
a comunicação é sempre contida pela desconfiança na propor-
ção do número daqueles cuja concorrência é necessária.
Por este motivo, é claramente patente que a mesma vanta-
gem que uma República tem sobre uma Democracia, no
controlo dos efeitos da facção, é desfrutada por uma grande
República mais do que por uma pequena- é desfrutada pela
União mais do que pelos Estados que a compõem. Consiste
esta vantagem na substituição dos Representantes, cujos pontos
de vista esclarecidos os põem acima dos preconceitos locais
e dos esquemas de injustiça? Não se negará que a R epresen-
tação da União possuirá provavelmente esses dotes indispensá-
veis. Consiste na maior segurança proporcionada por uma
maior variedade de partidos, contra a eventualidade de um
partido qualquer ser capaz de exceder em número e oprimir
os restantes? A acrescida variedade de partidos abrangida pela
União aumentará em igual medida essa segurança. Consiste,
por fim, nos maiores obstáculos opostos à concertação e
realização dos desejos secretos de uma maioria injusta e inte-
resseira? Aqui, uma vez mais, a extensão da União dá-lhe a
vantagem mais palpável.
A influência de chefes facciosos pode despertar uma chama
no interior dos seus Estados particulares, mas será incapaz de
espalhar uma conflagração generalizada através dos outros
Estados; uma seita religiosa pode degenerar numa facção
política numa parte da Confederação; mas a variedade de
seitas dispersas por toda a superficie dela deve proteger as
assembleias nacionais contra qualquer perigo com essa origem;
uma paixão pelo papel-moeda, pela abolição das dívidas, pela
igual divisão da propriedade, ou por qualquer outro projecto
impróprio ou malévolo, será menos capaz de se infiltrar na
totalidade do corpo da União do que num membro particular
dela; na mesma proporção em que uma doença dessas infecta

[126]
um condado ou distrito particular mais provavelmente do
que um Estado inteiro.
Por conseguinte, na extensão e conveniente estrutura da
União contemplamos um remédio Republicano para as
doenças que mais afectam o Governo R epublicano. E confor-
memente ao grau de prazer e orgulho que sentimos em ser
Republicanos, assim deveria ser o nosso desvelo em acalentar
o espírito e apoiar a reputação dos Federalistas.
PUBLIUS.

[127]
O FEDERALISTA N.• 11

A utilidade da União no que respeita


às Relações Comerciais e a uma Marinha

ALEXANDER HAMILTON
24 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A importância da União no aspecto comercial é um dos


pontos acerca dos quais há menos margem para sustentar uma
diferença de opinião, e tem, de facto, obtido o mais geral
assentimento de homens que têm algum conhecimento do
assunto. Isto aplica-se tanto à nossa relação com países estran-
geiros como à relação de uns com os outros.
Existem indícios que autorizam a supor que o espírito de
iniciativa, que distingue o carácter comercial da América, já
despertou sentimentos de preocupação em várias potências
marítimas da Europa. Estas parecem receosas da nossa inter-
ferência demasiado grande no negócio do transporte que é
o suporte da sua navegação e o alicerce do seu poderio naval.

* Do TI1e lndependent ]orirnal, 24 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 27 de Novembro no The New York Packet. Foi iniciado no TI1e
Daily Advertiser em 27 de N ovembro e concluido em 28 de Novembro. QC).

[129]
As que têm colónias na América procuram prever com ansiosa
solicitude aquilo em que este país é capaz de se tornar. Ante-
vêem os perigos que podem ameaçar os seus domínios
americanos, derivados da vizinhança de Estados que têm todas
as intenções, e possuiriam todos os meios indispensáveis para
isso, de criar uma marinha poderosa. Impressões desta natureza
recomendarão naturalmente urna política que alimente divisões
entre nós, e nos prive, tanto quanto possível, de um COMÉRCIO
ACTIVO nos nossos próprios navios. Isto responderia ao triplo
objectivo de impedir a nossa interferência na navegação, de
monopolizar os lucros do nosso comércio, e de cortar as asas
com que poderíamos ascender a uma perigosa grandeza. Se
a prudência não interditasse as minudências, não seria dificil
seguir o rastro, através dos factos, das manobras desta política
até aos gabinetes ministeriais.
Se continuarmos unidos, podemos neutralizar de variadas
maneiras uma política tão inamistosa para com a nossa pros-
peridade. Através de normas de proibição, abrangendo
simultaneamente todos os Estados, podemos obrigar os países
estrangeiros a licitarem uns contra os outros pelos privilégios
dos nossos mercados. Esta afirmação não parecerá quimérica
aos que são capazes de apreciar a importância de um mercado
de três milhões de pessoas - crescendo em rápida progressão,
na sua maior parte exclusivamente dedicados à agricultura, e
susceptíveis de permanecer assim devido a circunstâncias locais
- para qualquer nação manufactureira, e a imensa diferença
que existiria para o comércio e navegação de urna nação assim,
entre uma condução directa nos seus próprios navios, e um
transporte indirecto dos seus produtos e proveitos, para e da
América, nos navios de outro país. Suponham, por exemplo,
que tínhamos na América um governo capaz de excluir a
Grã-Bretanha (com a qual não temos presentemente nenhum
tratado de comércio) de todos os nossos portos. Qual seria o
efeito provável deste passo sobre a política dela? Isso não nos
permitiria negociar, com as melhores perspectivas de sucesso,

[130]
privilégios comerciais do tipo mais valioso e mais extenso
com os domínios desse reino? Quando estas perguntas foram
postas, em outras ocasiões, receberam uma resposta plausível,
mas não sólida ou satisfatória. Disse-se que as proibições da
nossa parte não produziriam qualquer mudança no sistema
da Grã-Bretanha, porque ela podia prosseguir o seu comércio
connosco usando como intermediários os holandeses, que
seriam os seus clientes e pagadores imediatos desses artigos
que faziam falta para abastecer os nossos mercados. Mas não
seria a navegação da Grã-Bretanha substancialmente prejudi-
cada pela perda da importante vantagem de ser a sua própria
transportadora nesse comércio? A parte principal dos seus
lucros não seria interceptada pelos holandeses, como uma
compensação pelo seu papel e pelo seu risco? A mera circuns-
tância do frete não seria ocasião para uma dedução conside-
rável? Um intercâmbio tão sinuoso não facilitaria a competição
de outras nações , aumentando o preço das mercadorias
britânicas nos nossos mercados, e transferindo para outras
mãos a gestão deste interessante ramo do comércio bri-
tânico?
Um exame cuidadoso dos objectos sugeridos por estas
questões justificará a convicção de que as efectivas desvantagens
para a Grã-Bretanha desse estado de coisas, conspirando com
as predisposições de uma grande parte da nação em favor do
comércio americano, e com as importunidades das ilhas das
Índias Ocidentais, produziria um relaxamento do seu sistema
actual, e permitiria que desfrutássemos de privilégios nos
mercados dessas ilhas e noutros lugares, privilégios de que o
nosso comércio derivaria os mais substanciais benefícios. Uma
vantagem destas, às custas do governo britânico, e que não
podia er conseguida sem um equivalente em isenções e
imunidades nos nossos mercados, teria provavelmente um
efeito correspondente na conduta das outras nações, que não
se sentiriam dispostas a ver-se completamente suplantadas no
nosso comércio.

[131]
A este respeito, um recurso adicional para influenciar a
conduta das nações europeias em relação a nós decorreria da
criação de uma marinha federal. Não pode haver dúvida de
que a continuação da União sob um governo eficiente poria
ao nosso alcance, num período não muito distante, a criação
de uma marinha que, se não pudesse competir com as das
grandes potências marítimas, teria pelo menos um peso
respeitável se lançada na balança de uma qualquer de duas
partes em conflito. Isso seria mais particularmente assim em
relação às operações nas Índias Ocidentais. Alguns navios de
linha, enviados oportunamente para reforço de um qualquer
dos lados, seriam com frequência suficientes para decidir o
destino de uma campanha, de cujo desenlace estivessem depen-
dentes interesses da maior importância. Neste aspecto, a nossa
posição é uma posição muito dominante. E se a esta conside-
ração adicionarmos a da utilidade dos suprimentos fornecidos
pelo nosso país na prossecução de operações militares nas
Indias Ocidentais, facilmente se perceberá que uma situação
tão favorável nos permitiria negociar privilégios comerciais
muito vantajosamente. Seria estabelecido um preço não só
para a nossa amizade, mas também para a nossa neutralidade.
Com uma adesão firme à União podemos esperar, dentro em
pouco, tornarmo-nos o Árbitro da Europa na América, e
sermos capazes de alterar o equilíbrio da concorrência euro-
peia nesta parte do mundo da maneira que o nosso interesse
possa ditar.
Mas no reverso desta situação favorável, descobriremos
que as rivalidades das partes fariam com que estas chegassem
a acordo umas com as outras, e frustraria todas as vantagens
tentadoras que a natureza generosamente pôs ao nosso alcance.
Num estado tão insignificante, o nosso comércio seria uma
presa para injustificadas interferências de todas as nações em
guerra umas com as outras, as quais, nada tendo a recear da
nossa parte, com pouco escrúpulo ou remorso se abastece-
riam do que lhes faltasse através de depredações dos nossos

[132]
bens todas as vezes que estes se atravessassem no seu caminho.
Os direitos de neutralidade só são respeitados quando são
defendidos por uma força adequada. Uma nação, desprezível
pelas suas fraquezas, perde o direito até de ser neutral.
Sob um governo nacional vigoroso, a força natural e os
recursos do nosso país, apontados a um interesse comum,
confundiriam todas as maquinações das invejas europeias para
restringir o nosso crescimento. Esta situação eliminaria mesmo
o motivo para essas maquinações, dando origem a uma
impraticabilidade de sucesso. Um comércio activo, uma
navegação vasta e uma marinha florescente seriam então o
efeito inevitável da necessidade moral e fisica. Poderíamos
opor-nos às mesquinhas artes dos politiqueiros para controlar
ou variar o irresistível e imutável curso da natureza.
Mas num estado de desunião, essas maquinações podem
existir e podem operar com sucesso. Estaria ao alcance das
nações marítimas, aproveitando-se da nossa impotência univer-
sal, prescrever as condições da nossa existência política; e como
têm um interesse comum em serem os nossos transportadores,
e mais ainda em impedir que nós sejamos os delas, é muito
provável que se concertassem para embaraçar a nossa navegação
de tal maneira que efectivamente a destruíssem, e nos confinas-
sem a um COMÉRCIO PASSIVO. Seríamos então obrigados a
contentar-nos com um preço mais baixo das nossas mercadorias,
e ver os lucros da nossa actividade serem-nos arrebatados para
enriquecer os nossos inimigos e perseguidores. Esse inigualado
espírito de iniciativa, que é o sinal distintivo do génio dos
M ercadores e Navegadores americanos, e que é em si mesmo
uma mina inexaurível de riqueza nacional, seria asfixiado e
perdido, e a pobreza e a desgraça cobririam um país que, com
sagacidade, podia fazer de si a admiração e inveja do mundo.
H á direitos de grande importância para o comércio da
América que são direitos da União. Refiro-me aos das pescas,

1 Ver Artigo 4. OC).

[133]
da navegação nos lagos ocidentais e no Mississipil. A dissolução
da Confederação daria margem a questões delicadas respeitantes
à existência futura desses direitos, que o interesse de parceiros
mais poderosos dificilmente deixaria de liquidar em nosso
detrimento. A disposição da Espanha em relação ao Mississipi
não precisa de comentário. A França e a Grã-Bretanha estão
preocupadas com as nossas pescas, e vêem-nas como da maior
importância para a sua navegação. É claro que elas dificilmente
permaneceriam indiferentes por muito tempo a esse domínio
decidido, que a experiência nos mostrou que é possuído neste
valioso ramo de comércio, e por meio do qual temos possibili-
dade de vender mais barato do que essas nações nos próprios
mercados delas. Que coisa é mais natural do que eles estarem
dispostos a excluir uns concorrentes tão perigosos?
Este ramo de comércio não deve ser considerado como
um beneficio parcial. Todos os Estados que possuem navegação
podem, em diferentes graus, participar vantajosamente nele
e em circunstâncias de uma maior expansão do capital mer-
cantil, não será improvável que o façam. Sendo desde já um
alfobre de marinheiros, tornar-se-á um recurso universal,
quando o tempo tiver assimilado melhor os princípios de
navegação nos diversos Estados . Para a fundação de uma
marinha ele é indispensável.
Para este grande objectivo nacional, uma MARINHA, a
União contribuirá de várias maneiras. Todas as instituições
crescerão e florescerão na proporção da quantidade e extensão
dos meios concentrados para a criação e manutenção dessa
marinha. Uma marinha dos Estados Unidos, dado que abran-
geria os recursos de todos, é um objectivo muito menos
remoto do que uma marinha de qualquer Estado singular ou
confederação parcial, que apenas abrangeria os recursos de
uma única parte. Sucede, na verdade, que cada uma das dife-
rentes porções da América confederada apresenta uma vanta-
gem particular para esta instituição essencial. Os Estados mais
ao sul têm em grande abundância certos tipos de suprimentos

[134]
navais - alcatrão, pez e terebentina. A sua madeira para constru-
ção de navios tem também uma textura mais sólida e durável.
A diferença na duração dos navios que integrarão a marinha,
se construídos principalmente com madeira do sul, será de
significativa importância, tendo em vista quer a força naval
quer a economia nacional. Alguns dos Estados do sul e do
centro produzem uma maior quantidade de ferro, e de melhor
qualidade. Os homens do mar devem ser principalmente
recrutados no viveiro do norte. A necessidade de protecção
naval par:a o comércio externo ou marítimo não exige maiores
esclarecimentos, o mesmo se passando para a contribuição
dessa espécie de comércio para a prosperidade de uma marinha.
Uma e outro, por uma espécie de reacção, beneficiam-se e
promovem-se mutuamente.
Um relacionamento sem restrições entre os próprios
Estados promoverá o comércio de cada um deles através da
permuta dos respectivos produtos, não só para suprir faltas
internas recíprocas, mas para exportação para mercados exter-
nos. Por toda a parte, os canais do comércio estarão repletos,
e adquirirão movimento e vigor adicionais graças a uma livre
circulação de mercadorias de todas as partes. A iniciativa
comercial terá muito maior alcance, dada a diversidade dos
produto dos diferentes Estados. Quando falta a matéria-prima
de um, por causa de uma má colheita ou deficiente produção
de cereais, ele pode chamar em seu auxílio a matéria-prima
de outro. A variedade dos produtos para exportação, não
menos do que o seu valor, contribui para a actividade do
comércio externo. Este pode ser muito melhor conduzido
com um grande número de materiais de um dado valor do
que com um pequeno número de materiais do mesmo valor;
e isto resulta da concorrência comercial e das flutuações dos
mercados. Certos artigos podem ter maior procura em certos
períodos, e serem impossíveis de vender noutros; mas se houver
uma variedade de artigos, dificilmente pode acontecer que
eles estejam todos ao mesmo tempo nesta última situação

[135)
difícil; e neste aspecto as operações do comerciante estarão
menos sujeitas a qualquer obstrução ou estagnação considerá-
veis. O negociante especulativo perceberá imediatamente o
peso destas observações e reconhecerá que a balança comercial
global dos Estados Unidos será provavelmente muito mais
favorável do que a dos treze Estados, sem união ou com uniões
parciaiS.
Pode talvez responder-se a isto que, quer os Estados estejam
unidos quer estejam desunidos, ainda existirá um íntimo
relacionamento entre eles que contribuirá para os mesmos
fins; mas esse relacionamento seria impedido, interrompido,
e coarctado por urna multiplicidade de causas que, no decorrer
destes artigos, têm sido amplamente expostas. Uma unidade
de interesses, comercial bem como política, só pode resultar
de uma unidade de governo.
Existem outros pontos de vista em que este assunto pode
ser abordado de uma maneira mais impressionante e mais
estimulante. Mas levar-nos-iam demasiado longe para os
domínios dos acontecimentos futuros, e envolveriam tópicos
que não são apropriados para uma discussão nos jornais.
Observarei concisamente que a nossa situação nos convida e
o nosso interesse nos impele para almejar um predomínio no
sistema dos negócios americanos. O mundo pode ser dividido
politicamente, tal como geograficamente, em quatro partes,
cada uma delas com um conjunto distinto de interesses. Infeliz-
mente para as outras três, a Europa, com os seus exércitos e
com as suas negociações, pela força e pela fraude, estendeu,
em diversos graus, o seu domínio sobre todas elas. A África,
a Ásia e a América sentiram sucessivamente a dominação da
Europa. A superioridade, que durante tanto tempo manteve,
deu-lhe a tentação de se vangloriar de ser a Senhora do Mundo,
e de considerar o resto da humanidade como tendo sido criado
para seu benefício. Homens admirados como profundos filóso-
fos atribuíram, em palavras inequívocas, uma superioridade
física aos seus habitantes, e afirmaram gravemente que todos

[136]
os animais, e com eles a espécie humana, degeneram na Amé-
rica - que até os cães deixam de ladrar depois de terem
respirado por um pouco a nossa atmosfera .2 Os factos apoia-
ram durante demasiado tempo estas arrogantes pretensões dos
europeus. Cabe-nos a nós reivindicar a honra do género
humano, e ensinar moderação a esse irmão pretensioso.
A União permitir-nos-á fazê-lo. A desunião acrescentará mais
uma vítima àqueles triunfos. Que os americanos desdenhem
de ser os instrumentos da grandeza europeia! Que os treze
Estados, agregados numa estrita e indissolúvel União, concor-
ram para edificar um grande sistema americano, acima do
controlo de qualquer força ou influência transadântica, e capaz
de ditar os termos da conexão entre o antigo e o novo mundo!
PUBLIUS.

2 Recherches philosophiques sur les Américains. (Publius) . Escrito por Cornelius


Pauw; publicado em Berlim em 1770. QC).

[137)
O FEDERALISTA N." 12

A Utilidade da União
no que respeita à Receita Pública

ALEXANDER HAMILTON
27 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

Os efeitos da União sobre a prosperidade comercial dos


Estados foram suficientemente delineados. A sua tendência
para promover o incremento da receita pública será o tema
da nossa presente investigação.
A prosperidade do comércio é hoje percebida e reconhe-
cida por todos os estadistas esclarecidos como a mais útil e
mais produtiva fonte de riqueza nacional, e tornou-se por
consequência um objecto de primeira ordem nas suas preo-
cupações políticas. Multiplicando os meios de recompensar,
promovendo a introdução e circulação de metais preciosos,
esses cobiçados objectos da cupidez e dos empreendimentos
humanos, consegue-se vivificar e revigorar os canais da indús-

* Do The New York Packet, 27 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 28 de Novembro no T11e Independentjournale em 29 de Novembro
em The Daily Advertiser. QC).

[139]
tria e fazê-los fluir com maior actividade e mais copiosamente.
O comerciante diligente, o agricultor laborioso, o operário
activo e o industrial zeloso, todos os tipos de homens, aguar-
dam com impaciente expectativa e crescente alacridade esta
agradável recompensa da sua labuta. A questão frequente-
mente disputada entre a agricultura e o comércio teve, devido
a uma experiência indubitável, uma decisão que silenciou as
rivalidades que em tempos subsistiram entre eles, e provou,
para satisfação dos seus amigos, que os seus interesses estão
intimamente misturados e entrelaçados. Descobriu-se em
vários países que a terra aumentou de valor na proporção em
que o comércio floresceu. E como poderia ser de outro modo?
Poderia aquele que procura uma saída mais livre para os pro-
dutos da terra, aquele que fornece novos incitamentos ao
cultivo da terra, aquele que é o instrumento mais poderoso
para aumentar a quantidade de dinheiro num Estado, poderia
aquele, por fim, que é o fiel criado do labor e da indústria,
em todas as suas formas, deixar de aumentar o valor desse
artigo, que é o prolífico progenitor, de longe, da maior parte
dos objectos sobre os quais eles são empregues? É espantoso
que uma verdade tão simples tivesse alguma vez tido um
adversário; e isso é uma de entre uma multidão de provas de
como um espírito invejoso e mal informado, ou demasiado
abstracto e refinado, é capaz de desencaminhar os homens
dos mais evidentes caminhos da razão e da convicção.
A capacidade de um país para pagar impostos deve ser
sempre proporcional, em grande medida, à quantidade
de dinheiro em circulação e à celeridade com que circula.
O comércio, contribuindo para ambos os fins, deve necessaria-
mente tornar mais pronto o pagamento dos impostos, e facilitar
os indispensáveis suprimentos ao tesouro. Os domínios
hereditários do Imperador da Alemanha contêm uma grande
extensão de território fertil, cultivado e populoso, uma grande
parte do qual está situado em climas an1enos e luxuriantes.
Em algumas partes deste território situam-se as melhores

[140]
minas de ouro e prata da Europa. E no entanto, por falta da
influência propícia do comércio, esse monarca apenas se pode
vangloriar de parcos rendimentos. Foi várias vezes obrigado
a ficar a dever favores a auxílios pecuniários de outras nações
para preservar os seus interesses essenciais, e é incapaz, contando
apenas com a força dos seus próprios recursos, de sustentar
uma guerra prolongada ou contínua.
Mas não é só neste aspecto que se verá a União a promover
o objectivo da receita pública. Existem outros pontos de vista,
nos quais a sua influência se apresentará como mais imediata
e decisiva. É evidente, a partir do estado do país, dos hábitos
do povo, da experiência que tivemos nesta matéria, que é
impraticável angariar quaisquer somas consideráveis por meio
da taxação directa. Em vão se multiplicaram as leis fiscais, em
vão se ensaiaram novos métodos para realizar a cobrança, a
expectativa pública foi uniformemente desapontada, e as
tesourarias dos Estados continuaram vazias. O popular sistema
de administração inerente à natureza do governo popular,
coinci indo com a efectiva escassez de dinheiro ligada a um
estado lânguido e mutilado do comércio, tem derrotado até
agora todas as experiências de alargamento de cobranças e,
com o tempo, demonstrou às diferentes legislaturas a insanidade
de tentá-las.
Ninguém familiarizado com o que acontece noutros países
ficará surpreendido com esta circunstância. Numa nação tão
opulenta como a Grã-Bretanha, onde os impostos directos
sobre as grandes fortunas devem ser muito mais toleráveis e,
dado o vigor do governo, muito mais praticáveis do que na
América, de longe a maior parte do rendimento nacional é
derivada de impostos do tipo indirecto: de tributações e de
impostos de consumo. Os direitos sobre os artigos importados
constituem um vasto ramo desta última espécie.
Na América é evidente que teremos de depender durante
muito tempo, no que respeita a meios de receita pública, prin-
cipalmente desses direitos. Em muitas partes dela, os impostos

[141]
indirectos têm de ser confinados a uma faixa muito restrita.
O carácter do povo tolerará mal o espírito inquisidor e peremp-
tório das leis de taxação indirecta. Os bolsos dos lavradores,
por outro lado, só relutantemente entregarão verbas pouco
mais do que escassas, na mal acolhida forma de taxas sobre as
suas casas e terras. E a propriedade pessoal é um fundo dema-
siado precário e invisível para nos agarrarmos a ele de qualquer
outro modo que não seja a imperceptível acção dos impostos
sobre o consumot.
Se estas observações tiverem algum fundamento, essa situa-
ção, que melhor nos permitirá aperfeiçoar e alargar um recurso
tão valioso, deve ser a mais bem adaptada ao nosso bem-estar
político. E não pode ser objecto de dúvida séria que essa situa-
ção deva assentar na base de urna União generalizada. Quanto
melhor defender os interesses do comércio, tanto mais deverá
tender para o aumento da receita pública a ser colectada nessa
fonte. Quanto mais contribuir para tornar mais simples e
eficazes os regulamentos de colecta dos direitos, tanto mais
deverá servir para responder aos objectivos de tornar mais
produtiva a mesma taxa de direitos, e para pôr ao alcance do
poder do governo o aumento da taxa sem prejudicar o
comércio.
A situação relativa destes Estados, o número de rios que
os intersectam e de baías que banham as suas costas, a facilidade
de comunicação em todas as direcções, a afinidade de língua
e de costumes, os hábitos familiares de inter-relação; tudo
isto são circunstâncias que concorreriam para converter um
intercâmbio ilícito entre os Estados numa coisa pouco difícil,
e assegurariam frequentes violações dos regulamentos comer-
ciais de cada um deles. Os Estados ou confederações indepen-
dentes ver-se-iam na necessidade, por causa da inveja mútua,
de evitar as tentações a esse tipo de intercâmbio por causa do

1 Sobre as capacidades fiscais da União ver, também de Hamilton, os


Ensaios 30 a 36. (E. P.).

[142]
baixo valor dos seus direitos. O temperamento dos nossos
governos, ainda por muito tempo, não permitiria essas precau-
ções rigorosas por meio das quais as nações europeias protegem
as vias de acesso aos respectivos países, tanto por terra como
por água; e que, mesmo assim, são consideradas obstáculos
insuficientes aos aventurosos estratagemas da cupidez.
Em França há um exército de vigias (como são chamados)
constantemente empenhados em garantir o cumprimento das
normas fiscais, actuando contra as incursões dos negociantes
que fazem contrabando. O senhor eckar2 avalia o número
desses vigias em mais de vinte mil. Isto mostra a imensa
dificuldade em impedir essa espécie de tráfico quando existe
uma comunicação por terra, e acentua as desvantagens que
entravariam a cobrança de direitos neste país se, pela sua de u-
nião, os Estados viessem a ficar colocados numa situação, uns
relativamente aos outros, que se assemelhasse à da França
relativamente aos seus vizinhos. Os poderes arbitrários e
vexatórias com que os vigias estão necessariamente investidos
seriam intolerávei num país livre.
Se, pelo contrário, existir apenas um governo com autori-
dade em todos os Estados, haverá, no que toca à parte principal
do nosso comércio, apenas UM LADO a proteger - a COSTA
ATLÂNTI CA. Os navios vindos directamente de países estran-
geiros, cheios de cargas valiosas, raramente escolherão arriscar-
-se aos perigos complicados e críticos que acompanhariam
as tentativa de descarregar antes de entrar no porto. Teriam
de recear tanto os perigos da costa como os da detecção, tanto
depois como antes da chegada aos locais do seu destino final.
Um grau normal de vigilância seria suficiente para impedir
quaisquer infracções substanciais dos direitos da receita pública.
Alguns navios armados, judiciosamente estacionados nas

2 Jacques N ecker, 1732-1804, banqueiro francês e ministro das finanças


de Luís XVI. Hamilton estava familiarizado com a tradução inglesa do seu
7reatise on the Administration of tlze Finances of France (Londres, 1785). QC).

[143]
entradas dos nossos portos, poderiam com pouca despesa ser
convertidos em úteis sentinelas das leis. E tendo o governo
o mesmo interesse em providenciar contra violações onde
quer que ocorram, a cooperação com as suas medidas em
cada Estado teria uma tendência poderosa para as tornar
eficazes. Aqui também devemos preservar através da União
uma vantagem que a natureza nos oferece, e que seria aban-
donada pela separação. Os Estados Unidos situam-se a grande
distância da Europa e a uma distância considerável de todas
as outras paragens com as quais poderão ter amplas relações
de comércio externo. O percurso entre eles e nós, em poucas
horas, ou numa simples noite, como entre as costas da França
e da Grã-Bretanha, e de outras nações vizinhas, seria impraticá-
vel. Isto é uma prodigiosa segurança contra um contrabando
directo com países estrangeiros; mas um contrabando indirecto
para um Estado passando por um outro, seria simultaneamente
fãcil e seguro. A diferença entre uma importação directa do
exterior, e uma importação indirecta através do canal de um
Estado circunvizinho, em pequenos lotes, conforme o tempo
e a oportunidade, com as facilidades adicionais de comunicação
terrestre, deve ser palpável para qualquer homem de discerni-
mento.
É, portanto, evidente que um governo nacional único
seria capaz, com muito menos despesa, de aumentar os direitos
sobre as importações muito mais, sem comparação, do que
seria praticável pelos Estados separadamente, ou por quaisquer
confederações parciais. Pode afirmar-se com segurança, creio,
que, até ao momento presente, esses direitos não excederam
uma média de três por cento em nenhum dos Estados. Em
França são estimados em cerca de quinze por cento, e na Grã-
-Bretanha excedem esta proporção. Parece nada haver que
impeça que eles sejam aumentados neste país para pelo menos
o triplo do seu valor presente. Só o artigo das bebidas alcoólicas,
sob uma regulamentação federal, pode render uma considerável
receita pública. Usando uma proporção das importações para

[144]
este Estado, a quantidade total importada pelos Estados Unidos
pode ser avaliada em quatro milhões de galões, os quais, a um
xelim por galão, produziriam duzentas mil libras. Esse artigo
suportaria esta taxa de direitos e, se ela tendesse para diminuir
o consumo dessas bebidas, esse efeito seria também favorável
à agricultura, à economia, à moral e à saúde da sociedade.
Não existe, talvez, uma coisa que seja tanto um esbanjamento
nacional como essas bebidas.
Qual será a consequência, se não formos capazes de apro-
veitar integralmente o recurso em questão? Uma nação não
pode existir por muito tempo sem receita pública. Privada
desse apoio essencial, tem de abrir mão da sua independência,
e mergulhar na degradada condição de província. Esta é um
extremo em que nenhum governo consentirá livremente.
A receita pública, portanto, tem de existir, aconteça o que
acontecer. Neste país, se a maior parte não for colhida no
comércio, tem de cair sobre a terra com um peso opressor.
Foi já mostrado que os impostos indirectos, na sua verdadeira
significação, estão demasiado pouco em uníssono com os
sentimentos do povo para que possa ser feito um grande uso
desse modo de tributação; na verdade, nos Estados onde a
ocupação quase única é a agricultura, os objectos apropriados
para serem taxados indirectamente nem sequer são suficiente-
mente numerosos para permitir colectas muito avultadas por
essa via. Os bens pessoais (como anteriormente foi mencio-
nado), por causa da dificuldade de os registar, não podem ser
sujeitos a avultadas contribuições por quaisquer outros meios
que não sejam os impostos sobre o consumo. Pode conjecturar-
se que nas cidades populosas possam dar ocasião à opressão
dos indivíduos sem muito beneficio global para o Estado; mas
para lá desses círculos, devem, em grande medida, escapar ao
olhar e à mão do colector de impostos. Como as necessidades
do Estado, apesar disso, têm de ser satisfeitas de um modo ou
de outro, a falta de outros recursos deve atirar o peso principal
dos encargos públicos para cima dos proprietários de terras.

[145]
E como, por outro lado, as necessidades do governo nunca
podem conseguir uma satisfação adequada, a menos que todas
as fontes de receita estejam abertas às suas exigências, as finanças
da comunidade, em semelhante embaraço, não podem ser
postas numa situação consistente com a sua respeitabilidade
ou segurança. Assim não teremos sequer as consolações de
um tesouro cheio, para compensar a opressão dessa valiosa
classe de cidadãos que se dedicam ao cultivo do solo. Mas a
miséria pública e a miséria privada seguirão a par e passo numa
concertação melancólica, e unidas no deplorar da cegueira
desses conselhos que levaram à desunião.
PUBLIUS.

[146]
O FEDERALISTA N." 13

Vantagem da União no que respeita


à Economia na Governação

ALEXANDER HAMILTON
28 de N ovembro de 1787

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

Em conexão com o assunto da receita pública, podemos


apropriadamente considerar o da economia. O dinheiro pou-
pado num objecto pode ser utilmente aplicado a outro
e assim erá menos outro tanto a retirar dos bolsos do povo.
Se os Estados estiverem unidos sob um governo único, haverá
apenas um quadro nacional de funcionários público a suportar;
se estiverem divididos em várias confederações, haverá outras
tantas listas civis nacionais diferentes para serem aprovisionadas,
e cada uma delas, quanto aos departamentos principais, condi-
zente com o que seria necessário para um governo do todo.
A total separação dos Estados em treze soberanias desligadas
é um projecto demasiado extravagante e demasiado repleto

* Do TI1e Independent journal, 28 de Novembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 29 de Novembro no The Daily Advertiser e em 30 de N ovembro
no TI1e New York Packet. QC) .

[147]
de perigos para ter muitos defensores. As ideias de homens
que especulam acerca do desmembramento do império pare-
cem em geral virada para três confederações: uma formada
pelos quatro Estados do norte, outra pelos quatro do meio,
e uma terceira pelos cinco Estados do Sul. Há pouca probabili-
dade que viesse a existir um número maior. Segundo esta
distribuição, cada confederação compreenderia uma exten-
são de território maior do que a do reino da Grã-Bretanha.
Nenhum homem bem informado suporá que os assuntos de
confederações como essas possam er adequadamente regulados
por um governo menos polivalente, nos seus órgãos e institui-
ções, do qu aquele que foi proposto pela Convenção. Quando
as dimensões de um Estado atingem uma certa grandeza, é
precisa a mesma energia na governação e as mesmas formas
de administração que são precisas para um outro de muito
maior extensão. Esta ideia não tem uma demonstração exacta,
porque não existe padrão pelo qual possamos medir a impor-
tância do poder civil necessário à governação de um qualquer
número dado de indivíduos; mas quando consideramos que
a ilha da Grã-Bretanha, quase comensurável com cada uma
das suposta confederações, contém cerca de oito milhões de
pessoas, e quando reflectimos acerca do grau de autoridade
requerido para orientar a paixões de uma sociedade tão vasta
em direcção ao bem público, não devemos encontrar razão
para duvidar de que a mesma quantidade de poder seria sufi-
ciente para executar a mesma tarefa numa sociedade muito
mais numerosa. A au toridade civil, correctamente organizada
e exercida, é capaz de difundir a sua força até muito longe e
pode, de certa maneira, reproduzir-se a si mesma em todas
as partes de um grande império por meio de uma composição
judiciosa de instituições subordinadas.
A suposição de que cada confederação em que os Estados
seriam provavelmente divididos exigiria um governo não
menos polivalente do que o proposto será reforçada por outra
suposição, mais provável do que aquela, que nos apresenta

[148]
três confederações como alternativa a uma União geral. Se
atendermos cuidadosamente às considerações geográficas e
comerciais, em conjunção com os hábitos e preconceitos dos
diferentes Estados, seremos levados a concluir que, no caso
da desunião, o mais natural é que eles se combinem sob dois
governos . Pode com toda a certeza esperar-se que se unam
os quatro Estados orientais, por todas as razões que formam
os laços de impatia e conexão nacional. Nova Iorque, dada
a sua situação, nunca será suficientemente insensata para opor
um flanco fraco e desapoiado ao peso dessa confederação.
Existem razões óbvias que facilitariam a sua adesão a ela. Nova
J érsia é um Estado demasiado pequeno para pensar em ser
uma fronteira, em oposição a essa ainda mais poderosa combi-
nação, e também não parece haver obstáculos à sua inclusão.
Até a Pensilvânia teria fortes motivos para se juntar à liga nor-
tista. Um comércio externo activo com base na sua própria
navegação é a sua verdadeira política e coincide com as opiniões
e disposições dos seus cidadãos. Os Estados mais ao sul, em
virtude de várias circunstâncias, não podem sentir-se muito
empenhados no encorajamento da navegação. Podem preferir
um sistema que daria uma ilimitada liberdade de acção a todas
as nações para serem os transportadores, bem como os com-
pradores, das suas mercadorias. A Pensilvânia pode não escolher
misturar os seus interesses numa ligação tão adversa à sua
política. Como terá sempre que ser uma fronteira, pode julgar
mais co sistente com a sua segurança ter o seu lado exposto
virado para a potência mais fraca dos sulistas, de preferência
a estar virada para a potência mais forte da confederação nor-
tista. Isto dar-lhe-ia a probabilidade mais favorável de evitar
ser a FLANDRES da América. Seja qual for a decisão da Pensil-
vânia, se a confederação nortista incluir Nova Jérsia, não há
nenhuma probabilidade da existência de mais do que uma
confederação ao sul desse Estado.
Nada pode ser mais evidente do que o facto de que os
treze Estados serão capazes de manter um governo nacional

[149)
melhor do que metade, ou um terço, ou qualquer número
menor que o todo. Esta reflexão deve ter grande peso em
obviar a essa objecção ao plano proposto que é fundada no
princípio dos custos; uma objecção, todavia, que, quando a
examinamos mais de perto e dos mais variados ângulos, se
nos apresenta alicerçada em fundamentos falsos.
Se, adicionalmente à consideração de uma pluralidade de
quadros de funcionários, considerarmos o número de pessoas
que necessariamente tem de ser empregue para proteger do
tráfico ilícito a comunicação terrestre entre as diferentes
confederações e que a seu tempo resultará inevitavelmente
das necessidades da receita pública, e se considerarmos também
as instituições militares que mostrámos que resultarão inevita-
velmente das invejas e conflitos em que os Estados estariam
divididos, veremos com clareza que uma separação não seria
menos prejudicial para a economia do que para a tranquilidade,
o comércio, a receita pública e a liberdade de todas as partes.
PUBLIUS.

[150]
O FEDERALISTA N." 14

Resposta a Objecções colocadas à Constituição


Proposta a partir da Extensão do Território

JAMES MADISON
30 de Novembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Vimos a necessidade da União como nosso baluarte contra


o perigo do estrangeiro, como conservadora da paz entre nós,
como guardiã do nosso comércio e outros interesses comuns,
como o único substituto para essas instituições militares que
subverteram as liberdades do Velho Mundo, e como antídoto
apropriado para as doenças das facções , que se mostraram fatais
para outros governos populares e cujos sintomas alarmantes
foram revelados pelo nosso próprio governo. Tudo o que resta,
no âmbito do nosso exame, é analisar uma objecção que pode
ser posta por causa da grande extensão de território que a
União abrange. Algumas observações sobre esta matéria serão
as mais convenientes, dado que se percebe que os adversários

* Do The New York Packet, 30 de N ovembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 1 de Dezembro no The Daily Advertiser e no The htdependent
j ournal. QC).

[151]
da nova Constituição se estão a aproveitar do preconceito
prevalecente relativamente à esfera praticável da administração
republicana, de maneira a suprir, por meio de dificuldades
imaginárias, a falta dessas objecções sólidas que se esforçam
em vão por encontrar.
O erro que limita o Governo Republicano a um pequeno
território foi desenvolvido e refutado num dos artigos prece-
dentes1 . Limito-me a observar aqui que ele parece dever a
sua origem e preponderância principalmente à confusão de
uma república com uma democracia, e à aplicação à primeira
de raciocínios extraídos da natureza da última. A verdadeira
distinção entre essas formas foi também referida numa ocasião
anterior2. E é ela que, numa democracia, o povo se reúne e
exerce o governo em pessoa; numa república, reúne-se e admi-
nistra-a através dos seus representantes e agentes. Consequente-
mente, uma democracia estará confinada a um pequeno terri-
tório. Uma república pode estender-se a uma vasta região.
A esta acidental fonte de erro pode ser acrescentado o
artificio de alguns autores celebrados, cujos escritos tiveram
um grande quinhão na formação do padrão moderno das
opiniões políticas. Sendo súbditos de uma monarquia absoluta
ou limitada, esforçaram-se por acentuar as vantagens, ou miti-
gar os males dessas formas, pondo em comparação os vícios
e defeitos das repúblicas, e citando como espécimes destas
últimas as turbulentas democracias da Grécia antiga e da Itália
moderna. Sob a capa de uma confusão de nomes, foi uma
tarefa facil transferir para uma república observações que ape-
nas se aplicam a uma democracia; e entre outras, a observação
de que ela nunca pode ser estabelecida senão entre um pequeno
número de pessoas , vivendo numa pequena extensão de
território.

1 Ver artigos 9 e 10. QC).


2 Ver artigo 10. QC).

(152]
Tal falácia pode ter sido tanto menos percebida quanto a
major parte dos governos populares da antiguidade foram da
espécie democrática; e mesmo na Europa moderna, à qual
devemos o grande princípio da representação, não se vê
nenhum exemplo de um governo popular e, ao mesmo tempo,
fundado inteiramente nesse princípio. Se a Europa tem o
mérito de descobrir este grande poder mecânico da governação
que pela sua simples actuação é capaz de concentrar a vontade
do mais vasto corpo político, e illrigir a sua força para qualquer
objectivo que o bem público exija, a América pode reclamar
o mérito de ter transformado a descoberta na base de repúblicas
puras e vastas. Apenas é de lamentar que qualquer dos seus
cidadão queira privá-la do mérito adicional de mostrar a sua
plena eficácia na instituição do abrangente sistema presente-
mente sob consideração.
Como o limjte natural de uma democracia é a distância
ao ponto central que permitirá adequadamente que os cidadãos
mais remotos se reúnam tão frequentemente quanto o exigem
as suas funções públicas; e que não incluirá um número supe-
rior ao que pode juntar-se nessas funções; também o limjte
natural de uma república é essa distância ao centro que apenas
permitirá que os representantes se reúnam tão frequentemente
quanto possa ser necessário para a administração dos assuntos
público . Pode dizer-se que os limites dos Estados Unidos
excedem essa distância? Isso não será dito pelos que recordam
que a costa atlântica é o lado mais comprido da União; que
durante um período de treze anos, os representantes dos Esta-
dos reuniram quase continuamente; e que aos membros dos
Estados mais distantes não se lhes pode imputar maiores inter-
valo de as iduidade do que aos dos Estados mais próximos
do Congresso.
Para que possamos fazer uma avaliação mais ju ta no que
se refere a este interessante assunto, recorramos às efectivas
dimensões da União. Os limites, tal como foram fixados pelo
tratado de paz, são a leste o Atlântico, a sul trinta e um graus

[153)
de latitude, a oeste o Mississipi, e a norte uma linha irregular
correndo em certas casos para lá de quarenta e cinco graus,
noutras descendo até aos quarenta e dois graus. A margem
sul do Lago Erie fica abaixo dessa latitude. Calculando a dis-
tância entre trinta e um e quarenta e cinco graus, obtém-se
o valor de novecentas e setenta e três milhas ordinárias; cal-
culando-a entre trinta e um e quarenta e dois graus, setecentas
e sessenta e quatro milhas e meia. Fazendo a média da distância,
o valor será oitocentas e sessenta e oito milhas e três quartos.
A distância média do Atlântico ao Mississipi não excede
provavelmente setecentas e cinquenta milhas. Numa compara-
ção desta extensão com a de vários países da Europa, a prati-
cabilidade de tornar o nosso sistema comensurável com ela
apresenta-se como demonstrável. Não é muito maior do que
a da Alemanha, onde uma Dieta representando a totalidade
do império está continuamente em sessão; ou do que a da
Polónia antes da última partilha, onde outra Dieta nacional
era a depositária do poder supremo. Passando por França e
Espanha, vemos que na Grã-Bretanha, apesar de ser inferior
em tamanho, os representantes da extremidade norte da ilha
têm de percorrer até à assembleia nacional a mesma distância
que será exigida aos membros das partes mais afastadas da
União.
Por mais favorável que possa ser esta maneira de ver este
assunto, restam algumas observações que o esclarecerão ainda
mais satisfatoriamente.
Em primeiro lugar deve lembrar-se que ao governo geral
não irão ser confiados todos os poderes de fazer e administrar
leis. A sua jurisdição é limitada a certos objectivos enumerados,
que respeitam a todos os membros da república, mas que não
podem ser atingidos pelas providências separadas de nenhum
deles. Os governos subordinados, que podem alargar a sua
atenção a todos os outros assuntos cujas necessidades podem
ser separadamente satisfeitas, reterão a sua devida autoridade
e actividade. Se o plano da Convenção propusesse a abolição

[154]
dos governos dos Estados particulares, os seus adversários
teriam alguma base para a sua objecção, embora não fosse
dificil mostrar que se eles fossem abolidos o governo geral
seria compelido, pelo princípio da autopreservação, a reinte-
grá-los na sua adequada jurisdição.
Uma segunda observação a fazer é que o objectivo ime-
diato da Constituição federal é garantir a União dos treze
Estados primitivos, que sabemos ser praticável; e adicionar-
-lhe outros Estados que possam surgir no seu próprio seio ou
na sua vizinhança, coisa que não podemos duvidar de que é
também praticável. As disposições que possam ser necessárias
para esses cantos e fracções do nosso território que estão para
lá da nossa fronteira noroeste devem ser deixadas àqueles que
venham a ficar mais à altura da tarefa pelas suas descobertas
e experiências ulteriores.
Observe-se, em terceiro lugar, que o intercâmbio por toda
a União será facilitado por novos melhoramentos: por toda
a parte, as estradas serão encurtadas e mantidas em melhores
condições; os alojamentos para viajantes serão multiplicados
e melhorados; uma navegação interior na nossa costa oriental
será aberta através de toda ou quase toda a extensão dos treze
Estados. A comunicação entre os distritos ocidental e atlântico,
e entre as diferentes partes de cada um deles, será tornada
cada vez mais fácil por esses numerosos canais com que a
beneficência da natureza cruzou o nosso pais, e em que a arte
encontra tão pouca dificuldade para os conectar e completar.
Uma quarta e ainda mais importante consideração é a de
que quase todos os Estados serão, de um lado ou de outro,
uma fronteira, e encontrarão assim, em relação à sua segurança,
uma motivação para fazer alguns sacrificios a bem da protecção
geral. Assim os Estados que estão a maior distância do coração
da Uni-o e que, é claro, podem tomar menor parte na cir-
culação ordinária dos seus beneficias serão ao mesmo tempo
contíguos a nações estrangeiras, e consequentemente terão,
em ocasiões particulares, a maior das necessidades da força e

[155]
dos recursos da União. Pode ser inconveniente para a Geórgia,
ou para os Estados que constituem as nossas fronteiras ocidentais
e do nordeste, enviar os eus representante para a sede do
governo, mas eles achariam muito mais inconveniente lutar
sozinhos contra um inimigo invasor, ou mesmo suportar sozi-
nhos toda a despesa dessas precauções que pudessem der ditadas
pela vizinhança de um perigo contínuo. Portanto, se em alguns
aspectos viessem a obter um menor beneficio da União do
que o conseguido pelos Estados menos distantes, obteriam
um maior beneficio dela noutro aspectos, e assim o justo
equilíbrio seria mantido por toda a parte.
Submeto-vos, meus concidadãos, estas considerações, com
a inteira confiança em que o bom senso que tão frequente-
mente marcou as vossas decisões lhes concederá o peso e
efeito que lhes são devidos; e que nunca venhais a sofrer difi-
culdades, por mais formidávei na aparência, ou por mais em
voga que esteja o erro em que elas se possam fundar, para vos
impelir para o palco sombrio e perigoso em que vos lança-
riam o advogados da desunião. Não dei ouvidos à voz de na-
turada que vos diz que as pessoas da América, unidas como
estão por tantos laços de afeição, já não podem viver juntas
como membros de uma mesma família; e que já não podem
continuar a ser os guardiães mútuos da sua felicidade comum;
que já não podem ser concidadãos de um grande, respeitável
e flore cente império. Não deis ouvidos à voz que petulante-
mente vos diz que a forma de governo cuja adopção vo é
recomendada é uma novidade no mundo político; que nunca
até agora teve lugar nas mais imprudentes teorias dos mais
imprudentes visionários; que temerariamente tenta o que é
impossível de realizar. Não, meus compatriotas! Fechai os
ouvidos a esta linguagem ímpia. Fechai os vossos corações ao
veneno que ela transporta. O sangue do parentesco que corre
nas veias dos cidadãos americanos, o sangue confundido que
eles derramaram na defesa dos seus sagrados direitos consagra
a sua união e desperta horror perante a ideia de se tornarem

[156]
estrangeiros, rivais, inimigos. E se as novidades são para ser
evitadas, acreditem-me, a mais alarmante de todas as novidades,
o mais insensato de todos os projectos, a mais temerária de
todas as tentativas é a de nos desfazer em pedaços, com o fim
de preservar as nossas liberdades e promover a nossa felicidade.
Mas porque deve ser rejeitada a experiência de uma república
vasta, simplesmente porque pode abranger o que é novo? Não
é uma glória do povo da América que, embora tenha mostrado
um resp ito decente pelas opiniões dos tempos mais antigos
e de outras nações, não tenha sofrido de uma veneração cega
pela antiguidade, pelo hábito, ou por nomes, para pôr de lado
as sugestões do seu bom senso, o conhecimento da sua própria
situação, e as lições da sua própria experiência? A este espírito
varonil ficará a posteridade em dívida pela posse, e o mundo
pelo exemplo, das numerosas inovações exibidas no palco da
América, em favor dos direitos privados e da felicidade pública.
Se não tivesse sido dado pelos chefes da Revolução um impor-
tante passo para o qual não pudesse ser descoberto um prece-
dente, se não tivesse sido estabelecido um governo tal que
não se conformava com nenhum modelo exacto, o povo dos
Estados Unidos poderia, neste momento, ser contado entre
as vítimas melancólicas de maus conselhos ou, no melhor dos
casos, teria estado vergado sob o peso de algumas dessas formas
que esmagaram as liberdades do resto da humanidade. Feliz-
mente para a América, felizmente, assim o cremos, para todo
o género humano, eles seguiram um curso novo e mais nobre.
Realizaram uma revolução que não tem paralelo nos anais da
sociedade humana: construíram a estrutura de governos que
não tem nenhum modelo à face do globo3. Formaram o desíg-
nio de uma grande confederação, que é incumbência dos
seus sucessores melhorar e perpetuar. Se as suas obras revelam

3 Uma das face tas desta obra, bem ilustrada nesta reflexão de M adison,
é o enfoque histórico-universal em que o debate sobre o futuro constitucional
dos EUA é sistematicamente colocado. (E. P.) .

[157]
imperfeições, admiramo-nos com a pouca quantidade delas.
Se erraram sobretudo na estrutura da União, esta é a obra
mais difícil de ser executada; esta é a obra que foi remodelada
pelo acto da vossa Convenção, e é sobre esse acto que agora
tereis de deliberar e decidir.
PUBLIUS.

[158]
O FEDERALISTA N." 15

Insuficiência da Actual Confederação para


Preservar a União

ALEXANDER HAMILTON
1 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

No decurso dos artigos precedentes, esforcei-me, meus


Concidadãos, por pôr diante de vós, a uma luz clara e convin-
cente, a importância da União para a vossa segurança política
e felicidade. Desvendei perante vós uma complicação de peri-
gos aos quais estaríeis expostos se permitísseis que esse laço
sagrado que une o povo da América fosse cortado ou dissolvido
pela ambição ou pela avareza, pela inveja ou pela falsidade.
Na sequência da investigação através da qual me proponho
acompanhar-vos, as verdades destinadas a ser inculcadas rece-
berão uma confirmação ulterior de factos e argumentos que
até agora passaram despercebidos. Se a estrada na qual ainda
tereis de passar deve apresentar-se-vos em alguns lugares como

* Do Th e Indeper1dent journal, 1 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 4 de Dezembro no Th e Daily Advertiser e no Tire New-York
Packet. QC) .

[159]
enfadonha e penosa, recordar-vos-eis que estais em busca de
informação sobre um assunto que é o mais momentoso que
pode ocupar a atenção de um povo livre; que o campo através
do qual tereis de viajar é em si mesmo vasto, e que as dificul-
dades da viagem foram desnecessariamente aumentadas pelos
labirintos com que a sofistica obstruiu o caminho. Será meu
objectivo remover os obstáculos ao vosso progresso de uma
maneira tão resumida quanto é possível fazer, sem sacrificar
a utilidade à rapidez.
No prosseguimento do plano que delineei para a discussão
do assunto, o ponto cujo exame se segue é a "insuficiência
da presente confederação para a preservação da União." Pode
talvez perguntar-se que necessidade há de argumentos ou
demonstrações para ilustrar uma posição que não é controver-
tida nem posta em dúvida; que obtém o assentimento do
entendimento e sentimento de todas as classes de homens; e
que é admitida, no que tem de essencial, tanto pelos opositores
como pelos partidários da nova Constituição. Na verdade
deve reconhecer-se que estes, por mais que possam diferir
em outros aspectos, parecem em geral estar de acordo pelo
menos nesta opinião que existem imperfeições materiais no
nosso sistema nacional e que é necessário que seja feita alguma
coisa para nos salvar da anarquia iminente. Os factos que
secundam esta opinião já não são objecto de especulação.
Impuseram-se à sensibilidade da maioria do povo, e por fim
extorquiram daqueles cuja política errónea teve o papel prin-
cipal no precipitar da situação extrema a que chegámos urna
confissão relutante da realidade desses defeitos no esquema
do nosso Governo Federal que há muito foram apontados e
lamentados pelos partidários inteligentes da União.
Na verdade podemos afirmar justificadamente que atin-
gimos quase o último estádio da humilhação nacional. Não
há praticamente nada que possa ferir o orgulho ou degradar
o carácter de uma nação independente que nós não experi-
mentemos. Existem compromissos a cujo cumprimento esta-

[160]
mos obrigados por todos os vínculos respeitáveis entre os
homens? Eles são sujeitos a violação constante e desavergo-
nhada. Temos dívidas para com estrangeiros e para com os
nossos próprios cidadãos, contraídas num momento de perigo
iminente para a preservação da nossa existência política? Elas
continuam sem a provisão adequada ou satisfatória para a sua
liquidação. Temos territórios valiosos e importantes praças-
-fortes na posse de urna potência estrangeira que, por estipula-
ções expressas, há muito tempo os devia ter entregue 1? Eles
estão ainda retidos, com prejuízo dos nossos interesses, e não
menos dos nossos direitos. Estamos em condições de nos
melindrarmos ou de repelir a agressão? Não temos tropas,
nem tesouro, nem governo2. Estamos sequer em posição de
protestar com dignidade? As justas acusações contra a nossa
própria honestidade têm primeiro de ser afastadas. Temos
direito por natureza e contrato a uma livre participação na
navegação do Mississipi? A Espanha exclui-nos dela. O crédito
público é um recurso indispensável em tempo de perigo
público? Parecemos ter abandonado a sua causa como deses-
perada e irremediável. O comércio tem importância para a
riqueza acional? O nosso está no ponto mais baixo de declí-
nio. A respeitabilidade aos olhos de potências estrangeiras é
uma salvaguarda contra as usurpações estrangeiras? A incom-
petência do nosso governo impede-as até de negociar con-

1 O tratado de paz com a Grã-Bretanha em 1783 tinha estabelecido a


independência dos Estados Unidos e resolvido certas divergências entre os
dois paíse . Mas algumas cláusulas do tratado, obrigando ambas as partes a
certos actos, não tinham sido respeitadas. Tal como os americanos não tinham
cumprido os artigos IV, V e VI do tratado, os britânicos não tinham cumprido
o artigo VII que esti pulava que "Sua Majestade Britânica deverá com toda a
celeridade .. . retirar todos os seus exércitos, guarnições e frotas dos ditos
Estados Unidos, de todas as praças-fortes, lugares e portos dentro dos mesmos."
Os britânicos, com o pretexto de que os americanos tinham violado obrigações
do tratado, retinham a posse de postos no lado americano da fronteira. QC).
2 Quero dizer, para a União . (Publius).

[161]
nosco: os nossos embaixadores no estrangeiro são meras
marionetas de uma soberania de paródia. Um decréscimo
violento e não natural do valor da terra é um sintoma de
miséria nacional? O preço da terra cultivada na maior parte
do país é muito mais baixo do que o que pode ser justificado
pela quantidade de terra inculta no mercado, e só pode ser
inteiramente explicado por essa falta de confiança privada e
pública que é tão alarmantemente prevalecente em todas as
classes, e que tem uma tendência directa para depreciar todos
os tipos de propriedade. O crédito privado é amigo e patrono
da indústria? Essa actividade das mais úteis que se refere a
pedir emprestado e emprestar está reduzida aos mais estreitos
limites, e mais ainda por causa de urna opinião de insegurança
do que pela escassez de dinheiro. Para abreviar uma enumera-
ção dos casos particulares que não podem proporcionar nem
prazer nem instrução, pode perguntar-se, em geral, que sinais
existem de urna desordem, pobreza, e insignificância nacionais
que pudessem cair sobre uma comunidade tão particularmente
abençoada com vantagens naturais como nós somos, e que
não constituam urna parte do negro catálogo das nossas des-
graças públicas?
Esta é a melancólica situação a que fomos levados justa-
mente por essas máximas e conselhos que agora nos dissuadi-
riam de adoptar a Constituição proposta, e que, não contentes
com terem-nos trazido até à beira do precipício, parecem
decididos a precipitar-nos no abismo que em baixo nos espera.
Aqui, meus compatriotas, impelidos por todos os motivos
que deveriam influenciar um povo esclarecido, tomemos urna
posição firme a favor da nossa segurança, da nossa tranquilidade,
da nossa dignidade, da nossa reputação. Quebremos finalmente
o fatal encantamento que nos desencaminhou tempo demais
dos trilhos da felicidade e prosperidade.
É verdade, como já antes foi observado, que certos factos
demasiado obstinados para serem contrariados produziram
uma espécie de concordância geral com a proposição abstracta

[162]
de que xistem defeitos materiais no nosso sistema nacional.
Mas a utilidade da concessão, por parte dos velhos adversários
de medidas federais, é destruída por uma estrénua oposição
a um remédio com base nos únicos princípios que lhe podem
dar uma possibilidade de sucesso. Embora admitam que o
governo dos Estados Unidos é desprovido de energia, argu-
mentam contra conferir-lhe aqueles poderes que são necessá-
rios para fornecer essa energia. Parecem ainda ter como objec-
tivo coisas repugnantes e inconciliáveis: um aumento da
autoridade federal sem uma diminuição da autoridade esta-
dual, a soberania da União e a completa independência dos
membros. Por fim, parecem ainda acalentar com devoção
cega o monstro político de um ímperíum ín ímperío. Isto torna
necessária uma apresentação completa dos principais defeitos
da Confederação, com o intuito de mostrar que os males de
que padecemos não provêm de imperfeições pequenas ou
parciais, mas sim de erros fundamentais na estrutura do edifício,
que não pode ser corrigida senão por uma alteração dos pri-
meiros princípios e dos pilares principais dessa estrutura.
A deficiência maior e mais radical na construção da Confe-
deração existente reside no princípio da LEGISLAÇÃO para
ESTADOS ou GOVERNOS, nas suas COMPETÊNCIAS COMBINADAS
ou COLECTIVAS contrastando com as dos indivíduos que os
compõem. Embora este princípio não se aplique a todos os
poderes delegados na União, ele impregna e governa, todavia,
aqueles dos quais depende a eficácia dos restantes. Excep-
tuando o que se refere à regra da distribuição da representação,
os Estados Unidos têm um arbítrio indefinido para requisitar
homens e dinheiro; mas não têm autoridade para angariar
nem uns nem outros usando de legislação que se estenda a
todos os cidadãos individuais da América. A consequência
disto é que embora em teoria as suas resoluções relativamente
a estes objectos sejam leis, obrigando constitucionalmente os
membros da União, na prática não passam de meras recomen-
dações que os Estados observam ou ignoram a seu bel-prazer.

[163]
É um exemplo singular do carácter caprichoso do espírito
humano que depois de todas as admoestações que nos pro-
porciona a experiência nesta matéria ainda se encontrem
homens que se opõem à Nova Constituição, por esta se desviar
de um princípio que se considerou ser a causa de ruína da
antiga e que é em si mesmo incompatível com a ideia de
GOVERNO. Um princípio, em suma, que se fosse efectivamente
posto em prática, substituiria a acção violenta e sanguinária
da espada pela serena influência da magistratura.
Não há nada de absurdo ou impraticável na ideia de uma
liga ou aliança entre nações independentes para determinados
fins bem definidos e enunciados com precisão num tratado
regulando todas as minudências de tempo, lugar, circunstância
e quantidade, não deixando nada a uma futura ponderação e
dependendo para a sua execução da boa-fé das partes. Existem
contratos deste tipo entre todas as nações civilizadas, sujeitos
às normais vicissitudes da paz e da guerra, da observância e
inobservância, como os interesses ou paixões das potências
contratantes possam ditar. Na primeira parte deste século
houve na Europa um entusiasmo epidémico por esta espécie
de contratos, de que os políticos da época ingenuamente espe-
ravam beneficios que nunca se realizaram. Com vista a esta-
belecer um equilíbrio de poder e a paz dessa parte do mundo,
exauriram-se todos os recursos de negociação, e foram forma-
das triplas e quádruplas alianças; mas mal foram formadas,
assim se dissolveram, dando à humanidade uma lição instrutiva
mas aflitiva sobre quão pouca confiança deve ser posta em
tratados que não têm outra sanção além das obrigações da
boa-fe, e que opõem considerações de paz e justiça ao impulso
de um qualquer interesse ou paixão imediatos.
Se os Estados particulares deste país estão dispostos a per-
manecer numa relação semelhante uns com os outros, e a
abandonar o projecto de uma SUPERINTENDÊNCIA DISCRICIO-
NÁRIA geral, o esquema seria na verdade pernicioso, e implica-
ria para nós todos os prejuízos que já foram enumerados; mas

[164]
teria o mérito de ser, pelo menos, consistente e praticável.
Abandonando todas as perspectivas de um Governo federativo,
isso trazer-nos-ia uma simples aliança ofensiva e defensiva e
iria colocar-nos numa situação de sermos alternadamente
amigos e inimigos uns dos outros, tal como as nossas invejas
e rivalidades mútuas, alimentadas pelas intrigas das nações
estrangeiras, nos viessem a prescrever.
Mas se não estivermos dispostos a ser colocados nesta
perigosa situação, se ainda aderirmos ao desígnio de um
governo nacional, ou, o que é o mesmo, de um poder de
superimendência, sob a direcção de um conselho comum,
temos de tomar a resolução de incorporar no nosso plano
aqueles ingredientes que podem ser considerados como for-
mando a diferença característica entre uma liga e um governo,
temos de alargar a autoridade da União às pessoas dos cidadãos,
- os ú ·cos objectos próprios de governação3.
A governação implica o poder de fazer leis. É essencial à
ideia de lei que ela seja acompanhada de uma sanção, ou, por
outras palavras, de uma penalidade ou punição pela desobe-
diência. Se não existir penalidade associada à desobediência,
as resoluções ou ordens que pretendem ser leis apenas equi-
valerão, de facto, a conselhos ou recomendações. Essa penali-
dade, qualquer que ela seja, só pode ser aplicada de duas
maneiras: pela actuação dos Tribunais e Ministros da Justiça,
ou pela força militar; pela COERÇÃO da magistratura, ou pela
COER ÇÃO das armas. É evidente que a primeira espécie só
pode aplicar-se a homens, a última deve necessariamente

3 A relação directa entre o governo da União e os cidadãos, sem a mediação


dos Estados, na esfera de competências reservada ao governo federal, vai abrir
o terreno para a "dupla cidadania", base do federalismo contemporâneo. Essa
relação directa obriga, igualmente, a substituir o conceito unitário de soberania,
por um conceito de "soberania partilhada", na senda do qual se constrói uma
das mais dinâmicas tensõ es do federalismo norte-americano: a que opõe,
frequentemente, direitos dos indivíduos a competências constitucionais reservadas
aos Estados. (E. P.).

[165]
aplicar-se a corpos políticos, ou comunidades, ou Estados.
É evidente que não existe nenhum processo de tribunal por
meio do qual a observância das leis possa, em última instância,
ser tornada obrigatória para estes últimos. Podem ser proferidas
sentenças contra eles com base em violações dos seus deveres,
mas essas sentenças só podem ser levadas ao cumprimento
pela espada. Numa associação em que a autoridade geral está
confinada aos corpos colectivos das comunidades que a com-
põem, qualquer infracção da lei tem de envolver um estado
de guerra, e a execução militar tem de se tornar no único
instrumento da obediência civil. Tal situação não merece
certamente o nome de governo, e nenhum homem prudente
escolherá entregar-lhe a sua felicidade.
Houve um tempo em que nos era dito que as infracções
das normas da autoridade federal por parte dos Estados não
eram de esperar, que um sentimento do interesse comum
presidiria à conduta dos respectivos membros, e geraria um
cumprimento integral de todas as solicitações constitucionais
da União. Esta linguagem, nos dias de hoje, apareceria tão
irreflectida como seria considerada uma grande parte do que
hoje ouvimos vindo do mesmo quadrante depois de termos
recebido posteriores lições do melhor oráculo da sabedoria,
a experiência. Ela traiu sempre urna ignorância das motivações
que pautam a conduta humana e desmentiu as razões iniciais
do estabelecimento do poder civil. Afinal, porque é que foram
instituídos governos? Porque as paixões dos homens não se
conformam com os ditames da razão e da justiça sem que
haja constrangimento. Descobriu-se que os grupos de homens
agem com mais rectidão ou maior desinteresse do que os
indivíduos? O contrário disto tem sido inferido por todos os
observadores cuidadosos da conduta da humanidade e a
inferência é fundada em razões óbvias. A atenção à reputação
tem uma influência menos activa quando a inf'arnia de urna
má acção é para ser dividida entre um certo número do que
quando é para cair apenas num só. Um espírito de facção,

[166]
que tem a capacidade de misturar o seu veneno nas deliberações
de todos os corpos de homens, frequentemente precipitará
as pessoas de quem eles se compõem em atitudes impróprias
e excessos, em relação aos quais corariam como pessoas
privadas.
A acrescer a tudo isto há na natureza do poder soberano
uma impaciência de controlar que dispõe os que estão inves-
tidos do seu exercício a verem com um olhar malévolo todas
as tentativas externas para restringir ou dirigir a sua actividade.
Deste espírito resulta que em todas as associações políticas
que são fundadas no princípio de unir num interesse comum
um certo número de soberanias menores se encontrará uma
certa tendência excêntrica nas órbitas subordinadas e inferiores,
cuja actuação originará um esforço perpétuo de cada uma
delas para se afastar do centro comum. Esta tendência não é
difícil de explicar. Tem a sua origem no amor pelo poder.
O poder controlado ou limitado é quase sempre o rival e
inimigo desse poder que o controla ou limita. Esta simples
proposição mostrar-nos-á como há pouca razão para esperar
que as pessoas a quem foi confiada a administração dos assuntos
dos membros particulares de uma confederação estejam sempre
prontas, com perfeita boa vontade e um respeito imparcial
pela prosperidade pública, a executar as resoluções ou decretos
da autoridade geral. O inverso disto resulta da constituição
da natureza humana.
Por consequência, se as medidas da Confederação não
puderem ser executadas sem a intervenção das administrações
particulares, haverá poucas perspectivas de serem de todo em
todo executadas. Os governantes dos membros respectivos,
quer tenham um direito constitucional a fazê-lo quer não,
tomarão a seu cargo ajuizar das próprias medidas. Considerarão
a conformidade da coisa proposta ou requerida com os seus
interesses e objectivos imediatos, as conveniências ou inconve-
niências momentâneas que acompanharão a sua adopção.
Tudo isto será feito, e num espírito de escrutínio interessado

[167]
e desconfiado, sem esse conhecimento das circunstâncias
nacionais e das razões de estado que é essencial para um juízo
correcto e com essa forte predilecção para com objectos locais,
que dificilmente deixará de levar a decisão pelo caminho
errado. O mesmo processo tem de ser repetido em cada mem-
bro de que se compõe o corpo, e a execução dos planos, con-
cebidos pelos conselhos do todo, flutuará sempre à discrição
da opinião mal informada e preconceituosa de cada parte. Os
que estão familiarizados com os debates de assembleias popu-
lares e que viram como muitas vezes é dificil, quando não
existe pressão exterior das circunstâncias, fazê-las chegar a
resoluções harmoniosas sobre pontos importantes, facilmente
conceberão como deve ser impossível induzir uma quantidade
de assembleias dessas, deliberando à distância umas das outras,
em momentos diferentes e debaixo de diferentes impressões,
a desejar ardentemente cooperar nos mesmos pontos de vista
e nas mesmas demandas.
No nosso caso, é exigida a concordância de treze soberanias
distintas, segundo a Confederação, para a execução cabal de
cada medida importante que provém da União. Aconteceu
o que fora previsto. As medidas da União não foram exe-
cutadas; as delinquências dos Estados amadureceram passo a
passo até um extremo que, com o tempo, travou as rodas do
governo nacional, e trouxe-as a uma horrível imobilização.
Neste momento, o Congresso praticamente não possui meios
de manter o sistema da administração até que os Estados pos-
sam ter tempo de concordar com um substituto mais subs-
tancial para a presente sombra de governo federal. As coisas
não chegaram de um só golpe a esta extremidade desesperada.
As causas que foram especificadas começaram por produzir
apenas graus desiguais e desproporcionados de cumprimento
das solicitações da União. As maiores deficiências de alguns
Estados forneceram o pretexto do exemplo e a tentação do
interesse aos Estados que cumprian1 ou que eram os menos
infractores. Porque é que devemos fazer proporcionalmente

[168]
mais do que aqueles que connosco estão embarcados na mesma
viagem política? Porque é que devemos consentir em suportar
mais do que a parte que nos cabe do fardo comum? Foram
estas as sugestões a que o egoísmo humano não pôde opor-
-se, e que até os homens especulativos, que olhavam para mais
longe para as consequências remotas, não podiam combater
sem hesitação. Cada Estado, cedendo à voz persuasiva do
interesse ou da conveniência imediatos, retirou sucessivamente
o seu apoio, até que o frágil e arruinado edificio parece pronto
a desabar sobre as nossas cabeças e a esmagar-nos debaixo das
suas ruínas.
PUBLIUS.

[169]
O FEDERALISTA N." 16

Insuficiência da Actual Confederação


para Preservar a União (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
4 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A tendência do princípio de legislação para os Estados,


ou comunidades, nas suas capacidades políticas, como foi
exemplificado na experiência que dela temos tido, é igualmente
atestada pelos acontecimentos que ocorreram com todos os
outros governos do tipo confederado dos quais temos algum
relato, na exacta proporção da prevalência dela nesses sistemas.
As confirmações deste facto serão merecedoras de um exame
distinto e particularizado 1. Contentar-me-ei simplesmente
com observar aqui que, de todas as confederações da antigui-
dade que a história trouxe até nós, as ligas da Lícia e da Acaia,
segundo os vestígios que ainda restam delas, parecem ter sido

* Do The New- York Packet, 4 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 5 de Dezembro no The lndependentjournal e em 6 de Dezembro
no The Daily Advertiser. QC).
t Ve:r artigos 18, 19, 20. QC).

[171]
as mais livres das grilhetas desse errado princípio, e foram por
consequência aquelas que mais mereceram e mais liberalmente
receberam marcas de aprovação dos escritores políticos.
Este criticável princípio pode, tanto verdadeira como
enfaticamente, ser chamado o pai da anarquia: viu-se que as
infracções dos membros da União são a sua prole natural e
necessária; e que, sempre que acontecem, o único remédio
constitucional é a força e o efeito imediato do uso desta última,
a guerra civil.
Falta-nos investigar até onde é que um mecanismo de
governação tão odioso, quando aplicado ao nosso caso, seria
capaz de dar resposta à sua finalidade. Se não existir um grande
exército constantemente à disposição do governo nacional,
este não será de todo capaz de empregar a força, ou então,
quando o puder fazer, resultará disso uma guerra entre
diferentes partes da Confederação, envolvendo as infracções
de uma aliança, na qual é provável que a associação mais forte
prevaleça, quer seja constituída pelos que apoiaram a autoridade
geral quer pelos que se opuseram a ela. Raramente se dará o
caso de que as infracções a serem reparadas fiquem confinadas
a um único membro, e se houver mais do que um que tenha
negligenciado o seu dever, a similitude da situação induzirá
todos eles a unirem-se para a defesa comum. Independente-
mente deste motivo de simpatia, se acontecer que um Estado
grande e influente seja o membro agressor, este terá normal-
mente peso suficiente junto dos seus vizinhos para conquistar
alguns deles como aliados na sua causa. Podem ser forjados
com facilidade argumentos capciosos sobre o perigo para a
liberdade comum; podem ser inventadas desculpas plausíveis
para as deficiências do partido, para despertar receios, inflamar
as paixões, e conciliar a boa-vontade mesmo desses Estados
que não possam ser acusados de qualquer violação ou omissão
do seu dever. Isto é o que mais provavelmente aconteceria,
dado que se poderia por vezes esperar que os delitos dos mem-
bros mais importantes proviessem de uma premeditação

[172]
ambiciosa dos seus governantes, tendo em vista livrar-se de
todo e qualquer controlo externo dos seus desígnios de engran-
decimento pessoal; e para melhor o conseguir é presumível
que intrigassem previamente com indivíduos importantes dos
Estados adjacentes. Se não pudessem encontrar aliados internos,
teriam de recorrer à ajuda de potências estrangeiras, que rara-
mente ficariam descontentes por encorajar as dissensões de
urna Confederação de cuja firme União muito teriam a temer.
Uma vez desembainhada a espada, as paixões dos homens não
observam limites de moderação. As sugestões do orgulho
ferido, as instigações do ressentimento irritado, seriam capazes
de conduzir os Estados contra os quais eram empregues os
exércitos da União a quaisquer extremos necessários para
vingar a afronta, ou evitar a desgraça ou submissão. A primeira
guerra deste género terminaria provavelmente numa dissolução
da União.
Isto pode ser considerado como a morte violenta da
Confederação. A sua morte mais natural é a que agora parece
que estamos prestes a experimentar, se o sistema federal não
for rapidamente renovado para uma forma mais substancial.
Não é provável, considerando a índole deste país, que os
Estados cumpridores estejan1 com muita frequência inclinados
para apoiar a autoridade da União travando uma guerra contra
os Estados não cumpridores. Estarão sempre mais prontos
para prosseguir o curso mais suave de se porem em pé de
igualdade com os membros infractores imitando-lhes o exem-
plo. E a culpa de todos converter-se-á assim na segurança de
todos. A nossa experiência passada exibiu a acção deste espírito
muito claramente. Haveria, de facto, uma dificuldade insupe-
rável em averiguar quando é que a força poderia com justeza
ser empregue. No aspecto da contribuição pecuniária, que
seria a fonte mais vulgar de infracções, seria muitas vezes
impossível decidir se ela tinha procedido de relutância ou de
incapacidade. O pretexto desta última estaria sempre à mão.
E teria de ser muito flagrante o caso em que a sua falácia

[173]
pudesse ser detectada com certeza suficiente para justificar o
severo expediente da compulsão. É facil de ver que só este
problema, sempre que ocorresse, abriria um vasto campo ao
exercício de pontos de vista facciosos, à parcialidade e à opres-
são, na maioria que eventualmente predominasse na assembleia
nacional.
Parece que não são precisos grandes esforços para provar
que os Estados não deveriam preferir uma Constituição
nacional que só pudesse ser mantida em vigor graças à inter-
venção de um grande exército continuamente pronto para
fazer cumprir as solicitações normais ou os decretos do
governo. E todavia esta é a natural alternativa implicada por
aqueles que desejam negar-lhe o poder de alargar a sua com-
petência aos indivíduos. Um esquema desses, ainda que fosse
praticável, degeneraria instantaneamente em despotismo
militar, mas pode ver-se que ele é totalmente impraticável.
Os recursos da União não estariam à altura da manutenção
de um exército suficientemente considerável para confinar
os maiores Estados dentro dos limites do seu dever; e, para
começar, jamais seriam fornecidos os meios para formar um
tal exército. Quem quer que considere a forte densidade de
população e a força de vários desses Estados isoladamente, na
presente conjuntura, e anteveja aquilo em que eles se tornarão,
mesmo a meio século de distância, imediatamente afastará
como fútil e visionário qualquer esquema que almeje regula-
mentar os seus movimentos por meio de leis com acção sobre
eles na qualidade de corpos colectivos e executadas por meio
de uma coerção que lhes seja aplicável nessa qualidade. Um
projecto desta natureza é pouco menos romântico do que a
actividade de domar monstros que é atribuída aos heróis
fabulosos e semideuses da antiguidade.
Mesmo nessas confederações que se compuseram de
membros mais pequenos do que muitos dos nossos condados,
o princípio de legislação para Estados soberanos, apoiado na
coerção militar, nunca foi eficiente. Raramente se tentou

[174]
adoptá-lo, excepto contra os membros mais fracos. E em mui-
tos casos as tentativas para coagir os refractários e os desobedien-
tes deram lugar a guerras sangrentas, nas quais metade da
confederação desfraldou as suas bandeiras contra a outra
metade.
O resultado destas observações para uma mente inteligente
deve ser muito claramente o seguinte: que, se for possível a
qualquer custo construir um governo federal capaz de regular
os interesses comuns e de preservar a tranquilidade geral, ele
deve ser fundado, tal como os objectos entregues ao seu
cuidado, no princípio contrário ao defendido pelos opositores
da Constituição proposta. Tem de estender a sua actuação às
pessoa dos cidadãos. Tem de poder prescindir da existência
de legi lação intermédia, mas deve ter poderes para empregar
o braço do magistrado ordinário para executar as suas próprias
resoluções. A majestade da autoridade nacional deve ser mani-
festada por intermédio dos tribunais de justiça. O governo
da União, tal como o de cada Estado, deve ter a capacidade
de exercer um efeito imediato sobre as esperanças e os receios
dos indivíduos e atrair em seu apoio aquelas paixões que têm
a mais forte influência sobre o coração humano. Deve, em
suma, possuir todos os meios, e ter direito a recorrer a todos
os métodos, para exercer os poderes de que está investido, e
que são possuídos e exercidos pelo governo dos Estados sin-
gulares.
A este raciocínio pode talvez objectar-se que, se qualquer
Estado vier a ficar descontente com a autoridade da União,
ele pode a todo o momento obstruir a execução das suas leis,
e levar o caso até à mesma solução de força, cuja necessidade
é usada para censurar o esquema contrário.
A plausibilidade desta objecção desvanece-se no momento
em que atentamos na diferença essencial entre uma simples
INSUBMISSÃO e uma RESISTÊNCIA DIRECTA e ACTIVA. Se for
necessária a interposição das legislaturas estaduais para efectivar
uma medida da União, basta-lhes apenas NÃO ACTUAR, ou

[175]
ACTUAR EVASIVAMENTE, e a medida ficará sem efeito. Esta
negligência no cumprimento do dever pode ser dissimulada
sob medidas rebuscadas mas insubstanciais, para que não se
vejam, e evidentemente não excitem nenhum alarme no povo
em relação à segurança da Constituição. Os dirigentes dos
Estados podem até fazer alarde das suas violações sub-reptícias
da Constituição com fundamento em alguma conveniência,
isenção ou vantagem temporárias.
Mas se a execução das leis do governo nacional não precisar
da intervenção das legislaturas estaduais e se as leis se aplicarem
imediatamente aos próprios cidadãos, os governos particulares
não podem interromper o progresso delas sem um uso incons-
titucional de força, aberto e violento. Nem omissões nem
evasões servirão para o efeito. Serão obrigados a agir, e de tal
maneira que não ficaria dúvida de que usurparam os direitos
nacionais. Urna experiência desta natureza seria sempre arris-
cada, em face de uma Constituição competente no rrúnimo
grau para a sua própria defesa, e de um povo suficientemente
esclarecido para distinguir entre um exercício legal e uma
usurpação ilegal da autoridade. O êxito dessa experiência exi-
giria não só uma maioria facciosa na Legislatura, mas a con-
corrência dos tribunais de justiça e do grosso do povo. Se os
Juízes não se envolvessem numa conspiração com a legislatura,
proclamariam que as resoluções dessa maioria são contrárias
à suprema lei do país, inconstitucionais, e nulas. Se o povo
não estivesse corrompido pelo espírito dos seus representantes
estaduais, ele, como guardião natural da Constituição, atiraria
o seu peso para a balança nacional e dar-lhe-ia uma preponde-
rância decidida na controvérsia. Não seria frequente que
fossem feitas tentativas deste género leviana ou temerariamente,
porque raramente poderiam ser feitas sem perigo para os seus
autores, excepto em casos de exercício tirânico da autoridade
federal.
Se a oposição ao governo nacional viesse a resultar da
conduta turbulenta de indivíduos refractários ou sediciosos,

(176]
ela poderia ser dominada usando os mesmos meios que são
diariamente empregues contra o mesmo mal pelos governos
dos Estados. A Magistratura , sendo ao mesmo tempo os
Ministros da lei do país, seja qual for a fonte de onde ela possa
emanar, estaria indubitavelmente tão pronta a proteger tanto
os regulamentos nacionais como os regulamentos locais das
incursões da intemperança privada. Quanto a essas comoções
e insurreições parciais, que por vezes perturbam a sociedade,
provenientes das intrigas de uma facção sem importância, ou
de descontentamentos súbitos e ocasionais que não infectam
o grosso da comunidade, o governo geral poderia usar recursos
para a supressão dos distúrbios desse género mais amplos do
que aqueles de que seria capaz qualquer membro singular.
Quanto a essas inimizades mortais que, em certas conjunturas,
desencadeiam uma conflagração envolvendo toda uma nação,
ou uma grande parte dela, provenientes de ponderosas causas
de descontentamento dadas pelo governo ou do contágio de
algum violento paroxismo popular, elas não se enquadram
nas regras normais de previsão. Quando sobrevêm, culminam
comummente em revoluções e desmembramentos de impérios.
Nenhuma forma de governo pode evitá-las ou controlá-las
sempre. É vã a esperança de defesa em relação a acontecimentos
demasiado transcendentes para a previsão ou precaução
humanas, e seria ocioso objectar a um governo porque não
pode fazer impossíveis.
PUBLIUS.

[177]
O FEDERALISTA N.• 17

Insuficiência da Actual Confederação


para Preservar a União (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
5 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorqu e.

Uma objecção, de natureza diferente da que foi exposta


e respondida no meu último artigo, pode talvez ser também
alegada contra o princípio de legislação para os cidadãos
individuais da América. Pode ser dito que ele tenderia para
tornar demasiado poderoso o governo da União, e dar-lhe a
capacidade de absorver em si esses poderes residuais que se
poderia julgar mais apropriado deixar aos Estados para fins
locais. Admitindo a máxima latitude ao amor pelo poder que
qualquer homem razoável pode desejar, confesso que estou
em dificuldades para descobrir que tentação é que as pessoas
investidas na administração do governo geral poderiam alguma

* Do The Independent j ournal, 5 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 7 de Dezembro no The New- York Packet e no The Daily Advertiser.
QC) .

[179]
vez sentir para despojar os Estados de tais poderes. A regulação
da simples política doméstica de um Estado apresenta-se como
tendo pouca atracção para a ambição. Comércio, finanças,
negociações e guerra parecem abranger todos os objectos que
têm encantos para espíritos governados por essa paixão, e
todos os poderes necessários a esses objectos deviam, em pri-
meira instância, estar à guarda do depositário nacional.
A administração da justiça privada entre cidadãos do mesmo
Estado, a supervisão da agricultura e de outros interesses de
natureza semelhante, todas essas coisas, em suma, que são pró-
prias para serem regulamentadas pela legislação local, nunca
podem ser preocupações desejáveis de uma jurisdição geral.
Por consequência, é improvável que venha a existir nas
assembleias federais uma disposição para usurpar os poderes
a que as referidas competências estão ligadas, porque a tenta-
tiva de exercer esses poderes seria tão incómoda como fútil.
E, por essa razão, a posse deles em nada contribuiria para a
dignidade, importância ou esplendor do governo nacional.
Mas admitindo, a bem do argumento, que a mera irreflexão
e o simples desejo de dominação seriam suficientes para gerar
essa disposição, ainda assim pode afirmar-se com segurança
que a opinião geral do corpo constituinte dos representantes
nacionais ou, por outras palavras, do povo dos diversos Estados,
controlaria o vício de um apetite assim extravagante. Será
sempre muito mais facil que sejam os governos dos Estados
a usurpar a autoridade nacional do que o governo nacional
a usurpar a autoridade dos Estados. A demonstração desta
proposição depende do maior grau de influência que os gover-
nos dos Estados, se administrarem os seus negócios com
integridade e prudência, terão geralmente sobre o povo. Uma
circunstância que simultaneamente nos ensina que existe uma
fraqueza inerente e intrínseca em todas as Constituições
Federais, e que o esforço posto na sua organização nunca é
demasiado para lhes dar toda a força que é compatível com
os princípios da liberdade.

[180]
A superioridade de influência em favor dos governos par-
ticulares resultaria em parte da organização difusa do governo
nacional, mas principalmente da natureza dos assuntos para
os quais seria dirigida a atenção das administrações dos Estados.
É um facto conhecido acerca da natureza humana que é
comum que os seus afectos enfraqueçam na proporção inversa
da distância ou da extensão dos seus objectos. Com base no
mesmo princípio de que um homem é mais afeiçoado à família
do que aos vizinhos, e aos vizinhos mais do que à maioria da
comunidade, o povo de cada Estado tende para ser mais
tolerant com os seus governos locais do que em relação ao
governo da União, a menos que a força desse princípio fosse
destruída por uma melhor administração deste último.
Esta forte propensão do coração humano encontraria
auxiliares poderosos nos objectos de regulamentação dos
Estados.
A variedade de interesses mais diminutos, que necessaria-
mente ficarão sob a superintendência das administrações locais,
e que constituirão outras tantas correntes de influência, cir-
culando através de todas as partes da sociedade, não pode ser
particularizada sem envolver minudências demasiado enfado-
nhas e d sinteressantes para compensar os conhecimentos que
poderia proporcionar.
Há uma vantagem transcendente que pertence à esfera
dos governos estaduais, e tal que só ela é suficiente para ilumi-
nar o assunto de maneira clara e satisfatória. Quero referir-
-me à administração comum da justiça criminal e civil. Esta
é, entre todas as outras, a mais poderosa, a mais universal e a
mais atraente fonte de obediência e simpatia populares. É ela
que, sendo a guardiã imediata e visível da vida e da proprie-
dade, tendo os seus beneficies e sanções em constante activi-
dade perante o olhar do público, regulando todos aqueles
interesses pessoais e familiares para os quais a sensibilidade dos
indivíduos está mais prontamente desperta, contribui, mais
do que qualquer outra circunstância, para imprimir, no espírito

[181]
do povo, a afeição, a estima e a reverência para com o governo.
Este grande aglutinador da sociedade, que se difundirá quase
inteiramente através dos canais dos governos particulares,
independentemente de todas as outras causas de influência,
assegurar-lhes-ia uma autoridade tão inequívoca sobre os res-
pectivos cidadãos que os tornaria permanentemente um grande
contrapeso e, não raro, perigosos antagonistas do poder da
União.
Como a actuação do governo nacional, por outro lado,
cai menos imediatamente sob a observação da massa dos
cidadãos, os beneficias dela derivados serão percebidos por
homens especulativos, e receberão da parte destes a maior
atenção. Reportando-se a interesses mais gerais, serão menos
capazes de excitar os sentimentos do povo e, proporcional-
mente, serão menos propensos a inspirar um sentimento
habitual de obrigação e um sentimento activo de simpatia t .
O raciocínio sobre este tópico tem sido abundantemente
exemplificado pela experiência de todas as Constituições
federais , com que estamos familiarizados, e de todas as outras
que revelaram a mínima analogia com elas.
Embora os antigos sistemas feudais não fossem confedera-
ções, estritamente falando, ainda assim partilhavam da natureza
dessa espécie de associação. Havia um dirigente comum, chefe
ou soberano, cuja autoridade se estendia sobre toda a nação,
e um número de vassalos subordinados, ou feudatários, a
quem estavam distribuídas grandes porções de terra, e um
numeroso séquito de vassalos inferiores ou súbditos, que
ocupavam e cultivavam essas terras em consequência da vassa-
lagem ou obediência às pessoas que lhas tinham concedido.

1 Os autores de O Federalista baseiam a sua análise das instituições numa

análise da condição humana. O que Hamilton realiza neste Ensaio pode ser
definido como uma autêntica antropologia filosófica do prindpio da subsidiariedade,
redundando na reafirmação da mais facil relação de lealdade dos cidadãos com
os governos estaduais do que com o sistema político federal. (E. P.) .

(182)
Cada vassalo principal era uma espécie de soberano, dentro
dos seus feudos. As consequências desta situação eram uma
oposição contínua à autoridade do soberano e guerras fre-
quente entre os grandes barões ou principais feudatários.
O poder do dirigente da nação era comummente demasiado
fraco, quer para preservar a paz pública, quer para proteger o
povo contra as opressões dos seus senhores imediatos. Este
período dos acontecimentos europeus é enfaticamente
denominado pelos historiadores como a época da anarquia
feudal.
Quando acontecia que o soberano fosse um homem de
temperamento vigoroso e belicoso e dotado de capacidades
superiores, ele adquiria um peso e influência pessoais que res-
pondiam, durante esse tempo, aos objectivos de uma autoridade
mais perfeita. Mas em geral o poder dos barões triunfava sobre
o do príncipe e em muitos casos o seu dorrúnio era inteira-
mente abandonado e os grandes feudos transformavam-se em
principados ou Estados independentes. Naqueles casos em
que o monarca acabava por prevalecer sobre os seus vassalos,
o seu sucesso devia-se principalmente à tirania desses vassalos
sobre os seus dependentes. Os barões, ou nobres, igualmente
inimigos do soberano e opressores do povo comum, eram
temido e detestados por ambos, até que o perigo e o interesse
mútuos efectivaram uma união entre eles que foi fatal para o
poder da aristocracia. Tivessem os nobres, por uma conduta
de clemência e justiça, preservado a fidelidade e devoção dos
seus súbditos e partidários e as disputas entre eles e o príncipe
teriam quase sempre terminado a seu favor, e com a diminuição
ou subversão da autoridade real.
Esta não é uma afirmação fundada apenas em especulação
ou conjectura. Entre outras ilustrações da verdade dela que
poderiam ser citadas, a Escócia fornecerá um exemplo con-
vincente. O espírito de clã que foi introduzido nesse reino
nos primeiros tempos, unindo os nobres e os seus dependentes
por laços equivalentes aos do parentesco, converteu a aristo-

[183]
cracia numa barreira invencível para o poder do monarca, até
que a incorporação com a Inglaterra subjugou o seu espírito
violento e indisciplinado e enquadrou-o naquelas normas de
subordinação que um sistema mais racional e mais enérgico
de sociedade civil tinha previamente estabelecido neste último
remo.
Os governos separados numa confederação podem ser
convenientemente comparados com as baronias feudais com
esta vantagem a seu favor: que em face das razões já explanadas,
possuem em geral a confiança e a boa-vontade do povo, e
com um apoio tão importante como esse serão capazes de se
opor com eficácia a todas as usurpações do governo nacional.
Será bom que não sejam capazes de neutralizar a autoridade
necessária e legítima deste último. Os pontos de semelhança
consistem na rivalidade de poder, aplicável a ambos, e na
CONCENTRAÇÃO de grande parte da força da comunidade
em DEPOSITÁRIOS particulares, num caso à disposição dos
indivíduos, no outro à disposição de órgãos políticos.
Uma recapitulação concisa dos acontecimentos que mar-
caram os governos confederados ilustrará ainda mais esta
importante doutrina. É uma falta de atenção que tem sido a
grande fonte dos nossos erros políticos, e que orientou as
nossas desconfianças para o lado errado. Esta recapitulação
será objecto dos artigos que se seguirão.
PUBLIUS.

[184)
O FEDERALISTA N." 18

Insuficiência da Actual Confederação para


Preservar a União (continuação)

JAMES MADISON
[COM A AJUDA DE ALEXANDER HAMILTON)
7 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Entre as confederações da antiguidade, a mais importante


foi a das repúblicas gregas, associadas no Conselho Anfictiónico.
De acordo com os melhores relatos transmitidos sobre esta
celebrada instituição, ela apresentava uma analogia muito
instrutiva com a presente confederação dos Estados Ame-
ricanos1.

* Do The New- York Packet, 7 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 8 de Dezembro no The Independent ]ournal, e foi começado
em 7 de Dezembro e concluído em 8 de Dezembro no The Daily Advertiser.
oq.
1 Um dos traços mais impressionantes desta obra reside na profunda

erudição histórica de James Madison e Alexander Hamilton em matérias


político-jurídi cas. Sabemos que James Madison, anteve ndo as mudanças
constitucionais que se avizinhavam, se retirou nos meses de Primavera e Verão
de 1786 para a plantação dos se us pais, em Montpelier, Orange County,

[185]
Os membros conservavam o carácter de Estados soberanos
e independentes, e tinham igualdade de votos no conselho
federal. Este conselho tinha uma autoridade geral para propor
e resolver tudo o que julgasse necessário para o bem-estar
comum da Grécia: declarar e conduzir a guerra, decidir, em
última instância, todas as controvérsias entre os membros,
multar a parte agressora,empregar a força de toda a con-
federação contra os desobedientes, admitir novos membros.
Os Anfictiões eram os guardiães da religião e das imensas
riquezas pertencentes ao Templo de Delfos, onde tinham o
direito de jurisdição nas controvérsias entre os habitantes e
os que vinham consultar o oráculo. Como medida suplementar
para a eficácia dos poderes federais, faziam um juramento
mútuo de defender e proteger as cidades unidas, punir os
violadores desse juramento, e aplicar castigos aos sacrílegos
espoliadores do templo.
Em teoria e no papel, estes instrumentos de poder parecem
suficientemente amplos para todos os fins genéricos. Em vários
aspectos importantes, excedem os poderes enumerados nos
Artigos da Confederação. Os Anfictiões tinham nas mãos a
superstição dos tempos, um dos principais instrumentos por
intermédio dos quais o governo se mantinha. Gozavam de
uma autoridade declarada para usar a coerção contra as cidades
refractárias e estavam obrigados por juramento a exercer essa
autoridade nas ocasiões necessárias.
Todavia, a prática era muito diferente da teoria. Os poderes,
tal como os do presente Congresso, eram administrados por
delegados escolhidos exclusivamente pelas cidades no uso das

Virgínia, onde se dedicou ao estudo de política e direito constitucionais


comparados, a partir de livros enviados de Paris pelo seu amigo Thomas
Jefferson, Embaixador dos EUA na capital francesa. Esse estudo só seria
interrompido pela necessidade de partir, em Agosto, para a Convenção de
Annapolis, a qual pode ser considerada como o primeiro passo no caminho
que conduziu à elaboração da nova Constituição federal . (E. P.).

[186]
suas capacidades políticas e exercidos sobre elas no uso das
mesmas capacidades. Resultaram daí a fraqueza, as desordens
e, por fim, a destruição da confederação. Os membros mais
podero os, em vez de se manterem respeitosos e subordinados,
tiranizaram sucessivamente todos os restantes. Atenas, como
nos diz Demóstenes, foi o árbitro da Grécia durante setenta
e três anos. Seguiram-se os lacedemónios que governaram
vinte e nove anos. Num período posterior, depois da batalha
de Leuctras, chegou a vez de dominarem os tebanos.
Não raro aconteceu, segundo Plutarco, que os delegados
das cidades mais fortes intimidaram e corromperam os das
cidades mais fracas e que as decisões favoreceram o partido
mais poderoso.
Me mo no meio de guerras defensivas e perigosas com a
Pérsia e a Macedónia, os membros nunca agiam concertada-
mente, e foram, em maior ou menor número, joguetes ou
assalariados do inimigo comum. Os intervalos de guerra
externa foram preenchidos com vicissitudes internas, con-
vulsões e morticínios.
Depois do fim da guerra contra Xerxes, parece qu e os
lacedemónios exigiram que um certo número de cidades fosse
excluído da confederação por causa do papel desleal que
tinham desempenhado. Os atenienses, percebendo que, com
tal medida, os lacedemónios perderiam menos partidários do
que eles e se tornariam senhores das deliberações públicas,
opuseram-se vigorosamente e derrotaram a proposta. Este
detalhe histórico demonstra imediatamente a ineficácia da
união, a ambição e a inveja dos seus membros mais poderosos,
e a condição dependente e degradada dos restantes. Os mem-
bros mais pequenos, embora pela teoria do seu sistema tivessem
direito a orbitar com igual orgulho e majestade em torno do
centro comum, tinham-se tornado, de facto, satélites das
órbitas de primeira magnitude.
Tivessem os gregos, diz o Abade Milot, sido tão sensatos
como foram corajosos, teriam percebido, a partir da experiên-

[187]
cia, a necessidade de uma união mais íntima e teriam apro-
veitado a paz que se seguiu aos seus sucessos contra os exércitos
persas para fazer a necessária reforma. Em vez desta orientação
politica óbvia, Atenas e Esparta, inchadas com as vitórias e a
glória que tinham adquirido começaram por se tornar rivais
e mais tarde inimigas, e fizeram uma à outra muito mais dano
do que aquele que tinham sofrido de Xerxes. As suas mútuas
invejas, temores, ódios, e ofensas resultaram na famosa Guerra
do Peloponeso, que acabou com a ruína e escravidão dos
atenienses que a tinham começado.
Como um governo fraco, quando não está em guerra, é
sempre agitado por dissensões internas, também estas nunca
deixam de trazer novas calamidades do exterior. Tendo os
Fócios lavrado um pouco de terra consagrada pertencente ao
templo de Apolo, o Conselho Anfictiónico, de acordo com
a superstição dessa era, impôs uma multa aos sacrílegos ofen-
sores. Os Fócios, incitados por Atenas e Esparta, recusaram
submeter-se ao decreto. Os tebanos, juntamente com outras
cidades, empreenderam manter a autoridade dos Anfictiões,
e vingar o deus ultrajado. Sendo estes últimos o partido mais
fraco, solicitaram a assistência de Filipe da Macedónia, que
tinha alimentado secretamente a controvérsia. Filipe aproveitou
prontamente a oportunidade para executar os desígnios que
há longo tempo planeava contra as liberdades da Grécia. Por
meio das suas intrigas e subornos pôs do lado dos seus interesses
os dirigentes populares de diversas cidades. Por meio da
influência e dos votos destes últimos, conseguiu ser admitido
na Conselho Anfictiónico e, por meio das suas artes e dos
seus exércitos, tornou-se senhor da confederação.
Foram estas as consequências do princípio falacioso em
que foi fundada esta interessante instituição. Se a Grécia, diz
um judicioso observador do destino dela, se tivesse unido
numa confederação mais forte e perseverado na sua união,
nunca teria suportado o domínio da Macedónia e poderia
ter sido uma barreira aos vastos projectos de Roma.

[188]
A liga Acaica, como é chamada, foi outra sociedade de
repúblicas gregas que nos proporciona valiosos ensinamentos.
Nela, a União era muito mais íntima, e a organização
muito mais sábia, do que no exemplo precedente. Em conse-
quência disso, parecerá que, embora não isenta de uma catás-
trofe semelhante, de maneira nenhuma a merecia com igual
razão.
As cidades que compunham esta liga conservavam a sua
jurisdição municipal, nomeavam os seus próprios funcionários ,
e desfrutavam de uma perfeita igualdade. O Senado, no qual
estavam representadas, tinha o direito único e exclusivo da
paz e da guerra, de enviar e receber embaixadores, de parti-
cipar em tratados e alianças, de nomear um Magistrado
Supremo ou Pretor, como era chamado, que comandava os
seus exércitos e que, com o conselho e o consentimento de
dez dos senadores, não só administrava o governo na pausa
dos trabalhos do Senado, mas também tinha uma grande par-
ticipação nas deliberações deste, quando reunido. Segundo a
Constituição primitiva, havia dois Pretores associados na
adminis ração, mas com a experiência foi preferido um só.
Parece que as cidades tinham todas as mesmas leis e costu-
mes, os mesmos pesos e medidas e a mesma moeda. Mas per-
manece incerto em que medida é que este efeito provinha
da autoridade do conselho federal. Apenas se sabe que as cida-
des estavam de certa maneira obrigadas a receber as mesmas
leis e usos. Quando a Lacedemónia foi trazida para a liga por
Filopémen, isso foi acompanhado de uma abolição das insti-
tuições e leis de Licurgo, e uma adopção das dos Acaicos.
A confederação Anfictiónica, da qual ela tinha sido membro,
deixara-a no pleno exercício do seu governo e da sua legislação.
Basta esta circunstância para provar uma verdadeira diferença
material no carácter dos dois sistemas.
É realmente de lamentar que restem apenas memórias
imperfeitas desta curiosa estrutura política. Se a sua estrutura
interna e funcionamento normal pudessem ser averiguados,

[189]
é provável que eles lançassem mais luz sobre a ciência do
governo federal do que qualquer das experiências semelhantes
com que estamos familiarizados.
Um facto importante parece ser testemunhado por todos
os historiadores que se ocuparam dos assuntos Acaicos. É que,
tanto depois da renovação da liga por Arato, como antes da
sua dissolução pela astúcia da Macedónia, havia infinitamente
mais moderação e justiça na administração do seu governo,
e menos violência e sedição entre o povo, do que as que eram
encontradas em qualquer das cidades exercendo isoladamente
todas as prerrogativas da soberania. O Abade Mably, nas suas
observações sobre a Grécia, diz que o governo popular, que
foi tão tempestuoso noutras paragens, não causava nenhuma
desordem entre os membros da república Acaica, porque nela
era contido pela autoridade geral e pelas leis da confederação.
Não devemos concluir demasiado apressadamente, no
entanto, que as facções não agitavam, em certo grau, cada
uma das cidades e muito menos que reinavam no sistema
geral uma submissão e harmonia adequadas. O contrário é
suficientemente mostrado pelas vicissitudes e destino da
república.
Enquanto a confederação Anfictiónica subsistiu, a dos
Acaicos, que compreendia apenas as cidades menos impor-
tantes, desempenhou um fraco papel no cenário da Grécia.
Enquanto a primeira se tornou vítima da Macedónia, a última
foi poupada pela política de Filipe e Alexandre. Contudo,
sob o domínio dos sucessores destes príncipes prevaleceu urna
política diferente. As artes da divisão eram praticadas entre os
Acaicos: cada cidade foi seduzida para um interesse separado;
a União foi dissolvida. Algumas das cidades caíram sob a tirania
das guarnições macedónias; outras sob a de usurpadores surgi-
dos das suas próprias confusões. A vergonha e a opressão em
breve acordaram o seu amor pela liberdade. Algumas cidades
voltaram a unir-se. O seu exemplo foi seguido por outras, à
medida que foram sendo encontradas oportunidades para

[190]
sacudir o jugo dos seus tiranos. A liga abrangeu rapidamente
quase todo o Peloponeso. A Macedónia assistiu aos seus
progressos, mas estava impedida de lhe pôr termo por causa
de dissensões internas. Toda a Grécia se arrebatou com o
entusiasmo e pareceu pronta a unir-se numa única confedera-
ção, quando os ciúmes e as invejas, em Esparta e em Atenas,
ante a glória ascendente dos Acaicos lançaram um desânimo
fatal sobre o empreendimento. O receio do poder macedónio
induziu a liga a cortejar a aliança dos reis do Egipto e da Síria,
os quais, como sucessores de Alexandre, eram rivais do rei da
Macedónia. Esta política foi derrotada por Cleómenes, rei de
Esparta, que foi levado pela ambição a desencadear um ataque
não provocado aos seus vizinhos, os Acaicos, e que, como
inimigo da Macedónia, tinha interesses suficientes em conjunto
com os príncipes egípcio e sírio para provocar uma brecha
nos seus compromissos para com a liga. Os Acaicos estavam
agora reduzidos ao dilema de se submeterem a Cleómenes,
ou de suplicarem a ajuda da Macedónia, o seu antigo opressor.
Foi adoptado este último expediente. As disputas dos gregos
permitiram sempre a esse poderoso vizinho uma agradável
oportunidade de se imiscuir nos seus assuntos. Imediatamente
apareceu um exército macedónio. Cleómenes foi vencido.
Os Acaicos bem cedo descobriram, como frequentemente
acontece, que um aliado vitorioso e poderoso é apenas um
outro nome para senhor. Tudo o que a sua mais abjecta sub-
missão pôde obter dele foi uma tolerância quanto à manuten-
ção em vigor das suas leis. Filipe, que ocupava agora o trono
da Macedónia, não demorou a provocar, pelas suas tiranias,
novas associações entre os gregos. Os Acaicos, embora enfra-
quecido pelas suas dissensões internas e pela revolta de um
dos seus membros, Messénia, tendo-se associado aos Etólios
e atenienses, ergueram a bandeira da oposição. Achando-se,
apesar de assim apoiados, incapazes da empresa, recorreram
uma vez mais ao perigoso expediente de apelar para o auxílio
dos exércitos e trangeiros. Os romanos, a quem foi feito o

[191]
convite, aceitaram avidamente. Filipe foi vencido; a Macedónia,
subjugada. Seguiu-se uma nova crise na liga. Rebentaram as
dissensões entre os membros, que os romanos apadrinharam.
Calícrates e outros dirigentes populares tornaram-se instru-
mentos mercenários para enganar os seus compatriotas. Para
mais eficazmente alimentarem a discórdia e a desordem, os
romanos, perante o espanto dos que confiavam na sua sinceri-
dade, tinham já proclamado a liberdade universal2 cobrindo
toda a Grécia. Com os mesmos planos insidiosos, seduziram
agora os membros da liga, expondo ao seu orgulho a violação
cometida contra a sua soberania. Com estas artimanhas, a
União, a última esperança da Grécia, a última esperança da
antiga liberdade, foi desfeita em pedaços e tamanha incom-
petência e desorientação se geraram que os exércitos de Roma
pouca dificuldade encontraram para completar a ruína que
os seus artifícios tinham iniciado. Os Acaicos foram dizimados,
e a Acaia carregada de grilhetas, sob as quais geme neste
instante.
Pensei que não era supérfluo apresentar as grandes linhas
deste importante período da história, não só porque nos ensina
mais do que uma lição como porque, como suplemento às
linhas gerais da Constituição Acaia, ilustra enfaticamente a
tendência dos corpos federais, que é maior para a anarquia
entre os membros do que para a tirania por parte dos seus
chefes.
PUBLIUS.

2 Isto era apenas um outro nome mais enganador para a independência


dos membros em relação à chefia federal. (Publius) .

[192]
O FEDERALISTA N." 19

Insuficiência da Actual Confederação


para Preservar a União (continuação)

JAMES MADISON
[COM A COLABORAÇÃO DE ALEXANDER HAMILTON]
8 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Os exemplos de antigas confederações, citados no meu


último artigo, não esgotaram a fonte de conhecimento experi-
mental sobre este assunto. Há instituições existentes, fundadas
num princípio semelhante, que merecem uma consideração
particular. A primeira que se apresenta é o corpo político
germânico t.

* Do The lndepe~1dent Journal, 8 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 1O de Dezembro no The Daily Advertiser e em 11 de Dezembro
no The New-York Packet. QC).
1 Trata-se dos restos do Sacro Império Românico Germânico que, apesar
da sua degradação, não deixou de inspirar numerosas reflexões de autores ao
longo de todo o século XVlll. O Império, ou a União Germânica, dissolver-
-se-ia em 6 de Agosto de 1806. (E. P.).

[193]
Nos primeiros anos da cristandade, existiam na Alemanha
sete nações distintas, que não tinham um chefe comum. Uma
dessas nações, os Francos, tendo vencido os Gauleses, estabele-
ceu o reino que derivou deles o seu nome. No século nono,
Carlos Magno, o seu monarca guerreiro, levou os seus exércitos
vitoriosos em todas as direcções e a Alemanha tornou-se uma
parte dos seus vastos dorrúnios. Quando do desmembramento,
que teve lugar sob os seus filhos, essa parte foi elevada a império
separado e independente. Carlos Magno e os seus descendentes
imediatos possuíam a substância, bem como as insígnias e
dignidade do poder imperial. Mas os vassalos principais, cujos
feudos se tinham tornado hereditários, e que compunham as
Dietas nacionais que Carlos Magno não tinha abolido, liber-
taram-se gradualmente do jugo e progrediram para uma
jurisdição e independência soberanas. A força da soberania
imperial era insuficiente para conter dependentes tão pode-
rosos, ou para preservar a unidade e a tranquilidade do império.
As mais violentas guerras privadas, acompanhadas de toda a
espécie de calamidades, foram travadas entre os diferentes
Príncipes e Estados. A autoridade imperial, incapaz de manter
a ordem pública, declinou pouco a pouco até que quase se
extinguiu na anarquia que agitou o longo intervalo entre a
morte do último imperador dos suábios e a subida ao trono
do primeiro imperador das linhagens austríacas. No século
onze, os imperadores gozavam de soberania plena: no século
quinze tinham pouco mais do que os símbolos e ornamen-
tações do poder.
Saindo do ventre deste sistema feudal, que tem muitas das
importantes características de uma confederação, cresceu o
sistema federal que constitui o império germânico. Os seus
poderes são investidos numa Dieta representando os membros
que compõem a confederação, no imperador, que é o magis-
trado executivo, com um veto sobre os decretos da Dieta e
na Câmara Imperial e no Conselho Áulico, dois tribunais
judiciais com suprema jurisdição nas controvérsias que dizem

[194]
respeito ao império, ou que ocorrem entre os seus mem-
bros.
A Dieta possui o poder genérico de legislar para o império,
de fazer a guerra e a paz, de contrair alianças, de estabelecer
as quotas de tropas e dinheiro, de construir fortalezas, de
cunhar moeda, de admitir novos membros e de sujeitar os
membros desobedientes à expulsão do império, acto pelo qual
o membro em litígio é privado dos seus direitos soberanos e
as suas possessões são confiscadas. Os membros da confede-
ração estão expressamente proibidos: de entrar em contratos
prejudiciais para o império, de impor portagens e direitos
aduaneiros nas suas trocas mútuas, sem o consentimento do
Imperador e da Dieta; de alterar o valor da moeda; de cometer
injustiças uns contra os outros; ou de proporcionar assistência
ou refúgio aos perturbadores da paz pública. E é decretada a
expulsão daquele que viole alguma dessas proibições. Os
membros da Dieta, como tais, estão sujeitos em todos os casos
a serem j ulgados pelo Imperador e pela Dieta, e na sua quali-
dade privada pelo Conselho Áulico e pela Câmara Imperial.
As prerrogativas do imperador são numerosas. As mais
importantes de entre elas são: o seu direito exclusivo de apre-
sentar propostas à Dieta, de vetar as resoluções desta última,
de nomear embaixadores, de conferir dignidades e títulos, de
preench r os eleitorados vagos, de fundar universidades, de
garantir privilégios não prejudiciais aos Estados integrantes
do império, de receber e aplicar a receita pública e, de uma
maneira geral, de vigiar a segurança pública. Em certos casos,
os eleitores formam um conselho para o assistir. Na qualidade
de imperador, não possui território dentro do império, nem
recebe qualquer verba para seu sustento. Mas o seu rendimento
e os seus domínios, noutras qualidades, fazem· dele um dos
mais poderosos príncipes da Europa.
De uma exibição como esta de poderes constitucionais,
nos representantes e no chefe desta confederação, seria natural
supor que ele deve constituir uma excepção ao carácter gené-

[195]
rico que distingue sistemas semelhantes. Nada está mais longe
da realidade. O princípio fundamental, no qual assenta, de
que o império é uma comunidade de soberanos, de que a
Dieta é uma representação de soberanos, e de que as leis são
feitas para soberanos, converte o império num corpo sem
nervos, incapaz de controlar os seus próprios membros, inse-
guro quanto aos perigos externos, e agitado com incessantes
fermentações nas suas próprias entranhas.
A história da Alemanha é uma história de guerras entre
o Imperador e os Príncipes e Estados; de guerras desses mesmos
Príncipes e Estados entre si; do desregramento dos fortes e
da opressão dos fracos; de intromissões e intrigas estrangeiras;
de requisições de homens e dinheiro ignoradas ou satisfeitas
apenas em parte; de tentativas para as fazer cumprir, que abor-
tam inteiramente ou são acompanhadas de morticínio e deso-
lação, misturando os inocentes com os culpados; de incompe-
tência, confusão e miséria gerais.
No século dezasseis, viu-se o Imperador, com uma parte
do império do seu lado, empenhado contra os outros Príncipes
e Estados. Num dos conflitos, o próprio Imperador foi posto
em fuga, e esteve muito perto de ser feito prisioneiro pelo
eleitor da Saxónia. O último rei da Prússia por mais de uma
vez se ergueu contra o seu soberano imperial e provou em
geral ser um adversário superior. As disputas e guerras entre
os membros têm sido tão comuns que os anais alemães estão
pejados de páginas sangrentas que as descrevem. Anteriormente
à paz da Vestefalia a Alemanha foi devastada por uma guerra
de trinta anos, na qual o Imperador, com metade do império
estava de um lado, e a Suécia, com a outra metade, do lado
oposto. A paz foi finalmente negociada e ditada por potências
estrangeiras, e os seus artigos, nos quais eram parte interessada
as potências estrangeiras, constituíram uma parte fundamental
da Constituição alemã.
Se acontece que a nação, em alguma emergência, esteja
mais unida pela necessidade de autodefesa, a sua situação ainda

[196]
assim é deplorável. Os preparativos militares têm de ser prece-
didos de tantas discussões enfadonhas, brotando das desconfian-
ças, do orgulho, de pontos de vista discordantes e de pretensões
conflituantes das comunidades soberanas, que, antes que a
Dieta possa decidir os preparativos o inimigo já está em campo,
e antes que as tropas federais estejam prontas para o atacar, já
está a retirar-se para os seus quartéis de inverno.
O pequeno efectivo de tropas nacionais, que foi conside-
rado necessário em tempo de paz, é deficientemente mantido,
mal pago, contagiado por preconceitos locais, e sustentado
por contribuições do tesouro irregulares e desproporcionadas.
A impossibilidade de manter a ordem e distribuir a justiça
entre es es súbditos soberanos originou a experiência de divi-
dir o império em nove ou dez círculos ou distritos de dar a
estes uma organização interna e de os encarregar da execução
militar das leis contra membros delinquentes e contumazes.
Esta experiência serviu apenas para demonstrar mais com-
pletamente o vício radical da Constituição. Cada círculo é a
imagem em miniatura das disformidades deste monstro polí-
tico. Os distritos ou são incapazes de executar a sua incum-
bência, ou fazem-no com toda a devastação e carnificina da
guerra civil. Por vezes há círculos inteiros que são infractores
e então aumentam os danos para cujo remédio foram insti-
tuídos.
Podemos formar um juízo deste esquema de coerção
militar a partir de um exemplo dado por Thuanus. Em
Donawerth, uma cidade livre e imperial do círculo da Suábia,
o Abade de St. Croix gozava de certas imunidades que lhe
tinham sido reservadas. No exercício destas, em algumas
ocasiões públicas, foram cometidos ultrajes contra ele pelo
povo da cidade. Como consequência, foi imposto à cidade o
banimento do império, e o Duque da Baviera, apesar de admi-
nistrador de um outro círculo, conseguiu ser nomeado para
executar a ordem. Apresentou-se logo diante da cidade com
um exército de dez mil homens, e achando que era uma

[197]
ocasião propícia, como era secretamente sua intenção desde
o início, para restaurar uma pretensão antiga, com o pretexto
de que os seus antepassados tinham tido que aceitar que essa
cidade fosse desmembrada do seu território, 2 tomou posse
dela em seu próprio nome, desarmou e puniu os habitantes,
e voltou a anexá-la aos seus domínios.
Pode talvez perguntar-se o que é que impediu uma
máquina tão desconjuntada de se desfazer inteiramente em
pedaços. A resposta é óbvia. A fraqueza da maior parte dos
membros, que não estão dispostos a expor-se à mercê de
potências estrangeiras; a fraqueza da maior parte dos membros
principais, comparada com as formidáveis potências que os
cercam; o grande peso e a grande influência que o Imperador
deriva dos seus domínios hereditários e independentes; e o
interesse que ele sente em preservar um sistema ao qual está
ligado o seu orgulho familiar, e que faz dele o primeiro Prín-
cipe da Europa. Estas causas sustentam uma união fraca e
precária, enquanto força repressora, consequência da natureza
da soberania, e que o tempo continuamente reforça, impedem
toda e qualquer reforma fundada numa consolidação adequada.
Nem se deve imaginar, se este obstáculo pudesse ser superado,
que as potências vizinhas consentiriam que tivesse lugar uma
revolução que desse ao Império a força e a preeminência a
que tem direito. As nações estrangeiras consideraram-se desde
há muito como interessadas nas mudanças que os aconteci-
mentos introduziram nessa Constituição e revelaram, em
diversas ocasiões, a sua política de lhe perpetuar a anarquia e
a fraqueza.
Se faltassem exemplos mais directos poderia não ser
impróprio considerar a Polónia, como uma forma de governo
sobre soberanos locais. Nem se poderia dar urna prova mais
flagrante das calamidades decorrentes de tais instituições.

2 Pfeffel, " Nouvel Abrég. Chronol. de l'Hist., etc., d'Allemagne," diz


que o pretexto era indemnizar-se da despesa da expedição. (Publius).

[198]
Igualmente desajustada para o autogoverno e para a autodefesa,
esteve durante muito tempo à mercê dos seus poderosos
vizinhos, que ultimamente tiveram a compaixão de a aliviar
de um terço do seu povo e dos seus territórios.
A conexão entre os cantões suíços dificilmente equivale
a uma confederação, embora seja por vezes citada como um
exemplo da estabilidade de tais instituições.
Não têm tesouro comum, não têm exército comum
nem mesmo quando em guerra, nem moeda comum, nem
poder judicial comum, nem nenhuma outra marca usual de
soberania.
Mantêm-se juntos devido: à peculiaridade da sua posição
topográfica, à sua fraqueza e insignificância individuais; ao
medo que têm dos vizinhos poderosos, de um dos quais foram
em tempos súbditos; às poucas fontes de discórdia entre um
povo de maneiras tão simples e homogéneas; ao seu interesse
conjunto nos bens que possuem; à ajuda mútua de que pre-
cisam para suprimir insurreições e rebeliões, uma ajuda
expressamente estipulada e frequentemente requerida e con-
cedida; e à necessidade de algumas medidas regulares e per-
manentes para resolver as disputas entre os Cantões. A medida
consiste em que cada uma das partes desavindas deve escolher
quatro juízes saídos dos Cantões neutrais que, em caso de
desacordo, escolhem um árbitro. Esse tribunal, sob juramento
de imparcialidade, pronuncia uma sentença definitiva, que
todos os cantões são obrigados a fazer cumprir. A competência
desta regulamentação pode ser avaliada através de uma cláusula
do tratado de 1683 com Victor Amadeus de Sabóia, na qual
ele se obrigava a interpor-se como mediador nas disputas
entre os Cantões, e a empregar a força, se necessário, contra
a parte contumaz.
Na medida em que a peculiaridade deste caso admite
comparação com o dos Estados Unidos, ele serve para confir-
mar o princípio que se pretende estabelecer. Seja qual for a
eficácia que a União possa ter tido em casos normais, parece

[199]
que no momento em que surge uma causa de diferendo capaz
de pôr à prova a sua força, ela falhou. Pode dizer-se que as
controvérsias em matéria de religião, que em três casos desen-
cadearam lutas violentas e sangrentas, desuniram a liga. Os
Cantões protestantes e católicos têm desde essa altura as suas
Dietas separadas, onde todos os assuntos mais importantes são
resolvidos, e que deixaram à Dieta geral pouco mais que fazer
além de cuidar de bagatelas correntes.
Essa separação teve outra consequência que merece aten-
ção. Produziu alianças antagónicas com potências estrangeiras:
de Berna, à cabeça da associação protestante, com as Províncias
Unidas; e de Lucerna, à cabeça da associação católica, com
a França.
PUBLIUS.

[200]
O FEDERALISTA N. • 20

Insuficiência da Actual Confederação


para Preservar a União (continuação)

JAMES MADISON
[COM A COLABORAÇÃO DE ALEXANDER HAMILTON]
11 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Os Países Baixos Unidos são uma confederação de repú-


blicas, ou melhor, de aristocracias, com uma estrutura muito
notável, e que todavia confirmam todas as lições tiradas do
estudo das que já passámos em revista.
A União é composta por sete Estados iguais e soberanos,
e cada Estado ou província é uma composição de cidades
iguais e independentes. Em todos os casos importantes têm
de ser unânimes não somente as províncias mas também as
cidades.

" D Th e New- York Packet, 11 de D ezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 12 de Dezembro no Th e lndependent Journal, e começou a ser
publicado em 12 de Dezembro, tendo sido concluído em 13 de Dezembro,
no The Daily Advertiser. QC) .

[201]
A soberania da União é representada pelos Estados-Gerais,
consistindo normalmente em cerca de cinquenta deputados
escolhidos pelas províncias. Alguns têm um mandato vitalício,
outros de seis, três e um anos. Os de duas das províncias conti-
nuam em funções enquanto quiserem.
Os Estados-Gerais têm autoridade para celebrar tratados
e fazer alianças, para decretar a guerra e a paz, para recrutar
exércitos e equipar esquadras, para fixar quotas e exigir con-
tribuições. Em todos esses casos, todavia, são indispensáveis
a unanimidade e a aprovação dos seus constituintes. Têm
autoridade para nomear e receber embaixadores, para dar
cumprimento a tratados e alianças já firmados, para providen-
ciar a colecta dos direitos sobre as importações e exportações,
para regulamentar a emissão de moeda, com uma ressalva dos
direitos provinciais, 12ara governar como soberanos os terri-
tórios dependentes. As províncias é vedado, a menos que seja
com o consentimento geral, celebrar tratados com o estran-
geiro, estabelecer impostos que prejudiquem outras províncias,
ou taxar os seus vizinhos com direitos mais altos do que os
dos seus próprios súbditos. Um Conselho de Estado, um
tribunal de contas, cinco colégios de almirantado ajudam e
reforçam a administração federal.
O magistrado executivo da União é o Stadtholder, que
agora é um príncipe hereditário. A sua importância e influência
principais na república decorrem do seu título independente,
das suas grandes propriedades patrimoniais, das suas ligações
familiares com alguns dos principais potentados da Europa,
e, mais do que tudo, talvez, de ser Stadtholder de várias provín-
cias, assim como da União, qualidade provincial em que tem
o direito de nomear os magistrados locais obedecendo a certas
regras, de executar os decretos provinciais, de presidir aos tri-
bunais provinciais quando o desejar, e tem ilimitadamente o
poder de perdoar.
Como Stadtholder da União tem, no entanto, prerrogativas
consideráveis.

[202]
Na sua capacidade política tem autoridade para resolver
as disputas entre as províncias, quando os outros métodos
falham, para tomar parte nas deliberações dos Estados-Gerais,
e nas reuniões privadas destes, para conceder audiências a
embaixadores estrangeiros, e manter, junto das cortes estran-
geiras, agentes para os seus assuntos particulares.
Na sua capacidade militar comanda as tropas federais,
providencia as guarnições e, de um modo geral, regulamenta
os assuntos militares, cabe-lhe fazer todas as nomeações, de
coronel a alferes, do governo e das guarnições das cidades
fortificadas.
Na sua capacidade naval é almirante-em-chefe e superin-
tende e dirige todas as coisas relativas às forças e outros assuntos
navais, preside às reuniões dos almirantados, em pessoa ou
através de um representante, nomeia vice-almirantes e outros
oficiais e nomeia conselhos de guerra, cujas sentenças não são
executadas até que ele as aprove.
Os seus rendimentos, excluindo os rendimentos privados,
equivalem a 300 000 florins. O exército permanente que
comanda consiste em cerca de 40 000 homens.
Tal é a natureza da famosa confederação belga, tal como
é delineada no pergaminho. Quais são as características que
a prática lhe imprimiu? Incompetência no governo; discórdia
entre as províncias; influência e indignidades vindas do exterior;
uma existência precária na paz e calamidades próprias da guerra.
Há muito tempo que foi observado por Grotiusl que o
ódio dos seus compatriotas pela casa de Áustria foi a única
coisa que os impediu de serem arruinados pelos vícios da sua
Constituição.
A União de Utreque, diz outro escritor respeitável, deposita
uma autoridade nos Estados-Gerais, aparentemente suficiente

1 Hugo de Grotius, ou Huig de Groot (1583-1645), pensador holandês,


geralmente considerado como o fundador do direito internacional público no
quadro do jusnaturalismo moderno. (E. P.).

[203]
para assegurar a harmonia, mas a inveja em cada província
torna a prática muito diferente da teoria.
O mesmo instrumento, diz outro, obriga cada província
a colectar certas contribuições, mas este artigo nunca pôde,
e provavelmente nunca poderá, ser executado, porque as
províncias interiores, que têm pouco comércio, não podem
pagar uma quota igual.
Em matéria de contribuições, a prática é não insistir nos
artigos da Constituição. O perigo do adiamento obriga as
províncias cumpridoras a fornecer as suas quotas, sem esperar
pelas outras e a serem depois reembolsadas por elas, através
do envio de delegações, que são frequentes, ou de outra
maneira, consoante podem. A grande riqueza e influência da
província da Holanda permitem-lhe realizar ambos os
objectivos.
Aconteceu mais de uma vez que as faltas de pagamento
tivessem acabado por ter que ser cobradas na ponta da baioneta.
Uma coisa praticável, embora terrível, numa confederação
em que um dos membros excede em força todos os restantes,
e em que vários deles são demasiado pequenos para pensar
em resistência, mas inteiramente impraticável numa federação
composta por membros que são iguais uns aos outros em força
e recursos, e capazes, isoladamente, de uma defesa vigorosa
e perseverante.
Os diplomatas estrangeiros, diz Sir William Temple, que
foi um deles, evitam assuntos considerados ad referendum,
intrigando com as províncias e cidades. Em 1726, o tratado
de Hanôver foi retardado um ano inteiro graças a esses meios.
São numerosos e notórios os exemplos de natureza semelhante.
Em emergências críticas, os Estados-Gerais são frequente-
mente obrigados a ultrapassar os seus limites constitucionais.
Em 1688, concluíram por conta própria um tratado, com o
risco das próprias cabeças. O tratado de Vestefalia, de 1648,
pelo qual a sua independência foi formal e finalmente reco-
nhecida, foi concluído sem o consentimento da Zelândia.

[204]
Mesmo num caso tão recente como o do último tratado de
paz com a Grã-Bretanha, foi esquecido o princípio constitu-
cional de unanimidade. Uma Constituição fraca tem necessa-
riamente que terminar em dissolução, por falta dos poderes
adequados, ou na usurpação de poderes indispensáveis para
a segurança pública. Que a usurpação, uma vez começada, se
detenha no ponto salutar, ou prossiga até ao extremo perigoso,
deve depender das contingências do momento. A tirania
originou-se talvez com maior frequência por ser assumido o
poder por alguém a quem se apelou, diante de exigências
prementes e por causa de uma Constituição deficiente, do
que por serem exercidos plenamente os mais amplos poderes
constitucionais.
A despeito dos malefícios produzidos pelo sistema do
Stadtholder, supôs-se que sem a sua influência nas províncias
individuais as causas de anarquia manifestas na confederação
há muito tempo que a teriam dissolvido. "Sob um tal governo",
diz o Abade Mably, "a União nunca poderia ter subsistido se
as províncias não tivessem uma mola dentro de si, capaz de
acelerar a sua morosidade e de as compelir à mesma maneira
de pensar. Essa mola é o Stadtholder." Sir William Temple
observa "que nos interregnos entre dois stadtholder, a Holanda,
por causa das suas riquezas e da sua autoridade, que atraiu os
outros para uma espécie de dependência, supriu o lugar deste."
Estas não são as únicas circunstâncias que restringiram a
tendência para a anarquia e para a dissolução. As potências
vizinhas impõem uma necessidade absoluta de um certo grau
de união, ao mesmo tempo que alimentam, com as suas
intrigas, os vícios constitucionais que mantêm a república,
em certa medida, sempre à sua mercê.
Os verdadeiros patriotas lamentaram durante muito tempo
a tendência fatal destes defeitos e fizeram nada menos do que
quatro experiências regulares através de assembleias extraordiná-
rias, convocadas para esse fim especial, para aplicar um remédio.
Outras tantas vezes, o seu louvável zelo descobriu que era

[205]
impossível unir os conselhos públicos na reforma dos males
conhecidos, reconhecidos e fatais da Constituição existente.
Façamos uma pausa momentânea, meus concidadãos, diante
desta lição melancólica e oportuna da lústória, e, com a lágrima
que se derrama pelas calamidades infligidas à humanidade
pelas suas opiniõe adversas e paixões egoístas, deixemos que
a nossa gratidão lance um agradecimento aos Céus, pela
benigna concórdia que distinguiu as trocas de ideias em busca
da nossa felicidade política.
Foi também concebido um desígnio para estabelecer uma
taxa geral para ser administrada pela autoridade federal. Tam-
bém isto teve adversários e falhou.
Este povo infeliz parece estar agora a sofrer, por causa de
convulsões populares, de dissensões entre os Estados e da
actual invasão por exércitos estrangeiros, a crise do seu destino.
Todas as nações tém os olhos postos no terrível espectáculo.
O primeiro desejo impulsionado pela humanidade é que esta
severa prova possa resultar numa tal revolução do seu governo
que venha a estabelecer a sua União e torná-la a progenitora
da tranquilidade, liberdade e felicidade. O seguinte, que o
asilo sob o qual acreditamos que o gozo dessas bênçãos será
rapidamente assegurado neste país possa recebê-los e consolá-
-los pela catástrofe do seu próprio país.
Não apresento desculpas por ter insistido tão longamente
na contemplação destes precedentes federais. A experiência
é o oráculo da verdade e quando as suas respostas são inequí-
vocas também deviam ser conclusivas e sagradas. A importante
verdade que ela inequivocamente enuncia no caso presente
é que uma soberania sobre soberanos, um governo de gover-
nos, uma legislação para comunidades, enquanto contrapostas
aos indivíduos, tal como é um solecismo na teoria, é na prática
subversiva da ordem e dos fins da política civil, por colocar a
violência no lugar da lei, ou a coerção destruidora da espada no
lugar da suave e salutar coerção da magistratura.
PUBLIUS.

[206]
O FEDERALISTA N.• 21

Outros Defeitos da Actual Confederação

ALEXANDER HAMILTON
12 de D ezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Tendo sumariado nos últimos três números as principais


circunstâncias e acontecimentos que descreveram as qualidades
e destino de outros governos confederados, procederei agora
à enumeração dos mais importantes defeitos que até este
momento frustraram as nossas esperanças em relação ao sistema
estabelecido entre nós. Para formar um juízo seguro e satisfató-
rio acerca do remédio adequado, é absolutamente necessário
que conheçamos bem a extensão e malignidade da doença.
O defeito mais palpável da Confederação subsistente que
se segue é a total ausência de SANÇÕES das suas leis. Os Estados
Unidos, tal como agora estão constituídos, não têm poderes
para exigir obediência, ou punir a desobediência às suas resolu-
ções, quer através de multas pecuniárias, quer pela suspensão

* Do The lndependent ]ournal, 12 de D ezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 14 de Dezembro tanto no The New York Packet como no The
Daily Ad~·ertiser. QC).

[207]
ou desapossamento de privilégios, quer por qualquer outro
meio constitucional. Não há uma delegação expressa de
autoridade para usar a força contra os membros delinquentes
e, se tal direito viesse a ser atribuído à suprema autoridade
federal, como resultante da natureza do contrato social entre
os Estados, teria de ser por inferência e interpretação, em face
dessa parte do segundo artigo, na qual se declara "que cada
Estado reterá todos os poderes, jurisdição e direito, não
expressamente delegados aos Estados Unidos reunidos em
Congresso". Há, sem dúvida, um flagrante absurdo em supor
que não existe um direito desta espécie, mas estamos reduzidos
ao dilema de ou aceitar essa suposição, por mais ridícula que
pareça, ou transgredir ou explicar satisfatoriamente uma pro-
visão que foi ultimamente um tema repisado dos panegíricos
daqueles que se opõem à nova Constituição e cuja ausência
nesse plano tem sido matéria de muita reprovação plausível
e crítica severa. Se não estivermos dispostos a diminuir a força
desta aplaudida provisão, seremos obrigados a concluir que
os Estados Unidos proporcionam o extraordinário espectáculo
de um governo destituído da menor sombra de poder constitu-
cional para fazer cumprir as suas próprias leis. Tornar-se-á
visível, dos exemplos que foram citadosl, que a Confederação
Americana, neste particular, é distinta de todas as outras
instituições semelhantes e exibe um fenómeno novo e sem
precedentes no mundo político.
A carência de uma garantia mútua dos governos dos
Estados é outra imperfeição capital do plano federal. Nada
desse teor é declarado nos artigos que o compõem, e pressupor
uma garantia tácita a partir de considerações de utilidade seria
um desvio ainda maior da cláusula que foi mencionada do
que pressupor um poder tácito de coerção a partir de consi-
derações similares. A carência de uma garantia, embora pudesse,
pelas suas consequências, ameaçar a União, não ataca tão ime-

1 Ver artigos 18, 19, 20. QC).

(208]
diatamente a sua existência como a falta de sanções cons-
titucionais para as suas leis.
Sem uma garantia, tem de se renunciar à assistência a ser
prestada pela União na repressão daqueles perigos domésticos
que por vezes podem ameaçar a existência das Constituições
dos Estados. A usurpação pode erguer a cabeça em qualquer
Estado e calcar as liberdades do povo, enquanto o governo
nacional nada pode fazer legalmente para além de contemplar
a usurpação com indignação e pesar. Uma facção bem sucedida
pode erguer uma tirania sobre as ruinas da ordem e da lei,
enquanto nenhum socorro aos amigos e apoiantes do governo
poderia ser constitucionalmente proporcionado pela União.
A tempestuosa situação de que o Massachusetts mal acaba de
emergir demonstra que os perigos deste tipo não são mera-
mente especulativos2. Quem pode determinar qual poderia
ter sido o resultado das suas recentes convulsões, se os descon-
tentes tivessem sido encabeçados por um César ou por um
Cromwell? Quem pode prever que efeito teria um despotismo
instalado no Massachusetts sobre as liberdades de New Hamp-
shire ou Rhode Island, de Connecticut ou de Nova Iorque?
O imoderado orgulho na importância de cada Estado
sugeriu a alguns espíritos uma objecção ao princípio de uma
garantia da parte do governo federal, como se ele envolvesse
uma interferência oficiosa nos assuntos domésticos dos mem-
bros. Um escrúpulo desta ordem privar-nos-ia de uma das
principais vantagens a esperar da União; e só pode decorrer
de uma incompreensão da natureza do próprio dispositivo.
Este não poderia ser um impedimento às reformas das Cons-
tituições dos Estados por uma maioria do povo e de uma
maneira legal e pacífica. Esse direito permaneceria intacto.
A garantia só poderia funcionar contra as mudanças efectuadas
por meio de violência. Em relação à prevenção de calamidades
deste tipo nunca se podem providenciar demasiados impedi-

2 A referência é à rebelião de Shays. Ver artigo 6. GC).

[209]
mentos. A paz da sociedade e a estabilidade do governo depen-
dem absolutamente da eficácia das precauções tomadas a este
título. Nos casos em que a totalidade do poder está nas mãos
do povo, há menos veleidades para recorrer a remédios vio-
lentos em agitações políticas parciais ou ocasionais no Estado.
A cura natural para urna má administração, numa Constituição
popular ou representativa, é uma mudança de pessoas. Uma
garantia dada pela autoridade nacional seria dirigida tanto
contra as usurpações dos governantes como contra os fer-
mentos e excessos das facções e a sedição na comunidade.
O princípio de regulamentar as contribuições dos Estados
para o tesouro comum através de QUOTAS é outro erro funda-
mental da confederação. A sua aversão em relação a um supri-
mento adequado das exigências nacionais foi já salientada3 , e
ficou suficientemente patente na experiência que se teve dela.
Falo agora apenas com vista à igualdade entre os Estados. Os
que se acostumaram a encarar as circunstâncias que produzem
e constituem a riqueza nacional devem ficar satisfeitos por
não existir nenhum padrão comum ou barómetro por meio
do qual sejam aferidos os graus dessa contribuição. Nem o
valor das terras, nem o número de pessoas, que foram sucessi-
vamente propostos como regra das contribuições dos Estados,
têm qualquer pretensão a serem justos representantes desse
padrão. Se compararmos a riqueza das Províncias Unidas
da Holanda com a da Rússia ou da Alemanha, ou mesmo da
França, e se ao mesmo tempo compararmos o valor total das
terras e da população global das imensas regiões de qualquer
dos três países mencionados em último lugar, veremos imedia-
tamente que não há comparação entre a proporção de qualquer
desses dois objectos e a riqueza relativa dessas nações. Se fosse
traçado um paralelo semelhante entre vários dos Estados
Americanos, o resultado seria similar. Contraste-se a Virgínia
com a Carolina do Norte, a Pensilvânia com o Connecticut,

3 Ver artigo 15. GC).

[210]
ou Maryland com Novajérsia, e deveremos ficar convencidos
que as capacidades respectivas desses Estados, em relação ao
rendimento, têm pouca ou nenhuma analogia com o que
comparativamente possuem em terras ou em população. Esta
posição pode também ser ilustrada através de um processo
semelhante tomando os condados de um mesmo Estado. Nin-
guém que esteja familiarizado com o Estado de Nova Iorque
duvidará de que a riqueza produtiva do condado de Kings,
comparativamente à de Montgomery, tem um quinhão muito
maior do que poderia parecer, se considerássemos como crité-
rio quer o valor total das terras quer o número total de pessoas!
A riqueza das nações depende de uma infinita variedade
de causas. Situação, solo, clima, natureza dos produtos, natureza
do governo, carácter dos cidadãos - grau de informação que
possuem - estado do comércio, das artes, da indústria. Estas
circunstâncias e muitas mais, por demais complexas, minu-
ciosas, ou acidentais para admitir uma especificação particular,
ocasionam diferenças dificilmente concebíveis na opulência
relativa e nas riquezas dos diferentes países. A consequência
clara é que não pode haver medida comwn da riqueza nacional
e, é claro, nenhuma regra geral ou imutável por meio da qual
possa ser determinada a capacidade de um Estado para pagar
impostos. Por conseguinte, a tentativa de regulamentar as
contribuições dos membros de uma confederação por meio
de qualquer dessas regras não pode deixar de produzir flagrantes
desigualdades e extrema opressão.
Na América, estas desigualdades seriam suficientes por si
sós para conseguir a destruição final da União, se pudesse ser
arquitectada uma maneira qualquer de obrigar os Estados a
satisfazer as requisições da União. Os Estados sofredores não
consentiriam por muito tempo em continuar associados com
base n m princípio que distribui os fardos públicos com uma
mão tão desigual, e que foi concebido para empobrecer e
oprimir os cidadãos de alguns Estados, enquanto os de outros
quase não tomariam consciência da pequena proporção da

[211]
carga que lhes era pedido que suportassem. Isto, no entanto,
é um mal inseparável do princípio das quotas e requisições.
Não há nenhum método para evitar este inconveniente,
excepto autorizar o governo nacional a arrecadar as suas recei-
tas pelos seus próprios métodos . Impostos, taxas e, em geral,
todos os direitos sobre artigos de consumo podem ser com-
parados com um fluido que, com o tempo, se nivelará com
os meios de os pagar. A quantia com que cada cidadão terá
de contribuir ficará em parte à sua própria escolha, e pode
ser regulada por uma conformidade com os seus recursos.
O rico pode ser extravagante, o pobre pode ser frugal. E a
opressão privada pode sempre4 ser evitada por uma escolha
judiciosa dos objectos adequados para tais imposições. Se
vierem a surgir em alguns Estados desigualdades decorrentes
dos direitos sobre artigos particulares, elas serão, com toda a
probabilidade, contrabalançadas por desigualdades proporcio-
nais em outros Estados, resultantes dos direitos sobre outros
artigos. Com o passar do tempo e das coisas, será estabelecido
por toda a parte um equilibrio, tanto quanto se pode alcançá-
-lo numa matéria tão complicada. Ou, se ainda persistissem
desigualdades, não seriam tão grandes em grau, nem tão
uniformes na sua acção, nem tão odiosas na aparência, como
aquelas que necessariamente resultariam do sistema de quotas,
e isto em qualquer escala que possa ser imaginada.
Uma vantagem característica das taxas sobre artigos de
consumo é que contêm na sua própria natureza urna protecção
contra o excesso. Prescrevem o seu próprio limite que não
pode ser excedido sem comprometer o fim visado, isto é, um
aumento do rendimento. Quando aplicado a este assunto, é
tão justo como espirituoso o ditado "em aritmética política,
dois e dois nem sempre somam quatro". Se os direitos são

4 No original, publicado nos jornais, must always. É de assinalar que nas


edições McLean e Hopkins se regista uma prudente substitui ção: "por um
longo período" lfor a long time). (E. P.).

[212]
demasiado altos, baixam o consumo, a colecta é defraudada,
e o produto do tesouro não é tão grande como quando eles
são confinados dentro de limites adequados e moderados. Isto
constitui uma sólida barreira a qualquer opressão material dos
cidadãos sob a forma de taxas desta espécie, e é em si uma
limitação natural ao poder de as lançar.
Impostos deste tipo caem em geral debaixo da denomina-
ção de impostos indirectos, e devem constituir sempre a parte
mais importante das receitas arrecadadas neste paísS. Os impos-
tos directos, que se referem principalmente à terra e edifícios,
podem admitir uma regra de proporcionalidade. O valor da
terra, ou o número de pessoas, pode servir como padrão.
O estado da agricultura e a densidade de população de um
país têm sido considerados como estando intimamente rela-
cionados. E, como regra para o fim que se pretende, os núme-
ros, por causa da sua simplicidade e certeza, têm direito a uma
preferência. É uma tarefa hercúlea em todos os países obter
uma avaliação da terra e, num país imperfeitamente colo-
nizado e progressivo no seu aperfeiçoamento, as dificuldades
são aumentadas até quase atingirem a impraticabilidade.
O custo de uma avaliação precisa é, em todas as situações,
uma objecção formidável. Num ramo da tributação em que
não pode ser encontrado nenhum limite ao arbítrio do governo
na natureza das coisas, a instituição de uma regra fixa, não
incompatível com o fim, pode ser acompanhada de menos
consequências do que deixar esse arbítrio inteiramente irrestrito.
PUBLIUS.

5 Na ve rdade, as duas versões do texto manifestam uma clara antecipação


das dificuldades que o poder federal teria em arrecadar outras receitas fiscais
para além dos impostos indirectos. Em 1894 o Congresso aprovou um imposto
directo sob re o rendimento que o Supremo Tribunal anularia por considerar
inconstitucional (Pollock versus Farmer's Loan and Trust Co, 1895). Foi preciso
a aprovação do 16. 0 Aditamento à Constituição (ratificado em 3 de Fevereiro
de 1913) para legitimar o recurso federal ao imposto sobre o rendimento.
(E. P.).

[213]
O FEDERALISTA N.• 22

Outros Defeitos da Actual Confederação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
14 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Além dos defeitos já enumerados do sistema federal


existente, há outros de não menos importância que contribuem
para o tornar totalmente desajustado para a administração dos
assuntos da União.
A inexistência de poderes para regulamentar o comércio
é reconhecida por todos como sendo um desse defeitos.
A utilidade de um tal poder foi antecipada na primeira parte
das nossas investigações e por essa razão, bem como pela con-
vicção universal prevalecente sobre este assunto, é necessário
acrescentar pouca coisa aqui. É na verdade evidente, no exame
mais superficial, que não existe outro problema, quer diga

* Do The New- York Packet, 14 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 15 de Dezembro no The Independent journal, e começou a ser
publicado em 17 de Dezembro, concluindo a 18 de Dezembro, no The Daily
Advertiser. QC).

[215]
respeito aos interesses do comércio ou das finanças, que mais
fortemente exija uma superintendência federal. A ausência
desta já funcionou como um obstáculo à celebração de vanta-
josos tratados com potências estrangeiras e deu margem a
insatisfações entre os Estados. Nenhuma nação familiarizada
com a natureza da nossa associação política seria suficiente-
mente insensata para entrar em acordos com os Estados Unidos,
por meio das quais lhes concedesse privilégios de qualquer
importância, enquanto estivesse ciente de que os compromissos
por parte da União podiam a qualquer momento ser violados
pelos seus membros e enquanto soubesse por experiência que
podia gozar de todas as vantagens que desejava nos nossos
mercados, sem nos conceder quaisquer compensações a não
ser aquelas que a sua conveniência momentânea poderia suge-
rir. Portanto, não é para admirar que o senhor Jenkinson, ao
apresentar na Câmara dos Comuns um projecto de lei para
regulamentar o intercâmbio temporário entre os dois países,
prefaciasse a sua apresentação declarando que providências
semelhantes, constantes de projectos anteriores, se tinham
revelado como respondendo a todos os objectivos do comércio
da Grã-Bretanha, e que seria prudente persistir no plano até
que se visse se o governo americano estaria ou não disposto
a adquirir maior consistência. 1
Diversos Estados têm procurado, por meio de proibições,
restrições e exclusões individuais, influenciar a conduta desse
reino neste aspecto particular, mas a falta de concertação resul-
tante da falta de autoridade geral e de pontos de vista conflituan-

1 Tanto quanto consigo recordar, era este o sentido do seu discurso na

introdução da última lei. (Publius).


Presumivelmente, a referência de Hamilton era ao debate no parlamento
da American lntercourse Bill, qu e começou em 1783. fu actas publicadas dos
debates parlamentares, todavia, não incluem as observações atribuídas por
Hamilton a Charles Jenkinson, elevado a Lord Hawkesbury em 1786 e Conde
de Liverpool em 1796. Ver The Parliamentary History <f England ... (London
1814), XXIII, 602. GC) .

[216]
tes e díspares em cada Estado, frustraram até agora todas as
experiências deste tipo, e continuarão a fazê-lo enquanto per-
sistirem os mesmos obstáculos a uma uniformização de medidas.
A regulamentação de alguns Estados, reveladora de inge-
rência e má vizinhança, contrária ao verdadeiro espírito da
União, tem dado em várias ocasiões justa causa de melindre
e queixas por parte de outros, e é de temer que os exemplos
desta natureza, se não forem coibidos por um controlo nacio-
nal, se venham a multiplicar e estender até que se transformem,
de nocivos entraves ao intercâmbio, em não menos sérias
fontes de animosidade e discórdia entres as diferentes partes
da Confederação. "O comércio do império germânico2 está
em permanentes dificuldades por causa da multiplicidade dos
direitos que os vários príncipes e Estados lançam sobre as
mercadorias que passam através dos seus territórios, de tal
modo que os excelentes cursos de água e rios navegáveis de
que a Alemanha é com tanta felicidade dotada se tornam
quase inúteis." Embora o talento do povo do nosso país possa
nunca permitir que esta descrição nos seja estritamente aplicá-
vel, pode-se razoavelmente esperar, dados os conflitos graduais
das legislações dos Estados, que os cidadãos de cada um deles
acabem com o tempo por ser considerados e tratados pelos
outros de urna maneira não menos favorável do que a dispen-
sada a forasteiros e estrangeiros.
O poder para mobilizar exércitos, segundo a mais óbvia
interpretação dos artigos da Confederação, é meramente um
poder de requisitar contingentes de homens aos Estados. Esta
prática, no decurso da última guerra, encontrou toda a sorte
de obstruções à consecução de um sistema de defesa vigoroso
e económico. Deu origem a uma competição entre os Estados

2 Encyclopédie, artigo "empire." (Publius). A referência é à famosa obra


francesa editada por Denis Diderot e Jean Le Rond d' Alembert, Encyclopédie,
ou Dictiotmaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers .. (Lausanne e Berna,
1782, XII , 254. QC).

[217]
que criaram uma espécie de leilões de homens. Para conseguir
fornecer os contingentes que lhes eram pedidos, cobriram os
lanços uns dos outros até que os prémios atingiram uma quantia
enorme e insuportável. A esperança de um aumento ainda
maior proporcionou aos que estavam dispostos a alistar-se um
incitamento para deixar para mais tarde o seu alistamento e
diminuiu a sua inclinação para se comprometerem por períodos
consideráveis. Daqui resultaram recrutamentos lentos e insu-
ficientes nos nossos momentos mais críticos, alistamentos de
curta duração a um custo sem paralelo, flutuações contínuas
das tropas, ruinosas para a disciplina e sujeitando frequentemente
a segurança pública às perigosas crises de um exército em fase
de licenciamento. Daqui resultaram também esses expedientes
opressores para recrutar tropas que foram praticados em várias
ocasiões, e tais que somente o entusiasmo pela liberdade seria
capaz de induzir o povo a suportá-los.
Este método de recrutar tropas não é mais desfavorável à
economia e à eficiência do que uma distribuição igual dos
encargos. Os Estados próximos do teatro da guerra, influen-
ciados por motivos de autopreservação, fizeram esforços para
fornecer os seus contingentes, chegando mesmo a exceder as
suas capacidades, ao passo que os que estavam longe do perigo
foram, na sua maior parte, tão remissos no cumprimento dos
seus deveres quanto os outros foram diligentes. A pressão
imediata desta desigualdade não foi neste caso, como no caso
das contribuições em dinheiro, atenuada pela esperança de
uma liquidação final. Os Estados que não pagaram as suas
quotas-partes em dinheiro poderiam pelo menos ser acusados
das suas faltas, mas nenhum cálculo pôde ser efectuado sobre
as faltas no suprimento de tropas. Apesar disso, não vemos
uma grande razão para lamentar a ausência desta expectativa
quando consideramos quão pequena é a perspectiva de que
os Estados mais delinquentes possam alguma vez ser capazes
de compensar as suas faltas pecuniárias. O sistema de quotas
e requisições, quer seja aplicado a homens quer a dinheiro,

[218]
é, de todos os pontos de vista, um sistema de impotência da
União, e de desigualdade e injustiça entre os seus membros.
O direito de igualdade de sufrágio entre os Estados é outra
parte criticável da Confederação. Qualquer ideia de proporção
e qualquer regra de representação equitativa conspiram para
condenar um princípio que dá a Rhode lsland um peso na
balança do poder igual ao de Massachusetts, ou de Connec-
ticut, ou de Nova Iorque, e, nas deliberações nacionais, dá
ao Delaware um número de votos igual ao da Pensilvânia, ou
da Virgínia, ou da Carolina do Norte. O seu funcionamento
contradiz a máxima fundamental do governo republicano,
que exige que prevaleça a opinião da maioria. A sofistica pode
responder que as soberanias são iguais, e que uma maioria de
votos dos Estados será uma maioria da América confederada.
Mas esta espécie de malabarismo lógico jamais neutralizará
as simples sugestões da justiça e do senso comum. Pode dar-
-se o caso que essa maioria de Estados seja uma pequena
minoria do povo da América3, e dois terços do povo da
América não podem ser persuadidos por muito tempo, com
base em distinções artificiais e subtilezas silogísticas, a submeter
os seus interesses à gestão e disposição de um terço. Os Estados
mais vastos não tardariam a revoltar-se ante a ideia de os mais
pequenos lhes ditarem a lei. Concordar com uma tal privação
da sua própria importância no equilíbrio politico correspon-
deria não apenas a ser insensível ao amor do poder, mas até
a sacrificar o desejo de igualdade. Nem é racional esperar o
primeiro, nem justo exigir o segundo - os Estados mais peque-
nos, considerando a maneira peculiar como a sua segurança
e bem-estar dependem da união, deveriam renunciar pronta-
mente a uma pretensão que, se não for abandonada, se mostra-
ria fatal para a sua sobrevivência.

3 New Hampshire, Rhode Island, Nova Jérsia, Delaware, Geórgia,


Carolina do Sul, e Maryland constituem uma maioria do número total de
Estados, mas não abrangem um terço do povo. (Publius) .

[219]
Pode objectar-se a isto que não têm de ser sete, mas sim
nove Estados, ou dois terços do número total, a aprovar as
resoluções mais importantes, e pode inferir-se daí que nove
Estados representariam em todos os casos uma maioria da
União. Mas isto não obvia o carácter impróprio de um voto
igual entre Estados com dimensões e populações das mais
desiguais, nem a inferência é exacta no plano dos factos,
porque podemos enumerar nove Estados que contêm menos
de uma maioria do povo4, e é constitucionalmente possível
que estes nove possam vencer a votação. Além disso, há assuntos
de considerável importância determináveis por uma maioria
simples, e há outros, em relação aos quais têm sido postas
dúvidas, que, se interpretados a favor da suficiência de um
voto de sete Estados, estenderiam o seu efeito a interesses de
primeira grandeza. A acrescer a isto, deve observar-se que
existe uma probabilidade de aumento do número de Estados,
e não existe nenhuma providência para um aumento
proporcional da distribuição dos votos.
Mas isto não é tudo: o que, à primeira vista, pode parecer
um remédio é, na realidade, um veneno. Dar a uma minoria
um direito de vetos em relação a decisões da maioria (que é
sempre o caso quando se exige mais do que uma maioria para
uma decisão) é, tendencialmente, sujeitar a opinião dos mais
numerosos à dos que o são menos. O Congresso, por causa
da não comparência de um punhado de Estados, esteve fre-
quentemente na situação da Dieta Polaca, onde um único
VETO tem sido suficiente para paralisar todos os seus movi-
mentos. Uma sexagésima parte da União, que é aproximada-
mente a proporção do Delaware e Rhode Island, foi várias
vezes capaz de barrar o funcionamento do Congresso. Este

4 Acrescente-se Nova Iorque e Connecticut aos sete anteriores e serão

menos do que uma maioria. (Publius) .


5 Na edição dos jornais a palavra que surge é "voto" (vote). A passagem
para "veto" (veto) foi introduzida nas edições McLean e Hopkins." (E. P.) .

[220]
é um daqueles refinamentos que, na prática, tem um efeito
inverso do que aquilo que se espera dele em teoria. A necessi-
dade de unanimidade nas assembleias públicas, ou de qualquer
coisa que dela se aproxime, foi fundada na suposição de que
isso contribuiria para a segurança. Mas o seu efeito real é
embaraçar a administração, destruir a eficiência do governo,
e substituir pelo prazer, capricho, ou artifícios de um grupo
de pessoas insignificante, turbulento, ou corrupto, as normais
deliberações e decisões de uma maioria respeitável. Nessas
emergências de uma nação, nas quais a maldade ou a bondade,
a fraqueza ou a força do seu governo são da maior importância,
h á normalmente uma necessidade de acção. Os negócios
público têm de ir para a frente, de uma maneira ou de outra.
Se uma minoria pertinaz for capaz de controlar a opinião de
uma maioria relativamente à melhor maneira de os conduzir,
a maioria, para que alguma coisa possa ser feita, tem de se con-
formar com os pontos de vista da minoria, e assim a opinião
do menor número anulará a do maior e dará o tom aos debates
nacionais. Disso decorrem aborrecidos adiamentos, negociações
contínuas e intrigas constantes, vis concessões à custa do bem
público. E todavia, num tal sistema, já é uma felicidade que
tais compromissos possam acontecer, porque em algumas
ocasiões as coisas não admitirão acomodação, e então as medidas
governativas têm de ser prejudicialmente suspensas, ou fatalmente
derrotadas. O governo é muitas vezes, pela impraticabilidade
de obter o concurso do número necessário de votos, mantido
num estado de inacção. A sua situação mostra sempre sinais de
fraqueza muitas vezes na fronteira da anarquia.
Não é difícil de descobrir que um princípio deste género
dá maior latitude à corrupção externa, bem como às facções
domésticas, do que aquele que permite que seja a opinião da
maioria a decidir, embora se tenha presumido o contrário
disto. O erro proveio de não atender com o devido cuidado
aos prejuízos que podem ser provocados pela obstrução dos
progressos do governo em certas ocasiões críticas. Quando é

[221]
exigido pela Constituição o concurso de um grande número
para pôr em vigor qualquer lei nacional, ficamos satisfeitos
que tudo está seguro, porque não é provável que seja feito algo
de impróprio, mas esquecemos quanto bem pode ser impe-
dido, e quanto mal pode ser produzido, pelo poder de colocar
obstáculos ao acto que pode ser necessário, e por manter as
questões na mesma posição desfavorável em que se possam
encontrar em períodos particulares.
Suponham, por exemplo, que estamos envolvidos numa
guerra, aliados a uma nação estrangeira, contra uma outra.
Suponham que a necessidade da nossa situação exigia a paz,
e o interesse ou ambição do nosso aliado o levava a procurar
a continuação da guerra, com intenções que pudessem justificar
que fizéssemos uma paz separada. Em tal situação, é evidente
que o nosso aliado que pretendesse, por meio de subornos e
de intrigas, atar as mãos do governo para impedir uma paz
separada acharia muito mais facil fazê-lo no caso em que fosse
exigida uma maioria de dois terços de todos os votos para a
aprovar, do que o acharia no caso em que bastasse para isso
uma maioria simples. No primeiro caso, teria de corromper
um número menor; no último, um número maior. Com base
no mesmo princípio, seria muito mais facil para uma potência
estrangeira com a qual estivéssemos em guerra desorientar as
nossas assembleias e embaraçar os nossos esforços. E, de um
ponto de vista comercial, podemos ser submetidos a inconve-
nientes semelhantes. Uma nação com a qual pudéssemos ter
um tratado de comércio poderia com muito mais facilidade
impedir-nos de criar um laço com o seu concorrente comer-
cial, embora um tal laço pudesse ser muito benéfico para nós.
Os males que correspondem a esta descrição não devem
ser tidos como imaginários. Um dos lados fracos das repúblicas,
entre as suas numerosas vantagens, é que permitem uma
entrada demasiado facil à corrupção estrangeira. Um monarca
hereditário, embora frequentemente disposto a sacrificar os
seus súbditos à sua ambição, tem um interesse pessoal tão

[222]
grande no governo e na glória externa da sua nação, que não
é facil a uma potência estrangeira pagar-lhe o preço pelo qual
ele sacrificaria o Estado, usando de traição. Em conformidade
com isto, o mundo tem testemunhado poucos exemplos desta
espécie de prostituição real, embora tenha havido abundantes
exemplos de todos os outros géneros.
Nas repúblicas, as pessoas elevadas da massa da comunidade,
pelo sufrágio dos seus concidadãos, a lugares de grande preemi-
nência e poder, podem encontrar compensações para trair a
confiança nelas depositada que, para quaisquer mentalidades
com excepção das animadas e guiadas por virtudes superiores,
podem parecer exceder a proporção de interesse que eles têm
nos bens comuns, e pesar mais do que as obrigações do dever.
É por isso que a história nos fornece tantos exemplos humi-
lhantes da prevalência da corrupção estrangeira em governos
republicanos. Foi já delineado quanto isto contribuiu para a
ruína das antigas comunidades. É bem sabido que os deputados
das Províncias Unidas foram, em várias ocasiões, comprados
pelos emissários dos reinos vizinhos. O Conde de Chesterfield
(se a minha memória não me atraiçoa), numa carta à sua corte,
dá a entender que o seu sucesso numa importante negociação
dependeria de obter uma patente de major para um desses
deputados. E na Suécia, os partidos eram alternadamente com-
prados pela França e pela Inglaterra de uma maneira tão ostensiva
e notória que provocava uma repugnância universal na nação,
e foi uma das causas principais para que o monarca mais limitado
na Europa, num só dia, sem tumulto, violência ou oposição,
se convertesse num dos mais absolutos e incontrolados.
Resta ainda mencionar uma circunstância que coroa os
defeitos da Confederação - a falta de um poder judicial. As
leis são letra morta sem tribunais para exporem e definirem
os seus verdadeiros significados e aplicações. Os tratados dos
Estados Unidos, para terem alguma força, têm de ser considera-
dos parte da lei da nação. A sua verdadeira importância no
que respeita aos indivíduos deve, tal como toda as outras leis,

[223]
ser determinada por decisões judiciais. Para que haja unifor-
midade nessas decisões, elas têm de ser submetidas, em última
instância, a um SUPREMO TRIBUNAL. E este tribunal deve ser
instituído sob a mesma autoridade que celebra os próprios
tratados. Ambos os ingredientes são indispensáveis. Se existir
um tribunal de suma instância em cada Estado, podem existir
tantas decisões finais diferentes sobre o mesmo assunto quantos
os tribunais. Há infindáveis diversidades nas opiniões dos
homens. É frequente vermos não só tribunais diferentes mas
os Juízes do mesmo tribunal a diferir uns dos outros. Para
evitar a confusão que inevitavelmente resultaria das decisões
contraditórias de um número de judicaturas independentes,
todas as nações consideraram necessário estabelecer um tribunal
superior aos restantes, possuindo uma superintendência geral,
e autorizado a estabelecer e proclamar em última instância
uma regra uniforme de justiça civil.
Isto é ainda mais necessário quando o sistema de governo
é composto de tal modo que as leis do todo estão em perigo
de serem transgredidas pelas leis das partes. Nesse caso, se os
tribunais particulares forem investidos de um direito de juris-
dição em última instância, além das contradições a esperar
das diferenças de opinião, haverá muito a recear da parcialidade
de pontos de vista e preconceitos locais, e da interferência
das normas locais. Sempre que acontecesse uma interferência
dessas, haveria razões para recear que as cláusulas das leis
particulares pudessem ser preferidas às das leis gerais, porque
nada é mais natural para homens em funções oficiais do que
olhar com deferência peculiar para essa autoridade à qual
devem a sua existência dos seus cargos.
Os tratados dos Estados Unidos, de acordo com a presente
Constituição, estão sujeitos às infracções de treze legislaturas
diferentes, e de outros tantos tribunais de última instância
diferentes, agindo sob autoridade dessas legislaturas. A con-
fiança, a reputação e a paz de toda a União estão assim conti-
nuamente à mercê dos preconceitos, das paixões e dos interesses

[224)
de cada um dos membros de que ela se compõe. É possível
que as nações estrangeiras possam respeitar ou confiar num
governo assim? É possível que o Povo da América consinta
por mais tempo em confiar a sua honra, a sua felicidade, a
sua segurança, a uma fundação assim precária?
Neste exame retrospectivo da Confederação confinei-me
à exibição dos seus defeitos mais relevantes, passando por cima
daquelas imperfeições nos seus detalhes pelas quais mesmo
uma grande parte do poder que houve a intenção de lhe con-
ferir foi em grande medida abortado. Nesta altura, já deve
ser evidente para todos as pessoas que reflectem, que podem
libertar-se da predisposição para opiniões preconcebidas, que
ela é um sistema tão radicalmente vicioso e insensato que não
admite reforma mas apenas uma total alteração dos seus
dispositivos e características principais.
A organização do Congresso é em si inteiramente impró-
pria para o exercício desses poderes que é necessário depositar
na União. Uma simples Assembleia pode ser a depositária
apropriada dessa escassa, ou melhor, confinada, autoridade
que até agora foi delegada nos organismos federais. Mas seria
inconsistente com todos os princípios de boa governação
confiar-lhe esses poderes adicionais que, admitem-no mesmo
os adversários moderados e mais racionais da Constituição
proposta, deviam caber aos Estados Unidos. Se esse plano não
vier a ser adoptado, e se a necessidade da união for capaz de
se opor aos desígnios ambiciosos daqueles homens que podem
acarinhar esquemas magnificentes de engrandecimento pessoal
decorrentes da dissolução dela, seria provável que adoptássemos
o projectO de conferir poderes suplementares ao Congresso,
semelhantes aos já existentes. E então, ou a máquina, por
causa da intrínseca fraqueza da sua estrutura, se desfaria em
bocados, apesar dos nossos mal-avisados esforços para lhe dar
firmeza, ou, por aumentos sucessivos da sua força e energia,
incentivados pela necessidade, acumularíamos por fim, num
só organismo, todas as prerrogativas mais importantes da

[225]
soberania, e assim vincularíamos a nossa descendência a uma
das mais execráveis formas de governo que a paixão humana
jamais concebeu. Desse modo, criaríamos na realidade essa
mesma tirania que os adversários da nova Constituição com
tanta solicitude, verdadeira ou fingida, procuram impedir.
Não contribuiu pouco para os males do sistema federal
existente que ele nunca tenha tido urna ratificação pelo POVO.
Assentando numa fundação não melhor do que o consenti-
mento das várias legislaturas, ele foi exposto a frequentes e
intrincadas questões respeitantes à validade dos seus poderes
e, em alguns casos, deu origem à monstruosa doutrina de um
direito de revogação legislativa. Devendo a sua ratificação à
lei de um Estado, foi discutido se a mesma autoridade poderia
revogar a lei pela qual ela foi ratificada. Por mais que possa ser
urna grosseira heresia sustentar que uma parte num contrato tem
um direito de revogar esse contrato, essa doutrina encontrou
respeitáveis defensores. A possibilidade de uma questão desta
natureza prova a necessidade de lançar as fundações do nosso
governo nacional mais profundamente do que na simples apro-
vação da autoridade delegada. A estrutura do império ameri-
cano deve assentar na sólida base do CONSENTIMENTO DO
POVO. Os caudais do poder nacional devem fluir imediata-
mente dessa fonte pura e original de toda a autoridade legítirna6.
PUBLIUS.

6 Hamilton está a tocar num dos pontos mais nevrálgicas do federalismo


contemporâneo em geral, e americano em particular: as relações entre soberania
popular e direitos dos Estados. Neste debate diferido no tempo participaram,
entre outros, o próprio Madison, com o seu 'direito de interposição' (right to
interpose), Thomas Jefferson e John C. Calhoun, com duas variantes da teoria
da "anulação" (nu/l!fication) dos actos do governo federal pelos Estados, e o
defensor do primado da União, Daniel Webster. A resposta, teórica e prática,
aos limites da acção dos Estados foi dada por Lincoln ao considerar a Secessão
da maioria dos Estados esclavagistas como um acto de rebelião, mergulhando
o país na guerra civil. (E. P.).

[226]
O FEDERALISTA N." 23

Necessidade de um Governo pelo menos


tão Enérgico como o Proposto,
para a Preservação da União

ALEXANDER HAMILTON
18 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Chegou agora o momento de examinar a necessidade de


uma Constituição, pelo menos tão eficaz como a que é pro-
posta, para a preservação da União.
Este exame dividir-se-á naturalmente em três partes: os
objectivos de que o governo federal deve cuidar, a quantidade
de poder necessária para a realização desses objectivos, as
pessoas sobre as quais esse poder deve actuar. A sua distribuição
e organização reclamarão mais propriamente a nossa atenção
no que se segue.
Os principais fins a que a União tem de responder são os
seguintes: a defesa comum dos membros, a preservação da

* Do The New- York Packet, 18 de Dezembro de 1787. Publicado na


mesma data no The New- York ]ournal, e em 19 de Dezembro simultaneamente
no The lndependent ]ournal e no Tize Daily Advertiser. GC).

[227]
paz pública tanto contra as convulsões internas como contra
os ataques externos, a regulamentação do comércio com outras
nações e entre os Estados, a superintendência das nossas relações,
politicas e comerciais, com os países estrangeiros.
Os poderes essenciais para a defesa comum são os seguintes:
recrutar exércitos, construir e equipar esquadras, prescrever
as regras de funcionamento para ambos, dirigir as suas opera-
ções, providenciar para a sua manutenção. Estes poderes
deverão existir sem limitações, porque é imposs{vel antever ou
difinír a extensão e variedade das exigências nacionais, ou a
correspondente extensão e variedade dos meios que podem ser necessários
para as satiifazer. As circunstâncias que põem em perigo a
segurança das nações são infinitas e por esta razão nenhum
obstáculo constitucional deve ser sensatamente imposto ao
poder a cujo cuidado são entregues. Esse poder deverá ser
coextensivo com todas as possíveis combinações de tais cir-
cunstâncias e deverá estar sob a direcção dos mesmos conselhos
que são designados para presidir à defesa comum.
Esta é uma das verdades que, para um espírito correcto e
não preconceituoso, mostra a sua própria evidência e pode
ser obscurecida, mas não pode ser tornada mais clara por meio
de argumentos ou de raciocínios. Assenta em axiomas tão
simples quanto universais: os meios devem ser proporcionados
ao fim; as pessoas de cuja actuação é esperado que alcancem
o fim deverão possuir os meios pelos quais o fim é alcançado.
Se deve haver um governo federal a quem se confia o
cuidado da defesa comum, é uma questão que no caso presente
está aberta à discussão. Mas no momento em que é decidida
pela afirmativa, seguir-se-á que o governo tem de ser investido
de todos os poderes necessários para a integral execução da
sua missão. E a menos que se possa mostrar que as circunstâncias
que podem afectar a segurança pública são redutíveis dentro
de determinados limites e a menos que a posição contrária
desta possa ser honesta e racionalmente controvertida, tem
de ser admitido, como consequência necessária, que não pode

[228]
haver limitação da autoridade que tem de providenciar a defesa
e a protecção da comunidade, em qualquer aspecto essencial
para a sua eficácia, ou seja, em qualquer aspecto essencial para
a formação, direcção ou manutenção das FORÇAS NACIONAIS.
Defeituosa como mostrou ser a presente Confederação,
este princípio parece ter sido inteiramente reconhecido p elos
seus autores, embora eles não tenham criado disposições apro-
priadas ou adequadas para o seu exercício. O Congresso tem
uma completa liberdade para requisitar homens e dinheiro,
para administrar o exército e a marinha, para dirigir as ope-
rações destes. Dado que as suas requisições são constitucio-
nalmente obrigatórias para os Estados, que de facto tão solene-
mente e obrigaram a fornecer os suprimentos que lhes são
solicitados, era evidente a intenção de que os Estados Unidos
deveriam ter sob o seu comando todos e quaisquer recursos
que julgassem indispensáveis para a " defesa comum e bem-
estar geral". Presumia-se que um sentimento dos seus verda-
deiros interesses e um respeito pelos ditames da boa-fé seriam
garantias suficientes para o cumprimento pontual do dever
dos membros para com a autoridade federal.
A experiência demonstrou, no entanto, que esta expectativa
foi infundada e ilusória, e as observações anteriormente apre-
sentadas terão bastado, imagino eu, para convencer os leitores
imparciais e perspicazes de que existe urna absoluta necessidade
de uma total mudança nos primeiros princípios do sistema;
de que, se estamos realmente empenhados em dar eficácia e
duração à União, temos de abandonar o vão projecto de legis-
lar para os Estados enquanto sujeitos colectivos. Temos de
estender as leis do governo federal aos cidadãos individuais
da América e temos de nos livrar do falacioso esquema de
quotas e requisições como sendo igualmente impraticável e
injusto. O resultado de tudo isto é que a União deverá ser
investida de plenos poderes para recrutar tropas, para construir
e equipar esquadras, e para angariar as receitas que serão neces-
sárias para a formação e manutenção de um exército e de

[229]
uma marinha, das maneiras costumadas e vulgares praticadas
por outros governos.
Se as circunstâncias do nosso país são de molde a exigir
um governo composto em vez de um simples, confederado
em lugar de único, o ponto essencial que fica por ajustar será
a discriminação das MATÉRIAS, tão detalhadamente quanto
possível, que deverão ser da competência das diferentes pro-
víncias ou departamentos do poder, permitindo a cada um a
mais ampla autoridade para realizar os objectivos entregues
ao seu cuidado. Deve a União ser constituída como guardiã
da segurança comum? As esquadras e os exércitos são necessá-
rios para este fim? O governo da União deve ter poderes para
promulgar todas as leis e para fazer todos os regulamentos que
têm relação com eles. A mesma coisa deve acontecer com
respeito ao comércio e a qualquer outro assunto ao qual a sua
jurisdição está autorizada a estender-se. A administração da
justiça entre cidadãos do mesmo Estado é um departamento
próprio dos governos locais? Estes devem possuir todos os
poderes que estão ligados a esse fim, e juntamente com todos
os outros que possam ser atribuídos às suas competências e
direcção particulares. Não conferir, em cada caso, um grau
de poder comensurável com o fim seria violar as regras mais
óbvias da prudência e da rectidão, e confiar irnprevidentemente
os grandes interesses da nação a mãos que estão incapacitadas
de os gerir com energia e sucesso.
Quem é que mais provavelmente é susceptível de tomar
as providências convenientes para a defesa pública, senão esse
corpo ao qual é confiada a protecção da segurança pública,
que, como centro da informação, compreenderá melhor a
extensão e urgência dos perigos que nos ameaçam, como
representante do TODO, se sentirá mais profundamente inte-
ressado na preservação de cada uma das partes, que, decor-
rendo da responsabilidade implicada no dever que lhe é con-
fiado, ficará mais profundamente impressionado com a
necessidade de esforços apropriados, e que, pela extensão da

[230]
sua autoridade sobre os Estados, é o único a poder estabele-
cer uniformidade e concertação nos planos e medidas pelos
quais deve ser assegurada a segurança comum? Não há uma
inconsistência manifesta em devolver ao governo federal a
preocupação com a defesa geral e deixar aos governos dos
Estados os poderes efectivos por meio dos quais ela pode ser
assegurada? A falta de cooperação não é uma consequência
infalível de tal sistema? E não serão a fraqueza, a desordem,
uma distribuição incorrecta dos fardos e calamidades da guerra,
um desnecessário e intolerável aumento da despesa, os seus
companheiros naturais e inevitáveis? Não tivemos uma expe-
riência inequívoca dos seus efeitos no decurso da revolução
que acabámos de realizar?
Todos os pontos de vista que possamos adoptar sobre o
assunto, como investigadores imparciais da verdade, servirão
para nos convencer de que é simultaneamente insensato e
perigoso negar ao Governo Federal uma autoridade ilimitada
em relação a todos esses recursos que são confiados à sua ges-
tão. Ele merece na verdade que o povo dispense a atenção mais
vigilante e cuidadosa para que seja moldado de uma maneira
que admita que com segurança seja investido com os poderes
indispensáveis. Qualquer plano que foi, ou possa ser, oferecido
à nossa consideração, se não responder, depois de um exame
desapaixonado, a esta descrição, então deve ser rejeitado. Um
governo cuja Constituição o torne inadaptado para lhe serem
confiados todos os poderes que um povo livre deve delegar em
qualquer governo seria um depositário inseguro e inadequado
dos INTERESSES NACIONAIS. Sempre que ESTES últimos lhe
possam ser adequadamente confiados, os poderes correspon-
dentes podem com segurança acompanhá-los. Este é o verda-
deiro resultado de todo o raciocínio justo sobre o assunto.
E os adversários do plano promulgado pela Convenção deviam
ter-se confinado a mostrar que a estrutura interna do governo
proposto era tal que o tornava indigno da confiança do povo.
Não deviam ter devaneado com declamações inflamatórias e

[231)
sofismas sem sentido acerca da extensão desses poderes. Os
PODERES não são exagerados para os OBJECTIVOS da adminis-
tração federal, ou, por outras palavras, para a gestão dos nossos
INTERESSES NACIONAIS, nem pode ser construido nenhum
argumento satisfatório para mostrar que lhes é imputável um
tal excesso. Se fosse verdade, como foi insinuado por alguns
dos escritores de posição contrária, que a dificuldade resulta
da própria natureza da coisa, e que a extensão do pais não
nos permitirá formar um governo ao qual possam ser outorga-
dos com segurança poderes tão amplos, ficaria então provado
que devemos lirni[ar os nossos projectos, e recorrer ao expe-
diente de Confederações independentes, que se movimentarão
dentro de esferas mais praticáveis, porque deve fitar-nos conti-
nuamente de frente o absurdo de confiar a um governo a
direcção dos interesses nacionais mais essenciais, sem ousar
confiar-lhe os poderes que são indispensáveis para a administra-
ção correcta e eficiente destes. Não tentemos reconciliar con-
tradições, mas adoptemos firmemente uma alternativa racional.
Confio, no entanto, que a impraticabilidade de um sistema
I
geral não possa ser demonstrada. Estou grandemente enganado
se alguma coisa de peso foi já avançada nessa direcção e con-
gratulo-me com o facto de que as observações que foram feitas
no decorrer deste artigos tenham servido para que a posição
contrária dessa ficasse tão claramente exposta como pode ficar
qualquer assunto ainda no ventre do tempo e da experiência.
Em todo o caso, deve er evidente que a própria dificuldade
derivada da extensão do pais é o argumento mais forte a favor
de um governo enérgico, porque nenhum outro pode certa-
mente preservar a União de um império tão vasto. Se adoptar-
mos os princípios daqueles que se opõem à aprovação da Cons-
tituição proposta como norma do nosso credo politico, não
podemos deixar d verificar as sombrias doutrinas que prognos-
ticam a impraticabilidade de um sistema nacional abrangendo
inteiramente os limites da presente Confederação.
PUBLIUS.

[232]
O FEDERALISTA N.• 24

Considerações Adicionais sobre


os Poderes Necessários para a Defesa Comum

ALEXANDER HAMILTON
19 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Contra os poderes propostos para serem conferidos ao


governo federal, a respeito da criação e direcção das forças
nacionais, só encontrei uma objecção específica que, se percebo
bem, é esta: que não foram tomadas as providências apropria-
das contra a existência de exércitos permanentes em tempo
de paz. Uma objecção que, tentarei agora mostrá-lo, assenta
em fundamentos fracos e não substanciais.
Ela foi efectivamente trazida a terreiro na forma mais vaga
e mais geral, apoiada apenas por ousadas afirmações - sem
sombra de argumentos - sem sequer a confirmação de opirúões
teóricas, em contradição com a prática de outras nações livres
e com a opinião geral na América, tal como é expresso na

* D T11e lndependent Jor{rnal, 19 de Dezembro de 1787. Publicado no


mesmo dia no The Daily Advertiser e no The New- York Jou rnal, e em 21 de
Dezembro no T11e New- York Packet. QC).

[233]
maior parte das Constituições existentes. A justeza desta
observação aparecerá no momento em que for recordado que
a objecção que está a ser considerada gira em torno de uma
suposta necessidade de restringir a autoridade LEGISLATIVA da
nação, em matéria de instituições militares; um princípio
inaudito, excepto em uma ou duas das Constituições dos
Estados, e rejeitado em todas as restantes.
Um desconhecedor da nossa política, que lesse os jornais
na actual conjuntura sem ter previamente examinado o plano
apresentado pela Convenção, seria naturalmente levado a uma
ou duas conclusões: ou que ele continha uma clara prescrição
para que sejam mantidos exércitos permanentes em tempo
de paz; ou que conferia ao EXECUTIVO plenos poderes para
mobilizar tropas, sem submeter a sua decisão, de nenhuma
maneira, ao controlo da legislatura.
A mesma pessoa, se viesse mais tarde a ler atentamente o
próprio plano, ficaria surpreendida ao descobrir que nenhuma
das conclusões era verdadeira; que todo o poder de mobilizar
exércitos estava entregue à legislatura e não ao executivo; que
essa legislatura deveria ser um órgão popular, integrado pelos
representantes do povo periodicamente eleitos; e que, em
lugar da cláusula que ele tinha suposto ser a favor dos exércitos
permanentes, estava presente, a respeito deste assunto, uma
importante restrição da própria arbitrariedade legislativa, na
disposição que proíbe a apropriação de dinheiro para a manu-
tenção de um exército por um período superior a dois anos
- uma precaução que, quando observada mais de perto, se
apresenta como urna grande e real garantia contra a manuten-
ção de tropas sem necessidade evidente.
Desapontada quanto à sua primeira suposição, a pessoa
que imaginei poderia ser capaz de prosseguir um pouco mais
as suas conjecturas. Diria naturalmente para si mesma que é
impossível que todos estes discursos patéticos e veementes
não tenham algum pretexto plausível. É forçoso que este povo,
tão cioso das suas liberdades, tenha, em todos os modelos

[234]
precedentes das Constituições que instituiu, inserido as precau-
ções mais precisas e rígidas nesta matéria, precauções cuja
omissão no novo plano deu origem a toda esta apreensão e
clamor.
Se, debaixo desta impressão, prosseguisse para o exame
das várias Constituições dos Estados, como seria grande o seu
desapontamento por descobrir que apenas duas delasl contêm
uma interdição de exércitos permanentes em tempo de paz
e que as outras onze ou guardam profundo silêncio acerca do
assunto, ou admitem em termos expressos o direito da Legis-
latura para autorizar a sua existência.
Não obstante, ele ficaria ainda persuadido de que deve
haver algum fundamento plausível para o clamor em torno
do assunto. Nunca seria capaz de imaginar, enquanto permane-
cesse inexplorada qualquer fonte de informação, que tudo

1 Esta afirmação é extraída da colecção impressa das constituições dos


Estados. A Pensilvânia e a Carolina do Norte são as duas que contêm a interdição,
usando destas palavras: "Como os exércitos permanentes em tempo de paz
são perigosos para a liberdade, não devem ser mantidos." Isto é, na verdade,
mais uma precaução do que uma proibição. New Hampshire, Massachusetts,
Delaware, e Maryland têm, em cada uma das suas cartas de direitos, uma
cláusula para este efeito - "Os exércitos permanentes são perigosos para a
liberdade, e não devem ser recrutados ou mantidos sem o consentimento da
legislatura" -, o que é uma admissão formal da autoridade da Legislatura. Nova
Iorque não tem carta de direitos, e a sua constituição não diz uma só palavra
sobre o assunto. Não há cartas de direitos anexas às constituições dos outros
Estados, com excepção dos anteriores, e as suas constituições são também
silenciosas. Dizem-me, todavia, que um ou dois Estados têm cartas de direitos
que não aparecem nesta colecção, mas que essas também reconhecem o direito
do poder legislativo a este respeito (Publius).
Traduzimos Bill of rights (ou Bill of right), por "carta de direitos" e não
por "declaração de direitos", porque se considera essa tradução mais adequada,
não apenas em termos de correspondência com a tradição constitucional
portuguesa, mas também porque alguns dos Estados da União tinham integradas
nas suas próprias constituições Declaration of Rights, o que implica a existência
de uma diversidade terminológica no seio da próprio debate constitu cional
norte-americano. (E. P.).

[235]
não passou de um ensaio visando a credulidade pública, ditado
ou por urna intenção deliberada de iludir, ou pelas exuberâncias
de um zelo demasiado imoderado para ser sincero. É provável
que lhe ocorresse que encontraria verosimilmente as precauções
de que estava à procura no contrato primitivo entre os Estados.
Aí, por fim, esperaria encontrar uma solução do enigma. Sem
dúvida, observaria para si mesmo, a Confederação existente
deve conter as cláusulas mais explícitas contra as instituições
militares em tempo de paz, e um desvio desse modelo, num
ponto tão crucial, ocasionou um descontentamento que parece
influenciar esses batalhadores políticos.
Se agora ele se dedicasse a urna inspecção cuidadosa e crí-
tica dos Artigos da Confederação, não só o seu espanto aumen-
taria, mas ficaria cheio de indignação, perante a descoberta
inesperada de que esses artigos em vez de conterem a proibição
de que estava à espera, e embora tivessem restringido com
ciosa circunspecção a autoridade das Legislaturas Estaduais
nesse particular, não impuseram uma única restrição à auto-
ridade dos Estados Unidos. Se fosse uma pessoa de aguda
sensibilidade, ou de temperamento ardente, já não poderia
mais abster-se de ver esses clamores como artifícios desone tos
de uma oposição sinistra e sem princípios a um plano que
devia pelo menos receber um exame justo e honesto de todos
os sinceros amantes do seu país! De que outra maneira, diria,
podia alguém ter sido tentado a dar livre curso a essas ruidosas
censuras sobre esse plano, focando um ponto no qual ele
parece ter-se conformado com a opinião geral da América
como é declarada nas suas diferentes formas de governo, e
em que até foi acrescentada mais urna nova e poderosa garantia
desconhecida de todas elas? Se, pelo contrário, fosse uma
pessoa de sentimentos calmos e desapaixonados, limitar-se-
-ia a um suspiro pela fragilidade da natureza humana e lamen-
taria que, numa matéria de tanto interesse para a felicidade
de milhões de pessoas, os reais méritos da questão fossem
enleados e emaranhados por expedientes tão pouco amigos

[236]
de uma decisão imparcial e justa. Mesmo uma pessoa assim
dificihnente se poderia abster de notar que uma conduta como
esta tem mais a aparência de uma intenção de enganar o povo
agitando as suas paixões do que de o convencer por meio de
argumentos dirigidos à sua compreensão.
Mas por menos encorajada que esta opinião possa ser,
mesmo por precedentes ocorridos entre nós, pode ser satisfató-
rio ter uma visão mais detalhada dos seus méritos intrínsecos.
Num exame detalhado ficará patente que seria incorrecto
impor restrições à vontade da Legislatura com respeito aos
efectivos militares em tempo de paz e que, se fossem impostas,
seria improvável que fossem observadas, dadas as necessidades
da sociedade.
Embora um vasto oceano separe os Estados Unidos da
Europa, ainda assim há várias considerações que nos alertam
contra um excesso de confiança ou de segurança. De um dos
nossos lados, e estendendo-se para além da nossa retaguarda,
estão a crescer os colonatos sujeitos ao dorrúnio da Grã-Bre-
tanha. Do outro lado, e estendendo-se ao encontro dos colo-
natos britânicos, estão as colónias e estabelecimentos sujeitos
ao dorrúnio da Espanha. Esta situação e a vizinhança das lndias
Ociden ais, pertencentes a essas duas potências, criam entre
elas, com respeito às suas possessões americanas, e em relação
a nós, um interesse comum. As tribos selvagens da nossa fron-
teira do Oeste devem ser olhadas como nossos inimigos natu-
rais, aliados naturais delas, porque têm tudo a recear de nós
e tudo a esperar dessas nações. Os aperfeiçoamentos da arte
da navegação tornaram em grande medida vizinhas, no que
toca à facilidade de comunicação, nações que eram distantes.
A Grã-Bretanha e a Espanha estão entre as principais potências
marítimas da Europa. Uma futura concertação de pontos de
vista entre essas nações não deve ser olhada como improvável.
O crescente afastamento da consanguinidade está a diminuir
dia a dia a força do contrato familiar entre a França e a Espanha.
E os políticos, com muito razão, têm sempre considerado os

[237)
laços de sangue como fracos e precários laços de conexão
política. Estas circunstâncias combinadas alertam-nos para
que não sejamos entusiastas em demasia ao considerar-nos
como inteiramente fora do alcance de qualquer perigo.
Anteriormente à Revolução, e desde a paz, houve uma
necessidade constante de manter pequenas guarnições na nossa
fronteira do oeste. Ninguém pode duvidar de que elas conti-
nuarão a ser indispensáveis, ainda que seja apenas contra as
pilhagens e depredações dos índios. Essas guarnições têm de
ser constituídas por destacamentos ocasionais da milícia, ou
por corpos permanentes a soldo do governo. O primeiro caso
é impraticável e, se fosse praticável, seria pernicioso. A milícia
não se submeteria durante muito tempo, se é que alguma vez
o faria, a ser afastada das suas ocupações e das suas famílias
para cumprir esse dever dos mais desagradáveis em tempo de
profunda paz. E se pudesse ser convencida ou compelida a
fazê-lo, o aumento da despesa provocado por uma frequente
rotação de serviço, e a perda de trabalho e atrapalhação das
industriosas actividades dos indivíduos, seriam objecções con-
vincentes ao esquema. Seria tão penoso e prejudicial para o
público como ruinoso para os cidadãos privados. A segunda
solução, a dos corpos permanentes a soldo do governo, equivale
à existência de um exército permanente em tempo de paz;
um pequeno exército, na verdade, mas não menos real por
ser pequeno. Aqui está uma perspectiva simples da questão,
que nos mostra imediatamente a incorrecção de uma interdição
constitucional desses efectivos, e a necessidade de deixar o
assunto à discrição e prudência da legislatura.
Na proporção do crescimento da nossa força, é provável,
mais do que isso, pode dizer-se que é certo que a Grã-Bretanha
e a Espanha aumentarão os seus efectivos militares perto de
nós. Se não estivermos na disposição de ficar expostos, numa
condição nua e sem defesa, aos seus insultos e incursões, deve-
mos considerar que se justifica aumentar as nossas guarnições
de fronteira proporcionalmente à força com a qual os nossos

[238]
colonatos do Oeste possam ser incomodados. Existem, e
existirão, postos particulares, cuja ocupação implica o domínio
de grandes porções de território, e facilita futuras invasões do
restante. Pode acrescentar-se que alguns desses lugares serão
postos-chaves para o comércio com as nações índias. Pode
algum homem pensar que seria sensato deixar esses postos
numa situação de serem a qualquer momento tomados por
uma ou outra das duas grandes potências vizinhas? Agir deste
modo seria abrir mão de todas as máximas usuais de prudência
e de sagacidade.
Se queremos ser um povo comercial, ou mesmo estar
seguros do nosso lado do Atlântico, temos de nos esforçar,
tão cedo quanto possível, por ter uma marinha. Para este fim
tem de haver estaleiros e arsenais e, para a defesa destes, forti-
ficações e provavelmente guarnições. Quando uma nação se
tornou tão poderosa no mar que pode proteger os seus esta-
leiros com as próprias esquadras, isso torna obsoleta a necessi-
dade de guarnições para esse fim. Mas quando os estabeleci-
mentos navais estão na infancia, as guarnições moderadas
serão, com toda a probabilidade, consideradas uma segurança
indispensável contra ataques súbitos visando a destruição dos
arsenais e estaleiros, e por vezes da própria esquadra.
PUBLIUS.

[239]
O FEDERALISTA N.• 25

Considerações Adicionais sobre


os Poderes Necessários para a Defesa Comum
(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
21 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Pode talvez alegar-se que deviam ser os governos dos Esta-


dos a providenciar as coisas enumeradas no artigo precedente,
sob a direcção da União. Mas isto seria, na realidade, uma
inversão do princípio primário da nossa associação política,
dado que na prática transferiria a preocupação com a defesa
comum do órgão federal para os membros individuais: um
projecto opressor para certos Estados, perigoso para todos, e
funesto para a Confederação.
O s territórios da Grã-Bretanha, da Espanha e das nações
índias junto de nós não fazem fronteira com Estados parti-
culares, mas rodeiam a União desde o MAINE até à GEÓRGIA.

* Do The New-York Packet, 21 de Dezembro de 1787. Publicado no


mesmo dia tanto no The Daily Advertiser e no The New- York j ournal, e em 22
de Dezembro no The Independentjournal. QC) .

[241]
O perigo, embora em diferentes graus, é, pois, comum. E os
meios de nos protegermos dele deveriam, de igual maneira,
ser objecto de conselhos comuns e de um fundo comum.
Dá-se o caso que alguns Estados, por causa da situação local,
estão mais directamente expostos. NovA IORQUE pertence a
esse grupo. De acordo com o plano de cada Estado tomar
providências separadas, Nova Iorque teria de suportar todo
o peso das instalações indispensáveis para a sua segurança ime-
diata e para a protecção mediata ou derradeira dos seus vizi-
nhos. Isto não seria equitativo no que respeita a Nova Iorque
nem seguro no que respeita aos outros Estados. Vários incon-
venientes acompanhariam esse sistema. Os Estados a cuja sorte
pudesse caber a manutenção das instalações necessárias estariam
tão pouco capazes como pouco desejosos, por um longo
tempo no futuro, de suportar o fardo das providências ade-
quadas. A segurança do todo ficaria assim sujeita à parcimónia,
improvidência, ou incapacidade de uma parte. Se os recursos
dessa parte se tornassem mais abundantes e vastos, se as
suas providências fossem aumentadas proporcionalmente, os
outros Estados rapidamente se alarmariam ao ver a totalidade
da força militar da União nas mãos de dois ou três dos seus
membros, provavelmente os mais poderosos. Cada um deles
procuraria algum tipo de contrapeso e podem ser facilmente
imaginados os pretextos para isso. Nesta situação, os efectivos
militares, alimentados por suspeitas mútuas, estariam em
situação de se avolumarem para além do seu tamanho natural
ou justo e, estando separadamente à disposição dos membros,
seriam instrumentos para cercear ou anular a autoridade
nacional.
Já foram apresentadas razões para induzir uma suposição
de que os Governos dos Estados estarão muito naturalmente
propensos a manter uma rivalidade com o governo da União,
cujo fundamento será o desejo de poder; e que em qualquer
luta entre a autoridade federal e um dos seus membros o povo
estará mais inclinado a unir-se ao seu governo local. Se, a

[242]
acrescer a esta imensa vantagem, a ambição dos membros
fosse estimulada pela posse separada e independente de forças
militares, isso permitiria uma tentação demasiado forte e uma
facilidade demasiado grande para que estes tomassem iniciativas
contra, e por fim subvertessem, a autoridade constitucional
da União. Por outro lado, a liberdade do povo estaria menos
segura neste estado de coisas do que naquele em que as forças
nacionais estão nas mãos do governo nacional. Na medida
em que um exército pode ser considerado uma perigosa arma
de poder, será melhor que esteja nas mãos mais susceptíveis
de infundir temor ao povo do que em mãos menos susceptíveis
de o fazer. Porque é uma verdade, que a experiência de séculos
atesta, que o povo está sempre em maior perigo quando os
meios de causar dano aos seus direitos estão na posse daqueles
em relação aos quais ele alimenta menos suspeitas.
Os arquitectos da Confederação existente, completamente
conscientes dos perigos para a União resultantes da posse sepa-
rada de forças militares pelos Estados, proibiram-nos, em
termo expressos, de possuir navios ou exércitos, excepto
com o consentimento do Congresso. A verdade é que a exis-
tência de um Governo Federal e de instalações militares sob
a autoridade de um Estado não estão menos em desacordo
uma com a outra do que um conveniente abastecimento do
tesouro federal está em desacordo com o sistema de quotas e
requisições.
Há outros aspectos além dos que já foram considerados,
nos quais a inadequação de restrições à livre vontade da legis-
latura nacional será igualmente manifesta. O desígnio da
objecção que já foi mencionada é impossibilitar a existência
de exércitos permanentes em tempo de paz, embora nunca
tenhamos sido informados até que ponto houve a intenção
de alargar a proibição: se a mobilizar exércitos bem como a
mantê-los em períodos de tranquilidade, ou não. Se estiver
confinada a este último caso não terá significado preciso e
será ineficaz para o fim pretendido. Uma vez mobilizados os

[243]
exércitos, a que devemos chamar "mantê-los" contrariamente
ao sentido da Constituição? Quanto tempo terá de passar para
consumar a violação? Será urna semana, um mês, um ano?
Ou deveremos dizer que podem continuar por tanto tempo
quanto continuar o perigo que ocasionou a sua mobilização?
Isso seria admitir que podem ser mantidos em tempo de paz,
contra um perigo ameaçador ou iminente, e seria divergir
imediatamente do significado literal da proibição e introduzir
uma grande latitude de interpretação. Quem deverá ajuizar
da continuação do perigo? É coisa que deve indubitavelmente
estar submetida ao governo nacional, e a questão teria então
esta conclusão: que o governo nacional, para providenciar
contra um perigo receado, poderia, primeiramente, mobilizar
tropas, e, em seguida, mantê-las em pé de guerra enquanto
achasse que a paz ou segurança da comunidade estava, em
alguma medida, em risco. É facil perceber que um arbítrio
tão grande como este abriria um vasto campo para iludir a
força da cláusula.
A suposta utilidade de uma cláusula desta natureza tem
de ser fundada numa probabilidade hipotética, ou pelo menos
numa possibilidade, de uma combinação entre o executivo e
o legislativo, para um esquema qualquer de usurpação. Se isto
alguma vez viesse a acontecer, como seria facil forjar pretextos
de um perigo iminente! As hostilidades por parte dos índios,
instigadas pela Espanha ou Grã-Bretanha, estariam sempre à
mão. As provocações para produzir as desejadas aparências
podiam mesmo ser atribuídas a alguma potência estrangeira,
e aplacadas novamente por concessões atempadas. Se pudermos
razoavelmente admitir que tenha sido formada urna combi-
nação desse tipo, e que o empreendimento tenha garantida
uma per pectiva suficiente de sucesso, o exército, uma vez
mobilizado, seja qual for a causa, ou com que pretexto for,
pode ser aplicado à execução do projecto.
Se, para obviar a esta consequência, viesse a ser decidido
alargar a proibição à mobilização de exércitos em tempo de

[244]
paz, os Estados Unidos exibiriam então o mais extraordinário
espectáculo que o mundo já viu : o de uma nação incapacitada
pela sua Constituição de se preparar para a defesa, antes de
ser efectivamente invadida. Como o ritual de uma declaração
formal de guerra caiu ultimamente em desuso, tem de se
aguardar a presença de um inimigo dentro do nosso território
como garantia legal para que o governo comece a mobilização
de tropas para a protecção do Estado. Temos de sofrer o golpe
antes que nos possamos preparar para o devolver. Temos de
nos abster de todo esse tipo de politicas por meio das quais
as nações antecipam o perigo distante e vão ao encontro da
tempestade em formação, como contrárias às máximas genuínas
do governo livre. Temos de expor a nossa propriedade e
liberdade à mercê de invasores estrangeiros, e convidá-los,
com a nossa fraqueza, a apoderarem-se da presa desprotegida
e sem defesa, porque temos receio de que os governantes,
criados pela nossa escolha, dependentes da nossa vontade,
possam fazer perigar essa liberdade, abusando dos meios
necessários para a preservação dela.
Aqui, ·espero que nos seja dito que a Milicia da nação é
o seu baluarte natural, e que ela estaria sempre à altura da
defesa nacional. Esta doutrina, em substância, quase nos fez
perder a nossa independência. Custou aos Estados Unidos
milhões que poderiam ter sido poupados. Os factos que, de
acordo com a nossa própria experiência, impedem uma con-
fiança deste tipo são demasiado recentes para permitirem que
sejamos enganados por uma sugestão como esta. As operações
continuadas de guerra contra um exército regular e disciplinado
só podem ser conduzidas com sucesso por uma força do
mesmo tipo. As considerações de economia, não menos do
que as de estabilidade e energia, confirmam esta posição.
A Milicia Americana, no decurso da última guerra, pelo seu
valor em numerosas ocasiões, erigiu monumentos eternos à
sua fama, mas os mais bravos dos seus membros sentem e
sabem que a liberdade do seu país não poderia ter sido esta-

[245]
belecida apenas pelos seus esforços, por maiores e valiosos
que fossem. A guerra, como muitas outras coisas, é uma
ciência que deve ser adquirida e aperfeiçoada pela diligência,
pela perseverança, pelo tempo, e pela prática.
Todas as políticas violentas, dado que são contrárias ao
curso natural e experimentado dos assuntos humanos, derro-
tam-se a si mesmas. A Pensilvânia, neste momento, pro-
porciona um exemplo da verdade desta observação. A Carta
de Direitos desse Estado declara que os exércitos permanentes
são um perigo para a liberdade, e não devem ser mantidos
em tempo de paz. A Pensilvânia, apesar disso, num tempo de
profunda paz, por causa da existência de tumultos parciais em
um ou dois dos seus condados, resolveu mobilizar um corpo
de tropas. E mantê-lo-á com toda a probabilidade enquanto
existir uma aparência de perigo para a paz pública!. A conduta
do Massachusetts proporciona uma lição sobre o mesmo
assunto, embora numa base diferente. Esse Estado (sem esperar
pela aprovação do Congresso, como exigem os artigos da
confederação) foi obrigado a mobilizar tropas para reprimir
uma insurreição interna2, e mantém ainda em actividade um
corpo para prevenir uma revivescência do espírito de revolta.
A Constituição do Massachusetts não opõe nenhum obstáculo
à medida. Mas o exemplo ainda é útil para nos ensinar que é
provável que ocorram casos desses sob o nosso governo, bem
como sob o de outras nações, casos que por vezes fazem de
uma força militar em tempo de paz uma coisa essencial para
a segurança da sociedade e que, portanto, é incorrecto con-
trolar o arbítrio legislativo nessa matéria. Também nos ensina,
na sua aplicação aos Estados Unidos, como é pouco provável
que os direitos de um governo fraco sejam respeitados, mesmo
pelos seus próprios constituintes. E ensina-nos, além de tudo

1 Para informações sobre a mobilização de tropas na Pensilvânia, ver

artigo 6. QC).
2 A referência é à rebelião de Shays. Ver artigo 6. QC).

[246]
o mais, como as cláusulas no papel estão pouco à altura de
lutar com a necessidade pública.
Era urna máxima da comunidade lacedemónia que o posto
de Almirante não devia ser conferido duas vezes à mesma
pessoa. Os confederados do Peloponeso, tendo sofrido dos
atenienses uma severa derrota no mar, pediram a LISANDRO,
que anteriormente tinha servido com sucesso nessa capacidade,
que comandasse as esquadras conjuntas. Os lacedemónios,
para contentarem os seus aliados, e não obstante preservarem
um simulacro de uma aderência às suas antigas instituições,
recorreram ao frívolo subterfiígio de investir LISANDRO com
o poder real de almirante, sob o título nominal de vice-
-alrnirante. Este exemplo é seleccionado entre um grande
número de exemplos que poderiam ser citados para confirmar
a verdade já anunciada e ilustrada por exemplos nossos: que
as nações prestam pouca atenção às regras e máximas que na
sua própria natureza são calculadas para contrariar as necessida-
des da sociedade. Os políticos sensatos serão cautelosos quanto
a acorrentar o governo com restrições que não podem ser
observadas, porque sabem que cada violação das leis fundamen-
tais, apesar de ditada pela necessidade, enfraquece essa sagrada
reverência para com a Constituição de um país que devia ser
mantida no coração dos governantes, e constitui um precedente
para outras violações em que a mesma alegação de necessidade
não existe de todo, ou é menos urgente e palpável.
PUBLIUS.

[247]
O FEDERALISTA N.• 26

Consideração da Ideia de Restringir


a Autoridade Legislativa no que concerne
à Defesa Comum

ALEXANDER HAMILTON
22 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Dificilmente seria de esperar que numa revolução popular


os espíritos das pessoas se detivessem nesse feliz meio-termo
que marca a fronteira salutar entre PODER e PRfV!LÉGIO, e
combina a energia da governação com a segurança dos direitos
privados. Uma falha neste ponto delicado e importante é a
grande fonte das dificuldades que experimentamos e, se não
formos cautelosos para evitar uma repetição do erro nas nossas
tentativas futuras para rectificar e melhorar o nosso sistema,
poderemos passar de um projecto quimérico para outro,
poderemos ensaiar mudança após mudança, mas não será

* Do The Independent ]ou mal, 22 de Dezembro de 1787. Publicado em


24 de Dezembro no TI1e Daily Advertiser, e em 25 de Dezembro tanto no The
New-York Packet como no The New- York]oumal. QC).

[249)
provável que alguma vez façamos uma alteração substancial
para melhor.
A ideia de restringir o poder legislativo, quanto aos meios
de providenciar a defesa nacional, é um desses refinamentos
que devem a sua origem a um zelo pela liberdade, mais ardente
do que esclarecido. Vimos, no entanto, que ela não manifestou
até agora uma grande predominância1, que mesmo neste país,
onde ele fez a sua primeira aparição, a Pensilvânia e a Carolina
do Norte são os únicos dois Estados que em alguma medida
o apadrinharam e que todos os outros se recusaram a dar-
-lhe a menor atenção, julgando sensatamente que a confiança
deve ser posta em alguma coisa, que a necessidade de o fazer
está implicada no próprio acto de delegar poder e que é
melhor arriscar o abuso dessa confiança do que embaraçar o
governo e pôr em perigo a segurança pública por meio de
restrições pouco oportunas do poder Legislativo. Os opositores
da Constituição proposta combatem, neste aspecto, a decisão
geral da América. Em vez de aprenderem com a experiência
a justeza de corrigir quaisquer extremos nos quais tenhamos
anteriormente incorrido, parecem estar dispostos a conduzir-
-nos a outros ainda mais perigosos e mais extravagantes. Como
se o tom do governo tivesse sido considerado demasiado alto,
ou demasiado rígido, as doutrinas que eles ensinam têm a
intenção de nos induzir a depreciá-lo ou enfraquecê-lo, por
meio de expedientes que, noutras ocasiões, foram condenados
ou desprezados. Pode ser afumado sem receio de invectiva
que, se os princípios que eles inculcam, respeitantes a vários
pontos, pudessem prevalecer de modo a tornar-se um credo
popular, incapacitariam completamente o povo deste país para
qualquer espécie de governo. Mas não deve recear-se um
perigo desta natureza. Os cidadãos da América têm demasiado
discernimento para serem convencidos a aderir à anarquia.
E estou muito enganado se a experiência não inculcou uma

1 Ver artigo 24. QC) .

(250]
convicção profunda e solene no espírito do público de que
é essencial maior energia da governação para o bem-estar e
prosperidade da comunidade.
Pode não ser inoportuno examinar aqui concisamente a
origem e progresso da ideia que aponta para a exclusão de
efectivos militares em tempo de paz. Embora nos espíritos
especulativos ela possa brotar de uma contemplação da natureza
e tendência de tais instituições, fortalecida pelos acontecimentos
que tiveram lugar noutras eras e países, como sentimento
nacional, todavia, deve ser reportada àqueles hábitos de pensar
que derivamos da nação da qual provieram em geral os
habitantes desses Estados.
Em Inglaterra, durante muito tempo depois da conquista
normanda, a autoridade do monarca era quase ilimitada.
Gradualmente, foram feitas incursões à prerrogativa, em favor
da liberdade, primeiro pelos barões, e em seguida pelo povo,
até que a maior parte das suas mais formidáveis pretensões se
extinguiram. Mas foi só depois da revolução de 1688, que
elevou o Príncipe de Orange ao trono da Grã-Bretanha, que
a liberdade inglesa triunfou completamente. Como fazendo
parte do poder ilimitado de fazer a guerra, uma reconhecida
prerrogativa da coroa, Carlos II tinha, por sua própria autori-
dade, mantido no activo em tempo de paz um corpo regular
de 5 000 homens. E Jaime II aumentou este número para
30 000, que eram pagos pela sua lista civil. Aquando da revo-
lução, para abolir o exercício de um poder tão perigoso, foi
inserido um artigo na Carta de Direitos então proclamada
determinando que "a mobilização ou manutenção no activo
de um exército permanente no reino em tempo de paz, excepto
com o consentimento do parlamento, é contra a lei".
Nesse reino, quando o impulso da liberdade estava no seu
ponto mais alto, não foi considerada como necessária nenhuma
garantia contra o perigo de exércitos permanentes, para além
de uma proibição de serem mobilizados ou mantidos em
actividade pela simples autoridade do magistrado executivo.

[251]
Os patriotas, que fizeram essa revolução memorável, eram
demasiado comedidos e demasiado bem informados para
pensar em qualquer restrição ao arbítrio legislativo. Estavam
conscientes de que era indispensável um certo número de
soldados para os corpos da guarda e para as guarnições, de
que não podiam ser colocados limites precisos às exigências
nacionais, de que deve existir no governo um poder à altura
de todas as contingências possíveis e de que, quando remetiam
o exercício desse poder ao julgamento da legislatura, tinham
chegado ao derradeiro ponto de precaução compatível com
a segurança da comunidade.
Pode dizer-se que o povo da América recolheu da mesma
fonte uma impressão hereditária do perigo para a liberdade
constituído pelos exércitos permanentes em tempo de paz.
As circunstâncias de uma revolução avivaram a sensibilidade
pública em todos os pontos ligados com a segurança dos direi-
tos populares e em certos casos elevaram o calor do nosso
zelo para lá do grau consistente com a temperatura adequada
do corpo político. As tentativas de dois dos Estados para res-
tringir o poder da legislatura em matéria de efectivos militares
fazem parte desses casos. Os princípios que nos ensinaram a
suspeitar do poder de um monarca hereditário foram, por
um excesso pouco sensato, aplicados aos representantes do
povo nas suas assembleias populares. Mesmo em alguns dos
Estados em que este erro não foi adoptado encontramos decla-
rações desnecessárias, como a de que os exércitos permanentes
não devem ser mantidos em tempo de paz, SEM o CONSENTI-
MENTO DA LEGISLATURA. Chamo-lhes desnecessárias porque
a razão que tinha introduzido uma cláusula similar na Decla-
ração de Direitos inglesa não é aplicável a nenhuma das Cons-
tituições dos Estados. A competência para mobilizar exércitos,
na vigência dessas Constituições, não pode ser de nenhuma
maneira interpretada como cabendo a qualquer outra autori-
dade que não a das próprias legislaturas. E seria supérfluo, para
não dizer absurdo, declarar que uma coisa não deveria ser

[252]
feita sem o consentimento do órgão que é o único que tem
poderes para a fazer. Assim, em algumas dessas Constituições,
e entre outras na do Estado de Nova Iorque, que foi com
justiça citada, tanto na Europa como na América, como uma
das melhores entre as formas de governo estabelecidas neste
país, há um silêncio total sobre o assunto.
É digno de nota que, mesmo nos dois Estados2 que
parecem ter ponderado uma interdição de efectivos militares
em tempo de paz, a maneira que usaram para exprimir essa
interdição adverte mais do que proíbe. Não se diz que os
exércitos permanentes não podem ser mantidos, mas que não
devem ser mantidos, em tempo de paz. Esta ambiguidade de
termos parece ter sido o resultado de um conflito entre descon-
fiança e convicção, entre o desejo de excluir totalmente esses
efectivos e a persuasão de que uma exclusão absoluta seria
insensata e pouco segura.
Pode haver dúvidas de que uma cláusula como essa, sempre
que fosse considerado que a situação dos negócios públicos
viesse a exigir que não fosse cumprida, seria interpretada pela
legislatura como uma mera advertência, e seria forçosamente
esquecida para acudir às necessidades ou supostas necessidades
do Estado? Deixem que seja o facto j á mencionado, a respeito
da Pensilvânia, a decidir3. Então qual é (pode perguntar-se)
a utilidade de uma cláusula dessas, se deixa de operar no
momento em que há urna tendência para a desrespeitar?
Vejamos se existe alguma comparação, do ponto de vista
da eficácia, entre a cláusula aludida e a contida na Nova Cons-
tituição para restringir as apropriações de dinheiro para fins
militare a um período de dois anos. A primeira, por visar

2 Pensilvânia e Carolina do N orte. Ver os dois artigos precedentes para


uma discussão das disposições das suas constituições a que Hanúlton se referiu
aqui. QC) .
3 Hamilton refere-se aqui à decisão da Legislatura da Pensilvânia de
mobilizar tropas em tempo de paz, discutida nos artigos 6 e 25. QC) .

[253]
demasiado alto, está destinada a não ter efeito; a última, por
evitar os escolhos de um extremismo imprudente, e por ser
perfeitamente compatível com uma cláusula adequada às
exigências da nação, terá uma vigência salutar e poderosa.
A Legislatura dos Estados Unidos será obrigada, por esta
cláusula, pelo menos uma vez em cada dois anos, a deliberar
se é apropriado manter em armas uma força militar, a chegar
a uma nova resolução sobre a matéria e a declarar a sua opinião
sobre o assunto, por meio de uma votação formal diante dos
seus eleitores. Nã tem a liberdade para dotar o departamento
executivo de fundos permanentes para a manutenção de um
exército, mesmo que sejam suficientemente incautos para
querer depositar nele uma confiança tão imprópria. Como
se deve esperar que o espírito de partido, em diferentes graus,
contamine todos os corpos políticos, haverá, sem dúvida, pes-
soas na Legislatura nacional suficientemente dispostas a censurar
as medidas e a incriminar os pontos de vista da maioria. As
providências para a manutenção de urna força militar serão
sempre um tópico propício a discursos inflamados. Sempre
que a questão se apresente, a atenção pública será despertada
e atraída para o assunto pelo partido da oposição. E se a maioria
estivesse realmente disposta a exceder os limites apropriados,
a comunidade seria avisada do perigo, e teria uma oportunidade
para tomar medidas para se proteger dele. Independentemente
dos partidos na própria Legislatura nacional, sempre que che-
gasse o período de discussão, as Legislaturas dos Estados, que
não somente estarão sempre vigilantes mas serão guardiãs
desconfiadas e cimas dos direitos dos cidadãos contra abusos
do governo federal, terão constantemente uma atenção vigi-
lante em relação à conduta dos governantes nacionais, e estarão
suficientemente prontas, se alguma coisa de impróprio acon-
tecer, a soar o alarme para o povo e ser não somente a voz
mas, se necessário, o BRAÇO do descontentamento deste.
Os esquemas para subverter as liberdades de uma grande
comunidade requerem tempo para poderem amadurecer até à

[254]
execução. Um exército tão grande que possa ameaçar seria-
mente essas liberdades só poderia ser formado através de
aumentos progressivos, o que suporia, não apenas um entendi-
mento temporário entre a legislatura e o executivo, mas uma
conspiração continuada durante muito tempo. Será provável
que alguma vez exista tal entendimento? Será provável que
se persevere nele, e que subsista atravessando todas as sucessivas
variações de um órgão representativo, que naturalmente
produziriam em ambas as câmaras as eleições bianuais? Será
presurrúvel que cada congressista, no momento em que ocupa
o seu lugar no Senado ou na Câmara dos Representantes
nacionais, comece a trair os seus eleitores e o seu país? Pode
supor-se que não se encontraria um único homem suficiente-
mente perspicaz para detectar uma conspiração tão sórdida,
ou suficientemente corajoso ou honesto para informar os seus
eleitores do perigo que correm? Se estas conjecturas puderem
com razoabilidade ser feitas, dever-se-á pôr fim imediatamente
a toda a autoridade delegada. O povo terá de tomar a decisão
de revogar todos os poderes de que até essa altura abriu mão,
e dividir-se em tantos Estados quantos os condados, de maneira
a que assa ser capaz de gerir em pessoa os seus próprios
interesses.
Se tais hipóteses pudessem realmente ser admissíveis, ainda
assim seria impraticável dissimular por muito tempo o desígnio.
Ele seria anunciado pela própria circunstância de aumentar
tanto o exército num tempo de profunda paz. Que razão
plausível poderia ser invocada, num país com a nossa situação,
para um tão grande aumento da força militar? É impossível
que o povo pudesse ser enganado durante muito tempo, e a
destruição do projecto, e dos que o projectaram, rapidamente
se segu.iria à descoberta do embuste.
Disse-se que a cláusula que limita a atribuição de verbas
para a manutenção de um exército a um período de dois anos
seria ineficaz, porque o Executivo, uma vez de posse de uma
força suficientemente grande para reduzir o povo à submissão,

[255]
encontraria nessa própria força recursos suficientes para lhe
permitir dispensar as verbas provenientes das autorizações da
legislatura. Mas a pergunta permanece: Sob que pretexto
poderia ele ficar de posse de uma força dessa grandeza em
tempo de paz? Se supusermos que ela foi criada em consequên-
cia de alguma insurreição interna ou de uma guerra externa,
então é um caso que não se enquadra nos princípios desta
objecção, porque ela se aplica ao poder de manter tropas em
tempo de paz. Poucas pessoas serão tão visionárias que argu-
mentem seriamente que não devem ser mobilizadas forças
militares para reprimir uma rebelião ou resistir a uma invasão.
E se a defesa da comunidade em tais circunstâncias exigir um
exército tão numeroso que ponha em risco a sua liberdade,
esta é uma das calamidades para as quais não existe nem medida
preventiva nem cura. Não pode ser prevenido por nenhuma
forma de governo possível. Pode até resultar de uma simples
liga ofensiva e defensiva, se alguma vez vier a ser necessária
para os confederados a formação de um exército para defesa
comum.
Mas este é um mal que é infinitamente menos provável
que nos aconteça num estado de união do que num estado
de desunião. Mais do que isso. Pode ser afirmado com segu-
rança que é um mal inteiramente improvável de nos acontecer
na primeira situação. Não é facil conceber uma possibilidade
em que perigos tão formidáveis possam assolar toda a União,
de modo a exigir uma força suficientemente considerável para
pôr as nossas liberdades minimamente em risco, especialmente
se tivermos em vista a ajuda a ser obtida da milícia, que deve
ser sempre contada como um auxiliar valioso e poderoso. Mas
num estado de desunião (como foi inteiramente mostrado
noutro lugar) 4, o contrário desta hipótese tornar-se-ia não só
provável, mas quase inevitável.
PUBLIUS.

4 Ver artigo 8. QC).

[256]
O FEDERALISTA N. 0 27

Consideração da Ideia de Restringir


a Autoridade Legislativa no que concerne
à Defesa Comum (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
25 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Foi acentuado, de diversas maneiras, que uma Constituição


do tipo da proposta pela Convenção não pode operar sem a
aj uda de uma força militar para executar as suas leis. Isto, no
entanto, tal como a maior parte de outras coisas que foram
alegadas a esse respeito, assenta em meras asserções gerais, não
suportadas por nenhuma designação precisa ou inteligível das
razões em que se fundamentam. Tanto quanto fui capaz de
descortinar o significado latente das objecções, parece que
elas se originam numa pressuposição que o povo estará pouco
inclinado para concordar com o exercício da autoridade federal
em qualquer assunto que seja de natureza interna. Pondo de

* Do The N ew- York Packet, 25 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado no mesmo dia no The New-Yorkjournal, e em 26 de Dezembro no
The Independent Journal e no The Daily Advertiser. QC) .

[257]
lado todas as ressalvas que possam ser atribuídas à imprecisão
ou ao carácter pouco explícito da distinção entre interno e
externo, inquiramos que fundamento existe para pressupor
essa falta de inclinação no povo. A menos que presumamos,
ao mesmo tempo, que os poderes do Governo Geral serão mais
mal administrados do que os dos governos dos Estados, parece
não haver razão para presumir má vontade, descontentamento
ou oposição do povo. Acredito que se possa estabelecer como
regra geral que a confiança do povo num governo e a sua obe-
diência ao mesmo serão normalmente proporcionais à excelência
ou deficiência da sua administração. Deve admitir-se que existem
excepções a esta regra, mas essas excepções dependem tão
integralmente de causas acidentais que não podem ser consi-
deradas como tendo qualquer relação intrínseca com os méritos
ou deméritos de uma Constituição. Estes últimos só podem
ser ajuizados através de princípios e máximas gerais.
No decurso destes artigos, foram sugeridas várias razões
para inferir a probabilidade de que o governo geral seja mais
bem administrado do que os governos particulares, das quais
as mais importantes são: que o tamanho dos círculos eleitorais
presenteará o povo com mais opções ou maior latitude de
escolha; que por intermédio das legislaturas estaduais, que
são órgãos seleccionados a quem cabe nomear os membros
do Senado nacional, há razão para esperar que esse ramo seja
em geral formado com especial cuidado e discernimento; que
estas circunstâncias prometem mais conhecimentos e mais
extensa informação nos conselhos nacionais; que estes estarão
menos vulneráveis à contaminação pelo espírito de facção, e
mais fora do alcance daqueles maus humores ocasionais, ou
preconceitos ou propensões temporários que, em sociedades
mais pequenas, frequentemente contaminam os conselhos
públicos, originam injustiça e opressão de uma parte de uma
comunidade, e engendram esquemas que, embora gratifiquem
uma inclinação ou um desejo momentâneos, terminam em
aflição, insatisfação e descontentamento gerais. Diversas razões

[258]
adicionais de considerável valor para fortalecer essa probabili-
dade ocorrerão quando viermos a examinar, com um olhar
mais crítico, a estrutura interior do edificio que somos convi-
dados a erguer. Aqui será suficiente observar que até que
possam ser encontradas razões satisfatórias para justificar uma
opinião de que o governo federal é susceptível de ser adminis-
trado de maneira tal que se torne odioso ou desprezível para
o povo, não pode haver fundamento razoável para supor que
as leis da União encontrarão da parte dele urna maior resistência
do que a que encontram as leis dos membros particulares, ou
que precisarão de métodos diferentes dos destes últimos para
as fazer cumprir.
A esperança de impunidade é um forte incitamento à
sedição, e o receio do castigo um desencorajamento proporcio-
nalmente forte para ela. O governo da União, que, se estiver
de posse de um grau devido de poder, pode chamar em seu
auxílio os recursos colectivos de toda a confederação, não será
mais susceptível de reprimir o primeiro sentimento e de inspirar
o último do que o governo de um Estado singular, que apenas
pode ter sob seu comando os recursos que são seus? Uma
facção turbulenta num Estado pode facilmente imaginar que
é capaz de entrar em disputa com os amigos do governo nesse
Estado, mas dificilmente pode ser tão presumida que se imagine
um adversário à altura dos esforços combinados da União. Se
esta reflexão for justa, há menos perigo de resistência, resultante
de associações irregulares de indivíduos, à autoridade da
Confederação do que à de um membro singular.
Arriscarei aqui uma observação que não será menos justa
só porque para alguns pode aparecer como nova: que quanto
mais a actividade da autoridade nacional estiver misturada no
exercício ordinário do governo; que quanto mais os cidadãos
estiverem acostumados a encontrá-la nas ocorrências comuns
da sua vida política; que quanto mais essa autoridade estiver
familiarizada com as opiniões e os sentimentos do povo; que
quanto maior a parte que ela tomar nesses assuntos que tocam

[259]
as cordas mais sensíveis e põem em movimento as molas mais
activas do coração dos homens; tanto maior será a probabilidade
de que ela concilie o respeito e a simpatia da comunidade.
O homem é em grande parte uma criatura de hábitos. Urna
coisa que raramente impressiona os seus sentidos terá geral-
mente uma pequena influência sobre o seu espírito. De um
governo continuamente distante e fora de vista dificilmente se
pode esperar que ele desperte o interesse do povo. A inferência
é que a autoridade da União, e a simpatia dos cidadãos para
com ela, serão reforçadas, mais do que enfraquecidas, pelo seu
alargamento aos chamados assuntos de interesse interno, e
haverá menos ocasiões para recorrer à força, na proporção da
familiaridade e compreensibilidade da sua actuação. Quanto
mais circular através desses canais e correntes em que as paixões
da humanidade naturalmente fluem, tanto menos exigirá a
ajuda de instrumentos de compulsão violentos e perigosos.
Uma coisa, em qualquer caso, deve ser evidente: que um
governo, como o que é proposto, teria muito mais probabili-
dade de evitar a necessidade de usar a força do que essa espécie
de liga defendida pela maior parte dos seus opositores, cuja
autoridade só deveria exercer-se sobre os Estados nas suas
capacidades políticas ou colectivas. Foi mostrado 1 que em tal
Confederação não pode haver sanção para as leis a não ser a
força, que as frequentes infracções dos membros são o resultado
natural da própria estrutura do governo e que, com a mesma
frequência com que ocorrem, só podem ser corrigidas, se o
puderem ser, pela guerra e pela violência.
O plano apresentado pela Convenção, por estender a auto-
ridade dos órgãos federais aos cidadãos individuais dos vários
Estados, permitirá que o governo empregue a magistratura
ordinária de cada um deles na execução das suas leis. É fãcil
perceber que isto tenderá a destruir, na opinião geral, toda a
distinção entre as fontes das quais as leis podem emanar, e

1 Ver artigos 15 e 16. QC) .

[260]
dará ao Governo Federal as mesmas vantagens desfrutadas
pelo governo de cada Estado quanto a assegurar a devida
obediê cia à sua autoridade, além da influência na opinião
pública que resultará desta importante consideração de ter
poderes para chamar em seu auxilio e suporte os recursos de
toda a União. Merece aqui particular atenção o facto de que
as leis da Confederação, no que respeita aos objectos enumerados
e leg{timos da sua jurisdição, se tornarão a SUPREMA LEI da
nação, à observância da qual todos os detentores de cargos,
legislativos, executivos e judiciais, em cada Estado, estarão
obrigados pela santidade de um juramento. Deste modo, as
legislaturas, tribunais e magistrados dos respectivos membros
serão incorporados nas operações do governo nacional na medida
em que se estende a sua autoridade justa e constitucional e passarão
a ser auxiliares para fazer cumprir essas leis2. Qualquer homem
que desenvolva, através da sua própria reflexão, as consequên-
cias desta situação compreenderá que existem bons fundamen-
tos para contar com uma execução regular e pacífica das leis
da União se os poderes desta forem administrados com uma
dose normal de prudência. Se supusermos arbitrariamente o
contrário, podemos deduzir dessa hipótese qualquer inferência
que nos apeteça, porque é certamente possível, por meio do
exercício pouco judicioso do melhor governo que alguma vez
existiu, ou mesmo que possa ser instituído, provocar e preci-
pitar o povo para os mais desvairados excessos. Mas, embora
os adversários da Constituição proposta devam presumir que
os governantes nacionais serão insensíveis aos motivos do bem
público, ou às obrigações do dever, ainda assim lhes perguntarei:
Como é que os interesses da ambição, ou as intenções de usur-
pação, podem ser promovidas por semelhante conduta?
PUBLIUS.

2 A sofistica que foi usada para mostrar que isto tenderá a destruir os
Governos dos Estados será, no seu lugar próprio, inteiramente escalpelizada.
(Publius). Ver Artigos 31 e 44. QC).

[261]
O FEDERALISTA N.• 28

Consideração da Ideia de Restringir


a Autoridade Legislativa no que concerne
à Defesa Comum (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
26 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Não pode ser negado que possam ocorrer casos em que


o governo nacional tenha necessidade de recorrer à força.
A nossa própria experiência corroborou as lições ministradas
pelos exemplos de outras nações: que as emergências deste
género ocorrem por vezes em todas as sociedades, seja qual
for a maneira como estejam constituidas; que sedições e insur-
reições são, infelizmente, doenças tão inseparáveis do corpo
político como os tumores e as erupções do corpo natural;
que a ideia de governar sempre pela simples força da lei (que
nos disseram ser o único princípio admissível do governo

* Do The Independent ] oumal, 26 de Dezembro de 1787. Publicado em


28 de Dezembro tanto no The New- York Packet como no The Daily Advertiser,
e em 2 de Janeiro de 1788 no The New-York]ournal. QC).

[263]
republicano), apenas tem lugar nos devaneios desses doutores
políticos cuja sagacidade desdenha das advertências de uma
instrução experimental.
Se tais emergências viessem alguma vez a acontecer sob
o governo nacional, não poderia haver remédio a não ser a
força. Os meios a empregar devem ser proporcionais à extensão
dos danos causados. Se houvesse uma pequena agitação numa
pequena parte de um Estado, a milícia da porção restante seria
adequada para a ua supressão, e a suposição natural é que
estaria pronta a cumprir o seu dever. Uma insurreição, seja
qual for a sua causa imediata, põe eventualmente em perigo
todo o governo. A consideração pela paz pública, se não pelos
direitos da União, levaria os cidadãos a quem não se propagou
o contágio a oporem-se aos insurrectos. E se o governo geral
fosse considerado na prática como conducente à prosperidade
e felicidade do povo, seria irracional acreditar que o povo
estaria pouco disposto a apoiá-lo.
Se, pelo contrário, a insurreição se espalhasse por todo
um Estado, ou pela maior parte dele, o emprego de um tipo
diferente de força poderia tornar-se inevitável. Parece que o
Massachusetts considerou necessário mobilizar tropas para
reprimir as desordens dentro do Estadol e que a Pensilvânia,
por causa do mero receio de agitação entre uma parte dos
seus cidadãos achou correcto recorrer à mesma medida 2 •
Suponha-se que o Estado de Nova Iorque se tinha inclinado
para restabelecer a sua perdida jurisdição sobre os habitantes
do Vermont3. Poderia ter esperado sucesso nesse empreendi-
mento contando apenas com os esforços da milícia? Não teria
sido obrigado a mobilizar e manter uma força mais regular

1 Ver artigo 6, nota acerca da rebelião de Shays. QC).


2 Ibid., nota acerca da tentativa dos residentes no Vale do Wyorning para
se separarem da Pensilvânia. QC).
3 Ver artigo 7, nota acerca da controvérsia entre Nova Iorque e Vermont.

OC).

[264]
para a consecução do seu desígnio? Então, se tiver de ser admi-
tido que a necessidade de recurso a uma força diferente da
milícia, em casos de natureza extraordinária, é aplicável aos
próprios governos dos Estados, porque é que a possibilidade
de que o governo nacional pudesse estar sujeito a idêntica
necessidade em casos extremos como esses deve constituir
uma objecção à sua existência? Não é surpreendente que
homens que declaram, em abstracto, a sua dedicação à União,
devam insistir numa objecção à Constituição proposta que se
aplica dez vezes mais ao plano que defendem, e que, na medida
em que tenha uma base de verdade, é uma consequência
inevitável da sociedade civil a uma escala alargada? Quem não
preferiria essa possibilidade às incessantes agitações e frequentes
revoluções que são o contínuo flagelo das repúblicas insigni-
ficantes?
Prossigamos este exame a outra luz. Suponham que, em
lugar de um sistema geral, se deviam formar duas, ou três, ou
mesmo quatro confederações. Não surgiria a mesma dificul-
dade nas actuações de qualquer dessas Confederações? Não
estaria cada uma delas exposta aos mesmos problemas?
E quando eles ocorressem, não seria obrigada, para sustentar
a sua autoridade, a recorrer aos mesmos expedientes aos quais
se objecta num governo para todos os Estados? Estaria a milícia,
nessa hipótese, mais pronta para apoiar a autoridade federal
do que no caso da união geral? Todos os homens sinceros e
inteligentes têm de reconhecer, depois de conveniente ponde-
ração, que o princípio em que assenta a objecção é igualmente
aplicável a qualquer dos dois casos e que, quer tenhamos um
governo para todos os Estados, ou diferentes governos para
diferentes parcelas destes, ou mesmo se devesse haver uma
inteira separação dos Estados, poderia haver por vezes a
necessidade de fazer uso de uma força constituída de maneira
diferente da milícia, para preservar a paz da comunidade e
manter ajusta autoridade das leis contra essas violentas infrac-
ções que assumem o carácter de insurreições e rebeliões.

[265]
Independentemente de todos os outros raciocínios sobre
o assunto, é uma resposta cabal àqueles que exigem uma
cláusula mais peremptória contra efectivos militares em tempo
de paz dizer que todo o poder do governo proposto deverá
ficar nas mãos dos representantes do povo. Esta é a garan-
tia essencial e, afinal de contas, a única eficaz, para os direitos
e privilégios do povo que pode ser alcançada na sociedade
civil.4
Se os representantes do povo traírem os seus constituintes,
então não resta nenhum recurso senão o uso desse direito
original de autodefesa que é superior a todas as formas positivas
de governo e que pode ser exercido contra as usurpações dos
governantes nacionais com muito melhores perspectivas de
sucesso do que contra os governantes de um só Estado. Num
Estado, se as pessoas investidas do poder supremo se tornarem
usurpadoras, as diferentes parcelas, subdivisões, ou distritos
de que compõem o Estado, não tendo cada uma delas um
governo distinto, não podem tomar medidas metódicas para
a sua defesa. Os cidadãos têm de se precipitar tumultuosamente
para pegar em armas, sem coordenação, sem sistema, sem
mais recursos do que a sua coragem e desespero. Os usurpa-
dores, revestidos das formas da autoridade legal, podem, dema-
siado frequentemente, esmagar no ovo a oposição. Quanto
menor for a extensão do território tanto mais dificilmente o
povo conseguirá desenhar um plano regular ou sistemático
de oposição, e tanto mais facil será derrotar os seus primeiros
esforços. Pode obter-se mais rapidamente informação acerca
dos seus preparativos e dos seus movimentos, e a força militar
na posse dos usurpadores pode ser mais rapidamente dirigida

4 A sua integralljicácia será examinada mais adiante. (Publius) . Os artigos

de O Federalista estavam, é claro, baseados na suposição de que a garantia última


dos direitos do povo residia no facto de que esse poder estava nas mãos dos
seus representantes. Ver, por exemplo, artigo 17. OC).

[266]
contra a parte em que começou a oposição. Nesta situação
tem de existir uma peculiar coincidência de circunstâncias
para assegurar o sucesso da resistência popular.
Os obstáculos à usurpação e as facilidades de resistência
crescem com o aumento da extensão do Estado, desde que
os cidadãos compreendam os seus direitos e estejam dispostos
a defendê-los. A força natural do povo numa grande comu-
nidade, em proporção à força artificial do governo, é maior
do que numa pequena, e é claro que é mais competente para
lutar contra as tentativas do governo para estabelecer uma
tirania. Mas numa confederação pode dizer-se, sem exagero,
que o povo é inteiramente senhor do seu próprio destino.
Como o poder é quase sempre rival do poder, o Governo
Geral estará sempre preparado para controlar as usurpações
dos governos dos Estados, e estes estarão na mesma disposição
relativamente ao Governo Geral. O povo, fazendo pender
um ou outro dos pratos da balança, fará infalivelmente com
que ele seja preponderante. Se os seus direitos forem desres-
peitados por um deles, pode fazer uso do outro como instru-
mento de reparação. Como será sensato para ele acalentar a
União para preservar para si mesmo uma vantagem que nunca
pode ser demasiado apreciada!
Pode seguramente ser aceite como axioma do nosso sistema
político que os governos dos Estados proporcionarão, em
todas as contingências possíveis, completa segurança contra
violações da liberdade pública por parte da autoridade nacional.
Os projectos de usurpação não podem ser disfarçados sob fal-
sos pretextos que tenham probabilidade de escapar à perspicácia
de grupos seleccionados de pessoas, como escapam à maioria
do povo. As Legislaturas disporão de melhores meios de infor-
mação. Podem detectar o perigo à distância e, contando com
todos os órgãos do poder civil e com a confiança do povo,
podem adoptar imediatamente um plano regular de oposição,
no qual podem combinar todos os recursos da comunidade.
Podem comunicar prontamente umas com as outras nos

[267]
diferentes Estados, e juntar as suas forças comuns para a pro-
tecção da liberdade de todos.
A grande extensão do país é uma segurança adicional. Já
tivemos a experiência da sua utilidade contra os ataques de
uma potência estrangeira. E teria precisamente o mesmo efeito
contra as tentativas de governantes ambiciosos nos conselhos
nacionais. Se o exército federal fosse capaz de dominar a
resistência de um Estado, os Estados mais distantes poderiam
fazer-lhe frente com tropas frescas. As vantagens obtidas num
local teriam de ser abandonadas para subjugar a oposição
noutros locais e, no momento em que a parte que foi reduzida
à submissão fosse deixada a si mesma, os seus esforços seriam
renovados e a sua resistência reviveria.
Devemos recordar que o tamanho da força militar tem
de, em todos os casos, depender dos recursos do país. Ainda
por muito tempo, não será possível manter um grande exér-
cito, e à medida que crescerem os meios para tanto, crescerão
também proporcionalmente a população e a força natural da
comunidade. Quando chegará o momento em que o governo
federal possa recrutar e manter um exército capaz de implantar
um despotismo sobre a grande massa do povo de um imenso
império, se este último está em condições, usando como meio
os seus governos estaduais, de tomar medidas para sua pró-
pria defesa, com toda a celeridade, regularidade, e sistema das
nações independentes? O temor pode ser considerado como
uma doença, para a qual não pode haver cura nos recursos da
argumentação e do raciocínio.
PUBLIUS

[268)
O FEDERALISTA N." 29
[35]

Acerca da Milícia

ALEXANDER HAMILTON
9 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O poder de regulamentar a milícia e de comandar os seus


serviço em períodos de insurreição e invasão dizem natural-
mente respeito aos deveres de superintender a defesa comum,
e de velar pela paz interior da Confederação.
Não é preciso ser nenhum perito na ciência da guerra para
compreender que a uniformidade de organização e disciplina
da milícia será acompanhada pelos mais benéficos efeitos,
sempre que ela for convocada para a defesa pública. Isso per-
rnitir-lhe-á desempenhar os deveres do acampamento militar
e os do campo de lavoura com conhecimento e harmoniza-
ção de mútuos, uma vantagem de particular importância nas
operações de um exército, e prepará-la-á muito rnais cedo,

* Do The Independent Journal, 9 de Janeiro de 1788. Publicado em 1O de


Janeiro n The Daily Advertíser, em 11 de Janeiro no The New- York Packet, e
em 12 de Janelro no The New- York ] ournal. R ecebeu o número 29 na edição
de McLean e o número 35 nos jornais. QC).

[269)
para adquirir o grau de proficiência em funções militares que
seria essencial à sua utilidade. Esta desejável uniformidade só
pode ser conseguida confiando a regulamentação da milícia à
direcção da autoridade nacional. Portanto, é com a mais evi-
dente adequação que o plano da Convenção propõe conce-
der poderes à União "para providenciar a organização, arma-
mento, e disciplina da milícia, e para governar as partes dela
que possam ser empregues ao serviço dos Estados Unidos,
reservando aos respectivos Estados a designação dos qfidais, e a autoridade
para treinar a milída de acordo com a disdplina prescrita pelo Congresso".
De entre as diferentes razões que foram apresentadas em
oposição ao plano da Convenção, as mais inesperadas e insus-
tentáveis de todas foram as que serviram para atacar esta cláusula
particular. Se uma milícia bem organizada é a defesa mais
natural de um país livre, então ela deve certamente estar sob
as ordens e à disposição desse órgão que é designado como
guardião da segurança nacional. Se os exércitos permanentes
são um perigo para a liberdade, um poder eficaz sobre a milícia
residindo no órgão ao qual está cometido o cuidado com a
protecção do Estado, deveria, tanto quanto possível, eliminar
os incitamentos e pretextos para tão inarnistosas instituições.
Se o governo federal pode ordenar a ajuda da milícia nessas
emergências que precisam do braço militar em apoio do
magistrado civil, é ainda melhor que possa dispensar o uso
de um tipo diferente de força. Se não puder dispor da primeira,
será obrigado a recorrer à última. Fazer com que seja desneces-
sário um exército será um meio de impedir a sua existência
muito mais certo do que mil proibições no papel.
Com o intuito de tornar odioso o poder de convocar a
milícia para fazer cumprir as leis da União, foi observado que
não existe em nenhuma parte da Constituição proposta uma
cláusula que permita convocar uma POSSE COM ITATUSl, para

1 Posse comi tatus, significa a capacidade que um sheriff tem de recrutar

alguém para o coadjuvar numa acção de prisão, ou de prevenção de um crime

[270]
coadjuvar o magistrado no cumprimento do seu dever, e daí
inferiu-se que havia a intenção que a força militar fosse o seu
único auxiliar. Há uma notável incoerência nas objecções que
apareceram, e por vezes até do mesmo quadrante, não muito
próprias para inspirar uma opinião muito favorável acerca da
sinceridade ou honestidade de conduta dos seus autores. As
mesmas pessoas que nos dizem num dado momento que os
poderes do governo federal serão despóticos e ilimitados, infor-
mam-nos no momento seguinte de que ele não tem autori-
dade suficiente para convocar uma POSSE COMITATUS. As
últimas, felizmente, estão tão aquém da verdade como as pri-
meiras estão para lá dela. Seria tão absurdo duvidar de que um
direito de promulgar todas as leis necessárias e adequadas para
pôr em prática os seus poderes declarados incluiria o de pedir
a assistência dos cidadãos aos funcionários encarregues de fazer
cumprir essas leis, como seria absurdo acreditar que um direito
de promulgar leis necessárias e adequadas para a criação e
colecta de impostos incluiria o de alterar as regras da trans-
missão por herança e da alienação da propriedade fundiária,
ou de abolir o julgamento por um júri nos casos com elas rela-
cionados. Sendo pois evidente que a suposição de uma falta
de poderes para convocar uma POSSE COMITATUS é inteira-
mente destituída de plausibilidade, seguir-se-á que a conclusão
que dela foi inferida, na sua aplicação à autoridade do governo
federal sobre a milícia, é tão parcial como ilógica. Que razão
poderia existir para inferir que havia a intenção de que a força
fosse o único argumento da autoridade apenas porque existe
uma competência para fazer uso dela quando necessário? Que
devemos pensar dos motivos capazes de induzir homens de
bom senso a raciocinar desta maneira? Como impediremos
um conflito entre a caridade e a condenação?

iminente. Através dessa designação, que não carece de nenhum documento


material comprovativo, a pessoa convocada fica, enquanto actuando sob as
ordens do sherijftão protegida pela lei como este último." (E. P.).

[271]
Por um curioso refinamento do espírito de desconfiança
republicano somos até levados a temer que a própria milícia,
nas mãos do governo federal, represente uma ameaça. Foi
sublinhada a possibilidade da formação de unidades seleccio-
nadas, compostas por jovens ardentes, que podem ser reduzidos
à subserviência em relação aos pontos de vista do poder
arbitrário. É impossível antever que plano para regulamentação
da milícia pode ser adoptado pelo governo nacional. Mas
longe de ver a questão pelo mesmo prisma dos que levantam
objecções à existência de unidades seleccionadas por serem
perigosas, se a Constituição for ratificada, e se eu tiver que
exprimir a um membro da legislatura federal deste Estado os
meus sentimentos a respeito da criação de uma milícia, susten-
tarei perante ele, em substância, o seguinte discurso:
"O projecto de disciplinar toda a milícia dos Estados Uni-
dos é tão fútil como seria prejudicial, se fosse possível pô-lo
em execução. Urna destreza tolerável em movimentos militares
é uma matéria que requer tempo e prática. Não é um dia,
ou mesmo uma semana, que será suficiente para a conseguir.
Obrigar a grande maioria dos pequenos proprietários rurais
e de outras classes de cidadãos a pegar em armas com o fito
de executar exercícios e evoluções militares, tão frequente-
mente quanto possa ser necessário para adquirir o grau de
perfeição que os habilitaria com as características de uma milí-
cia bem treinada, seria uma razão de queixa real para o povo,
e fonte de sérios inconvenientes e prejuízos públicos.
Constituiria uma dedução anual ao trabalho produtivo do
país que, usando para o cálculo o número actual de pessoas,
não ficaria muito aquém do total da despesa de todas as insti-
tuições civis de todos os Estados. Tentar uma coisa que tão
consideravelmente diminuiria a quantidade de trabalho e
indústria, seria insensato, e a experiência, se fosse feita, não
poderia ter sucesso, porque não poderia ser mantida por muito
tempo. Pouco mais se pode almejar razoavelmente, em relação
ao povo em geral, além de tê-lo adequadamente armado e

[272]
equipado, e para providenciar para que isto não seja negligen-
ciado, será necessário reuni-lo uma ou duas vezes no decurso
de um ano.
"Mas embora o esquema de instruir militarmente toda a
nação possa ser abandonado como pernicioso ou impraticável,
é um assunto da maior importância que deva ser adoptado,
tão cedo quanto possível, um plano bem preparado para a
adequada organização da milícia. A atenção do governo deveria
ser dirigida muito em particular para a formação de um corpo
selecto com efectivos moderados, com base em princípios
que realmente o preparem para o serviço em caso de necessi-
dade. Circunscrevendo assim o plano, será possível ter um
excelente corpo de milícia bem treinada, pronto para sair para
o terreno sempre que a defesa do Estado o requeira. Isto não
só diminuirá a necessidade de instituições militares, mas ainda,
se as circunstâncias alguma vez obrigarem o governo a formar
um exército de certa dimensão, esse exército nunca pode ser
muito aterrador para as liberdades do povo enquanto existir
um grande corpo de cidadãos, pouco ou nada inferiores a ele
em disciplina e no uso das armas, que está pronto a defender
os seus próprios direitos e os dos seus concidadãos. Este parece-
-me ser o único substituto que pode ser imaginado para um
exército permanente, e a melhor garantia possível contra este
último, se ele vier a existir."
Assim, diferentemente dos adversários da Constituição
proposta, raciocinaria eu sobre esse assunto, deduzindo argu-
mentos de segurança exactamente das mesmas fontes que eles
apresentam como repletas de perigos e desgraças. Mas como
é que a Legislatura nacional raciocinará sobre esta matéria, é
coisa que nem eles nem eu podemos prever.
Há algo de tão rebuscado e extravagante na ideia de perigo
para a liberdade decorrente da milícia, que se fica em dúvida
se se deve tratá-la com gravidade ou com zombaria se, deve
considerá-la como uma mera demonstração de habilidade,
como os paradoxos dos retóricos, ou como um artificio canhes-

[273]
tro para, a todo o custo, instilar preconceitos, ou como um
sério produto do fanatismo político. Onde, em nome do senso
comum, terminarão os nossos receios se não pudermos confiar
nos nossos filhos, nos nossos irmãos, nos nossos vizinhos, nos
nossos concidadãm? Que sombra de ameaça pode haver vinda
de homens que diariamente se misturam com o resto dos seus
compatriotas e participam com eles nas mesmas opiniões, nos
mesmos sentimentos, hábitos e interesses? Que causa razoável
de apreensão pode ser inferida de um poder da União para
prescrever os regulamentos da milícia, e para convocar os seus
serviços quando necessário, quando os Estados serão os únicos
a deter em exclusivo a designação dos oficiais? Se fosse possível
admitir seriamente urna suspeita da parte da milícia em relação
a qualquer instituição concebível sob o Governo Federal, a
circunstância de os oficiais serem designados pelos Estados
devia eliminá-la imediatamente. Não pode haver dúvida de
que esta circunstância lhes assegurará sempre uma influência
preponderante sobre a milícia.
Ao ler muitas das publicações contra a Constituição, um
homem pode imaginar que está a folhear algum conto ou
romance mal escrito que, em vez de imagens naturais e agra-
dáveis, exibe ao espírito apenas formas amedrontadoras e
distorcidas - Górgonas, hidras, e quimeras terríveis - man-
chando e desfigurando tudo o que descreve e transformando
num monstro tudo o que toca.
Pode ver-se mn exemplo disto nas sugestões exageradas
e improváveis apresentadas relativamente à competência para
convocar os serviços da milícia. A de N ew Hampshire deve
marchar para a Geórgia, a da Geórgia para N ew Hampshire,
de Nova Iorque para o Kentucky, e a do Kentucky para o
Lago Champlain. Mais do que isso, os débitos para com os
franceses e os holandeses deverão ser pagos em milicianos em
vez de luíses de ouro educados. Em determinado momento
haveria um grande exército para destruir as liberdades do
povo. Noutro momento a milícia da Virgínia é afastada dos

[274]
seus lares quinhentas ou seiscentas milhas, para subjugar a
contumácia republicana do Massachusetts; e a do Massachusetts
será transportada numa distância igual para submeter a arrogân-
cia obstinada dos aristocráticos virginianos. As pessoas que
divagam desta maneira imaginarão que a sua arte ou a sua
eloquência é capaz de impor quaisquer opiniões ou absurdos
ao povo da América como se fossem verdades infalíveis?
Se existisse um exército que pudesse ser usado como
instrumento do despotismo, que necessidade haveria da milícia?
Se não existisse exército, até que ponto é que a milícia, irritada
por ser convocada para se encarregar de uma expedição distante
e sem esperança com o intuito de aplicar as cadeias da escra-
vidão a uma parte dos seus compatriotas, dirigiria o seu curso,
se não para onde estivessem os tiranos que tinham concebido
um projecto tão tresloucado como malévolo, para os esmagar
nas suas imaginadas trincheiras do poder e fazer deles um
exemplo da justa vingança de um povo maltratado e encole-
rizado? É esta a maneira pela qual os usurpadores lutam por
dominar uma nação numerosa e esclarecida? Começam por
provocar a repulsa dos próprios instrumentos da sua planeada
usurpação? Começam normalmente a sua carreira por actos
de poder arbitrário e chocante concebidos para não responder
a nenhum fim a não ser atrair sobre si o ódio e a execração
universais? Hipóteses destas são sóbrias advertências de patriotas
perspicazes a um povo perspicaz? Ou são delírios inflamatórios
de ince diários desgostosos ou fanáticos desequilibrados?
Ainda que supuséssemos que os governantes nacionais eram
movidos pela mais desgovernada ambição, é impossível acre-
ditar que empregassem meios tão irracionais para alcançarem
os seus desígnios.
Em períodos de insurreição ou invasão será natural e
apropriado que a milícia de um Estado vizinho deva marchar
para outro para se opor a um inimigo comum ou defender a
república contra as violências das facções ou da sedição. Isso
aconteceu com frequência no que toca ao primeiro caso no

[275)
decurso da última guerra. E este socorro mútuo é na verdade
um dos objectivos principais da nossa associação política. Se
o poder de o proporcionar for posto sob a autoridade da
união, não existirá nenhum perigo de uma desatenção indo-
lente e apática perante a ameaça de um vizinho, até que a sua
aproximação tivesse acrescentado o estímulo da autopreservação
aos demasiado fracos impulsos do dever e da simpatia.
PUBLIUS

[276]
O FEDERALISTA N." 30
[29]

Acerca do Poder Geral de Tributação

ALEXANDER HAMILTON
28 de Dezembro de 1787

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Já foi mencionado que o Governo Federal deverá possuir


poderes para providenciar a manutenção das forças nacionais.
Nesta proposição havia a intenção de incluir as despesas de
mobilização de tropas, de construir e equipar esquadras, e
todas as outras despesas a qualquer título ligadas a preparativos
e operações militares. Mas estes não são os únicos objectos
aos quais se devem estender os plenos poderes concedidos
à jurisdição da União relativamente à receita pública. Eles
devem abranger disposições para a manutenção do quadro
nacional de funcion ár ios, para o pagamento dos débitos

* Do The New- York Packet, 28 de Dezembro de 1787. Este artigo foi


publicado em 29 de Dezembro no The Independent Journa/ e no The Dai/y
Advertiser, e começado em 2 de Janeiro de 1788, tendo sido conclui do em 4
de Jan eiro, no The New- York journa/. R ecebeu o número 30 na edição de
McLean e o número 29 nos jornais. GC).

[277]
nacionais, contraídos ou que possam vir a sê-lo, e, em geral,
para todos esses assuntos que pedirão desembolsos saídos do
tesouro nacional. A conclusão é que deverão estar incluídos
na estrutura do governo poderes gerais de tributação, seja qual
for o seu modelol.
O dinheiro é considerado, muito correctamente, como
o princípio vital do organismo político, como aquilo que
sustenta a sua vida e movimento e o capacita para executar
as suas funções mais essenciais. Portanto, um poder integral
para obter um suprimento regular e adequado de dinheiro,
na medida em que o permitam os recursos da comunidade,
pode ser visto como um ingrediente indispensável de qualquer
Constituição. De uma deficiência neste particular tem de se
seguir um de dois males: ou o povo tem de ser sujeito a pilha-
gem contínua, como substituto de um modo mais aceitável
de suprir as necessidades públicas, ou o governo tem de mergu-
lhar numa atrofia fatal e, em pouco tempo, perecer.
No império otomano ou turco, o soberano, embora nou-
tros aspectos seja senhor absoluto das vidas e fortunas dos seus
súbditos, não tem direito a lançar um novo imposto. A con-
sequência é que ele permite aos paxás ou governadores de
províncias que pilhem sem piedade o povo, e, em seguida,
extorque deles as somas de que tem necessidade para satisfazer
as suas próprias exigências e as do Estado. Na América, por
uma causa idêntica, o governo da União degenerou gradual-
mente até um estado de decadência, aproximando-se de perto
da aniquilação. Quem pode duvidar que a felicidade do povo
em ambos os países seria promovida pelos poderes competentes
nas mãos apropriadas para providenciar as receitas públicas
que as necessidades do povo pudessem exigir?

1 As evidentes competências económico-financeiras de Hamilton foram


reconhecidas no seu tempo. Em 1789, George Washington irá nomeá-lo
Secretário do Tesouro do seu primeiro governo. Sob o seu impulso, os EUA
deram os primeiros passos na senda do crescimento económico. (E. P.).

[278]
A presente Confederação, fraca como é, teve a intenção
de depositar nos Estados Unidos um poder ilimitado para
atender às necessidades pecuniárias da União. Mas partindo
de um princípio errado, fez isso de tal maneira que frustrou
inteiramente a intenção. O Congresso, de acordo com os arti-
gos que constituem o contrato (como já foi afirmado), está
autorizado a fixar e a solicitar qualquer sorna de dinheiro que,
no seu entender, seja necessária para o serviço dos Estados
Unidos, e as suas solicitações, se estiverem conformes com a
regra de distribuição dos encargos, são, em qualquer sentido
constitucional, obrigatórias para os Estados. Estes não têm
direito a questionar a justeza do pedido - nenhuma liberdade
além da de imaginar os meios de fornecer as somas pedidas.
Mas embora este seja estrita e verdadeiramente o caso, embora
a pretensão de ter esse direito seja uma infracção aos arti-
gos da União, embora raramente ou nunca possa ter sido
manifestamente afirmado, apesar de tudo isso, na prática, tem
sido constantemente exercido e continuará a sê-lo enquanto
as receitas da União permanecerem dependentes da actuação
dos seus membros como intermediários. O que têm sido as
consequências deste sistema é do conhecimento de qualquer
pessoa minimamente versada nos nossos assuntos públicos, e
foi amplamente exposto em diferentes partes das nossas análises.
Isto foi o que principalmente contribuiu para nos reduzir a
uma situação que proporciona amplas causas de mortificação
para nós próprios, bem como de triunfo para os nossos ini-
rrugos.
Que remédio pode haver para esta situação além de uma
mudança do sistema que a produziu, uma mudança do sistema
falacioso e enganador das quotas e requisições? Que substituto
pode ser imaginado para este ignis fatuus em finanças que não
o de permitir ao governo nacional que receba as suas próprias
receitas pelos métodos ordinários de tributação autorizados
em todas as Constituições bem ordenadas de governo civil?
Pessoas engenhosas podem falar com plausibilidade sobre

[279]
qualquer assunto, mas nenhum engenho humano pode apontar
qualquer outro expediente para nos livrar dos inconvenientes
e embaraços que naturalmente resultam de suprimentos
deficientes do tesouro público.
Os adversários mais inteligentes da nova Constituição
admitem a força deste argumento, mas condicionam a sua
admissão com uma distinção entre o que chamam tributação
interna e externa. A primeira, reservá-la-iam aos governos dos
Estados; quanto à última, que interpretam como impostos
comerciais, ou melhor, direitos sobre artigos importados,
declaram-se dispostos a concedê-la ao Governo Federal. Esta
distinção, no entanto, violaria essa máxima do bom senso e
de sã política que diz que todo o PODER deve ser proporcio-
nado ao seu OBJECTO e ainda deixaria o governo geral sob
uma espécie de tutela dos governos dos Estados, inconsistente
com qualquer ideia de energia e eficiência. Quem pode pre-
tender que os impostos comerciais sejam, ou possam ser, por
si só, suficientes para as exigências presentes e futuras da União?
Tomando em conta a dívida existente, externa e interna, e
um plano qualquer de liquidação que uma pessoa moderada-
mente sensível à importância da justiça pública e do crédito
público pudesse aprovar, e ainda os organismos, que todas os
partidos reconhecem ser necessários, não podemos, razoavel-
mente, gabar-nos de que apenas este recurso, na melhor das
situações, bastaria sequer para as necessidades presentes da
União. As suas necessidades futuras não admitem cálculo ou
limitação e, com base no princípio mais de uma vez men-
cionado, o poder de tomar providências para as satisfazer à
medida que vão surgindo deveria ser também ilimitado.
Acredito que isto pode ser visto como uma posição, com-
provada pela história da humanidade, que no progresso usual
das coisas, as necessidades de uma nação, em cada perfodo da sua
existência, serão pelo menos iguais aos seus recursos.
Dizer que as deficiências podem ser colmatadas pelas
requisições sobre os Estados é, por um lado, reconhecer que

[280]
não se pode confiar neste sistema; e, por outro, depender dele
para todas as coisas que fiquem para lá de um certo limite.
Os que acompanharam cuidadosamente os seus defeitos e
deformações à medida que foram sendo exibidos pela expe-
riência ou delineados no decurso destes artigosz devem sentir
uma repugnância invencível em confiar à sua actuação os inte-
resses nacionais, seja qual for o grau da sua importância.
A sua tendência inevitável, sempre que é posta em marcha,
tem de ser enfraquecer a União e espalhar as sementes de dis-
córdia e disputa entre o governo federal e os Estados, e entre
os próprios Estados. Pode esperar-se que as deficiências sejam
mais bem colmatadas desta maneira do que vinham sendo
supridas até agora as necessidades totais da União, usando o
mesmo processo? Deve recordar-se que, se for solicitado
menos aos Estados, eles terão proporcionalmente menos meios
de responder às solicitações. Se as opiniões daqueles que
argumentam a favor da distinção que foi mencionada devessem
ser aceites como prova de verdade, uma pessoa seria levada a
concluir que existia algum ponto conhecido na economia
dos negócios nacionais no qual seria seguro deter-se e dizer:
até aqui os objectivos da felicidade pública serão promovidos
atendendo às necessidades do governo, e tudo o que fica para
lá disto é indigno do nosso cuidado ou da nossa ansiedade.
Como é possível que um governo abastecido pela metade e
sempre necessitado cumpra os objectivos para que foi instituído,
aumente a prosperidade, ou sustente a reputação da comu-
nidade? Como pode ele alguma vez possuir energia ou estabili-
dade, dignidade ou crédito, confiança interna ou respeita-
bilidade no estrangeiro? Como pode a sua administração ser
outra coisa além de uma sucessão de expedientes contempori-
zadores, impotentes, vergonhosos? Como será ele capaz de
evitar o sacrificio frequente dos seus compromissos à

2 Ver artigos 15-22. QC) .

[281]
necessidade imediata? Como pode tomar a seu cargo ou
executar quaisquer planos generosos ou alargados de bem
público?
Prestemos atenção ao que seriam os efeitos desta situação
logo na primeira guerra em que viéssemos a participar. Presu-
miremos, a bem do argumento, que a receita pública resultante
dos direitos e impostos responde aos objectivos de uma provisão
para a dívida pública e para uma estrutura de paz para a União.
Nestas circunstâncias, rebenta uma guerra. Qual seria a conduta
provável do governo em tal emergência? Ensinado pela expe-
riência de que não podia depender adequadamente do sucesso
das requisições, incapaz de lançar mão de novos recursos por
sua própria autoridade, e pressionado por considerações de
perigo nacional, não seria arrastado para o expediente de des-
viar os fundos já cobrados dos seus objectos próprios para a
defesa do Estado? Não é facil de ver como é que poderia ser
evitado um passo deste género e, se ele viesse a ser dado, é
evidente que demonstraria a destruição do crédito público
no próprio momento em que ele estava a tornar-se essencial
para a segurança pública. Imaginar que se poderia dispensar
o crédito numa situação assim seria o cúmulo da tolice. No
sistema da guerra moderna, as mais ricas nações são obrigadas
a recorrer a grandes empréstimos. Um país tão pouco opulento
como o nosso deve sentir essa necessidade num grau muito
mais forte. Mas quem emprestaria a um governo que iniciasse
as negociações para conseguir um empréstimo com um acto
que demonstrava que nenhuma confiança poderia ser posta
na estabilidade das suas medidas para o pagar? Os empréstimos
que poderia ser capaz de conseguir seriam tão limitados em
valor como onerosos nas condições. Seriam feitos com base
nos mesmos princípios com que os usurários comummente
emprestam a devedores falidos e fraudulentos, com uma mão
parcimoniosa e enormes juros.
Pode talvez imaginar-se que, dada a escassez dos recursos
do país, existiria a necessidade de desviar os fundos constituídos

[282]
no caso suposto, ainda que o governo nacional possuísse um
poder irrestrito de tributação. Mas duas considerações servirão
para sossegar qualquer receio de uma coisa dessas: uma é que
estamos certos que os recursos da comunidade, em toda a sua
extensão, seriam postos em acção para o beneficio da União;
a outra é que quaisquer que possam ser as deficiências, elas
podem sem dificuldade ser supridas por empréstimos.
O poder de criar novos fundos sobre novos objectos a
serem tributados, pela sua própria autoridade, daria ao governo
nacional a capacidade de pedir emprestado tanto quanto as
suas necessidades pudessem exigir. Tanto os estrangeiros como
os cidadãos da América podiam então, com razão, depositar
confiança nos compromissos do governo. Mas depender de
um governo que tem ele próprio de depender de treze outros
governos para ter os meios de cumprir os seus contratos,
exigiria, assim que a situação fosse claramente compreendida,
um grau de credulidade que não acompanha frequentemente
as transacções pecuniárias da humanidade, e é pouco reconciliá-
vel com a aguda perspicácia da avareza.
As reflexões deste género podem ter pouco peso para
pessoas que esperam ver realizadas na América as cenas idílicas
de uma era poética ou fabulosa. Mas para aqueles que acreditam
que provavelmente experimentaremos uma quantidade normal
de vicissitudes e calamidades semelhantes às que couberam
em sorte a outras nações, estas reflexões devem apresentar-se
como merecedoras de uma atenção séria. Essas pessoas devem
contemplar a situação actual do seu país com dolorosa solici-
tude e desaprovar os males que, com demasiada facilidade, a
ambição ou a vingança podem infligir-lhe.
PUBLIUS

[283)
O FEDERALISTA N." 31
[30]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
1 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Em todo o tipo de investigações existem certas verdades


primárias, ou primeiros princípios, das quais todos os argu-
mentos subsequentes têm de depender. Estas contêm uma
evidência intrínseca que, anteriormente a toda a reflexão ou
associação, comanda o assentimento do espírito. Quando não
produz esse efeito, isso decorre de algum defeito ou doença
nos órgãos da percepção, ou da influência de algum interesse,
paixão ou preconceito fortes. São desta natureza as máximas
da geometria que dizem que "o todo é maior que as partes;
coisas iguais a uma terceira são iguais entre si; duas linhas

* Do TI!e New- York Packet, 1 de Janeiro de 1788. Publicado em 2 de


Janeiro no TI!e Independent ]ournal e no TI!e Daily Advertiser, e em 5 de Janeiro
no TI!e New- York ]ourna/. R ecebeu o número 31 na edição de McLean e o
número 30 nos jornais. OC).

[285]
rectas não podem limitar um espaço; e todos os ângulos rectos
são iguais uns aos outros." Da mesma natureza são essas outras
máximas em ética e política, que não pode existir um efeito
sem uma causa; que os meios devem ser proporcionados ao
fim; que todo o poder deve ser comensurável com o seu
objecto; que não deve haver limitação de um poder destinado
a cumprir um propósito que em si mesmo não é susceptível
de limitação. E existem outras verdades nas duas últimas ciên-
cias que, se não podem pretender fazer parte da classe dos
axiomas, são no entanto inferências tão directas destes, e tão
óbvias em si mesmas, e tão agradáveis para os naturais e não
sofisticados ditames do senso comum, que reclamam o assen-
timento de um espírito são e imparcial, com um grau de força
e convicção quase igualmente irresistível.
Os objectos de investigação da geometria são tão completa-
mente distintos dessas ocupações que agitam e põem em
movimento as desregradas paixões do coração humano que
os homens aceitam sem impedimento não somente os teoremas
mais simples da ciência mas até os paradoxos mais abstrusos
que, apesar de poderem parecer susceptíveis de demonstração,
estão em desacordo com as concepções naturais sobre o assunto
a que o espírito, sem a ajuda da filosofia, seria levado a dar
abrigo. A INFINITA DIVISIBILIDADE da matéria ou, por outras
palavras, a INFINITA divisibilidade de uma coisa FINITA, esten-
dendo-se até ao átomo mais diminuto, é um ponto aceite
entre os geómetras, apesar de não menos incompreensível
para o senso comum do que qualquer desses mistérios reli-
giosos, contra os quais têm sido tão industriosamente assestadas
as baterias dos infiéis.
Mas nas ciências da moral e da política, os homens mos-
tram-se menos maleáveis. Até um certo grau, está certo e é
útil que isto seja assim. A cautela e a investigação são uma
armadura necessária contra o erro e a impostura. Mas esta
falta de maleabilidade pode ser levada demasiado longe e pode
degenerar em obstinação, perversidade, ou dissimulação.

[286]
Embora não se possa pretender que os princípios da moral e
o conhecimento político tenham, em geral, o mesmo grau
de certeza que os das matemáticas, merecem apesar disso
muito mais crédito neste aspecto do que aquele que, a julgar
pela conduta dos homens em situações particulares, estamos
disposto a conceder-lhes. A falta de clareza está muito mais
vezes nas paixões e preconceitos daquele que argumenta do
que no assunto. Os homens, em inúmeras ocasiões, não fazem
jogo honesto com os seus próprios pontos de vista, mas,
cedendo a alguma teimosa parcialidade, enredam-se em palavras
e confundem-se em subtilezas.
De que outro modo poderia acontecer (se admitirmos
que os objectores são sinceros na sua oposição), que posições
tão claras como aquelas que manifestam a necessidade de um
poder geral de tributação no governo da União haveriam de
encontrar quaisquer adversários entre homens de discerni-
mento? Embora essas posições tenham sido completamente
apresentadas noutro localt, talvez não seja impróprio recapitulá-
-las aqui, como introdução a um exame do que possa ter sido
apresentado como objecção a elas. São, em substância, como
segue:
Um governo deveria conter em si todos os poderes
indispensáveis para o cabal cumprimento dos objectivos
acometidos ao seu cuidado, e para a completa execução das
obrigações pelas quais é responsável, livre de qualquer outro
controlo além de uma consideração pelo bem público e pela
opinião do povo.
Como os deveres de superintender a defesa nacional e de
assegurar a paz pública contra a violência externa ou doméstica
envolvem uma preparação para flagelos e perigos aos quais
não é possível atribuir limites, os poderes para realizar essa
preparação não devem conhecer outros limites para além das
exigências da nação e dos recursos da comunidade.

I Ver artigo 30. QC).

[287]
Como a receita pública é o instrumento essencial com
que têm de ser obtidos os meios de responder às exigências
nacionais, os poderes para a obter, em toda a sua extensão,
devem necessariamente estar incluídos nos poderes para
satisfazer aquelas exigências.
Como a teoria e a prática conspiram para demonstrar que
os poderes para arrecadar a receita pública são ineficazes
quando exercidos sobre os Estados nas suas capacidades
colectivas, o Governo Federal tem necessariamente de ser
investido de poderes irrestritos de tributação nos moldes usuais.
Se a experiência não tivesse evidenciado o contrário, seria
natural concluir que a justeza da existência de poderes gerais
de tributação nas mãos do governo nacional poderia com segu-
rança ser admitida com base na evidência destas proposições,
sem a ajuda de quaisquer argumentos ou exemplos adicionais.
Mas descobrimos, de facto, que os antagonistas da Constituição
proposta, longe de concordarem com a sua correcção ou
verdade, parecem dirigir os seus maiores esforços, e os mais
zelosos, contra esta parte do plano. Portanto pode ser satisfatório
anali ar os argumentos com que eles a combatem.
Os argumentos que foram mais trabalhados, tendo isto
em vista, parecem equivaler substancialmente ao seguinte:
" Não é verdade que, só porque as exigências da União podem
não ser susceptíveis de limitação, os seus poderes de tributação
devam ser ilimitados. A receita pública é um requisito tanto
para os objectivos da administração local como para os da
União, e os primeiros são pelo menos de igual importância
para a felicidade do povo. Por conseguinte, é tão necessário
que os Governos dos Estados tenham à sua disposição os meios
de suprir as suas necessidades, como que o Governo Nacional
deva possuir idêntica faculdade no que respeita às necessidades
da União. Mas um poder ilimitado de tributação neste último
poderia, e fá-lo-ia provavelmente com o tempo, privar os
primeiros dos meios para prover às suas próprias necessidades
e deixá-los-ia inteiramente à mercê da Legislatura nacional.

[288]
Como as leis da União devem tornar-se a lei suprema da
nação, e como ela deve ter poder para decretar todas as leis
que possam ser NECESSÁRIAS para exercer os poderes que se
pretende investir nela, o governo nacional pode em qualquer
momento abolir as taxas impostas para fins estaduais com o
pretexto de urna interferência com as suas próprias taxas. Pode
alegar uma necessidade de fazer isso com o intuito de dar
eficácia à receita pública nacional. E assim, todos os recursos
da tributação podem, pouco a pouco, ficar sujeitos a mono-
pólio federal, com inteira exclusão e destruição dos Governos
dos Estados."
Esta maneira de pensar parece por vezes ligar-se à hipótese
de usurpação por parte do governo nacional; outras vezes
parece ser concebida apenas como uma dedução da operação
constitucional dos seus futuros poderes. É só a esta última luz
que pode ser admitido que ela tem quaisquer pretensões de
imparcialidade. No momento em que nos lançamos em
conjecturas sobre as usurpações por parte do governo federal
mergulhamos num insondável abismo, e pomo-nos completa-
mente fora do alcance de todo e qualquer raciocínio. A ima-
ginação pode vaguear à vontade até ficar desorientada no
meio do labirintos de um castelo encantado, e sem saber para
que lado se voltar para se desenredar das perplexidades em
que tão irreflectidamente se aventurou. Quaisquer que possam
ser os limites ou as modificações dos poderes da União, é facil
imaginar uma série infindável de perigos possíveis e, cedendo
a um excesso de desconfiança e de timidez, podemos chegar
a um estado de absoluto cepticismo e irresolução. Repito
aqui o que observei, em substância, noutro local2, que todas
as observações fundadas na ameaça de usurpação devem ser
reportadas à composição e estrutura do governo, e não à
natureza ou extensão dos seus poderes. Os governos dos Esta-

2 Hamilton faz uma observação semelhante nos últimos parágrafos do


artigo 23. GC) .

[289]
dos, pelas suas Constituições originais, estão investidos de
completa soberania. Em que consiste a nossa garantia contra
a usurpação vinda desse quadrante? Sem dúvida que na maneira
como são constituídos, e na devida dependência do povo em
que se encontram os que os administram. Se a Constituição
proposta para o Governo Federal for considerada, depois de
um exame imparcial, capaz de permitir, na mesma medida,
a mesma espécie de garantias, todas as apreensões relativas à
usurpação devem ser abandonadas.
Não deve esquecer-se que uma tendência dos governos
dos Estados para violar os direitos da União é tão provável,
em absoluto, como uma tendência da União para violar os
direitos dos Governos dos Estados. Qual o lado que provavel-
mente prevaleceria em semelhante conflito, é coisa que tem
de depender dos meios que as partes em litígio possam empre-
gar para assegurar o sucesso. Como, nas repúblicas, a força
está sempre do lado do povo, e como há razões de peso para
inferir uma crença em que os governos dos Estados possuirão
normalmente mais influência sobre o povo, a conclusão natural
é que essas lutas estarão mais aptas a terminar em desvantagem
da União, e há uma probabilidade maior de violações da auto-
ridade federal pelos membros, do que da dos membros pela
autoridade federal. Mas é evidente que todas as conjecturas
desta natureza têm de ser extremamente vagas e falíveis, e
que é de longe mais seguro pô-las completamente de lado, e
confinar a totalidade da nossa atenção à natureza e extensão
dos poderes tal como são delineados na Constituição. Tudo
o que vá para além disto deve ser deixado à prudência e fir-
meza do povo, o qual, como terá os pratos da balança nas suas
próprias mãos, espera-se, tomará sempre cuidado para preservar
o equilíbrio constitucional entre o Governo Geral e o dos
Estados. Com este fundamento, que é evidentemente o verda-
deiro, não será difícil obviar às objecções que têm sido feitas
quanto ao poder ilimitado de tributação nos Estados Unidos.
PUBLIUS

[290]
O FEDERALISTA N." 32
[31]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
2 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Embora eu seja de opinião de que não existiria perigo


real no que respeita às consequências que parecem ser receadas
para os governos dos Estados, resultantes de um poder da
União de os controlar nas cobranças de impostos, porque
estou persuadido de que a opinião do povo, o risco extremo
de provocar os ressentimentos dos governos dos Estados, e
uma convicção da utilidade e necessidade das administrações
locais para fins locais, seriam uma barreira integral contra o
uso opressor de um tal poder. Não obstante tudo isso, estou

* Do Tlze Independent journal, 2 de Janeiro de 1788, O artigo original


também foi publicado em 3 de Janeiro no The Daily Advertiser, em 4 de Janeiro
no Tile New· York Packet, e em 8 de Janeiro no The New· York journal. Teve o
número 31 nos jornais, e na edição de McLean foi dividido em duas partes
(das quais esta é a primeira) e numerado 32 e 33. QC) .

[291]
disposto a conceder aqui, integralmente, a correcção do racio-
cínio que exige que os Estados individuais deveriam possuir
um poder independente e não controlável para arrecadar as
suas próprias receitas para atender às suas necessidades. E ao
fazer esta concessão, afirmo que (com a única excepção dos
direitos sobre as importações e exportações) eles conservariam,
segundo o plano da Convenção, esse poder no sentido mais
absoluto e irrestrito; e que uma tentativa por parte do governo
nacional para os privar do exercício dele seria uma violenta
usurpação de poder não sancionada por nenhum artigo ou
cláusula da sua Constituição t.
Uma total consolidação dos Estados numa única e completa
soberania nacional implicaria uma total subordinação das
partes, e quaisquer poderes que pudessem ficar para elas seriam
inteiramente dependentes da vontade geral. Mas como o
plano da Convenção visa apenas uma União ou consolidação
parciais, é claro que os Governos dos Estados reteriam todos
os direitos de soberania que anteriormente detinham, e que
não fossem, por essa lei, exclusivamente delegados nos Estados
Unidos. Esta delegação exclusiva, ou melhor esta alienação,
da soberania dos Estados, apenas existiria em três casos: aquele
em que a Constituição atribuísse em termos expressos uma
autoridade exclusiva à União; aquele em que atribuísse uma
autoridade à União, num caso, e, noutro caso, proibisse os
Estados de exercerem uma autoridade idêntica; e aquele em
que atribuísse urna autoridade à União tal que uma autoridade
semelhante nos Estados seria absoluta e totalmente contraditória
e incompatível. Uso estes termos para distinguir este último
caso de um outro que pode parecer semelhante, mas que, de
facto, é essencialmente diferente. Refiro-me ao caso em que

1 A preocupação de Hamilton consiste em demonstrar que, por analogia


com as outras competências constitucionais, os poderes de tributação da União
são enumerados, não colocando em causa as capacidades fiscais inerentes à
soberania residual dos Estados. (E. P.) .

[292)
o exercício de uma jurisdição comum pudesse produzir
interferências ocasionais na orientação política de qualquer ramo
da administração, mas não implicasse nenhuma contradição
directa nem incompatibilidade no que toca à autoridade
constitucional. Estes três casos de jurisdição exclusiva do
Governo Federal podem ser ilustrados pelos seguintes exem-
plos: A penúltima cláusula na oitava secção do artigo primeiro
estipula expressamente que o Congresso deve exercer "legislação
exclusiva" sobre o distrito a ser designado como sede do
governo. I to responde ao primeiro caso. A primeira cláusula
da mesma secção dá poderes ao Congresso para "aplicar e arre-
cadar taxas, impostos e tributos"; e a segunda cláusula da décima
secção do mesmo artigo declara que "nenhum Estado poderá,
sem o consentimento do Congresso, lançar impostos ou direitos
sobre as importações ou exportações, excepto os absolutamente
necessários para a execução das suas leis de inspecção." Daí
resultaria um poder exclusivo da União para lançar direitos
sobre as importações e exportações, com a ressalva particular
mencionada. Mas este poder é limitado por outra cláusula
que declara que nenhuma taxa nem nenhum direito deve ser
lançado sobre artigos exportados de qualquer Estado. Em
consequência desta restrição, o poder da União estende-se
apenas aos direitos sobre as importações. Isto responde ao segundo
caso. O terceiro será encontrado naquela cláusula que declara
que o Congresso terá poderes "para estabelecer uma lei uniforme
de naturalização aplicável à totalidade dos Estados Unidos."
Isto tem necessariamente de ser exclusivo, porque, se cada
Estado tives e poder de prescrever uma LEI DISTINTA, não
poderia existir uma LEI UNIFORME.
Há um caso do qual talvez se possa pensar que é semelhante
ao último, mas que é de facto muitíssimo diferente, e que
afecta a questão imediatamente sob consideração. Refiro-me
ao poder de lançar taxas sobre todos os artigos que não sejam
importações ou exportações. Esta é, argumento eu, manifesta-
mente uma autoridade concorrente e igual dos Estados Unidos

[293]
e dos Estados individuais. Não há, na cláusula que a concede,
nenhuma expressão que dê essa competência exclusivamente à
União. Não há nenhuma cláusula ou frase independente que
proíba os Estados de a exercer. Estamos tão longe de ser esse
o caso que um simples e conclusivo argumento em contrário
se deduz da restrição imposta aos Estados em relação aos
direitos sobre as importações e exportações. Esta restrição
implica admitir que, se ela não existisse, os Estados teriam os
poderes que ela exclui; e implica ainda admitir que em relação
a todas as outras taxas os poderes dos Estados permanecem
intocados. Sob qualquer outro ponto de vista ela seria tão
desnecessária como perigosa. Desnecessária, porque, se o facto
de conceder à União o poder de lançar esses direitos implicasse
a exclusão dos Estados, ou mesmo a sua subordinação neste
aspecto, não poderia haver necessidade dessa restrição. Perigosa,
porque a sua inclusão leva directamente à conclusão de que
foi mencionada e que, se o raciocínio dos objectores estivesse
correcto, não pode ter sido a que se pretendia. Quero dizer,
que os Estados, em todos os casos em que a restrição não se
aplica, teriam um poder de tributação concorrente com o da
União. A restrição em questão equivale ao que os juristas
chamam uma CONVULAÇÃ0 2 , isto é, a negação de uma coisa
e a afirmação de uma outra; a negação da competência dos
Estados para lançar taxas sobre as importações e exportações
e a afirmação da sua competência para lançá-las sobre todos
os outros artigos. Seria mero sofisma argumentar que a restrição
tinha a intenção de os excluir absolutamente no que se refere
a lançar ta.xas do primeiro tipo, e de lhes deixar a liberdade
de lançar taxas de outro tipo, sujeitas ao controlo da Legislatura
nacional. A cláusula restritiva ou proibitiva diz apenas que

2 Negative pregnant no original. Trata-se de urna analogia retirada por


H amilton do Direito Processual Penal. Em português a melhor tradução é a
de convulação. Significa uma negação por parte do arguido que agrava a sua
culpa." (E. P.).

[294]
não deverão, sem o consentimento do Congresso, cobrar esse tipo
de direitos. E se fôssemos compreender isto no sentido m en-
cionado em último lugar, a Constituição seria então feita para
introduzir uma providência formal a bem de uma conclusão
muito absurda: que é a de que os Estados, com o consentimento
da Legislatura nacional, podem taxar importações e exporta-
ções, e que podem taxar todos os outros artigos sujeitos ao
controlo do mesmo órgão. Se a intenção era esta, porque não
deixá-la, no primeiro caso, ao que se alega ser o efeito natu-
ral da cláusula original, conferindo à União um poder geral
de tributação? É evidente que a intenção não pode ter sido
esta e que a cláusula não aguentará uma interpretação desse
género.
Quanto à hipótese de incompatibilidade entre os poderes
de tributação dos Estados e os da União, ela não pode ser sus-
tentada no sentido que seria preciso para produzir uma exclusão
dos Estados. Na verdade, é possível que uma taxa possa ser
lançada sobre um artigo particular por um Estado de maneira
que possa tornar inconveniente que a União possa lançar uma
taxa adicional sobre o mesmo artigo; mas isso não implicaria
uma incapacidade constitucional para lançar uma taxa adicional.
O valor desta, a conveniência ou inconveniência do aumento
para qualquer das partes seriam ambas questões de prudência,
mas não estaria envolvido nenhum conflito directo de compe-
tências. A orientação política particular dos sistemas de finanças
nacional e do Estado podem não coincidir exactamente aqui
e ali, e podem pedir tolerância recíproca. Não é, no entanto,
uma mera possibilidade de inconveniência no exercício de
poderes, mas uma incompatibilidade constitucional imediata
que pode implicar a alienação e extinção de um direito de
soberania pré-existente.
A necessidade de uma jurisdição comum em certos casos
resulta da divisão do poder soberano. E a regra de que os
Estados conservam em pleno vigor todos os poderes dos quais
não são explicitamente desinvestidos em favor da União é

[295]
não só uma consequência teórica dessa divisão, mas é ainda
claramente admitida por todo o conteúdo do instrumento
que contém os artigos da Constituição proposta. Nele encon-
tramos que, apesar das concessões afirmativas de poderes gerais,
houve um cuidado muito minucioso, naqueles casos que
foram julgados incorrectos que poderes similares devessem
residir nos Estados, de inserir cláusulas negativas proibindo
aos Estados o exercício desses poderes. A décima secção do
artigo primeiro compõe-se inteiramente dessas cláusulas. Esta
circunstância é uma indicação clara da opinião da Convenção,
e propicia uma regra de interpretação exterior ao corpo do
texto, que justifica a posição que apresentei e refuta qualquer
hipótese em contrário.
PUBLIUS

[296]
O FEDERALISTA N. • 33
[31]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
2 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

O resto do argumento contra as cláusulas da Constituição


respeitante à tributação está contido nas cláusulas seguintes:
a última cláusula da oitava secção do artigo primeiro do plano
sob consideração autoriza a legislatura nacional "a elaborar
todas as leis necessárias e adequadas ao exercício dos poderes [... ]
conferidos pela presente Constituição ao Governo dos Estados
Unidos, ou a qualquer seu departamento ou fi.mcionário" 1;

* Do TI1e lndepet~dent joumal, 2 de Janeiro de 1788. Publicado em 3 de


Janeiro no TI1e Daily Advertiser, em 4 de Janeiro no TI1e ew- York Packet e em
8 de Janeiro no TI1e ew- York Joumal. Era a conclusão do artigo 31 nos jornais
e recebeu o número 33 na edição de M cLean. (Ver nota no inicio do artigo
precedente). QC) .
1 Nas citações da Constituição dos Estados Unidos, seguimos, sempre
que não ocorram divergências significativas, a tradução publicada em Coi1.Stituição
dos EUA, trad. Maria Goes, Gradiva, Lisboa, 1993. (E . P.).

[297]
e a segunda cláusula do artigo sexto declara que "a Constitui-
ção, as leis dos Estados Unidos feitas em conformidade, e ostra-
tados celebrados [ ... ] sob a autoridade dos Estados Unidos
constituirão a lei suprema da nação, não obstante qualquer dispo-
sição em contrário nas Constituições ou leis de qualquer Estado''.
Estas duas cláusulas foram fonte de muitas invectivas
virulentas e discursos petulantes contra a Constituição proposta.
Foram mostradas ao público com todas as cores exageradas
da deturpação como os instrumentos perniciosos com que
os seus governos locais iriam ser destruídos e as suas liberdades
exterminadas - como o monstro horrendo cujas mandíbulas
devoradoras não poupariam nem sexo nem idade, nem alto
nem baixo, nem sagrado nem profano. E, no entanto, por
estranho que possa parecer, depois de todo este clamor, para
aqueles que não as contemplaram à mesma luz, pode ser afir-
mado com inteira confiança que a operação constitucional
do governo projectado, se essas cláusulas fossem totalmente
obliteradas, seria precisamente a mesma que no caso de elas
serem repetidas em todos os artigos. Elas apenas afirmam uma
verdade que teria resultado por uma necessária e inevitável
implicação do próprio acto de constituir um Governo Federal,
e de lhe conferir certos poderes especificados. Esta proposição
é tão evidente que a própria moderação dificilmente pode
dar ouvidos às invectivas que foram tão copiosamente lançadas
contra esta parte do plano, sem emoções que perturbem a
sua equanirnidade.
O que é um poder senão a capacidade ou faculdade de
fazer uma coisa? O que é a capacidade de fazer uma coisa
senão o poder de empregar os meios necessários para a sua
execução? O que é o poder LEGISLATIVO senão um poder de
fazer LEIS? Quais são os meios de exercer um poder LEGISLATIVO
senão as LEIS? O que é o poder de lançar e cobrar impostos
senão um poder legislativo, ou um poder de fa zer leis, para lançar
e cobrar impostos? Quais são os meios adequados para exercer
tal poder senão leis necessárias e adequadas?

[298]
Esta simples série de interrogações fornece-nos imediata-
mente um teste com que julgar a verdadeira natureza da cláu-
sula de que há queixas. Ele conduz-nos a esta verdade palpável
de que um poder para lançar e cobrar impostos tem de ser
um poder de promulgar todas as leis necessárias e adequadas
para o exercício desse poder. E que mais faz a desafortunada
e caluniada cláusula em questão além de declarar a mesma
verdade, a saber, que a legislatura nacional, a quem foi previa-
mente dado o poder para lançar e cobrar impostos, possa, no
exercício desse poder, promulgar todas as leis necessárias e
adequadas para o levar a efeito? Apliquei estas observações
desta maneira particular ao poder de tributação, porque ele
é o assunto imediato sob consideração, e porque é o mais
importante dos poderes propostos para serem conferidos à
União. Mas o mesmo processo conduzirá ao mesmo resultado,
em relação a todos os outros poderes declarados na Constitui-
ção. E é expressamente para exercer esses poderes que a cláusula
devastadora, como foi afectadamente chamada, autoriza a
legislatura a promulgar todas as leis necessárias e adequadas. Se
há alguma coisa criticável, ela deve ser procurada nos poderes
específicos aos quais se aplica esta declaração geral. A própria
declaração, embora possa ser acusada de tautologia ou de
redundância, é pelo menos perfeitamente inócua.
Mas a DESCONFIANÇA pode perguntar: Então porque foi
introduzida? A resposta é que isso só poderia ter sido feito
para uma maior cautela, e como defesa contra todos os refina-
mentos sofisticas daqueles que poderiam depois vir a sentir
uma disposição para truncar e iludir os poderes legítimos da
União. A Convenção provavelmente anteviu aquilo que estes
artigos tiveram por principal propósito inculcar, que o perigo
que mais ameaça o nosso bem-estar político é o de que os
Governos dos Estados acabem por minar os alicerces da União.
E pode por isso ter pensado ser necessário, num ponto tão
importante, nada deixar à interpretação. Qualquer que possa
ter sido o incentivo para introduzir essa cláusula, a sensatez

[299]
da precaução é evidente, dada a gritaria que contra ela se
levantou, porque essa mesma gritaria trai uma disposição para
questionar a grande e essencial verdade que a cláusula tem
manifestamente por objectivo declarar2.
Mas pode novamente perguntar-se: Quem deve julgar da
necessidade e adequação das leis a promulgar para que a União
possa exercer os seus poderes? Respondo, primeiro, que esta
questão se põe tanto e tão completamente para a simples
concessão desses poderes como para a cláusula declaratória.
E respondo, em segundo lugar, que o governo nacional, como
qualquer outro, deve julgar, em primeira instância, do exercício
correcto dos seus poderes e os seus constituintes julgarão em
última instância. Se o Governo Federal vier a ultrapassar os
justos limites da sua autoridade e fizer uso tirânico dos seus
poderes, o povo, de quem ele é a criatura, deve apelar para
o critério que adoptou e tomar medidas para reparar o dano
feito à Constituição da maneira que a exigência possa sugerir
e a prudência justificar. A correcção de uma lei, à luz da Cons-
tituição, deve sempre ser determinada pela natureza dos poderes
em que é fundada. Suponha-se que, por alguma interpretação
forçada da sua autoridade (que, na verdade, não pode ser
facilmente imaginada), a legislatura federal venha a tentar
alterar a lei de transmissão por herança em qualquer Estado.
Não seria evidente que, ao fazer essa tentativa, teria excedido
a sua jurisdição e usurpado os direitos desse Estado? Suponha-
-se, novamente, que, com o pretexto de uma interferência
nas suas receitas, a União resolvia revogar uma contribuição
fundiária imposta pela autoridade de um Estado. Não seria

2 A 18.• cláusula da oitava secção do primeiro artigo, que Hamilton tão


convincentemente defende, tornar-se-ia numa das alavancas constitucionais
para a expansão dos poderes da União, sobretudo a partir de 1819, com o
acórdão do Supremo Tribunal, dirigido por John Marshall, no caso McCulloch
v. Maryland. Esta cláusula é também conhecida como a "cláusula elástica"
(elastic clause) ou, na perspectiva dos seus abertos adversários, como "cláusula
ilimitada" (sweeping clause). (E. P.) .

[300]
igualmente evidente que isto era uma invasão da jurisdição
comum a respeito desta espécie de contribuição, que a Consti-
tuição claramente upõe que pertence aos governos dos
Estados? Se alguma vez viesse a existir uma dúvida sobre isto,
a culpa eria toda desses argumentadores que, no zelo impru-
dente da sua animosidade para com o plano da Convenção,
trabalharam para o envolver numa nuvem concebida para
obscurecer as verdades mais manifestas e mais simples.
Mas é dito que as leis da União são para ser a lei suprema
da nação. Mas que inferência pode ser tirada daqui, ou que
valeriam essa leis, se não devessem ser supremas? É evidente
que não valeriam nada. Uma LEI, pelo próprio significado do
termo, inclui supremacia. É uma regra que aqueles a quem
ela é prescrita são obrigados a observar. Isto resulta de qualquer
associação política. Se os indivíduos entram num estado de
sociedade, as leis dessa sociedade devem ser o regulador
supremo da sua conduta. Se um certo número de sociedades
políticas entra numa sociedade política mais vasta, as leis que
a últim possa promulgar, decorrentes dos poderes que lhe
são conferidos pela sua Constituição, têm necessariamente
de ser supremas para essas sociedades, e para os indivíduos de
que elas são compostas. De outro modo seria um mero tratado,
dependente da boa-fé das partes, e não um governo, que é
apenas outra palavra para PODER POLÍTICO E SUPREMACIA.
Mas não se segue desta doutrina que os actos da sociedade
maior, que não estão em conformidade com os seus poderes
constitucionais, mas que são invasões dos poderes residuais
das sociedades mais pequenas, se converterão em suprema lei
da nação. Esses actos serão meros actos de usurpação, e mere-
cerão ser tratados como tais. Por e te motivo compreendemos
que a cláusula que declara a supremacia das leis da União, tal
como aquela que tínhamos considerado imediatamente antes,
declara apenas uma verdade que decorre imediata e necessaria-
mente da instituição de um Governo Federal. Não terá, pre-
sumo, escapado à atenção que ela confina expressamente esta

[301]
supremacia às leis feitas em conformidade com a Constituição,
coisa que menciono meramente como um exemplo de cautela
da Convenção, dado que essa limitação teria sido entendida,
ainda que não tivesse sido expressa.
Por conseguinte, apesar de uma lei lançando um imposto
para uso dos Estados Unidos ser suprema na sua natureza, e
não poder ser legalmente contrariada ou limitada, ainda assim,
uma lei para anular ou impedir a colecta de um imposto
lançado pela autoridade de um Estado (com excepção das
importações e exportações) não seria a lei suprema da nação,
mas sim urna usurpação de poderes não conferidos pela Cons-
tituição. Na medida em que uma injusta acumulação de
impostos sobre o mesmo objecto pode tender para tornar
dificil ou precária a colecta, ela seria um prejuízo mútuo, não
resultando de uma superioridade ou insuficiência de poder
de qualquer dos lados, mas de um exercício pouco judicioso
de poder por um ou por outro, de uma maneira igualmente
desvantajosa para ambos. Deve esperar-se e presumir-se,
todavia, que o interesse mútuo venha a ditar uma concertação
a este respeito que evite qualquer prejuízo material. A infe-
rência a tirar de tudo isto é: que os Estados individuais rete-
riam, segundo a Constituição proposta, uma autoridade
independente e incontrolada para arrecadar receitas com tanta
amplitude quanto precisassem, por meio de todos os tipos de
tributação excepto direitos sobre as importações e as exporta-
ções. No próximo artigo mostraremos que esta JURISDIÇÃO
COMUM em matéria de tributação era o único substituto
admissível para uma subordinação total, a respeito deste ramo
do poder, da autoridade do Estado à autoridade da União.
PUBLIUS

[302]
O FEDERALISTA N." 34
[32]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
5 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

Sinto-me lisonjeado com o facto de que tenha sido mos-


trado com clareza no meu último artigo que os Estados
particulares, segundo a Constituição proposta, teriam uma
autoridade CO -IGUAL à da União em matéria de receitas,
excepto quanto aos direitos sobre as importações. Como isto
deixa aberta aos Estados a maior parte, de longe, dos recursos
da comunidade, não pode haver pretexto para a afirmação
que eles não possuiriam meios tão abundantes quanto poderia
ser desejado para a satisfação das suas próprias necessidades,
independentemente de todo o controlo externo. Que o campo

* Do The lndependentJournal, 5 de Janeiro de 1788. Publicado no mesmo


dia tanto no The New- York Packet como no Th e Daily Advertiser e em 8 de
Janeiro no The New- Yorkjournal. R ecebeu o número 34 na edição de McLean
e o número 32 nos jornais. QC).

[303]
é suficientemente amplo manifestar-se-á mais completamente
quando viermos a falar sobre a insignificante parte das despesas
públicas em relação às quais caberá aos governos dos Estados
providenciar.
Argumentar com base em princípios abstractos que esta
autoridade coordenada não pode existir é contrapor suposições
e teorias a factos e realidades. Por mais próprios que esses
argumentos possam ser para mostrar que uma coisa não devia
existir, têm de ser totalmente rejeitados quando são usados
para provar que ela não existe contrariamente à evidência dos
próprios factos. É bem conhecido que na República Romana
a autoridade Legislativa, em últin1a instância, residiu durante
muito tempo em dois corpos políticos diferentes, não como
ramos da mesma Legislatura, mas como Legislaturas distintas
e independentes, em cada uma das quais prevalecia um interesse
oposto: numa delas, patrício; na outra, plebeu. Muitos argu-
mentos poderiam ter sido aduzidos para provar a desvantagem
dos seus poderes aparentemente contraditórios, cada uma com
autoridade para anular ou revogar os decretos da outra. Mas
ter-se-ia olhado como louco um homem que, em Roma,
tivesse tentado contestar a sua existência. Imediatamente se
perceberá que aludo à COMITIA CENTURIATA e à COMITIA
TRIBUTA. A primeira, na qual o povo votava por centúrias,
era organizada de modo a conceder uma superioridade ao inte-
resse patrício; na última, em que prevalecia o número de
votantes, o interesse plebeu tinha inteira predominância.
E no entanto estas duas Legislaturas coexistiram durante
séculos, e a república romana atingiu o apogeu da grandeza
humana.
No caso particular que estamos a considerar, não existe
uma contradição como a que aparece no exemplo citado, não
existe de nenhum dos lados poder para anular os decretos do
outro. E na prática há poucas razões para recear qualquer
inconveniência, porque, num curto período de tempo, as
necessidades dos Estados reduzir-se-ão naturalmente a uma

[304]
eifera muito mais limitada. E enquanto isso, há toda a probabili-
dade de que os Estados Unidos considerem conveniente abster-
-se totalmente desses objectos aos quais os Estados particulares
terão inclinação para recorrer.
Para formar um juízo mais preciso sobre os verdadeiros
méritos desta questão, será bom atentar para a proporção entre
os objectos que pedirão providências federais com respeito à
receita pública e os que pedirão providências dos Estados.
Descobriremos que os primeiros são totalmente ilimitados,
e que os últimos estão circunscritos dentro de limites muito
moderados. Prosseguindo esta investigação, devemos ter em
mente que não podemos confinar o nosso ponto de vista ao
período presente, mas temos de olhar para a frente para um
futuro remoto. As Constituições de governo civil não devem
ser estruturadas apenas com base numa avaliação das exigências
existentes, mas sim com base numa combinação destas com
as exigências prováveis dos século , em conformidade com o
curso natural e experimentado dos assuntos humanos. Por
consequência, nada pode ser mais falacioso do que inferir a
extensão de qualquer poder, adequado para ficar entregue ao
governo nacional, a partir de uma avaliação das suas nece i-
dades imediatas. Deve existir uma CAPACIDADE para providen-
ciar para contingências futuras à medida que ocorram. E como
elas são ilimitáveis pela sua natureza, é impossível limitar com
segurança es a capacidade. É verdade, talvez, que se poderia
fazer um cálculo com precisão suficiente para responder à
decisão da quantidade de receita pública indispensável para
liquidar os compromissos subsistentes da União, e para manter
essas estruturas que, durante algum tempo, serão suficientes
em tempo de paz. Mas seria sensato, ou mais propriamente
não seria o máximo da loucura, parar neste ponto e deixar
confiado ao governo o cuidado com a defesa nacional num
estado de absoluta incapacidade para providenciar a protecção
da comunidade contra futuras violações da paz pública, por
guerras externas ou por convulsões internas? Se, pelo contrário,

[305]
viéssemos a exceder este ponto, onde podemos parar, excepto
num poder indeterminado para providenciar nos casos de
emergência à medida que ocorram? Embora seja fãcil afirmar,
em termos gerais, a possibilidade de formar um juízo racional
sobre uma providência necessária contra perigos prováveis,
podemos apesar disso desafiar com segurança aqueles que
proferirem a afirmação para que apresentem os seus dados, e
podemos afirmar que esses dados seriam tão vagos e incertos
como quaisquer outros que pudessem ser apresentados para
estabelecer a duração provável do mundo. As observações
confinadas às meras perspectivas de ataques internos não
podem merecer nenhum peso, embora nem mesmo elas
admitam avaliação satisfatória. Mas se temos a intenção de ser
um povo comercial, ser capaz de defender um dia esse comér-
cio deve constituir uma parte da nossa política. A manutenção
de uma marinha e de guerras navais envolveria contingências
que têm de desconcertar todos os nossos esforços de aritmética
política.1 Admitindo que devemos tentar a nova e absurda
experiência em política de atar as mãos do governo quanto
à guerra ofensiva fundada em razões de Estado, decerto que
não devemos, todavia, incapacitá-lo de defender a comunidade
contra a ambição ou inimizade de outras nações. Já há algum
tempo que paira uma nuvem sobre o mundo europeu. Se
vier a irromper numa tempestade, quem nos pode assegurar
que, no seu progresso, uma parte da sua fúria não recairia
sobre nós? Nenhum homem razoável quereria afirmar apres-
sadamente que estamos inteiramente fora do alcance dela. Se
os materiais combustíveis que agora parecem estar a amontoar-
-se se viessem a dissipar sem chegar à maturidade e se uma
chama se viesse a acender sem se estender a nós, que garantia
podemos ter que a nossa tranquilidade permaneceria por

1 Neste notável texto, Hamilton enuncia o que poderemos designar como

uma teoria do constitucionalismo sustentável, aquele que tem em consideração


o longo prazo e os interesses e necessidades das gerações futuras." (E. P.).

[306]
muito tempo não perturbada por uma outra causa ou por
uma outra fonte? Recordemos que a paz ou a guerra nem
sempre serão deixadas à nossa opção e que, por mais moderados
ou pouco ambiciosos que possamos ser, não podemos contar
com a moderação ou esperar extinguir a ambição de outros.
Quem poderia ter imaginado que no fim da última guerra a
França e a Grã-Bretanha, gastas e exaustas como estavam, tão
cedo olhariam uma para a outra de uma maneira tão hostil?
Julgando pela história do género humano, seremos compelidos
a concluir que as inflamadas e destruidoras paixões da guerra
reinam no coração humano com um dorrúnio muito mais
poderoso do que os calmos e benévolos sentimentos de paz,
e que modelar os nossos sistemas políticos com base em
especulações de duradoura tranquilidade é confiar nos com-
ponentes mais frágeis do carácter humano.
Quais são as principais fontes de despesa de um governo
qualquer? O que é que ocasionou essa enorme acumulação
de dívidas com que diversas naçõe da Europa estão oprimidas?
A resposta resume-se simplesmente a guerras e rebeliões e a
manutenção dessas instituições que são necessárias para defen-
der o corpo político dessas duas das mais mortais doenças da
sociedade. As despesas resultantes dessas instituições que são
relativas à mera polícia interna de um Estado, à manutenção
dos seus departamentos Legislativo, Executivo e Judicial, com
as suas diferentes dependências, e ao encorajamento da agri-
cultura e da indústria (que abrange quase todos os objectos
dos gastos do Estado), são insignificantes em comparação com
as que se relacionam com a defesa Nacional.
No reino da Grã-Bretanha, onde todo o aparato ostentoso
da monarquia tem de ser atendido, não mais de uma décima
quinta parte da receita anual da nação é destinada à classe de
despesas mencionadas em último lugar. Os outros catorze
quinze avos são absorvidos no pagamento dos juros de dívidas
contraídas para continuar as guerras em que esse país esteve
envolvido, e na manutenção da marinha e dos exércitos. Se,

[307]
por um lado, se deve observar que os gastos efectuados na
prossecução de empreendimentos ambiciosos e actividades
vangloriosas de uma monarquia não são o critério adequado
para ajuizar dos que seriam necessários numa república,
também, por outro lado, deve ser notado que deveria haver
uma grande desproporção entre a profusão e extravagância
de um reino poderoso na sua administração doméstica, e a
frugalidade e economia que, nesse particular, convêm à
modesta simplicidade do governo republicano. Se contra-
balançarmos uma redução adequada de um lado contra aquela
que se supõe que deve ser feita do outro, a proporção pode
ainda ser considerada como sendo válida.
Mas atentemos para a enorme dívida que contraímos
numa só guerra, e calculemos apenas com base numa parte
comum dos acontecimentos que perturbam a paz das nações,
e perceberemos instantaneamente, sem a ajuda de nenhuma
explicação elaborada, que deve sempre existir uma imensa
desproporção entre os objectos dos gastos Federais e Estaduais.
É verdade que vários dos Estados, separadamente, estão sobre-
carregados com dívidas consideráveis, que são uma excres-
cência da última guerra2. Mas quando essas dívidas forem
pagas, a única exigência de receitas de alguma importância
que os Governos dos Estados continuarão a experimentar será
para a mera manutenção dos seus respectivas quadros de fun-
cionários, para os quais, se adicionarmos todas as contingên-
cias, a soma total em qualquer dos Estados deve ficar con-
sideravelmente aquém de duzentas mil libras.

2 As dívidas de guerra dos Estados, que atingiam o enorme montante


(para a época) de 25 milhões de dólares, foram transferidas para a União pelo
primeiro Congresso federal, no âmbito do Compromise cif 1790, que incluiu a
transferência da futura capital federal para o território banhado pelo Potomac,
onde hoje se ergue a cidade de Washington. Alexander Hamilton, então Secre-
tário do Tesouro no governo de George Washington, foi o grande arquitecto
desse acordo. (E. P.).

[308]
Ao estruturar um governo tanto para a posteridade como
para nó mesmos, devemos, nessas dotações que são planeadas
como permanentes, contar não com as causas temporárias de
despesa, mas com as permanentes. Se este princípio for justo,
a nossa atenção será dirigida para uma dotação em benefício
dos governos dos Estados de uma soma anual de cerca de
200 000 libras, ao passo que as exigências da União podem
ser susceptíveis de não ter limites, nem sequer em imaginação.
Nesta maneira de ver a questão, com que lógica pode ser sus-
tentado que os governos locais deveriam ter ao seu dispor,
perpetuamente, uma fonte EXCLUSIVA de receita pública corres-
pondente a qualquer valor acima das 200 000 libras? Alargar
o seu poder mais do que isso, com exclusão da autoridade da
União, seria tirar os recursos da comunidade dessas mãos que
deles precisam para o bem-estar público, com o intuito de os
pôr em outras mãos que poderiam não ter ocasião justa ou
apropriada para o seu emprego.
Suponha-se, então, que a Convenção se tinha inclinado
para proceder com base no princípio de uma repartição dos
objecto de rendimento, entre a União e os seus membros,
na proporção das suas necessidades comparativas. Que fundo
particular poderia ter sido seleccionado para o uso dos Estados,
que não fosse nem demais nem de menos, de menos para as
suas necessidades presentes, demais para as futuras? Quanto à
linha de separação entre taxas internas e externas, isso deixaria
aos Estados, num cálculo por alto, a posse de dois terços dos
recursos da comunidade para satisfazer de um décimo a um
vigésimo das despesas desta e à União, um terço dos recursos
da comunidade para satisfazer nove décimos a dezanove
vigésimos dos seus gastos. Se abandonássemos esta distribuição
e nos contentássemos com deixar aos Estados um poder
exclusivo de tributar casas e terras, ainda assim haveria uma
grande desproporção entre os meios e o fim: a posse de um
terço dos recursos da comunidade para suprir, no máximo,
um décimo das suas necessidades. Se pudesse ter sido seleccio-

[309]
nado e aproveitado qualquer fundo igual e não superior ao
objecto, ele seria inadequado para a liquidação das dívidas
existentes dos Estados particulares, e tê-los-ia deixado
dependentes da União quanto ao aprovisionamento para este
fim.
A sequência de observações precedente justificará a posição
que foi exposta noutro local3: que "uma jurisdição comum
quanto à tributação era o único substituto admissível de uma
subordinação total, a respeito deste ramo do poder, da auto-
ridade dos Estados à autoridade da União". Qualquer separação
de objectos de receita pública que pudesse ter sido considerada
seria equivalente a um sacrifício dos grandes interesses da
União ao poder dos Estados individuais. A Convenção pensou
que a jurisdição comum era preferível à subordinação, e é
evidente que ela tem pelo menos o mérito de reconciliar um
poder indeterminado e constitucional de tributação residente
no governo Federal com um poder adequado e independente
nos Estados para que provenham às suas próprias necessidades.
Restam alguns outros aspectos em que este importante assunto
da tributação reclamará uma consideração ulterior.
PUBLIUS

3 Ver artigo 33. QC).

[310]
O FEDERALISTA N. 0 35
[33]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
5 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Antes de prosseguirmos para o exame de quaisquer outras


objecções a um poder indeterminado de tributação da União,
farei uma observação geral que é a seguinte: se a jurisdição
do governo nacional, no que respeita à receita pública, fosse
confinada a objectos particulares, ocasionaria naturalmente
que uma proporção indevida dos encargos públicos caísse
sobre esses objectos. Dois males brotariam desta fonte: a
opressão de ramos particulares da indústria e uma distribuição
desigual de taxas tanto entre os vários Estados como entre os
cidadãos do mesmo Estado.

* Do The Independentjoumal, 5 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado


em 7 de Janeiro no The Daily Advertiser, em 8 de Janeiro no The New- York
Packet, e em 9 de Janeiro no The New- York j ournal. Recebeu o número 35 na
edição de McLean e o número 33 nos jornais. QC) .

[311]
Suponha-se, como foi defendido, que o poder federal de
tributação devesse ficar confinado aos direitos sobre as impor-
tações, e é evidente que o governo, por falta da capacidade
de ter à sua disposição outros recursos, seria frequentemente
tentado a aumentar esses direitos até um excesso prejudicial.
Há pessoas que imaginam que os direitos nunca podem ser
muito aumentados, dado que, quanto mais altos forem, tanto
mais se alega que tenderão para desencorajar um consumo
extravagante, para produzir uma balança comercial favorável,
e para promover as manufacturas domésticas. Mas todos os
extremos são perniciosos de várias maneiras. Direitos exorbi-
tantes sobre artigos importados gerariam um espírito geral de
contrabando, que é sempre prejudicial para o comerciante
honesto, e eventualmente para a própria receita pública. Ten-
dem para converter as outras classes da comunidade, num grau
inadequado, em tributárias das classes manufactureiras, a quem
dão um monopólio prematuro dos mercados e forçam por
vezes a indústria a sair dos seus canais mais naturais para outros
em que flui com menor vantagem. E por último, oprimem
o comerciante, que é muitas vezes obrigado a pagá-los ele
próprio sem qualquer retribuição por parte do consumidor.
Quando a procura é igual à quantidade de bens no mercado,
é o consumidor quem em geral paga os direitos; mas quando
acontece que o mercado está inundado, uma grande proporção
cai sobre o comerciante, e por vezes não só anula os seus lucros
mas recai também sobre o seu capital. Estou inclinado a pensar
que uma divisão dos direitos entre o vendedor e o comprador
ocorre mais frequentemente do que comummente se imagina.
Nem sempre é possível aumentar o preço de uma mercadoria
na proporção exacta de cada imposto adicional lançado sobre
ela. O mercador, em especial, num país de capital comercial
pequeno, vê-se com frequência na necessidade de manter os
preços baixos com o intuito de uma venda mais expedita.
A máxima que o consumidor é o pagador é mais frequen-
temente verdadeira do que a contrária da proposição segundo

[312]
a qual é muito mais equitativo que os direitos sobre as impor-
tações entrem para um fundo comum do que redundem em
benefício exclusivo dos Estados importadores. Mas não é tão
geralmente verdadeira que torne equitativo que e es direitos
constituam o único fundo nacional. Quando são pagos pelo
comerciante, funcionam como uma taxa adicional sobre o
Estado importador, cujos cidadãos pagam a sua proporção
desses direitos enquanto consumidores. Nesta maneira de ver
eles são geradores de uma desigualdade entre os Estados,
desigualdade que seria aumentada com o incremento crescente
dos direitos. O confinamento das receitas públicas nacionais
a esta espécie de impostos seria acompanhado da desigualdade,
proveniente de uma causa diferente, entre os Estados manu-
factureiros e não manufactureiros. Os Estados capazes de uprir
mais completamente as suas próprias necessidades, por meio
das suas próprias manufacturas, não consumiriam, de acordo
com o seu número ou a sua riqueza, uma proporção tão
grande de artigos importados como os Estados que não estão
numa situação tão favorável. Por conseguinte, considerando
apenas esta maneira de contribuir para o tesouro público, não
o fariam na proporção das suas capacidades. Para os obrigar
a isso é necessário recorrer a impostos indirectos cujos alvos
próprio são tipos particulares de manufacturas. Nova Iorque
está mais profundamente interessada nestas considerações
do que os seus cidadãos, que batalham para limitar o poder
da União em relação à tributação externa, podem ter cons-
ciência - Nova Iorque é um Estado importador, e não é
provável que muito rapidamente se torne um Estado manu-
factureiro de considerável importância. É claro que sofreria
duplamente da restrição da jurisdição da União aos impostos
comerciaiS.
Na medida em que estas observações tendem a inculcar
um risco de os direitos de importação serem aumentados
até um valor extremo prejudicial, pode ser notado, em con-
formidade com uma observação feita noutra parte destes

[313]
artigosl, que o próprio juro da receita pública seria uma
protecção suficiente contra um tal valor extremo. Admito
prontamente que seria esse o caso enquanto os outros recursos
estivessem disponíveis. Mas, se as avenidas que levam a eles
estivessem fechadas, a ESPERANÇA, estimulada pela necessidade,
geraria experiências fortalecidas por precauções rigorosas e
penalidades adicionais, as quais, durante algum tempo, teriam
o efeito pretendido, até que tivesse havido vagar para imaginar
expedientes para escapar a essas novas precauções. O primeiro
sucesso teria aptidão para inspirar falsas opiniões, as quais,
para serem corrigidas, poderiam exigir um longo tempo de
experiência subsequente. A necessidade, em especial em
política, origina frequentemente falsas esperanças, falsos
raciocínios, e um sistema de medidas correspondentemente
errado. Mas mesmo que este suposto excesso não viesse a ser
uma consequência da limitação do poder federal de tributação,
as desigualdades de que se falou ainda se seguiriam, embora
não no mesmo grau de outras causas a que não se deu atenção.
Voltemos agora ao exame das objecções.
Uma objecção que, se podemos julgar pela frequência da
sua repetição, parece ter muita aceitação, é a de que a Câmara
dos Representantes não é suficientemente numerosa para
receber todas as diferentes classes de cidadãos, de modo a
combinar os interesses e sentimentos de todas as partes da
comunidade e a produzir uma conveniente simpatia entre a
assembleia representativa e os seus constituintes. Este argumento
apresenta-se sob uma forma muito enganosa e sedutora e é
bem calculado para se cingir aos preconceitos daqueles a quem
se dirige. Mas quando o dissecamos com atenção aparentará
ser feito de nada mais do que de palavras que soam bem.
O alvo para que parece apontar é, em primeiro lugar, imprati-
cável, e no sentido em que é argumentado, desnecessário.
Reservo para outro local a discussão da questão relativa à

1 Ver artigo 11. QC).

[314]
suficiência da assembleia representativa no que respeita ao
número dos representantes2, e contentar-me-ei aqui com o
exame do uso particular que foi feito de uma suposição con-
trária com referência ao assunto imediato da nossa investigação.
A ideia de uma representação efectiva de todas as classes
do povo, por pessoas de cada urna delas, é totalmente visionária.
A menos que estivesse expressamente estabelecido na Consti-
tuição que cada ocupação diferente deveria designar um ou
mais membros, isso nunca teria lugar na prática3. Os artífices
e os industriais terão sempre propensão, com poucas excepções,
para dar os seus votos a comerciantes, preferindo-os às pessoas
das suas próprias profissões e ramos de negócio. Esses cidadãos
perspicazes têm plena consciência de que as artes mecânicas
e manufactureiras fornecem os materiais das actividades mer-
cantis e da indústria. Muitos deles, na verdade, estão imediata-
mente ligados às operações de comércio. Sabem que o comer-
ciante é o seu patrono e amigo natural e têm consciência de
que, por muito grande que seja a confiança que podemjusti-
ficadamente ter no seu próprio bom senso, os seus interesses
podem er defendidos pelo comerciante mais eficazmente do
que por eles próprios. São sensíveis ao facto de que os seus
hábitos de vida não foram de molde a dar-lhes esses dotes
adquiridos, sem os quais, numa assembleia deliberativa, as maio-
res capacidades naturais são em grande parte inúteis, e de que
a influência, o peso, e os conhecimentos superiores dos
comerciantes os põem mais à altura de uma controvérsia com
qualquer tendência que possa vir a insinuar-se nos conselhos
públicos e que seja pouco amistosa em relação aos interesses
dos industriais e das artes mecânicas. Estas considerações e
muitas outras que poderiam ser mencionadas demonstram, e

2 Ver artigo 54. QC) .


3 A ideia de uma representação orgãnica, por sectores profissionais de
actividade, que Hamilton aqui considera como "visionária", teria um longo
futuro a percorrer na Europa. Veja-se, a título de exemplo, o artigo de Oliveira
Martins, "As Eleições", 1878. (E. P.).

[315]
a experiência confirma-o, que os artesãos e os industriais
estarão normalmente inclinados a conceder os seus votos a
comerciantes e àqueles que estes últimos recomendem. Por
conseguinte, devemos considerar os comerciantes como os
representantes naturais de todas essas classes da comuni-
dade.
Em relação às profissões liberais, pouca coisa necessita de
ser observada. Elas não formam verdadeiramente nenhum
interesse distinto na sociedade, e em conformidade com a sua
situação e os seus talentos serão indiscrin1inadamente objectos
da confiança e da escolha umas das outras e de outras partes
da comunidade.
Restam apenas os interesses dos agricultores. E estes, de
um ponto de vista politico, e em particular em relação com
os impostos, acho que estão perfeitamente unidos, desde o
mais rico senhor de terras ao mais pobre rendeiro. Nenhum
imposto pode ser lançado sobre a terra que não afecte o pro-
prietário de milhões de acres tanto como o proprietário de
um simple· acre. Qualquer proprietário terá, portanto, um
interesse em comum com os outros em relação a manter os
impostos sobre a terra tão baixos quanto possível, e pode sem-
pre contar- e com o interesse comum como o laço mais seguro
de simpatia. Mas ainda que pudéssemos supor uma distinção
de interesses entre o opulento senhor de terras e o lavrador
mediano, que razão há para concluir que o primeiro tem mais
possibilidades do que o último de ser deputado à legislatura
nacional? Se tomarmos por guia os factos , e olharmos para
os nossos próprios senado e assembleia, veremos que os pro-
prietários moderados de terra são prevalecentes em ambos,
nem isto é menos assim no senado, que conta com menor
quantidade, do que na assembleia, que é composta por mais
membros. Nos casos em que as qualificações dos eleitores são
as mesmas, quer tenham de escolher um pequeno ou um
grande número, os seus votos recairão naqueles em quem têm
mais confiança, quer estes calhem ser homens de grandes for-

[316]
tunas, ou de propriedade moderada, ou sem propriedade
alguma.
Diz-se que é necessário que todas as classes de cidadão
devam ter alguns dos seus pares no corpo representativo, para
que os seus sentimentos e interesses possam ser melhor
compreendidos e considerados. Mas vimos que isto nunca
acontecerá seja qual for o esquema que deixe livres os votos
do povo. Quando é assim, o corpo representativo, com muito
poucas excepções para ter qualquer influência no espírito do
governo, será composto por proprietários de terras, por
comerciantes e por homens das profissões liberais. Mas onde
está o perigo de que os interesses e sentimentos das diferentes
classes de cidadãos não sejam compreendidos ou considerados
por estes três tipos de homens? Não saberá e não sentirá o
proprietário de terras seja o que for que promova ou assegure
os interesses da propriedade agrícola? E não estará ele, pelo
seu próprio interesse nessa espécie de propriedade, uficiente-
mente propenso a resistir a qualquer tentativa de prejudicá-
-la ou sobrecarregá-la? Será que o comerciante não compreen-
derá e não estará disposto a cultivar, na medida em que possa
ser adequado, os interesses das artes mecânicas e manufactu-
reiras, às quai o seu comércio está tão estreitamente aliado?
O homem de profissão liberal, que sentirá uma neutralidade
em relação às rivalidades entre os diferentes ramos da indústria,
não terá a probabilidade de provar que é um árbitro imparcial
entre elas, pronto a promover qualquer delas, na medida em
que isso se lhe apresente como conduzindo ao interesse geral
da sociedade?
Se tomarmos em consideração os humores ou as dispo i-
ções momentâneos que podem vir a prevalecer em grupos
particulares da sociedade, e às quais uma sábia administração
nunca estará desatenta, será provável que o homem cuja situa-
ção o leva a aprofundada investigação e informação seja um
juiz menos competente da sua natureza, extensão e fundamento
do que aquele cuja observação não vai mais longe do que o

[317]
círculo dos seus vizinhos e conhecidos? Não é natural que
um homem que é um candidato ao favor do povo e que está
dependente dos sufrágios dos seus concidadãos para a conti-
nuação das honras públicas de que desfruta tenha cuidado em
informar-se acerca das disposições e inclinações do povo e
esteja disposto a permitir-lhes um grau de influência adequado
sobre a sua conduta? Esta dependência, e a necessidade de
ficar sujeito, ele e a sua posteridade, pelas leis às quais dá o
seu assentimento são os verdadeiros e os fortes acordes da sim-
patia entre os representantes e o constituinte.
Não existe parte da administração do governo que requeira
tão vasta informação e um conhecimento tão aprofundado
dos princípios de economia política como a questão da tribu-
tação. O homem que compreende melhor esses princípios
será o que menos provavelmente recorrerá a expedientes
opressores, ou que menos provavelmente sacrificará qualquer
classe particular de cidadãos à obtenção da receita pública.
Poderia demonstrar-se que o melhor sistema de finanças será
o menos oneroso. Não pode haver dúvidas de que, para se
exercer um poder de tributação judicioso, é necessário que
a pessoa em cujas mãos reside esse poder esteja familiarizada
com o carácter genérico, com os hábitos e modos de pensar
da maioria do povo e com os recursos do país. E isto é tudo
o que razoavelmente pode querer dizer um conhecimento
dos interesses e opiniões do povo. Com qualquer outro signi-
ficado, a proposição ou não tem sentido ou é absurda. E com
esse significado, que cada cidadão sensato julgue por si onde
é que é mais provável que sejam encontradas as qualificações
exigidas.
PUBLIUS

[318]
O FEDERALISTA N." 36
[34]

Acerca do Poder Geral de Tributação


(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
8 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Vimos que o resultado das observações às quais foi prin-


cipalmente dedicado o artigo precedente é que, em conse-
quência do funcionamento natural dos diferentes interesses e
pontos de vista das várias classes da comunidade, a representação
do povo será composta, quer seja mais ou menos numerosa,
quase inteiramente por proprietários de terras, por comercian-
tes e por membros das profissões liberais, que representarão
verdadeiramente esses interesses e pontos de vista diferentes.
Se vier a ser levantada a objecção de que temos visto outros

* Do The New- York Packet, 8 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 9 de Janeiro no The Independent Joumal, em 1O de Janeiro no The Daily
Advertiser, e começou em 11 de Janeiro, concluindo-se em 12 de Janeiro, no
The New-Yorkjoumal. Recebeu o número 36 na edição de McLean e o número
34 nos jornais. QC) .

[319]
tipos de homens nas Legislaturas locais, responderei que são
admitidas excepções à regra, mas não em quantidade suficiente
para influenciar a índole geral ou o carácter do governo.
Existem espíritos fortes em todas as profissões, espíritos que
se elevarão acima das desvantagens da situação, e inspirarão
o tributo devido ao seu mérito, não só das classes a que parti-
cularmente pertencem, mas da sociedade em geral. A porta
devia estar identicamente aberta para todos. E confio, para
crédito da natureza humana, que veremos exemplos de plantas
vigorosas como essas florescendo no solo tanto da legislação
Federal como no da legislação dos Estados. Mas exemplos
ocasionais deste género não tornarão menos conclusivo o
raciocínio fundado no curso geral das coisast.
A questão podia ser vista de vários outros ângulos que
conduziriam todos ao mesmo resultado. Em particular, podia
perguntar-se: Que afinidade ou relação de interesses pode ser
concebida entre um carpinteiro e um ferreiro, um fabricante
de linho e um tecelão de meias, que seja maior do que a que
existe entre um comerciante e qualquer deles? É notório que
existem frequentemente rivalidades tão grandes entre os dife-
rentes ramos das artes mecânicas ou manufactureiras como as
que existem entre os departamentos do trabalho manual e da
indústria, de modo que, a menos que o corpo representativo
fosse muito mais numeroso do que o que seria consistente
com a ideia de regularidade ou sensatez nas suas deliberações,
é impossível que o que parece ser o espírito da objecção que
temos estado a considerar possa alguma vez ser realizado na
prática. Mas abstenho-me de me alongar mais sobre um assunto
que até agora se apresentou numa roupagem demasiado folgada

1 Hamilton alude aqui a um problema central da teoria da representação


política, o de saber se os representantes devem reflectir fielmente os interesses
dos seus eleitores, ou, se devem almejar à procura de um interesse comum, o
que implica o exercício au tónomo da sua capacidade crítica e méritos pessoais.
É o clássico conflito entre as teorias do espelho representativo e do filtro representativo.
(E. P.).

[320]
para admitir sequer um exame preciso da sua configuração
ou tendência reais.
Há outra observação de uma natureza de certa forma mais
precisa que reclama a nossa atenção. Foi afirmado que um
poder de tributação interna investido na legislatura nacional
nunca poderia ser exercido com vantagem, tanto pela falta
de conhecimento suficiente das circunstâncias locais como
pela interferência entre as leis fiscais da União e as leis dos
Estados particulares. A suposição de urna carência da informa-
ção apropriada parece ser inteiramente destituída de fun-
damento. Se uma questão respeitante a um dos condados
estiver dependente da Legislatura estadual e exigir conhecimen-
tos de minudências locais, como são adquiridos esses conhe-
cimentos? Sem dúvida a partir das informações dos membros
que pertencem ao condado. Não podem obter-se conheci-
mentos idênticos na Legislatura nacional, transmitidos pelos
representantes de cada Estado? E não deve presumir-se que
os homens que em geral são eleitos para essa Legislatura pos-
suirão o grau de inteligência necessário para serem capazes
de comunicar essa informação? É o conhecimento das circuns-
tâncias locais, tal como se aplica à tributação, urna familiaridade
topográfica minuciosa com todas as montanhas, rios, cursos
de água, estradas, e veredas de cada Estado, ou é uma familia-
ridade geral com a sua situação e os seus recursos, com o
estado da sua agricultura, do seu comércio, das suas manufac-
turas, com a natureza dos seus produtos e consumos, com os
diferentes graus e tipos da sua riqueza, propriedade e indústria?
As nações em geral, mesmo sob governos do tipo mais
popular, entregam a administração das suas finanças a um
único homem ou a juntas compostas por poucos indivíduos,
que resumem e preparam, em primeira instância, os planos
de tributação, que são depois convertidos em leis pela autori-
dade do soberano ou da Legislatura.
Os homens de Estado interessados e esclarecidos são con-
siderados por toda a parte como sendo mais bem qualificados

[321]
para fazer uma selecção judiciosa dos objectos adequados ao
fisco; e isto é uma indicação clara, na medida em que o enge-
nho da humanidade possa ter algum peso na questão, da
espécie de conhecimento das circunstâncias locais que é
indispensável para os fins da tributação.
Os impostos planeados para serem abrangidos sob a
denominação geral de impostos internos podem ser subdividi-
dos em duas espécies, directos e indirectos. Embora a objecção
tenha sido apresentada em relação a ambos, o raciocínio que
a acompanha parece confinado ao primeiro ramo. E na verdade,
quanto aos últimos, pelos quais se deve entender direitos e
contribuições sobre artigos de consumo, fica-se atrapalhado
para conceber qual pode ser a natureza das dificuldades que
se receiam. O conhecimento que com eles se relaciona tem
evidentemente que ser de um tipo que seja sugerido pela
natureza do próprio artigo, ou que possa ser facilmente adqui-
rido junto de qualquer homem bem informado, em especial
da classe comercial. As circunstâncias que podem distinguir
a sua situação num Estado da sua situação num outro devem
ser poucas, simples e faceis de compreender. A principal coisa
a ter em atenção seria evitar esses artigos que foram previa-
mente aproveitados para uso de um Estado particular, e não
poderia haver difi.culdade em indagar o sistema fiscal de cada
um deles. Ele poderia sempre ser conhecido a partir dos códi-
gos de leis, bem como da informação dos membros dos
diversos Estados.
A objecção, quando aplicada à propriedade imobiliária
ou a casas e terras, parece, à primeira vista, ter mais fundamento,
mas mesmo neste ponto de vista não resistirá a um exame
minucioso. Os impostos sobre a terra são comummente lança-
dos de um de dois modos, quer por avaliações ifectivas, per-
manentes ou periódicas, quer por avaliações ocasionais, ao
arbítrio, ou conformemente ao critério fundamentado, de
certos funcionários que têm por dever fazê-las. Em qualquer
dos casos, a EXECUÇÃO da tarefa, que é a única a precisar do

[322]
conhecimento de detalhes locais, tem de ser delegada em
pessoas discretas no papel de comissários ou assessores, eleitas
pelo povo ou nomeadas pelo governo para esse fim. Tudo o
que a lei pode fazer deve ser nomear as pessoas ou prescrever
o modo da sua eleição ou nomeação, fixar o número e a
qualificação dos funcionários e conceber as linhas gerais dos
seus poderes e deveres. E o que é que há em tudo isto que
não possa ser tão bem feito pela Legislatura nacional como o
é por uma Legislatura estadual? A atenção de qualquer delas
pode somente alcançar princípios gerais. Os detalhes locais,
como já foi notado, têm de ser remetidos aos que irão executar
o plano.
Mas há um ponto de vista simples em que esta matéria
pode ser encarada que tem de ser completamente satisfatório.
A Legislatura nacional pode fazer uso do sistema de cada Estado
no interior desse Estado. O método de lançar e cobrar esta espé-
cie de impostos em cada Estado pode, em todas as suas partes,
ser adoptado e empregue pelo governo Federal.
Recordemos que a proporção destes impostos não vai ser
deixada ao arbítrio da Legislatura nacional, mas será determi-
nada pelos números de cada Estado, tal como é descrito na
segunda secção do artigo primeiro. Um censo efectivo ou
uma enumeração das pessoas deve fornecer a regra, circunstân-
cia que fecha efectivamente a porta à parcialidade ou à opressão.
O abuso deste poder de tributação parece ter sido precavido
com prudente circunspecção. Adicionalmente à precaução
que acaba de ser mencionada, há uma disposição que "todos
os direitos, impostos e contribuições deverão ser UNIFORMES
em todos os Estados Unidos".
Foi observado com muita propriedade por diferentes
oradores e escritores defensores da Constituição que se o
exercício do poder de tributação interna por parte da União
viesse a ser considerado, com base na experiência, como sendo
de facto inconveniente, o governo federal poderia abster-se
de usá-lo e, em vez disso, poderia recorrer às requisições.

[323]
À maneira de resposta a isto, perguntou-se triunfantemente,
porque não omitir logo à partida esse poder ambíguo, e confiar
naquele recurso? Podem ser dadas duas sólidas respostas .
A primeira é que o exercício desse poder, se se mostrar conve-
niente, será preferível, porque será mais eficaz, e é impossível
demonstrar em teoria, ou por qualquer outro caminho que
não seja o da experiência, que ele não pode ser exercido van-
tajosamente. O contrário, na verdade, parece ser mais provável.
A segunda resposta é que a existência de um tal poder na
Constituição terá uma forte influência no que toca a conferir
eficácia às requisições. Quando os Estados sabem que a União
pode suprir-se sem a sua intervenção, isso será um motivo
poderoso para o seu próprio empenhamento.
Quanto à interferência das leis fiscais da União com as
dos seus membros, vimos já que não pode haver nenhuma
colisão ou incompatibilidade de autoridade. Por conseguinte,
as leis não podem, num sentido legal, interferir umas com as
outras, e está longe de ser impossível evitar uma interferência
mesmo na orientação política dos seus diferentes sistemas.
Um expediente eficaz para este fim será abster-se mutuamente
daqueles objectos a que qualquer dos lados pode recorrer em
primeiro lugar. Como nenhum deles pode dominar o outro,
cada um terá um interesse óbvio e considerável nesta abstenção
recíproca. E nos casos em que existe um interesse comum
imediato, podemos seguramente contar com a sua acção.
Quando as dívidas particulares dos Estados estiverem pagas,
e as despesas deles vierem a ficar circunscritas dentro dos seus
limites naturais, a possibilidade de interferência quase se desva-
necerá. Um pequeno imposto sobre a terra responderá aos
objectivos dos Estados, e será o seu recurso mais simples e
mais ajustado.
Foram erguidos muitos espectros provindo deste poder
de tributação interna, para excitar as apreensões do povo.
Duplo aparelho de funcionários fiscais, uma duplicação dos
encargos por dupla tributação e as assustadoras formas de

[324]
impostos individuais odiosos e opressores foram apresentados
com a engenhosa destreza da prestidigitação política.
Quanto ao primeiro ponto, há dois casos em que não
pode haver ensejo para um duplo aparelho de funcionários:
um, em que o direito de lançar o imposto é exclusivamente
conferido à União, que é o caso dos direitos sobre as importa-
ções; o outro, em que o objecto não caiu sob nenhuma regula-
mentação ou disposição do Estado, que pode ser aplicável a
uma variedade de objectos. Nos outros casos o que é provável
é que os Estados Unidos ou se abstenham totalmente dos
objectos previamente destinados a objectivos locais ou utilizem
os funcionários do Estado e a legislação do Estado para cobrar
o imposto adicional. Isto dará a melhor resposta aos desígnios
da receita pública, porque poupará na despesa da cobrança e
será o melhor para evitar qualquer ocasião de descontenta-
mento dos Governos dos Estados e do povo. De todo o modo,
este é um expediente praticável para evitar esse tipo de
inconveniente, e nada mais se pode exigir além de mostrar
que os males previstos não resultam necessariamente do plano.
Quanto a qualquer argumento derivado de um suposto
sistema de influência é resposta suficiente dizer que ele não
deve presumir-se, mas a suposição é susceptível de uma resposta
mais precisa. Se tal espírito viesse a infestar os conselhos da
União, a estrada mais certa para a realização do seu objectivo
seria empregar os funcionários estaduais tanto quanto possível,
e devotá-los à União por meio de uma acumulação dos seus
emolumentos. Isto serviria para virar a maré da influência do
Estado para os canais do governo nacional, em vez de fazer
fluir a influência federal numa corrente contrária e adversa.
Mas todas as suposições deste género são fruto da inveja, e
deviam ser banidas da consideração da grande questão que
está diante do povo. Não podem ter outro objectivo além de
lançar um véu sobre a verdade.
Quanto à sugestão de dupla tributação, a resposta é simples.
As necessidades da União têm de ser supridas de uma maneira

[325]
ou de outra; se for planeado que isso deva ser feito pela auto-
ridade do Governo Federal, não é para ser feito pelo governo
dos Estados. A quantidade de impostos a pagar pela comuni-
dade tem de ser a mesma em qualquer desses casos com esta
vantagem: se for determinado que a provisão seja feita pela
União, o importantíssimo recurso dos impostos sobre o
comércio, que é o ramo mais conveniente de receita pública,
pode ser prudentemente muito mais aperfeiçoado sob a
regulamentação federal do que sob a dos Estados, e é claro
que tornará menos necessário o recurso a métodos mais incon-
venientes. E com a vantagem suplementar que, na medida
em que possa existir alguma dificuldade real no exercício do
poder de tributação interna, ele imporá uma disposição para
um maior cuidado na escolha e harmonização dos meios.
E deve tender naturalmente para estabelecer uma norma firme
de orientação política na administração nacional- ir tão longe
quanto possível na tributação do luxo dos ricos a favor do
tesouro público, de maneira a diminuir a necessidade desses
impostos que poderiam criar insatisfação nas classes mais
pobres e mais populosas da sociedade. É uma felicidade quando
o interesse que o governo tem na preservação do seu próprio
poder coincide com uma distribuição justa dos encargos
públicos, e tende a proteger da opressão a parte menos abastada
da comunidade!
Quanto aos impostos relativos ao direito eleitoral2, confesso,
sem escrúpulos, que os desaprovo. E, apesar de terem prevale-
cido desde um período inicial naqueles Estados3 que regular-

2 Poli tax, no original. A Convenção de Filadélfia recusou criar qualquer


barreira censitária para o acesso dos cidadãos às eleições federais, conrudo, os
Estados mantiveram a capacidade de manter impostos eleitorais, quer para as
eleições estaduais, quer para as federais. Esse instrumento foi abundantemente
usado pelos Estados do Sul para discriminar os potenciais eleitores afro-ame-
ricanos. Só em 23 de Janeiro de 1964 os impostos eleitorais foram abolidos
pela ratificação do 24. 0 Aditamento, que os proíbe expressamente. (E. P.).
3 Os Estados da Nova Inglaterra. (Publius) .

[326]
mente têm sido mais tenazes quanto aos seus direitos, teria
de lamentar vê-los introduzidos na prática sob o governo
nacional. Mas será que de existir um poder para os lançar
decorre que sejam efectivamente lançados? Cada Estado da
União tem poder para lançar impostos deste tipo e, todavia,
eles são desconhecidos na prática de muitos desses Estados.
Devem os governos dos Estados ser estigmatizados como
tiranias porque possuem esse poder? Se não devem, com que
propriedade pode um poder semelhante justificar uma tal
acusação contra o governo nacional, ou mesmo alegar isso
como um obstáculo à adopção desse governo? Por muito
pouco amigo que eu seja dessa espécie de impostos, ainda
sinto uma íntima convicção de que o poder de recorrer a ele
deveria existir no Governo Federal. Existem certas emergências
das nações nas quais os expedientes que no estado normal das
coisas devem ser evitados se tornam essenciais para o bem-
-estar público. E o governo, por causa da possibilidade dessas
emergências, deveria ter sempre a opção de os usar. A real
escassez, neste país, de objectos que possam ser considerados
como fontes de receita fiscal é ela própria uma razão peculiar
para não limitar o arbítrio dos conselhos nacionais a este res-
peito. Podem existir certas conjunturas críticas e tempestuosas
do Estado nas quais um imposto sobre o direito de votar se
pode tornar um recurso inestimável. E como não conheço
nada que isente esta porção do globo das calamidades comuns
que caíram sobre outras partes dele, admito a minha aversão
por todos os projectos que visem retirar ao governo uma
arma, ainda que somente essa, que em qualquer contingência
possível poderia ser utilmente empregue para a defesa e
segurança geral.
Terminei agora todo o exame desses poderes propostos
para serem conferidos ao Governo federal que se relacionam
mais particularmente com a sua energia, e com a sua eficácia
para responder aos grandes e primários objectivos da união.
Há outros que, embora omitidos aqui, serão, com o intuito

[327]
de tornar mais completa a visão deste assunto, considerados
no próximo tópico da nossa investigação. Orgulho-me de
que o progresso já feito terá chegado para satisfazer a parte
sincera e sensata da comunidade quanto ao facto de que algu-
mas das objecções que foram mais estrenuamente alegadas
contra a Constituição, e que à primeira vista eram mais formi-
dáveis, não só são destituídas de substância como, se tivessem
operado na sua formação, teriam tornado o plano incompe-
tente para os grandes objectivos da felicidade pública e da
prosperidade nacional. Orgulho-me também de que uma
investigação adicional e mais crítica do sistema servirá para o
recomendar ainda mais a todos os defensores sinceros e
desinteressados de um bom governo, e não deixará nenhuma
dúvida a homens desse carácter quando à correcção e opor-
tunidade de adoptá-lo. Seria uma felicidade para nós, e muito
honroso para a natureza humana, se tivéssemos sabedoria e
virtude suficientes para dar ao género humano um exemplo
tão glorioso!
PUBLIUS

[328]
O FEDERALISTA N." 37
[36]

Acerca das Dificuldades da Convenção


em Delinear uma Adequada Forma de Governo

JAMES MADISON
11 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Ao passar em revista os defeitos da Confederação existente,


e ao mostrar que eles não podem ser remediados por um
governo com menos energia do que esse que está diante do
público, é claro que vários dos mais importantes princípios
desse governo foram postos à consideração. Mas, como o
objectivo primário destes artigos é determinar clara e total-
mente os méritos desta Constituição e a conveniência de
adoptá-la, o nosso plano não pode ficar completo sem fazer
um estudo mais crítico e meticuloso do trabalho da Convenção,
sem o examinar por todos os lados, sem o comparar em todas

* Do The Daily Advertiser, 11 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado


em 12 de Janeiro no The Independent ]ournal, em 15 de Janeiro no The New-
-York Packet, e em 19 de Janeiro no The New- York ]oumal. Recebeu o número
37 na edição de McLean e o número 36 nos jornais. QC).

[329]
as suas partes, e sem calcular os seus efeitos prováveis. Para
que esta tarefa remanescente possa ser executada com conhe-
cimentos que conduzam a um resultado justo e honesto tem
que se condescender neste lugar com algumas reflexões que
a sinceridade sugere previamente. É uma desgraça, inseparável
dos assuntos humanos, que as medidas públicas raramente
sejam investigadas com esse espírito de moderação que é
essencial para uma avaliação justa da sua verdadeira tendência
para promover ou obstruir o bem público, e que é mais vulgar
que esse espírito seja diminuído do que seja promovido,
naquelas ocasiões que requerem um exercício inabitual dele.
Para aqueles que foram levados pela experiência a dar atenção
a esta consideração, não pode aparecer como surpreendente
que o instrumento da Convenção, que recomenda tantas
mudanças e inovações importantes, que pode ser visto sob
tantos aspectos e relações, e que tem a ver com os motivos
de tantas paixões e interesses, viesse a encontrar ou excitar,
tanto de um lado como do outro, disposições hostis a uma
discussão séria e a um juízo correcto dos seus méritos. Alguns,
como ficou demasiado evidente das suas próprias publicações,
examinaram a Constituição proposta não somente com uma
predisposição para a censura, mas com a predeterminação de
condenar, tal como a linguagem sustentada por outros trai
uma predeterminação ou parcialidade opostas, que converte
também as suas opiniões em coisa de pouca importância nesta
questão. Porém, ao pôr estas diferentes personagens num
mesmo nível, com respeito ao peso das suas opiniões, não
quero insinuar que não possa haver uma diferença substancial
na pureza das suas intenções. Mas é apenas para observar, em
favor da última descrição, que, como se admite universalmente
que a nossa situação é particularmente crítica e requer indis-
pensavelmente que algo seja feito para nos aliviar, o defensor
predeterminado do que foi efectivamente feito pode ter che-
gado à sua parcialidade a partir do peso destas considerações,
bem como das considerações de uma sinistra natureza.

(330]
O adversário predeterminado, por outro lado, não pode ter
sido dominado por nenhuma espécie de motivo desculpável.
As intenções do primeiro podem ser íntegras, tal como podem,
pelo contrário, ser culpáveis. Os pontos de vista do último
não podem ser íntegros, e têm de ser culpáveis. Mas a verdade
é que estes artigos não se dirigem a pessoas que obedeçam a
nenhuma destas duas descrições. Solicitam a atenção apenas
daqueles que juntam a um zelo sincero pela felicidade do seu
país um temperamento favorável a uma avaliação justa dos
meios de promovê-la.
As pessoas desse género procederão a um exame do plano
submetido pela Convenção, não somente sem uma disposição
para descobrir ou exagerar os defeitos, mas reconhecerão a
justeza de pensar que não se devia esperar um plano sem
defeitos. E também não se limitarão a dar um desconto para
os erros que possam ser imputados à falibilidade a que a Con-
venção, enquanto corpo de homens, esteve sujeita, mas terão
presente que os próprios membros da Convenção eram apenas
homens, e não devem assumir uma infalibilidade ao julgar de
novo a opinião falível de outros.
Com igual boa vontade se perceberá que, além dessas
inferências de sinceridade, devem haver uma grande tolerância
pelas dificuldades inerentes à própria natureza do empreendi-
mento de que a Convenção foi encarregue.
A novidade do empreendimento chama imediatamente
a nossa atenção. Mostrou-se no decorrer destes artigos que a
Confederação existente é fundada em princípios que são
falaciososl e que, consequentemente, temos de mudar esta
primeira fundação e com ela a superestrutura que nela assenta.
Mostrou-se que as outras confederações que podiam ser
consultadas como precedentes foram viciadas pelos mesmos
princípios erróneos, e não podem, por esse motivo, fornecer
outra luz além da de faróis que previnem contra o curso a ser

I Ver em particular os Artigos 15-22. QC) .

[331]
evitado, sem apontar aquele que deve ser seguido2. O máximo
que a Convenção podia fazer em tal situação era evitar os
erros sugeridos pela experiência passada de outros países, bem
como do nosso próprio país, e proporcionar uma maneira
conveniente de rectificar os seus próprios erros, à medida que
as experiências futuras os fossem manifestando.
Entre as dificuldades encontradas pela Convenção, deve
ter sido encontrada uma muito importante na combinação
da indispensável estabilidade e energia da governação com a
atenção inviolável devida à liberdade e à forma republicana.
Se não tivesse cumprido substancialmente esta parte do seu
encargo, a Convenção teria alcançado muito imperfeitamente
o objectivo da sua nomeação ou a expectativa do público. No
entanto, que isso não poderia ser facilmente realizado é coisa
que não será negada por alguém que não esteja disposto a
revelar a sua ignorância do assunto. A energia no Governo é
essencial para essa segurança contra o perigo externo e interno,
e para essa pronta e salutar execução das leis que entram na
própria definição do bom Governo. A estabilidade do Governo
é essencial para o carácter nacional e para as vantagens que
lhe estão associadas, bem como para aquele repouso e confiança
nos espíritos do povo, que estão entre as maiores bênçãos da
sociedade civil. Uma legislação irregular e mutável não é mais
um mal em si própria do que é odiosa para o povo. E pode
ser afirmado com segurança que o povo deste país, esclarecido
como é com respeito à natureza e interessado, como acontece
com a grande maioria, nos efeitos da boa governação, nunca
ficará satisfeito até que tenha sido aplicado um remédio às
vicissitudes e incertezas que caracterizam as administrações
dos Estados. No entanto, comparando estes valiosos ingre-
dientes com os princípios vitais da liberdade, devemos perceber
imediatamente a dificuldade de os misturar nas devidas
proporções. A característica da liberdade republicana parece

2 Ver Artigos 18, 19 e 20. QC).

[332]
exigir por um lado, não somente que todo o poder deva ser
derivado do povo, mas que aqueles a quem ele é confiado
devam ser mantidos na dependência do povo por meio de
um curto período de ocupação dos seus lugares, e que mesmo
durante esse curto período a confiança deva ser posta não em
poucas, mas em muitas mãos. A estabilidade, pelo contrário,
exige que as mãos em que o poder está depositado permane-
çam as mesmas durante um período considerável. Uma
mudança frequente de homens resultará numa repetição
freque te de eleições, e uma frequente mudança de medidas
resultará da frequente mudança de homens, ao passo que a
energia do Governo exige não somente uma certa duração
do poder, mas a execução deste por uma única mão. Em que
medida pôde a Convenção ter tido sucesso nesta parte do seu
trabalho ver-se-á melhor num exame mais preciso desse
trabalho. Do apressado exame feito aqui, deve ser claramente
patente que foi uma árdua tarefa.
Não menos árdua deve ter sido a tarefa de traçar a linha
justa de partilha entre a autoridade do governo geral e a dos
Estado . Todos os homens serão sensíveis a esta dificuldade,
na proporção em que estiverem acostumados a contemplar e
discriminar objectos vastos e complicados na sua natureza. As
próprias faculdades do espírito nunca foram, até agora, enu-
meradas e definidas com precisão satisfatória, apesar de todos
os esforços dos filósofos mais perspicazes e metafisicas. Sen-
sação, percepção, juízo, desejo, volição, memória, imaginação,
são consideradas como sendo separadas por matizes tão
delicados e gradações tão minúsculas que as suas fronteiras se
têm esquivado às investigações mais subtis, e permanecem
uma fonte fertil de investigação e de engenhosas controvérsias.
As fronteiras entre os grandes reinos da natureza e, mais ainda,
entre a várias províncias e partes menores em que eles se sub-
dividem, proporcionam uma outra ilustração da mesma impor-
tante verdade. Os naturalistas mais sagazes e mais laboriosos
ainda ão conseguiram até agora traçar com certeza a linha

[333)
que separa o domínio da vida vegetal da região adjacente da
matéria não organizada, ou que marca o fim desta e o começo
do império animal. Uma obscuridade ainda maior reside nos
caracteres distintivos pelos quais os objectos de cada um desses
grandes departamentos da natureza foram ordenados e classi-
ficados. Quando passamos das obras da natureza, em que todas
as delineações são perfeitamente exactas, e aparentam ser de
outra maneira apenas devido à imperfeição do olho que as
examina, para as instituições humanas, nas quais a obscuridade
brota tanto do próprio objecto como do órgão pelo qual é
contemplado, temos de perceber a necessidade de moderar
ainda mais as nossas expectativas e as nossas esperanças nos
esforços da sagacidade humana. A experiência ensinou-nos
que nenhuma mestria na ciência da governação foi até agora
capaz de discriminar e definir, com certeza suficiente, as suas
três grandes províncias, a legislativa, a executiva e a judiciária,
e até os privilégios e poderes dos diferentes ramos legislativos.
No decurso da prática ocorrem diariamente perguntas que
demonstram a obscuridade que reina nesses assuntos, e que
desconcertam os maiores adeptos em ciência política. A expe-
riência de séculos, com os trabalhos continuados e combina-
dos das legislaturas e dos juristas mais esclarecidos, foi igual-
mente bem sucedida na delineação dos vários objectos e
limites de diferentes códigos de leis e diferentes tribunais de
justiça. A extensão exacta da lei ordinária, dos decretos parla-
mentares, da lei marítima, da lei eclesiástica, da lei das corpo-
rações, e outras leis e costumes locais, ainda está para ser clara
e definitivamente estabelecida na Grã-Bretanha, onde a exacti-
dão nessas matérias foi procurada mais industriosamente do
que em qualquer outra parte do mundo. A jurisdição dos seus
diversos tribunais, gerais e locais, de lei, de equidade, do almi-
rantado, etc., é uma fonte não menor de discussões frequentes
e intrincadas, denotando suficientemente os limites indetermi-
nados pelos quais elas estão respectivamente circunscritas.
Todas as novas leis, apesar de redigidas com a maior perícia

[334]
técnica, e aprovadas após a mais completa e madura deliberação,
são consideradas como mais ou menos obscuras e equívocas,
até que o seu significado seja ajustado e averiguado por uma
série de discussões e avaliações particulares. Além da obscuri-
dade resultante da complexidade dos objectos e da imperfeição
das faculdades humanas, o meio através do qual as concepções
dos homens são comunicadas de uns para outros acrescenta
um novo embaraço. A utilidade das palavras é exprimir ideias.
A clareza, por consequência, requer não somente que as ideias
sejam distintamente formuladas, mas que sejam expressas por
palavras distinta e exclusivamente apropriadas para elas. Mas
nenhuma linguagem é tão copiosa que possa fornecer palavras
e frases para todas as ideias complexas, ou tão correcta que
não inclua muitas que equivocamente denotam diferentes
ideias. Por este motivo tem de acontecer que, por mais preci-
samente que os objectos possam ser descriminados em si
mesmos e por mais precisamente que a discriminação possa
ser considerada, a definição desses objectos possa ser tornada
imprecisa pela imprecisão dos termos com que ela os exprime.
E esta inevitável imprecisão deve ser maior ou menor, con-
soante a complexidade e novidade dos objectos definidos.
Quando o Todo-Poderoso condescende em dirigir-se à
humanidade na própria linguagem desta, o seu significado,
que deve ser luminoso, é tornado obscuro e duvidoso pelo
meio enevoado através do qual é comunicado. Eis, portanto,
as três fontes de definições vagas e incorrectas: falta de distinção
do objecto, imperfeição do órgão de concepção, falta de
adequação do veículo das ideias. Qualquer destas tem de pro-
duzir um certo grau de obscuridade. A Convenção, ao delinear
a fronteira entre as jurisdições federal e estaduais deve ter
sentido o efeito de todas elas3.

3 Esta passagem ilustra bem o modo como Hamilton também considera


a teoria do conhecimento como uma das bases da teoria política. (E. P.).

[335]
Às dificuldades já mencionadas podem ser acrescentadas
as pretensões interferentes dos Estados de maiores e de menores
dimensões. Não podemos errar ao supor que os primeiros
lutariam por uma participação no governo totalmente
proporcional à sua riqueza e importância superiores e que os
últimos não defenderiam menos tenazmente a igualdade de
que desfrutam no presente. Podemos muito bem supor que
nenhum dos lados se submeteria inteiramente ao outro,
e que, consequentemente, a luta só poderia ser terminada por
um compromisso. É extremamente provável, também, que,
depois de ter sido ajustado o rácio da representação, esse
mesmo compromisso viesse a produzir uma luta nova entre
os mesmos partidos, para conferir uma certa alteração à orga-
nização do Governo e à distribuição dos poderes deste, de tal
modo que viesse a aumentar a importância dos ramos em
cuja formação eles tivessem respectivamente obtido o maior
quinhão de influência. Há características na Constituição que
justificam cada uma destas suposições e, na medida em que
cada uma delas é bem fundada, isso mostra que a Convenção
deve ter sido compelida a sacrificar a correcção teórica à força
de considerações extrínsecas.
Também não podiam ter sido apenas os grandes e pequenos
Estados a dispor-se em oposição uns aos outros em vários
pontos. Outras combinações, resultando de uma diferença de
posição e orientação política locais, devem ter criado dificul-
dades adicionais. Tal como cada Estado pode ser dividido em
diferentes distritos e os seus cidadãos em diferentes classes, o
que origina interesses em conflito e invejas locais, também as
diferentes partes dos Estados Unidos se distinguem umas das
outras por uma variedade de circunstâncias que produzem
um efeito idêntico a uma escala maior. E apesar de esta varie-
dade de interesses, por razões suficientemente explicadas num
artigo precedente\ poder ter uma influência salutar na adminis-

4 Ver artigo 10. GC).

[336]
tração do governo quando formado, ainda assim toda a gente
deve ser sensível à influência oposta que deve ter sido experi-
mentada na tarefa de o formar.
Não seria maravilhoso se, debaixo da pressão de todas
estas dificuldades, a Convenção tivesse sido obrigada a alguns
desvios em relação a essa estrutura artificial e a essa simetria
regular que uma visão abstracta do assunto podia levar um
teórico engenhoso a conferir a uma Constituição planeada
no seu gabinete ou na sua imaginação? A verdadeira maravilha
é que tantas dificuldades tenham sido superadas, e superadas
com urna unanimidade quase tão sem precedentes como deve
ter sido inesperada. É impossível que qualquer homem honesto
reflicta nesta circunstância sem partilhar este espanto. É impos-
sível ao homem de reflexão piedosa não perceber nela um
dedo dessa mão Todo-Poderosa que tem sido estendida tão
frequente e assinaladamente para nosso alívio nos palcos críticos
da revolução. Tivemos ocasião, num artigo anterior, de tomar
conhecimento das repetidas tentativas mal sucedidas que foram
feitas na HolandaS para reformar os funestos e notórios vícios
da sua Constituição. A história de quase todos os grandes
conselhos e consultas realizados pelo género humano para
reconciliar as suas opiniões discordantes, acalmar as suas invejas
mútuas e harmonizar os seus respectivos interesses, é uma
história de facções, contendas, e desapontamentos, e pode
ser classificada entre as mais negras e degradadas imagens que
mostram as enfermidades e depravações do carácter humano.
Se, em alguns raros casos dispersos, é apresentado um aspecto
mais brilhante, ele serve apenas como excepção para nos
advertir da verdade geral, e por meio do seu brilho serve para
obscurecer o pessimismo da perspectiva adversa com a qual
é contrastado. Ao ponderar as causas de que resultam essas
excepções e ao aplicá-las aos casos particulares diante de nós,
somos necessariamente conduzidos a duas importantes condu-

5 Ver artigo 20. QC) .

(337]
sões. A primeira é que a Convenção deve ter possuído, num
grau muito singular, uma isenção relativamente à influência
pestilenta das animosidades de partido, a doença que mais
ataca os corpos legislativos e que é a mais capaz de contaminar
a sua actividade. A segunda conclusão é a de que todas as
deputações que compunham a Convenção foram satisfatoria-
mente harmonizadas pelo texto final, ou foram induzidas a
concordar com ele por uma profunda convicção da necessidade
de sacrificar ao bem público as opiniões privadas e os interesses
parciais, e por um desespero de ver essa necessidade diminuída
por adiamentos ou por novas experiências.
PUBLIUS

[338]
O FEDERALISTA N. 0 38
[37]

Continuação do Assunto Anterior e Exposição


da Incoerência das Objecções ao Novo Plano

JAMES MADISON
12 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

N ão é coisa pouco digna de nota que em todos os casos


relatados pela história antiga, em que o governo foi estabelecido
com deliberação e consentimento, a tarefa de o estruturar
não foi entregue a uma assembleia de homens, mas foi exe-
cutada por algum cidadão individual de sabedoria preeminente
e integridade comprovada. É-nos dito que Minos foi o
fundador primitivo do governo de Creta, tal como Zaleuco
o foi do de Locros na Itália. Teseu primeiro e, depois dele,
Drácon e Sólon instituíram o governo de Atenas. Licurgo foi

* Do The Independent Journal, 12 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 15 de Janeiro tanto no The New- York Packet como no The Daily
A dvertiser, e começou a ser publicado em 25 de Janeiro, tendo sido concluído
em 26 de Janeiro, no The New- York ] ournal. Recebeu o número 38 na edição
de M cLean e o número 37 nos jornais. QC).

[339]
quem deu a lei a Esparta. A fundação do governo original de
Roma foi feita por Rómulo, e a tarefa foi completada pelos
seus sucessores eleitos, Numa e Tullius Hostilius. Com a
abolição da realeza a administração consular foi substituída
por Bruto, que avançou com um projecto para essa reforma,
o qual, alegou, tinha sido preparado por Servius Tullius, e a
sua alocução em favor desse projecto obteve o assentimento
e a ratificação do Senado e do povo. Esta observação é aplicável
também aos governos confederados. Dizem-nos que Anfictião
foi o autor daquele que traz o seu nome. A liga Acaia recebeu
a sua primeira forma de Acaio, e a segunda de Arato. Qual
era o grau de intervenção que esses reputados fazedores de
leis podiam ter na instituição delas, ou em que medida podiam
estar investidos da autoridade legítima do povo, não pode ser
determinado em todos os casos. No entanto, em alguns deles
o procedimento foi estritamente regular. Drácon parece ter
sido investido pelo povo de Atenas com poderes indefinidos
para reformar o seu governo e as suas leis. E Sólon, segundo
Plutarco, foi de certa maneira compelido, pelo sufrágio univer-
sal dos seus concidadãos, a tomar para si o poder total e absoluto
de modelar de novo a Constituição. No caso de Licurgo, os
procedimentos foram menos regulares, mas na medida em
que puderam prevalecer os defensores de uma reforma regular,
todos voltaram os olhos para os esforços singulares desse famoso
patriota e sábio, em vez de procurarem provocar uma revolução
por meio da intervenção de um corpo deliberativo de cidadãos.
De onde poderia ter derivado que um povo, cioso como o
grego era da sua liberdade, viesse a abandonar tão completa-
mente as regras da precaução ao ponto de colocar o seu destino
nas mãos de um único cidadão? De onde poderia ter derivado
que os atenienses, um povo que não suportaria que um exército
fosse comandado por menos de dez generais, e que não preci-
sava de outra prova de perigo para as suas liberdades além do
mérito ilustre de um concidadão, viesse a considerar um cida-
dão ilustre como o depositário mais aceitável dos seus destinos

[340]
e dos da sua descendência, em vez de escolher um corpo de
cidadãos de cujas deliberações comuns se poderia esperar mais
sensatez, bem como mais segurança? Estas perguntas não
podem er cabalmente respondidas sem supor que os temores
de discórdia e desunião no seio de um grupo de conselheiros
excediam o receio de traição ou incapacidade num único
indivíduo. A história informa-nos, do mesmo modo, das difi-
culdades com que esses famosos reformadores tiveram de
lutar, bem como dos expedientes que foram obrigados a
empregar para levar as suas reformas à efectivação. Sólon, que
parece ter cedido a uma política mais contemporizadora,
confessou que não tinha dado aos seus compatriotas o governo
mais bem adaptado à felicidade deles, mas o mais tolerável
para os preconceitos destes. E Licurgo, mais fiel ao seu objec-
tivo, viu-se na necessidade de misturar uma porção de violência
com a autoridade da superstição, e de garantir o seu sucesso
final por meio de uma renúncia voluntária, primeiro ao seu
país, e em seguida à sua vida. Se estas lições nos ensinam, por
um lado, a admirar o melhoramento feito pela América à
maneira antiga de preparar e estabelecer planos regulares de
governação, também não servem menos, por outro lado, para
nos lembrar os riscos e dificuldades que acompanham essas
experiências, e a grande imprudência de as multiplicar desne-
cessariamente.
É uma conjectura despropositada dizer que os erros que
possam estar contidos no plano da Convenção são tais que
resultaram mais da falta de experiência anterior neste assunto
complicado e dificil do que de uma falta de exactidão ou de
cuidado na investigação dele. E, consequentemente, são tais
que não serão descobertos até que uma experiência efectiva
os tenha salientado? Esta conjectura é tornada provável não
somente por muitas considerações de natureza geral, mas pelo
caso particular dos Artigos da Confederação. É observável
que, entre as numerosas objecções e aditamentos sugeridos
pelos vários Estados, não existe nem um que aluda ao grande

(341]
e radical erro que na experiência efectiva se evidenciou. E se
exceptuarmos as observações que Nova Jérsia foi levada a
fazer, mais pela sua situação local do que pela sua peculiar
clarividência!, pode perguntar-se se uma única sugestão tinha
importância suficiente para justificar uma revisão do sistema.
Apesar disso, existem abundantes razões para supor que essas
objecções, por mais irrelevantes que fossem, teriam sido perfi-
lhadas por alguns Estados com uma inflexibilidade muito
perigosa, se um zelo pelas suas opiniões e supostos interesses
não tivesse sido abafado pelo sentimento mais poderoso da
autopreservação. Um Estado, podemos recordá-lo, persistiu
durante vários anos em recusar a sua cooperação, embora o
inimigo tenha permanecido todo esse tempo à nossa porta,
ou melhor nas próprias entranhas do nosso país2. E nem a sua
observância final foi consequência de um motivo menor do
que o receio de poder ser acusado de prolongar as calamidades
públicas e pôr em perigo o resultado da contenda. Todo o
leitor honesto fará as reflexões apropriadas sobre estes impor-
tantes factos.
Um doente que descobre que a sua doença piora de dia
para dia e que um remédio eficaz já não pode ser adiado sem
um perigo extremo, depois de considerar friamente a sua
situação e a reputação dos diferentes médicos, escolhe e chama
aqueles que julga mais capazes de proporcionar alívio e que
merecem mais a sua confiança. Os médicos chegam, o caso

1 Em 23 de Junho de 1778, os delegados de Nova Jérsia submeteram ao


Congresso uma "representação", redigida por uma comissão conjunta da
legislatura, que apresentava várias objecções aos Artigos da Confederação
propostos. Entre outras recomendações, sugeria que fossem dados ao Congresso
poderes exclusivos para regulamentar o comércio dos Estados Unidos com as
nações estrangeiras e que as antigas terras da coroa devessem pertencer aos
Estados Unidos. A "representação", discutida no Congresso em 25 de Junho,
está transcrita nos journals oJ the Continental Congress dessa data. QC) .
2 Maryland só ratificou os Artigos da Confederação em Março de 1781.
QC).

[342)
do doente é examinado cuidadosamente e reúnem-se em
consulta. Concordam unanimemente que os sintomas são
críticos, mas que o caso, com um tratamento adequado e
atempado, está longe de ser desesperado e pode ser levado a
terminar por uma melhoria da constituição do doente. São
igualmente unânimes na prescrição do remédio por meio do
qual deverá ser produzido este feliz efeito. No entanto, assim
que a receita é conhecida, uma quantidade de pessoas inter-
põe-se e, sem negar a realidade ou perigo da doença, asseguram
ao doente que a receita será um veneno para a sua constituição,
e proíbem-no, sob pena de uma morte certa, que faça uso
dela. Não poderia o doente, com razão, pedir, antes que se
aventurasse a seguir tal conselho, que os autores dele pelo
menos concordassem entre si quanto a algum outro remédio
para substituir o proposto? E se ele achasse que eles diferiam
tanto entre si como diferiam dos seus primeiros conselheiros,
não agiria prudentemente se tentasse a experiência unani-
memente recomendada por estes últimos, de preferência a
prestar ouvidos àqueles que nem podiam negar a necessidade
de um remédio rápido nem estar de acordo quanto a propor
algum?
A América neste momento é um doente que está numa
situação assim3. Foi sensível à sua doença. Obteve conselho
regular e unânime de homens que escolheu deliberadamente.
E é avisada por outros para não seguir esse conselho sob pena
das consequências mais fatais. Os admoestadores negam a
realidade do perigo em que está? Não. Negam a necessidade
de um remédio rápido e poderoso? Não. Estão de acordo,
quaisquer dois de entre eles, quanto às suas objecções ao
remédio proposto, ou quanto ao remédio adequado para subs-

3 James Madison prepara-se para explorar a principal fraqueza dos anti-


federalistas: a ausência de uma alternativa coerente, quer ao novo plano, quer
aos «Artigos da Confederação• (E. P.).

[343]
tituir aquele? Ouçam as suas próprias palavras. Este diz-nos
que a Constituição proposta deve ser rejeitada porque não é
uma confederação dos Estados mas um governo com poder
sobre os indivíduos. Outro admite que devia ser um governo
com poder sobre os indivíduos, em certa medida, mas de
maneira nenhuma com a extensão proposta. Um terceiro
apresenta objecções, não ao governo com poder sobre os
indivíduos, nem à extensão proposta, mas à falta de uma Carta
de Direitos. Um quarto concorda com a necessidade absoluta
de uma Carta de Direitos, mas argumenta que ela deve declarar,
não os direitos pessoais dos indivíduos, mas os direitos reser-
vados aos Estados na sua capacidade política. Um quinto é
de opinião que urna Carta de Direitos, qualquer que seja a
sua forma, seria supérflua e deslocada e que o plano seria irre-
preensível se não fosse o poder fatal de regulamentar a data
e o lugar das eleições. Um objector de um Estado grande
clama em alta voz contra a despropositada igualdade de repre-
sentação no Senado. Um objector de um Estado pequeno
clama também alto contra a perigosa desigualdade na Câmara
dos Representantes. Deste quadrante somos assustados com
a assombrosa despesa provocada pela quantidade de pessoas
que vão administrar o novo governo. De outro quadrante, e
por vezes do mesmo quadrante, noutra ocasião, o clamor é
que o Congresso não será mais do que a sombra de uma repre-
sentação, e que o Governo se exporia a muito menos objec-
ções se o número de membros e a despesa fossem duplicados.
Um patriota num Estado que não tem importações nem
exportações discerne objecções insuperáveis ao poder de
tributação directa. O patriótico adversário de um Estado de
muita exportação e importação está não menos insatisfeito
com o facto de que todo o fardo dos impostos possa recair
sobre o consumo. Este político descobre na Constituição uma
tendência directa e irresistível para a monarquia. Aquele está
igualmente seguro de que ela acabará na aristocracia. Outro
tem dificuldade em dizer qual destas duas formas ela assumirá

[344]
em definitivo, mas vê claramente que tem de ser uma ou
outra delas. Ao passo que não falta um quarto que, com não
menos confiança, afirma que a Constituição está tão longe
de mostrar uma parcialidade em relação a qualquer destes dois
perigos, que o peso de um lado não será suficiente para a
manter de pé e firme contra as suas propensões opostas. Com
outra classe de adversários da Constituição, a linguagem é
que os departamentos legislativo, executivo e judicial estão
misturados de maneira a contradizer todas as ideias de governo
regular e todas as precauções indispensáveis a favor da liberdade.
Embora esta objecção circule em expressões vagas e gerais,
não são poucos os que lhe dão o seu acordo. Deixemos que
cada um se apresente com a sua explicação particular, e
dificilmente encontraremos quaisquer dois que estejam de
acordo sobre o assunto. Aos olhos de um, a junção do Senado
com o Presidente na função responsável de nomear para cargos,
em lugar de conferir este poder executivo apenas ao Executivo,
é a parte viciosa da organização. Para outro, a exclusão da
Câmara dos Representantes, de que o número de membros
é o único a poder ser uma garantia conveniente contra a cor-
rupção e a parcialidade no exercício de um tal poder, é igual-
mente obnóxia. Com outro, a inclusão do Presidente em
qualquer porção de poder que deve sempre ser um mecanismo
perigoso nas mãos do magistrado executivo é uma imperdoável
violação das máximas do zelo republicano. Não há nenhuma
parte das disposições, segundo alguns, que seja mais inadmissível
do que o julgamento de impugnações pelo Senado, que é um
membro tanto do departamento legislativo como do judicial,
alternadamente. Concordamos plenamente, respondem outros,
com a objecção a esta parte do plano, mas nunca poderemos
concordar que a entrega das impugnações à autoridade judicial
seja uma correcção do erro. O que principalmente nos desa-
grada na organização provém dos extensos poderes já depo-
sitados nesse departamento. Mesmo entre os zelosos defensores
de um conselho de Estado descobre-se o desacordo mais irre-

[345]
conciliável a respeito do modo como ele deveria ser cons-
tituído. Um indivíduo reclama que o conselho deva consistir
em um pequeno número de pessoas nomeadas pelo ramo
mais numeroso da Legislatura. Outro preferiria um número
maior e põe como condição fundamental que a nomeação
seja feita pelo próprio Presidente.
Como isso não pode causar qualquer melindre aos que
escrevem contra o plano da Constituição Federal, suponhamos
que tal como eles são os mais zelosos são também os mais
sagazes de entre aqueles que pensam que a recente Convenção
não estava à altura da tarefa que lhe foi acometida, e que um
plano mais sensato e melhor podia e devia substituir o que
ela propôs. Suponhamos além disso que o seu país concordasse
tanto com esta opinião favorável sobre os seus méritos como
com a sua opinião desfavorável acerca da Convenção, e
procedesse em conformidade formando com eles uma segunda
Convenção, com plenos poderes, e com o propósito expresso
de rever e remodelar o trabalho da primeira. Se esta experiência
fosse feita com seriedade, embora requeira algum esforço para
a ver com seriedade ainda que apenas em ficção, deixo para
ser decidido pela amostra das opiniões acabadas de exibir, se,
com toda a sua inimizade para com os seus antecessores, have-
ria algum ponto em que eles se afastariam tanto do exemplo
destes últimos como na discórdia e agitação que marcariam
as suas próprias deliberações; e se a Constituição, agora diante
do público, não teria uma probabilidade razoável de obter a
imortalidade, como a que Licurgo deu à de Esparta, por fazer
com que a sua alteração dependesse do seu próprio regresso
do exílio e da morte, se ela viesse a ser imediatamente adoptada
e devesse continuar em vigor, não até que se concordasse com
uma MELHOR, mas até que uma OUTRA viesse a ser
adoptada por essa nova assembleia de Legisladores.
É causa tanto de admiração como de mágoa que aqueles
que levantam tantas objecções contra a nova Constituição
nunca tenham meditado nos defeitos daquela que ela vem

[346]
substituir. Não é necessário que a primeira seja perfeita; é
suficiente que a última seja mais imperfeita. Nenhum homem
se recusaria a trocar latão por prata ou ouro, só porque estes
últimos continham alguma mistura. Nenhum homem se
recusaria a deixar uma habitação danificada e que ameaça
ruína em troca de uma construção fume e cómoda, só porque
a última não tinha um alpendre, ou porque algumas das divisões
podiam ser um pouco maiores ou menores, ou os tectos um
pouco mais altos ou mais baixos do que a sua imaginação os
teria planeado. Mas prescindindo de ilustrações deste tipo,
não é manifesto que a maior parte das principais objecções
alegadas contra o novo sistema se estendem com dez vezes
mais peso à Confederação existente? É perigoso um poder
indeterminado de levantar dinheiro nas mãos de um governo
federal? O presente Congresso pode fazer requisições de qual-
quer soma que deseje, e os Estados estão constitucionalmente
obrigados a satisfazê-las. Eles podem emitir cartas de crédito
desde que venham a pagar as promissórias e podem contrair
empréstimos, tanto no exterior como no interior, enquanto
lhes for emprestado um xelim. É perigoso um poder indeter-
minado para recrutar soldados? A Confederação também dá
esse poder ao Congresso e este já começou a fazer uso dele.
É incorrecto e pouco seguro misturar os diferentes poderes
do governo na mesma assembleia? O Congresso, uma única
assembleia, é o único depositário de todos os poderes federais.
É particularmente perigoso entregar às mesmas mãos as chaves
de tesouro e o comando do exército? A Confederação põe
ambos nas mãos do Congresso. Uma Carta de Direitos é
essencial para a liberdade? A Confederação não tem Carta de
Direitos. É uma objecção contra a nova Constituição que ela
conceda poderes ao Senado, com a cooperação do Executivo,
para assinar tratados que depois serão leis da nação? O Con-
gresso existente, sem qualquer controlo desse género, pode
fazer tratados que ele próprio proclamou, e muitos dos Estados
reconheceram constituírem a suprema lei da nação. A impor-

[347]
tação de escravos é permitida pela nova Constituição durante
vinte anos? Pela antiga é permitida para sempre.
Dir-me-ão que por mais perigosa que esta mistura de
poderes possa ser em teoria, ela passa a ser inofensiva através
da dependência do Congresso em relação aos Estados quanto
aos meios de a levar à prática e que, por maior que possa ser
a massa dos poderes, ela é de facto urna massa sem vida. Então,
respondo, em primeiro lugar, que a Confederação pode ser
acusada com a loucura ainda maior de declarar certos poderes
do governo federal como sendo absolutamente necessários e,
ao mesmo tempo, torná-los absolutamente sem valor. E res-
pondo em seguida que, se a União deve continuar e nenhum
governo melhor substituir o presente, os poderes efectivos
devem ser concedidos ao Congresso existente ou assumidos
por ele. Em qualquer dos casos, o contraste que acaba de ser
apresentado permanece válido. Mas isto não é tudo. Saindo
dessa massa sem vida já se desenvolveu uma excrescência do
poder que tende a realizar todos os perigos que se podem
temer de uma construção defeituosa do governo supremo da
União. Já não é matéria de especulação e expectativa o facto
de que os territórios do Oeste são uma mina de vastas riquezas
para os Estados Unidos. E apesar de eles não serem de molde
a permitir-lhes desenredar-se das suas dificuldades, no presente
ou no futuro próximo, ou a providenciar quaisquer suprimen-
tos regulares para as despesas públicas, apesar disso tudo, devem
mais tarde ser capazes, com uma gestão correcta, tanto de
tornar efectiva uma liquidação gradual da dívida pública
interna como de fornecer, durante um certo período, gene-
rosos contributos para o tesouro federal. Uma grande pro-
porção deste fundo foi já entregue por Estados individuais e
existem razões para esperar que os restantes Estados não
persistirão em negar demonstrações semelhantes da sua
equidade e generosidade. Podemos calcular, por consequência,
que uma região rica e fértil, com uma área igual à extensão
habitada dos Estados Unidos, cedo se tornará uma riqueza

[348]
nacional O Congresso assurrúu a administração dessa riqueza4.
Começou a torná-la produtiva. O Congresso empreendeu
fazer mais: tratou de formar novos Estados, erigir governos
temporários, nomear funcionários para eles, e prescrever as
condições sob as quais esses Estados deverão ser admitidos na
Confederação. Tudo isto foi feito e sem a núnirna base de
autoridade constitucional. E no entanto nenhuma censura
foi murmurada, nenhum rebate foi dado. Um fundo de receita
GRANDE e INDEPENDENTE está a passar para as mãos de uma
ÚNICA ASSEMBLEIA, que pode RECRUTAR TROPAS em QUAN-
TIDADE INDETERMINADA, e apropriar-se do dinheiro para a
sua manutenção por um PERÍODO INDETERMINADO DE TEMPO .
E todavia existem homens que não só foram espectadores
silenciosos desta situação, mas são defensores do sistema que
a exibe e, ao mesmo tempo, alegam contra o novo sistema as
objecções que ouvimos. Será que eles não agiriam com maior
consistência alegando o estabelecimento deste último como
não menos necessário para proteger a União contra os poderes
e recursos futuros de um corpo constituído como o Congresso
existente do que para a salvar dos perigos que a ameaçam em
virtude da presente impotência dessa assembleia?
Não tenho a intenção, com nada do que foi dito, de lançar
uma censura sobre as medidas que foram seguidas pelo Con-
gresso. Tenho consciência que não poderiam ter feito de outro
modo. O interesse público e a necessidade do momento impu-
seram-lhe a tarefa de saltar por cima dos seus limites cons-
titucionais. Mas não é este facto uma demonstração alarmante
do perigo que resulta de um governo que não possui poderes
regulare comensuráveis com os seus objectivos? Uma disso-
lução ou uma usurpação é o terrível dilema ao qual esse
governo está continuamente exposto.
PUBLIUS

4 Madison refere-se à Northwest Ordina~JCe. Ver artigo 7. (E. P.) .

[349]
O FEDERALISTA N." 39
[38]

Conformidade do Plano
com os Princípios Republicanos

JAMES MADISON
16 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Tendo o último artigo concluído as observações cuja


intenção era efectuar uma introdução ao exame desinteressado
do plano de governo apresentado pela Convenção, prossegui-
mos agora para a execução dessa parte da nossa tarefa. A pri-
meira questão que se apresenta é a de saber se a forma e o
aspecto gerais do governo são estritamente republicanos.
É evidente que nenhuma outra forma seria reconciliável com
o carácter do povo da América, com os princípios funda-
mentais da revolução, ou com essa honrosa determinação que

* Do Th e Independent journal, 16 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado no mesmo dia no The Daily Advertiser, em 18 de Janeiro no Th e
New- York Packet, e em 30 de Janeiro no Th e N ew- York Journal . Recebeu o
número 39 na edição de McLean e 38 nos jornais, com excepção do The New-
Yorkjournal onde teve o número 37 e foi o último artigo a ser publicado. QC) .

[351]
anima todos os devotos da liberdade, a de assentar todas as
nossas experiências políticas na capacidade do género humano
para o autogoverno. Por conseguinte, se se descobrir que o
plano da Convenção se afasta das características republicanas,
os seus defensores devem abandoná-lo como deixando de
poder ser defendido.
Quais são então as características distintivas da forma
republicana? Se tivesse que ser procurada uma resposta a esta
pergunta, não por recurso aos princípios, mas na aplicação
do termo pelos escritores políticos à Constituição de diferentes
Estados, nunca poderia ser encontrada uma resposta satisfatória.
À Holanda, na qual nem uma partícula da autoridade suprema
emana do povo, foi quase universalmente dada a denominação
de república. O mesmo título foi conferido a Veneza, onde
o poder absoluto sobre o grande corpo do povo é exercido,
da maneira mais absoluta, por um pequeno punhado de nobres
hereditários. A Polónia, que é uma mistura de aristocracia e
monarquia nas suas piores formas, foi dignificada com a mesma
designação. O governo da Inglaterra, que tem apenas um
ramo republicano combinado com uma aristocracia e uma
monarquia hereditárias, tem sido, com idêntica incorrecção,
posto na lista das repúblicas. Estes exemplos, que são quase
tão dissemelhantes uns dos outros como de uma república
genuína, mostram a extrema imprecisão com que o termo
tem sido usado em investigações políticas.
Se usarmos como critério os diferentes princípios nos
quais são fundadas diferentes formas de governo, podemos
definir, ou pelo menos designar por esse nome, uma república
como sendo um governo que deriva todos os seus poderes
directa ou indirectamente do grande corpo do povo e é admi-
nistrado por pessoas que detêm os seus cargos enquanto
aprouver ao povo, por um período limitado, ou enquanto
procederem bem. É essencial para um governo assim que ele
seja derivado de uma grande parte da sociedade, e não de
uma proporção não considerável, ou de uma classe favorecida

(352]
dela. De outro modo, um punhado de nobres tirânicos, exer-
cendo a opressão através de uma delegação dos seus poderes,
poderia aspirar à dignidade republicana, e reclamar para o seu
governo o honroso título de república. É suficiente para um
governo republicano que as pessoas que o administram sejam
escolhidas, directa ou indirectamente, pelo povo e que dete-
nham os seus cargos por qualquer dos modos de posse acabados
de especificar. De outro modo qualquer governo dos Estados
Unidos, tal como qualquer outro governo popular que tenha
sido ou possa ser bem organizado e bem posto em prática,
seria rebaixado do carácter republicano. De acordo com a
Constituição de cada um dos Estados da União, um ou outro
dos funcionários do governo é escolhido pelo povo apenas
indirectamente. Segundo muitas delas, o próprio supremo
magistrado é escolhido desse modo. E segundo uma, este
modo de escolha é alargado a um dos ramos coordenados da
legislatura. Segundo todas as Constituições, também, o
mandato dos cargos mais elevados estende-se a um período
definido, e em muitos casos, tanto dentro da legislatura como
dos departamentos executivos, a um período de alguns anos.
Segundo as cláusulas da maior parte das Constituições, uma
vez mais, bem como segundo as opiniões mais respeitáveis e
aceites sobre o assunto, os membros do departamento judicial
retêm os seus cargos pelo mandato firme do bom cum-
primento.
Comparando a Constituição planeada pela Convenção
com o critério aqui fixado, percebemos imediatamente que
ela está, no sentido mais rígido, em conformidade com ele.
A Câmara dos Representantes, tal como acontece para pelo
menos um ramo de todas as legislaturas estaduais, é eleita
directamente pelo grande corpo do povo. Para o Senado, tal
como para o presente Congresso, e para o Senado de Maryland,
a sua escolha depende indirectamente do povo. O Presidente
depende indirectamente da escolha do povo, em conformidade
com o exemplo da maior parte dos Estados. Até os juízes,

(353]
com todos os outros funcionários da União, serão, tal como
nos diversos Estados, uma escolha, embora uma escolha remota,
do próprio povo, e a duração dos seus cargos é também con-
forme ao critério republicano, e ao modelo das Constituições
dos Estados. A Câmara dos Representantes é eleita perio-
dicamente, como em todos os Estados, e por um período de
dois anos, como no Estado da Carolina do Sul. O Senado é
electivo por um período de seis anos, que é apenas mais um
ano do que o período do Senado de Maryland e apenas mais
dois do que o dos Senados de Nova Iorque e da Virgínia.
O Presidente mantém-se no cargo por um período de quatro
anos. Tal como em Nova Iorque e Delaware, o supremo
magistrado é eleito por três anos, e na Carolina do Sul por
dois. Nos outros Estados a eleição é anual. Em vários dos
outros Estados, todavia, não existe nenhuma disposição cons-
titucional para a impugnação do magistrado principal. E no
Delaware e na Virgínia ele não pode ser impugnado até
abandonar o cargo. O Presidente dos Estados Unidos é
impugnável em qualquer momento durante a sua permanência
no cargo. O mandato que os juízes recebem para os seus car-
gos é, e deve inquestionavelmente ser, o do bom cumprimento.
A duração do mandato dos cargos ministeriais em geral será
objecto de regulamentação legal, em conformidade com a
razão do caso e o exemplo das Constituições dos Estados 1 .
Se viesse a ser exigida mais alguma prova do carácter repu-
blicano deste sistema, a mais decisiva de entre elas poderia ser
encontrada na sua proibição absoluta de títulos de nobreza,
tanto sob a autoridade do governo federal como sob a dos
Estados, e na garantia expressa destes últimos de adoptarem
a forma republicana.

1 Através da sua análise, Madison manifesta o modo como a Constituição

do EUA incorpora no seu conteúdo a experiência constitucional dos Estados,


mantendo, mesmo depois da sua ratificação, uma viva relação com essa expe-
riência. (E. P.) .

[354)
Mas não era suficiente, dizem os adversários da Constitui-
ção proposta, que a Convenção aderisse à forma republicana.
Deviam, com o mesmo cuidado, ter preservado a forma federal,
que vê a União como uma confederação de Estados soberanos.
Em vez disso conceberam um governo nacional que vê a União
como uma consolidação dos Estados. E pergunta-se com que
autoridade foi adoptada essa arrojada e radical inovação.
O emprego que foi feito desta objecção exige que ela deva
ser examinada com algum cuidado2.
Sem inquirir da exactidão da distinção em que é fundada
a objecção, será necessário para uma avaliação justa da sua
força: primeiro, indagar o carácter real do governo em questão;
segundo, inquirir em que medida é que a Convenção estava
autorizada a propor um tal governo; e terceiro, em que medida
a obrigação que deviam ao seu país podia suprir qualquer
falta de autoridade adequada.
Primeiro. Para indagar o carácter real do governo, este
pode ser considerado em relação com a fundação em que vai
ser alicerçado; com as fontes das quais irão derivar os seus
poderes ordinários; com o funcionamento desses poderes;
com a extensão dos mesmos; e com a autoridade por meio
da qual deverão ser introduzidas as futuras alterações do
governo.
Ao examinar a primeira relação, vê-se, por um lado, que
a Constituição deverá ser fundada no assentimento e ratificação
do povo da América, dado por deputados eleitos para esse
fim específico, mas, por outro, que esse assentimento e essa
ratificação deverão ser dados pelo povo, não como indivíduos
compondo uma única nação, mas como membros dos Estados

2 Repare-se que neste artigo Madison introduz uma importante oscilação


conceptual. A tensão já não é entre os pólos federal e estadual, mas entre os
pólos nacional e federal. O conceito de "federal" ocupa aqui uma posição análoga
à do pólo "estadual" na primeira tensão. Com efeito, na dialéctica nacio-
nal/ federal, "federal" é o que resulta da acção política protagonizada pelos
Estados e suas direcções políticas. (E. P.).

[355]
distintos e independentes a que eles respectivamente perten-
cem. Deverá ser o assentimento e a ratificação dos vários
Estados, derivados da autoridade suprema em cada Estado -
da autoridade do próprio povo. Por conseguinte, a lei estabele-
cendo a Constituição não será uma lei nacional mas sim federal.
Que será uma lei federal e não nacional, tal como esses
termos são entendidos pelos objectores, uma lei do povo,
enquanto formando outros tantos Estados independentes, e
não enquanto formando uma nação agregada, é óbvio a partir
desta simples consideração que essa lei não deve resultar nem
da decisão de uma maioria do povo da União, nem da de uma
maioria dos Estados. Deve resultar do assentimento unânime
dos diversos Estados que são partes da União, não diferindo
em nada do seu assentimento ordinário, excepto quanto a ser
expresso, não pela autoridade legislativa, mas pela do próprio
povo. Se o povo fosse visto nesta transacção como formando
uma só nação, a vontade da maioria de todo o povo dos
Estados Unidos obrigaria a minoria, da mesma maneira que
a maioria em cada Estado obriga a minoria. E a vontade da
maioria deve ser determinada quer por uma comparação dos
votos individuais, quer considerando a vontade da maioria
dos Estados como prova da vontade da maioria do povo dos
Estados Unidos. Nenhuma destas regras foi adoptada. Cada
Estado, ao ratificar a Constituição, é considerado como um
corpo soberano, independente de todos os outros, obrigado
apenas pelo seu próprio acto voluntário. Neste aspecto, por-
tanto, a nova Constituição será, se for instituída, uma Consti-
tuição federal e não nacional.
A relação seguinte é com as fontes de onde deverão provir
os poderes ordinários do governo3. A Câmara dos Represen-

3 G overnment, no original. ' Governo' é aqui usado, como acontece na


tradição política anglo-saxónica, num sentido mais lato do que o simples poder
executivo (demarcando-se das esferas legislativa e judicial), significando o
conjunto do sistema político e institucional federal." (E. P.) .

(356]
tantes derivará os seus poderes do povo da América, e o povo
estará representado na mesma proporção, e com o mesmo
princípio, em que está representado na legislatura de um
Estado particular. Até aqui, o governo é nacional, e não federal.
O Senado, por outro lado, derivará os seus poderes dos Estados
enquanto sociedades políticas e co-iguais, e estes estarão
representados no Senado em conformidade com o princípio
da igualdade, como o estão agora no Congresso existente.
Nesta medida, o governo é federal, e não nacional. O poder
executivo provirá de uma fonte muito complexa. A eleição
directa do Presidente deverá ser feita pelos Estados na sua
qualidade política. Os votos que lhes são atribuídos estão
numa razão complexa, que os considera em parte como socie-
dades distintas eco-iguais, e em parte como membros desiguais
da mesma sociedade. A eleição final, uma vez mais, deverá
ser feita por esse ramo da legislatura que é composto pelos
represen tantes nacionais, mas neste acto particular esses
representantes serão agrupados na forma de delegações indivi-
duais, de outros tantos corpos políticos distintos e co-iguais.
Julgando por este aspecto do governo ele mostra ser de um
carácter misto, apresentando pelo menos tantas características
f ederais como nacionais.
Supõe-se que a diferença entre um governo federal e um
nacional, no que se relaciona com o funcionamento do governo,
consiste nisto: que no primeiro os poderes operam sobre os
corpos políticos que compõem a Confederação, nas suas capa-
cidades políticas; no último, sobre os cidadãos individuais que
compõem a nação, nas suas capacidades individuais. Ao julgar
a Constituição por este critério, ela inclui-se no carácter
nacional, e não no federal, embora talvez não tão completamente
como foi compreendido. Em vários casos, e em particular no
julgamento de controvérsias em que os Estados possam ser
partes, estes devem ser vistos e deve proceder-se contra eles
apenas nas suas capacidades colectivas e políticas. Até aqui o
carácter nacional do governo neste aspecto parece ser desfi-

(357]
gurado por algumas características federais. Mas este defeito
é talvez inevitável em qualquer plano, e a operação do governo
sobre o povo, nas suas capacidades individuais, nos seus
procedimentos ordinários e mais essenciais, pode, tudo sornado,
designá-lo, quanto a esta relação, como um governo nacional.
Mas se o Governo é nacional no que toca à operação dos
seus poderes, muda de novo de aspecto quando o contempla-
mos em relação com a extensão desses poderes. A ideia de um
Governo nacional envolve em si, não apenas uma autoridade
sobre os cidadãos individuais, mas uma supremacia ilimitada
sobre todas as pessoas e coisas, na medida em que estes forem
objectos de Governo legal. Num povo consolidado numa só
nação, esta supremacia está inteiramente investida na Legislatura
nacional. Nas comunidades unidas para fins particulares, está
investida em parte na Legislatura geral, em parte nas Legislaturas
municipais. No primeiro caso, todas as autoridades locais estão
subordinadas à autoridade suprema e podem ser controladas,
dirigidas ou abolidas por ela a seu bel-prazer. No último, as
autoridades locais ou municipais constituem porções distintas
e independentes da supremacia, não mais submetidas, dentro
das suas esferas respectivas, à autoridade geral do que a autori-
dade geral está submetida a elas, dentro da sua própria esfera.
Nesta relação o Governo proposto não pode ser apelidado de
nacional, dado que a sua jurisdição se estende apenas a certos
objectos enumerados, e deixa aos vários Estados uma soberania
residual e inviolável sobre todos os outros objectos. É verdade
que em controvérsias que respeitam à fronteira entre as duas
jurisdições, o tribunal que deverá decidir em última instância
é instituído pela autoridade do Governo geral. Mas isto não
altera o princípio do caso. A decisão deverá ser tomada impar-
cialmente, de acordo com as regras da Constituição, e são
tomadas todas as precauções habituais e mais eficazes para
garantir essa imparcialidade. Um qualquer tribunal deste
género é claramente essencial para impedir um apelo à espada,
e a uma dissolução do contrato [original]. E que ele deva ser

[358]
instituído pelo Governo geral, de preferência aos Governos
locais, ou, para falar mais propriamente, que ele só pode ser
instituído com segurança pelo primeiro de entre eles, é uma
posição que não é provável que seja atacada.
Se julgarmos a Constituição pela última relação, com a
autoridade pela qual deverão ser feitos os aditamentos4, desco-
brimos que ela nem é inteiramente nacional, nem inteiramente
federal. Se fosse inteiramente nacional, a autoridade suprema
e de última instância residiria na maioria do povo da União,
e essa autoridade seria sempre competente, à semelhança da
de uma maioria de qualquer sociedade nacional, para alterar
ou abolir o seu Governo instituído. Por outro lado, se fosse
inteiramente federal, a concordância de todos os Estados da
União seria essencial para cada alteração que os obrigasse a
todos. O modo providenciado pelo plano da Convenção não
é fundado em nenhum destes princípios. Ao exigir mais do
que uma maioria, e em particular, ao calcular a proporção
por Estados, e não por cidadãos, afasta-se do carácter nacional,
e avança em direcção ao federal; ao tornar suficiente a con-
cordância de menos do que o número total de Estados, perde
novamente o carácter federal, e partilha do carácter nacional.
A Constituição proposta, por conseguinte, não é estrita-
mente nem uma Constituição nacional nem uma Constituição
federal, mas uma composição das duas. Na sua fundação, é
federal e não nacional; nas fontes de que derivam os poderes
ordinários do Governo, é em parte federal e em parte nacional;
na operação desses poderes, é nacional, e não federal: e por
fim, no modo autorizado de introduzir aditamentos, nem é
inteiramente federal, nem inteiramente nacional.
PUBLIUS

4 Amendments no original . A tradução por "aditamentos" parece- nos


mais rigorosa, do ponto de vista do direito constitucional, do que a expressão
"emendas", muitas vezes usada. (E. P.) .

[359]
O FEDERALISTA N. 0 40
[39]

Exame e Defesa dos Poderes da Convenção


para Formar um Governo Misto

JAMES MADISON
18 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O segundo ponto a exanúnar é se a Convenção estava man-


datada para estruturar e propor esta Constituição mista.
Os poderes da Convenção deviam, num sentido estrito,
ser determinados por um exame das instruções dadas aos seus
membros pelos respectivos constituintes. No entanto, como
todos estes tiveram como referência quer a recomendação do
encontro de Annapolis, em Setembro de 1786, quer a do
Congresso em Fevereiro de 1787, será suficiente recorrer a
estes dois decretos particularest.

* Do Tile New- York Packet, 18 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 19 de Janeiro tanto no TIIe Independent Journal como no TI!e Daily Advertiser.
Recebeu o número 40 na edição de McLean e o número 39 nos jornais. GC) .
1 Em Setembro de 1786, Madison e Hamilton foram membros destacados

numa Convenção que reuniu representantes de apenas cinco Estados, em

[361]
O decreto de Annapolis recomenda que "a escolha de
comissários tome em consideração a situação dos Estados
Unidos, para delinearem as providências adicionais que lhes
pareçam necessárias para tornar a Constituição do Governo
Federal adequada às exigências da União. E para apresentarem
aos Estados Unidos reunidos em Congresso um texto para
esse fim de tal modo que, quando obtivesse a concordância
do Congresso e fosse depois confirmado pela Legislatura de
cada Estado, servisse eficazmente para esse governo".
O acto de recomendação do Congresso é do seguinte
teor: "Visto que existem cláusulas nos artigos da Confederação
e União perpétua, para que lhes sejam feitas alterações, com
a concordância de um Congresso dos Estados Unidos e das
legislaturas dos vários Estados; e visto que a experiência pôs
em evidência que existem defeitos na Confederação presente
e que, como meio de remediar essa situação, vários dos Estados,
e em particular o Estado de Nova Iorque, através de instruções
expressas aos seus delegados no Congresso, sugeriram uma
Convenção com os objectivos expressos na resolução que se
segue e que essa Convenção aparenta ser o meio mais provável
de estabelecer nestes Estados um governo nacional firme.

Annapolis, Maryland, cujo objecto consistia em encontrar uma regulamentação


comercial comum para os treze Estados. Foi na base dos resultados inconclusivos
dessa Convenção, que o Congresso elaborou, em Fevereiro de 1787, a reco-
mendação que conduziria à realização da Convenção de Filadélfia. É de salientar
que o mandato inicial, que era o de "rever os Artigos da Confederação" , foi
ultrapassado, em menos de uma semana, pela necessidade, partilhada pela
maioria dos delegados dos doze Estados presentes (Rhode Island manteve-se
à margem do processo), de introduzir reformas tão profundas que acabariam
por equivaler a uma nova Lei Fundamental. Neste artigo, Madison demonstra,
magistralmente, que a alteração do mandato, no que diz respeito à sua letra,
era autorizada pelo respeito pelo esplrito do mandato: a finalidade de preservar
a União. Acresce ainda, que o futuro Presidente dos EUA tem o cuidado de
salientar os pontos de continuidade existentes entre os «Artigos da Confederação•
e a nova Constituição proposta. (E. P.).

[362]
Aprovado que na opinião do Congresso é oportuno que
na segunda segunda-feira de Maio próximo se reúna em
Filadélfia uma Convenção de delegados, que deverão ter sido
nomeados pelos vários Estados, com o objectivo único e
expresso de rever os artigos da confederação, e apresentar ao
Congresso e às várias Legislaturas as alterações a estes e as dispo-
sições, que deverão, quando receberem o acordo do Congresso
e forem confirmadas pelos Estados, tornar a Constituição
Federal adequada às exigências do governo e da preservação da
União."
Destes dois decretos resulta que: primeiro, o objectivo da
Convenção era estabelecer, nestes Estados, um governo nacional
firme; segundo, que esse governo devia ser tal que fosse adequado
às exigências da governação e à preservação da União; terceiro, que
esses objectivos deviam ser alcançados por meio de alterações
e disposições nos artigos da Confederação, tal como é expresso no
decreto do Congresso, ou por meio das disposições adicionais
que se apresentem como necessárias, como sobressai da recomen-
dação de Annapolis; quarto, que as alterações e disposições
deveriam ser comunicadas ao Congresso e aos Estados, para
serem aprovadas pelo primeiro e confirmadas pelos últimos.
De uma comparação e de uma interpretação justa destes
vários modos de expressão, deve ser deduzida a autoridade
com que agiu a Convenção. Ela tinha de estruturar um governo
nacional, adequado às exigências da governação e da União, e de
reduzir os artigos da Confederação a uma forma tal que cum-
prisse estes objectivos.
Existem duas regras de interpretação, ditadas pela simples
razão, bem como fundadas em axiomas legais. A primeira é
que deve, se possível, ser concedido algum significado a todas
as partes da expressão, e que elas devem convergir para algum
fim comum. A outra é que, quando as várias partes não podem
ser trazidas à coincidência, a parte menos importante deve
ceder o passo à mais importante e os meios devem ser sacrifi-
cados ao fim, de preferência a sacrificar o fim aos meios.

[363]
Suponha-se então que as expressões que definem a auto-
ridade da Convenção eram irreconciliavehnente divergentes
umas das outras e que não era possível, na opinião da Conven-
ção, instituir um governo nacional e adequado por meio de
alterações e disposições aos artigos da Confederação. Que parte da
definição é que deveria ter sido adoptada, e qual rejeitada?
Qual era a parte mais importante, e qual a menos importante?
Qual é que era o fim? Quais os meios? Deixem que respondam
a estas questões os mais escrupulosos expositores dos poderes
delegados, os mais inveterados objectores aos poderes exercidos
pela Convenção. Deixem que eles declarem se era ou não da
maior importância para a felicidade do povo da América que
os Artigos da Confederação devessem ser desprezados e que
fosse providenciado um governo adequado e preservada a
União, ou que um governo adequado fosse abandonado e
preservados os Artigos da Confederação. Deixem que eles
declarem se a preservação desses artigos era o fim, para segu-
rança do qual devia ser introduzida como meio uma reforma
do governo, ou se o estabelecimento de um novo governo,
adequado à felicidade nacional, era o fim a que almejavam
originalmente esses artigos e ao qual eles deviam, enquanto
meios insuficientes, ter sido sacrificados.
Mas é necessário supor que essas expressões são absoluta-
mente irreconciliáveis umas com as outras e que nenhumas
alterações ou disposições nos Artigos da Confederação tinham a
menor possibilidade de os moldar num governo nacional e
adequado, num governo como aquele que foi proposto pela
Convenção?
Presume-se que, neste caso, nenhum acento tónico é posto
no título. Uma mudança deste nunca poderia ser julgada um
exercício de um poder não conferido. As alterações no corpo
do instrumento são expressamente autorizadas. As novas dispo-
sições são também expressamente autorizadas. Aqui está, pois,
uma autoridade para mudar o título, para inserir artigos novos,
para alterar os velhos. É obrigatório admitir que essa autoridade

[364)
foi infringida enquanto restar uma parte dos velhos artigos?
Os que sustentam a afirmativa deviam pelo menos marcar a
fronteira entre as inovações autorizadas e as usurpadas, entre
esse grau de mudança que está abrangido pelas alterações e
disposições adicionais e aquele que equivale a uma transmutação
do governo. Dir-se-á que as alterações não deviam ter tocado
a substância da Confederação? Os Estados nunca teriam man-
datado uma Convenção com tanta solenidade, nem descrito
os seus objectivos com tanta latitude, se não estivesse no seu
horizonte uma certa reforma substancial. Dir-se-á que os
prindpios fundamentais da Confederação não estavam dentro
da esfera de acção da Convenção, e não deviam ter sido altera-
dos? Pergunto, quais são esses princípios? Exigem que, no
estabelecimento da Constituição, os Estados sejam vistos como
soberanos distintos e independentes? São vistos dessa maneira
pela Constituição proposta. Exigem que os membros do
governo derivem os seus poderes das Legislaturas, e não do
povo do Estado? Um ramo do novo governo deverá ser esco-
lhido por essas legislaturas e, ao abrigo da Confederação, os
delegados ao Congresso podem ser todos escolhidos imediata-
mente pelo povo, e em dois Estados2 são efectivamente esco-
lhidos desse modo. Exigem que os poderes do governo devam
operar sobre os Estados, e não imediatamente sobre os indiví-
duos? Em alguns casos, como foi mostrado, os poderes do
novo governo actuarão sobre os Estados na sua capacidade
colectiva. Em alguns casos, também, os do governo existente
operam directamente sobre os indivíduos. Em casos de captura,
de pirataria, no caso dos correios, das moedas, dos pesos e
medidas, do comércio com os índios, de pretensões ao abrigo
da concessão de terras por diferentes Estados, e, acima de
tudo, no caso de julgamentos em conselho de guerra no exér-
cito e na marinha, através dos quais pode ser infligida a morte
sem intervenção de um júri, ou mesmo de um Magistrado

2 Connecticut e Rhode lsland. (Publius)

[365]
civil- em todos estes casos os poderes da Confederação operam
directamente sobre as pessoas e os interesses de cidadãos indi-
viduais. Esses princípios fundamentais exigem, em particular,
que nenhum imposto seja lançado sem a actuação intermediária
dos Estados! A própria Confederação autoriza um imposto
directo, dentro de certos limites, sobre o correio. O poder
de cunhar moeda foi interpretado pelo Congresso de modo
a servir para cobrar imediatamente um tributo também dessa
fonte. Mas pondo de parte esses casos, não era um objectivo
reconhecido da Convenção e uma expectativa universal do
povo, que a regulamentação do comércio devesse ser submetida
ao governo geral de tal forma que constituísse uma fonte
imediata de receita geral? Não tinha o Congresso recomendado
repetidamente esta medida como não sendo inconsistente
com os princípios fundamentais da Confederação? Não tinham
todos os Estados menos um, não tinha o próprio Estado de
Nova Iorque, pactuado com o plano do Congresso ao ponto
de reconhecer o prindpio da inovação? Por fim, estes princípios
exigem que os poderes do governo geral sejam limitados e
que, para além desse limite, os Estados sejam deixados na
posse da sua soberania e independência? Vimos que no novo
governo, tal como no antigo, os poderes genéricos são limi-
tados, e que os Estados, em todos os casos não enumerados,
continuam a gozar da sua jurisdição soberana e independente.
A verdade é que os grandes princípios da Constituição
proposta pela Convenção podem ser considerados menos
como sendo absolutamente novos do que como uma expansão
de princípios que estão contidos nos Artigos da Confederação.
A desgraça sob este último sistema foi que esses princípios
são tão fracos e confinados que justificam todas as acusações
de ineficiência que foram alegadas contra eles, e que requerem
um grau de alargamento que dá ao novo sistema o aspecto
de uma transformação total do velho.
Há um aspecto particular em que se admite que a Conven-
ção se afastou do teor da sua incumbência. Em vez de apre-

[366]
sentar um plano exigindo a confirmação das Legislaturas de
todos os Estados, apresentou um plano que é para ser confirmado
pelo povo, e pode ser aprovado por apenas nove Estados. É digno
de nota que esta objecção, embora sendo a mais plausível, foi
a última a ser alegada nas publicações que enxamearam contra
a Convenção. A abstenção só pode ter provido de uma con-
vicção irresistível do absurdo que é submeter o destino de
doze Estados à perversidade ou corrupção de um décimo
terceiro, do exemplo da oposição inflexível dado por uma
maioria de um sessenta avos do povo da América3 a uma medida
aprovada e exigida pela voz de doze Estados, abrangendo
cinquenta e nove sessenta avos do povo, um exemplo ainda
fresco na memória e indignação de todos os cidadãos que se
lamentam pela honra ferida e pela prosperidade do seu país.
Por consequência, como esta objecção foi de certa maneira
agitada or aqueles que criticaram os poderes da Convenção,
afasto-a sem mais comentários.
O terceiro ponto a ser examinado é o de saber em que
medida é que as considerações de dever, resultantes do pró-
prio caso, poderiam ter suprido algum defeito de autoridade
adequada.
Nas investigações precedentes os poderes da Convenção
foram analisados e postos à prova com o mesmo rigor, e
segundo as mesmas regras, como se tivessem sido poderes
reais e definitivos para o estabelecimento de uma Constituição
para os Estados Unidos. Vimos dessa maneira que eles aguen-
taram a prova mesmo com essa suposição. É agora tempo de
recordar que os poderes eram meramente consultivos e reco-
mendatórios, que era essa a intenção dos Estados, e que assim
foi entendido pela Convenção. E que esta última, de acordo
com isso, planeou e propôs uma Constituição que não tem
mais importância do que o papel em que está escrita, a menos

3 A referência é a Rhode Island, o único Estado que se tinha recusado


a enviar delegados à Convenção Federal. QC).

[367]
que seja selada com a aprovação daqueles a quem é dirigida.
Esta reflexão coloca o assunto numa perspectiva completa-
mente diferente, e perrnitir-nos-á ajuizar com justeza acerca
do curso tomado pela Convenção.
Olhemos para a base em que assentou a Convenção. Pode
ser coligido das actas das suas reuniões que os delegados estavam
profunda e unanimemente impressionados com a crise que
tinha levado o seu país, quase a uma só voz, a fazer uma expe-
riência tão singular e solene para corrigir os erros de um
sistema pelo qual foi produzida essa crise; que não estavam
menos profunda e unanimemente convencidos de que uma
reforma como a que propuseram era absolutamente necessária
para cumprir os objectivos para que tinham sido convocados.
Não podia ser desconhecido por eles que as esperanças e
expectativas do grande corpo de cidadãos, por todo este grande
império, estavam voltadas com a mais ávida ansiedade para o
êxito das suas deliberações. Tinham todas as razões para acredi-
tar que sentimentos contraditórios agitavam os espíritos e
corações de todos os inimigos externos e internos da liberdade
e prosperidade dos Estados Unidos. Tinham visto na origem
e no progresso da experiência o entusiasmo com que a proposta,
feita por um único Estado (Virgínia) , de uma emenda parcial
da Confederação tinha sido recebida e fomentada4. Tinham
visto a liberdade assumida por pouqu{ssimos delegados de pou-
qu{ssimos Estados, reunidos em Annapolis, de recomendar um
objectivo grande e crítico, inteiramente estranho à sua missão,
não somente justificado pela opinião pública, mas efectiva-
mente posto em prática por doze dos treze Estados. Tinham
visto, numa variedade de casos, a assunção pelo Congresso
de poderes não apenas recomendatórios mas operativos, garan-
tidos, na avaliação do público, por ocasiões e objectivos infini-

4 Maclison refere-se à convocação de uma Convenção pela Virgínia em

Annapolis, em Setembro de 1786, para tratar de assuntos comerciais. Ver nota


abaixo. GC).

[368]
tamente menos urgentes do que aqueles pelos quais a sua
conduta devia ser pautada. Devem ter reflectido que em todas
as grandes mudanças de governos estabelecidos, as formas
devem ceder o passo à substância, que, nesses casos, uma rígida
adesão às primeiras tornaria nominal e fiítil o direito trans-
cendente e precioso do povo a "abolir ou alterar o seu governo
como lhe possa parecer mais apropriado para conseguir a sua
segurança e felicidade,"S dado que é impossível que, espontânea
e universalmente, o povo se movimente concertadamente
para o eu objectivo. E por esse motivo é essencial que tais
mudanças sejam instituídas por algumas propostas informais e
não autorizadas, feitas por algum cidadão ou por um grupo
de cidadãos patrióticos e respeitáveis. Devem ter-se lembrado
que foi por meio deste privilégio irregular e assumido de pro-
por ao povo planos para a sua segurança e felicidade que os
Estados começaram por se unir contra o perigo de que estavam
ameaçados pelo seu antigo governo, que foram formados
Comissões e Congressos para concentrar os seus esforços e
defender os seus direitos e que foram eleitas Convenções nos
vários Estados para estabelecer as Constituições ao abrigo das
quais eles são agora governados. Nem poderia ter sido esquecido
que em parte nenhuma se viram pequenos escrúpulos intem-
pestivos, nem zelo em relação à adesão a formas vulgares,
excepto naqueles que desejavam entregar-se, sob esses disfarces,
à sua inimizade secreta para com a substância em disputa.
Devem ter conservado no espírito que, como o plano a ser
criado e proposto era para ser submetido ao próprio povo, a
desaprovação desta suprema autoridade o destruiria para sem-
pre e que a sua aprovação apagaria todos os erros e irregulari-
dades anteriores. Pode até ter-lhes ocorrido que, nos casos
em que prevalecia uma disposição para o sofisma, a sua incúria
em assumir o grau de poder neles investido, e ainda mais a
sua recomendação de todas e quaisquer medidas não garantidas

5 Declaração de Independência. (Publius).

[369]
pela sua missão, despertaria menos censura do que uma reco-
mendação imediata de uma medida inteiramente comensurável
com as exigências nacionais.
Tivesse a Convenção, debaixo de todas estas impressões,
e no meio de todas estas considerações, em vez de exercitar
uma confiança varonil no seu país, confiança com a qual tinha
sido tão peculiarmente distinguida, e de apontar um sistema
capaz, na sua opinião, de assegurar a felicidade deste, tomado
a fria e taciturna resolução de desapontar as suas ardentes
esperanças, de sacrificar a substância às formas, de entregar
os mais importantes interesses do seu país às incertezas do
adiamento ou ao acaso dos acontecimentos, e deixem-me
perguntar ao homem que pode elevar o seu espírito a uma
alta concepção, que pode acordar no seu coração uma emoção
patriótica, que juízo devia ter sido pronunciado pelo mundo
imparcial, pelos amigos do género humano, por todo o cidadão
virtuoso, acerca da conduta e carácter dessa assembleia. Ou,
se fosse um homem cuja propensão para condenar não é
susceptível de qualquer domínio, deixem-me então perguntar:
Qual a sentença que reserva para os doze Estados que usurparam
o poder de enviar delegados à Convenção, uma assembleia
inteiramente desconhecida das suas Constituições, para o
Congresso, que recomendou a convocação dessa assembleia,
desconhecida também da Confederação, e para o Estado de
Nova Iorque, em particular, que primeiro pediu insistente-
mente e depois obedeceu a esta interposição não autorizada6?
Mas, para que os objectores possam ser desarmados de
todo o pretexto, terá de conceder-se por um momento que
a Convenção nem estava autorizada pela sua missão nem
justificada pelas circunstâncias a propor uma Constituição

6 Madison estava presurnivelmente a referir-se ao memorial aprovado


pela legislatura de Nova Iorqu e em Julho de 1782 apelando para o Congresso
Continental, para que convocasse uma convenção para considerar aditan1entos
aos Artigos da Confederação. OC).

[370]
para o seu país. Decorre daqui que a Constituição, só por essa
razão, devia ser rejeitada? Se, de acordo com o nobre preceito,
é lícito aceitar um bom conselho mesmo de um inimigo,
devemos dar o ignóbil exemplo de recusar um tal conselho
mesmo quando é oferecido pelos nossos amigos? A investigação
prudente, em todos os casos, devia seguramente ser, não tanto
de quem provém o conselho, mas se o conselho é bom.
A totalidade do que foi aqui adiantado e provado é: que
a acusação, alegada contra a Convenção, de exceder os seus
poderes não tem alicerce que a suporte, excepto num caso
pouco alegado pelos objectores; que, se eles tivessem excedido
os seus poderes, estavam não só mandatados, mas era-lhes
ainda exigido, como servidores da confiança do seu país, pelas
circunstâncias em que estavam colocados, que exercessem a
liberdade que assumiram; e que, por fim, se tivessem violado
tanto os seus poderes como as suas obrigações, ao propor uma
Constituição, ela devia apesar de tudo ser adoptada, se fosse
calculada para realizar os propósitos e a felicidade do povo da
América. Em que medida se espera da Constituição esta carac-
terística, é o assunto em investigação.
PUBLIUS

[371]
O FEDERALISTA N." 41
[40]

Observação Geral dos Poderes


Conferidos pela Constituição

JAMES MADISON
19 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A Constituição proposta pela Convenção pode ser conside-


rada segundo dois pontos de vista gerais. O PRIMEIRO rela-
ciona-se com a soma ou quantidade de poder que investe no
Governo, incluindo as restrições impostas aos Estados. O
SEGUNDO, com a estrutura particular do governo, e com a
distribuição desse poder entre os seus diversos ramos.
No primeiro ponto de vista sobre esta matéria surgem
duas importantes questões: 1. Se alguma parte dos poderes
transferidos para o Governo geral é desnecessária ou imprópria?

* Do The Independent ]ournal, 19 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 22 de Janeiro no The New- York Packet e começado a publicar
no mesm dia, tendo sido concluído em 23 de Janeiro, no The Daily Advertiser.
Recebeu o número 41 na edição de McLean e o número 40 nos jornais. QC).

[373]
2. Se a globalidade desses poderes é perigosa para a porção
de jurisdição deixada aos vários Estados?
O poder global do Governo geral é maior do que o que
devia ter sido investido nele? Esta é a primeira questão.
Não pode ter escapado aos que prestaram atenção sincera
aos argumentos usados contra os vastos poderes do governo,
que os autores desses argumentos tiveram em pouca consi-
deração até que ponto é que eles eram meios necessários para
atingir um objectivo necessário. Preferiram muito mais insistir
nos inconvenientes que têm inevitavelmente de estar associados
a todas as vantagens políticas e nos possíveis abusos que têm
de acompanhar todos os poderes ou responsabilidades dos
quais se pode fazer um uso benéfico. Este método de tratar
o assunto não pode impor-se ao bom senso do povo da Amé-
rica. Pode mostrar a subtileza de quem escreve, pode abrir
um campo ilimitado para a retórica e a declamação, pode
inflamar as paixões dos que não pensam e pode confirmar os
preconceitos dos que pensam mal. Mas as pessoas calmas e
honestas imediatamente reflectirão que até a mais pura das
bênçãos humanas tem de conter uma parte de algo menos
bom, que tem sempre de ser feita uma escolha, se não do mal
menor, pelo menos do bem MAIOR, e não do bem PERFEITO;
e que em qualquer instituição política, um poder para pro-
mover a felicidade pública implica um elemento de arbítrio
que pode ser mal aplicado ou usado abusivamente. Verão, por
consequência, que em todos os casos em que o poder é con-
ferido, o primeiro ponto a decidir é se tal poder é necessário
para o bem público, tal como o seguinte será, em caso de
decisão afirmativa, garantir tão eficazmente quanto possível
que não seja possível uma perversão do poder em detrimento
do interesse público.
Para que possamos formar um juízo correcto acerca deste
assunto, será apropriado examinar os vários poderes conferi-
dos ao governo da União. E para que isto possa ser feito mais
convenientemente estes podem ser reduzidos a diferentes

[374]
classes segundo se referem aos diferentes objectos seguintes:
1. Segurança contra perigo estrangeiro; 2. Regulamentação
do intercâmbio com as nações estrangeiras; 3. Manutenção
da harmonia e do correcto intercâmbio entre os Estado;
4. Certos objectos heterogéneos de utilidade geral; 5. Coi-
bir os Estados de certos actos danosos; 6. Providências para
dar a devida eficácia a todos estes poderes.
Os poderes que caem dentro da primeira classe são os de
declarar a guerra e outorgar cartas de corso; aprovisionar
exércitos e frotas; regulamentar e convocar a milícia; arrecadar
impostos e contrair empréstimos.
A segurança contra o perigo estrangeiro é um dos objec-
tivos primários da sociedade civil. É um objectivo confessado
e essencial da União Americana. Os poderes indispensáveis
para o alcançar devem ser eficazmente confiados aos conselhos
federais.
O poder de declarar guerra é necessário? Ninguém res-
ponderá a esta pergunta pela negativa. Seria supérfluo, por
consequência, empreender uma demonstração da afirmativa.
A confederação existente estabelece este poder o mais ampla-
mente possível.
O poder de recrutar exércitos e equipar esquadras é
necessário? Este poder está incluído no anterior. Está incluído
no poder de autodefesa.
Mas era necessário conceder um PODER INDETERMINADO
de mobilizar TROPAS, bem como de aprovisionar esquadras,
e de manter ambas tanto na PAZ como na GUERRA?
A resposta a estas perguntas foi antecipada noutro local
com um desenvolvimento suficientel para que admita aqui
uma extensa discussão. A resposta parece na verdade ser tão
óbvia e conclusiva que quase não justifica uma discussão seja
em que lugar for. Com que sombra de correcção poderia a
força necessária para a defesa ser limitada por aqueles que não

I Ver, por exemplo, artigos 8 e 24. QC) .

[375]
podem limitar a força da agressão? Se uma Constituição federal
pudesse acorrentar a ambição ou traçar limites aos actos de
todas as outras nações, então poderia, na verdade, acorrentar
prudentemente o arbítrio do seu próprio governo, e traçar
limites ao exercício de actos para sua própria segurança.
Como poderia proibir-se com segurança uma prontidão
para a guerra em tempo de paz, a menos que se pudesse proi-
bir, de idêntica maneira, as preparações e mobilizações de
todas as nações hostis? Os meios de segurança só podem ser
regulados pelos meios e pelo perigo do ataque. De facto, serão
sempre determinados por essas regras, e por nenhumas outras.
É em vão que se opõem barreiras constitucionais ao impulso
de autopreservação. É pior do que em vão, porque introduz
na própria Constituição usurpações necessárias de poder, para
as quais cada precedente é um germe de repetições desnecessá-
rias e multiplicadas. Se uma nação mantém constantemente
um exército disciplinado, pronto para servir a ambição ou a
vingança, isso obriga as nações mais pacíficas, que possam
estar ao alcance dos seus empreendimentos, a tomar as precau-
ções correspondentes. O século quinze foi a desgraçada época
das forças militares em tempo de paz. Estas foram introduzidas
por Carlos VII de França. Toda a Europa imitou, ou foi forçada
a imitar, esse exemplo. Se o exemplo não tivesse sido seguido
por outras nações toda a Europa estaria há muito tempo sob
o jugo de um monarca universal. Se todas as nações, excepto
a França, desmantelassem agora as suas forças militares em
tempo de paz, poderia acontecer isso mesmo. As legiões
veteranas de Roma excederam em força o valor indisciplinado
de todas as outras nações e fizeram de Roma a senhora do
mundo.
Não é menos verdade que as liberdades de Roma foram
as vítimas finais dos seus triunfos militares, e que as liberdades
da Europa, na medida em que alguma vez existiram, foram,
com poucas excepções, o preço a pagar pelas suas instituições
militares. Urna força permanente, portanto, é urna providência

[376]
perigosa, ao mesmo tempo que pode ser uma providência
necessária. Na mais pequena das escalas tem os seus inconve-
nientes. Numa grande escala, as suas consequências podem
ser fatais. Seja qual for a escala é um objecto de louvável cir-
cunspecção e precaução. Uma nação sensata combinará todas
estas considerações e, ao mesmo tempo que não se despoja
temerariamente de todos os recursos que possam vir a ser
essenciais para a sua segurança, empregará toda a sua prudência
para diminuir tanto a necessidade como o perigo de usar um
recurso que possa ser pouco auspicioso para as suas liberdades.
As marcas mais claras desta prudência estão estampadas
na Constituição proposta. A própria União, que ela consolida
e defende, destrói todos os pretextos para forças militares que
possam ser perigosas. A América unida, com um punhado
de soldados, ou sem um único soldado, exibe diante da
ambição estrangeira uma atitude mais intirnidante do que a
América desunida com cem mil veteranos prontos para o
combate. Foi observado, numa ocasião anterior2, que a falta
deste pretexto salvou as liberdades de uma nação da Europa.
Tornada, pela sua situação insular e pelos seus recursos marí-
timos, inconquistável pelos exércitos dos seus vizinhos, os
governantes da Grã-Bretanha nunca foram capazes, por meio
de perigos reais ou artificiais, de enganar o público quanto a
importantes forças militares em tempo de paz. A distância a
que os Estados Unidos estão das nações poderosas do mundo
dá-lhes a mesma ditosa segurança. Uma força militar perigosa
nunca pode ser necessária ou plausível, enquanto eles continua-
rem a ser um povo unido. Mas nunca se permita, nem por
um momento, que seja esquecido que devem esta vantagem
à União e só a ela. O momento da sua dissolução será a data
de uma nova ordem das coisas. Os receios dos mais fracos,
ou a ambição dos Estados ou Confederações mais fortes, darão
no novo mundo o mesmo exemplo que Carlos VII deu no

2 Ver artigo 8. QC) .

[377]
velho. O exemplo será seguido aqui pelos mesmos motivos
que produziram neste último urna imitação universal. Em vez
de derivar da nossa situação a vantagem preciosa que a Grã-
-Bretanha derivou da sua, a face da América não será mais
do que uma cópia da face do Continente Europeu. Apresentará
por todo o lado a liberdade esmagada entre exércitos perma-
nentes e impostos perpétuos. Os destinos da América desunida
serão ainda mais desastrosos do que os das nações da Europa.
As causas do mal nesta última estão confinadas aos seus próprios
limites. Não há potências superiores de outro quadrante do
globo que intriguem entre as suas nações rivais, inflamem as
suas animosidades mútuas, nem as convertam em instrumentos
da ambição, inveja e vingança estrangeiras. Na América, as
misérias brotando das suas invejas, contendas e guerras internas
formariam apenas uma parte da sua sorte. Um abundante
acrescento de males teria a sua fonte nessa relação em que a
Europa está com este quadrante da terra, e que nenhum outro
quadrante da terra tem com a Europa. Este quadro das conse-
quências da desunião não pode ser colorido em demasia ou
exibido com demasiada frequência. Qualquer homem que
ame a paz, qualquer homem que ame o seu país, qualquer
homem que ame a liberdade, deveria tê-lo sempre diante dos
olhos, de maneira que pudesse acalentar no seu coração um
devido afecto à União da América, e pudesse ser capaz de
dar o devido valor aos meios de preservá-la.
A seguir ao efectivo estabelecimento da União, a melhor
precaução possível contra o perigo dos exércitos permanentes
é uma limitação do prazo durante o qual a receita pode ser
aproveitada para a sua manutenção. A Constituição acrescentou
prudentemente esta precaução. Não repetirei aqui as observa-
ções que espero que terão esclarecido justa e satisfatoriamente
este assunto. Mas pode não ser inapropriado tomar conheci-
mento de um argumento contra esta parte da Constituição,
que foi extraído da política e da prática da Grã-Bretanha.
Diz-se que a manutenção em armas de um exército nesse

[378]
reino exige um voto anual da Legislatura, ao passo que a
Constituição Americana estendeu a dois anos este período
crítico. Esta é a forma como a comparação é normalmente
posta diante do público. Mas trata-se de uma forma justa? É
uma comparação honesta? Restringe a Constituição britânica
o arbítrio parlamentar a um ano? Impõe a Americana ao
Congresso apropriações por dois anos? Pelo contrário, não
pode ser desconhecido dos próprios autores da falácia que a
Constituição britânica não fixa qualquer limite ao arbítrio da
legislatura, e que a americana amarra a legislatura a dois anos,
como o mais longo período admissível.
Se o argumento tirado do exemplo britânico tivesse sido
apresentado com verdade, teria aparecido assim: o período
pelo qual se podem apropriar suprimentos para a manutenção
de forças militares, embora ilimitado pela Constituição britâ-
nica, foi apesar disso limitado na prática a um só ano pelo
arbítrio parlamentar. Agora, se na Grã-Bretanha, onde a
Câmara dos Comuns é eleita por sete anos, onde uma tão
grande proporção de membros é eleita por uma tão pequena
proporção do povo, onde os eleitores são tão corrompidos
pelos Representantes, e os Representantes tão corrompidos
pela Coroa, o corpo Representativo pode possuir um poder
de ordenar apropriações para o exército por um período
indefinido, sem querer, ou sem ousar, estender esse período
para além de um único ano, não devia a própria suspeita corar
ao pretender que aos Representantes dos Estados Unidos,
eleitos LIVREMENTE pela TOTALIDADE do povo, de DOIS EM
DOIS ANOS, não se lhes pode confiar o arbítrio dessas apropria-
ções, expressamente limitado ao curto período de dois anos?
Uma má causa raramente deixa de se trair. A condução
da oposição ao governo federal é uma monótona exemplifi-
cação desta verdade. Mas entre todos os erros estúpidos que
foram cometidos, nenhum é mais notável do que a tentativa
para recrutar para esse lado o prudente receio de exércitos
permanentes alimentado pelo povo. A tentativa despertou

[379]
completamente a atenção pública para esse importante tema.
E conduziu as investigações que devem terminar por uma
total e universal convicção, não somente de que a Constituição
providenciou as garantias mais eficazes contra perigos vindos
desse quadrante, mas de que nada menos do que uma Consti-
tuição totalmente adequada à defesa nacional e à preservação
da União pode salvar a América de tantos exércitos perma-
nentes quantas as partes em que pode ser dividida em Estados
ou Confederações; e de que, em cada parte, um progressivo
aumento dessas forças militares tal que as tornarão tão opressoras
da propriedade e ameaçadoras das liberdades do povo, tal
como qualquer força militar que possa tornar-se necessária,
debaixo de um governo unido e eficiente, deve ser tolerável
para essa propriedade e segura para essas liberdades.
A necessidade palpável do poder para aprovisionar e
sustentar uma marinha protegeu essa parte da Constituição
de um espírito de censura que poupou poucas outras partes.
Na verdade, deve ser contado entre as grandes bênçãos da
América que, tal como a sua União será a única fonte da sua
força marítima, também esta última será uma fonte principal
da sua protecção contra o perigo externo. A este respeito a
nossa situação tem outra semelhança com a vantagem insular
da Grã-Bretanha. As baterias mais capazes de repelir ataques
estrangeiros à nossa segurança são, felizmente, tais que nunca
podem ser voltadas contra as nossas liberdades por um governo
pérfido.
Os habitantes da fronteira adântica estão todos profunda-
mente interessados nesta precaução para a protecção naval e,
se até agora lhes foi permitido dormir tranquilamente nas
suas camas, se os seus bens permaneceram seguros diante do
espírito predatório de aventureiros desregrados, se as suas
cidades marítimas ainda não foram compelidas a resgatar-se
dos terrores de uma conflagração cedendo às exigências de
invasores audaciosos e súbitos, estes casos de boa sorte não
devem ser atribuídos à capacidade do governo existente para

[380]
a protecção daqueles de quem reclama obediência, mas a
causas que são fugazes e falaciosas. Se exceptuarmos, talvez,
a Virgínia e o Maryland, que são particularmente vulneráveis
nas suas fronteiras orientais, nenhuma parte da União devia
sentir maior ansiedade sobre este assunto do que Nova Iorque.
A sua costa marítima é extensa. Um distrito muito importante
do Estado é uma ilha. O próprio Estado é penetrado em mais
de cinquenta léguas por um grande rio navegável. O grande
empório do seu comércio, o grande reservatório da sua riqueza,
estão a todo o momento à mercê dos acontecimentos, e podem
quase ser vistos como refens de condescendências ignominiosas
com os ditames de um inimigo estrangeiro, ou até com as
exigências rapaces de piratas e bárbaros. Se viesse a resultar
uma guerra, devida à precária situação dos assuntos europeus,
e se todas as paixões indisciplinadas que a acompanham fossem
deixadas à solta no oceano, a nossa salvação de insultos e
depredações, não só naquele elemento, mas em todas as partes
que o bordejam, seria verdadeiramente miraculosa. Na
condição presente da América, os Estados mais imediatamente
expostos a estas calamidades nada têm a esperar do fantasma
de um governo geral que agora existe. E, se os recursos próprios
estivessem à altura da tarefa de se fortificarem contra o perigo,
o objecto a ser protegido seria quase consumido pelos meios
para o proteger.
O poder de regulamentar e convocar a milícia já foi
suficientemente justificado e explicado. 3
O poder de arrecadar impostos e contrair empréstimos,
sendo o sustentáculo daquilo que deverá ser empregue na
defesa nacional, é apropriadamente colocado na mesma classe.
Este poder, também, foi já examinado com muita atenção 4 ,
e confio em que foi claramente mostrado que ele é necessário,
tanto na extensão como na forma que lhe são dadas pela

3 Ver artigo 29. GC) .


4 Ver artigos 30-36. GC).

[381]
Constituição. Dirigirei apenas uma reflexão adicional aos que
argumentam que esse poder devia ter sido restringido à tribu-
tação externa- querendo assim referir-se a taxas sobre artigos
importados de outros países. Não se pode duvidar de que isso
será sempre uma fonte valiosa de rendimento, de que durante
um tempo considerável deverá ser a fonte principal e de que
neste momento é uma fonte essencial. Mas podemos formar
ideias muito erradas a este respeito, se não nos lembrarmos
nos nossos cálculos de que a extensão do rendimento a retirar
do comércio externo deve variar com as variações tanto da
extensão como do tipo de importações, e de que essas variações
não correspondem ao progresso da população, que deve ser
o critério geral das necessidades públicas. Enquanto a agri-
cultura continuar a ser o único campo de labor, a importação
de produtos manufacturados tem de aumentar à medida que
os consumidores se multiplicam. Assim que as manufacturas
domésticas forem criadas com a ajuda dos braços não exigidos
pela agricultura, os produtos manufacturados importados
decrescerão à medida que o número de pessoas aumenta.
Numa fase mais remota, as importações podem consistir em
parte considerável em matérias-primas, que serão transformadas
em artigos para exportação e exigirão, por consequência, o
encorajamento das benesses mais do que serem carregadas de
direitos desencorajadores. Um sistema de Governo que tem
a intenção de durar deve contemplar estas revoluções e ser
capaz de se adaptar a elas.
Alguns, não negando a necessidade do poder de tributação,
fundamentaram um ataque muito feroz à Constituição com
base na linguagem em que esse poder é definido. Foi alegado,
e teve eco, que o poder de "aplicar e arrecadar taxas, direitos
alfandegários, impostos e tributos, pagar dívidas e prover a
defesa comum e o bem-estar geral dos Estados Unidos,"
equivale a um mandato ilimitado para exercer todos os poderes
que sejam alegados como necessários para a defesa comum e
para o bem-estar geral. Não se poderia apresentar prova mais

[382]
forte da angústia sob a qual labutam esses escritores em busca
de argumentos, do que a sua condescendência perante uma
interpretação tão errónea.
Se não tivesse sido encontrada na Constituição outra
enumeração ou definição dos poderes do Congresso, além da
expressão geral que acabamos de citar, os autores da objecção
poderiam ter tido algum pretexto para ela, embora tivesse
sido difícil encontrar uma razão para uma maneira tão desas-
trada de descrever uma autoridade para legislar em todos os
casos possíveis. Um poder para destruir a liberdade de imprensa,
o julgamento por um júri, ou mesmo regular os direitos de
transmissão por herança, ou as formas de transmissão da pro-
priedade, seria muito singularmente expresso pelos termos
"arrecadar fundos para o bem-estar geral".
Ma que fundamento pode ter a objecção, quando se
segue imediatamente uma especificação dos objectos aludidos
nesses termos gerais, e essa especificação nem sequer é pre-
cedida de um ponto e vírgula? Se as diferentes partes do
mesmo instrumento devem ser expostas de tal maneira que
se confira significado a todas as partes que o tenham, deve
uma parte da mesma frase ser inteiramente excluída de uma
partilha desse significado, e devem ser retidos palavra por
palavra os termos mais duvidosos e indefinidos e ser negado
todo e qualquer significado às expressões claras e precisas?
Com que finalidade seria inserida a enumeração de poderes
particulares, se houvesse a intenção de incluir estes e todos
os outros no poder geral precedente? Nada é mais natural ou
comum do que empregar primeiro uma frase geral, e depois
explicá- e qualificá-la por uma exposição de particularidades.
Mas a ideia de uma enumeração de particularidades que não
explica nem qualifica o significado geral, e não pode ter outro
efeito além do de confundir e induzir em erro, é um absurdo
tal que, estando nós reduzidos ao dilema de acusar os autores
da objecção ou os autores da Constituição, devemos tomar a
liberdade de supor que ele não teve a sua origem nestes últimos.

[383]
A objecção neste caso é tanto mais extraordinária quanto
é patente que a linguagem usada pela Convenção é uma cópia
dos Artigos da Confederação. Os objectivos da União entre
os Estados, tal como são descritos no artigo 3. 0 , são "a sua
defesa comum, a garantia das suas liberdades, e o bem- estar
mútuo e geral." Os termos do artigo 8. 0 são ainda mais idên-
ticos. "Todas as despesas da guerra, e todas as outras despesas,
que venham a ser incorridas para a defesa comum ou para o
bem-estar geral, e que sejam permitidas pelos Estados Unidos
em Congresso, devem ser liquidadas por um tesouro comum"
&c. Uma linguagem similar aparece no artigo 9. 0 • Interprete-
-se qualquer destes artigos pelas regras que justificariam a
interpretação dada à nova Constituição, e eles investem no
Congresso existente um poder de legislar em absolutamente
todos os casos. Mas o que teria sido pensado dessa assembleia
se, apegando-se a essas expressões gerais, e menosprezando
as especificações, que afirmam e limitam o seu alcance, tivessem
exercido um poder ilimitado de providenciar a defesa comum
e o bem-estar geral? Apelo para os próprios objectores, que
digam se nesse caso teriam empregue, para justificar o Con-
gresso, o mesmo raciocínio a que agora recorrem contra a
Convenção. Como é dificil ao erro escapar à sua própria con-
denação!
PUBLIUS

[384]
O FEDERALISTA N.o 42
[41]

Considerações Adicionais sobre


os Poderes Conferidos pela Constituição

JAMES MADISON
22 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A segunda classe de poderes investidos no Governo Geral


consiste naqueles que regulamentam o intercâmbio com as
nações estrangeiras, a saber: celebrar tratados; enviar e receber
Embaixadores, outros Ministros públicos, e Cônsules; definir
e punir piratarias e felonias cometidas no alto mar, e crimes
contra a lei das nações; regulamentar o comércio externo, in-
cluindo o poder de proibir, depois do ano de 1808, a impor-
tação de escravos, e de lançar, até lá, uma taxa de dez dólares
por cabeça como desencorajamento dessas importaçõesl .

* Do The New- York Packet, 22 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 23 de Janeiro no The Independent journal e em 24 de Janeiro no The Daily
Advertiser. Recebeu o número 42 na edição de McLean e o número 41 nos
jornais. QC) .
1 M adison refere-se à primeira cláusula da nona secção do primeiro artigo

da Constituição federal, que proíbe o comércio de escravos a partir do ano de

[385]
Esta classe de poderes forma um ramo óbvio e essencial
da administração federal. Se há algum dorrúnio em relação
ao qual devamos ser uma nação, ele é o da relação com outras
nações.
Os poderes para celebrar tratados e de enviar e receber
embaixadores justificam-se por si mesmos. Ambos são abran-
gidos pelos Artigos da Confederação, apenas com esta dife-
rença: que o primeiro, pelo plano da Convenção, é desem-
baraçado de uma excepção, sob a qual os tratados podem ser
substancialmente frustrados pela regulamentação dos Estados,
e que é acrescentado expressamente e muito correctamente
à cláusula anterior, respeitante aos embaixadores, um poder
de nomear e receber "outros Ministros públicos e Cônsules".
O termo Embaixador, se considerado estritamente, como
parece ser exigido pelo segundo dos Artigos da Confederação,
abrange apenas o grau mais elevado dos Ministros públicos,
e exclui os graus que os Estados Unidos muito provavelmente
preferirão quando forem necessárias embaixadas estrangeiras.
E em nenhuma latitude de interpretação o termo abrangerá
Cônsules. Todavia foi julgado vantajoso, e tem sido prática
do Congresso, empregar os graus inferiores de Ministros
públicos e enviar e receber Cônsules. É verdade que nos casos
em que os tratados de comércio estipulam a nomeação mútua
de Cônsules, cujas funções estão ligadas ao comércio, a admis-

1808. Apesar de a escravatura ser uma realidade universal no final do século


XVIII , os Founding Fathers americanos mantiveram sempre uma relação
moralmente difícil com a peculiar institution. Tanto a linguagem retorcida do
texto constitucional, como as próprias observações sobre a escravatura, produ-
zidas nesta obra, traduzem a profunda má-consciência que o assunto causava
nestes homens com padrões éticos, confessadamente, tão elevados. Recorde-
-se que o primeiro compromisso sobre a escravatura começou na própria
~Declaração de Independência•, quando Thomas Jefferson foi obrigado a
suprimir da versão original a sua expressa condenação da escravatura, de modo
a garantir a unidade de todas as antigas colónias contra o inimigo britânico."
(E. P.).

[386]
são de Cônsules estrangeiros pode cair sob a alçada do poder
de fazer tratados comerciais, e que, nos casos em que não
existem tais tratados, a missão dos Cônsules americanos nos
países estrangeiros pode talvez ser coberta pela autoridade,
dada pelo artigo nono da Confederação, de nomear os funcio-
nários civis que possam ser necessários para administrar os
assuntos gerais dos Estados Unidos. Mas a admissão de Cônsules
nos Estados Unidos, nos casos em que nenhum tratado anterior
a estipulou, parece não ser objecto de nenhuma disposição.
Um remédio para essa omissão é uma das instâncias menores
em que a Convenção melhorou o modelo que tinha diante
de si. Mas as disposições mais diminutas tornam-se importantes
quando tendem a obviar a necessidade ou o pretexto para
usurpações graduais e despercebidas de poder. Uma lista dos
casos em que o Congresso foi traído, ou forçado pelos defeitos
da Confederação a violações das suas autoridades legais, não
surpreenderia pouco aqueles que não prestaram atenção ao
assunto, e não seria um argumento sem valor a favor da nova
Constituição, que parece ter providenciado em relação aos
mais pequenos não menos diligentemente do que em relação
aos mais óbvios e mais notáveis defeitos da velha.
O poder de definir e punir piratarias e felonias cometidas
no alto mar e crimes contra a lei das nações pertence com
igual propriedade ao governo geral e é um melhoramento
ainda maior dos Artigos da Confederação. Esses artigos não
contêm nenhuma disposição para o caso de crimes contra a
lei das nações e, consequentemente, deixam ao alcance de
qualquer membro imprudente enredar a Confederação com
nações estrangeiras. A cláusula dos artigos federais no caso
das piratarias e felonias não se estende para além do estabeleci-
mento de tribunais para o julgamento desses crimes. A defini-
ção das piratarias podia, sem inconveniente, ser deixada à lei
das nações, apesar de se encontrar em muitos códigos munici-
pais uma definição legislativa desse caso. Uma definição de
felonias no alto mar é evidentemente indispensável. Felonia

[387]
é um termo de significado vago, mesmo na lei ordinária da
Inglaterra, e de variada importância nos decretos parlamentares
desse reino. Mas nem a lei ordinária nem os decretos parla-
mentares dessa, ou de qualquer outra nação, devia ser um cri-
tério para os procedimentos do nosso país, a menos que fossem
feitos nossos por adopção legislativa. O significado do termo,
tal como é definido nos códigos dos vários Estados, seria tão
impraticável como o de outra nação seria um guia desonroso
e ilegítimo. Esse significado não é precisamente o mesmo em
quaisquer dois dos Estados e varia em cada um com cada
revisão das respectivas leis criminais. A bem da certeza e da
uniformidade, portanto, o poder de definir felonias neste caso
era, em todos os aspectos, necessário e correcto.
A regulamentação do comércio externo, tendo caído
dentro de várias perspectivas que foram adoptadas sobre esta
matéria2, foi discutida de maneira suficientemente completa
para precisar aqui de demonstrações adicionais de estar
adequadamente submetida à administração federal.
Era indubitavelmente de desejar que o poder de proibir
as importações de escravos não tivesse sido adiado até ao ano
de 1808, ou melhor, que tivesse tido actuação imediata. Mas
não é dificil explicar quer esta restrição ao governo geral quer
a maneira como toda a cláusula é expressa. Devia ser consi-
derado como um grande ponto ganho a favor da humanidade:
que, após um período de vinte anos, possa terminar para
sempre, dentro destes Estados, um tráfico que por tanto tempo
e tão ruidosamente suscitou a reprovação por este barbarismo
da política moderna; que, dentro desse período, receba um
desencorajamento considerável por parte do governo federal,
e possa ser totalmente abolido pela cooperação dos poucos
Estados que continuam esse tráfico tão contra a natureza, no
exemplo de proibição que foi dado por uma tão grande maioria

2 Ver, por exemplo, os artigos 12 e 22. QC) .

[388]
da União. Ditoso seria para os desafortunados africanos se se
abrisse diante deles uma perspectiva idêntica de serem redimi-
dos das opressões dos seus irmãos europeus! Foram feitas
tentativas para perverter esta cláusula numa objecção contra
a Constituição, apresentando-a, por um lado, como uma
tolerância criminosa de uma prática ilícita e, por outro lado,
como calculada para impedir emigrações voluntárias e benéficas
da Europa para a América. Menciono estas interpretações
erradas, não com vista a dar-lhes uma resposta, porque a não
merecem, mas como exemplos da maneira e do espírito com
que alguns acharam adequado conduzir a sua oposição ao
governo proposto.
Os poderes incluídos na terceira classe são os que providen-
ciam para a harmonia e intercâmbio correcto entre os Estados.
Neste título podem ser incluídas as restrições particulares
impostas à autoridade dos Estados, e certos poderes do
departamento judicial; mas as primeiras estão reservadas para
uma classe diferente, e as últimas serão examinadas mais
minuciosamente quando chegarmos à estrutura e organização
do governo. Lirnitar-me-ei a uma rápida análise dos poderes
remanescentes abrangidos neste terceiro grupo, a saber: regu-
lamentar o comércio entre os vários Estados e as tribos índias;
cunhar moeda, regulamentar o valor desta e da moeda estran-
geira; providenciar a punição da falsificação da moeda corrente
e dos títulos de crédito dos Estados Unidos; fixar o padrão
dos pesos e medidas; estabelecer uma regra uniforme de
naturalização e leis uniformes de falência; prescrever a maneira
como os actos públicos, os registos e os procedimentos judiciais
de cada Estado deverão ser autenticados, e o efeito que deverão
ter em outros Estados; e estabelecer estações de correio e
estações de posta.
Na Confederação existente, a insuficiência de poder para
regulam ntar o comércio entre os seus vários membros inclui-
-se no número das insuficiências que foram claramente realça-
das pela experiência. Às demonstrações e observações que os

[389]
artigos anteriores puseram em perspectiva sobre este assunto 3
pode acrescentar-se que, sem esta cláusula suplementar, o
grande e essencial poder de regulamentar o comércio externo
teria sido incompleto e ineficaz. Um objectivo muito impor-
tante deste poder era aliviar os Estados que importam ou
exportam, através de outros Estados, das contribuições injustas
que estes últimos lançavam sobre eles. Se os Estados de
passagem tivessem liberdade para regulamentar o comércio
entre um Estado e outro, deve antecipar-se que seriam
encontradas maneiras para onerar os artigos de importação e
exportação, durante a sua passagem pela sua jurisdição, com
direitos que recairiam sobre os fabricantes dos últimos e os
consumidores dos primeiros. Podemos ficar certos, dada a
experiência passada, que tal prática seria introduzida pelos
futuros projectos; e, não só por isso como por um conheci-
mento comum dos assuntos humanos, podemos ter a certeza
de que ela alimentaria animosidades, não sendo improvável
que terminasse em interrupções sérias da tranquilidade pública.
Para aqueles que não vêem a questão pelo prisma da paixão
ou do interesse, o desejo que os Estados comerciais têm de
cobrar, sob qualquer forma, um rendimento indirecto aos
seus vizinhos não comerciais não deve apresentar-se menos
imprudente do que é injusto, dado que isso estimularia a parte
agravada, tanto por ressentimento como por interesse, a
recorrer a canais mais convenientes para o seu comércio
externo. Mas a moderada voz da razão, defendendo a causa
de um interesse alargado e permanente, é com demasiada fre-
quência abafada, tanto nos corpos públicos como nos indiví-
duos, pelos clamores de uma avidez impaciente por um lucro
imediato e imoderado.
A necessidade de uma autoridade que superintenda o
comércio recíproco dos Estados confederados foi ilustrada
por outros exemplos tão bem como pelo nosso. Na Suíça,

3 Ver em especial os artigos 11 e 22. QC) .

[390]
onde a União é tão ténue, cada cantão é obrigado a permitir
a passagem das mercadorias que atravessam a sua jurisdição
para os outros .cantões, sem aumento dos direitos . Na
Alemanha, é uma lei do império que os Príncipes e Estados
não devem cobrar portagens nem direitos alfandegários nas
pontes, rios, ou passagens sem o consentimento do Imperador
e da Dieta, embora pareça, por uma citação de um artigo
anterior4, que a prática, nestas coisas como em muitas outras
nessa confederação, não seguiu a lei, e produziu os prejuízos
que foram antecipados aqui. Entre as restrições impostas pela
União da Holanda aos seus membros, uma delas é que não
devem estabelecer impostos desvantajosos para os seus vizinhos,
sem terem obtido a autorização geral.
A regulamentação do comércio com as tribos índias é
muito adequadamente libertada de duas limitações dos Artigos
da Confederação, que tornam a cláusula obscura e contraditó-
ria. Nela, esse poder é restringido aos índios que não são
membros de nenhum dos Estados, e não deve violar ou
infringir o direito legislativo de nenhum Estado dentro dos
seus próprios limites. Que tipos de índios devem ser considera-
dos como membros de um Estado, ainda está por resolver, e
foi uma questão de frequente perplexidade e discórdia nos
conselhos federais . E como é que o comércio com os índios,
embora não sejam membros de um Estado, todavia residindo
dentro da jurisdição legislativa deste, pode ser regulamentado
por uma autoridade externa sem nenhuma intromissão nos
direitos internos de legislação, é absolutamente incompreensí-
vel. Não é o único caso em que os Artigos da Confederação
se esforçaram imponderadamente para realizar impossibilidades,
para reconciliar a soberania parcial na União com a completa
soberania dos Estados e para subverter um axioma matemático,
retirando uma parte e deixando como resto o todo.

4 Embora nenhuma citação dessas apareça num artigo anterior, Madison


discutiu este assunto no artigo 19. QC) .

[391]
Tudo o que precisa de ser observado acerca do poder de
cunhar moeda, regulamentar o valor desta e da moeda estran-
geira é que, ao providenciar para este último caso, a Constitui-
ção supriu uma importante omissão dos Artigos da Confe-
deração. A autoridade do Congresso existente é limitada à
regulamentação da moeda cunhada pela sua própria autoridade,
ou à da dos respectivos Estados. Deve ver-se imediatamente
que a uniformidade proposta para o valor da moeda corrente
poderá ser destnúda pela sujeição do valor da moeda estrangeira
às diferentes regulamentações dos diferentes Estados.
A punição pela falsificação dos títulos de crédito público,
tal como da moeda corrente, está evidentemente submetida
a essa autoridade que deve assegurar o valor de ambas.
A regulamentação dos pesos e medidas é transferida dos
Artigos da Confederação e é fundada em considerações seme-
lhantes às do poder precedente de regulamentar a moeda.
A dissemelhança nas regras de naturalização foi desde há
muito apontada como um defeito do nosso sistema, e como
lançando os alicerces para questões intrincadas e delicadas.
No quarto artigo da Confederação é declarado "que os habi-
tantes livres de cada um desses Estados, exceptuando os pobres,
os vagabundos e os foragidos da justiça, devem ter direito a
todos os privilégios e imunidades de cidadãos livres nos vários
Estados, e o povo de cada Estado deve, em qualquer outro,
gozar de todos os privilégios de oficio e de comércio, etc".
Há aqui uma notável confusão de linguagem. Porque são
usados os termos habitantes livres numa parte do artigo, cidadãos
livres noutra, e povo numa terceira; ou o que se pretendia dizer
ao acrescentar "a todos os privilégios e imunidades de cidadãos
livres" a frase "todos os privilégios de oficio e de comércio"
é coisa que não pode ser facilmente determinada. Parece ser
uma interpretação dificilmente evitável, no entanto, que aque-
les que caem debaixo da denominação de habitantes livres de
um Estado, embora não sejam cidadãos desse Estado, têm
direito, em todos os outros Estados, a todos os privilégios de

[392]
cidadãos livres destes últimos, isto é, direito a mais privilégios
do que aqueles que usufruem no seu próprio Estado, de modo
que um Estado particular pode ter jurisdição para, ou melhor,
todos os Estados estão perante uma necessidade de não
somente conferir direitos de cidadania noutros Estados a qual-
quer pessoa que possa ter esses direitos no seu interior, mas
a qualquer pessoa a quem se possa permitir que se torne
habitante dentro da sua jurisdição. Mas se for admitida uma
exposição do termo "habitantes" que confine os privilégios
estipulados apenas aos cidadãos, a dificuldade apenas diminui,
não desaparece. Ainda seria conservada por cada Estado a
jurisdição muito incorrecta para naturalizar estrangeiros em
todos os outros Estados. Num Estado, a residência durante
um curto período de tempo confirma todos os direitos de
cidadania. Noutro, são exigidas qualificações de maior impor-
tância. Um estrangeiro, portanto legalmente incapacitado para
certos direitos no último, pode, por meio da residência prévia
apenas no primeiro dos Estados, evitar a sua incapacidade, e
assim, d urna maneira absurda, a lei de um Estado pode tor-
nar-se superior à lei do outro, dentro da jurisdição do outro.
Devemos à mera casualidade que até agora tivéssemos escapado
de sérios embaraços nesta matéria. Pelas leis de vários Estados,
certos tipos de estrangeiros, que se tornaram odiosos, caíram
sob interdições inconsistentes, não somente com os direitos
de cidadania, mas ainda com o privilégio de residência. Qual
teria sido a consequência se essas pessoas, pela residência ou
por outra maneira qualquer, tivessem adquirido o estatuto de
cidadão sob a legislação de outro Estado, e depois afirmassem
os seus direitos como tais, tanto à residência como à cidadania,
dentro do Estado que os proscreve? Quaisquer que pudessem
ter sido as consequências legais, teriam resultado provavelmente
outras consequências de uma natureza demasiada séria para
não se providenciar contra elas. A nova Constituição providen-
ciou, muito apropriadamente, contra elas e todas as outras
deste tipo provenientes do defeito da Confederação neste

[393]
capítulo, ao autorizar o governo geral a estabelecer uma regra
urúforme de naturalização válida para todos os Estados Unidos.
O poder de estabelecer leis uniformes para falências está
tão intimamente ligado com a regulamentação do comércio
e prevenirá tantas fraudes nas quais as partes interessadas ou
a sua propriedade podem localizar-se em ou ser removidas
para diferentes Estados, que não parece provável que a con-
veniência dele seja posta em questão.
O poder de estabelecer, por intermédio de leis gerais, a
maneira como os actos e registos públicos, e os procedimentos
judiciais de cada Estado, deverão ser autenticados e o efeito
que deverão ter noutros Estados é um melhoramento evidente
e valioso da cláusula relacionada com este assunto nos Artigos
da Confederação. O significado da última é extremamente
indeterminado, e pode ser de pouca importância segundo
qualquer interpretação que possa admitir. O poder estabelecido
aqui pode ser convertido num instrumento de justiça muito
conveniente, e ser particularmente benéfico nas fronteiras de
Estados contíguos, onde os bens sujeitos à justiça podem ser
súbita e secretamente transferidos, em qualquer fase do pro-
cesso, para uma jurisdição estrangeira.
O poder para estabelecer estações de posta deve ser, de
qualquer ponto de vista, um poder inofensivo, e pode, talvez,
através de uma gestão sensata, tornar-se produtor de grande
conveniência pública. Nada que tenda para facilitar o intercâm-
bio entre os Estados pode ser considerado como não merecedor
da solicitude pública.
PUBLIUS

[394]
O FEDERALISTA N." 43
[42]

Considerações Adicionais sobre


os Poderes Conferidos pela Constituição

JAMES MADISON
23 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A quarta classe compreende os poderes heterogéneos


seguintes.
1. Um poder para "promover o progresso da ciência e das
artes úteis, garantindo aos autores e inventores, por tempo
limitado, o direito exclusivo aos seus escritos e invenções" 1.
A utilidade deste poder decerto não será questionada.
A propriedade literária ou artística dos autores foi já solene-
mente declarada pelos tribunais na Grã-Bretanha como sendo
um direito da lei comum. O direito a invenções úteis parece

* Do The Independent J oumal, 23 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 25 de Janeiro si multaneamente no The New- Yo rk Packet e no
The Daily Advertiser. R ecebeu o número 43 na edição de McLean e o número
42 nos jornais. QC).
1 Art.• 1, secção VIII , cláusula 8. (E. P.)

[395]
com igual razão pertencer aos inventores. O bem público
coincide inteiramente em ambos os casos com as pretensões
dos indivíduos. Os Estados não podem, separadamente, tomar
disposições eficazes para qualquer dos casos, e muitos deles
anteciparam a decisão deste ponto por meio de leis aprovadas
a instâncias do Congresso.
2. "Legislar em exclusivo sobre qualquer matéria no distrito
(não superior a 10 milhas quadradas) que, por cedência de
certos Estados e aceitação do Congresso, se torne a sede do
Governo dos Estados Unidos e assumir a autoridade sobre
todas as áreas adquiridas com o consentimento da Assembleia
do Estado em que se situem, para a construção de fortes ,
armazéns, arsenais, estaleiros e outros edificios úteis" 2 .
A indispensável necessidade de uma autoridade completa
na sede do governo é evidente por si mesma. É um poder
exercido por todas as Legislaturas da União, poderia mesmo
dizer do mundo, em virtude da sua geral supremacia. Sem
ela, a autoridade pública poderia ser desrespeitada e os seus
trabalhos poderiam ser interrompidos impunemente. Além
disso, se os membros do Governo geral dependessem, para a
sua protecção no exercício do seu dever, do Estado onde se
situa a sede do Governo, isso poderia fazer recair sobre os
conselhos nacionais uma imputação de receio ou de sofrer
influências, desonrosa para o Governo e ao mesmo tempo
insatisfatória para os outros membros da Confederação. Esta
consideração tem tanto mais peso quanto a acumulação gradual
de melhoramentos públicos na residência fixa do Governo
seria simultaneamente um penhor público demasiado grande
para ser deixado nas mãos de um Estado singular, e criaria
outros tantos obstáculos a uma remoção do Governo, de tal
maneira que ainda o privaria mais da sua necessária inde-
pendência. O tamanho deste distrito federal é suficientemente
circunscrito para satisfazer todas as invejas de natureza oposta.

2 Art. 0 1, secção VIII , cláusula 17. (E. P.).

[396]
E, como ele deverá ser aproveitado para esta utilização com
o consentimento do Estado que o cede, como esse Estado
sem dúvida que providenciará no contrato a salvaguarda dos
direitos e o consentimento dos cidadãos que o habitam, como
os habitantes encontrarão suficientes motivos de interesse para
se tornarem parceiros voluntários dessa cessão, como terão
tido uma palavra na eleição do Governo que irá exercer a sua
autoridade sobre eles, como lhes será certamente permitida
uma Legislatura municipal para fins locais, mandatada pelos
seus próprios sufrágios e como a autoridade da Legislatura
do Estado e dos habitantes da parte cedida deste, para con-
cordar com a cessão será derivada da totalidade do povo do
Estado na sua adopção da Constituição, qualquer objecção
imaginável parece estar afastada.
A necessidade de uma autoridade semelhante sobre os
fortes, armazéns, etc., estabelecidos pelo Governo geral, não
é menos evidente. O dinheiro público dispendido nesses locais,
e a propriedade pública depositada neles, exigem que eles
devam estar isentos da autoridade do Estado particular em
que se encontram. Nem seria correcto que os locais dos quais
pode depender a segurança de toda a União esteja em algum
grau dependente de um membro particular dela. Todas as
objecções e escrúpulos são também afastados aqui pela exigên-
cia da cooperação dos Estados envolvidos, em todos os esta-
belecimentos deste tipo.
3. "Fixar a pena por crime de traição, mas fica vedada a
morte civil, ou a confiscação de bens que não ocorra durante
a vida do condenado.''3
Como pode ser cometida uma traição contra os Estados
Unidos, a autoridade dos Estados Unidos deveria ter a capa-
cidade de puni-la. Mas como traições inovadoras e artificiais
têm sido os grandes motores por meio dos quais as facções
violentas, que são a prole natural do governo livre, se têm

3 Art. 0 3, secção III, cláusula 2. (E. P.).

[397]
usualmente revezado no lançar da sua malignidade umas sobre
as outras, a Convenção opôs, com grande sensatez, uma bar-
reira a este perigo peculiar, inserindo uma definição constitu-
cional do crime, fixando a prova necessária para a condenação,
e impedindo o Congresso, mesmo ao punir esse crime, de
estender as consequências da culpa para lá da pessoa do seu
autor.
4. " Admitir novos Estados na União, mas não poderá ser
formado ou criado uni novo Estado dentro da jurisdição de
qualquer outro; nem poderá ser formado qualquer Estado
pela junção de dois ou mais Estados, ou partes de Estados,
sem o consentimento das legislaturas dos Estados envolvidos,
bem como do Congresso."4
Nos Artigos da Confederaqão não há nenhuma disposição
sobre esta importante matéria. O Canadá esteve para ser admi-
tido de direito, associando-se aos planos dos Estados Unidos;
e as outras colónias, entendendo evidentemente por isto as
outras colónias britânicas, ao arbítrio de nove Estados.
A eventual instituição de novos Estados parece ter sido deixada
passar pelos compiladores daquele instrumento. Vimos a
inconveniência desta omissão, e a assunção de poderes a que
o Congresso foi levado por ela. Por conseguinte, o novo
sistema supriu este defeito com grande correcção. A precaução
genérica que não devam ser formados novos Estados sem a
concordância da autoridade federal e dos Estados envolvidos,
está em harmonia com os princípios que deverão governar
tais transacções. A precaução particular contra a criação de
novos Estados através da partição de um Estado sem o seu
consentimento acalma a desconfiança dos Estados mais vastos,
tal como a dos mais pequenos é acalmada por uma precaução
semelhante contra uma junção de Estados sem o seu consenti-
mento.

4 Art. 0 4, secção III, cláusula 1. (E. P.).

[398]
5. "Dispor do território ou de outras propriedades perten-
centes aos Estados Unidos e, nesse domínio, elaborar todas
as leis e regulamentos necessários," com uma reserva que
"nada nesta Constituição será interpretado em prejuízo dos
direitos dos Estados Unidos, ou de qualquer dos Estados."S
Este é um poder de enorme importância, e exigido por
considerações semelhantes às que mostram a correcção do
anterior. A reserva anexada é correcta e foi provavelmente
tornada absolutamente necessária por desconfianças e questões
respeitantes ao território do Oeste, suficientemente conhecidas
do público.
6. "Os Estados Unidos garantirão a cada Estado desta
União uma forma republicana de governo e assumirão a pro-
tecção de cada um deles contra invasões, e, a pedido do órgão
legislativo ou do executivo (na impossibilidade de aquele se
reunir em sessão), a protecção contra a violência interna."6
Numa confederação fundada em princípios republicanos,
e composta por membros republicanos, o governo que
superintende deve claramente possuir autoridade para defender
o sistema contra inovações aristocráticas ou monárquicas.
Quanto mais íntima possa ser a natureza dessa União, maior
interesse têm os membros nas instituições políticas de cada
um, e tanto maior o direito de insistir em que as formas de
governo sob as quais se aderiu ao pacto devam ser substancial-
mente mantidas. Mas um direito implica um recurso. E onde
mais poderia depositar-se o recurso senão no local onde foi
depositado pela Constituição? Os governos de princípios e
formas dissemelhantes mostraram-se menos adaptados a uma
coligação federal de qualquer género do que os de naturezas
aparentadas. "Como a república confederada da Alemanha,"
diz Montesquieu, "consiste em cidades livres e pequenos Esta-
dos, submetidos a diferentes príncipes, a experiência mostra-

5 Art.0 4, secção III, cláusula 2. (E. P.).


6 Art. 0 4, secção IV (E. P.) .

[399]
-nos que ela é mais imperfeita do que a da Holanda e da
Suíça." "A Grécia foi arruinada," acrescenta, "assim que o rei
da Macedónia obteve um assento entre os Anfictiões." No
último caso, sem dúvida, a força desproporcionada, assim
como a forma monárquica, do novo confederado, teve a sua
parte de influência nos acontecimentos. Pode possivelmente
perguntar-se que necessidade poderia haver de semelhante
precaução, e se ela não poderá tornar-se um pretexto para
alterações nos governos dos Estados, sem a concordância dos
próprios Estados. Estas perguntas têm respostas fáceis. Se a
interposição do governo geral não viesse a ser necessária, a
disposição para esse acontecimento seria apenas uma coisa
supérflua na Constituição. Mas quem pode dizer que expe-
riências podem ser produzidas pelo capricho de certos Estados,
pela ambição de chefes empreendedores, ou pelas intrigas e
influência de potências estrangeiras? À segunda pergunta pode
responder-se que se o governo geral devesse interpor-se em
virtude da sua autoridade constitucional, ficaria, é claro, obri-
gado a não exceder essa autoridade. Mas a autoridade não se
estende para lá de uma garantia de uma forma republicana de
governo, o que supõe um governo preexistente revestido da
forma que deve ser garantida. Por conseguinte, enquanto as
formas republicanas existentes forem mantidas pelos Estados,
elas são garantidas pela Constituição federal. Sempre que os
Estados quiserem escolher substituí-las por outras formas
republicanas, têm um direito a fazê-lo, e podem reclamar a
garantia federal para estas últimas. A única restrição que lhes
é imposta é que não devem trocar Constituições republicanas
por outras anti-republicanas; uma restrição que se presume
que dificilmente será considerada uma razão de queixa.
Uma protecção contra invasões é devida por qualquer
sociedade às partes que a constituem. A latitude da expressão
usada aqui parece proteger cada Estado, não só da hostilidade
estrangeira mas dos actos ambiciosos ou vingativos dos seus
vizinhos mais poderosos. A história das confederações, tanto

[400]
antigas como modernas, prova que os membros mais fracos
da união não devem ser insensíveis à orientação política deste
artigo.
A protecção contra a violência interna é acrescentada com
idêntica correcção. Foi observado7 que mesmo entre os cantões
suíços que, para falar propriamente, não estão sob um governo,
há urna disposição criada com este objectivo. E a história dessa
liga informa-nos de que a ajuda mútua é frequentemente
invocada e concedida, e tanto pelos Cantões mais democráticos
como pelos outros. Um acontecimento recente e bem conhe-
cido alertou-nos para estarmos preparados para emergências
da mesma natureza.
À primeira vista parece que não se harmoniza com a teoria
republicana a suposição ou de que uma maioria não tem o
direito, ou de que uma minoria não terá a força, para subverter
um governo e, consequentemente, que a interposição federal
nunca poderia ser pedida, senão quando fosse incorrecta. Mas
o raciocínio teórico, neste como em muitos outros casos, tem
de ser corrigido pelas lições da prática. Porque é que não
podem ser formadas combinações ilícitas, com objectivos de
violência, tanto por uma maioria de um Estado, em especial
de um Estado pequeno, como por uma maioria de um con-
dado ou distrito do mesmo Estado? E se a autoridade do
Estado deve, neste último caso, proteger a magistratura local,
não deve a autoridade federal, no primeiro, apoiar a autoridade
do Estado? Além disso, há certas partes das Constituições dos
Estados que estão tão entrelaçadas com a Constituição federal,
que não pode ser desferido um golpe violento numa sem
comunicar a ferida à outra. As insurreições num Estado rara-
mente induzirão uma interposição federal, a menos que o
número de pessoas nelas envolvidas tenha alguma proporção
relativamente ao dos amigos do governo. Será muito melhor,
nesses casos, que a violência venha a ser reprimida pela autori-

7 Ver artigo 19. GC) .

[401]
dade que superintende do que seja deixada à maioria a liber-
dade de defender a sua causa por uma luta sangrenta e
obstinada. A existência de um direito de interposição impedirá
em ~eral a necessidade de o exercer.
E verdade que a força e o direito estão necessariamente
do mesmo lado nos governos republicanos? Não pode a parte
minoritária possuir urna tal superioridade de recursos pecuniá-
rios, de experiência e talentos militares, ou de ajudas secretas
de potências estrangeiras, que a tornarão também superior
num recurso à espada? Não pode uma posição mais compacta
e vantajosa fazer pender o prato da balança para o mesmo
lado, contra um número superior de tal maneira situado que
seja menos capaz de uma aplicação pronta e concentrada da
sua força? Nada pode ser mais quimérico do que imaginar
que num medir de forças real a vitória possa ser calculada
pelas regras que prevalecem num censo dos habitantes, ou
que determinam o resultado de uma eleição! Não pode
acontecer, para terminar, que a minoria de CIDADÃOS se possa
converter numa maioria de PESSOAS, por meio da admissão
de residentes estrangeiros, de urna cooperação casual de aven-
tureiros, ou daqueles a quem a Constituição do Estado não
concedeu direitos de sufrágio? Não levo em conta uma infeliz
espécie de população que abunda em alguns dos Estados, que,
durante a calmaria do governo normal estão reduzidos a menos
do que o nível de homens, mas que, nos palcos tempestuosos
da violência civil, podem emergir no seu carácter humano,
e dar uma superioridade de forças a qualquer partido com o
qual se possam associar8.
Em casos em que possa ser duvidoso de que lado está a
justiça, que melhores árbitros poderiam ser desejados por duas

8 Madison refere-se, certamente, aos milhares de escravos negros que


ganharam a liberdade lutando quer nas tropas britânicas, quer ao lado do Exér-
cito Continental de George Washington, durante a Guerra da Independência
(1775-1783). (E. P.) .

[402]
facções violentas, recorrendo às armas e rasgando em pedaços
um Estado, do que os representantes dos Estados confederados,
não excitados pelo incêndio local? À imparcialidade de juízes,
eles acrescentariam a afeição de amigos. Seria ditoso que um
remédio assim para as suas enfermidades pudesse ser gozado
por todos os governos livres; que um projecto igualmente
eficaz pudesse ser estabelecido para a paz universal do género
humano!
Se vier a ser perguntado qual deve ser a reparação por
uma insurreição que se infiltre em todos os Estados e abranja
uma superioridade da força total, embora não um direito
constitucional, a resposta deve ser: que um caso desses, tal
como estaria fora dos limites dos remédios humanos, também
não está, afortunadamente, dentro dos limites da probabilidade
humana; e que é uma recomendação suficiente da Constituição
federal, que ela diminui o risco de uma calamidade para a
qual nenhuma Constituição possível pode fornecer uma cura.
Entre as vantagens de uma república confederada enume-
radas por Montesquieu, uma das importantes é "que se vier
a ocorrer uma insurreição popular num dos Estados, os outros
têm capacidade para a debelar. Se vierem a insinuar-se abusos
numa parte, estes serão corrigidos pelas partes que permane-
-
cem sas " .
7. "Todas as dívidas contraídas e compromissos assumidos
antes da adopção desta Constituição se manterão válidos para
os Estados Unidos no domínio desta Constituição, como o
eram para a Confederação."9
Isto só pode ser considerado uma proposição declarativa
e pode ter sido inserida, entre outras razões, para satisfação
dos credores estrangeiros dos Estados Unidos, que não podem
ser desconhecedores da pretensa doutrina que uma mudança
na forma política da sociedade civil tem o mágico efeito de
dissolver as obrigações morais desta.

9 Art. 0 6, cláusula 1. (E. P.).

[403]
Entre as críticas menores que foram feitas à Constituição
foi observado que a validade dos compromissos deveria ter
sido afumada tanto a favor dos Estados Unidos, como contra
eles; e no espírito que usualmente caracteriza as pequenas
críticas, a omissão foi transformada numa conjura contra os
direitos nacionais. Aos autores desta descoberta pode dizer-
-se, coisa de que poucos dos outros precisam de ser informados,
que como os compromissos são pela sua natureza recíprocos,
urna afirmação da sua validade de um lado, envolve necessaria-
mente a validade do outro lado, e que como o artigo é
meramente declarativo, o estabelecimento do princípio num
caso é suficiente para todos os casos. Pode ainda dizer-se que
todas as Constituições devem limitar as suas precauções a
perigos que não são inteiramente imaginários, e que não pode
existir nenhum perigo real que o governo OUSE, com esta
declaração constitucional diante de si, ou mesmo sem ela,
cancelar os débitos justamente devidos ao público com o
pretexto que aqui é condenado.
8. Providenciar para que os "aditamentos ( ... ) [sejam]
ratificados em legislaturas de três quartos dos Estados", com
duas excepções apenas.
Não se pode deixar de prever que a experiência sugerirá
alterações úteis. Por conseguinte, era indispensável que fosse
providenciada uma maneira de as introduzir. A maneira pre-
ferida pela Convenção parece ter impressas todas as marcas
da correcção. Protege igualmente contra uma extrema facili-
dade que tornaria a Constituição demasiado mutável, e contra
uma extrema dificuldade que poderia perpetuar os defeitos
que se lhe descobrissem. Mais ainda, confere igual capacidade
ao governo geral e aos governos dos Estados para originarem
a emenda dos erros, tal como podem ser salientados pela expe-
riência de um ou dos outros. A excepção a favor da igualdade
de sufrágio no Senado tinha provavelmente a intenção de ser
urna salvaguarda da soberania residual dos Estados, implicada
e assegurada por esse princípio de representação num ramo

[404]
da Legislatura, e teve provavelmente a insistência dos Estados
particularmente devotados a essa igualdade. A outra excepção
deve ter sido admitida com base nas mesmas considerações
que produziram o privilégio que ela defende.
9. "A ratificação através de Convenções de nove Estados
será suficiente para a adopção desta Constituição nos Estados
que a tiverem ratificado."lO
Este artigo fala por si. Só a autoridade expressa do povo
poderia dar a devida validade à Constituição. Ter exigido a
ratificação unânime dos treze Estados teria sujeitado os
interesses essenciais do todo ao capricho ou à corrupção de
um membro singular. Teria assinalado uma falta de previsão
da Convenção, que a nossa própria experiência teria tornado
indesculpável.
Duas questões de natureza muito delicada se apresentam
nesta ocasiãotl: 1. Com base em que princípio pode a Confe-
deração, que se ergue na forma solene de um contrato entre
os Estados, ser suplantada sem o consentimento unânime dos
que tomam parte nela? 2. Que relação deverá subsistir entre
os nove ou mais Estados que ratificarem a Constituição, e os
poucos remanescentes que não tomarem parte nela?
A primeira questão é imediatamente respondida recorrendo
à absoluta necessidade do caso, ao grande princípio da auto-
preservação e à transcendente lei da natureza e do Deus da
natureza, que declara que a segurança e felicidade da sociedade
são os objectivos a que almejam todas as instituições políticas,
e aos quais todas essas instituições devem ser sacrificadas.
TALVEZ possa também ser encontrada uma resposta sem

10 Art. 0 7. (E. P.).


li A ratificação popular em convenções estaduais garantia à Constituição
uma legitimidade política que a simples ratificação pelo poder legislativo dos
governos estad uais seria incapaz de conferir. Por outro lado, a ratificação
suficiente por nove Estados, libertava o novo plano do anátema do bloqueio
permanente, através da submissão à regra da unanimidade, que era um dos
principais defeitos dos •Artigos da Confederação•." (E. P.) .

[405]
procurar mais longe do que os princípios do próprio contrato.
Foi observado no passado, entre as imperfeições da Confedera-
ção, que, em muitos Estados, ela não tinha recebido maior
confirmação do que uma mera ratificação legislativat 2.
O princípio de reciprocidade parece exigir que a sua obriga-
toriedade para os outros Estados deva ser reduzida ao mesmo
critério. Um contrato entre soberanias independentes, fundado
em actos ordinários da autoridade legislativa, não pode preten-
der a uma validade maior do que a de uma liga ou tratado
entre as partes. É uma doutrina aceite no que respeita aos
tratados: que todos os artigos são mutuamente condicionantes
uns dos outros; que o desrespeito de um dos artigos é um
desrespeito de todo o tratado; e que um desrespeito cometido
por qualquer das partes desobriga as restantes, e autoriza-as,
se o quiserem, a declarar o tratado violado e nulo. Se desgraça-
damente fosse necessário apelar para estas verdades delicadas
como justificação para dispensar o consentimento dos Estados
particulares para uma dissolução do pacto federal, as partes
queixosas não achariam difícil a tarefa de responder às MÚL-
TIPLAS E IMPORTANTES infracções com que pudessem ser
confrontadas? Já lá vai o tempo em que nos cabia ocultar as
ideias que este parágrafo exibe. O cenário mudou agora e,
com ele, o papel que ditam os mesmos motivos.
A segunda questão não é menos delicada e a lisonjeira
perspectiva de ser meramente hipotética impede uma discussão
demasiado minuciosa dela. É um daqueles casos cujas provi-
dências devem ser deixadas a si próprias. Em geral pode
observar-se que, embora nenhuma relação política possa
subsistir entre os Estados que concordam e os que discordam,
ainda assim permanecem válidas as relações morais. As reivin-
dicações da justiça, tanto de um lado como do outro, estarão
em vigor e deverão ser respeitadas, enquanto as considerações
de um interesse comum, e acima de tudo a grata lembrança

!2 Ver artigo 22. OC).

[406]
das cenas passadas, e a antecipação do rápido triunfo sobre os
obstáculos a uma nova união não exortarão em vão, espera-
-se, à MODERAÇÃO de um lado e à PRUDÊNCIA do outro.
PUBLIUS

[407]
O FEDERALISTA N.• 44
[43]

Restrições à Autoridade dos Diferentes Estados

JAMES MADISON
25 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Uma Quinta. classe de disposições a favor da autoridade


federal consiste nas seguintes restrições à autoridade dos vários
Estados:
1. "Nenhum Estado pode: ser parte em tratados, alianças
ou confederações; conceder cartas de corso; cunhar moeda;
emitir títulos do Tesouro; autorizar o uso de qualquer coisa
que não seja ouro e prata para saldar dívidas; aprovar actos
legislativos que condenem sem julgamento, leis penais com
efeito retroactivo!, ou leis que prejudiquem as obrigações dos
contratos; ou conferir títulos de nobreza."2

* Do The New- York Packet, 25 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 26 de Janeiro no The Independent Journal e em 26 de Janeiro no The Daily
Advertiser. Recebeu o número 44 na edição de M cLean e o número 43 nos
jornais. QC).
1 Ex postfacto law, no original. (E. P.).
2 Art. • 1, Secção X, cláusula 1. (E. P.).

[409]
A proibição de tratados, alianças e confederações constitui
uma parte dos artigos da União que já existem e, por razões
que não necessitam de explicação, é copiada para a nova
Constituição. A proibição de cartas de corso é outra parte do
velho sistema, mas é de certo modo alargada no novo. De
acordo com o primeiro, as cartas de corso podiam ser concedi-
das pelos Estados depois de uma declaração de guerra; de
acordo com o último, estas licenças devem ser obtidas, tanto
durante a guerra como anteriormente à sua declaração, do
governo dos Estados Unidos. Esta alteração é inteiramente
justificada pela vantagem da uniformidade em todos os pontos
que se relacionam com potências estrangeiras; e da responsa-
bilidade imediata para com a nação de todos aqueles por cuja
conduta a própria nação é responsável.
O direito de cunhar moeda, que é aqui retirado aos Esta-
dos, foi deixado nas mãos deles pela Confederação, como um
direito concorrente com o do Congresso, com uma excepção
a favor do direito do Congresso para regulamentar a liga e o
valor. Neste caso, também, a nova disposição é um melhora-
mento em relação à antiga. Enquanto a liga e o valor depen-
derem da autoridade geral, um direito de cunhagem nos Esta-
dos particulares não pode ter outro efeito além de multiplicar
dispendiosas casas da moeda e diversificar as formas e pesos
das moedas em circulação. O último inconveniente anula um
objectivo para o qual o poder tinha sido originalmente sub-
metido ao poder federal. E na medida em que o primeiro
poderia evitar uma remessa inconveniente de ouro e prata
para a casa da moeda central para ser cunhada de novo, esse
fim também pode ser alcançado por meio de casas da moeda
locais estabelecidas sob a autoridade geral.
A extensão da proibição de títulos de crédito deve dar
prazer a todos os cidadãos, na proporção do seu amor àjustiça
e do seu conhecimento das verdadeiras fontes da prosperidade
pública. A perda que a América sofreu desde a paz, por causa
dos pestilentos efeitos do papel-moeda, em relação à necessária

[410]
confiança mútua entre os homens, em relação à necessária
confiança nos conselhos públicos, em relação à indústria e ao
moral do povo, e em relação ao carácter do Governo Repu-
blicano, constitui uma enorme dívida contraída pelos Estados
aos quais é imputável esta medida insensata, dívida que
permanecerá por muito tempo não saldada, ou melhor, uma
acumulação de culpa que não pode ser expiada senão por um
sacrificio voluntário no altar da justiça, do poder que foi o
instrumento dela. Adicionalmente a estas persuasivas considera-
ções, pode ser observado que as mesmas razões que mostram
a necessidade de negar aos Estados o poder de regulamentar
a moeda demonstram com a mesma força que eles não devem
ter a liberdade de colocar um papel em substituição da moeda.
Tivesse cada Estado um direito de regulamentar o valor da
sua moeda, e poderiam existir tantas unidades monetárias
quantos os Estados, e assim o intercâmbio entre eles seria
dificultado, poderiam ser feitas alterações retroactivas do seu
valor, e assim os cidadãos de outros Estados seriam prejudicados,
e despertadas animosidades entre os próprios Estados. Os
súbditos das potências estrangeiras poderiam sofrer pela mesma
causa, e por esse motivo a União ficaria desacreditada e emba-
raçada pela leviandade de um único membro. Nenhum destes
males está menos associado a um poder dos Estados de emitir
papel-moeda do que de cunhar ouro ou prata. O poder de
autorizar que outra coisa além de ouro ou prata seja moeda
corrente no pagamento de dívidas é retirado aos Estados com
base no mesmo princípio do do poder de emitir papel-moeda.
Leis de suspensão dos direitos civis, leis com efeito
retroactivo3 e leis que prejudiquem as obrigações dos contratos
são contrárias aos primeiros princípios do contrato social, e
a todos os princípios de sã legislação. As duas primeiras são
expressamente proibidas pelas declarações que antecedem
algumas das Constituições dos Estados, e todas elas são proibidas

3 Ex postfacto law, no original. (E. P.).

[411]
pelo espírito e desígnio dessas cartas fundamentais. A nossa
própria experiência ensinou-nos, apesar disso, que não deviam
ser omitidas barreiras adicionais contra esses perigos. Muito
adequadamente, portanto, a Convenção acrescentou este
baluarte constitucional a favor da segurança pessoal e dos
direitos privados, e estou muito enganado se, ao fazê-lo, não
consultou os sentimentos genuínos tão fielmente como os
indubitáveis interesses dos seus constituintes. O sóbrio povo
da América está cansado da orientação política variável que
tem dirigido os conselhos públicos. Tem visto com mágoa e
indignação que súbitas mudanças e interferências legislativas,
em certos casos afectando os direitos pessoais, se converteram
em negócios nas mãos de especuladores empreendedores e
influentes, e em ciladas para a parte da comunidade mais
industriosa e menos informada. Tem visto também que uma
interferência legislativa não é mais do que o primeiro elo de
uma longa cadeia de repetições, sendo cada interferência
subsequente naturalmente produzida pelos efeitos da pre-
cedente. Infere daí o povo, com muita razão, portanto, que
faz falta uma reforma profunda que venha banir as espe-
culações nas medidas públicas, inspirar uma prudência e
uma indústria gerais, e dar um curso regular aos assuntos da
sociedade. A proibição respeitante aos títulos de nobreza é
copiada dos artigos da Confederação e não carece de comen-
tário.
2. "Nenhum Estado poderá, sem o consentimento do
Congresso, lançar impostos ou direitos sobre importações ou
exportações, excepto os absolutamente necessários à execução
das suas leis de inspecção, e o produto líquido de todos os
direitos e impostos lançado por um Estado sobre as impor-
tações ou exportações passará para o Tesouro do E tados
Unidos; e todas as leis dessa natureza ficarão sujeitas à revisão
e controlo do Congresso. Nenhum Estado poderá, sem o
consentimento do Congresso, lançar qualquer direito de tone-
lagem, manter tropas ou navios de guerra em tempo de paz,

[412]
celebrar acordos ou pactos com outro Estado, ou com potências
estrangeiras, ou entrar em guerra, excepto quando invadido
ou o perigo seja tão iminente que não admita demora."4
A restrição da autoridade dos Estados sobre as importações
e exportações é apoiada por todos os argumentos que demons-
tram a necessidade de submeter a regulamentação do comércio
aos órgãos federais. Por este motivo, são desnecessárias mais
observações sobre este assunto, bastando dizer que a maneira
como a restrição é caracterizada parece bem imaginada para
assegurar imediatamente aos Estados um critério razoável no
providenciar para a conveniência das suas importações e expor-
tações, e garantir aos Estados Unidos um controlo razoável
contra o abuso desse critério. As particularidades remanescentes
desta cláusula caem dentro de raciocínios que ou são tão
óbvios, ou foram tão extensamente desenvolvidos, que podem
ser passados por alto sem observações.
A sexta e última classe consiste nos vários poderes e dis-
posições por meio das quais é dada eficácia a todas as restantes.
1. Destes, o primeiro é o poder de "elaborar todas as leis
necessárias e adequadas ao exercício dos poderes acima mencio-
nados e de todos os outros Poderes conferidos pela presente
Constituição ao Governo dos Estados Unidos, ou a qualquer
seu departamento ou funcionário "s.
Poucas partes da Constituição foram atacadas com mais
intemperança do que esta. Todavia, num exame honesto,
nenhuma parte pode aparecer mais completamente invulnerá-
vel. Sem a substância deste poder, toda a Constituição seria
letra morta. Por consequência, os que objectam ao artigo
como uma parte da Constituição só podem querer dizer que
a forma da cláusula é incorrecta. Mas consideraram eles se ela
podia ser substituída por uma forma melhor?

4 Art. o 1, secção X, cláusula 2. (E. P.)


5 Art. o 1, secção VIII, cláusula 18. (E. P.)

[413]
Há quatro outros métodos possíveis que a Convenção
poderia ter adoptado nesta matéria. Podia ter copiado o artigo
segundo da Confederação existente, que teria proibido o
exercício de qualquer poder não delegado expressamente; podia
ter tentado uma enumeração positiva dos poderes abrangidos
pelos termos gerais "necessárias e adequadas"; podia ter tentado
uma enumeração negativa, especificando os poderes exceptua-
dos da definição geral; podia ter ficado completamente silen-
ciosa sobre a matéria, deixando esses poderes necessários e
adequados à interpretação e à inferência.
Tivesse a Convenção usado o primeiro método de adoptar
o segundo artigo da Confederação, e é evidente que o novo
Congresso estaria continuamente exposto, como o seu ante-
cessor esteve, à alternativa de interpretar o termo "expressa-
mente" com tanto rigor que retirasse ao governo toda a autori-
dade efectiva possível, ou com tanta latitude que destruísse
inteiramente a força da restrição. Seria fãcil mostrar, se isso
se revelasse necessário, que nenhum poder importante, dele-
gado pelos artigos da Confederação, foi ou pode ser executado
pelo Congresso sem recorrer mais ou menos à doutrina da
interpretação ou implicação. Como os poderes delegados no
novo sistema são mais alargados, o governo que vai administrá-
-los teria ainda mais dificuldades perante a alternativa de trair
os interesses públicos ou de violar a Constituição pelo exercício
dos poderes indispensavelmente necessários e adequados mas,
ao mesmo tempo, não concedidos expressamente.
Tivesse a Convenção tentado uma enumeração positiva
dos poderes necessários e adequados para tornar efectivos os
seus poderes, a tentativa teria envolvido um sumário completo
de leis acerca de todos os assuntos a que a Constituição se
refere. Adaptado também, não somente ao estado de coisas
existente, mas a todas as mudanças possíveis que o futuro
poderá produzir, porque, em cada nova aplicação de um poder
geral, os poderes particulares, que são os meios de alcançar o
objectivo do poder geral, têm necessariamente que variar com

[414]
esse objectivo, e ser, com frequência, adequadamente variados
enquanto o objectivo permanece o mesmo.
Tivesse ela tentado enumerar os poderes particulares ou
meios não necessários ou adequados para pôr em execução os
poderes gerais, a tarefa teria sido não menos quimérica, e teria
sido sujeita a esta objecção adicional que cada falta na enume-
ração teria sido equivalente a uma concessão positiva de auto-
ridade. Se, para evitar esta consequência, ela tivesse tentado
uma enumeração parcial das excepções, e descrevesse as restantes
pelos termos gerais não necessário ou adequado, deveria ter
acontecido que a enumeração abrangeria apenas uns poucos
dos poderes exceptuados e que estes seriam os menos provavel-
mente assumidos ou tolerados porque a enumeração indubita-
velmente escolheria os que fossem menos necessários ou
adequados e os poderes desnecessários ou inadequados e residuais
seriam menos energicamente exceptuados do que se não tivesse
sido feita nenhuma enumeração parcial.
Tivesse a Constituição ficado silenciosa sobre esta matéria,
e não pode haver dúvida de que todos os poderes particulares,
indispensáveis enquanto meios de pôr em execução os poderes
gerais, teriam revertido para o governo, por inevitável
implicação. Nenhum axioma está mais claramente estabelecido,
na lei ou na razão, do que sempre que se quer o fim, os meios
são autorizados; sempre que é dado um poder geral para fazer
uma coisa, e tá nele incluído qualquer poder particular neces-
sário para a fazer. Por consequência, tivesse este último método
sido seguido pela Convenção, todas as objecções agora alegadas
contra o plano apresentado teriam toda a plausibilidade, e
incorrer-se-ia no inconveniente real de não remover um
pretexto que pode ser usado em ocasiões críticas para pôr em
questão os poderes essenciais da União.
Se perguntarem: Qual será a consequência, no caso em
que o Congresso venha a interpretar incorrectamente esta
parte da Constituição e a exercer poderes não concedidos
pelo verdadeiro sentido desta? Respondo: o mesmo que se

[415]
vier a interpretar incorrectamente ou aumentar qualquer
outro poder nele investido, como se o poder geral tivesse sido
reduzido a particulares, e qualquer desses viesse a ser violado;
o mesmo, em suma, que se as legislaturas dos Estados viessem
a violar as suas autoridades constitucionais respectivas. No
primeiro caso, o sucesso da usurpação dependeria dos departa-
mentos executivo e judicial, que têm a tarefa de tornar efectivos
os actos legislativos; e em último recurso tem de se obter um
remédio a partir do povo que pode, através da eleição de repre-
sentantes mais fiéis, anular os actos dos usurpadores. A verdade
é que se pode confiar que esta derradeira reparação seja mais
eficaz contra actos inconstitucionais da Legislatura federal do
que contra as Legislaturas dos Estados, por esta razão simples,
que como um tal acto da primeira será uma violação dos direitos
das últimas, estas estarão sempre prontas a assinalar a inovação,
a soar o alarme para o povo, e a exercer a sua influência local
na efectivação de uma mudança dos representantes federais.
Não havendo entre as legislaturas dos Estados e o povo corpos
intermédios interessados em vigiar a conduta da primeira, será
mais provável que as violações das Constituições dos Estados
permaneçam despercebidas e não corrigidas.
2. "Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos que sejam
feitas em conformidade e todos os tratados celebrados ou por
celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos constituirão a
lei suprema da nação. E os juízes de todos os Estados a ela
estarão sujeitos, não obstante qualquer disposição em contrário
na Constituição ou leis de qualquer dos Estados."6
O pouco prudente entusiasmo dos adversários da Cons-
tituição seduziu-os para um ataque também a esta parte, sem
a qual a Constituição teria sido evidente e radicalmente

6 Art. 0 6, cláusula 2. Trata-se aqui da famosa "cláusula da supremacia"


(s1~premacy clause), que garante o primado das leis federais sobre as estaduais
em caso de colisão, e sempre que a constitucionalidade das primeiras esteja
plenamente confirmada. (E. P.) .

[416]
defeituosa. Para ser inteiramente sensível a isto precisamos
apenas de supor por um momento que a supremacia das
Constituições dos Estados tivesse sido deixada na Íntegra por
meio de uma cláusula de ressalva em seu favor.
Em primeiro lugar, como essas Constituições investem as
Legislaturas dos Estados com uma soberania absoluta, em todos
os casos não exceptuados pelos Artigos da Confederação
existentes, todas as autoridades contidas na Constituição proposta,
na medida em que excedessem as enumeradas na Confederação,
teriam sido anuladas, e o novo Congresso teria sido reduzido
à mesma condição impotente dos seus antecessores.
Em seguida, como as Constituições de alguns dos Estados
nem sequer reconhecem expressa e completamente os poderes
existentes da Confederação, uma salvaguarda expressa da supre-
macia das primeiras teria, nesses Estados, posto em questão
todos os poderes contidos na Constituição proposta.
Em terceiro lugar, como as Constituições dos Estados
diferem muito umas das outras, podia acontecer que um tra-
tado ou lei nacional, de grande e igual importância para os
Estados, viesse a interferir com umas e não com outras Consti-
tuições e, consequentemente, fosse válido em alguns Estados,
ao mesmo tempo que não teria nenhum efeito em outros.
Por fim, o mundo teria visto, pela primeira vez, um sistema
de governo fundado numa inversão dos princípios fundamen-
tais de todo o governo; teria visto a autoridade de toda a
sociedade subordinada em todas as coisas à autoridade das
partes; teria visto um monstro no qual a cabeça estava sob a
direcção dos membros.
3. "Os senadores e deputados acima mencionados, os mem-
bros dos órgãos legislativos dos diversos Estados e todos os
funcionários dos poderes executivo e judicial, tanto dos Estados
Unidos como dos diferentes Estados, obrigar-se-ão, por jura-
mento ou declaração solene, a defender esta Constituição" 7 .

7 Art. o 6, cláusula 3. (E. P.)

[417]
Perguntou-se: Porque foi julgado necessário que a magis-
tratura dos Estados fosse obrigada a apoiar a Constituição
Federal e desnecessário que um juramento semelhante fosse
imposto aos funcionários dos Estados Unidos, a favor das
Constituições dos Estados?
Várias razões se podem aduzir para esta distinção. Con-
tento-me com uma, que é óbvia e conclusiva. Os membros
do Governo Federal não terão qualquer actuação na efectivação
das Constituições dos Estados. Os membros e funcionários
dos Governos dos Estados, pelo contrário, terão uma actuação
essencial na efectivação da Constituição Federal. A eleição
do Presidente e do Senado dependerá, em todos os casos, das
Legislaturas dos vários Estados. E a eleição da Câmara dos
Representantes dependerá igualmente em primeira instância
da mesma autoridade, e, provavelmente, será sempre conduzida
pelos funcionários, e de acordo com as leis dos Estados.
4. Entre as providências para conferir eficácia aos poderes
federais podem ser acrescentadas as que pertencem aos depar-
tamentos executivo e judicial. Mas, como estas estão reservadas
para um exame particular num outro lugar8, passo por cima
delas aqui.
Passámos já em revista, detalhadamente, todos os artigos
compondo a totalidade ou quantidade de poder delegado no
Governo Federal pela Constituição proposta, e somos levados
a esta inegável conclusão que nenhuma parte do poder é
desnecessária ou inadequada para cumprir os objectivos
necessários da União. Portanto, a questão de saber se esta
quantidade de poder deve ou não ser concedida, transforma-
-se numa outra questão, se deve ou não ser estabelecido um
governo proporcionado às exigências da União, ou, por outras
palavras, se a própria União deve ser preservada.
PUBLIUS

8 Ver artigos 65-85. QC) .

[418]
O FEDERALISTA N.• 45
[44]

Consideração do Alegado Perigo


para os Governos Estaduais Decorrentes
dos Poderes da União

JAMES MADISON
26 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Tendo mostrado que nenhum dos poderes transferidos


para o governo federal é desnecessário ou inadequado, a
próxima questão a considerar é se o conjunto de todos eles
será perigoso para a porção de autoridade deixada aos vários
Estados.
Os adversários do plano da Convenção, em vez de
considerarem em primeiro lugar que grau de poder era
absolutamente necessário para os fins do Governo federal,
esgotaram-se numa investigação secundária sobre as possíveis

* Do Th e Independent }Ol~rnal de 26 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 29 de Janeiro no The New- York Packet e em 30 de Janeiro no
The Daily Advertiser. R ecebeu o número 45 na edição de McLean e o número
44 nos jornais. QC).

[419]
consequências que o grau de poder proposto teria para os
governos dos Estados singulares. Mas se a União, como foi
mostrado, é essencial para a segurança do povo da América
frente aos perigos externos; se é essencial para a sua segurança
em relação a diferendos e guerras entre os diferentes Estados;
se é essencial para os proteger dessas facções violentas e
opressoras que amarguram as bênçãos da liberdade, e desses
efectivos militares que gradualmente envenenarão a sua própria
fonte; se, numa palavra, a União é essencial para a felicidade
do povo da América, não é absurdo alegar, como objecção a
um governo sem o qual os objectivos da União não podem
ser alcançados, que esse Governo pode derrogar a importância
dos governos dos Estados individuais? Então, a Revolução
Americana foi feita, a Confederação Americana formada, o
sangue precioso de milhares derramado, e o sustento, ganho
custosamente, de milhões esbanjado, não para que o povo da
América viesse a desfrutar de paz, liberdade, e segurança, mas
para que os governos dos Estados individuais, esses estabele-
cimentos municipais particulares, pudessem gozar de uma
certa extensão de poder, e ser ataviados com certas dignidades
e atributos da soberania? Ouvimos a ímpia doutrina no velho
mundo que os povos foram feitos para os reis, e não os reis
para os povos. Deve a mesma doutrina ser ressuscitada no
novo, com outra forma, que a sólida felicidade do povo deve
ser sacrificada aos pontos de vista de instituições políticas de
uma forma diferente? É demasiado cedo para que os políticos
tirem partido do nosso esquecimento de que o bem público,
o efectivo bem-estar da grande massa do povo, é o supremo
objectivo a perseguir, e de que nenhuma forma de governo,
seja ela qual for, tem qualquer outro valor além do que pode
ser adequado para atingir este objectivo. Se o plano da
Convenção fosse contrário à felicidade pública, eu diria:
Rejeitem o plano. Se a própria União fosse inconsistente com
a felicidade pública, diria: Extingam a União. Da mesma
maneira, na medida em que a soberania dos Estados não pode

[420]
ser reconciliada com a felicidade do povo, o que todos os
bons cidadãos têm a dizer deve ser: Deixem que a primeira
seja sacrificada à última. Até onde é que é necessário o sacri-
fício, foi já mostrado. Até onde é que o resíduo não sacrificado
será posto em perigo, é a questão diante de nós.
Foram abordadas no decurso destes artigos várias importan-
tes considerações que invalidam essa suposição que o funcio-
namento do governo federal se mostrará gradualmente fatal
para os governos dos Estados. Quanto mais revolvo o assunto,
mais completamente persuadido fico de que é muito mais
provável que o equilíbrio seja perturbado pela preponderância
dos últimos do que pela do primeiro.
Vimos, em todos os exemplos de confederações antigas
e modernas, traindo-se continuamente nos membros, a mais
forte tendência para despojar o Governo geral da sua autori-
dade, juntamente com uma capacidade muito ineficaz do
último para se defender das usurpações. Apesar de, na maior
parte desses exemplos, o sistema ter sido tão dissemelhante
do que estamos a considerar, a tal ponto que enfraquece
qualquer inferência respeitante ao último a partir do destino
dos primeiros, apesar disso, como os Estados conservarão, sob
a Constituição proposta, uma porção muito extensa de
soberania activa, a inferência não deve ser totalmente posta
de lado. Na liga Acaia é provável que a chefia federal tivesse
um grau e uma espécie de poder que lhe conferia uma seme-
lhança considerável com o governo estruturado pela Conven-
ção. A Confederação Lícia, tanto quanto temos notícia dos
seus princípios e formas, deve ter tido uma analogia ainda
maior com ele. Não obstante, a história não nos diz que
alguma delas tenha em qualquer ocasião degenerado, ou
tendido para degenerar, num governo consolidado único.
Pelo contrário, sabemos que a ruína de uma delas proveio da
incapacidade da autoridade federal para obstar às dissensões,
e por fim à desunião, das autoridades subordinadas. Estes casos
são ainda mais merecedores da nossa atenção, dado que as

[421]
causas externas pelas quais as partes componentes se juntaram
eram muito mais numerosas e fortes do que no nosso caso,
e, consequentemente, laços menos fortes no seu interior
seriam suficientes para ligar os membros à chefia, e uns aos
outros.
No sistema feudal, vimos exemplificada uma propensão
semelhante. Não obstante a ausência de adequada simpatia,
em todos os casos, entre as soberanias locais e o povo e, em
alguns casos, a ausência de harmonia entre o soberano geral
e este último, aconteceu habitualmente que os soberanos
locais prevaleceram na rivalidade em relação às usurpações.
Se os perigos externos não tivessem reforçado a harmonia
interna e a subordinação, e em particular, se os soberanos
locais tivessem possuído o afecto do povo, os grandes reinos
da Europa consistiriam neste momento em tantos prínci-
pes independentes quantos os barões feudatários que anterior-
mente existiram.
Os Governos dos Estados terão a vantagem perante o
Governo Federal, quer os comparemos a respeito da imediata
dependência de um ou dos outros, quer no aspecto do peso
da influência pessoal que cada lado possuirá, quer no dos
poderes respectivamente investidos em cada um deles, quer
na predilecção e provável apoio do povo, quer na disposição
e faculdade de resistir às medidas uns dos outros e de as frustrar.
Os Governos dos Estados podem ser vistos como cons-
tituintes e partes essenciais do Governo federal, ao passo que
o último não é de maneira nenhuma essencial para o funciona-
mento ou organização dos primeiros. Sem a intervenção das
Legislaturas dos Estados, o Presidente dos Estados Unidos
não pode sequer ser eleito. Elas devem em todos os casos ter
um grande quinhão na sua nomeação e, em muitos casos,
talvez determinem essa nomeação. O Senado será eleito
absoluta e exclusivamente pelas Legislaturas dos Estados. Até
a Câmara dos Representantes, embora eleita directamente
pelo povo, será escolhida em grande parte sob a influência

[422]
dessa classe de homens cuja preponderância sobre o povo lhes
garante uma eleição para as Legislaturas dos Estados. Assim,
cada um dos principais ramos do Governo federal deverá a
sua existência, em maior ou menor parte, ao favor dos Gover-
nos dos Estados e tem, por consequência, de sentir uma depen-
dência, que é muito mais provável que produza uma disposição
demasiado obsequiosa mais do que dominadora em relação
a eles. Do outro lado, as partes componentes dos Governos
dos Estados em caso algum deverão a sua nomeação à actuação
directa do governo federal, e deverão muito pouco, se deverem
alguma coisa, à influência local dos membros deste último.
O número de funcionários no quadro da vigência da
Constituição dos Estados Unidos será muito menor do que
o número de funcionário dos Estados singulares. Consequente-
mente, do lado do primeiro haverá menos influência pessoal
do que do lado dos últimos. Os membros dos departamentos
legislativo, executivo e judicial de treze ou mais Estados, os
juizes de paz, os oficiais da milícia, os funcionários ministeriais
de justiça, com todos os funcionários dos condados, das cidades,
das corporações, para três milhões ou mais de pessoas, mistu-
rados e tendo conhecimento particular de todas as classes e
círculos de pessoas, têm de exceder, para lá de toda a proporção,
tanto em número como em influência, os funcionários de
todos os tipos que serão empregues na administração do sistema
federal. Comparem-se os membros dos três grandes departa-
mentos dos treze Estados, excluindo do departamento judicial
os juízes de paz, com os membros dos departamentos corres-
pondentes do Governo único da União; comparem-se os
oficiais da milícia de três milhões de pessoas com os oficiais
do exército e da marinha de todas as instituições que estão
dentro dos limites da probabilidade, ou, posso acrescentar, da
possibilidade, e só deste ponto de vista pode declarar-se que
a vantagem dos Estados será decisiva. Se o Governo federal
vai ter cobradores de impostos, os Governos dos Estados tam-
bém terão os deles. E como os do primeiro estarão princi-

[423]
palmente na orla marítima, e não serão muito numerosos,
enquanto os dos últimos estarão espalhados por todo o país,
e serão muito numerosos, a vantagem neste aspecto está tam-
bém do mesmo lado. É verdade que a confederação possuirá,
e poderá exercer, o poder de cobrar impostos, tanto internos
como externos, por intermédio dos Estados. Mas é provável
que não se recorra a este poder, excepto para fins suplementares
de rendimento, que seja dada aos Estados a opção de contribuir
com as suas quotas-partes através de cobranças prévias feitas
por eles, e que a cobrança eventual, debaixo da autoridade
imediata da União, seja em geral feita pelos funcionários
nomeados e segundo as regras ditadas pelos vários Estados.
De facto é extremamente provável que em outros casos,
particularmente na organização do poder judicial, os funcio-
nários dos Estados sejam investidos da autoridade correspon-
dente da União. Se acontecer, todavia, que sejam nomeados
cobradores separados de impostos internos pelo governo
federal, a influência do número total não sofre comparação
com a da multidão de funcionários dos Estados no outro prato
da balança. No interior de cada distrito distribuído a um
cobrador federal haverá não menos de trinta ou quarenta, ou
mesmo mais, funcionários de vários géneros, e muitos deles
pessoas de carácter e de peso, cuja influência estará do lado
do Estado.
Os poderes delegados no Governo Federal pela Constitui-
ção proposta são poucos e definidos1. Os que irão permanecer
nos Governos dos Estados são numerosos e indefinidos. Os
primeiros serão exercidos principalmente sobre objectos
externos, como a guerra, a paz, a negociação, e o comércio

1 Ao insistir na tese de qu e os poderes da União são definidos e enu-

merados, Madison pretende sublinhar a grande amplitude dos poderes residuais


dos Estados. Situação inversa é a do Canadá, onde, de acordo com a Constituição
de 1867 (revista em 1982), são os governos provinciais que têm poderes
definidos e a autoridade federal poderes residuais. (E . P.).

[424]
externo; e será a este último que o poder de tributação estará,
na sua maior parte, ligado. Os poderes reservados aos vários
Estados estender-se-ão a todos os objectos que, no curso
normal das coisas, dizem respeito à vida, à liberdade, e à
propriedade do povo, e à ordem interna, ao desenvolvimento,
e à prosperidade do Estado.
As operações do Governo Federal serão mais vastas e
importantes em tempo de guerra e de perigo; as dos Governos
dos Estados, em tempo de paz e segurança. Como os primeiros
períodos estarão provavelmente numa pequena proporção em
relação aos últimos, os Governos dos Estados desfrutarão aqui
de outra vantagem sobre o Governo Federal. De facto, quanto
mais adequados à defesa nacional possam ser tornados os
poderes federais, tanto menos frequentes serão esses palcos
de perigo que podem favorecer o seu ascendente sobre os
governos dos Estados particulares.
Se a nova Constituição for examinada com rigor e lisura,
ver-se-á que a mudança que ela propõe consiste muito menos
na adição de NOVOS PODERES à União do que no fortaleci-
mento dos seus PODERES ORIGINAIS. É certo que a regulamen-
tação do comércio é um novo poder, mas isso parece ser um
acrescento a que poucos se opõem, e em relação ao qual não
são albergadas apreensões. Os poderes relacionados com a paz
e com a guerra, com exércitos e esquadras, com tratados e
finanças, juntamente com os outros poderes mais consideráveis,
estão todos investidos no Congresso existente pelos Artigos
da Confederação. A mudança proposta não aumenta esses
poderes; apenas substitui o modo de os administrar por outro
mais eficaz. A alteração referente à tributação pode ser vista
como a mais importante; e, todavia, o presente Congresso
tem uma autoridade tão completa para EXIGIR dos Estados
suprimentos indefinidos de dinheiro para a defesa comum e
bem-estar geral, como o futuro Congresso terá para os exigir
aos cidadãos individuais; e os últimos não estarão mais obriga-
dos a pagar do que têm estado os próprios Estados quanto às

[425]
quotas-partes que lhes são respectivamente impostas. Tivessem
os Estados cumprido pontualmente os Artigos da Confedera-
ção, ou pudesse esse cumprimento ser posto em vigor por
meios tão pacíficos como os que podem ser usados com sucesso
em relação a pessoas singulares, e a nossa experiência passada
está muito longe de confirmar a opinião de que os governos
dos Estados teriam perdido os seus poderes constitucionais,
e teriam sofrido gradualmente uma completa consolidação.
Sustentar que tal acontecimento se teria seguido seria dizer
imediatamente que a existência dos governos dos Estados é
incompatível com qualquer sistema que realiza os propósitos
essenciais da União.
PUBLIUS

(426]
O FEDERALISTA N." 46
[45)

Comparação entre a Influência


dos Governos Estadual e Federal

JAMES MADISON
29 de Janeiro de 1788

Ao Pov do Estado de Nova Iorque.

Retomando o assunto do último artigo, prossigo inqui-


rindo qual deles, se o Governo Federal ou os Governos do
Estados, é que estará em vantagem com respeito à predilecção
e apoio do povo. Não obstante os diferentes modos como
são designados, devemos considerar ambos como substancial-
mente dependentes do grande corpo dos cidadãos dos Estados
Unidos. Assumo esta posição aqui no que respeita ao primeiro,
reservando as demonstrações para outro localt. Os Governos

* Do T1ze New-York Packet, 29 de Janeiro de 1788. Este artigo foi publicado


em 30 de Janeiro no The Jndependent ) ou mal e em 31 de Janeiro no The Daily
Advertiser. Recebeu o número 46 na edição de McLean e o número 45 nos
jornais. oq.
1 A demonstração de que o governo Federal seria substancialmente

"dependente do grande corpo dos cidadãos" é dada nos artigos 52-85, que
discutem detalhadamente a organização dos três ramos do governo. Madison

(427]
federal e dos Estados não são mais, de facto, do que diferentes
agentes e curadores do povo, constituídos com diferentes
poderes, e designados para diferentes propósitos. Os adversários
da Constituição parecem ter perdido completamente de vista
o povo nos seus argumentos sobre esta matéria, e ter visto
estas diferentes instituições, não somente como rivais e inimigas
mútuas, mas como não controladas por nenhum superior
comum nos seus esforços para usurpar as autoridades umas
das outras. Esses senhores devem ser advertidos aqui do seu
erro. Deve dizer-se-lhes que a derradeira autoridade, onde
quer que possa ser encontrado o que dela deriva, reside apenas
no povo, e não dependerá meramente da ambição ou habili-
dade comparativas dos diferentes governos, nem de apurar se
um ou outro, ou qual deles, será capaz de alargar a sua esfera
de jurisdição à custa do outro. A verdade, não menos do que
a decência, exige que o que acontecer em todos os casos se
deva supor como dependente dos sentimentos e da aprovação
dos seus constituintes comuns.
Muitas considerações, além das sugeridas numa ocasião
anterior, parecem pôr fora de dúvida que o primeiro e mais
natural afecto do povo será para com os governos dos respec-
tivos Estados2 . Um grande número de indivíduos esperará
ascender à administração destes. Da sua actuação surgirá um
grande número de cargos e emolumentos. Através do trabalho
de superintender estes últimos, todos os interesses mais
domésticos e pessoais das pessoas serão regulamentados e
objecto de providências. As pessoas serão mais familiar e
minuciosamente versadas nos assuntos dos Estados. E com os
membros dos Estados, será maior a proporção de pessoas que
terão laços de conhecimento pessoal e amizade, e ligações de
família e partido; portanto, pode bem esperar-se que a pareia-

refere-se em particular aos artigos 52-61 , que tratam da Câmara dos Repre-
sentantes. QC).
2 Ver artigo 17. QC) .

[428)
lidade popular se incline muito fortemente para o lado dos
Estados.
A experiência, neste caso, diz o mesmo. A administração
federal, embora tenha sido até agora muito defeituosa em
comparação com o que pode ser esperado de um sistema
melhor, teve, durante a guerra e em particular enquanto
vigorou o fundo independente de emissão de títulos de crédito,
uma actividade e uma importância tão grande como pode
muito bem ter em qualquer circunstância futura, seja ela qual
for3. Estava empenhada, também, num conjunto de medidas
que tinham por objectivo a protecção de tudo o que era caro
e a aquisição de tudo o que pudesse ser desejável para a maioria
das pes oas. Apesar disso, depois de ter acabado o entusiasmo
efémero pelo primeiro Congresso, viu-se invariavelmente
que a atenção e o afecto do povo se voltavam outra vez para
os seus próprios governos particulares; que o Conselho Federal
não foi em tempo algum o ídolo do favor popular; e que a
oposição aos alargamentos do seu poder e importância que
foram propostos era o partido normalmente tomado pelos
homens que desejavam construir a sua relevância politica com
base nas predisposições dos seus concidadãos.
Portanto, como noutro lugar foi observado, se, no futuro,
o povo viesse a tornar-se mais parcial em relação ao governo
federal do que em relação aos governos dos Estados, a mudança
só poderia resultar de provas manifestas e irresistíveis de uma
melhor administração, tais que superem todas as suas predispo-
sições anteriores4. E nesse caso, o povo não deve certamente

3 Na altura em que a Constituição federal foi aprovada, os EUA estavam


longe de constituir um mercado interno nacional coeso e coe rente. Só em
1794 seria cunhado o primeiro dólar, na sequência do Coinage Act de 1792.
Alexander Hamilton foi um pioneiro na defesa da necessidade de um banco
central federal. Mas a verdade é que, depois de várias falsas partidas, só em
1913 o Congresso aprovaria o Federal R eserve Act, que deu origem ao banco
central dos EUA, coloquialmente co nhecido por "Fed". (E. P.).
4 Ver artigo 27. QC).

[429]
ser impossibilitado de dar a maior parte da sua confiança ao
que possa achar que melhor a merece. Mas mesmo nesse caso
os governos dos Estados poderiam ter pouco a recear, porque
é só dentro de uma certa esfera que o poder federal pode,
pela natureza das coisas, ser vantajosamente administrado.
Os pontos remanescentes sobre os quais me propus
comparar os governos federal e estaduais são a disposição e a
faculdade que podem respectivamente possuir de resistir e
frustrar as medidas uns dos outros.
Foi já provado que os membros do Governo Federal serão
mais dependentes dos membros dos Governos dos Estados
do que os últimos o serão do primeiros. Ficou também patente
que as predisposições do povo, do qual ambos dependem,
estarão mais do lado dos Governos dos Estados do que do
lado do Governo Federal. Tanto quanto a disposição de cada
um em relação aos outros pode ser influenciada por estas
causas, os Governos dos Estados estarão claramente em vanta-
gem. Mas de um ponto de vista distinto e muito importante,
a vantagem estará do mesmo lado. As predisposições que os
próprios membros trazem para o Governo Federal serão em
geral favoráveis aos Estados; ao passo que raramente acontecerá
que os membros dos Governos dos Estados tragam para os
conselhos públicos uma inclinação favorável ao Governo geral.
Prevalecerá infalivelmente um espírito local nos membros do
Congresso muito mais do que prevalecerá um espírito nacional
nas Legislaturas dos Estados particulares. Todos sabem que
uma grande proporção dos erros cometidos pelas Legislaturas
dos Estados decorre da disposição dos membros para sacrificar
o interesse global e permanente do Estado aos pontos de vista
particulares e separados dos condados ou distritos em que
residem. E se não alargam suficientemente a sua visão política
para abarcar o bem-estar colectivo do seu Estado particular,
como pode imaginar-se que farão da prosperidade global da

5 Ver artigo 17. QC).

[430]
União e da dignidade e respeitabilidade do seu Governo objec-
tos da sua afeição e deliberação? Pela mesma razão qu e é
improvável que os membros das legislaturas se dediquem
suficientemente aos objectivos nacionais, é também provável
que os membros da legislatura federal se devotem demasiado
a objectivos locais. Os Estados estarão para a União como os
condados e as cidades estão para os Estados. Com muita fre-
quência serão decididas medidas segundo o seu efeito provável,
não na prosperidade e felicidade nacionais, mas nos preconcei-
tos, interesses, e actividades dos Governos e povo dos Estados
individ ais. Qual é o espírito que tem em geral caracterizado
os debates do Congresso? Uma leitura das suas actas, bem
como as cândidas confirmações de pessoas que tiveram assento
nessa assembleia, informar-nos-ão de que os membros mostra-
ram demasiado frequentemente um carácter que é mais de
sequazes dos seus respectivos Estados do que de guardiões
imparciais de um interesse comum; de que para cada ocasião
em que se sacrificaram impropriamente as considerações locais,
para engrandecimento do Governo Federal, houve centenas
em que os grandes interesses da nação sofreram, por causa de
uma atenção indevida aos preconceitos locais, interesses e
pontos de vista dos Estados particulares. Com estas reflexões
não pretendo insinuar que o novo Governo Federal não
adoptará um plano de política mais alargado do que aquele
que o governo existente adoptou, e muito menos que os seus
pontos de vista serão tão confinados como os das legislaturas
dos Estados, mas apenas que partilhará suficientemente do
espírito de ambos, para não ter inclinação para usurpar os
direitos dos Estados individuais, ou as prerrogativas dos seus
Governos. Os motivos do lado dos Governos dos Estados para
aumentar as suas prerrogativas através da apropriação indevida
de prerrogativas do Governo Federal, não serão anulados por
nenhumas predisposições recíprocas dos membros deste.
Se for admitido, todavia, que o Governo Federal pode
sentir uma disposição idêntica à dos Governos dos Estados

[431]
para estender os seus poderes para lá dos limites justos, os
últimos ainda teriam vantagem quanto aos meios de impedir
tais usurpações. Se uma lei de um Estado particular, embora
adversa ao governo nacional, for generalizadamente popular
nesse Estado e não violar demasiado grosseiramente os jura-
mentos dos funcionários do Estado, ela é imediatamente exe-
cutada e, é claro, por meios disponíveis e que dependem
apenas do Estado. A oposição do Governo Federal, ou a
interposição de funcionários federais, não faria mais do que
inflamar o zelo de todos os partidos que alinhassem com o
Estado, e o mal só poderia ser impedido ou remediado, se o
pudesse, com o emprego de meios aos quais se deve sempre
recorrer com relutância e dificuldade. Por outro lado, se uma
medida injustificável do Governo Federal fosse impopular em
certos Estados, o que raras vezes deixaria de acontecer, ou
mesmo se uma medida justificável o fosse, o que pode por
vezes ser o caso, os meios de se opor a ela são poderosos e
estão à mão. A inquietação do povo, a sua repugnância e, tal-
vez, recusa em cooperar com os funcionários da União, os
olhares severos da magistratura executiva do Estado, os embara-
ços criados por dispositivos legislativos, que seriam frequente-
mente acrescentados em tais ocasiões, oporiam, em qualquer
Estado, dificuldades que não são de desprezar. Criariam, num
Estado grande, impedimentos muito sérios, e nos casos em
que acontecesse que os sentimentos de vários Estados adja-
centes estivessem em uníssono, apresentariam obstruções que
o Governo Federal dificilmente está desejoso de encontrar.
Mas as usurpações ambiciosas da autoridade dos Governos
dos Estados pelo Governo Federal não excitariam a oposição
de um só Estado, ou de apenas alguns Estados. Seriam sinais
de alarme geral. Todos os governos abraçariam a causa comum.
Seria aberto um canal de comunicação. Seriam concertados
planos de resistência. Um só espírito animaria e conduziria
o todo. Numa palavra, resultariam de uma apreensão do jugo
federal as mesmas combinações que foram produzidas pelo

(432]
receio de um jugo estrangeiro. E a menos que as inovações
projectadas fossem abandonadas voluntariamente, o mesmo
apelo a uma prova de força seria feito num caso como foi
feito no outro. Mas que grau de loucura pode alguma vez
impelir o Governo Federal para tais medidas extremas? Na
guerra com a Grã-Bretanha, uma parte do império foi empre-
gue contra a outra. A parte mais numerosa usurpou os direitos
da parte menos numerosa. A tentativa foi injusta e insensata,
mas não foi absolutamente quimérica em termos de especula-
ção. Mas qual seria o conflito no caso que estamos a supor?
Quem seriam as partes em contenda? Um punhado de
representantes do povo teria a oposição do próprio povo, ou
melhor, um conjunto de representantes estaria a lutar contra
treze conjuntos de representantes, com todo o corpo dos seus
constituintes comuns do lado destes últimos.
O único refúgio que resta para os que profetizam a queda
dos Governos dos Estados é a suposição visionária de que o
Governo Federal pode acumular previamente urna força militar
para os projectos da ambição. Os argumentos contidos nestes
artigos teriam sido escritos com muito pouco proveito se fosse
necessário refutar agora a realidade deste perigo. Que o povo
e os Estados venham, durante um período suficiente de tempo,
a eleger uma série ininterrupta de homens prontos a traí-los
a ambos; que os traidores venham, ao longo desse período, a
prosseguir uniforme e sistematicamente um plano fixado para
a extensão dos efectivos militares; que os governos e o povo
dos Estados venham a contemplar silenciosa e pacientemente
a tempestade em formação, e continuar a fornecer os materiais,
até que ela esteja preparada para rebentar sobre as suas próprias
cabeças, tem de aparecer a todos mais como os sonhos incoe-
rentes de uma rivalidade delirante, ou os exageros pouco
acertados de um entusiasmo falsificado, do que como as
moderadas apreensões do patriotismo genuíno. Por extrava-
gante que seja esta suposição, permitamos que ela seja feita.
Permitamos que seja formado um exército regular, inteira-

[433)
mente à altura dos recursos do país e permitamos que ele
seja inteiramente devotado ao Governo Federal. Ainda assim
não seria ir demasiado longe se disséssemos que os Governos
dos Estados, com o povo do seu lado, seriam capazes de repelir
o perigo. O número mais elevado, segundo os melhores cál-
culos, a que podem subir os efectivos de um exército perma-
nente em qualquer país não excede um centésimo do número
de almas, ou um vinte e cinco avos do número daqueles que
podem pegar em armas. Esta proporção não produziria, nos
Estados Unidos, um exército de mais de vinte e cinco ou
trinta mil homens. A este seria oposta uma milícia contando
com cerca de meio milhão de cidadãos de armas na mão,
comandados por oficiais escolhidos de entre eles, lutando
pelas suas liberdades comuns, e unidos e conduzidos por
governos possuindo o seu afecto e a sua confiança. Pode muito
bem duvidar-se se uma milícia nestas condições poderia em
algum caso ser vencida por semelhante proporção de tropas
regulares. Os que estão mais familiarizados com a recente
resistência bem sucedida deste país contra os exércitos britânicos
serão mais propensos para negar a possibilidade de isso acon-
tecer. Além da vantagem de estarem armados, que os ameri-
canos possuem sobre o povo de quase todas as outras nações,
a existência de governos subordinados aos quais o povo está
ligado, e que nomeiam os oficiais da milícia, forma uma
barreira contra os cometimentos da ambição, mais insuperável
do que qualquer outra que um simples governo, qualquer
que seja a sua forma, pode comportar. Não obstante os efec-
tivos militares nos vários reinos da Europa, que são tão alargados
quanto o suportam os recursos públicos, os governos têm
receio de confiar armas às pessoas. E não é certo que com
apenas esta ajuda, eles não fossem capazes de sacudir os seus
jugos. Mas no caso em que o povo possui as vantagens adi-
cionais de um governo escolhido por si, que congrega a von-
tade nacional, e dirige a força nacional; e de oficiais nomeados
dentro da própria milícia, pode afirmar-se com a maior certeza

[434]
que o trono de qualquer tirania da Europa seria rapidamente
derrubado, apesar das legiões que o rodeiam. Não insultemos
os livres e galantes cidadãos da América com a suspeita de
que eles seriam menos capazes de defender os seus direitos,
de que actualmente estão na posse, do que os aviltados súbditos
do poder arbitrário seriam capazes de resgatar os deles das
mãos dos seus opressores. Em vez disso, não os insultemos
mais com essa suposição, para que nunca possam reduzir-se
à neces idade de fazer a experiência, por causa de uma sub-
missão cega e dócil ao longo cortejo de medidas insidiosas
que tem de precedê-la e produzi-la.
O argumento sobre este ponto pode ser posto numa forma
muito concisa, que se apre enta como totalmente conclusiva.
O modo como o Governo Federal deverá ser con truído ou
o tornará suficientemente dependente do povo, ou não. Na
primeira hipótese, ele será impedido por essa dependência de
formar esquemas assim odiosos para os seus constituintes. Na
segunda hipótese, não possuirá a confiança do povo, e os seus
esquemas de usurpação serão facilmente derrotados pelo
Governos dos Estados, que serão apoiados pelo povo.
Resumindo as consideraçõe enunciadas neste artigo e
no precedente, elas parecem equivaler à prova mais convincente
de que os poderes a serem entregues ao Governo Federal são
tão pouco assustadores para os poderes que são reservados aos
Estados individuais como são indispensáveis para realizar os
objectivos da União; e todos esses alertas que soaram, de uma
aniquilação meditada e consequente dos Governos dos Estados
devem, na mais favorável das interpretações, ser atribuídos
aos receios quiméricos dos seus autores.
PUBLIUS

[435)
O FEDERALISTA N." 47
[46]

A Estrutura Específica do Novo Governo


e a Distribuição de Poder
entre as suas Diferentes Partes

JAMES MADISON
30 de Janeiro de 1788

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

Tendo passado em revista a forma geral do governo propos-


to e a totalidade dos poderes que lhe são atribuídos, prossigo
para o exame da estrutura particular desse governo e da distribui-
ção dessa totalidade de poderes entre as suas partes constituintes.
Uma das principais objecções inculcadas pelos mais
respeitáveis adversários da Constituição é a hipotética violação
da máxima política que diz que os departamentos, legislativo,
executivo e judicial, devem ser separados e distinto . Na estru-
tura do governo federal nenhuma atenção parece ter sido

* Do Th e Independent Jm~rnal, 30 de Janeiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 1 de Fevereiro tanto no The N ew-York Packet como no The Daily
Advertiser. R ecebeu o número 47 na edição de M cLean e o número 46 nos
jornais. QC) .

[437]
dada, dizem, a esta precaução essencial a favor da liberdade.
Os vários departamentos do poder estão distribuídos e mis-
turados de uma maneira que destrói imediatamente toda a
simetria e beleza da forma , expondo algumas das partes
essenciais do edificio ao perigo de serem esmagadas pelo peso
desproporcionado de outras partes.
Não há certamente nenhuma verdade política com maior
valor intrínseco, ou com o selo da autoridade de mais patronos
esclarecidos da liberdade, do que aquela em que a objecção
é fundada. A acumulação de todos os poderes, legislativo,
executivo e judicial, nas mesmas mãos, quer sejam as de um,
de uns poucos, ou de muitos, quer sejam hereditárias, autono-
meadas, ou eleitas, pode justamente ser declarada como a
verdadeira definição de tirania. Portanto, se se pudesse real-
mente acusar a Constituição federal de acumulação de poder,
ou de uma mistura de poderes tendo uma tendência perigosa
para essa acumulação, não seriam necessários mais argumentos
para inspirar uma reprovação universal do sistema. Convenço-
-me, todavia, que será visível para todos que a acusação não
pode ser fundada , e que a máxima na qual assenta foi total-
mente mal interpretada e mal aplicada. Com o intuito de for-
mar ideias correctas sobre este importante assunto, será apro-
priado investigar o sentido em que a preservação da liberdade
requer que os três grandes departamentos de poder devam
ser separados e distintos.
O oráculo que é sempre consultado e citado acerca deste
assunto é o celebrado Montesquieu 1 . Se não for ele o autor
deste inestimável preceito em ciência política, tem pelo menos

1 Madison manifesta, neste excerto, uma fina ironia face ao modo como
Montesquieu era transformado em dogma na argumentação antifederalista
contra a viabilidade de uma grande república federal. Contudo, os autores de
O Federalista não ignoraram as lições de Montesquieu ao estudar a separação
articulada de poderes ( modelo dos checks and balances) patente no novo sistema
constitucional proposto em Filadélfia, assim como os ensinamentos que, nesse
domínio, era possível retirar das constituições estaduais." (E. P.).

[438]
o mérito de o mostrar e recomendar muito eficazmente à
atenção da humanidade. Esforcemo-nos, em primeiro lugar,
por indagar o que ele quis dizer sobre este ponto.
A Constituição britânica era para Montesquieu o que
Homero tem sido para os escritores didácticos em matéria de
poesia épica. Tal como os últimos consideraram a obra do
bardo imortal como o modelo perfeito do qual deveriam ser
derivados os princípios e regras da arte épica, e pelos quais
se deveriam avaliar todas as obras semelhantes, assim este
grande crítico político parece ter visto a Constituição da
Inglaterra como o padrão, ou para usar a sua própria expressão,
o espelho da liberdade política, e ter proclamado, sob a forma
de verdades elementares, os vários princípios característicos
desse sistema particular. Então, para que possamos estar seguros
de não interpretar erradamente o seu significado neste caso,
recorramos à fonte de onde foi derivada a máxima.
Mesmo na visão mais superficial da Constituição britânica
devemos perceber que os departamentos legislativo, executivo
e judicial de maneira alguma são totalmente separados e distin-
tos uns dos outros. O magistrado executivo constitui uma
parte integrante da autoridade legislativa. Só ele tem a prerro-
gativa de assinar tratados com soberanos estrangeiros, que,
quando assinados, têm, com certas limitações, a força de actos
legislativos. Todos os membros do departamento judicial são
nomeados por ele, podem ser demitidos por ele sob proposta
das duas Câmaras do Parlamento, e formam, quando lhe apraz
consultá-los, um dos seus conselhos constitucionais. Um ramo
do departamento legislativo é ao mesmo tempo um grande
conselho constitucional do chefe do executivo; tal como, por
outro lado, é o único depositário do poder judicial em casos
de crimes de responsabilidade, e está investido da suprema
jurisdição de recurso em todos os outros casos. Além disso,
os juízes estão tão intimamente ligados ao departamento legis-
lativo que frequentemente assistem e participam nas delibera-
ções deste, embora não tenham direito a um voto legislativo.

(439]
Destes factos, pelos quais se guiou Montesquieu, pode
claramente inferir-se que ao dizer "não pode haver liberdade
nos casos em que os poderes legislativo e executivo estão
reunidos na mesma pessoa, ou corpo de magistrados," ou "se
o poder de julgar não for separado dos poderes legislativo e
executivo," ele não quis dizer que esses departamentos não
deviam ter nenhuma influência parcial em, ou nenhum controlo
sobre, os actos uns dos outros. O que ele queria dizer, como
implicam as suas próprias palavras, e ainda mais conclusiva-
mente como é ilustrado pelo exemplo que tinha em vista,
não pode equivaler a mais do que isto: que nos casos em que
todo o poder de um departamento é exercido pelas mesmas
mãos que detêm todo o poder de outro departamento, os
princípios fundamentais de uma Constituição livre são subver-
tidos. Teria sido este o caso da Constituição examinada por
ele, se o Rei, que é o único magistrado executivo, tivesse pos-
suído também todo o poder legislativo, ou a suprema admi-
nistração da justiça; ou se todo o corpo legislativo tivesse
possuído a suprema autoridade judicial, ou a suprema auto-
ridade executiva. Isto, no entanto, não faz parte dos defeitos
dessa Constituição. O magistrado em quem reside todo o
poder executivo ão pode, por si só, fazer uma lei, embora
possa vetar qualq er lei; nem pode administrar a justiça em
pessoa, embora nomeie aqueles que a administram. Os juízes
não podem exercer nenhuma prerrogativa executiva, embora
sejam rebentos do tronco executivo, nem nenhuma função
legislativa, embora possam ser consultados pelos conselhos
legislativos. A legislatura no seu todo não pode executar
nenhum acto judicial, embora, por um decreto conjunto de
dois dos seus ramos, os juízes possam ser demitidos dos seus
cargos, e apesar de um dos ramos possuir o poder judicial de
última instância. A legislatura no seu todo, além disso, não
pode exercer nenhuma prerrogativa executiva, apesar de um
dos seus ramos constituir a magistratura executiva suprema;
e o outro, no impedimento de uma terceira, pode julgar e

[440]
condenar todos os funcionários subordinados do departamento
executivo.
As razões em que Montesquieu fundamenta a sua máxima
são uma demonstração adicional do que ele queria dizer.
" Quando os poderes legislativo e executivo estão unidos na
mesma pessoa ou corpo colectivo," diz ele, "não pode haver
liberda e porque podem erguer-se receios de que o mesmo
monarca ou senado promulgue leis tirânicas para as executar de
urna maneira tirânica." E ainda: "Se o poder de julgar estivesse
unido ao poder legislativo, a vida e liberdade do súbdito estaria
exposta a um controlo arbitrário, porque o juiz seria então o
legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, ojuiz poderia
comportar-se com toda a violência de um opressor." Algumas
destas razões são mais integralmente explicadas noutras
passagens; mas brevemente enunciadas como o são aqui,
estabelecem suficientemente o significado que demos a esta
famosa máxima deste celebrado autor.
Se olharmos para as Constituições dos diversos Estados,
vemos que, apesar dos termos enfãticos e, em alguns casos,
incondicionais em que este axioma foi enunciado, não há um
único caso em que os vários departamentos do poder tenham
sido mantidos absolutamente separados e distintos. New
Hampshire, cuja Constituição foi a última a ser promulgada,
parece ter estado inteiramente consciente da impossibilidade
e inoportunidade de evitar todo e qualquer tipo de mistura
desses departamentos, e atenuou a doutrina declarando "que
os poderes legislativo, executivo e judicial devem ser mantidos
separados e independentes uns dos outros tanto quanto o admite
a natureza de um governo livre; ou tanto quanto é consistente com
essa cadeia de conexões que une a totalidade do tecido da Constituição
num laço indissolúvel de unidade e amizade". A Constituição
desse Estado, de acordo com isto, mistura os departamentos
em vários aspectos. O Senado, que é um ramo do departa-
mento legislativo, é também um tribunal judicial para o
julgamento de crimes de responsabilidade. O Presidente, que

[441]
é o chefe do departamento executivo, é também o membro
que preside ao Senado; e, além de um voto igual em todos
os casos, tem um voto de qualidade em caso de empate.
O chefe do executivo é devidamente eleito todos os anos
pelo departamento legislativo, e o seu conselho é escolhido
todos os anos por e de entre os membros do mesmo departa-
mento. Vários dos funcionários do Estado são também nomea-
dos pela legislatura. E os membros do departamento judicial
são nomeados pelo departamento executivo.
A Constituição do Massachusetts observou uma cautela
suficiente embora menos vigorosa ao exprimir este artigo
fundamental da liberdade. Declara ela "que o departamento
legislativo nunca deverá exercer os poderes executivo e judicial,
nem qualquer um deles; o executivo nunca deverá exercer os
poderes legislativo e judicial, nem qualquer um deles; o judicial
nunca deverá exercer os poderes legislativo e executivo, nem
qualquer um deles". Esta declaração corresponde precisamente
à doutrina de Montesquieu tal como foi exposta, e não é
violada nem num só ponto pelo plano da Convenção. Não
vai mai longe do que proibir qualquer um dos departamentos
de exercer poderes de outro departamento. Na própria Cons-
tituição a que está prefixada, foi admitida uma mistura parcial
de poderes. O Magistrado Executivo tem um veto qualificado
em relação ao corpo Legislativo, e o Senado, que é uma parte
da Legislatura, é um tribunal para julgar crimes de responsabili-
dade de membro tanto do departamento executivo como
do judicial. Além disso, os membros do departamento judicial
são nomeados pelo departamento executivo, e podem ser des-
tituídos pela mesma autoridade a pedido dos dois ramos legis-
lativos. Por último, uma porção dos funcionários do governo
é nomeada anualmente pelo departamento legislativo. Como
a nomeação de funcionários, particularmente de funcionários
executivos, faz parte da natureza da função executiva, os com-
piladores da Constituição violaram, neste último ponto pelo
menos, a regra que eles próprios estabeleceram.

[442]
Passo por cima das Constituições de Rhode Island e
Connecticut, porque foram promulgadas anteriormente à
Revolução, e até antes que o princípio que estamos a examinar
se tivesse convertido num objecto de atenção política.
A Constituição de Nova Iorque não contém nenhuma
declaração sobre esta matéria, mas vê-se muito claramente
que foi concebida tendo em vista o perigo de misturar
impropriamente os diferentes departamentos. Apesar disso,
dá ao magistrado executivo um controlo parcial sobre o depar-
tamento legislativo; e, o que é mais, dá um controlo idêntico
ao departamento judicial; e chega a misturar o departamento
executivo e o judicial no exercício desse controlo. No seu
conselho de nomeações, os membros do legislativo estão asso-
ciados à autoridade executiva, na nomeação tanto de fun-
cionários executivos como judiciais. E o seu tribunal para o
julgamento das impugnações e correcção de erros deve ser
composto por um ramo da legislatura e pelos principais
membros do departamento judicial.
A Constituição de Nova Jérsia misturou os diferentes
poderes do governo mais do que qualquer das precedentes.
O governador, que é o magistrado executivo, é nomeado pela
legislatura; é chanceler e juiz ordinário ou substituto do Estado,
é membro do Supremo Tribunal de Apelação, e presi-
dente, com voto de qualidade, de um dos ramos legislativos.
O mesmo ramo da legislatura actua, além disso, como conselho
executivo do governador, e constitui com ele o Tribunal de
Apelação. Os membros do departamento judicial são nomeados
pelo departamento legislativo e podem ser destituídos por
um ramo deste último, no impedimento do outro.
Segundo a Constituição da Pensilvânia, o presidente, que
é o chefe do departamento executivo, é eleito anualmente
por uma votação em que o departamento legislativo predo-
mina. Em conjunção com um conselho executivo, é ele quem
nomeia os membros do departamento judicial, e forma um
tribunal de impugnação para o julgamento de todos os

[443]
funcionários, tanto judiciais como executivos. Os juízes do
Supremo Tribunal e os juízes de paz também parecem poder
ser destituídos pela legislatura; e o poder executivo de indultar
em certos casos, parece estar entregue ao mesmo departamento.
Os membros do conselho executivo são nomeados ex <ifficio
juízes de paz por todo o Estado.
No Delaware, o principal magistrado executivo é eleito
anualmente pelo departamento legislativo. Os presidentes dos
dois ramos legislativos são vice-presidentes do departamento
executivo. O chefe do executivo, e mais seis outros, cada um
dos ramos legislativos nomeando três, constituem o supremo
tribunal de apelação; associa-se ao departamento legislativo
para nomear os outros juízes. Percorrendo os Estados, vê-se
que os membros da legislatura podem ser simultaneamente
juízes de paz. Neste Estado, os membros de um dos ramos
são ex cifficio juízes de paz, tal como o são também os membros
do conselho executivo. Os funcionários principais do depar-
tamento executivo são nomeados pelo legislativo, e um ramo
deste último constitui o tribunal para julgamento de crimes
de responsabilidade. Todos os funcionários podem ser desti-
tuídos a pedido da legislatura.
O Maryland adoptou a máxima nos termos mais irrestritos,
declarando que os poderes legislativo, executivo e judicial do
governo devem ser para sempre separados e distintos uns dos
outros. A Constituição desse Estado, apesar disso, estipula que
o magistrado executivo seja nomeável pelo departamento
legislativo, e os membros do judicial pelo departamento
executivo.
A linguagem da Virgínia é ainda mais clara neste ponto.
A sua Constituição declara "que os departamentos legislativo,
executivo e judicial devem ser separados e distintos, de tal
modo que nenhum deles exerça poderes que pertencem pro-
priamente a um outro. Nem pessoa alguma deverá exercer
os poderes de mais de um deles simultaneamente, com a
excepção de que os juízes dos tribunais de condado deverão

[444]
ser elegíveis para qualquer das câmaras legislativas". E todavia
descobrimos não só esta excepção expressa, a respeito dos
membros dos tribunais inferiores, mas que o magistrado
principal, com o seu conselho executivo, são nomeáveis pela
legislatura, que dois membros do último são demitidos
trienalmente ao arbítrio da legislatura e que todos os cargos
principais, tanto executivos como judiciais, são preenchidos
pelo mesmo departamento. A prerrogativa executiva do indulto
é também, num caso, investida no departamento legislativo.
A Constituição da Carolina do Norte, que declara "que
os poderes legislativo, executivo, e judicial supremo do governo
devem ser para sempre separados e distintos uns dos outros,"
entrega, ao mesmo tempo, ao departamento legislativo a
nomeação, não somente do chefe do executivo, mas de todos
os funcionários principais tanto desse departamento como
do judicial.
Na Carolina do Sul, a Constituição estipula que o magis-
trado executivo seja eleito pelo departamento legislativo. Dá
a este último, também, a nomeação dos membros do departa-
mento judicial, incluindo até os juízes de paz e os xerifes, e
a nomeação de funcionários do departamento executivo, até
aos capitães do exército e da marinha do Estado.
Na Constituição da Geórgia, onde se declara "que os
departamentos legislativo, executivo e judicial devem ser
separados e distintos, de tal modo que nenhum deles exerça
poderes que pertençam propriamente a um outro," descobri-
mos que o departamento executivo é preenchido através de
nomeações da legislatura e que a prerrogativa executiva do
indulto é especificamente exercida pela mesma autoridade.
Até os juízes de paz são nomeados pela legislatura.
Ao citar estes casos, nos quais o departamento legislativo,
o executivo e o judicial não foram mantidos totalmente sepa-
rados e distintos, não quero ser olhado como um defensor
das organizações particulares dos vários governos dos Estados.
Tenho plena consciência de que entre os muitos princípios

[445]
excelentes que exemplificam, elas transportam fortes marcas
da pressa, e ainda mais fortes da inexperiência, com que foram
concebidas. É por demais óbvio que em alguns casos o
princípio fundamental que estamos a considerar foi violado
por uma mistura demasiado grande, e até por uma efectiva
consolidação, dos diferentes poderes, e que em nenhum caso
foi tomada uma providência adequada para manter na prática
a separação delineada no papel. O que eu pretendi demonstrar
foi que a acusação, feita à Constituição proposta, de violar
uma máxima sagrada do governo livre, não é substanciada
nem pelo significado real anexado a essa máxima pelo seu
autor, nem pelo sentido em que até agora ela foi compreendida
na América. Este interessante assunto será retomado no artigo
seguinte.
PUBLIUS

[446]
O FEDERALISTA N.• 48
[47]

Os Departamentos do Novo Governo


não Devem ser tão Separados ao Ponto
de Perderem o Controlo Constitucional
de Uns sobre os Outros

JAMES MADISON
1 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Mostrou-se no último artigo que o apotegma político aqui


examinado não exige que o departamento legislativo, o executivo
e o judicial estejam inteiramente desligados uns dos outros. Em
seguida, irei mostrar que, a menos que esses departamentos
estejam de tal maneira ligados e misturados que cada um tenha
um controlo constitucional sobre os outros, o grau de separação
que a máxima exige, como sendo essencial para um governo
livre, não pode na prática ser devidamente mantido.

* Do The New-'rórk Packet, 1 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi publicado


em 2 de Fevereiro no The Independentjournal e em 4 de Fevereiro no The Daily
Advertiser. Recebeu o número 48 na edição de McLean e o número 47 nos
jornais. QC).

[447]
Toda a gente concorda que os poderes pertencentes
propriamente a um dos departamentos não devem ser directa
e completamente administrados por qualquer dos outros
departamentos. É igualmente evidente que nenhum deles
deve possuir, directa ou indirectamente, uma influência domi-
nadora sobre os outros na administração dos seus respectivos
poderes. Ninguém negará que o poder tem uma natureza
usurpadora e deve ser eficazmente impedido de ultrapassar
os limites que lhe são atribuídos. Portanto, depois de descri-
minar, na teoria, as várias classes de poder, tal como elas
podem ser de natureza legislativa, executiva ou judicial, a
tarefa seguinte, e a mais difícil também, é providenciar alguma
protecção prática para cada uma, contra a invasão pelas outras.
Qual deve ser essa protecção é o grande problema a resolver.
Será suficiente assinalar com precisão as fronteiras desses
departamentos na Constituição do governo, e confiar nessas
barreiras de pergaminho contra o espírito usurpador do poder?
Esta é a protecção com que aparentemente contaram os com-
piladores da maioria das Constituições Americanas. Mas a
experiência garante-nos que a eficácia dessa providência foi
grandemente exagerada e que é indispensavelmente necessária,
para os membros mais fracos do governo, alguma defesa mais
adequada contra os mais poderosos. O departamento legislativo
está em toda a parte a estender a esfera da sua actividade e a
atrair todo o poder para o seu impetuoso vórtice.
Os fundadores das nossas repúblicas têm tanto mérito pela
sensatez de que deram provas que não pode haver tarefa menos
agradável do que a de apontar os erros em que caíram. No
entanto, um respeito pela verdade obriga-nos a observar que
eles parecem não ter desviado os olhos nem por um só
momento do perigo para a liberdade que provém da prerro-
gativa desmesurada e que tudo abarca de um magistrado
hereditário, apoiado e fortalecido por um ramo hereditário
da autoridade legislativa. Parece que nunca se lembraram do
perigo de usurpações legislativas, que, ao reunir todo o poder

[448]
nas mesmas mãos, deverá conduzir à mesma tirania qu e a
pressagiada pelas usurpações do executivo.
Num governo em que numerosas e extensas prerrogativas
são postas nas mãos de um monarca hereditário, o departa-
mento executivo é muito justamente visto como uma fonte
de perigo e vigiado com toda a desconfiança que um ardor
pela liberdade deveria inspirar. Numa democracia, na qual
uma multitude de pessoas exercem em pessoa as funções legis-
lativas e estão continuamente expostas, pela sua incapacidade
para a deliberação regular e para as medidas concertadas, às
intrigas ambiciosas dos seus magistrados executivos, pode
muito bem recear-se que a tirania, em alguma emergência
favorável, se inicie no mesmo quadrante. Mas numa república
representativa, em que a magistratura executiva é cuidadosa-
mente limitada, tanto na extensão como na duração do seu
poder, e onde o poder legislativo é exercido por uma assem-
bleia, que é inspirada por uma suposta influência sobre o povo
e com uma confiança intrépida na sua própria força, que é
suficientemente numerosa para sentir todas as paixões que
movem uma multidão, e todavia não suficientemente nume-
rosa para ser incapaz de perseguir os objectos das suas paixões,
usando meios que a razão prescreve. É contra a ambição
empreendedora desse departamento que o povo deve orientar
toda a sua desconfiança e exaurir todas as suas precauções.
O departamento legislativo tem uma superioridade nos
nossos governos que deriva de outras circunstâncias. Sendo
os seus poderes constitucionais simultaneamente mais alargados
e menos susceptíveis de limites precisos, ele pode, com maior
facilidade, disfarçar debaixo de medidas complicadas e indirectas
as usurpações que pratica em relação aos departamentos coor-
denados. Não é raro levantar-se uma questão muito delicada
nos corpos legislativos, a saber, se a execução de uma medida
particular pode, ou não pode, estender-se para lá da esfera
legislativa. Por outro lado, sendo o poder executivo restringido
a uma área mais limitada, e sendo mais simples na sua natureza,

[449]
e sendo o poder judicial balizado de maneira ainda mais
incerta, os projectos de usurpação por qualquer destes
departamentos trair-se-iam e derrotar-se-iam imediatamente.
E isto não é tudo. Como só o departamento legislativo tem
acesso às algibeiras do povo, e tem em algumas Constituições
um arbítrio total e, em todas, uma influência prevalecente
sobre as recompensas pecuniárias dos que ocupam os cargos
nos outros dois departamentos, cria-se assim uma dependência
nestes últimos, que dá ainda mais facilidades às usurpações
do primeiro.
Apelei para a nossa própria experiência quanto à verdade
do que adianto sobre este assunto. Se fosse necessário verificar
essa experiência por meio de provas particulares, estas poderiam
ser multiplicadas infindavelmente. Podia encontrar uma teste-
munha em cada cidadão que partilhou o curso das administra-
ções públicas, ou a elas esteve atento. Podia coligir abundantes
comprovativos a partir dos registos e arquivos de todos os
Estados da União. Mas como prova mais concisa, e ao mesmo
tempo igualmente satisfatória, referirei o exemplo de dois
Estados, atestado por duas autoridades inatacáveis.
O primeiro exemplo é o da Virgínia, um Estado que,
como vimos, declarou expressamente na sua Constituição
que os três grandes departamentos não deveriam ser misturados.
A autoridade em que nos apoiamos é o Sr. Jefferson que, além
das suas outras vantagens para fazer observações acerca da
actuação do governo, era o próprio supremo magistrado desse
governo. Com o intuito de transmitir completamente as ideias
que a sua experiência lhe imprimiu sobre este assunto, será
necessário citar uma passagem um pouco longa das suas muito
interessantes "Notas sobre o Estado da Virgínia" 1 (P. 195).

1 As Notes on the State oj Virgínia foram escritas por Jefferson entre 1781
e 1782, por solicitação de um correspondente francês, após o término do seu
atribulado mandato como Governador da Virgínia (1779-1781), caracterizado
pela destruição causada pelas tropas britânicas naquele Estado. Ausente em

[450]
"Todos os poderes do governo, legislativo, executivo e judicial,
provêm do corpo legislativo. A concentração destes nas mesmas
mãos é precisamente a definição de governo despótico. N ão
constituirá um alívio que esses poderes sejam exercidos por
uma pluralidade de mãos, e não por uma só. Cento e setenta
e três déspotas seriam certamente tão opressores quanto um
só. Que aqueles que duvidam disto voltem os seus olhos para
a república de Veneza. Também de pouco nos vale que eles
sejam escolhidos por nós. Um despotismo electivo não foi o
governo pelo qual lutámos, mas sim um que não somente
deveria ser fundado em princípios livres, mas no qual os
poderes do governo deveriam ser de tal modo divididos e
equilibrados entre os vários corpos de magistratura que
nenhum pudesse transcender os seus limites legais, sem ser
eficazmente reprimido e restringido pelos outros. Por esta
razão, essa Convenção que aprovou o regulamento do governo,
alicerçou-se nesta base, que os departamentos, legislativo,
executivo e judicial, deveriam ser separados e distintos, de tal
maneira que ninguém viesse a exercer os poderes de mais de
um deles simultaneamente. Mas não foi providenciada nenhuma
barreira entre estes vários poderes. Os membros judiciais e exe-
cutivos foram deixados na dependência do legislativo quanto
aos meios de subsistência derivados do seu cargo, e alguns
deles para a sua permanência nele. Se, portanto, a legislatura
assumir poderes executivos e judiciais, não é provável que seja
feita nenhuma oposição, nem esta pode, se for feita, ser eficaz,

Paris como Embaixador dos EUA, entre 1784 e 1789, Jefferson foi impedido
de participar mais activamente no processo de renovação constitucional. Esta
referência de Madison reflecte, contudo, a forte influência sobre os assuntos
nacionais, mesmo à distância, do autor da Declaração de Independência. Apesar
de algumas divergências, Jefferson e Madison mantiveram ao longo da vida
uma sólida amizade e uma estreita cooperação política. Em 1798, estiveram
juntos contra a Presidência de John Adams no caso dos Alien and Sediction Acts.
James Madison foi Secretário de Estado nos dois mandatos presidenciais de
Thomas Jefferson (1801-1809). (E. P.).

[451]
porque nesse caso ela pode dar às medidas que tomar a forma
de leis da Assembleia, que as tornarão obrigatórias para os
outros ramos. De acordo com isto decidiram, em muitos casos,
direitos que deviam ter sido deixados à controvérsia judicial, e a
direcção do executivo, durante todo o período em que estão em sessão,
está a tornar-se habitual e familiar."
O outro Estado que tomarei como exemplo é a Pensilvânia
e a outra autoridade o conselho de censores que se reuniu
nos anos de 1783 e 17842. Uma parte dos deveres desta assem-
bleia, tal como estavam consignados na Constituição, era
"investigar se a Constituição tinha sido mantida inviolada em
todas as suas partes e se os ramos legislativo e executivo do
governo tinham cumprido o seu dever como guardiões do
povo, ou tinham assumido para si, ou exercido, poderes dife-
rentes ou mais vastos do que aqueles para que eram mandatados
pela Constituição". Na execução desta responsabilidade, o
conselho foi necessariamente levado a uma comparação das
actas tanto do legislativo como do executivo com os poderes
constitucionais desses departamentos. E a partir dos factos
enumerados, cuja veracidade era subscrita por ambos os lados
do conselho, fica patente que a Constituição foi flagrantemente
violada pela Legislatura numa variedade de casos importantes.
Foi aprovado um grande número de leis que violavam
sem necessidade aparente a regra que exige que todos os pro-
jectos de lei de natureza pública devem ser previamente publi-
cados para serem apresentados à consideração do povo, embora
esta seja uma das principais precauções em que a Constituição
confia para prevenir actos impróprios da Legislatura.
O julgamento constitucional por um júri tinha sido vio-
lado e tinham sido assumidos poderes que não tinham sido
delegados pela Constituição.

2 A Constituição da Pensilvânia de 1776 providenciava para que este


conselho, composto de dois membros por cada condado, se reunisse todos os
sete anos. Reuniu-se no Inverno de 1783-1784 e no verão de 1784. QC).

[452]
Os poderes executivos tinham sido usurpados.
Os salários dos Juízes, que a Constituição expressamente
exige que sejam fixos, tinham variado ocasionalmente, e casos
pertencentes ao departamento judicial têm sido frequente-
mente levados para a jurisdição e decisão do legislativo.
Os que desejarem ver os diversos casos particulares que
se inserem em cada um destes tópicos podem consultar os
Diários do conselho que estão publicados. Verão que alguns
deles podem ser imputáveis a circunstâncias peculiares ligadas
à guerra. Mas na sua maior parte podem ser considerados
como os rebentos espontâneos de um governo imperfeitamente
constituído.
Parece também que o departamento executivo não esteve
inocente de frequentes atropelos da Constituição. Há três
observações, todavia, que devem ser feitas a este respeito.
Primeira. Uma grande proporção dos casos foi, ou imediata-
mente produzida pelas necessidades da guerra, ou recomendada
pelo Congresso ou pelo Comandante em Chefe. Segunda.
Na maior parte dos outros casos, eles conformaram-se com
os sentimentos, quer declarados quer conhecidos, do departa-
mento legislativo. Terceira. O departamento executivo da Pen-
silvânia distingue-se do de outros Estados pelo número de
membros que o compõem3. Neste aspecto, tem tanta afinidade
com uma assembleia legislativa como com um conselho
executivo. E estando imediatamente isento da restrição de
uma responsabilidade individual pelos actos do conselho, e
derivando confiança do exemplo mútuo e da influência con-
junta, as medidas não autorizadas seriam, é claro, mais livre-
mente arriscadas do que nos casos em que o departamento
executivo é administrado por uma só pessoa ou por poucas
pessoas.

3 A Constituição da Pensilvânia de 1776 providenciava um executivo


plural na forma de Conselho Executivo Supremo, composto de um membro
da cidade de Filadélfia e um membro de cada condado do estado. QC).

[453]
A conclusão que me sinto autorizado a tirar destas obser-
vações é que uma mera demarcação no papel dos limites cons-
titucionais dos vários departamentos não é urna protecção
suficiente contra essas usurpações que levam a uma concentra-
ção tirânica de todos os poderes do governo nas mesmas mãos.
PUBLIUS

[454]
O FEDERALISTA N." 49
[48]

Acerca do Método de Defesa contra


as Intromissões de Qualquer um
dos Departamentos de Governo através do Apelo
ao Povo pela Convocação de uma Convenção

JAMES MADISON
2 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O autor das Notas sobre o Estado da Virgínia, citado no


último artigo, juntou em anexo a essa valiosa obra o rascunho
de uma Constituição, que tinha sido preparada com o intuito
de ser apresentada a uma Convenção, que se esperava que
fosse convocada em 1783 pela legislatura, para o estabeleci-
mento de uma Constituição para essa comunidade. O plano,
como tudo o que saiu da mesma pena, mostra um estilo de

* Do Th e Independent journal, 2 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 5 de Fevereiro no The New- York Packet e em 6 de Fevereiro no
Tize Daily Advertiser. Recebeu por erro o número 69 na edição de M cLean.
Nos jornais apareceu com o número 48. QC) .

[455]
pensamento original, abrangente e preciso, e é tanto mais
merecedor de atenção quanto exibe igualmente um fervoroso
afecto pelo governo republicano e uma visão esclarecida das
perigosas propensões contra as quais ele deveria ser protegido.
Uma das precauções que ele propõe, e na qual parece confiar
em último recurso como uma salvaguarda dos departamentos
mais fracos contra as incursões dos mais fortes, é talvez intei-
ramente sua e, como se relaciona imediatamente com o assunto
da nossa investigação presente, não deve ser esquecida 1•
A sua proposta é "que sempre que quaisquer dois dos três
ramos de governo concorram na mesma opinião, cada um
pelos votos de dois terços do seu número total, de que é
necessária uma Convenção para alterar a Constituição, ou
corrigir violações dela, deve convocar-se uma Convenção para
esse fim".
Como o povo é a única fonte legítima do poder, e é dele
que emana a carta constitucional da qual os diversos ramos
de governo detêm o seu poder, parece estritamente consonante
com a teoria republicana recorrer à mesma autoridade original,
não somente sempre que possa ser necessário alargar, diminuir,
ou remodelar, os poderes do governo, mas também sempre
que qualquer desses departamentos possa cometer usurpações
das autoridades consignadas para os outros. Sendo os diversos
departamentos perfeitamente coordenados pelos termos do
seu mandato comum, é evidente que nenhum deles pode
pretender a um direito exclusivo ou superior de estabelecer
as fronteiras entre os seus respectivos poderes. E como é que
poderão ser impedidas as usurpações dos mais fortes, ou
reparados os danos aos mais fracos , sem um apelo ao próprio
povo, que, sendo aquele que concede os mandatos, é o único
1 As divergências que Madison manifesta em relação a Jefferson em torno
do método mais adequado de revisão constitucional vão alargar-se num
interessante debate epistolar travado entre Setembro de 1789 e Fevereiro de
1790, onde o tema da justiça entre gerações vai ser introduzido com notável
profundidade filosófica. (E. P.).

[456]
a poder declarar o seu verdadeiro significado, e tornar obri-
gatória a sua observância?
Há certamente uma grande força neste raciocínio, e deve
ser permitido provar que devia ser assinalada e mantida aberta
uma estrada constitucional para a decisão do povo em certas
ocasiões grandes e extraordinárias. Mas parece que há objecções
insuperáveis contra o recurso ao povo proposto, como uma
providência para, em todos os casos, manter os diversos
departamentos do poder dentro dos seus limites constitu-
cwnats.
Em primeiro lugar, a providência não se aplica ao caso
de uma combinação de dois dos departamentos contra um
terceiro. Se a autoridade legislativa, que possui tantos meios
de influir nos motivos dos outros departamentos, fosse capaz
de ganhar para o lado do seu interesse qualquer dos outros,
ou mesmo um terço dos seus membros, os departamentos
restantes não poderiam tirar qualquer vantagem desta provi-
dência reparadora. No entanto, não insisto nesta objecção
porque ela pode ser considerada como sendo mais contra a
modificação do princípio do que contra o próprio princípio.
Em seguida, pode ser considerado como uma objecção
inerente ao princípio que, como todos os apelos ao povo
arrastariam uma implicação de alguma insuficiência do
governo, os apelos frequentes privariam, em grande medida,
o governo dessa veneração que o tempo confere a todas as
coisas, e sem a qual talvez os governos mais sábios e mais livres
não possuiriam a indispensável estabilidade. Se é verdade que
todos os governos repousam na opinião, não é menos verdade
que a força da opinião em cada indivíduo e a sua influência
prática na conduta dele dependem muito do número dos
indivíduos que ele pensa que têm a mesma opinião. A razão
do homem, como o próprio homem, é tímida e cautelosa
quando deixada sozinha, e adquire firmeza e confiança na
proporção do número de outras com que está associada.
Quando os exemplos que fortalecem a opinião são antigos

[457]
bem como numerosos, é sabido que têm um duplo efeito.
Numa nação de filósofos, esta consideração deveria ser igno-
rada. Uma reverência pelas leis seria suficientemente inculcada
pela voz de uma razão esclarecida. Mas uma nação de filósofos
é tão pouco de esperar como a raça filosófica de reis desejada
por Platão. E em todas as outras nações, o governo mais
racional não achará que é uma vantagem supérflua ter do seu
lado os preconceitos da comunidade.
O perigo de perturbar a tranquilidade pública, interessando
demasiado fortemente as paixões públicas, é uma objecção
ainda mais séria contra o remeter frequente dos problemas
constitucionais para a decisão de toda a sociedade. Não obstante
o sucesso que acompanhou as revisões das nossas formas esta-
belecidas de governo, e que tanto honra a virtude e inteligência
do povo da América, deve confessar-se que essas experiências
são de uma natureza demasiado sensível para serem desneces-
sariamente multiplicadas. Devemos lembrar-nos de que todas
as Constituições existentes foram formadas: no meio de um
perigo que reprimiu as paixões mais inarnistosas a favor da
ordem e da concórdia; no meio de uma confiança entusiástica
do povo nos seus chefes patrióticos, que abafou a diversidade
ordinária das opiniões acerca das grandes questões nacionais;
no meio de um ardor universal por formas novas e contrárias,
produzido por um ressentimento e indignação universais
contra o antigo governo; e enquanto nenhum espírito de
partido ligado às mudanças, ou aos abusos a serem corrigidos,
era capaz de misturar o seu fermento na operação. As situações
futuras em que devemos esperar ser normalmente colocados
não apresentam uma protecção equivalente contra o perigo
que se teme.
Mas a maior de todas as objecções é que as decisões que
provavelmente resultariam de tais apelos não responderiam
ao propósito de manter o equih'brio constitucional do governo.
Vimos que a tendência dos governos republicanos é para o
engrandecimento do legislativo à custa dos outros departa-

[458]
mento 2 • Por conseguinte, os apelos ao povo seriam normal-
mente feitos pelos departamentos executivo e judicial. Mas
quer fossem feitos por um ou por outro, será que cada um
dos lados gozaria de iguais vantagens no julgamento? Vejamos
as diferentes situações. Os membros do departamento executivo
e do departamento judicial são em pequeno número e só
podem ser conhecidos pessoalmente por uma pequena parte
do povo. Os últimos, devido ao modo como são mandatados,
bem como à natureza e permanência desse mandato, estão
demasiado afastados do povo para partilharem grande parte
das suas predisposições. Os primeiros são geralmente objecto
de desconfiança, e a sua administração está sempre sujeita a
ser desfigurada e tornada impopular. Os membros do depar-
tamento legislativo, por outro lado, são numerosos. Estão
distribuídos e residem no meio do povo. As suas ligações de
sangue, de amizade e de conhecimentos abarcam uma grande
proporção da parte mais influente da sociedade. A natureza
do seu mandato público implica uma influência pessoal entre
o povo, e são mais imediatamente os guardiões confidenciais
dos direitos e liberdades do povo. Com estas vantagens, dificil-
mente se pode supor que o partido adverso teria uma probabili-
dade igual de uma decisão favorável.
Mas o partido legislativo não seria somente capaz de defen-
der a sua causa junto do povo com maior sucesso. Seriam
provavelmente designados como juízes. A mesma influência
que lhes deu a vitória numa eleição para a legislatura dar-
-lhes-ia um lugar na Convenção. Se não fosse este o caso para
todos, sê-lo-ia provavelmente para muitos e com toda a certeza
para esses personagens principais de quem tudo depende nessas
assembleias. A Convenção, em suma, seria principalmente
composta de homens que tinham sido, que eram no momento
actual, ou que esperavam vir a ser, membros do departamento
cuj a conduta estava a ser julgada. Consequentemente seriam

2 Ver artigo 48. QC) .

[459]
parte interessada na própria questão que tinham de decidir.
No entanto, poderia acontecer por vezes que os apelos
fossem feitos em circunstâncias menos adversas aos departa-
mentos executivo e judicial. As usurpações da legislatura
podiam ser tão flagrantes e tão súbitas que não admitissem
uma aparência ilusória. Um partido forte da legislatura poderia
alinhar ao lado dos outros ramos. O poder executivo podia
estar nas mãos de um peculiar favorito do povo. Num tal
estado de coisas, a decisão pública podia ser menos influenciada
por preconceitos a favor do partido legislativo. Mas ainda
assim nunca podia esperar-se que dependesse dos reais méritos
da questão. Estaria inevitavelmente ligada ao espírito dos
partidos preexistentes, ou de partidos resultantes da própria
questão. Estaria ligada a pessoas de carácter notável e grande
influência na comunidade. Seria pronunciada pelos próprios
homens que teriam sido agentes ou opositores das medidas
com as quais se relacionaria a decisão. As paixões, portanto, e
não a razão, do público sentar-se-iam no lugar de juízes. M as
é somente a razão do povo quem deve controlar e regulamentar
o governo. As paixões devem ser controladas e regulamentadas
pelo governo.
Vimos no último artigo que as simples declarações na
Constituição escrita são insuficientes para obrigar os vários
departamentos a manterem-se dentro dos seus limites legais.
Fica patente neste artigo que os ocasionais apelos ao povo
também não seriam uma providência adequada e eficaz para
esse objectivo. Em que medida podem ser adequadas certas
providências de natureza diferente contidas no plano acima
citado, é coisa que não examino. Algumas delas são inquestio-
navelmente fundadas em sólidos princípios políticos, e todas
elas são estruturadas com engenho e precisão singulares.
PUBLIUS

[460]
O FEDERALISTA N." 50
[49]

Consideração dos Apelos Periódicos ao Povo

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON]
5 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Pode ser argumentado, talvez, que em vez de apelos ocasio-


nais ao povo, que estão sujeitos às objecções alegadas contra
eles, os apelos periódicos são os meios apropriados e adequados
para impedir e corrigir infracções da Constituição.
Atender-se-á a que no exame desses meios, eu me confino
à sua aptidão para fazer cumprir a Constituição, através da
manutenção dos vários departamentos do poder dentro das
suas fronteiras próprias, sem os considerar em particular como
providências para alterar a própria Constituição. N a primeira
maneira de ver, os apelos ao povo em períodos fixos parecem
ser quase tão inelegíveis como os apelos em ocasiões particulares

* Do TI1e New- York Packet, 5 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 6 de Fevereiro no The Independent Journal e em 9 de Fevereiro no The Daily
A dvertiser. Recebeu o número 50 na edição de McLean e o número 49 nos
jornais. QC).

[461]
à medida que estas emergem. Se os períodos forem separados
por intervalos curtos, as medidas a rever e rectificar serão de
data recente, e estarão ligadas a todas as circunstâncias que
tendem a viciar e perverter o resultado de revisões ocasionais.
Se os períodos forem distantes uns dos outros, a mesma
observação valerá para medidas recentes; e na proporção em
que o carácter remoto das outras pode favorecer uma revisão
desapaixonada delas, esta vantagem é inseparável de inconve-
nientes que parecem contrabalançá-la. Em primeiro lugar,
uma expectativa longínqua de censura pública seria um freio
muito frágil colocado ao poder para aqueles excessos aos quais
poderia ser conduzido pela força dos motivos presentes. Deve
imaginar-se que uma assembleia legislativa, consistindo numa
centena ou duas centenas de membros, ardentemente inclinada
para um objectivo favorito, e rompendo através dos freios da
Constituição na prossecução dele, seria travada no seu progresso
por considerações emergentes de uma revisão censória da sua
conduta à distância futura de dez, quinze ou vinte anos? Em
seguida, .os abusos teriam frequentemente completado os seus
efeitos perniciosos antes que a providência que os corrige
tivesse sido aplicada. E em último lugar, nos casos em que
não acontecesse esta última, os abusos seriam de longa duração,
teriam criado raízes profundas, e não seriam facilmente
extirpados.
O esquema de rever a Constituição, com o intuito de
corrigir infracções recentes, bem como para outros fins, foi
efectivamente experimentado num dos Estados. Um dos
objectivos do conselho de censores que se reuniu na Pensilvânia
em 1783 e 1784 era, como vimosl, inquirir "se a Constituição
tinha sido violada, e se os departamentos legislativo e executivo
tinham usurpado o poder um do outro". Esta importante e
singular experimentação em política merece, de vários pontos
de vista, uma atenção muito particular. Em alguns deles pode,

1 Ver artigo 48. QC).

[462]
talvez, como uma experiência única, feita em circunstâncias
de certo modo peculiares, ser pensada como não sendo
absolutamente conclusiva. Mas quando aplicada ao caso que
estamos a considerar, ela envolve alguns factos que me atrevo
a mencionar como uma ilustração completa e satisfatória do
raciocínio que usei.
Primeiro. É patente, a partir dos nomes dos senhores que
compuseram o conselho, que pelo menos alguns dos seus
membros mais activos foram também personagens activas e
de chefia nos rartidos que preexistiam no Estado.
Segundo. E patente que os mesmos activos e importantes
membros do conselho tinham sido activos e influentes mem-
bros dos ramos legislativo e executivo, dentro do período a
ser examinado, e até patronos e oponentes das próprias medidas
a serem assim avaliadas pelo teste da Constituição. Dois dos
membros tinham sido vice-presidentes do Estado, e vários
outros membros do conselho executivo, no decurso dos sete
anos precedentes. Um deles tinha sido presidente da assembleia,
e uma porção dos outros, membros distintos da legislatura no
decurso do mesmo período.
Terceiro. Cada página dos seus debates testemunha o efeito
de todas estas circunstâncias na índole das suas deliberações.
Por toda a duração do conselho, ele esteve dividido em dois
partidos fixos e violentos. O facto é reconhecido e lamentado
pelos próprios. Ainda que o não tivessem feito, o descaramento
dos seus debates exibe uma demonstração igualmente satis-
fatória. Em todas as questões, por menos importantes que
fossem ou que estivessem desligadas umas das outras, os mes-
mos nomes estão invariavelmente contrastados em colunas
opostas . Qualquer observador imparcial pode inferir, sem
perigo de se enganar, e ao mesmo tempo sem a intenção de
que isso recaia em nenhum dos partidos ou em nenhum dos
indivíduos de qualquer dos partidos, que, infelizmente, a pai-
xão, e não a raz ão, deve ter presidido às suas decisões. Quando
os homens exercem a sua razão fria e livremente sobre uma

[463]
variedade de questões distintas, têm inevitavelmente opiniões
diferentes acerca de algumas delas. Quando são governados
por uma paixão comum, as suas opiniões, se assim devem ser
chamadas, serão as mesmas .
Quarto. É no mínimo problemático que as decisões desta
assembleia não interpretem mal, em vários casos, os limites
prescritos para os departamentos legislativo e executivo, em
vez de os reduzirem e limitarem dentro dos seus lugares
constitucionais.
Quinto. Nunca dei conta de que as decisões do conselho
sobre questões constitucionais, certa ou erradamente formadas,
tenham tido qualquer efeito de alterar a prática fundada em
interpretações legislativas. Parece até, se não me engano, que
num caso a Legislatura contemporânea negou as interpretações
do conselho e prevaleceu efectivamente na controvérsia.
Este corpo censório, portanto, demonstra simultaneamente,
pelas suas investigações, a existência da doença e, pelo seu
exemplo, a ineficácia do remédio.
Esta conclusão não pode ser invalidada pela alegação de
que o Estado em que a experimentação foi feita estava numa
crise, e tinha estado nela desde há muito tempo, violentamente
acalorado e perturbado pela fúria de partido. Será de presumir
que em qualquer época septenal futura o mesmo Estado estará
liberto de partidos? Será de presumir que qualquer outro
Estado, no mesmo período ou em qualquer outro período
dado, estará isento deles? Um acontecimento destes não devia
ser presumido nem desejado, porque uma extinção dos partidos
implica necessariamente ou um alarme universal em relação
à segurança pública, ou uma extinção absoluta da liberdade.
Se fosse tomada a precaução de excluir das assembleias
eleitas pelo povo para rever a precedente administração do
governo todas as pessoas que tivessem estado envolvidas no
governo no período em apreço, as dificuldades não seriam
neutralizadas. A importante tarefa recairia provavelmente em
homens que, com inferiores capacidades, estariam pouco mais

[464]
bem qualificados noutros aspectos. Embora pudessem não ter
estado pessoalmente envolvidos na administração e, portanto,
não fossem agentes imediatos das medidas a examinar, teriam
provavelmente estado envolvidos nos partidos ligados a essas
medidas, e teriam sido eleitos sob os auspícios destes.
PUBLIUS

[465]
O FEDERALISTA N. 0 51
[50]

A Estrutura do Governo Deve Fornecer


os Freios e Contrapesos (Checks and balances)
Adequados entre os Diversos Departamentos

JAMES MADI ON
(ALEXANDER HAMILTON]
6 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Então, a que meio devemos afinal recorrer, para manter


na prática a necessária repartição de poder entre os diversos
departamentos, tal como é estabelecido na Constituição?
A única resposta que pode ser dada é que, como todas essas
disposições exteriores se mostraram inadequadas, a insuficiência
deve ser suprida imaginando a estrutura interna do governo
de tal modo que as suas partes constituintes possam, através
das suas relações mútuas, constituir os meios de se manter

* Do The Independent j ournal, 6 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 8 de Fevereiro no The New- York Packet e em 11 de Fevereiro
no The Daily Advertiser. R ecebeu o número 51 na edição de McLean e o
número 50 nos jornais. QC).

[467]
umas às outras nos devidos lugares. Sem a presunção de intentar
um desenvolvimento completo desta importante ideia, arris-
carei algumas observações gerais, que talvez a possam aclarar,
e nos dêem a capacidade de formar um juízo mais concreto
dos princípios e estrutura do governo planeado pela Con-
venção.
Com o intuito de lançar os adequados alicerces para esse
exercício separado e distinto dos diferentes poderes de governo
que, em certa medida, é admitido por todos como sendo
essencial para a preservação da liberdade, é evidente que cada
departamento deverá ter uma vontade que lhe seja própria e,
consequentemente, deverá ser constituído de tal maneira que
os membros de cada um tenham tão pouca intervenção quanto
possível na nomeação dos membros dos outros. Se este
princípio fosse rigorosamente adoptado, ele exigiria que todas
as nomeações para as supremas magistraturas, executiva,
legislativa e judicial, proviessem da mesma fonte de autoridade,
o povo, através de canais que não tivessem nenhuma espécie
de comunicação uns com os outros. Talvez um tal plano de
construção dos diversos departamentos fosse menos difícil na
prática do que aparenta ser quando o contemplamos. No
entanto, a sua execução seria acompanhada de algumas difi-
culdades e alguma despesa adicional. Por conseguinte, têm
de ser admitidos alguns desvios ao princípio. Em particular
na constituição do departamento judicial, pode ser pouco
expedito insistir rigorosamente no princípio. Primeiro, porque
os seus membros precisam de qualificações especiais, a primeira
consideração devia ser seleccionar o modo de escolha que
melhor assegura essas qualificações; em segundo lugar, porque
a posse permanente dos mandatos nesse departamento bem
cedo deve destruir toda a sensação de dependência da autori-
dade que as confere.
É igualmente evidente que os membros de um departa-
mento deverão ser tão pouco dependentes quanto possível
dos membros dos outros, no que toca aos emolumentos anexos

[468]
aos seus cargos. Se o magistrado executivo ou os juízes não
fossem independentes da legislatura neste aspecto particular,
a sua independência em todos os outros aspectos seria
meramente nominal.
Mas a grande protecção contra uma concentração gradual
dos diversos poderes no mesmo departamento consiste em
dar àqueles que administram cada departamento os meios
constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir
à usurpação pelos outros. A providência para a defesa deve,
neste caso como em todos os outros, ser comensurável com
o perigo do ataque. Deve fazer-se com que a ambição con-
trabalance a ambiçãol. O interesse do homem deve estar ligado
aos direitos constitucionais do cargo. Pode resultar de uma
reflexão sobre a natureza humana, que tais dispositivos sejam
necessários para controlar os abusos do governo. Mas o que
é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões
sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos nenhuma
espécie de governo seria necessária . Se fossem os anjos a
governar os homens, não seriam necessários controlos externos
nem internos sobre o governo. Ao construir um governo em
que a administração será feita por homens sobre outros homens,
a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar
o governo a controlar os governados; e, seguidamente, obrigar
o governo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo
é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo, mas a
experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções
auxiliares.

1 Uma das características que percorre O Federalista é a ausência de ilusões


benevolentes em relação à co ndi ção humana. Contudo, as regras políticas, ao
serem desenhadas no conhecimento das facetas antropológicas mais sombrias
não só ganham eficácia, como permitem uma co rrecção institucional das
facetas mais unilaterais e egoístas do comportamento humano. Num certo
sentido, o federalismo permite a construção de uma esfera de «Virtudes públicas».
(E. P.).

[469]
Esta política de suprir, por meio de interesses opostos e
rivais, a falta de melhores motivos, pode ser reconstituída ao
longo de todo o sistema dos assuntos humanos, tanto privados
como públicos. Vemo-la particularmente exibida em todas
as distribuições subordinadas de poder, onde o alvo constante
é dividir e combinar os diferentes cargos de uma maneira tal
que cada um possa ser um controlo do outro e que o interesse
privado de cada indivíduo possa ser uma sentinela dos direi-
tos públicos. Estas invenções da prudência não podem ser
menos indispensáveis na distribuição dos poderes supremos
do Estado.
Mas não é possível dar a cada departamento um poder
igual de autodefesa. No governo republicano, a autoridade
legislativa predomina necessariamente. O remédio para este
inconveniente é dividir a legislatura em diferentes ramos, e
torná-los, por meio de diferentes modos de eleição e diferentes
princípios de acção, tão pouco ligados uns aos outros quanto
o admita a natureza das suas funções comuns e a sua depen-
dência comum da sociedade. Pode até ser necessário protegê-
-los de perigosas usurpações por meio de ainda mais precau-
ções. Tal como o peso da autoridade legislativa exige que ela
seja assim dividida, a fraqueza do executivo pode exigir, por
outro lado, que ele deva ser fortalecido. Um veto absoluto
sobre a legislatura parece, à primeira vista, ser a defesa natural
com que o magistrado executivo devia estar armado. Mas
talvez isso não seja completamente seguro nem suficiente por
si só. Em ocasiões normais ele pode não ser exercido com a
indispensável firmeza, e em ocasiões extraordinárias pode
abusar-se perfidamente dele. Não pode esta imperfeição de
um veto absoluto ser suprida por meio de alguma ligação
condicional entre este departamento mais fraco e o ramo mais
fraco do departamento mais forte, através da qual o último
pode ser levado a apoiar os direitos constitucionais do primeiro,
sem ficar desligado em demasia dos direitos do seu próprio
departamento?

[470]
Se os princípios em que se fundam estas observações esti-
verem certos, como estou convencido de que estão, e se forem
aplicados como critério às várias Constituições dos Estados
e à Constituição federal, ver-se-á que se a última não corres-
ponde perfeitamente a eles, as primeiras são infinitamente
menos capazes de suportar um teste desse tipo.
Há ainda mais duas considerações particularmente aplicá-
veis ao sistema federal da América, que colocam esse sistema
sob um ponto de vista muito interessante.
Primeiro. Numa república simples, todo o poder entregue
pelo povo é submetido à administração de um único governo,
e as usurpações são prevenidas por uma divisão do governo
em departamentos distintos e separados. Na república composta
da América, o poder entregue pelo povo é primeiramente
repartido por dois governos distintos, e, depois, a parte atribuída
a cada um deles é por sua vez repartida entre departamentos
distintos e separados. Surge deste modo uma dupla segurança
para os direitos do povo. Os diferentes governos controlar-
-se-ão mutuamente ao mesmo tempo que cada um deles será
controlado por si próprio.
Segundo. Numa república é de grande importância não
só defender a sociedade contra a opressão dos seus governantes,
mas defender cada parte da sociedade contra a injustiça da
outra parte. Existem necessariamente diferentes interesses em
diferentes classes de cidadãos. Se uma maioria estiver unida
por um interesse comum, os direitos da minoria ficarão pouco
seguros. Há apenas dois métodos de providenciar contra este
mal: um. criando na comunidade uma vontade que seja inde-
pendente da maioria, isto é, da própria sociedade; o outro,
abrangendo na sociedade tantos tipos distintos de cidadãos
que se torne muito improvável, ou mesmo impraticável, um
conluio injusto de uma maioria do todo. O primeiro método
prevalece em todos os governos que possuem um poder
hereditário ou autocrático. Esta é, no máximo, apenas uma
segurança precária, porque um poder independente da socie-

[471]
dade pode abraçar igualmente os pontos de vista injustos do
partido maioritário, ou os justos interesses do minoritário, e
pode talvez ser virado contra ambos os partidos. O segundo
método será exemplificado pela república federal dos Estados
Unidos. Embora toda a sua autoridade deva ser derivada e
depender da sociedade, a própria sociedade estará fragmentada
em tantas partes, interesses e classes de cidadãos, que os direitos
dos indivíduos, ou da minoria, correrão pouco perigo de
quaisquer conluios de interesses da maioria. Num governo
livre a protecção dos direitos civis deve ser a mesma que a
dos direitos religiosos. Ela consiste, num caso, na multiplicidade
de interesses, e no outro, na multiplicidade das seitas. O grau
de protecção em ambos os casos dependerá da quantidade de
interesses e seitas, e isto pode presumir-se como dependente
da extensão do país e da quantidade de pessoas abrangidas
por um mesmo governo. Este ponto de vista sobre o assunto
deve recomendar particularmente um sistema federal justo a
todos os amigos sinceros e ponderados do governo republicano.
Dado que mostra que, na exacta proporção em que o território
da União possa ser constituído por Confederações ou Estados
mais circunscritos, os conluios opressores da maioria ficarão
facilitados, a melhor segurança possível sob a forma republicana
para os direitos de todas as classes de cidadãos ficará diminuída.
E consequentemente, a estabilidade e independência de qual-
quer membro do governo, a única outra garantia, tem de ser
aumentada proporcionalmente. A justiça é o objectivo do
governo. É o fim da sociedade civil. Ela sempre foi, e será,
procurada até que seja obtida, ou até que a liberdade seja
perdida nessa porfia. Numa sociedade sob cujas formas uma
facção mais forte pode facilmente unir-se e oprimir a mais
fraca, pode dizer-se com verdade que nela reina a anarquia,
tal como num estado de natureza em que o indivíduo mais
fraco não está protegido da violência do mais forte. E tal como
neste último estado até os indivíduos mais fortes são impelidos,
pela incerteza da sua condição, a submeter-se a um governo

[472]
que possa proteger os fracos bem como eles próprios, também,
no primeiro daqueles estados, as facções ou partidos mais
poderosos serão gradualmente induzidos por um motivo
idêntico a desejar um governo que proteja todos, tanto os
fracos como os mais poderosos. E dificil duvidar de que, se
o Estado de Rhode Island fosse separado da Confederação e
abandonado a si mesmo, a desprotecção dos direitos sob a
forma popular de governo dentro de limites tão acanhados
manifestar-se-ia por tantas opressões reiteradas de maiorias
facciosas que depressa seria convocada alguma autoridade
totalmente independente do povo pelo clamor das próprias
facções cujo desgoverno tinha provado a necessidade dela.
Na vasta república dos Estados Unidos, e entre a grande
variedade de interesses, partidos e seitas que ela abrange, uma
coligação da maioria da sociedade raramente poderá ter lugar
com base em quaisquer princípios que não sejam os da justiça
e do bem geral. E havendo menos perigo para um partido
minoritário, vindo de um maioritário, deverá haver também
menos pretextos para providenciar a protecção do primeiro
através da introdução no governo de uma vontade não depen-
dente do último ou, por outras palavras, urna vontade indepen-
dente da própria sociedade. É tão certo quanto importante,
apesar das opiniões contrárias que têm sido apresentadas, que
quanto maior a sociedade, contanto que se mantenha dentro
de uma esfera praticável, mais devidamente capaz ela será de
autogoverno. E felizmente para a causa republicana, a esfera
praticáv 1 pode ser alargada a uma grande extensão, através
de uma judiciosa modificação e mistura do princípio federal.
PUBLIUS

[473]
O FEDERALISTA N." 52
[51]

A Câmara dos Representantes

JAMES MADISON
8 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Das investigações mais gerais desenvolvidas nos últimos


quatro artigos, passo agora a um exame mais minucioso das
várias partes do governo. Começarei com a Câmara dos Repre-
sentantes.
A primeira coisa a examinar em relação a esta parte do
governo refere-se às qualificações dos eleitores e dos eleitos.
As dos primeiros deverão ser idênticas às dos eleitores do ramo
mais numeroso das Legislaturas dos Estados. A definição do
direito de sufrágio é muito justamente vista como um artigo
fundamental do governo republicano. Era incumbência da
Convenção, por conseguinte, definir e estabelecer esse direito
na Constituição. Deixá-lo aberto à regulamentação ocasional

* Do The New- York Pru:ket, 8 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi publicado
em 9 de Fevereiro no The Independent ]ournal. Recebeu o número 52 na edição
de M cLean e o número 51 nos jornais. (JC) .

[475]
do Congresso teria sido incorrecto pela razão que acabamos
de mencionar. Tê-lo submetido ao arbítrio legislativo dos
Estados, teria sido incorrecto pela mesma razão e pela razão
adicional de que teria tornado esse ramo do Governo Federal,
que deve depender unicamente do povo, demasiado depen-
dente dos Governos dos Estados. Ter reduzido as diferentes
qualificações nos diferentes Estados a uma regra uniforme
teria provavelmente sido tão insatisfatório para alguns Estados
como difícil para a Convenção. A cláusula adoptada pela Con-
venção aparenta, portanto, ser a melhor que ela poderia
escolher. Tem de ser satisfatória para todos os Estados, porque
está em conformidade com o critério já estabelecido, ou que
pode vir a ser estabelecido, pelos próprios Estados. Será segura
para os Estados Unidos porque, sendo fixada pelas Constitui-
ções dos Estados, não é alterável pelos Governos dos Estados,
e não pode temer-se que o povo dos Estados venha a alterar
esta parte das suas Constituições de uma maneira que limite
os direitos que lhe são garantidos pela Constituição Federal.
As qualificações dos eleitos, sendo definidas menos cuida-
dosamente e menos correctamente pelas Constituições dos
Estados, e sendo simultaneamente mais susceptíveis de unifor-
midade, foram muito correctamente consideradas e regulamen-
tadas pela Convenção. Um representante dos Estados Unidos
deve ter vinte e cinco anos de idade ou mais; deve ser cidadão
dos Estados Unidos há pelo menos sete anos; deve, no mo-
mento da sua eleição, ser um habitante do Estado que irá
representar; e, durante o tempo do seu mandato, não deve
ocupar nenhum cargo na administração dos Estados Unidos.
Com estas limitações razoáveis, a porta desta parte do governo
federal está aberta a todos os tipos de mérito, quer nativos
quer adoptivos, quer jovens quer velhos, e sem olhar à pobreza
ou riqueza, ou a qualquer profissão particular de fé religiosa.
A duração do mandato para que serão eleitos os represen-
tantes cai dentro de um segundo ponto de vista que pode ser
adoptado em relação a este ramo. Com o intuito de decidir

[476]
acerca da correcção deste artigo, devem ser consideradas duas
questões: primeira, se, neste caso, será seguro ter eleições bie-
nais; segunda, se são necessárias ou úteis.
Primeira. Como é essencial para a liberdade que o governo
em geral deva ter um interesse em comum com o povo,
também é particularmente essencial que o ramo que estamos
a considerar deva ter uma dependência imediata do povo e
uma simpatia íntima com ele. As eleições frequentes são
inquestionavelmente a única política por meio da qual essa
dependência e simpatia podem ser eficazmente asseguradas.
Mas o grau particular de frequência que pode ser absoluta-
mente necessário para esse fim não parece susceptível de um
cálculo preciso, e deve depender de uma variedade de circuns-
tâncias com as quais pode estar ligado. Consultemos a expe-
riência, o guia que deve ser sempre seguido nos casos em que
pode ser encontrado.
O esquema de representação, como um substituto para a
reunião dos cidadãos em pessoa, era, no máximo, muito
imperfeitamente conhecido da política antiga, e só em tempos
mais modernos é que podemos esperar exemplos instrutivos
dele. E mesmo aí, com o intuito de evitar uma pesquisa dema-
siado vaga e difusa, será bom que nos confinemos aos poucos
exemplos que são mais bem conhecidos, e que têm maior
analogia com o nosso caso particular. O primeiro ao qual
deve ser aplicada esta característica é a Câmara dos Comuns
na Grã-Bretanha. A história deste ramo da Constituição
inglesa, anterior à data da Magna Carta, é demasiado obscura
para proporcionar ensinamentos. A própria existência desta
Câmara transformou-se numa questão entre os antiquários
políticos. Os registos mais antigos de data subsequente provam
que os parlamentos deviam apenas reunir-se em sessão todos os
anos; e não que deviam ser eleitos todos os anos. E mesmo
estas sessões anuais eram deixadas em tão grande parte ao
arbítrio do monarca que, sob vários pretextos, foram fre-
quentemente maquinados pela ambição real intervalos muito

[477]
longos e perigosos. Para remediar esta queixa foi providenciado,
por um decreto do reinado de Carlos II, que os intervalos
não deviam ser estendidos para lá de um período de três anos.
Quando da subida ao trono de Guilherme III, quando teve
lugar uma revolução no governo, o assunto foi retomado
ainda mais seriamente, e foi declarado como fazendo parte
dos direitos fundamentais do povo que os parlamentos se
deviam reunir frequentemente. Por outro decreto, que foi
aprovado poucos anos mais tarde no mesmo reinado, o termo
"frequentemente," que tinha aludido ao período trienal
decidido no tempo de Carlos II, é reduzido a um significado
preciso, sendo expressamente decretado que um novo
parlamento deve ser convocado dentro dos três anos seguintes
à determinação do anterior. É bem conhecido que a última
alteração, de três para sete anos, foi introduzida logo no começo
do presente século, debaixo de um receio em relação à sucessão
hanoveriana. Fica patente destes factos que a maior frequência
de eleições que foi julgada necessária nesse reino, para obrigar
os representantes perante os seus constituintes, não excede
uma repetição trienal delas. E se podemos argumentar a partir
do grau de liberdade retido mesmo com eleições septenais,
e todos os outros ingredientes traiçoeiros na constituição do
parlamento, não podemos duvidar de que uma redução do
período de sete para três anos, juntamente com outras reformas
necessárias, alargaria suficientemente a influência do povo
sobre os seus representantes para que ficássemos satisfeitos
com o facto de que eleições bienais, no sistema federal, de
maneira alguma podem ser perigosas para a indispensável
dependência da Câmara dos Representantes em relação aos
seus constituintes.
Até há pouco tempo, as eleições na Irlanda eram inteira-
mente governadas pelo arbítrio da coroa, e eram repetidas
raramente, excepto por ocasião da subida ao trono de um
novo Príncipe, ou de outro qualquer acontecimento contin-
gente. O parlamento que começou com Jorge II continuou

[478]
ao longo de todo o seu reinado, um período de cerca de trinta
e cinco anos. A única dependência dos representantes em
relação ao povo consistiu no direito deste último para suprir
eventuais vacaturas por meio da eleição de novos membros,
e no acaso de algum acontecimento que pudesse produzir
uma nova eleição geral. Também a capacidade do parlamento
irlandês para preservar os direitos dos seus constituintes, na
medida em que pudesse existir essa disposição, foi extrema-
mente agrilhoada pelo controlo da coroa sobre os assuntos
de sua deliberação. Ultimamente, se não me engano, essas
grilhetas foram quebradas e além disso foram estabelecidos
parlamentos de oito anos. Qual o efeito que pode ser produzido
por esta reforma parcial é assunto que deve ser deixado à
experiência ulterior. O exemplo da Irlanda, a partir deste
panorama, só pode lançar uma fraca luz sobre o assunto. Na
medida em que podemos extrair dele alguma conclusão, deve
ser que se o povo desse país tem sido capaz, sob o peso de
todas estas desvantagens, de conservar algum tipo de liberdade,
a vantagem de eleições bienais assegurar-lhe-ia todos os graus
de liberdade que possam depender de uma ligação correcta
entre os seus representantes e ele próprio.
Levemos a nossa investigação até mais perto de nós.
O exemplo destes Estados quando eram colónias britânicas,
reclama uma atenção particular ao mesmo tempo que é tão
bem conhecido que pouco é preciso dizer acerca dele.
O princípio da representação, num ramo da Legislatura pelo
menos, foi estabelecido em todos eles. Mas os períodos de
eleição eram diferentes. Variavam de um até sete anos. Temos
alguma razão para inferir, a partir do espírito e conduta dos
representantes do povo anteriormente à Revolução, que as
eleições bienais teriam sido perigosas para as liberdades públi-
cas? O espírito que por todo o lado se mostrou no começo
da luta, e que venceu os obstáculos à independência, é a
melhor das demonstrações de que tinha sido gozada por toda
a parte uma porção de liberdade suficiente para inspirar

[479)
simultaneamente um sentimento do seu valor e um entusiasmo
em relação ao seu correcto alargamento. Esta observação é
válida tanto no q e respeita às colónias de então cujas eleições
eram menos frequentes como àquelas cujas eleições eram mais
frequentes. A Virgínia foi a colónia que primeiro se ergueu
na resistência às usurpações parlamentares da Grã-Bretanha e
foi também a primeira a abraçar, através de um acto público,
a resolução de independência. Na Virgínia, apesar disso, se
não fui mal informado, as eleições na vigência do governo
anterior eram de sete em sete anos. Este exemplo particular
é posto diante de nós, não como uma prova de qualquer
mérito peculiar, porque a prioridade nesses casos era prova-
velmente acidental e ainda menos de qualquer vantagem em
eleições septenais, porque elas são inadmissíveis quando com-
paradas com uma frequência maior, mas meramente como
uma demonstração, e eu considero-a urna demonstração muito
substancial, de que as liberdades do povo em nada podem
perigar com eleições bienais.
A conclusão resultante destes exemplos não será pouco
reforçada se recordarmos três circunstâncias. A primeira é que
a Legislatura Federal possuirá apenas urna parte dessa autoridade
legislativa suprema que é completamente investida no parla-
mento britânico e que, com poucas excepções, era exercida
pelas Assembleias coloniais e pela Legislatura irlandesa. É uma
máxima aceite e bem fundada que, quando não há outras
circunstâncias que possam intervir, quanto maior é o poder
mais curta deverá ser a sua duração e, reciprocamente, quando
menor é o poder mais seguramente pode a sua duração ser
prolongada. Em segundo lugar, mostrou-se, noutra ocasiãol,
que a legislatura fe deral não só será limitada pela sua depen-
dência do seu povo, como o são outros corpos legislativos,
mas que será, além disso, vigiada e controlada por várias Legis-
laturas colaterais, o que não acontece com outros corpos legis-

I Ver artigo 46. QC).

[480]
lativos. E em terceiro lugar, nenhuma comparação pode ser
feita entre os meios que serão possuídos pelos ramos mais
permanentes do Governo Federal para desencaminhar, se
estiverem dispostos a desencaminhar, a Câmara dos Represen-
tantes do seu dever para com o povo, e os meios de influência
sobre o ramo popular, possuídos por outros ramos do governo
acima citado. Portanto, com menos poder para violar, os
representantes federais podem ser menos tentados por um
lado, e serão duplamente vigiados por outro.
PUBLIUS

[481]
O FEDERALISTA N. • 53
[52]

A Câmara dos Representantes


(continuação)

JAMES MADISON
9 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Talvez me deva lembrar aqui de uma observação corrente,


"que quando deixa de haver eleições anuais, a tirania começa".
Se é verdade, como frequentemente tem sido notado, que os
ditados que se tornam proverbiais são geralmente fundados
na razão, não é menos verdade que uma vez estabelecidos,
são frequentemente aplicados a casos a que a sua razão de ser
não se estende. Para uma demonstração, não preciso de pro-
curar mais longe do que o caso diante de nós. Qual é a razão
em que é fundada a observação proverbial? Nenhum homem
se submeterá ao ridículo de pretender que subsiste qualquer
ligação natural entre o sol ou as estações e o período durante

* Do The IndependetJt j ournal, 9 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 12 de Fevereiro no The New- York Packet. Recebeu o número
53 na eclição de McLean e o número 52 nos jornais. QC).

[483]
o qual a virtude humana pode suportar as tentações do poder.
Felizmente para o género humano, a liberdade não está, neste
aspecto, confinada a um qualquer ponto singular do tempo,
mas jaz entre extremos, que permitem latitude suficiente para
todas as variações que possam ser exigidas pelas várias situações
e circunstâncias da sociedade civil. A eleição dos magistrados
podia ser, se fosse julgado conveniente, como em alguns casos
realmente foi, diária, semanal, ou mensal, tão bem como
anual. E, se as circunstâncias podem exigir um desvio à regra
para um lado, porque não também para o outro lado? Voltando
a nossa atenção para os períodos estabelecidos entre nós para
a eleição dos ramos mais numerosos das legislaturas dos Estados,
vemos que de modo algum eles coincidem mais nestes casos
do que nas eleições dos outros magistrados civis. No Connec-
ticut e em Rhode Island, os períodos são de meio ano. Noutros
Estados, exceptuando a Carolina do Sul, são anuais. Na
Carolina do Sul são bienais- como é proposto para o governo
federal. Eis uma diferença, de quatro para um, entre o período
mais longo e o mais curto. E, no entanto, não é facil mostrar
que o Connecticut ou Rhode Island são mais bem governados,
ou desfrutam de um maior quinhão de liberdade racional, do
que a Carolina do Sul; ou que quer um quer outro desses
Estados é distinto nesses aspectos, e por essas causas, dos Estados
cujas eleições são diferentes das de ambos.
Ao procurar os fundamentos desta doutrina só consigo
descobrir um, e esse é totalmente inaplicável ao nosso caso.
A in1portante distinção, tão bem compreendida na América,
entre uma Constituição, estabelecida pelo povo e inalterável
pelo governo, e uma lei, estabelecida pelo governo e alterável
pelo governo, parece ter sido pouco compreendida e ainda
menos observada em qualquer outro país. Em qualquer órgão
em que tenha residido o poder supremo de legislar, admitiu-
-se que residia também o poder integral de mudar a forma
do governo. Mesmo na Grã-Bretanha, onde os princípios da
liberdade política e civil têm sido mais exaustivamente discuti-

[484]
dos e onde mais ouvimos falar dos direitos da Constituição,
é sustentado que a autoridade do Parlamento é transcendente
e incontrolável, tanto em relação à Constituição como aos
objectos ordinários de regulamentação legislativa. Em confor-
midade com isso, eles alteraram efectivamente, em vários
casos, por meio de actos legislativos, alguns dos artigos mais
fundamentais do governo. Em particular, alteraram, em várias
ocasiões, o período das eleições. E, na última ocasião, não só
introduziram eleições septenais em lugar de trienais, mas com
a mesma lei mantiveram-se no cargo quatro anos para além
do período para que tinham sido eleitos pelo povo. Urna aten-
ção a estas práticas perigosas originou urna inquietação muito
natural nos partidários de um governo livre, para o qual a
frequência das eleições é uma pedra angular, e levou-os a pro-
curar uma protecção da liberdade, contra o perigo ao qual
ela está exposta. Se não existisse ou não pudesse ser conseguida
nenhuma constituição superior do governo, não seria tentada
nenhuma garantia constitucional semelhante à estabelecida
nos Estados Unidos. Portanto, havia que procurar uma outra
garantia. E que melhor garantia podia admitir este caso do
que a de escolher e apelar para uma porção de tempo simples
e famili ar, como critério para medir o perigo de inovações,
para firmar o sentimento nacional, e para unir os esforços
patrióticos? A porção de tempo mais simples e familiar aplicável
ao caso era um ano. E por este motivo foi inculcada com lou-
vável fervor a doutrina que, para erguer uma barreira contra
as inovações graduais de um governo ilimitado, o progresso
em direcção à tirania devia ser calculado pela distância do
desvio medido a partir do ponto fixo das eleições anuais. Mas
que necessidade pode haver de aplicar este recurso a um
governo limitado, como o será o governo federal, pela autori-
dade de uma constituição superior? Ou quem pretenderá que
as liberdades do povo da América não estarão mais seguras
com eleições bienais, inalteravelmente fixadas por uma Cons-
tituição assim, do que estariam as de qualquer outra nação,

[485]
onde as eleições fossem anuais, ou mesmo mais frequentes,
mas sujeitas às alterações pelo poder ordinário do governo?
A segunda questão enunciada é se as eleições bienais serão
necessárias ou úteis. A justeza da resposta afirmativa a esta
questão tomar-se-á visível após várias considerações muito
óbvias.
Nenhum homem pode ser um legislador competente se
não juntar a uma intenção íntegra e a um juízo sólido um
certo grau de conhecimento dos assuntos sobre os quais terá
de legislar. Uma parte desse conhecimento pode ser adquirida
através de informação que está ao alcance dos homens, tanto
em cargos privados como públicos. Uma outra parte só pode
ser alcançada, ou pelo menos completamente alcançada, pela
experiência efectiva no cargo que requer o uso dela. Portanto,
o período de serviço deveria, em todos esses casos, ter uma
certa proporção com a extensão do conhecimento prático
indispensável para o desempenho adequado do cargo.
O período de serviço legislativo estabelecido na maior parte
dos Estados para o ramo mais numeroso é, como vimos,
um ano. A questão pode então ser posta desta forma simples:
o período de dois anos não tem maior proporção com o
conhecimento indispensável para a legislação federal do que
o período de um ano tem com o conhecimento indispensável
à legislação dos Estados? O próprio enunciado da questão,
nesta forma, sugere a resposta que lhe deve ser dadal.
Num Estado singular, o conhecimento indispensável
refere-se às leis existentes, que são uniformes em todo o
Estado, e com as quais todos os cidadãos estão mais ou menos
familiarizados; e aos assuntos gerais do Estado, que estão
compreendidos dentro de um pequeno círculo, não são muito
1 Madison tenta, esforçadamente, demonstrar que os mandatos de dois

anos dos deputados à Câmara dos Representantes não são um período


excessivamente longo. Para um observador contemporâneo, pelo contrário,
os mandatos bienais parecem ser suficientemente curtos para transformarem
esses deputados em candidatos permanentes. (E. P.) .

[486]
diversificados, e ocupam muita da atenção e muitas das con-
versas de todas as classes de pessoas. O grande palco dos Estados
Unidos apresenta uma cena muito diferente. As leis estão tão
longe de serem uniformes que variam em cada Estado,
enquanto os assuntos públicos da União estão disseminados
por uma região muito vasta, e são extremamente diversificados
pelos assuntos locais a eles ligados, e só com dificuldade podem
ser aprendidos em qualquer outro lugar que não seja os con-
selhos centrais aos quais será trazido um conhecimento deles
pelos representantes de todas as partes do império. Todavia,
algum conhecimento dos assuntos, e mesmo das leis de todos
os Estados, devia ser possuído pelos membros de cada um dos
Estados. Como pode o comércio externo ser adequadamente
regulamentado por meio de leis uniformes, sem um certo
conhecimento do comércio, dos portos, dos usos, e dos regula-
mentos dos diferentes Estados? Como podem os negócios
entre os diferentes Estados ser devidamente regulamentados
sem um certo conhecimento da situação relativa deles, neste
e em outros aspectos? Como podem impor-se taxas justas, e
colectá-las efectivamente, se elas não se harmonizarem com
as diferentes leis e circunstâncias locais relativas a esses objectos
nos diferentes Estados? Como pode providenciar-se devida-
mente m regulamento uniforme para a milícia, sem um
conhecimento semelhante de muitas circunstâncias internas
pelas quais os Estados se distinguem uns dos outros? Estes são
os objectos principais da legislação federal, e sugerem com
muita força a vasta informação que os representantes têm de
adquirir. Os outros objectos inferiores exigirão, no que lhes
diz respeito, um grau proporcional de informação.
É verdade que todas estas dificuldades serão, gradualmente,
muitíssimo diminuídas. A tarefa mais laboriosa será a correcta
entrada em vigor do governo e a formação primeva de um
código federal. Os melhoramentos ao primeiro esboço tornar-
-se-ão em cada ano tão fáceis como menos frequentes. As
realizações pretéritas do governo serão uma fonte de informa-

[487]
ção disponível e exacta para os novos membros. Os assuntos
da união tornar-se-ão cada vez mais objecto de curiosidade
e conversa da maior parte dos cidadãos. E o intercâmbio
acrescido entre os cidadãos de diferentes Estados contribuirá
em não pequena medida para difundir um conhecimento
mútuo dos assuntos destes últimos, tal como isto contribuirá
por sua vez para uma assimilação generalizada dos seus costumes
e leis. Mas, com todas estas diminuições, a tarefa da legislação
federal tem de continuar a exceder, tanto em novidade como
em dificuldade, a tarefa legislativa de um Estado singular, justi-
ficando nessa medida o período de serviço mais longo atribuído
aos que devem realizá-la.
Um ramo do conhecimento que faz parte dos conheci-
mentos de um representante federal e que não foi mencionado
é o dos negócios estrangeiros. Ao regulamentar o nosso próprio
comércio ele deve estar familiarizado não só com os tratados
entre os Estados Unidos e as outras nações, mas também com
a politica comercial e as leis das outras nações. Não deve ser
completamente ignorante da lei das nações; porque esta, longe
como está de ser um objecto próprio de legislação municipal,
está submetida ao governo federal. E embora a Câmara dos
Representantes não participe directamente nas negociações
e disposições externas, apesar de tudo, por causa da conexão
necessária entre os vários ramos dos assuntos públicos, esses
ramos particulares merecerão frequentemente atenção no
curso ordinário da legislação, e pedirão algumas vezes aprovação
e cooperação legislativas particulares. Uma parte deste conhe-
cimento pode, sem dúvida, ser adquirida por um homem no
seu gabinete, mas há também uma outra parte que só pode
ser obtida nas fontes públicas de informação, e a totalidade
será adquirida, para o melhor efeito, por meio de uma atenção
prática ao assunto durante o período de serviço efectivo na
legislatura.
Existem outras considerações, de menor importância, tal-
vez, mas que não são indignas de atenção. A distância a que

[488]
muitos dos representantes serão obrigados a deslocar-se, e as
disposições tornadas necessárias por essa circunstância podem
ser objecções muito mais sérias para homens aptos para este
serviço, se limitadas a um só ano, do que se alargadas a dois
anos. Nesta matéria, nenhum argumento pode ser inferido a
partir do caso dos delegados ao Congresso existente. É verdade
que estes são eleitos anualmente, mas a sua reeleição é consi-
derada pelas assembleias legislativas quase como uma coisa
natural. A eleição de representantes pelo povo não seria
governada pelo mesmo princípio.
Urna pequena porção de membros, como acontece em
todas as assembleias como esta, possuirá talentos superiores.
Estes tornar-se-ão, através de reeleições frequentes, membros
por muitos anos e dominarão por completo os assuntos
públicos, e talvez não estejam relutantes em aproveitar-se
dessas vantagens. Quanto maior for a proporção de novos
membros, e quanto menor a informação da grande massa dos
membros, mais aptos estarão os novos membros para cair nas
ciladas que lhes podem ser armadas. Esta observação não é
menos aplicável à relação que subsistirá entre a Câmara dos
Representantes e o Senado.
É um inconveniente associado às vantagens das eleições
frequentes, mesmo em Estados singulares, quando são vastos
e têm apenas uma sessão legislativa no ano, que as eleições
fraudulentas não podem ser investigadas e anuladas em tempo
útil para que a decisão tenha o seu devido efeito. Se puder
ser conseguida uma eleição, não importando por que meios
ilegais, o membro irregular, que é claro que toma posse do
seu lugar, tem a certeza de detê-lo durante o tempo suficiente
para conseguir os seus propósitos. Daqui resulta que é dado
um pernicioso encorajamento ao uso de meios ilegais para
obter reeleições regulares. Se as eleições para a legislatura
federal forem anuais esta prática pode tornar-se um sério
abuso, em particular nos Estados mais distantes. Cada câmara
é, como necessariamente deve ser, juiz das eleições, qualifica-

[489]
ções e votações dos seus membros, e de quaisquer melhora-
mentos que possam ser sugeridos pela experiência para
simplificar e acelerar o processo em casos em disputa. Seria
tão grande a parte do ano que decorreria inevitavelmente
antes que um membro ilegítimo pudesse ser privado do seu
lugar que a perspectiva de tal acontecimento seria um parco
controlo dos meios injustos e ilícitos de obter um lugar.
Todas estas considerações tomadas colectivamente autori-
zam-nos a afirmar que as eleições bienais serão tão úteis aos
assuntos públicos como vimos que eram seguras para as liber-
dades do povo.
PUBLIUS

[490]
O FEDERALISTA N. 0 54
[53]

Distribuição dos Membros da Câmara


dos Representantes entre os Estados

JAMES MADISON
(ALEXANDER HAMILTON]
12 de Fevereiro de 1788

Ao Pot/O do Estado de Nova Iorque.

O aspecto seguinte que tratarei em relação à Câmara dos


Representantes relaciona-se com a distribuição dos seus mem-
bros entre os vários Estados, que deverá ser determinada por
uma regra idêntica à dos impostos directos.
Ninguém discute que o número de pessoas de cada Estado
não deve ser o critério para decidir a proporção dos que devem
representar o povo de cada Estado. É provável que o estabeleci-
mento da mesma regra para a distribuição dos impostos seja
igualmente pouco controvertido, embora a própria regra,
neste caso, de maneira nenhuma seja fundada no mesmo

* Do The New- York Packet, 12 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 13 de Fevereiro no The Independentjournal. Recebeu o número
54 na edição de McLean e o número 53 nos jornais. QC).

[491]
princípio. No primeiro caso, a regra é entendida como refe-
rindo-se aos direitos pessoais do povo, com os quais tem uma
conexão natural e universal. No último, refere-se à proporção
de riqueza, que em caso algum tem uma medida exacta, e
em casos vulgares tem uma medida muito desajustada. Mas
não obstante a imperfeição da regra quando aplicada à riqueza
relativa e às contribuições dos Estados, ela é evidentemente
a menos repreensível das regras praticáveis e, além disso, tinha
obtido demasiado recentemente o consentimento geral da
América para não encontrar uma pronta preferência na
Convenção.
Tudo isto é aceite como verdadeiro, dir-se-á talvez. Mas
segue-se daqui, por uma aceitação do número dos cidadãos
para medida da representação, ou do número de escravos
combinados com o de cidadãos livres como um rácio de
tributação, que os escravos devam ser incluídos na regra numé-
rica da representação? Os escravos são considerados como
propriedade, não como pessoas. Portanto devem estar com-
preendidos em estimativas de tributação que são fundadas na
propriedade e ser excluídos da representação que é regulada
por um censo das pessoas. Esta é a objecção, tal como eu a
compreendo, enunciada em todo o seu vigor. Terei de ser
igualmente simples ao apresentar o raciocínio que pode ser
oferecido do lado oposto.
Subscrevemos a doutrina- podia observar um dos nossos
irmãos do Sul- segundo a qual a representação se refere mais
imediatamente a pessoas e a tributação mais imediatamente
à propriedade, e associamo-nos na aplicação desta distinção
ao caso dos nossos escravos. Mas temos de negar o facto de
que os escravos sejam considerados meramente como proprie-
dade, e em nenhum aspecto, seja ele qual for, como pessoas.
O verdadeiro estado de coisas é que eles partilham de ambas
as qualidades: sendo considerados pelas nossas leis, em alguns
aspectos, como pessoas, e noutros aspectos como propriedade.
No facto de ser obrigado a trabalhar, não para si, mas para

[492)
um senhor, de poder ser vendido por um senhor a outro
senhor e de estar permanentemente sujeito a ser coarctado
na sua liberdade e punido no seu corpo pela vontade caprichosa
de outra pessoa, o escravo pode aparentar estar degradado da
sua dignidade humana, e classificado com esses animais
irracionais que caem sob a denominação legal de propriedade.
No facto de ser protegido, por outro lado, na sua vida e nos
seus membros, da violência de todos os outros, mesmo do
senhor do seu trabalho e da sua liberdade, e de ser ele próprio
punível por toda a violência cometida contra outrem, o escravo
é não menos evidentemente visto pela lei como um membro
da sociedade, e não como uma parte da criação irracional,
como uma pessoa moral, e não como um mero artigo de
propriedade. A Constituição Federal, portanto, decide com
grande justeza sobre o caso dos nossos escravos quando os vê
com o carácter misto de pessoas e de propriedade. Este é de
facto o seu verdadeiro carácter. É o carácter que lhes é confe-
rido pelas leis sob as quais vivem e não se negará que estas
são o critério justo, porque é apenas com o pretexto de que
as leis transformaram os negros em matéria de propriedade
que é discutido um lugar no cálculo do número de represen-
tantes e é aceite que, se as leis viessem a restaurar os direitos
que foram tirados, já não se podia recusar aos negros uma
parte de representação igual à dos outros habitantes.
Esta questão pode ser considerada a outra luz. Toda gente
concorda que os números são a melhor escala de riqueza e
tributação, tal como são a única escala adequada de represen-
tação. Teria sido a Convenção imparcial ou consistente, se
tivesse afastado os escravos da lista dos habitantes quando viesse
a ser calculada a distribuição da representação, e os tivesse
incluído nas listas quando a tarifa das contribuições devesse
ser ajustada? Podia razoavelmente esperar-se que os Estados
do Sul concordassem com um sistema que considerava os seus
escravos como homens num certo grau quando se tratava de
lançar impostos, mas recusava considerá-los à mesma luz

[493]
quando se tratava de conferir vantagens? Não podia também
ser expressa alguma surpresa vendo que os que censuram os
Estados do Sul pela bárbara política de considerar como
propriedade uma parte dos seus irmãos humanos, argumentam,
por seu turno, que o governo em que todos os Estados serão
participantes deva considerar esta desafortunada raça à luz não
natural da propriedade, ainda mais completamente do que as
próprias leis de que se queixam 1?
Pode talvez responder-se que os escravos não estão incluí-
dos nas estimativas de representantes em nenhum dos Estados
que os possuem. Nem votam nem aumentam os votos dos
seus senhores. Então, com base em que princípio é que eles
deveriam ser contados na estimativa federal da representação?
Ao afastá-los completamente, a Constituição teria, neste
aspecto, seguido as próprias leis a que se fez apelo como sendo
o guia justo.
Esta objecção é afastada por uma simples observação.
É um princípio fundamental da Constituição proposta que,
tal como o número global de representantes atribuído aos
vários Estados deverá ser determinado por uma regra federal
fundada no número global de habitantes, também o direito
de escolher esse número de representantes atribuído em cada
Estado deverá ser exercido pela parte dos habitantes que o
próprio Estado queira designar. As qualificações de que
depende o direito de sufrágio não são, porventura, as mesmas
em quaisquer dois Estados2. Em alguns dos Estados a diferença

1 Maclison está a referir-se ao Art. o 1, secção II, cláusula 3 da Constituição

que considera os escravo , para efeitos de representação eleitoral dos Estado ,


como três quintos de pessoa . (E. P.).
2 A Convenção de Filadélfia derrotara em 8 de Agosto de 1787 uma
proposta que pretendia restringir o direito de voto em eleições federais a
proprietários. O respeitável Benjamin Franklin foi uma das vozes mais veementes
no combate à introdução de qualificações restritivas ao direito de sufrágio. As
qualificações eleitorais ficaram na esfera de competência residual dos Estados.
(E. P.).

[494]
é muito substancial. Em todos os Estados, há uma certa porção
dos habitantes que estão privados deste direito pela Constitui-
ção do Estado, porção que será incluída no censo por meio
do qual a Constituição federal distribui os representantes.
Deste ponto de vista os Estados do Sul poderiam ripostar à
queixa, insistindo que o princípio estabelecido pela Convenção
reclamava que não fosse levado em conta a política dos Estados
particulares em relação aos seus próprios habitantes e, conse-
quentemente, que os escravos, como habitantes, deviam ter
sido incluídos no censo conformemente ao seu número total,
da mesma maneira que os outros habitantes, que, pela política
de outros Estados, não gozam de todos os direitos de cidadãos.
No entanto, urna rigorosa fidelidade a este princípio é desejada
por aqueles que ganhariam com ela. Tudo o que pedem é
que seja mostrada igual moderação do lado oposto. Consintam
que o caso dos escravos seja considerado, como na verdade
é, um caso peculiar. Consintam que seja mutuamente adoptado
o recurso de compromisso da Constituição, que os vê como
habitantes, porém degradados pela servidão abaixo do nível
de habitantes livres, que vê o escravo como despojado de dois
quintos da condição de homem.
Afinal, não se pode encontrar outro terreno em que este
artigo da Constituição aceite uma defesa ainda mais pronta?
Procedemos até agora com base na ideia de que a representação
se relacionava apenas com as pessoas, e absolutamente nada
com a propriedade. Mas trata-se de uma ideia justa? O governo
é instituído, não menos para a protecção da propriedade do
que para a das pessoas dos indivíduos3. Tanto uma quanto as
outras, portanto, podem ser consideradas como representadas
por aqueles que têm a seu cargo o governo. É com base neste

3 Madison segue aqui, de muito perto, a doutrina de John Locke que


afirmava: "o governo não tem outro propósito do que a preservação da
propriedade" (Government has no other end but the preservation if Property), Second
Treatise on Government, VII, § 94. (E. P.).

[495]
princípio que em diversos Estados, e em particular no Estado
de Nova Iorque, um ramo do governo se destina mais espe-
cificamente a ser o guardião da propriedade e, em conformi-
dade com isso, é eleito por aquela parte da sociedade que está
mais interessada nesse objecto de governo4. Na Constituição
Federal, esta politica não prevalece. Os direitos de propriedade
são entregues às mesmas mãos, juntamente com os direitos
pessoais. Logo, na escolha dessas mãos, deveria ser prestada
alguma atenção à propriedade.
Por outra razão, os votos para a Legislatura Federal outorga-
dos ao povo de cada Estado deveriam ter alguma proporção
com a riqueza comparativa dos Estados. Os Estados não têm,
como os indivíduos, uma influência uns sobre os outros que
resulte das superiores vantagens da fortuna. Se a lei concede
a um cidadão opulento um único voto na escolha do seu
representante, o respeito e a importância que ele obtém pela
sua afortunada situação guia muito frequentemente os votos
de outros para os objectos que ele escolhe e através deste canal
imperceptível os direitos de propriedade são transmitidos à
representação pública. Um Estado não possui tal influência
sobre outros Estados. Não é provável que o Estado mais rico
da Confederação venha alguma vez a influenciar a escolha de
um só representante em qualquer outro Estado. Nem os
representantes dos Estados mais vastos e mais ricos possuirão
qualquer outra vantagem na Legislatura Federal, sobre os
representantes de outros Estados, além daquela que possa
resultar apenas do seu superior número; por conseguinte, na
medida em que a riqueza e importância superiores possam
com justiça dar-lhes alguma vantagem, esta deverá ser-lhes
assegurada por intermédio de uma quota superior de represen-
tação. A nova Constituição é, neste aspecto, substancialmente

4 Os senadores do Estado de Nova Iorque eram escolhidos por proprie-

tários que fossem residentes no Estado e possuíssem bens excedendo em


[, 100 todos os débitos que possuíssem. QC) .

[496]
diferente da Confederação existente, bem como da Constitui-
ção da Holanda, e outras confederações semelhantes. Em cada
uma destas últimas, a eficácia das resoluções federais depende
das resoluções subsequentes e voluntárias dos Estados que
compõem a União. Por este motivo, os Estados, embora
possuam um voto igual nos conselhos públicos, têm uma
influência desigual, correspondente à importância desigual
dessas resoluções subsequentes e voluntárias. Na vigência da
Constituição proposta, as leis federais entrarão em vigor sem
a intervenção necessária dos Estados individuais. Dependerão
apenas da maioria de votos na Legislatura Federal e, conse-
quentemente, cada voto, quer procedente de um grande
Estado quer de um mais pequeno, ou de um Estado mais ou
menos rico ou poderoso, terá um peso e uma eficácia iguais.
Da mesma maneira que os votos individualmente expressos
numa Legislatura Estadual, pelos representantes de condados
ou outros distritos desiguais, têm uma exacta igualdade de
valor e de efeito, ou se, nesse caso, houver alguma diferença,
ela provém da diferença no carácter pessoal do representante
individual, mais do que de qualquer atenção à vastidão do
distrito do qual emana.
Este é o raciocínio que um defensor dos interesses dos
Estados do Sul poderia usar nesta matéria. E embora possa
parecer um pouco exagerado em alguns pontos, devo apesar
disso confessar que, na globalidade, me reconcilia inteiramente
com o modelo de representação que a Convenção estabeleceu.
Há um aspecto em que o estabelecimento de uma medida
comum para a representação e a tributação terá um efeito
muito salutar. Como a exactidão do censo que o Congresso
deverá obter dependerá necessariamente num grau considerável
da disposição, se não da cooperação, dos Estados, é de grande
importância que os Estados devam sentir tão pouca inclinação
quanto possível para aumentar ou reduzir o valor da quantidade
dos seu habitantes. Se a sua quota de representação fosse
governada somente por esta regra, teriam interesse em exagerar

[497]
o número de habitantes. Se a regra fosse apenas para decidir
a sua quota de tributação, prevaleceria uma tentação contrária.
Ao alargar a regra a ambos os objectos, os Estados terão inte-
resses opostos que se controlarão e se equilibrarão um ou
outro, e produzirão a indispensável imparcialidade.
PUBLIUS

[498]
O FEDERALISTA N." 55
[54]

O Número Total dos Membros da Câmara


dos Representantes

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON]
13 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O número de membros que a Câmara dos Representantes


deve contar constitui um outro e muito interessante ponto
de vista sob o qual se pode contemplar este ramo da legislatura
federal. Na verdade, quase nenhum artigo em toda a Constitui-
ção parece tornar-se mais merecedor de atenção, pelo peso
das características e força aparente da argumentação com que
foi atacado. As acusações que lhe foram feitas são: primeiro,
que u a quantidade tão pequena de representantes será um
depositário inseguro dos interesses públicos; segundo, que

* Do The Independent j ournal, 13 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 15 de Fevereiro no T11e New-York Packet. R ecebeu o nú me ro
55 na edição de McLean e o número 54 nos jornais. QC) .

[499]
eles não possuirão um conhecimento adequado das circunstân-
cias locais dos seus numerosos constituintes; terceiro, que
serão recrutados naquela classe de cidadãos que simpatizará
menos com os sentimentos da massa do povo, e que mais
provavelmente almejará a um engrandecimento da minoria
assente no rebaixamento da minoria; quarto, fraco como será
o número de membros no início, ele será cada vez mais
desproporcionado por causa do crescimento da população e
dos obstáculos que impedirão um crescimento correspondente
dos representantes.
Pode ser observado genericamente sobre este assunto que
não há problema politico menos susceptível de uma solução
exacta do que aquele que se relaciona com o número de
membros mais conveniente para uma legislatura representativa,
nem há outro ponto em que a orientação politica dos diversos
Estados tenha maior variação, quer comparemos directamente
as suas assembleias legislativas umas com as outras, quer
consideremos a sua proporcionalidade respectiva em relação
ao número dos constituintes. Passando por cima da diferença
entre os Estados mais pequenos e os maiores, como o Delaware,
cujo ramo mais numeroso consiste em vinte e um represen-
tantes, e o Massachusetts, onde é igual a quatrocentos e três,
é observável uma grande diferença entre Estados quase iguais
em população. O número de representantes na Pensilvânia
não é mais do que um quinto do número de representantes
no Estado mencionado em último lugar. Nova Iorque, cuja
população está para a da Carolina do Sul como seis para cinco,
tem pouco mais de um terço dos representantes. Uma dispa-
ridade igualmente grande prevalece entre os Estados da Geórgia
e do Delaware ou Rhode Island. Na Pensilvânia, os represen-
tantes não estão em relação aos seus constituintes numa
proporção maior do que um para cada quatro ou cinco mil.
Em Rhode Island estão numa proporção de pelo menos um
para cada mil. E de acordo com a Constituição da Geórgia a
proporção pode ser levada até um para cada dez eleitores e

[SOO]
tem inevitavelmente de exceder em muito a proporção em
qualquer dos outros Estados.
Outra observação genérica a fazer é a de que o rácio entre
os representantes e o povo, quando este é muito numeroso,
não deveria ser o mesmo como quando é pouco. Se os repre-
sentantes da Virgínia devessem ser determinados pelo crité-
rio de Rhode Island, seriam, no momento presente, entre
quatrocentos e quinhentos e daqui a vinte ou trinta anos,
mil. Por outro lado, o rácio da Pensilvânia, se aplicado ao
Estado de Delaware, reduziria a assembleia representativa deste
último a sete ou oito membros. Nada pode ser mais falacioso
do que fundar os nossos cálculos políticos em princípios
aritméticos. É mais correcto confiar um determinado grau
de poder a sessenta ou setenta homens em vez de o confiar
a seis ou sete. Mas daqui não se segue que seiscentos ou
setecentos seriam proporcionalmente um melhor depositário.
E se levarmos a hipótese até seis ou sete mil, todo o raciocínio
tem de ser invertido. A verdade é que parece necessária, em
todos os casos, pelo menos uma certa quantidade para assegurar
os benefícios da consulta e discussão livres, e para proteger
de uma maquinação demasiado fácil com fins impróprios,
bem como, por outro lado, a quantidade deve, no máximo,
ser mantida dentro de um certo limite, com o intuito de evitar
a confusão e intemperança de uma multidão. Em todas as
assembleias muito numerosas, sejam quais forem as caracterís-
ticas da sua composição, a paixão nunca deixa de arrebatar o
ceptro à razão. Tivesse cada cidadão ateniense sido um Sócrates,
todas as assembleias atenienses teriam ainda assim sido uma
turbamulta 1.

1 A suspeita antropológica de Madison não se restringia aos indivíduos.


O futuro presidente dos EUA duvidava da capacidade de grandes assembleias
parlamenta..= poderem gerar decisões esclarecidas. O contraste com Robespierre
não poderia ser maior. Num discurso à Convenção, proferido em 10 de Maio
de 1793, o líder do Terror propunha que o futuro edificio parlamentar da
R epública gaulesa pudesse albergar 12 000 espectadores! (E. P.).

[501]
Também é necessário relembrar aqui as observações que
foram aplicadas ao caso das eleições bienais2 • Pela mesma razão
que os poderes limitados do Congresso, e o controlo das
legislaturas dos Estados, justificam eleições menos frequentes
do que a segurança pública poderia noutros casos reclamar,
os membros do Congresso precisam de ser menos numerosos
do que se possuíssem o poder integral de legislar, e não tivessem
outras barreiras para lá das barreiras ordinárias de outros corpos
legislativos.
Tendo estas ideias gerais em mente, pesemos as objecções
que foram enunciadas em relação ao número de membros da
Câmara dos Representantes. É dito, em primeiro lugar, que
não se pode, com segurança, confiar tanto poder a um número
tão diminuto.
O número de membros de que virá a consistir este ramo
da legislatura, no momento inicial do governo, será de sessenta
e cinco. Dentro de três anos será realizado um censo e então
o número pode ser aumentado para um por cada trinta mil
habitantes. E dentro de cada período sucessivo de dez anos o
censo deverá ser renovado, e os aumentos podem continuar
a ser feitos dentro da limitação acima. Não se deve pensar
que é uma conjectura extravagante que o primeiro censo
aumentará, à razão de um para cada trinta mil, o número de
representantes para pelo menos cem. Estimando a proporção
de três quintos para os negros, dificilmente se pode duvidar
que a população dos Estados Unidos será nessa altura, se
não o for já neste momento, igual a três milhões. Passados
vinte e cinco anos, segundo a taxa de crescimento calculada,
o número de representantes será igual a duzentos, e dentro
de cinquenta anos, a quatrocentos. Este é um número que,
presumo, porá fim a todos os temores resultantes da peque-
nez da assembleia. Tomo como certo aqui, como mostrarei

2 Ver artigo 52. QC).

[502)
mais abaixo ao responder à quarta objecção, que o número
de representantes será aumentado de tempos a tempos
na maneira prevista na Constituição. Com uma hipótese
contrária, devo conceder que a objecção tem de facto grande
peso.
A verdadeira questão a decidir é então se a pequenez do
número, como norma temporária, é perigosa para a liberdade
pública? Se sessenta e cinco membros para poucos anos, e
cem ou duzentos para poucos mais, constituem um depositário
seguro para um poder limitado e bem protegido de legislar
para os Estados Unidos? Devo confessar que não poderia dar
uma resposta negativa a esta pergunta, sem primeiro eliminar
todas as impressões que recebi a respeito das tendências
presentes do povo da América, do espírito que impulsiona as
legislaturas estaduais, e dos princípios que estão incorporados
no carácter político de todas as classes de cidadãos. Sou incapaz
de conceber que o povo da América, no seu estado de espírito
presente, ou debaixo de quaisquer circunstâncias que possam
sobrevir a curto prazo, escolha, e repita de dois em dois anos
essa escolha, sessenta e cinco ou uma centena de homens que
estarão predispostos a formar e pôr em execução um esquema
de tirania ou de traição. Sou incapaz de conceber que as legis-
laturas dos Estados, que devem sentir tantos motivos para
vigiar a legislatura federal, e que possuem tantos meios de a
contrariar, falhariam quer em detectar quer em derrotar uma
conspiração desta última contra as liberdades dos seus consti-
tuintes comuns . Sou igualmente incapaz de conceber que
existem presentemente, ou que podem existir dentro de pouco
tempo, nos Estados Unidos, sessenta e cinco ou uma centena
de homens capazes de se recomendarem à escolha da maioria
do povo, que desejem ou ousem, no decorrer do curto espaço
de dois anos, trair a solene confiança que neles é depositada.
Dizer o que pode resultar de uma mudança de circunstâncias,
do tempo, e de uma população mais abundante no nosso país,
requer um espírito profético que não faz parte das minhas

[503]
pretensões. Mas julgando a partir das circunstâncias agora
diante de nós, e do provável estado delas dentro de um período
moderado de tempo, tenho de dizer que as liberdades da
América não podem estar inseguras no número de mãos
proposto pela Constituição federal.
De que quadrante pode provir o perigo? Temos receio
do ouro estrangeiro? Se o ouro estrangeiro pudesse corromper
tão facilmente os nossos governantes federais e lhes permitisse
armar uma cilada e trair os seus constituintes, como é que
aconteceu que sejamos neste momento uma nação livre e
independente? O Congresso que nos conduziu através da
Revolução era uma assembleia menos numerosa do que será
a dos seus sucessores; não eram escolhidos pela maioria dos
seus concidadãos nem responsáveis perante ela; embora nomea-
dos anualmente e revogáveis sem restrição, eram geralmente
mantidos no cargo por três anos; e anteriormente à ratificação
dos artigos federais, por um período ainda maior; conduziam
as suas deliberações sempre debaixo do véu do segredo; tinham
o exclusivo do tratamento dos nossos assuntos com as nações
estrangeiras; durante todo o decurso da guerra, tinham o des-
tino do seu país nas suas mãos mais do que se espera que
alguma vez seja o caso com os nossos futuros representantes;
e a partir da importância do prémio em jogo e da avidez do
partido que o perdeu, pode muito bem supor-se que não
teria havido escrúpulos no uso de outros meios que não a
força; e todavia sabemos, por uma feliz experiência, que a
confiança pública não foi traída; nem a limpidez dos nossos
conselhos públicos no que respeita a isso sofreu alguma vez
com os murmúrios da calúnia.
O perigo receado provém de outros ramos do governo
federal? Mas onde estão os meios a serem empregues pelo
Presidente, ou pelo Senado, ou por ambos? É de presumir
que os emolumentos do cargo não serão, e sem uma prévia
corrupção da câmara dos representantes não poderão ser, mais
do que suficientes para fins muito diferentes: As suas fortunas

(504)
privadas, como todos terão de ser cidadãos americanos, não
podem de maneira nenhuma ser fontes de perigo. Então, os
únicos meios de que podem dispor estarão na distribuição de
cargos. É aqui que a suspeita assenta a sua acusação? Por vezes
é-nos dito que esse fundo de corrupção será exaurido pelo
Presidente na subjugação da virtude do Senado. Agora é a
fidelidade da outra câmara que passa a ser a vítima. A impro-
babilidade de um conluio mercenário e pérfido desse tipo
entre os vários membros de um governo erguido sobre alicerces
tão diferentes quanto o admitem os princípios republicanos,
e ao mesmo tempo responsável perante a sociedade acima da
qual está colocado, devia chegar por si só para aquietar este
receio. Mas felizmente a Constituição providenciou ainda
uma salvaguarda suplementar. Os membros do Congresso
passam a ser inelegíveis para quaisquer cargos civis que possam
ser criados ou cujos emolumentos possam ser aumentados
durante o período para que foram eleitos. Portanto nenhum
cargo pode ser dado aos membros existentes, além daqueles
que possam ficar vagos através de ocorrências ordinárias, e
supor que esses seriam suficientes para comprar os guardiões
do povo, escolhidos pelo próprio povo, é renunciar a todas
as regras por meio das quais se devem prever os acontecimentos,
e substitui-las por uma suspeição indiscriminada e sem limites,
com a qual todo o raciocínio tem de ser vão. Os amigos
sinceros da liberdade que se entregam às extravagâncias desta
paixão não têm consciência do dano que acarretam à sua pró-
pria causa. Tal como há um grau de depravação na humani-
dade que exige um certo grau de circunspecção e desconfiança,
assim também existem outras qualidades na natureza humana
que justificam uma certa porção de estima e confiança.
O governo republicano, mais do que qualquer outra forma
de governo, pressupõe a existência dessas qualidades num grau
mais alto. Se as imagens que foram esboçadas pela rivalidade
política de alguns de nós fossem imagens fiéis do carácter
humano, a inferência seria que não existe entre os homens

(505]
virtude suficiente para o autogoverno e que nada menos do
que as cadeias do despotismo os podem impedir de se des-
truírem e devorarem uns aos outros3.
PUBLIUS

3 Para M adison, sendo a condição humana caracterizada por um equiliôrio


entre "depravação" e "confiança", a tarefa das instituições politicas será a de
promover as capacidades construtivas da segunda em detrimento do poder
erosivo da primeira. (E. P.).

[506]
O FEDERALISTA N. 56 0

[55)

O Número Total dos Membros da Câmara


dos Representantes (continuação)

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON]
16 de Feve reiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A segunda acusação feita à Câmara dos Representantes é


que ela será demasiado pequena para possuir um conhecimento
apropriado dos interesses dos seus constituintes.
Como esta objecção provém com toda a evidência de
uma comparação do número de representantes proposto com
a grande vastidão dos Estados Unidos, com o número dos
seus habitantes e com a diversidade dos interesses destes últi-
mos, sem tomar simultaneamente em atenção as circunstâncias
que distinguirão o Congresso dos outros corpos legislativos,

* Do The Independent Journal, 16 de Fevereiro de 1788. Este artigo fo i


publicado em 19 de Fevereiro no The New- York Packet. R ecebeu o número
56 na edição de McLean e o número 55 nos jornais. GC).

[507]
a melhor resposta que lhe pode ser dada será uma breve
explicação dessas peculiaridades.
É um sólido e importante princípio que o representante
deve estar familiarizado com os interesses e circunstâncias dos
seus constituintes. Mas este princípio não pode estender-se
para lá daquelas circunstâncias e interesses com que se relacio-
nam a autoridade e o encargo do representante. Uma igno-
rância de uma variedade de objectos minúsculos e particulares,
que não caem dentro da área da legislação, é consistente com
todos os atributos necessários para um cumprimento adequado
do encargo legislativo. Na determinação da quantidade de
informação requerida no exercício de uma autoridade parti-
cular, deve recorrer-se aos objectos que estão dentro do campo
de acção dessa autoridade.
Quais virão a ser os objectos da legislação federal? Aqueles
que são da maior importância, e que parecem reclamar mais
conhecimento local, são o comércio, a tributação e a milícia.
Uma correcta regulação do comércio exige muita infor-
mação, como já foi observado noutro localt. Mas na medida
em que essa informação se refere às leis e à situação local de
cada Estado individual, um punhado de representantes consti-
tuirá um veículo suficiente dela nos conselhos federais .
A tributação consistirá, em grande medida, em direitos
que estarão envolvidos na regulamentação do comércio. Até
aqui a observação precedente é aplicável a este objecto. Na
medida em que ele pode consistir em colectas internas, pode
ser necessário um conhecimento mais dilatado das circunstân-
cias do Estado. Mas não será isto também possuído em grau
suficiente por um punhado de homens inteligentes, eleitos
em diversas partes do Estado? Divida-se o maior dos Estados
em dez ou doze distritos e ver-se-á que não existirão interesses
locais peculiares que não sejam do conhecimento do repre-
sentante do distrito. Além desta fonte de informação, as leis

1 Ver artigo 52. QC).

[508]
do Estado, preparadas por representantes de todas as suas partes,
serão por si próprias um guia quase suficiente. Em todos os
Estados foram feitos , e têm de continuar a ser feitos, regula-
mentos sobre esta matéria que, em muitos casos, deixarão
pouca coisa para ser feita pela legislatura federal além de rever
as diferentes leis e reduzi-las a uma lei geral. Um indivíduo
hábil no seu gabinete, com todos os códigos locais diante de
si, pode compilar uma lei para toda a União sobre alguns
objecto de tributação sem qualquer ajuda de informação
oral, e pode esperar-se que em todos os casos em que sejam
necessárias taxas internas, e em particular nos casos que exigi-
rem uniformidade através dos Estados, serão preferidos os
objectos mais simples. Para sermos inteiramente sensíveis à
facilidade que será dada a este ramo da legislação federal pela
ajuda dos códigos dos Estados, precisamos apenas de supor
por um momento que este ou qualquer outro Estado estava
dividido num certo número de partes, cada uma delas pos-
suindo e exercendo, no seu interior, um poder de legislação
local. Não é evidente que um grau de informação local e de
trabalhos preparatórios pode ser encontrado nos vários volumes
das actas das suas sessões, tal que encurtará muito os trabalhos
da legislatura geral, e fará com que lhe baste um número mais
pequeno de membros? Os conselhos federais derivarão uma
grande vantagem de uma outra circunstância. Os representantes
de cada Estado não se limitarão a trazer consigo um conhe-
cimento considerável das suas leis, e um conhecimento local
dos distritos respectivos, mas terão provavelmente sido, em
todos os casos, e podem até sê-lo nesse momento, membros
da legislatura do Estado, assembleia para onde convergem
todas as informações locais e todos os interesses do Estado, e
da qual podem ser facilmente transmitidos, por um punhado
de pessoas, à legislatura dos Estados Unidos.
As observações feitas no capítulo da tributação aplicam-
-se com força ainda maior ao caso da milícia. Porque por mais
diferentes que possam ser as regras de disciplina nos diferentes

[509)
Estados, elas são as mesmas dentro de cada Estado singular, e
dependem de circunstâncias que pouco podem diferir em
partes diferentes do mesmo Estado.
O leitor atento discernirá que o raciocínio usado aqui
para demonstrar a suficiência de um número moderado de
representantes não contradiz em nada o que foi alegado noutra
ocasião a respeito da extensa informação que os representantes
devem possuir, e do tempo que pode ser necessário para
adquiri-la2. Essa informação, na medida em que pode dizer
respeito a objectos locais, é tornada necessária e difícil, não
por uma diferença de leis e circunstâncias locais dentro de
um Estado singular, mas pelas diferenças entre Estados distintos.
Tomando cada Estado por si só, as suas leis são as mesmas e
os seus interesses são pouco diversificados. Por conseguinte,
um punhado de homens possuirá todo o conhecimento
indispensável para uma representação adequada de ambos.
Fossem os interesses e assuntos de cada Estado singular
perfeitamente simples e uniformes, e um conhecimento deles
num local implicaria esse conhecimento em todos os outros,
e todo o Estado poderia ser representado competentemente
por um único membro tirado de qualquer parte dele. Numa
comparação dos diferentes Estados no seu conjunto, encontra-
mos uma grande dissirnilitude nas suas leis, e em muitas outras
circunstâncias ligadas aos objectos da legislatura federal, com
todas as quais os representantes federais deveriam ter alguma
familiaridade. Assim, enquanto uns poucos representantes de
cada Estado podem trazer consigo um correcto conhecimento
do seu próprio Estado, todos os representantes terão muita
informação para adquirir a respeito de todos os outros Estados.
O passar do tempo, como foi observado anteriormente3 acerca
da situação comparativa dos diferentes Estados, terá um efeito
assimilador. O efeito do tempo sobre os assuntos internos de

2 Ver artigo 53. QC).


3 Ibid. QC).

[510]
um Estado tomado isoladamente será exactamente contrário.
No momento presente, alguns Estados são pouco mais do
que uma sociedade de lavradores. Poucos de entre eles fizeram
muitos progressos nesses ramos da indústria que dão variedade
e complexidade aos assuntos de uma nação. No entanto, esses
progressos serão em todos eles os frutos de uma população
mais avançada e exigirão da parte de cada Estado uma repre-
sentação mais completa. A previsão da Convenção, em
conformidade com isso, tratou das disposições necessárias para
que o progresso da população pudesse ser acompanhado com
um aumento adequado do ramo representativo do governo.
A experiência da Grã-Bretanha que apresenta ao género
humano tantas e tantas lições políticas, tanto de advertência
como de exemplo, e que foi frequentemente consultada no
decurso destas investigações, corrobora o resultado das reflexões
que acabamos de fazer. O número de habitantes nos dois
reinos da Inglaterra e da Escócia não pode ser fixado em
menos de oito milhões. Os representantes destes oito milhões
na Câmara dos Comuns são quinhentos e cinquenta e oito.
De entre estes, um nono é eleito por trezentas e sessenta e
quatro pessoas, e metade por cinco mil setecentas e vinte e
três pessoas. 4 Não pode supor-se que a metade assim eleita,
e que nem sequer reside entre a maioria do povo, possa
acrescentar seja o que for, nos conselhos legislativos, quer à
protecção do povo contra o governo, quer ao conhecimento
das circunstâncias e dos interesses do primeiro. Pelo contrário,
é notório que essa metade é mais frequentemente representante
e instrumento do magistrado executivo do que é guardiã e
defensora dos direitos populares. Ela pode, por consequência,
ser considerada com muita justeza como algo mais do que
um simples valor a deduzir do número dos verdadeiros repre-

4 Burgh's polit. Disquis. (Publius). A referência é a James Burgh, Politica/


Disquisitions: Or, an Enquiry into public Errors, Defects and Abuses (London, 1774)
1.45, 48. QC) .

[511]
sentantes da nação. No entanto, deduziremos apenas os
membros desta metade, a esta luz, e não alargaremos a dedução
a um considerável número de outros que não residem no
meio dos seus constituintes, que estão muito debilmente
ligados a eles, e têm muito poucos conhecimentos dos seus
assuntos. Com todas estas concessões, apenas duzentas e setenta
e nove pessoas serão os depositários da segurança, interesse e
felicidade de oito milhões, ou seja, haverá apenas um represen-
tante para defender os direitos e explicar a situação de vinte e
oito mil seiscentos e setenta constituintes, numa assembleia exposta
à plena força da influência executiva, e alargando a sua auto-
ridade a todos os objectos de legislação dentro de uma nação
cujos assuntos são diversificados e complicados no mais alto
grau. E no entanto é bem certo que não só foi preservada
uma valiosa porção de liberdade, debaixo destas circunstâncias,
mas que os defeitos da legislação britânica só numa pequena
proporção são imputáveis à ignorância da legislatura a respeito
das circunstâncias do povo. Dando a este caso o peso que lhe
é devido, e comparando-o com o da Câmara dos Representan-
tes como foi explanado acima, ele parece providenciar uma
total garantia de que um representante para cada trinta mil
habitantes fará desta última uma guardiã simultaneamente
segura e competente dos interesses que lhe serão confiados.
PUBLIUS

[512)
O FEDERALISTA N." 57
[56]

A Alegada Tendência do Novo Plano para Elevar


os Poucos à Custa dos Muitos Considerada
em Relação com a Representação

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON)
19 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A terceira acusação contra a Câmara dos Representantes


é que estes serão escolhidos naquela classe de cidadãos que
terá menos simpatia pela massa do povo, e que mais provavel-
mente almejará um ambicioso sacrificio da maioria para o
engrandecimento da minoria.
De todas as objecções que foram lançadas contra a Cons-
tituição Federal, esta é talvez a mais extraordinária. Enquanto
a própria objecção é apontada contra uma pretensa oligarquia,
o seu princípio atinge a verdadeira raiz do governo republicano.

* Do Th e N ew- York Packet, 19 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 20 de Fevereiro no The Independent]m1rnal. R ecebeu o número
57 na edição de McLean e o número 56 nos jornais. QC) .

[513]
O objectivo de todas as Constituições políticas é, ou
deveria ser, primeiro, obter como governantes homens que
possuam a maior sabedoria para discernir, e a maior virtude
para conseguir, o bem comum da sociedade; e, em seguida,
tomar as precauções mais eficazes para que se conservem vir-
tuosos enquanto continuarem no seu cargo público. O modo
electivo de obter governantes é a orientação política carac-
terística do governo republicano. Os meios com que se conta
nesta forma de governo para impedir a sua degenerescência
são numerosos e variados. O mais eficaz de entre eles é uma
limitação da duração dos seus mandatos, tal que mantenha
uma responsabilidade apropriada em relação ao povo.
Deixem-me agora perguntar: Que circunstância existe na
constituição da Câmara dos Representantes que viole os
princípios do governo republicano, ou favoreça a ascensão da
minoria sobre as ruínas da maioria? Deixem-me perguntar
se todas as circunstâncias não são, pelo contrário, estritamente
conformes a esses princípios, e escrupulosamente imparciais
para com os direitos e pretensões de todas as classes e tipos
de cidadãos.
Quem serão os eleitores dos representantes federais? Não
os ricos, mais do que os pobres; não os educados, mais do
que os ignorantes; não os altivos herdeiros de nomes sonantes,
mais do que os humildes filhos de um destino obscuro e pouco
propício. Os eleitores serão o grande corpo do povo dos
Estados Unidos. Serão os mesmos que exercem em cada Estado
esse direito de eleger o ramo correspondente da legislatura
do Estado.
Quem será objecto da escolha popular? Todos os cidadãos,
cujo mérito os possa recomendar à estima e confiança do seu
país. A nenhum requisito de riqueza, de nascimento, de fé
religiosa ou de profissão civil se permite que acorrente o jul-
gamento ou desaponte a inclinação do povo.
Se considerarmos a situação dos homens a quem os sufrá-
gios livres dos seus concidadãos podem entregar a responsa-

[514)
bilidade representativa, descobriremos que ela envolve todas
as garantias que podem ser congeminadas ou desejadas para
a sua fidelidade aos seus constituintes.
Em primeiro lugar, como terão sido distinguidos com a
preferência dos seus concidadãos, devemos presumir que, em
geral, também se terão de certa maneira distinguido por essas
qualidades que lhes dão direito a isso, e que prometem um
respeito sincero e escrupuloso pela natureza dos seus compro-
nussos.
Em segundo lugar, entrarão para o serviço público em
circunstâncias que não podem deixar de produzir uma afeição,
pelo menos temporária, pelos seus constituintes. Em todos
os corações existe uma sensibilidade às marcas de honra, de
aprovação, de estima e de confiança que, à parte todas as con-
siderações de interesse, é um certo penhor de retribuições
gratas e benevolentes. A ingratidão é um tópico comum de
peroração contra a natureza humana, e tem de confessar-se
que os casos em que se mostra são demasiado frequentes e
flagrant es, tanto na vida pública como na privada. M as a
indignação universal e extrema que ela inspira é ela própria
uma prova da energia e preponderância do sentimento
contrário.
Em terceiro lugar, esses laços que prendem o representante
ao seu constituinte são reforçados por motivos de natureza
mais egoísta. O seu orgulho e a sua vaidade apegam-no a uma
forma de governo que favorece as suas pretensões e lhe dá
uma participação nas honras e distinções deste. Sejam quais
forem as expectativas e projectos que possam ser acalentados
por alguns personagens ambiciosos, deve acontecer em geral
que uma grande proporção de homens cujo progresso depende
da sua influência junto do povo terão mais a esperar de uma
preservação da aprovação do que de inovações no governo
que subvertam a autoridade do povo.
Todas estas garantias, no entanto, seriam muito insuficientes
sem a barreira das eleições frequentes. Por este motivo, e em

[515]
quarto lugar, a Câmara dos Representantes é constituída de
tal modo que venha em apoio, para os seus membros, de uma
habitual recordação da sua dependência do povo. Antes que
os sentimentos impressos nos seus espíritos pelo modo da sua
elevação possam ser apagados pelo exercício do poder, serão
forçados a antecipar o momento em que o seu poder deverá
cessar, em que o seu exercício do poder será reexaminado, e
em que deverão descer do nível a que foram elevados, para
aí ficarem para sempre a menos que um fiel cumprimento do
seu dever tenha estabelecido o seu direito a uma renovação
dessa elevação.
Acrescentarei, como quinta circunstância da situação da
Câmara dos Representantes , pondo-lhe um freio contra
medidas opressoras, que ela não pode fazer nenhuma lei que
não tenha completa aplicação aos seus membros e aos amigos
destes, bem como à grande massa da sociedade. Este foi sempre
considerado um dos laços mais fortes por meio dos quais a
política humana pode unir os governantes e o povo. Ele cria
entre eles essa comunhão de interesses e essa simpatia de sen-
timentos das quais poucos governos forneceram exemplos,
mas sem as quais qualquer governo degenera em tirania. Se
alguém perguntar, o que é que vai coibir a Câmara dos
Representantes de efectuar discriminações legais a seu favor
e a favor de classes particulares da sociedade, respondo:
o carácter de todo o sistema; a natureza de leis justas e constitu-
cionais; e acima de tudo, o espírito vigilante e viril que anima
o povo da América - um espírito que alimenta a liberdade
e, em troca, é alimentado por ela.
Se esse espírito alguma vez vier a estar tão aviltado que
tolere uma lei q e não seja obrigatória para a legislatura tal
como o é para o povo, o povo estará preparado para tolerar
tudo menos a liberdade.
Será esta a relação entre a Câmara dos Representantes e
os seus constituintes. Dever, gratidão, interesse, a própria
ambição, são os sentimentos por meio das quais os represen-

[516]
tantes ficarão obrigados à fidelidade e simpatia para com a
grande massa do povo. É possível que tudo isto possa ser
insuficiente para controlar o capricho e a perversidade do
homem. Mas não são tudo o que o governo admitirá, e que
a prudência humana pode congeminar? Não são eles os meios
genuínos e característicos pelos quais o governo republicano
providencia a liberdade e a felicidade do povo? Não são estes
meios idênticos àqueles em que confiam todos os governos
dos Estados da União para alcançar esse importantes objecti-
vos? Então o que devemos compreender pela objecção que
este artigo combateu? Que devemos dizer aos homens que
professam o mais inflamado fervor pelo governo republicano,
e não obstante impugnam ousadamente o princípio funda-
mental deste, que pretendem ser campeões do direito e da
capacidade do povo para escolher os seus próprios governantes
e todavia sustentam que preferirão só aqueles que trairão ime-
diata e infalivelmente a confiança neles depositada?
Se a objecção viesse a ser lida por alguém que não tivesse
visto o modo prescrito pela Constituição para a escolha dos
representantes, esse alguém poderia supor: que nada menos
do que algum exorbitante requisito de propriedade estava
anexado ao direito de sufrágio; ou que o direito de elegibilidade
estava limitado a pessoas de certas famílias ou fortunas; ou
pelo m enos que o modo prescrito pelas Constituições dos
Estados era, num ou noutro aspecto, grandemente diferente.
Vimos em que medida essa suposição estaria errada quanto
aos primeiros dois pontos. E também não seria menos errada
quanto ao último. A única diferença que se pode descobrir
entre os dois casos é que cada representante dos Estados Unidos
será eleito por cinco ou seis mil cidadãos, enquanto nos Estados
individuais, a eleição de um representante é deixada a cerca
de outras tantas centenas. Alegar-se-á que esta diferença é
suficiente para justificar um apego aos Governos dos Estados
e uma aversão ao Governo Federal? Se for esta a questão para
que se volta a objecção, ela merece ser examinada.

[517]
É ela secundada pela razão? N ão se pode dizer isto sem
manter que cinco ou seis mil cidadãos são menos capazes do
que cinco ou seis centenas de escolher um representante
adequado, ou são mais permeáveis a serem corrompidos por
um outro que seja inadequado. A razão, pelo contrário,
garante-nos que será mais provável encontrar um representante
adequado num número assin1 grande e, portanto, que a escolha
seria menos provavelmente desviada desse representante pelas
intri_~?;as dos an1bicioso ou os subornos dos ricos.
E a consequência desta doutrina admissível? Se dissermos
que o número de cidadãos que podem exercer conjuntamente
o seu direito de sufrágio é de cinco ou seis centenas, não
devemos privar o povo da e colha in1ediata dos seus servidores
públicos em todas os casos em que a administração do governo
não requeira tantos cidadãos quantos os que correspondem
à proporção de um para aquele número?
É a doutrina suportada pelosjàctos? Mostrou-se no últin1o
artigo que a representação efectiva na Câmara dos Comuns
britânica excede em muito pouco a proporção de um repre-
sentante para cada trinta mil habitantes 1• Além de uma varie-
dade de causas poderosas que não existem no nosso e que
favorecem naquele país as pretensões da hierarquia e da riqueza,

1 A proporção de um deputado à Câmara dos R epresentantes foi uma


proposta aprovada no último dia da Convenção de Filadélfia, em 17 de Setembro,
substituindo o acordo anterior que era de um deputado para quarenta mil
habitantes. A proposta foi apresentada por N athaniel Gorham, do Massachusero;.
Curiosamente, ela deu origem ao único discur o proferido por George
Washington durante a Convenção. Este, abandonou a neutralidade a que a sua
posição de presidente dos trabalho obrigava, para manifestar o seu apoio a
uma tão tardia proposta, em virtude de ela contribuir para que a Câmara dos
Representantes não fi cas e reduzida a um o número excessivamente pequeno
de eleitos. Com um apoio tão poderoso, a proposta colheu um apoio unânime.
O crescimento demográfico expo nencial da população americana tornou esta
regra inviável. Em 1929 o Congresso votou o Apportionment Act, qu e limitou
em 435 o número máximo de deputados à Câmara de R epresentantes, embora
mantendo o princípio da proporcionalidade demográfica. (E. P.).

(518]
nenhuma pessoa é elegível como representante de um condado
se não possuir bens fundiários de um valor líquido de seiscentas
libras esterlinas por ano, nem de uma cidade ou burgo, a
menos que possua idênticos bens fundiários de metade daquele
valor anual. A este requisito da parte dos representantes do
condado é acrescentado um outro da parte dos eleitores do
condado, que restringe o direito de sufrágio a pessoas tendo
bens de raiz livres com o valor anual de mais de vinte libras
esterlinas, segundo o presente valor da moeda. Não obstante
essas circunstâncias desfavoráveis, e apesar de algumas leis
muito injustas no código britânico, não se pode dizer que os
representantes da nação elevaram a minoria sobre as ruínas
da maioria.
Mas não precisamos de recorrer à experiência estrangeira
nesta matéria. A nossa experiência é explícita e decisiva. Os
distritos de New Hampshire em que os senadores são esco-
lhidos directamente pelo povo são quase tão grandes quanto
será necessário para os seus representantes no Congresso. Os
de Massachusetts são maiores do que o que será necessário
para aquele fim, e os de Nova Iorque ainda maiores. N este
último Estado, os membros da Assembleia para as cidades e
condados de Nova Iorque e Albany são eleitos por aproxi-
madamente tantos votantes como os que terão direito a um
representante no Congresso, calculando a partir do número
de sessenta e cinco representantes apenas. Não faz nenhuma
diferença que nesses distritos e condados senatoriais que os
eleitores votem simultaneamente num certo número de
representantes. Se os mesmos eleitores, ao mesmo tempo, são
capazes de escolher quatro ou cinco representantes, não podem
ser incapazes de escolher um. A Pensilvânia é um exemplo
adicional. Alguns dos seus condados, que elegem os seus
representantes estaduais, são quase tão vastos como serão os
distritos em que serão eleitos os R epresentantes Federais.
Supõe-se que a cidade de Filadélfia contém entre cinquenta
mil e sessenta mil almas. Portanto formará aproximadamente

[519]
dois distritos para a escolha dos Representantes Federais.
Porém, forma apenas um condado, no qual cada eleitor vota
para cada um dos seus representantes na legislatura do Estado.
E, coisa que pode aparentar contribuir mais directamente para
o nosso propósito, toda a cidade elege actualmente um único
membro para o conselho executivo. Este é o caso em todos os
outros condados do Estado.
Não são estes factos as provas mais satisfatórias da falácia
que foi empregue contra o ramo da Legislatura Federal que
estamos a considerar? A experiência mostrou que os Senadores
de New Hampshire, Massachusetts e Nova Iorque, ou o
Conselho Executivo da Pensilvânia, ou os membros da Assem-
bleia nos último dois Estados, traíram alguma disposição
peculiar para sacrificar a maioria à minoria, ou são em algum
aspecto menos dignos dos seus lugares do que os magistrados
nomeados nos o tros Estados, por divisões muito pequenas
do povo?
Mas existem casos com um aspecto mais forte do que
qualquer dos que já citei. Um ramo da Legislatura do
Connecticut é constituído de tal forma que cada membro é
eleito pela totalidade do Estado. O mesmo acontece para o
Governador desse Estado, do Massachusetts e do nosso Estado,
e para o Presidente do New Hampshire. Deixo a cada um a
decisão se pode dizer que o resultado de qualquer destas
experiências apoia uma suspeita e que um modo difusivo de
escolher representantes do povo tende a elevar traidores, e a
minar a liberdade pública.
PUBLIUS

[520]
O FEDERALISTA N." 58
[57]

Consideração da Objecção segundo a qual


o Número de Representantes não será
Aumentado à Medida que o Crescimento
da População o Exija

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON]
20 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A acusação remanescente contra a Câmara dos Represen-


tantes, que vou agora examinar, é fundada numa suposição
de que o número de membros não será aumentado de tempos
a tempos, como possa pedir o progresso da população.
Foi admitido que esta objecção, se bem apoiada, teria
grande peso. As observações que se seguem mostrarão que,
tal como muitas outras objecções à Constituição, ela só pode

* D The Independent Journal, 20 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 22 de Fevereiro no The New- York Packet. Recebeu o número
58 na edição de McLean e o número 57 nos jornais. QC).

[521]
provir de uma visão parcial do assunto, ou de uma inveja que
descolora e desfigura todos os objectos que contempla.
1. Os que alegam a objecção parecem não se ter recordado
que a Constituição federal não ficará prejudicada numa
comparação com as Constituições dos Estados, quanto à
garantia providenciada para um aumento gradual do número
de representantes. O número que deverá prevalecer em
primeira instância é declarado como sendo temporário. A ua
duração é limitada ao curto período de três anos.
Em cada um dos sucessivos períodos de dez anos, deverá
repetir-se o censo da população. Os objectivos inequívocos
desta regulamentação são, primeiro, reajustar, de tempos a
tempos, a distribuição dos representantes ao número de habi-
tantes, com a única excepção que cada Estado terá pelo menos
um representante; segundo, aumentar o número de represen-
tantes nos mesmos períodos, com a única limitação que o
número total não deverá exceder um para cada trinta mil
habitantes. Se passarmo em revista as Constituições dos vários
Estados descobriremos que algumas delas não contêm regula-
mentações determinadas nesta matéria, que outras correspon-
dem bastante à Constituição federal neste aspecto, e que a
garantia mais eficaz em qualquer delas pode ser reduzida a
uma simples provisão emanada de um directório.
2. Na medida em que houve lugar a experiências neste
aspecto, um aumento gradual dos representantes sob as
Constituições dos Estados acompanhou, pelo menos, o
aumento dos constituintes; e é visível que os primeiros esti-
veram tão dispostos a concordar com essas medidas como os
últimos estiveram dispostos a pedi-las.
3. Existe urna particularidade na Constituição federal que
assegura uma atenção vigilante por parte de uma maioria,
tanto do povo como dos seus representantes, a um aumento
constitucional destes últimos. A particularidade reside nisto:
que um ramo da legislatura é urna representação dos cidadãos;
o outro, dos Estados. No primeiro, consequentemente, os

(522)
Estado mais importantes terão maior peso; no último, a vanta-
gem será a favor dos Estados menos importantes. Desta circuns-
tância pode com certeza inferir-se que os Estados mais impor-
tantes serão estrénuos defensores do aumento do número e
peso dessa parte da legislatura em que predomina a sua influên-
cia . E assim acontece que apenas quatro dos maiores terão a
maioria, na totalidade dos votos na Câmara dos Representantes.
Se, por conseguinte, se desse o caso de os representantes ou
o povo dos Estados mais pequenos se oporem em algum
momento a um aumento razoável de membros, uma coligação
de muito poucos Estados seria suficiente para anular a oposição;
uma coligação que, apesar da rivalidade e dos preconceitos
locais que a pudessem prevenir em condições normais, não
deixaria de ocorrer quando não fosse meramente impelida
pelo interesse comum mas também justificada pela equidade
e pelo princípios da Constituição.
Talvez possa alegar-se que o Senado seria impelido por
motivos idênticos para uma coligação contrária e, como a
cooperação dele seria indispensável, as opiniões justas e cons-
titucionais do outro ramo poderiam ser derrotadas. Esta é a
dificuldade que provavelmente criou os receios mais sérios
entre os amigos zelosos de uma representação nume-
rosa. Felizmente, ela está entre as dificuldades que, existindo
apenas na aparência, se desvanecem diante de um exame
minucioso e preciso. As reflexões que se seguem serão, se não
me engano, admitidas como conclusivas e satisfatórias neste
ponto.
Apesar da igual autoridade que subsistirá entre as duas
câmaras em todas as matérias legislativas, com excepção da
produção de leis financeiras, não se pode duvidar de que a
câmara composta por um número maior de membros, quando
apoiada pelos Estados mais poderosos e proferindo a opinião
conhecida e determinada de uma maioria do povo, terá uma
vantagem não pequena numa questão que dependa da firmeza
comparativa das duas câmaras.

[523]
Essa vantagem deve ser aumentada pela consciência, sen-
tida desse lado, de ser apoiada nas suas exigências pelo
direito, pela razão e pela Constituição; e a consciência, no
lado oposto, de lutar contra a força de todas estas solenes
considerações.
Além disso deve considerar-se que na gradação entre os
Estados mais pequenos e os mais vastos existem vários que,
embora seja em geral mais provável que alinhem com os
primeiros, estão muito pouco distantes dos últimos em vastidão
e população para secundar uma oposição às pretensões justas
e legítimas deles. Por este motivo, de modo algum é certo
que uma maioria de votos, mesmo no Senado, seria pouco
amistosa para com aumentos adequados no número de
representantes.
Não irei demasiado longe se acrescentar que os senadores
de todos os novos Estados podem ser conquistados para os
pontos de vista justos da Câmara dos Representantes usando
de um recurso demasiado óbvio para ser passado em claro.
Como esses Estados, durante um longo período de tempo,
aumentarão de população com especial rapidez, estarão
interessados em redistribuições frequentes do número de
representantes em proporção ao número de habitantes. Por
conseguinte, os grandes Estados, que predominarão na Câmara
dos Representantes, apenas poderão fazer com que redistribui-
ções e aumentos se condicionem mutuamente. E os senadores
dos Estados em crescimento ficarão obrigados a disputar os
últimos, dado o interesse que esses Estados terão pelas pri-
merras.
Estas considerações parecem dar ampla margem para
garantia nesta matéria, e deviam só por si satisfazer todas as
dúvidas e receios que foram apresentadas em relação a ela.
Admitindo, no entanto, que elas sejam todas insuficientes para
subjugar a política injusta dos Estados mais pequenos, ou a
sua influência predominante nas reuniões do Senado, resta
ainda um recurso constitucional e infalível para os Estados

[524]
mais vastos, por meio do qual serão sempre capazes de realizar
os seus justos propósitos. A Câmara dos Representantes não
só pode recusar, mas é a única a poder propor, a verba para
a manutenção do governo. Numa palavra, têm os cordões da
bolsa, esse poderoso instrumento por meio do qual vemos,
na história da Constituição britânica, um humilde embrião
de representação do povo a estender gradualmente a sua esfera
de actividade e importância, e a reduzir, por fim, tanto quanto
parece ter desejado, todas as imensas prerrogativas dos outros
ramos do governo. Este poder sobre a bolsa pode, de facto,
ser visto como a arma mais completa e mais eficaz com a qual
qualquer Constituição pode armar os representantes directos
do povo para obter reparação de qualquer agravo, e para tornar
efectiva qualquer medida justa e salutar.
Mas não estará a Câmara dos Representantes tão interessada
como o Senado em manter o governo nas suas funções próprias
e, por consequência, não estará ela pouco disposta a arriscar
a sua existência ou a sua reputação na docilidade para com o
Senado? Ou, se tal prova de firmeza entre os dois ramos fosse
arriscada, não seria igualmente provável que um ou outro
cedessem? Estas questões não criarão dificuldades àqueles que
pensam que, em todos os casos, quanto menor o número e
quanto mais permanente e conspícuo o cargo dos homens
no poder, tanto mais forte deve ser o interesse que eles sentem
individ almente em tudo o que respeita ao governo. Os que
representam a dignidade do seu país aos olhos das outras nações
serão particularmente sensíveis a qualquer perspectiva de
perigo público, ou de desonrosa estagnação dos assuntos públi-
cos. É a estas causas que atribuímos o triunfo contínuo sobre
os outros ramos do governo da Câmara dos Comuns britâ-
nica, em todos os casos em que foi usado o mecanismo de
uma lei de finanças. Uma inflexibilidade absoluta do lado da
última, embora não pudesse ter deixado de envolver todos
os departamentos do Estado numa confusão generalizada, não
foi receada nem experimentada. O grau máximo de firmeza

[525]
que pode ser exibido pelo Senado federal ou pelo Presi-
dente não será mais do que equivalente a uma resistência na
qual serão apoiados por princípios constitucionais e patrió-
ticos.
Neste exame da constituição da Câmara dos Represen-
tantes passei por cima das circunstâncias de economia que,
no presente estado de coisas, poderiam ter algum efeito na
diminuição do número temporário de representantes. E uma
falta de atenção a elas teria provavelmente sido um tema tão
rico de invectiva contra a Constituição como o que foi provi-
denciado pela pequenez do número proposto. Omito também
quaisquer observações acerca da dificuldade que poderia ser
encontrada, nas circunstâncias presentes, de recrutar para o
serviço federal um grande número de pessoas, tantas quantas
as que o povo provavelmente elegerá. No entanto, permitam-
-me que acrescente urna observação a esta matéria que reclama,
na minha maneira de ver, uma atenção muito séria. É que
em todas as assembleias legislativas quanto maior possa ser o
número de pessoas que as compõem tanto menos serão os
homens que efectivamente dirigirão os seus trabalhos. Em
primeiro lugar é sabido que, quanto mais numerosa for uma
assembleia, sejam quais forem os indivíduos que a compõem,
tanto maior é a ascendência da paixão sobre a razão. Em
seguida, quanto maior o número, maior será a proporção dos
membros com informação limitada e fracas capacidades. Ora
é conhecido que é precisamente sobre indivíduos deste género
que a eloquência e a habilidade da maioria actuam com toda
a sua força. Nas repúblicas antigas, onde todo o corpo do
povo se reunia em pessoa, via-se em geral um só orador, ou
um estadista astuto, a dominar com uma preponderância tão
completa como se um ceptro tivesse sido colocado unicamente
na sua mão. Com base no mesmo princípio, quanto mais
numerosa possa ser tornada uma assembleia representativa,
tanto mais partilhará das fraquezas ligadas às reuniões colectivas
do povo. A ignorância será o joguete da astúcia, e a paixão a

[526]
escrava da sofistica e da retórica. O povo nunca pode errar
mais do que em supor que, multiplicando os seus representantes
para lá de um certo limite, reforça a barreira contra o governo
de uns poucos. A experiência adverti-lo-á sempre que, pelo
contrário, depois de assegurar um número suficiente para os fins da
segurança, da informação local, e da simpatia difusiva para com toda
a sociedade, ele neutralizará as suas próprias intenções por cada
aumento dos seus representantes. O semblante do governo
pode tornar-se mais democrático, mas a alma que o anima
será mais oligárquica. A máquina expandir-se-á, mas serão
menos, e frequentemente mais secretas, as molas que impulsio-
narão os seus movimentos.
Associada à objecção contra o número de representantes
pode apropriadamente ser observado aqui aquilo que foi
sugerido contra o número tornado competente para os assuntos
legislativos. Foi dito que se deveria ter exigido para quórum
mais do que uma maioria simples, e em casos particulares,
senão em todos, mais do que urna maioria simples do quórum
para urna decisão. Não pode negar-se que decorreriam algumas
vantagens de tal precaução. Ela poderia ser uma protecção
adicional contra alguns interesses particulares e mais um
obstáculo geral a medidas apressadas e parciais. Mas essas consi-
derações são superadas em importância pelos inconvenientes
no outro prato da balança. Em todos os casos em que a justiça
ou o bem geral possam exigir que sejam promulgadas novas
leis, ou postas em prática medidas activas, o princípio funda -
mental do governo livre seria invertido. Já não seria a maioria
que reinaria; o poder seria transferido para a minoria. Se o
privilégio defensivo fosse limitado a casos particulares, uma
minoria interessada podia tirar partido dele para se resguardar
de sacrificios equitativos em ordem ao bem-estar geral, ou
para extorquir indulgências pouco razoáveis em emergências
particulares. Por fim, facilitaria e encorajaria a funesta prática
das secessões; uma prática que se manifestou mesmo em
Estados onde é exigida apenas uma maioria simples; uma

[527]
prática subversiva de todos os princípios de ordem e de governo
regular; uma prática que conduz a convulsões públicas e à
ruína dos governos populares mais directamente do que
quaisquer outras que até agora se viram entre nós.
PUBLIUS

[528]
O FEDERALISTA N. 0 59
[58]

Sobre o Poder do Congresso na Regulamentação


da Eleição dos seus Membros

ALEXANDER HAMILTON
22 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A ordem natural do assunto leva-nos a considerar, neste


lugar, a cláusula da Constituição que autoriza a legislatura
nacional a regulamentar, em última instância, a eleição dos
seus próprios membros. Consta destas palavras: "As épocas,
locais e processos de realizar eleições para senadores e represen-
tantes serão prescritos, em cada Estado, pelo respectivo órgão
legislativo; mas o Congresso pode, em qualquer altura, fixar
ou alterar por meio de lei tais normas, excepto quanto aos
locais de eleição de senadores.'' 1 Esta cláusula não só sofreu
oposição por parte dos que condenam globalmente a Cons-

* Do The New- York Packet, 22 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 23 de Fevereiro no Th e Independent j ournal. R ecebeu o número
59 na edição de McLean e o número 58 nos jornais. QC) .
I Cláusula I, Secção 4, Artigo primeiro. (Pu blius).

[529]
tituição, mas foi censurada por aqueles que objectaram com
menor latitude e maior moderação. E, num caso, foi consi-
derada criticável por um cavalheiro que se declarou como
defensor de todas as outras partes do sistema.
Não obstante, estou grandemente enganado se existir em
todo o plano um artigo mais completamente defensável do
que este. A sua justeza assenta na evidência desta proposição
simples, que cada governo deveria conter em si os meios da sua
própria preservação. Qualquer argumentador justo aprovará, à
primeira vista, uma adesão a esta regra, no trabalho da Con-
venção, e desaprovará qualquer desvio em relação a ela que
não possa apresentar-se como tendo sido ditado pela necessi-
dade de incorporar na obra um certo ingrediente particular,
com o qual era incompatível uma rígida conformidade com
a regra. Mesmo neste caso, embora ele possa aquiescer quanto
à necessidade, não deixará, contudo, de ver e lamentar um
desvio a um princípio tão fundamental como sendo uma certa
imperfeição do sistema, que pode mostrar-se semente de uma
fraqueza futura, ou talvez da anarquia.
Não se alegará que podia ter sido preparada e inserida na
Constituição uma lei eleitoral, uma lei que teria sido sempre
aplicável a todas as prováveis mudanças na situação do país e,
portanto, não se negará que teria que existir em algum lado
um poder discricJOnário sobre as eleições. Será, presumo,
prontamente concedido que havia apenas três maneiras pelas
quais esse poder podia ter sido razoavelmente alterado e regu-
lamentado: ou ficaria inteiramente depositado na Legislatura
Nacional, ou inteiramente nas Legislaturas dos Estados, ou
primariamente nas últimas, e em última instância na primeira.
Esta última modalidade foi, com razão, preferida pela Con-
venção. Submeteu a regulamentação das eleições para o
Governo Federal, em primeira instância, às administrações
locais, o que, nos casos normais, e quando não prevalecem
pontos de vista incorrectos, pode ser simultaneamente mais
conveniente e mais satisfatório. Mas reservou para a autoridade

[530]
nacional um direito de se interpor, sempre que existirem
circunstâncias extraordinárias que possam tornar essa imposição
necessária para a sua segurança.
Nada pode ser mais evidente do que reconhecer que um
poder exclusivo de regulamentar as eleições para o Governo
Nacional nas mãos das Legislaturas dos Estados deixaria a
existência da União inteiramente à mercê destes. Em qualquer
momento poderiam aniquilá-la, desleixando-se em providen-
ciar a escolha de pessoas para administrar os assuntos desta
última. É com pouco proveito que se dirá que um desleixo
ou omissão desta natureza não seria provável que acontecesse.
A possibilidade constitucional da coisa, sem um equivalente
para o risco, é uma objecção irrespondível. E também não
foi ainda apresentada qualquer razão satisfatória para correr
esse risco. As extravagantes desconfianças de uma inveja des-
temperada nunca podem ser dignificadas com essa caracte-
rística. Se estamos dispostos a presumir abusos de poder, é
igualmente justo que os presumamos tanto da parte dos
Governos dos Estados como da parte do Governo Geral.
E como é mais consonante com as regras de uma teoria justa
confiar à União o cuidado com a sua própria existência em
vez de transferir esse cuidado para outras mãos, se de um lado
ou do outro se deve correr o risco de abusos de poder, é mais
racional correr o risco do lado em que o poder estaria natu-
ralmente colocado, do que do lado onde ele o estaria não
naturalmente.
Suponha-se que tinha sido introduzido um artigo na Cons-
tituição, concedendo aos Estados Unidos o poder de regula-
mentar as eleições para os Estados particulares. Teria algum
homem hesitado em condená-lo como uma injustificável
transposição de poder e, simultaneamente, como um meca-
nismo premeditado para a destruição dos Governos dos
Estados? A violação do princípio, nesse caso, não precisaria
de comentário e, para um observador imparcial, não será
menos patente no projecto de sujeitar a existência do Governo

[531]
Nacional, num aspecto semelhante, à vontade dos Governos
dos Estados. Uma visão imparcial do assunto não pode deixar
de resultar numa convicção de que cada um, tanto quanto
possível, deveria depender de si mesmo para a sua própria
preservação.
Como objecção a esta posição pode observar-se que a
Constituição do Senado nacional envolveria, em toda a sua
extensão, o perigo que é sugerido, que pode decorrer de um
poder exclusivo das legislaturas dos Estados para regulamentar
as eleições federais. Pode alegar-se que, declinando a nomeação
de Senadores, eles podem em qualquer momento desferir um
golpe mortal na União. E disto pode inferir-se que, como a
existência desta ficaria assim dependente deles num ponto
tão essencial, não pode haver objecção a confiar-lhes esse
poder no caso particular que estamos a considerar. O interesse
de cada Estado, pode acrescentar-se, em manter a sua repre-
sentação nos comelhos nacionais seria uma garantia integral
contra um abuso da confiança depositada.
Este argumento, embora seja plausível, não se apresentará
como sólido depois de examinado. É certamente verdade que
as Legislaturas dos Estados, se se abstiverem de nomear sena-
dores, podem destruir o Governo Nacional. Mas daí não se
segue que, porque têm poder para fazer isto num caso, o
devam ter em todos os outros. Há casos em que a tendência
perniciosa de um poder desses pode ser muito mais decisiva,
sem qualquer motivo tão convincente como o que deve ter
regulado a conduta da Convenção com respeito à formação
do Senado, para recomendar a sua admissão no sistema. Na
medida em que essa construção pode expor a União à
possibilidade de danos causados pelas Legislaturas dos Estados,
ela é um mal; mas é um mal que não poderia ter sido evitado
sem excluir inte1ramente os Estados, nas suas capacidades
políticas, de um lugar na organização do Governo Nacional.
Se isto tivesse sido feito, sem dúvida que teria sido interpretado
como um completo abandono do princípio federal e teria

[532]
seguramente privado os Governos dos Estados dessa salvaguarda
absoluta de que gozam ao abrigo desta cláusula. Mas por mais
sensato que pudesse ter sido submeter-se neste caso a um
inconveniente, para atingir uma vantagem necessária ou um
bem maior, nenhuma inferência se pode tirar daí para favorecer
uma acumulação do mal, onde nenhuma necessidade o pede,
nem nenhum bem maior o solicita.
Pode ser facilmente discernido também que o Governo
Nacional correria um risco muito maior por parte de um
poder das Legislaturas dos Estados sobre as eleições da sua
Câmara dos Representantes do que do poder destes para
nomear os membros do Senado. Os Senadores serão eleitos
para um mandato de seis anos; haverá uma rotação, por meio
da qual os lugares de uma terça parte deles devem vagar e
voltar a ser ocupados de dois em dois anos; e nenhum Estado
terá direito a mais de dois senadores; o quórum da assembleia
deverá ser de dezasseis membros. O resultado conjunto destas
circunstancias seria que uma combinação temporária de uns
poucos de Estados para interromper a nomeação de Senadores
não poderia anular nem comprometer a actividade da assem-
bleia. E não é de uma combinação geral e permanente dos
Estados que podemos ter alguma coisa a recear. A primeira
poderia proceder de desígnios sinistros nos membros mais
importantes de algumas das Legislaturas dos Estados; a última
suporia um descontentamento firme e enraizado no grande
corpo do povo que, ou nunca existirá de todo, ou provirá,
com toda a probabilidade, de uma experiência da inaptidão
do Governo Geral para o progresso da sua felicidade, caso em
que nenhum bom cidadão poderia desejar a sua manutenção.
Mas no que toca à Câmara de Representantes Federal,
está planeado que haja uma eleição geral de membros de dois
em dois anos. Se as Legislaturas dos Estados fossem investidas
com um poder exclusivo para regulamentar essas eleições,
cada período da sua realização seria uma delicada crise na
situação nacional que podia ter como resultado uma dissolução

[533]
da União, se os dirigentes de um punhado de Estados mais
importantes se tivessem conluiado numa conspiração prévia
para impedir uma eleição.
Não negarei que existe um certo peso na observação que
o interesse de cada Estado a ser representado nos conselhos
federais será uma protecção contra o abuso de um poder sobre
as eleições para esses conselhos nas mãos das Legislaturas dos
Estados. Mas a protecção não será considerada tão completa
por aqueles que prestam atenção à força de uma distinção
óbvia entre o interesse do povo na felicidade pública e o
interesse dos governantes locais no poder e na importância
dos seus cargos. O povo da América pode por vezes estar
calorosamente unido ao governo da União, enquanto os
governantes particulares dos Estados particulares, estimulados
pela natural rivalidade de poder e pelas esperanças de engran-
decimento pessoal, e apoiados por uma forte facção em cada
um desses Estados, podem estar numa disposição muito
contrária. Esta diversidade de sentimentos entre uma maioria
do povo e os indivíduos que têm maior crédito nos seus
conselhos é exemplificada em alguns dos Estados, no momento
presente e em relação ao assunto presente. O esquema de
confederações separadas, que multiplicará sempre as opor-
tunidades da ambição, nunca será um fraco engodo para todos
esses personagens influentes nas administrações dos Estados,
que são capazes de preferir os seus próprios emolumentos e
as suas próprias promoções ao progresso do bem-estar público.
Com uma arma assim tão eficaz, a de regulamentar as eleições
para o Governo Nacional, uma combinação de um punhado
de homens desses, em apenas uns poucos dos Estados mais
consideráveis, em que a tentação será sempre mais forte,
podem realizar a destruição da União, aproveitando a opor-
tunidade de alguma insatisfação casual entre o povo (e que,
talvez, eles próprios tenham excitado) para interromper a
escolha de membros para a Câmara de Representantes Federal.
Nunca se deveria esquecer que uma firme União deste país,

[534]
com um governo eficiente, será provavelmente um crescente
objecto de ressentimento para mais de uma nação da Europa,
e que os cometimentos para a subverter se originarão por
vezes nas intrigas das potências estrangeiras e raramente
deixarão de ser patrocinadas e de receber o incitamento de
algumas delas. Por consequência, a preservação da União não
deverá, em caso algum em que isso possa ser evitado, ser
entregue à guarda de outros que não aqueles cuja situação
produzirá uniformemente um interesse imediato pelo fiel e
vigilante cumprimento da responsabilidade que lhes é con-
fiada.
PUBLIUS

[535]
O FEDERALISTA N." 60
[59]

Sobre o Poder do Congresso na Regulamentação


da Eleição dos seus Membros (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
23 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Vimos que um poder incontrolado sobre as eleições para


o governo federal não podia, sem riscos, ser entregue às
legislaturas dos Estados. Vejamos agora qual seria o perigo do
outro lado, isto é, de confiar o direito supremo de regulamentar
as suas próprias eleições à União. Não se alega que este direito
fosse alguma vez usado para excluir algum Estado da sua parte
na representação. O interesse de todos, pelo menos neste
aspecto, seria a segurança de todos. Mas é alegado que esse
direito podia ser usado de maneira tal que promovesse a eleição
de uma classe favorecida de homens com exclusão de outras,
confinando os locais de eleição a certos distritos, e tornando

* Do Th e Independent j ournal, 23 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 26 de Fevereiro no TI1e New-York Packet. Recebeu o número
60 na edição de McLean e o número 59 nos jornais. QC) .

[537]
impraticável que a maioria dos cidadãos tomasse parte na
escolha. Entre as suposições quiméricas, esta parece ser a mais
quimérica de todas. Por um lado, nenhum cálculo racional
de probabilidades nos levaria a imaginar que a disposição que
seria implicada por uma conduta tão violenta e extraordinária
poderia alguma vez encontrar acolhimento nos conselhos
nacionais e, por outro, pode concluir-se com certeza que se
um espírito tão impróprio alguma vez chegasse a ser admitido
nesses conselhos, ele se mostraria numa forma totalmente
diferente e muito mais decisiva .
A improbabilidade da tentativa pode ser satisfatoriamente
inferida desta simples reflexão: que nunca poderia ser empreen-
dida sem causar uma revolta imediata da grande massa do
povo, encabeçada e dirigida pelos Governos dos Estados. Não
é dificil conceber que este característico direito de liberdade
possa, em certas épocas turbulentas e facciosas, ser violado,
relativamente a uma classe particular de cidadãos, por uma
maioria vitoriosa e esmagadora. Mas que um privilégio tão
fundamental, num país assim situado e tão esclarecido, devesse
ser infringido com prejuízo da grande massa do povo, pela
política deliberada do governo, sem ocasionar uma revolução
popular, é totalmente inconcebível e inacreditável.
Adicionalmente a esta reflexão geral, existem considerações
de natureza mais exacta que não permitem qualquer receio
nesta matéria. A dissemelhança dos ingredientes que comporão
o governo nacional, e ainda mais a maneira como eles serão
postos em acção nos seus vários ramos, deve formar um
obstáculo poderoso a uma concertação de planos, em qualquer
esquema parcial de eleições. Existe suficiente variedade no
estado da propriedade, no talento, maneiras e hábitos do povo
das diferentes partes da União para dar lugar a uma substancial
diversidade de disposição nos seus representantes em relação
às diferentes dignidades e condições da sociedade. E apesar
de um trato íntimo sob o mesmo governo vir a promover
uma assimilação gradual, de índole e de sentimento, existem

[538]
contudo causas, tanto fisicas como morais, que poderão, em
maior ou menor grau, alimentar permanentemente diferentes
propensões e inclinações a este respeito. Mas a circunstância
que provavelmente terá a maior influência na questão residirá
nos modos dissemelhantes de constituir as diferentes partes
do governo. Devendo a Câmara dos Representantes ser eleita
directamente pelo povo, o Senado pelas legislaturas dos Estados,
o Presidente por eleitores escolhidos pelo povo para esse fim,
será pequena a probabilidade de um interesse comum poder
agregar esses diferentes ramos numa predilecção por qualquer
classe particular de eleitores.
Quanto ao Senado, é impossível que qualquer regulamen-
tação da "época e processo," que é tudo o que é proposto
que seja submetido ao Governo Nacional a respeito dessa
assembleia, possa afectar o espírito que dirigirá a escolha dos
seus membros. A opinião colectiva das Legislaturas dos Estados
nunca pode ser influenciada por circunstâncias extrínsecas
desse género- uma consideração que por si só deveria persua-
dir-nos de que a discriminação receada nunca seria tentada.
Na verdade, que motivações poderia ter o Senado de concorrer
para uma preferência na qual ele próprio não estaria incluído?
Ou para que fim seria estabelecida essa preferência a respeito
de um ramo da legislatura, se não pudesse ser estendida ao
outro? A composição de um neutralizaria neste caso a do
outro. E nunca podemos supor que ela abrangeria as nomea-
ções para o Senado, a menos que possamos supor ao mesmo
tempo a cooperação voluntária das Legislaturas dos Estados.
Se adoptarmos a última suposição, torna-se então irrelevante
onde está colocado o poder em questão - se nas mãos deles
se nas da União.
Mas qual deverá ser o objecto desta parcialidade caprichosa
nos conselhos nacionais? É para ser exercida numa discrimi-
nação en e os diferentes departamentos da indústria, ou entre
os diferentes tipos de propriedade, ou entre os diferentes graus
de propriedade? Inclinar-se-á para favorecer os interesses

[539]
terratenentes, ou os interesses financeiros, ou os interesses
mercantis, ou os interesses manufactureiros? Ou, para usar a
linguagem elegante dos adversários da Constituição, buscará
o engrandecimento dos "ricos e bem nascidos," com exclusão
e degradação do resto da sociedade?
Se esta parcialidade é para ser exercida a favor daqueles
que estão envolvidos em qualquer tipo particular de indústria
ou de propriedade, presumo que será prontamente admitido
que a competição em seu proveito se situará entre os pro-
prietários de terras e os mercadores. E não tenho escrúpulos
em afirmar que o facto de qualquer deles vir a ganhar um
ascendente nos conselhos nacionais é infinitamente menos
provável do que uns ou outros venham a predominar em
todos os conselhos locais. A inferência será que uma conduta
tendente a dar uma preferência indevida a qualquer deles é
muito menos de recear no primeiro caso do que no último 1 .
Os diversos Estados dedicam-se em vários graus à
agricultura e ao comércio. Na maior parte deles, se não em
todos, a agricultura é predominante. Em poucos deles, todavia,
o comércio quase divide o seu império, e na maior parte deles
tem um considerável quinhão de influência. Na proporção
em que cada um deles prevaleça, assim será o seu peso
transferido para a representação nacional, e pela própria razão
de que isso será uma emanação de uma maior variedade de
interesses, e, em proporções muito mais variadas do que o
que se pode encontrar em qualquer Estado singular, também
o conselho nacional estará menos inclinado a aderir a qualquer

1 A probabilidade de a discriminação eleitoral ser mais frequente nos

horizontes local e estadual do que no federal, aqui prevista por Hamilton, foi
confirmada pela posterior experiência histórica. Na década de 1960 o Supremo
Tribunal teve de intervir no sentido de impor um novo desenho de círculos
eleitorais (redistrictit1g) , fazendo impor o princípio constitucional da propor-
cionalidade demográfica, em detrimento de divisões históricas e do caciquismo
partidário instalado: Reynolds versus Sims, 1964 e Wesberry versus Sanders, 1964.
(E. P.).

[540]
um deles com uma decidida parcialidade do que o estará a
representação de um qualquer Estado singular.
Num país que consiste principalmente em cultivadores
da terra, onde as regras de igual representação estão em vigor,
o interesse terratenente deve, no conjunto, preponderar no
governo. Na medida em que esse interesse prevaleça na maior
parte das legislaturas dos Estados também deverá manter uma
superioridade correspondente no Senado nacional, que será
geralmente uma cópia fiel das maiorias dessas assembleias.
Não se pode pois presumir que um sacrificio da classe terra-
tenente à classe mercantil seja alguma vez um objecto favorito
deste ramo da legislatura federal. Ao aplicar assim particular-
mente ao Senado uma observação genérica sugerida pela
situação do país, sou governado pela consideração de que os
crédulos sequazes do poder do Estado não podem, com base
nos seus próprios princípios, suspeitar de que as legislaturas
dos Estados seriam pervertidas no seu dever por urna qualquer
influência externa. Porém, como na realidade a mesma situação
deve ter o mesmo efeito, pelo menos na composição primitiva
da Câmara dos Representantes federal, uma parcialidade
imprópria para com a classe mercantil é tão pouco de esperar
deste quadrante como do outro.
Talv z com o intuito de apoiar, de qualquer forma, a
objecção, pode perguntar-se se não existe um perigo da par-
cialidade oposta no Governo Nacional, que pode dispô-lo
para tentar assegurar um monopólio da administração federal
à classe terratenente. Tal como há pouca verosimilhança que
a suposição de uma tal parcialidade comporte quaisquer receios
para aqueles que seriam imediatamente prejudicados por ela,
dispensaremos uma resposta elaborada a esta pergunta. Será
suficiente observar, primeiro, que, pelas razões expostas noutro
local2, é menos provável que qualquer parcialidade decidida
venha a prevalecer nos conselhos da União do que aconteça

2 Ver artigo 35. QC) .

[541]
nos de qualquer dos seus membros. Em segundo lugar, que
não existiria tentação de violar a Constituição a bem da classe
terratenente, porque essa classe gozaria, no curso natural das
coisas, de uma preponderância tão grande quanto ela própria
poderia desejar. E em terceiro lugar, que os homens acostu-
mados a investigar as fontes da prosperidade pública numa
larga escala devem estar em demasia convencidos da utilidade
do comércio para se sentirem inclinados a infligir-lhe uma
ferida tão profunda como a que resultaria da inteira exclusão
de um quinhão na gestão dessas fontes, aplicada sobre aqueles
que melhor compreendem o seu interesse. A importância do
comércio, tendo em vista apenas o rendimento, deve protegê-
-lo eficazmente da inimizade de um corpo que seria continua-
mente importunado a seu favor pelos apelos urgentes da
necessidade pública. Eu preferiria considerar a brevidade na
discussão da probabilidade de urna preferência fundada numa
discriminação entre os diferentes géneros de indústria e de
propriedade, porque, tanto quanto entendo a intenção dos
objectores, eles têm em mente uma discriminação de outro
género. Parecem ter em vista, como objectos da preferência
com que se esforçam por nos alarmar, os que designam pela
descrição "ricos e bem nascidos". Estes, ao que parece, deverão
ser elevados a uma odiosa preeminência sobre o resto dos seus
concidadãos. Num momento, todavia, a sua elevação deverá
ser uma consequência necessária da pequenez do corpo
representativo; noutro momento, deverá ser efectuada privando
o povo em geral da oportunidade de exercer o seu direito de
sufrágio na escolha desse corpo.
Mas com base em que princípio será feita a discriminação
dos locais de eleições para que possa responder ao propósito
da preferência meditada? Os ricos e bem nascidos, como são
chamados, estão confinados a locais particulares nos diversos
Estados? Será que por algum instinto ou alguma previsão
miraculosos reservaram, em cada um dos Estados, um local
comum de residê cia? São encontrados somente em vilas e

[542]
cidades? Ou, pelo contrário, estão disseminados por todo o
pais como a cobiça ou a sorte possam ter determinado o seu
próprio destino, ou o dos seus antepassados? Se se der este
último caso, (como todo o homem inteligente sabe que
acontece3) não é evidente que a politica de confinar os locais
das eleições a distritos particulares subverteria tanto o seu
próprio objectivo como seria censurável em todos os outros
aspectos? A verdade é que não existe nenhum método de
garantir aos ricos a preferência receada, excepto prescrevendo
qualificações de propriedade para os que podem eleger e para
os que podem ser eleitos. Mas isto não constitui nenhuma
parte do poder a conferir ao governo nacional. A sua autori-
dade será expressamente restringida às épocas, locais, e processos
das eleições. As qualificações das pessoas que podem escolher
ou ser escolhidas, como já foi observado noutra ocasião4, são
definidas e fixadas na Constituição e não são alteráveis pela
legislatura.
Admitamos todavia, a bem da argumentação, que o expe-
diente sugerido pudesse ser bem sucedido e, ao mesmo tempo,
tomemos como certo que todos os escrúpulos que possam
ser inspirados por um sentimento de dever ou pelo receio do
perigo associado à experiência eram superados nos pensamen-
tos dos governantes nacionais. Ainda assim, imagino, dificil-
mente se pretenderia que eles pudessem alguma vez esperar
pôr em execução semelhante empreendimento sem a ajuda
de uma força militar suficiente para subjugar a resistência do
grande corpo do povo. A improbabilidade da existência de
uma força à altura desse objectivo foi discutida e demonstrada
em diferentes partes destes artigoss. Mas, para que a futilidade
da objecção que estamos a considerar possa aparecer o mais
claramente possível, devemos conceder por um momento

3 Em particular nos Estados do Sul e neste Estado. (Pu blius).


4 Ver artigo 59. QC).
5 Ver em especial os artigos 24-29. QC).

[543]
que possa existir tal força e devemos supor que o governo
nacional está efectivamente de posse dela. Qual será a con-
clusão? Com uma disposição para violar os direitos essenciais
da comunidade e com os meios de satisfazer essa disposição
é presurrúvel que as pessoas movidas por ela se divertiriam
com a tarefa ridícula de fabricar leis eleitorais para garantir
uma preferência por uma classe favorita de homens? Não seria
mais provável que preferissem uma conduta mais bem adaptada
ao seu próprio engrandecimento imediato? Não resolveriam
ousadamente perpetuar-se nos cargos através de um só acto
decisivo de usurpação, em vez de confiar em precários expe-
dientes que, não obstante todas as precauções que pudessem
acompanhá-los, poderiam terminar na destituição, desonra e
ruína dos seus autores? Não receariam que cidadãos, não
menos tenazes do que conscientes dos seus direitos, afluíssem
dos mais remotos extremos dos seus respectivos Estados para
os locais das eleições, para derrubar os seus tiranos e substituí-
-los por homens que estivessem dispostos a vingar a violada
majestade do povo?
PUBLIUS

[544]
O FEDERALISTA N.• 61
[60]

Sobre o Poder do Congresso na Regulamentação


da Eleição dos seus Membros (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
26 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Os opositores mais imparciais da cláusula respeitante às


eleições contida no plano da Convenção, quando instados a
argumentar, concederão por vezes a justeza dessa cláusula,
com esta restrição, todavia, de que ela deveria ter sido acompa-
nhada de uma declaração afirmando que todas as eleições
deveriam ter lugar nos condados em que os eleitores residem.
Isto, dizem eles, era uma precaução necessária contra um
abuso de poder. Uma declaração desta natureza teria certa-
mente sido inofensiva. Na medida em que teria tido o efeito
de dissipar receios, poderia não ter sido indesejável. Mas, de
facto, teria permitido pouca ou nenhuma segurança adicional

* Do The New- York Packet, 26 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 27 de Fevereiro no Th e Independent]ournal. Recebeu o número
61 na edição de McLean e o número 60 nos jornais. QC).

[545]
contra o perigo receado. E a falta dela nunca será considerada,
por um examinador imparcial e judicioso, como séria, e menos
ainda como urna objecção insuperável ao plano. Os diferentes
pontos de vista sobre o assunto apresentados nos dois artigos
anteriores devem ser suficientes para satisfazer todos os homens
desapaixonados e perspicazes no sentido de que, se a liberdade
pública alguma vez vier a ser vítima da ambição dos governan-
tes nacionais, pelo menos o poder que estamos a examinar
estará inocente do sacrifício.
Se os que estão inclinados a consultar apenas a sua des-
confiança a exercessem numa inspecção cuidadosa das diversas
Constituições dos Estados, encontrariam pouco menos espaço
para inquietação e alarme pela latitude que a maior parte delas
consente com respeito às eleições do que encontram pela
latitude que é proposta que se consinta ao Governo Nacional
neste mesmo aspecto. Um exame da sua situação, neste ponto
particular, tenderia grandemente para dissipar qualquer
impressão desfavorável que pudesse permanecer a respeito
deste assunto. M as, como esse exame nos levaria para detalhes
longos e entediantes, contentar-me-ei com o único exemplo
do Estado em que escrevo. A Constituição de Nova Iorque
não contém nenhuma disposição em relação ao local das
eleições além de dizer que os membros da Assembleia devem
ser eleitos nos condados, os do Senado nos grandes distritos
em que o Estado está ou pode vir a estar dividido, distritos
que presentemente são em número de quatro, e abrangem
cada um entre dois a seis condados. Facilmente se pode perce-
ber que, para a legislatura de Nova Iorque, não seria mais
difícil invalidar os sufrágios dos cidadãos de Nova Iorque,
confinando as eleições a locais particulares, do que seria, para
a legislatura dos Estados Unidos, invalidar os sufrágios dos
cidadãos da União por meio de um expediente idêntico.
Suponham, por exemplo, que a cidade de Albany vinha a ser
designada como o único local de eleições para o condado e
para o distrito de que faz parte. Os habitantes dessa cidade

[546]
não se converteriam rapidamente nos únicos eleitores, tanto
do Senado como da Assembleia, para esse condado e para
esse distrito? Podemos imaginar que os eleitores que residem
em subdivisões remotas dos condados de Albany, Saratoga,
Cambridge, etc., ou em qualquer parte do condado de
Montgomery, se dariam ao trabalho de vir à cidade de Albany
para votar para os membros da Assembleia ou do Senado mais
depressa do que se dirigiriam à cidade de Nova Iorque para
participar na escolha dos membros da Câmara dos Repre-
sentantes Federal? A alarmante indiferença que se pode
descobrir no exercício de um privilégio tão valioso ao abrigo
das leis existentes, que lhe concedem todas as facilidades, dá
uma resposta pronta a esta pergunta. E, abstraindo de qualquer
experiê cia neste assunto, não nos seria dificil determinar
que, quando o local de eleições está a uma distância inconveniente
do eleitor, o efeito sobre a sua conduta será o mesmo quer
essa distância seja de vinte ou de vinte mil milhas. Por este
motivo deve aparecer claramente que as objecções à modi-
ficação particular do poder federal para regulamentar as eleições
se aplicarão, em substância, com igual força à modificação do
poder correspondente na Constituição deste Estado e, por
essa razão, será impossível absolver um e condenar o outro.
Uma comparação semelhante levaria à mesma conclusão no
que respeita às Constituições da maioria dos outros Estados.
Se viesse a ser dito que as imperfeições nas Constituições
dos Estados não fornecem uma desculpa para as que vierem
a ser encontradas no plano proposto, respondo que, tal como
as primeiras nunca foram consideradas como podendo ser
acusadas de falta de atenção à garantia da liberdade, nos casos
em que as acusações que são feitas ao plano são também apli-
cáveis a elas, a presunção é que essas acusações são refinamentos
sofisticas de uma oposição predeterminada mais do que infe-
rências bem fundamentadas de uma honesta busca da verdade.
Aos que estão dispostos a considerar como omissões inocentes
nas Constituições dos Estados o que vêem como defeitos

[547]
imperdoáveis no plano da Convenção, nada pode ser dito; ou
no máximo, pode apenas pedir-se-lhes que apresentem alguma
razão substancial pela qual os representantes do povo num só
Estado deveriam ser menos inexpugnáveis à ânsia pelo poder,
ou outros motivos sinistros, do que os representantes do povo
dos Estados Unidos. Se não puderem fazer isto, deveriam pelo
menos provar-nos que é mais facil subverter as liberdades de
três milhões de pessoas, com a vantagem de governos locais
para encabeçar a sua oposição, do que as de duzentas mil
pessoas que não dispõem dessa vantagem. E em relação ao
ponto imediatamente sob consideração, deveriam convencer-
-nos de que a possibilidade de que uma facção predominante
num único Estado, com o fito de manter a sua superioridade,
deva inclinar-se para uma preferência por uma classe particular
de eleitores, é menos provável de que um espírito semelhante
deva apoderar-se dos representantes de treze Estados, espalhados
por uma vasta região, e em muitos aspectos diferenciáveis uns
dos outros por uma diversidade de circunstâncias, preconceitos
e interesses locais.
Até agora, as minhas observações aspiraram apenas a uma
justificação da cláusula em questão, com fundamento na
correcção teórica, no perigo de pôr o poder noutras mãos,
e na segurança em depositá-lo da maneira proposta. Mas ainda
fica por mencionar uma vantagem positiva que resultará desta
disposição, e que não poderia conseguir-se tão bem de qual-
quer outra maneira. Aludo à circunstância da uniformidade
na época das eleições para a Câmara de Representantes Federal.
É mais do que possível que essa uniformidade se possa revelar
na experiência como sendo de grande importância para o
bem-estar público e simultaneamente como uma garantia
contra a perpetuação do mesmo espírito nesse corpo, e como
uma cura para as doenças das facções. Se cada Estado puder
escolher a sua própria época de eleições, é possível que haja
pelo menos tantos períodos diferentes como meses há no ano.
As épocas de eleições nos vários Estados, tal como estão hoje

[548]
estabelecidas para fins locais, variam entre extremos tão afas-
tados como Março e Novembro. A consequência desta
diversidade seria que nunca poderia ocorrer uma dissolução
total ou uma renovação da Câmara numa única ocasião. Se
viesse a prevalecer um espírito impróprio de qualquer género,
esse espírito teria capacidade de se infundir nos novos membros
à medida que sucessivamente ocupassem os seus lugares. Seria
provável que a massa permanecesse aproximadamente a mesma,
assimilando constantemente os seus graduais acréscimos. Há
um contágio no exemplo, para resistir ao qual poucos homens
têm a força de espírito suficiente. E stou inclinado a pensar
que o triplo da duração do mandato, com a condição de uma
dissolução do corpo de uma só vez, possa ser menos terrível
para a liberdade do que um terço dessa duração sujeita a alte-
rações graduais e sucessivas.
A uniformidade na época das eleições parece não menos
indispensável para realizar a ideia de uma rotação regular no
Senado e para reunir convenientemente a Legislatura num
período estabelecido em cada ano.
Pode perguntar-se, então: Porque é que não podia ter
sido fixada uma época na Constituição 1? Como os mais zelosos
adversários da Convenção neste Estado são em geral n ão
menos zelosos admiradores da Constituição do Estado, porque
é que n ão foi fixada nesta última Constituição uma época
para idêntico fim? Não pode ser dada melhor resposta do que
tratar-se de urna matéria que pode com segurança ser confiada
ao arbítrio legislativo, e que se tivesse sido designada tal época,
a experiência poderia ter mostrado que ela era menos conve-
niente que uma outra. A mesma resposta pode ser dada à
pergunta posta do outro lado. E pode ser acrescentado que,

1 o cesígnio constitucional de uniformidade quanto à data para as eleições


federais só de consumou efectivamente em 1872, quando o Congresso aprovou
a primeira terça-feira após a primeira segu nda-feira de Novembro como data
eleitoral para a Câmara dos Representantes. Ainda hoje, o debate prossegue
acerca dos inconvenientes de efectuar a votação num ctia de semana. (E. P.).

[549]
dado que o suposto perigo de uma alteração gradual é mera-
mente especulativo, dificilmente teria sido prudente, com
base nessa especulação, estabelecer, como ponto fundamental,
aquilo que privaria vários Estados da conveniência de realizar
na mesma época as eleições para o seus próprios governos e
para o Governo Nacional.
PUBLIUS

[550]
O FEDERALISTA N. • 62
[61]

O Senado

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON)
27 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Tendo examinado a constituição da Câmara dos Represen-


tantes e respondido às objecções contra ela que pareciam
merecedoras de atenção, entro em seguida no exame do
Senado. Os títulos a que este membro do governo pode ser
considerado são: I. As qualificações dos senadores; II. A sua
nomeação pelas Legislaturas dos Estados; III . A igualdade de
representação no Senado; IV. O número de senadores, e a
duração do mandato para o qual deverão ser eleitos; V. Os
poderes conferidos ao Senado.

* Do The Jndependent journal, 27 de Fevereiro de 1788. Este artigo foi


publicado em 29 de Fevereiro no The New- York Packet. R ecebeu o número
62 na edição de McLean e o número 61 nos jornais. QC).

[551]
I. As qualificações propostas para os senadores, enquanto
distintas das dos outros representantes, consistem em uma
idade mais avançada e um período mais longo de cidadania.
Um senador deve ter pelo menos trinta anos de idade, ao
passo que um representante deve ter vinte e cinco. E o primeiro
deve ter sido cidadão por nove anos, ao passo que para o
último são exigidos sete anos. A justeza destas distinções é
explicada pela natureza do mandato senatorial que, exigindo
uma maior quantidade de informação e estabilidade de carácter,
exige simultaneamente que o senador tenha alcançado uma
altura da sua vida que tem mais probabilidade de providenciar
estas vantagens; e que, participando o senador directamente
nas conversações com nações estrangeiras, o seu mandato não
deve ser exercido por alguém que não esteja completamente
afastado das predisposições e hábitos ligados a um nascimento
e uma educação estrangeiros. O período de nove anos parece
ser uma prudente mediania entre uma exclusão de cidadãos
naturalizados, cujos méritos e talentos podem reclamar um
quinhão da confiança pública, e uma admissão apressada e
indiscriminada desses mesmos cidadãos, que poderia criar
um canal para a influência estrangeiras nos conselhos nacio-
nals.
II. É igualmente desnecessário dilatarmo-nos acerca da
nomeação dos senadores pelas Legislaturas dos Estados. Entre
os vários modos que podiam ter sido imaginados para constituir
este ramo do governo, aquele que foi proposto pela Convenção
é provavelmente o que está mais de acordo com a opinião
pública. É recomendado pela dupla vantagem de favore-
cer uma nomeação de qualidade superior e de dar aos gover-
nos dos Estados uma intervenção na formação do governo
federal, tal que deverá assegurar a autoridade dos primeiros
e poderá constituir uma ligação conveniente entre os dois
sistemas.
III. A igualdade de representação no Senado é outro ponto
que, sendo evidentemente o resultado do compromisso entre

[552)
as pretensões contrárias dos Estados grandes e pequenos, não
pede muita discussão. Se é realmente justo que, entre um
povo inteiramente incorporado numa nação, cada distrito
deva ter uma parte proporcional no governo e que, entre Estados
independentes e soberanos, ligados uns aos outros por uma
simples liga, os partidos, por mais desiguais em tamanho,
devam ter uma parte igual nas assembleias comuns, não parece
ser sem alguma razão que numa república composta, parti-
lhando simultaneamente as características nacional e federal,
o governo devesse ser fundado numa mistura dos princípios
de representação proporcional e igual. Mas é supérfluo julgar,
pelo critério da teoria, uma parte da Constituição que todos
concordam ser o resultado, não de uma teoria, mas "de um
espírito de amizade e dessa deferência e concessão mútuas
que a particularidade da nossa situação política tornou indis-
pensáveis". Um governo comum, com poderes à altura dos
seus objectivos, é exigido pela voz da América e ainda mais
alto pela situação política dela. Um governo fundado em prin-
cípios mais em harmonia com os desejos dos maiores Estados
não é provável que seja conseguido dos Estados mais pequenos.
Então, a única opção para os primeiros está entre o governo
proposto e um governo ainda mais criticável. Sob esta alter-
nativa, o conselho da prudência deve ser adoptar o mal menor
e, em vez de se entregar a uma infrutífera antecipação dos possí-
veis prejuízos que se possam seguir, contemplar de preferência
as consequências vantajosas que podem atenuar o sacrifício.
Com este espírito pode ser observado que o voto igual
concedido a cada Estado é ao mesmo tempo um reconheci-
mento constitucional da porção de soberania remanescente
nos Estados individuais e um instrumento para a preservação
dessa soberania residual. Até aqui, a igualdade não deveria ser
menos aceitável para os Estados grandes do que para os peque-
nos, dado que eles não são menos solícitos na protecção, por
todos os meios possíveis, contra uma injusta consolidação dos
Estados numa única república.

[553]
Uma outra vantagem decorrente deste ingrediente na
constituição do Senado é o entrave adicional que ele deve
mostrar ser aos actos legislativos injustos. Nenhuma lei ou
resolução pode agora ser aprovada sem a cooperação, primeiro,
de uma maioria do povo e, em seguida, da maioria dos Estados.
Deve reconhecer-se que este complicado controlo sobre a
legislação pode em alguns casos ser tão prejudicial como
benéfico, e que a defesa peculiar que ele envolve a favor dos
Estados mais pequenos seria mais racional, se quaisquer inte-
resses que lhes fossem comuns e distintos dos interesses dos
outros Estados estivessem, por outro método, expostos a um
perigo peculiar. Mas, como os maiores Estados estarão sempre
aptos, pelo seu poder sobre os abastecimentos, a derrotar o
emprego menos razoável desta prerrogativa por parte dos
Estados mais pequenos, e como a faculdade e o excesso do
legislar parecem ser as doenças a que os nossos governos estão
mais sujeitos, não é impossível que esta parte da Constituição
possa ser mais conveniente na prática do que a muitos parece
na contemplação.
IV. Depois disto devemos considerar o número de sena-
dores, e a duração do seu mandato. Com o intuito de formar
uma opinião exacta sobre estes dois pontos é apropriado
examinar os objectivos a que um Senado deverá responder.
E, para averiguar estes últimos, será necessário rever os incon-
venientes que uma república deverá sofrer pela falta de uma
instituição desse tipo.
Primeiro. Um contratempo que acompanha o governo
republicano, embora em menor grau do que os outros gover-
nos, consiste em que os que o administram possam esquecer
as suas obrigações em relação aos seus constituintes e mostrar-
-se infiéis à sua importante responsabilidade. Deste ponto de
vista, um Senado, como segundo ramo da assembleia legisla-
tiva, distinto de um primeiro e dividindo o poder com ele,
deve em todos os casos ser um controlo salutar do governo.
Ele duplica a segurança do povo ao exigir o concurso de duas

[554]
assembleias distintas em esquemas de usurpação ou perfidia
em que, se não fosse isso, seria suficiente a ambição ou corrup-
ção de uma. Esta é uma precaução fundada em princípios tão
claros, e agora tão bem compreendidos nos Estados Unidos,
que seria mais do que supérfluo alargarmo-nos sobre ela.
Observarei simplesmente que, tal como a improbabilidade de
combinações sinistras será proporcional à dissemelhança no
génio das duas assembleias, tem de ser politico distingui-las
uma da outra em todas as circunstâncias que sejam consistentes
com uma harmonia correcta em todas as medidas apropriadas,
e com os princípios genuínos do governo republicano.
Segundo. A necessidade de um Senado não é menos indi-
cada pela propensão de todas as assembleias únicas e numerosas
para se entregarem ao impulso de paixões súbitas e violentas,
e para serem seduzidas por chefes facciosos para resoluções
imoderadas e perniciosas. Nesta matéria poderão ser citados
exemplos em catadupa, tirados de actas dos debates no interior
dos Estados Unidos, bem como da história de outras nações.
Mas uma posição que não será contradita não precisa de ser
demonstrada. Tudo o que é preciso observar é que uma
assembleia que tem como papel corrigir e ta enfermidade
deve ela própria estar livre dela e, consequentemente, deve
ser menos numerosa. Deve, além disso, possuir uma grande
firmeza e, consequentemente, deve conservar a sua autoridade
por período de duração considerável.
Terceiro. Outra imperfeição a ser remediada por um Senado
consiste na falta da devida familiarização com os objectos e
princípios de legislação. Não é possível que uma assembleia
de homens que, na sua maior parte, se foram buscar a activida-
des de natureza privada, que permaneceram no cargo durante
wn curto período, e que não têm nenhum motivo permanente
para dedicar os intervalos da ocupação pública ao estudo das
leis, dos assuntos, e dos interesses abrangentes do seu país, se
fosse deixada inteiramente a si própria, escapasse a uma varie-
dade de erros importantes no exercício da sua responsabilidade

[555]
legislativa. Pode ser afirmado, com as bases mais sólidas, que
uma parte não pequena das dificuldades presentes da América
deve ser imputada aos erros dos nossos governos e que estes
provieram mais das cabeças do que dos corações da maioria
dos autores deles. Na verdade, o que são todas as leis revoga-
doras, esclarecedoras e correctoras, que enchem e envergonham
os nossos volumosos códigos, senão outros tantos monumentos
de sabedoria deficiente? O que são outras tantas impugnações
exibidas por cada sessão que começa em relação a cada sessão
que a antecedeu? O que são outras tantas advertências ao povo
do valor dessas ajudas que podem ser esperadas de um Senado
bem constituído?
Um bom governo implica duas coisas: primeiro, uma
fidelidade ao objecto do governo, que deverá ser a felicidade
do povo; segundo, um conhecimento dos meios pelos quais
esse objecto pode ser mais bem atingido. Alguns governos
são deficientes em ambas estas qualidades e a maior parte dos
governos é deficiente na primeira. Não tenho escrúpulos em
afirmar que nos governos americanos se prestou muito pouca
atenção à última. A Constituição federal evita este erro e,
coisa que merece particular reparo, providencia a segunda
qualidade de uma maneira que aumenta a segurança para a
pnme1ra.
Quarto. A mutabilidade nos conselhos públicos, resultante
de uma rápida sucessão de novos membros, por mais qualifica-
dos que eles possam ser, salienta, da maneira mais forte, a
necessidade de alguma instituição estável no governo. Cada
nova eleição nos Estados provoca a alteração de metade dos
representantes. Desta mudança de homens deve seguir-se uma
mudança de opiniões e de uma mudança de opiniões, uma
mudança de medidas. Mas uma mudança contínua, mesmo
de boas medidas, é inconsistente com todas as regras da
prudência e todas as expectativas de sucesso. Esta observação
é comprovada na vida privada e torna-se mais justa, bem
como mais importante, nos assuntos nacionais.

[556]
Delinear os perniciosos efeitos de um governo mutável
encheria um volume. Deixarei entrever apenas uns poucos
e perceber-se-á que cada um é uma fonte de incontáveis
outros.
Em primeiro lugar, ele perde o direito ao respeito e à
confiança das outras nações, e todas as vantagens ligadas ao
carácter nacional. Um indivíduo do qual se observa que é
inconstante em relação aos seus planos, ou talvez que prossegue
os seus negócios sem ab olutamente nenhum plano, é ime-
diatamente assinalado por todas as pessoas prudentes como
uma rápida vítima da sua própria instabilidade e loucura. Os
seus vizinhos mais amigáveis podem ter pena dele, mas todos
declinarão ligar ao dele os seus destinos e não poucos apro-
veitarão a oportunidade para fazer fortuna à custa dele. Uma
nação é para outra o que um indivíduo é para outro, com
esta melancólica distinção, talvez: que as primeiras, com menos
emoções benevolentes do que os últimos, têm também menos
restrições para se aproveitar indevidamente das imprudências
umas das outras. Consequentemente, todas as nações cujos
negócios traem falta de sensatez e estabilidade podem contar
com todos os prejuízo que podem ser sofridos devido à
política mais sistemática dos seus vizinhos mais sensatos. Mas
a melhor introdução a este tema é infelizmente transmitida à
América pelo exemplo da sua própria situação. Ela acha que
não é respeitada pelos seus amigos, que é fonte de derisão dos
seus inimigos e que é uma presa de toda e qualquer nação
que tenha interesse em especular com base nas suas assembleias
vacilantes e nos seus negócios em dificuldades.
O efeito interno de uma política mutável é ainda mais
calarnito o. Envenena as bênçãos da própria liberdade. Pouco
valerá ao povo que as lei sejam feitas por homens que ele
próprio escolhe, se as leis forem tão volumosas que não possam
ser lidas, ou tão incoerentes que não possam ser compreendidas.
Se forem revogadas ou revistas antes de serem promulgadas,
ou sofrerem alterações tão incessantes que nenhum homem,

[557]
que sabe o que é hoje lei, pode adivinhar o que será lei amanhã.
A lei é definida como sendo uma regra de acção. Mas como
pode ser uma regra o que é pouco conhecido e ainda menos
determinado?
Um outro efeito da instabilidade pública é a vantagem
pouco razoável que dá aos perspicazes, aos empreendedores
e à minoria endinheirada, sobre a industriosa e mal informada
massa do povo. Toda a nova regulamentação respeitante ao
comércio ou ao rendimento, ou afectando de uma maneira
qualquer o valor das diferentes espécies de propriedade,
proporciona uma nova colheita aos que espreitam a mudança
e podem antever as suas consequências: uma colheita não
cultivada por eles mas pelos trabalhos e cuidados do grande
corpo dos seus concidadãos. Este é um estado de coisas em
que pode ser dito com alguma verdade que as leis são feitas
para a minoria e não para a maioria.
Há um outro ponto de vista no qual resulta um grande
dano de um governo instável. A falta de confiança nos conse-
lhos públicos desanima todos os empreendimentos úteis cujo
sucesso e lucro possam depender da duração dos preparativos
existentes. Qual o comerciante prudente que arriscará a sua
sorte em qualquer ramo novo de comércio, quando não sabe
se os seus planos podem ser tornados ilegais antes de poderem
ser executados? Qual o lavrador ou industrial que se exporá
ao encorajamento dado a uma qualquer cultura ou a um qual-
quer estabelecimento, quando não pode ter a garantia de que
os seus esforços e investimentos preparatórios não o converte-
rão numa vítima de um governo inconstante? Numa palavra,
nenhum grande melhoramento nem nenhum empreendi-
mento louvável pode ir por diante se exigir os auspícios de
um sistema firme de política nacional.
Mas o efeito mais deplorável de todos é essa diminuição
do afecto e da reverência que se insinua no coração do povo,
em relação a um sistema político que revela tantas marcas de
enfermidade e desaponta tantas das suas lisonjeiras esperanças.

[558]
Nenhum governo, tal como nenhum indivíduo, será respeitado
por muito tempo, sem ser verdadeiramente respeitável, nem
será verdadeiramente respeitável sem possuir uma certa porção
de ordem e de estabilidade.
PUBLIUS

[559]
O FEDERALISTA N." 63
[62]

O Senado (continuação)

JAMES MADISON
[ALEXANDER HAMILTON]
1 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Um quinto desiderato, ilustrando a utilidade de um Senado,


é a falta de um sentimento apropriado do carácter nacional.
Sem um órgão do governo seleccionado e estável, a estima
das potências estrangeiras não só será comprometida por uma
política não esclarecida e variável, procedente das causas já
mencionadas, mas as assembleias nacionais não possuirão
aquela sensibilidade à opinião do mundo que é talvez não
menos necessária para merecer o seu respeito e confiança do
que o é para os obter.
Uma atenção à opinião das outras nações é importante
para qualquer governo por duas razões: a primeira é que,

* Do 1he Independent]oumal, 1 de Março de 1788. Este artigo foi publicado


em 4 de Março no T11e New-York Packet. Recebeu o número 61 na edição de
McLean e o número 60 nos jornais. QC).

[561]
independentemente dos méritos de qualquer plano ou medida
particulares, é desejável, sob vários aspectos, que ele se apresente
às outras nações como o resultado de uma política sensata e
honrosa; a segunda é que, em casos duvidosos, em particular
naqueles em que as assembleias nacionais possam ser pervertidas
por alguma paixão forte ou por algum interesse momentâneo,
a opinião suposta ou conhecida do mundo imparcial pode
ser o melhor guia que pode ser seguido. O que não perdeu
a América pela sua falta de carácter com as nações estrangeiras?
E quantos erros e loucuras não teria evitado, se a justiça e
correcção das suas medidas tivessem, em todos os casos, sido
previamente avaliadas pela luz a que elas provavelmente se
apresentariam à parte imparcial da humanidade?
No entanto, por mais indispensável que possa ser um
sentimento do carácter nacional, é evidente que ele nunca
pode ser suficientemente possuído por uma assembleia
numerosa e mutável. Só pode ser encontrado num número
tão pequeno que um grau sensível de louvor e censura das
medidas públicas possa ser o quinhão de cada indivíduo, ou
numa assembleia tão duradouramente investida da confiança
pública que o orgulho e importância dos seus membros possa
sensivelmente fazer corpo com a reputação e prosperidade
da comunidade. Os representantes semestrais de Rhode Island
seriam provavelmente pouco afectados nas suas deliberações
acerca das medidas iníquas desse Estado por argumentos tirados
do aspecto com que essas medidas seriam vistas pelas nações
estrangeiras, ou mesmo pelos Estados seus irmãos, ao passo
que dificilmente se pode duvidar de que, se o concurso de
uma assembleia seleccionada e estável tivesse sido necessário,
bastaria apenas uma atenção ao carácter nacional para impedir
as calamidades com as quais se debate agora esse povo mal
aconselhado.
Acrescento, como sexta imperfeição, a falta, em alguns
casos importantes, de uma devida responsabilidade do governo
para com o povo, resultando daquela frequência de eleições

[562]
que noutros casos produz essa responsabilidade. Esta observação
parecerá, talvez, não apenas nova, mas paradoxal. Deve apesar
disso ser considerada, quando explanada, como sendo tão
inegável como importante.
A responsabilidade, para ser razoável, deve ser limitada a
objectos dentro do poder da entidade responsável, e, para ser
efectiva, deve relacionar-se com o funcionamento desse poder,
acerca do qual os constituintes podem formar um juízo pronto
e correcto. Os objectos de governo podem ser divididos em
duas classes genéricas: uma dependendo das medidas que têm
por si sós uma acção imediata e perceptível; outra dependendo
de uma suce são de medidas bem escolhidas e bem coordena-
das, que têm uma acção gradual e talvez inobservada. A impor-
tância das últimas para o bem-estar colectivo e permanente
de cada pais não precisa de justificação. E, no entanto, é evi-
dente que uma assembleia eleita para um período tão curto
que seja incapaz de providenciar mais de um ou dois elos no
encadeamento das medidas, das quais pode depender essencial-
mente o bem-estar geral, não deveria ser responsável pelo
resultado final mais do que um administrador ou rendeiro,
contratado por um ano, poderia com ju tiça ser considerado
responsável por lugares ou melhoramentos que não poderiam
ser realizados em menos de meia dúzia de anos. Nem tão
pouco é possível ao povo avaliar a parte de influência que as
suas assembleias anuais possam respectivamente ter em acon-
tecimentos resultante das actividades combinadas de vários
anos. É suficientemente difícil, de qualquer maneira, preservar
uma responsabilidade pessoal nos membros de uma assembleia
numerosa, por actos da assembleia tais que tenham uma acção
imediata, distinta e palpável sobre os seus constituintes.
O remédio apropriado para e ta imperfeição deverá ser a
instituição de uma assembleia adicional no departamento
legislativo, que, tendo permanência suficiente para ditar provi-
dências para matérias tais que requerem uma atenção conti-
nuada e um encadeamento de medidas, po a ser justa e

[563]
eficazmente responsabilizada pela realização de tais objec-
tivos .
Até aqui considerei as circunstâncias que apontam para a
necessidade de um Senado bem concebido, apenas na medida
em que se relacionam com os representantes do povo. Para
um povo tão escassamente iludido pelo preconceito ou
corrompido pela lisonja como aquele a quem me dirijo, não
terei escrúpulos em acrescentar que uma instituição como
essa pode por vezes ser necessária como uma defesa do povo
contra os seus próprios erros e ilusões temporários. Tal como
o frio e deliberado sentido da comunidade deveria prevalecer
em última instância, e efectivamente prevalece em todos os
governos livres, sobre os pontos de vista dos seus governantes,
também existem momentos particulares nos assuntos públicos
em que o povo, estimulado por alguma paixão irregular, ou
alguma vantagem ilícita, ou desencaminhado pelas artificiosas
deturpações de homens interesseiros, pode exigir medidas
que eles próprios, mais tarde, serão os mais céleres a lamentar
e a condenar. Nesses momentos críticos, como será salutar a
interferência de uma comedida e respeitável assembleia de
cidadãos, com o intuito de suspender o curso desencaminhado
e suster o golpe meditado pelo povo contra si mesmo, até
que a razão, a justiça e a verdade possam recuperar a sua auto-
ridade sobre o espírito público! Quanta amarga angústia
não teria frequentemente evitado o povo de Atenas se o seu
governo tivesse incluído urna salvaguarda tão previdente contra
a tirania das suas próprias paixões! A liberdade popular poderia
então ter escapado à indelével censura de decretar, para os
mesmos cidadãos, a cicuta num dia e estátuas no seguinte.
Pode ser sugerido que um povo disseminado por uma
extensa região não pode, do mesmo modo que os habitantes
de um pequeno distrito, estar sujeito à infecção de paixões
violentas, ou ao perigo de entrar numa maquinação para a
prossecução de medidas injustas. Estou longe de negar que
esta é urna distinção de particular importância. Pelo contrário,

[564]
esforcei-me num artigo anterior por mostrar que essa é uma
das principais recomendações de uma república confederada1.
Ao mesmo tempo, esta vantagem não deveria ser considerada
como tornando inútil o uso de precauções auxiliares. Pode
até ser observado que a própria situação de extensão que
isentará o povo da América de alguns dos perigos que incidem
sobre repúblicas menores o exporá ao inconveniente de per-
manecer por mais tempo sob a influência dessas deturpações
do que a diligência combinada de homens interesseiros pode
conseguir espalhar no meio dele.
Acrescenta não pouco peso a todas estas considerações
relembrar que a história não nos dá conhecimento de uma
república com uma longa vida que não tivesse um Senado.
Esparta, Roma e Cartago são, de facto, os únicos Estados aos
quais se pode aplicar essa característica. Em cada um dos dois
primeiros existia um Senado vitalício. A constituição do
Senado no último é menos conhecida. As provas indirectas
tornam provável que, neste aspecto, não fosse diferente dos
outros dois. É pelo menos certo que tinha alguma qualidade
que o tornava uma âncora contra as flutuações populares; e
que um conselho mais pequeno, extraído do Senado, não só
era nomeado vitaliciamente mas preenchia as suas próprias
vagas. Estes exemplos, embora tão inadequados para imitação,
como repugnantes para o carácter da América, são, apesar
disso, quando comparados com a existência fugidia e turbulenta
de outras repúblicas antigas, demonstrações muito instrutivas
da necessidade de alguma instituição que misture a estabilidade
com a liberdade. Não ignoro as circunstâncias que distinguem
a América dos outros governos populares, tanto antigos como
modernos, e que tornam necessária uma extrema circuns-
pecção ao estender o raciocínio de um caso para o outro. Mas
depois de dar o devido peso a esta consideração pode ainda
sustentar-se que existem muitos pontos de similitude que

I Ver artigo 10. QC).

[565]
tornam estes exemplos não indignos da nossa atenção. Como
vimos, muitas das imperfeições que só podem ser corrigidas
por uma instituição senatorial são comuns a uma assembleia
numerosa eleita frequentemente pelo povo e ao próprio povo.
Há outras imperfeições peculiares das primeiras que requerem
o controlo de urna instituição desse tipo. O povo nunca pode
trair propositadamente os seus próprios interesses, mas é
possível que estes sejam traídos pelos representantes do povo.
E o risco será evidentemente maior nos casos em que toda a
confiança legislativa é depositada nas mãos de uma assembleia
de homens do que o é nos casos em que é exigida a cooperação
de assembleias independentes e dissemelhantes em todos os
actos públicos.
A diferença em que mais se confia, entre a república ame-
ricana e as outras, consiste no princípio da representação, que
é o eixo em que se move a primeira e que se supõe ter sido
desconhecido das últimas, ou pelo menos da parte antiga
delas. O uso que foi feito desta diferença, em argumentos
contidos nos artigos precedentes, terá mostrado que não estou
predisposto para negar a sua existência nem para subavaliar a
sua importância 2 • Portanto, sinto-me menos coibido para
observar que a posição respeitante à ignorância dos governos
antigos em matéria de representação de modo algum é pre-
cisamente verdadeira com a latitude que normalmente lhe é
dada. Sem entrar numa investigação que ficaria deslocada aqui,
referirei alguns factos conhecidos em apoio do que afirmo.
Nas democracias mais puras da Grécia, muitas das funções
executivas eram executadas, não pelo próprio povo, mas por
funcionários eleitos pelo povo e representando o povo na sua
capacidade executiva.
Antes da reforma de Sólon, Atenas era governada por nove
arcontes, anualmente eleitos pela totalidade do povo. O grau de
poder neles delegado parece nunca ter sido bem esclarecido.

2 Ver artigo 14. QC).

[566]
Subsequentemente a esse período, encontramos uma assem-
bleia, primeiro de quatrocentos, e mais tarde de seiscentos
membros, anualmente eleita pelo povo, e representando-o
parcialmente na sua capacidade legislativa, dado que não só estava
associada ao povo na função de fazer leis, mas tinha o direito
exclusivo de apresentar propostas legislativas ao povo. O Senado
de Cartago, também, independentemente de qual pudesse
ter sido o seu poder ou a duração do seu mandato, parece ter
sido electivo por meio dos sufrágios do povo. Exemplos seme-
lhantes podem ser mostrados na maior parte, se não em todos,
os governos populares da antiguidade.
Por fim, encontramos os éforos em Esparta, e em Roma
os tribunos - duas assembleias, na verdade pequenas em número,
mas elei as anualmente por todo o povo, e consideradas como
representantes do povo, quase na sua capacidade plenipotenciária.
Os cosmes de Creta eram também eleitos anualmente pelo povo,
e têm sido considerados por alguns autores como uma institui-
ção análoga às de Esparta e Roma, tendo apenas esta diferença:
que na eleição dessa assembleia representativa o direito de
sufrágio era comunicado a apenas uma parte do povo.
A partir destes factos, aos quais poderiam ser acrescentados
muitos outros, é claro que o princípio de representação não
era desconhecido dos antigos nem totalmente ignorado nas
suas Constituições politicas. A verdadeira distinção entre estes
e os governos americanos reside na total exclusão do povo, na
sua capacidade colectiva, de qualquer participação nos últimos, e
não na total exclusão dos representantes do povo da administração
dos primeiros. Deve admitir-se que a distinção, assim qualificada,
dá uma superioridade muito vantajosa aos Estados Unidos.
Mas para garantir a essa vantagem o seu pleno efeito temos
de ser cuidadosos em não a separar da outra vantagem, a de
um território vasto. Porque não se pode acreditar que qualquer
forma de governo representativo pudesse ter tido sucesso
dentro dos estreitos limites ocupados pelas democracias da
Grécia.

[567]
Em resposta a estes argumentos, sugeridos pela razão,
ilustrados por exemplos e reforçados pela nossa própria expe-
riência, o adversário desconfiado da Constituição contentar-
-se-á provavelmente com repetir que um Senado não nomeado
directamente pelo povo, e com um mandato de seis anos,
deve adquirir gradualmente uma perigosa preeminência no
governo, e por fim transformá-lo numa aristocracia tirânica3.
A esta resposta geral deve ser suficiente a réplica geral de
que a liberdade pode ser tão posta em perigo pelos abusos de
liberdade como pelos abusos de poder, de que há inúmeros
exemplos dos primeiros bem como dos últimos e de que os
primeiros, mais do que os últimos, são aparentemente mais
temidos pelos Estados Unidos. Mas pode dar-se uma resposta
mais particular.
É preciso observar que antes que possa ser efectuada uma
tal revolução, o Senado tem primeiro de se corromper a si
mesmo; depois tem de corromper as legislaturas dos Estados;
em seguida tem de corromper a Câmara dos Representantes;
e por fim tem de corromper o povo em geral. É evidente que
o Senado tem primeiro de ser corrompido antes que possa
tentar o estabelecimento de uma tirania. Sem corromper as
legislaturas dos Estados, não pode prosseguir a tentativa, porque
a mudança periódica de membros regeneraria então a totalidade
da assembleia. Sem empregar os meios de corrupção com
igual sucesso sobre a Câmara dos Representantes, a oposição
desse ramo co-igual do governo derrotaria inevitavelmente
a tentativa; e sem corromper o próprio povo, uma sucessão
de novos representantes rapidamente reverteria todas as coisas
à sua ordem primitiva. Há algum homem que possa seriamente
persuadir-se de que o Senado proposto pode, por quaisquer

3 O art. 0 1, secção III, cláusula 1, que garantia às legislaturas estaduais a


eleições dos dois senadores a que cada Estado tem direito foi revogado pelo
17. o Aditamento, que transferiu esse poder para a eleição directa pelo povo.
Esse aditamento foi ratificado em 8 de Abril de 1913. (E. P.).

[568]
meios possíveis ao alcance do engenho humano, alcançar o
objectivo de uma ambição sem lei , apesar de todas estas
obstruções?
Se a razão condena a suspeita, a mesma sentença é proferida
pela experiência. A Constituição de Maryland fornec e o
exemplo mais apropriado. O Senado desse Estado é eleito,
tal como o será o Senado federal, indirectamente pelo povo,
e para um mandato apenas um ano mais curto do que o do
Senado federal. Distingue-se, também, pela notável prerrogativa
de preencher as suas próprias vagas durante o período do seu
mandato, e, ao mesmo tempo, não está sob o controlo de
qualquer rotação como a que é prevista para o Senado federal.
Há outras distinções menos importantes, que exporiam o
primeiro a objecções plausíveis que não se perfilam contra o
último. Portanto, se o Senado federal contivesse realmente o
perigo que foi proclamado tão ruidosamente, pelo menos
alguns sintomas de um perigo idêntico deveriam já ter sido
revelados pelo Senado de Maryland. Mas tais sintomas não
se manifestaram. Pelo contrário, as suspeitas inicialmente
alimentadas por homens do mesmo tipo dos que vêem com
terror a parte correspondente da Constituição federal, foram-
se extinguindo gradualmente pelo progresso da experiência.
E a Constituição de Maryland está a colher diariamente, do
funcionamento salutar desta sua parte, uma reputação em que
provavelmente não terá rival em nenhum Estado da União.
Porém, se alguma coisa pudesse silenciar os ressentimentos
nesta matéria, deveria ser o exemplo britânico. Aí, o Senado,
em lugar de ser eleito por um período de seis anos, e de não
estar confinado a famílias ou fortunas particulares, é uma
assembleia hereditária de nobres opulentos. A Câmara dos
Representantes, em lugar de ser eleita por dois anos, e pela
totalidade do povo, é eleita por sete anos, e, em grande medida,
por uma porção muito pequena do povo. Aí, inquestiona-
velmente, deveriam ver-se em plena luz as usurpações aris-
tocráticas e a tirania que serão, nalgum momento futuro ,

[569]
exemplificadas pelos Estado Unidos. Infelizmente, todavia,
para o argumento antifederalista, a história britânica informa-
-nos que esta assembleia hereditária não foi sequer capaz de
se defender das contínuas usurpações da Câmara dos Represen-
tantes e que, assim que perdeu o apoio do monarca, foi
efectivamente esmagada pelo peso do ramo popular.
Na medida em que a antiguidade nos pode instruir nesta
matéria, os seus exemplos apoiam o raciocínio que empregá-
mos. Em Esparta, os éforos, os representantes anuais do povo,
levaram a melhor sobre um Senado vitalício, sobrepujaram
gradualmente a autoridade deste, e por fim reuniram todo o
poder nas suas próprias mãos. Os tribunos de Roma, que
eram representantes do povo, prevaleceram, como é bem
sabido, em quase todos os diferendos com o Senado vitalício,
e por fim conseguiram o mais completo triunfo sobre ele.
O facto é ainda mais notável dado que era exigida a unanimi-
dade em todas as decisões dos tribunos mesmo quando o seu
número foi aumentado para dez. Ele demonstra a força irre-
sistível possuída por esse ramo de um governo livre, que tem
o povo do seu lado. A estes exemplos poderia acrescentar-se
o de Cartago, cujo Senado, egundo o testemunho de Políbio,
em lugar de atrair todo o poder para o seu vórtice, tinha, no
início da segunda guerra púnica, perdido a quase totalidade
do seu poder original.
Além da evidência conclusiva que resulta desta colecção
de factos- que o Senado federal nunca será capaz de se trans-
formar, por usurpações graduais, numa assembleia indepen-
dente e aristocrática - estamos autorizados a acreditar que se
uma tal revolução alguma vez viesse a acontecer por causas
contra as quais a previsão humana nunca pode proteger-se, a
Câmara dos Representante , com o povo do seu lado, seria
sempre capaz de trazer a Constituição de volta à sua forma e
aos seus princípios primitivos. Contra a força dos representantes
directos do povo, nada será capaz de se manter, nem sequer
a autoridade constitucional do Senado, se não for urna demons-

[570]
tração de política esclarecida e afeição pelo bem público tal
que dividirá com esse ramo da legislatura a afeição e o apoio
da própria totalidade do povo.
PUBLIUS

[571]
O FEDERALISTA N. 64 0

[63]

Os Poderes do Senado

JOHNJAY
5 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

É uma ob ervação justa e que não é nova a de que os


inimigos de pessoas particulares e opositores de medida
particulares raramente limitam as suas censuras apenas a essas
coisas que, em qualquer dos casos, são dignas de censura. Se
não for com base neste princípio é dificil explicar os motivos
da conduta dos que condenam globalmente a Constituição
proposta e tratam com severidade alguns dos menos criticáveis
artigos dela.
A segunda secção confere poderes ao Presidente, "mediante
parecer e aprovação do Senado, para celebrar tratados, desde que dois
terços dos senadores presentes concordem".

* Do T7te htdependentj ournal, 5 de Março de 1788. Este artigo foi publicado


em 7 de Março no The New- York Packet. Recebeu o número 64 na edição de
McLean e o número 63 nos jornais. QC).

[573]
O poder de celebrar tratados é um poder importante, em
especial no que se refere à guerra, à paz e ao comércio; e não
deveria ser delegado senão de um modo tal, e com tais
precauções, que desse a maior garantia de que será exercido
pelos homens mais qualificados para esse fim, e da maneira
que melhor conduz ao bem público. A Convenção parece
ter estado atenta a ambos os pontos: obrigou que o Presidente
fosse escolhido por a sembleias seleccionadas de eleitores,
delegadas pelo povo para esse fim expresso e entregou a
nomeação de senadores às Legislaturas dos Estados. Este modo
tem, em tais casos, largamente a vantagem da eleição pelo
povo na sua capacidade colectiva, quando a actividade do zelo
partidário, aproveitando-se da indolência, da ignorância e das
expectativas e receios dos negligentes e interesseiros, frequen-
temente põe homens nos cargos através dos votos de uma
pequena proporção de eleitores.
Como as assembleias seleccionadas para escolher o Presi-
dente, tal como as Legislaturas dos Estados que nomeiam os
senadores, serão geralmente compostas dos cidadãos mais
esclarecidos e respeitáveis, há razões para presumir que a ua
atenção e os seus votos serão dirigidos apenas para aqueles
homens que mais se distinguiram pelas suas capacidades e
virtude, e em relação aos quais o povo vê fundamentos justos
de confiança. A Constituição manifesta uma atenção muito
particular a esta matéria. Excluindo homens com menos de
trinta e cinco anos do primeiro cargo, e os com menos de
trinta do segundo, confina os eleitores a homens em relação
aos quais o povo teve tempo de formar um juízo, e com res-
peito ao quais não estará sujeito a ser decepcionado por essas
brilhantes aparências de carácter e patriotismo que, como
meteoros passageiros, por veze enganam tanto quanto de lum-
bram. Se for uma observação bem fundada que os reis sábios
serão sempre servidos por ministros capazes, é razoável defender
que assim como uma assembleia de eleitores seleccionados
possui, num grau maior do que os reis, os meios de informação

[574]
vasta e precisa relativa aos homens e ao seu carácter, também
as suas nomeações terão pelo menos iguais características de
discrição e discernimento. A inferência que naturalmente
resulta destas considerações é esta: que o Presidente e os
senadores assim escolhidos farão sempre parte do número
daqueles que melhor compreendem os nossos interesses
nacionais, quer considerados em relação com os diversos
Estados quer com as nações estrangeiras, que serão os mais
capazes de promover esses interesses, e cuja reputação de inte-
gridade inspira e merece confiança. Em homens assim, o
poder de celebrar tratados pode ser depositado em segurança.
Apesar da absoluta necessidade do sistema na condução
de qualquer assunto ser universalmente conhecida e aceite, a
grande importância dele nos negócio nacionais ainda não
impregnou suficientemente o espírito do público. Aqueles
que desejam entregar o poder que estamo a considerar a urna
assembleia popular, composta por membros que vão e vêm
constantemente em rápida sucessão, parecem não se lembrar
que uma assembleia assim tem necessariamente de ser
inadequada para alcançar esses grandes objectivos que exigem
ser firmemente contemplados em todas as suas relações e
circunstâncias, e que só podem ser abordados e realizados
através de medidas para concertar e executar, para as quais
são necessários não apenas os talentos, mas também urna infor-
mação correcta, e frequentemente muito tempo. Foi sensato,
portanto, da parte da Convenção providenciar não só que o
poder de celebrar tratados deva ser entregue a homens capa-
zes e honestos mas também que eles devam permanecer nos
cargos o tempo suficiente para ficarem perfeitamente familia-
rizados com as nossas preocupações nacionais, e terem formado
e introduzido um sistema para a sua administração. A duração
prescrita é tal que lhes dará urna oportunidade de alargar gran-
demente a sua informação política, e de tornar a sua experiên-
cia política acumulada cada vez mais benéfica para o seu país.
Nem tão-pouco a Convenção demonstrou menos prudência

[575]
ao providenciar para eleições frequentes de senadores de
maneira a obviar ao inconveniente de transferir periodicamente
esses grandes assuntos para homens inteiramente novos, porque
ao deixar um considerável resíduo dos antigos nos seus cargos,
serão preservadas a uniformidade e a ordem, bem como uma
sucessão constante de informação oficial.
Poucos são aqueles que não admitirão que os negócios
do comércio e da navegação devam ser regulamentados por
um sistema cautelosamente formado e perseverantemente
realizado; e tanto os nossos tratados como as nossas leis
deveriam corresponder a eles e ser feitos de modo a promo-
vê-los. É muito importante que essa correspondência e
conformidade sejam cuidadosamente mantidas. E os que
concordam com a verdade desta posição verão e confessarão
que se providenciou correctamente para isso ao tornar neces-
sária a cooperação do Senado tanto para os tratados como
para as leis.
Raramente acontece na negociação dos tratados, seja qual
for a sua natureza, que não sejam por vezes exigidos perfeito
sigilo e imediato despacho. Há casos em que se podem obter
as mais úteis informações, se as pessoas que as detêm puderem
ser libertadas dos receios de serem descobertas. Esses receios
influirão nessas pessoas quer elas sejam movidas por motivos
mercenários quer por motivos amigáveis. E existem sem
dúvida muitas pessoas de ambos os tipos, que confiariam no
sigilo do Presidente, mas não confiariam no do Senado, e
ainda menos no de uma assembleia popular mais alargada.
A Convenção fez bem, portanto, ao dispor do poder de cele-
brar tratados de tal maneira que o Presidente deva, ao fazê-
-lo, agir com o conselho e o consentimento do Senado, não
obstante esteja em posição de orientar as actividades de
informação da maneira que a prudência possa sugerir.
Os que voltaram a sua atenção para os assuntos dos homens
devem ter percebido que estes sobem e descem como as marés.
Marés muito irregulares na sua duração, força e direcção, e

[576]
raramente se desenrolando exactamente da mesma maneira
ou medida. Discernir e aproveitar essas marés nos assuntos
nacionais é a tarefa dos que a eles presidem. E os que tiveram
muita experiência nestes casos informam-nos de que é
frequente haver ocasiões em que os dias, ou melhor, em que
as horas, até, são preciosos. A perda de uma batalha, a morte
de um príncipe, o afastamento de um ministro, ou outras
circunstâncias que intervêm para mudar a situação e o aspecto
presente dos assuntos, podem virar a maré mais favorável para
um curso oposto aos nossos desejos. Tal como no campo de
batalha também no gabinete existem momentos para serem
aproveitados quando acontecem, e deve deixar-se aos que
presidem a um ou ao outro a capacidade de se aproveitarem
deles. Tão frequente e tão essencialmente sofremos até ao
presente da falta de sigilo e despacho que a Constituição teria
sido indesculpavelmente imperfeita se não tivesse sido dada
atenção a estes aspectos. Os assuntos em que as negociações
normalmente requerem mais sigilo e mais despacho são as
medidas preparatórias e auxiliares, que só são importantes de
um ponto de vista nacional na medida em que tendem a
facilitar a consecução dos objectivos da negociação. Para esses,
o presidente não terá dificuldade em providenciar e, se vier
a ocorrer alguma circunstância que exija o conselho e o con-
sentimento do Senado, ele pode a todo o momento convo-
cá-lo. Deste modo vemos que a Constituição providencia
para que as nossas negociações dos tratados devem ter todas
as vantagens que podem derivar dos talentos, da informação,
da integridade e de investigações cuidadosamente ponderadas,
por um lado, e do sigilo e despacho, por outro.
Mas a este plano, como à maior parte dos outros que
alguma vez apareceram, f01jam-se e alegam-se objecções.
Uns estão aborrecidos com ele, não por causa de quaisquer
erros ou imperfeições que contenha, mas porque, dado que
os tratados, quando celebrados, têm força de lei, só deveriam
ser celebrados por homens investidos de autoridade legislativa.

[577]
Esses senhores parecem não considerar que as sentenças dos
nossos tribunais e as comissões constitucionalmente empossa-
das pelo nosso governador são tão válidas e obrigatórias para
todas as pessoas a quem dizem respeito como as leis aprovadas
pela nossa legislatura. Todos os actos constitucionais de poder,
quer no departamento executivo quer no judicial, têm tanta
validade legal e obrigatoriedade como se proviessem da
legislatura. E, portanto, seja qual for o nome que seja dado
ao poder de celebrar tratados, ou por mais obrigatórios que
possam ser quando celebrados, é certo que o povo pode, com
toda a correcção, entregar esse poder a uma assembleia distinta
da legislatura, do executivo ou do judicial. Certamente que
não se segue que, porque deu o poder de fazer leis à legislatura,
deva consequentemente dar-lhes igualmente o poder de
praticar todos os outros actos de soberania pelos quais os cida-
dãos são obrigados e afectados.
Outros, embora satisfeitos com o facto de os tratados deve-
rem ser celebrados da maneira proposta, são adversos a eles
serem a suprema lei da nação. Insistem, e afirmam acreditar,
que os tratados, enquanto leis da assembleia, deveriam ser
revogáveis à vontade. Esta ideia parece ser nova e peculiar a
este país, mas os novos erros, tal como as novas verdades, apa-
recem com frequência. Esses senhores fariam bem em reflectir
que um tratado é apenas outro nome para um contrato, e que
seria impossível encontrar uma nação que fizesse algum
contrato connosco tal que seria absolutamente vinculativo para
ela, mas para nós apenas o seria durante o tempo e na medida
em que achássemos bem estar obrigados por ele. Os que fazem
leis podem, sem dúvida, emendá-las ou revogá-las, e não se
discutirá que os que fazem tratados possam alterá-los ou anulá-
-los. Mas ainda assim não esqueçamos que os tratados são
celebrados, não por apenas uma das partes contratantes, mas
por ambas e, consequentemente, que, como o consentimento
de ambas foi essencial para a sua formação, assim deve ser
sempre depois para os alterar ou anular. A Constituição pro-

[578]
posta, por consequência, em nada alargou a obrigatoriedade
dos tratados. Eles são precisamente tão obrigatórios, e estão
precisamente tão para lá do alcance legal dos actos legislativos
agora, como serão ou estarão em qualquer momento futuro,
ou sob qualquer forma de governo.
Por mais útil que a suspeita possa ser nas repúblicas, apesar
disso, quando, tal como a bílis no corpo natural, ela abunda
demasiado no corpo político, os olhos de ambos tornam-se
muito sujeitos a ser enganados pelas aparências ilusórias que
a doença lança sobre os objectos circundantes. Desta causa,
provavelmente, provêm os temores e receios de alguns de que
o Presidente e o Senado celebrem tratados sem considerarem
equitativamente os interesses de todos os Estados. Outros
suspeitam que dois terços oprimirão o terço restante e per-
guntam se esses senhores serão suficientemente responsabiliza-
dos pela sua conduta, se, no caso de agirem com corrupção,
podem ser punidos e, se celebrarem tratados desvantajosos,
como é que nos vamos livrar desses tratados.
Como todos os Estados estão representados em pé de
igualdade no Senado, e pelos homens mais capazes e mais
desejosos de promover os interesses dos seus constituintes,
estes terão todos um grau de influência igual nessa assembleia,
em especial enquanto continuarem a ser cuidadosos na
nomeação de pessoas dignas, e a insistir na sua pontual com-
parência. À medida que os Estados Unidos assumirem uma
forma e um carácter m.cionais, assim também o bem do todo
será cada vez mais objecto de atenção, e o governo terá na
verdade de ser fraco se esquecer que o bem do todo só pode
ser promovido pelo progresso do bem de cada uma das partes
ou membros que compõem o todo. Não estará no poder do
Presidente e do Senado celebrar quaisquer tratados pelos quais
eles e as suas famílias e propriedades não fiquem tão obrigados
e afectados como o resto da comunidade; e, não tendo inte-
resses privados distintos dos interesses da nação, não terão
tentações de negligenciar estes últimos.

[579]
Quanto à corrupção, esse caso não pode supor-se, e aquele
que achar provável que o Presidente e dois terços do Senado
sejam alguma vez capazes de conduta tão indigna terá de ter
sido muito desafortunado na sua relação com o mundo ou
terá de possuir um coração muito susceptível a tais impressões.
A ideia é demasiado grosseira e demasiado odiosa para ser
considerada. Mas num caso desses, se alguma vez acontecer,
o tratado assim assinado por nós seria, como todos os outros
contratos fraudulentos, nulo e vazio pela lei das nações.
Com respeito à responsabilidade do Presidente e dos
senadores, é dificil conceber como poderia ela ser aumentada.
Qualquer consideração que possa influenciar o espírito
humano, tal como a honra, juramentos, reputações, cons-
ciência, o amor da pátria e os afectos familiares dão garantias
da sua fidelidade. Em suma, como a Constituição tomou o
maior cuidado para que eles devam ser homens de talento e
integridade, temos razões para ficar persuadidos de que os
tratados que celebrem serão tão vantajosos quanto, consideradas
todas as circunstâncias, o poderiam ser. E na medida em que
o receio de punição e desonra podem funcionar, esse motivo
de bom comportamento é amplamente proporcionado pelo
artigo acerca dos crimes de responsabilidade 1.
PUBLIUS

1 Traduzimos impeachment por 'crime de responsabilidade'. (E . P.).

[580]
O FEDERALISTA N. • 65
[64]

Os Poderes do Senado (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
7 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Os restantes poderes que o plano da Convenção atribui


ao Senado, numa distinta capacidade, estão compreendidos
na sua participação, juntamente com o Executivo, na nomeação
para cargos, e no seu carácter judicial como tribunal para
julgar crimes de responsabilidade. Como na questão das
nomeações o Executivo será o principal agente, as disposições
relativas a elas serão mais apropriadamente discutidas ao exa-
minarmos esse departamento 1• Por conseguinte, concluire-
mos esta matéria com um olhar sobre o carácter judicial do
Senado.

* Do The New- York Packet, 7 de Março de 1788. Este artigo foi publicado
em 8 de Março no The Indepwdwt ] ournal. Recebeu o número 65 na edição
de McLean e o número 64 nos jornais. QC) .
I Ver artigos 67-77. QC).

[581]
Um tribunal bem constituído para julgar os crimes de
responsabilidade é um objectivo não menos desejável do que
difícil de ser obtido num governo inteiramente electivo. Os
assuntos da sua jurisdição são aqueles crimes que derivam do
mau comportamento dos homens públicos, ou, por outras
palavras, do abuso ou violação de algum dever público. São
de uma natureza que pode com particular propriedade ser
denominada POLÍTICA, dado que se relacionam principal-
mente com agravos feitos imediatamente à própria sociedade.
A acção judicial contra eles, por esta razão, raramente deixará
de agitar as paixões de toda a comunidade, e de a dividir em
partidos mais ou menos simpatizantes ou antagonistas dos
acusados. Em muitos casos ligar-se-á às facções preexistentes,
e arregimentará todas as suas animosidades, parcialidades,
influências e interesses de um lado ou do outro; e nesses casos
existirá sempre o maior perigo que a decisão venha a ser
regulada mais pela força comparativa dos partidos do que pelas
reais demonstrações de inocência ou de culpa.
A delicadeza e a magnitude de um dever que tão profun-
damente envolve a reputação política e a existência de qualquer
homem empenhado na administração dos negócios públicos
falam por si. A dificuldade de confiar acertadamente esse dever
a um governo assentando inteiramente na base de eleições perió-
dicas será prontamente entendida se considerarmos que, por
causa disso, os membros mais notáveis desse governo serão com
demasiada frequência os chefes ou instrumentos da facção mais
astuta ou mais numerosa, e que, neste aspecto, dificilmente se
pode esperar que possuam a indispensável neutralidade em rela-
ção àqueles cujo comportamento possa ser matéria de inquirição.
Parece que a Convenção pensou que o Senado era o depo-
sitário mais adequado deste importante dever. Os que melhor
são capazes de di cernir a dificuldade intrínseca da questão
serão os menos apressados a condenar essa opinião e estarão
mais inclinados a dar o devido peso aos argumentos que supos-
tamente a produziram.

[582]
Qual é, pode perguntar-se, o verdadeiro espírito da própria
instituição? Não é ela projectada como um método de
AVERIGUAÇÃO NACIONAL da conduta dos homens públicos?
Se este é o seu desígnio, quem podem ser os inquisidores da
nação mais adequadamente do que os próprios representantes
da nação? Não se discute que o poder de iniciar a averiguação,
ou, por outras palavras, de intentar a impugnação, deva estar
depositado nas mãos de um corpo legislativo. As razões que
indicam a correcção desta disposição não pugnam fortemente
por uma admissão do outro ramo desse corpo a uma partici-
pação na investigação? O modelo do qual foi copiada a ideia
desta instituição apontou esse curso à Convenção. Na Grã-
-Bretanha, intentar a impugnação é da esfera da Câmara dos
Comuns, e decidir acerca dela pertence à Câmara dos Lordes.
Diversas Constituições dos Estados seguiram o exemplo. Tanto
os últimos como a primeira parecem ter considerado a prática
da punição dos crimes de responsabilidade como um freio
nas mãos do corpo legislativo aplicado aos servidores executi-
vos do governo. Não é esta a verdadeira luz a que ela deve
ser vista?
Em que outro lugar, sem ser no Senado, poderia ter sido
encontrado um tribunal suficientemente dignificado, ou sufi-
cientemente independente? Que outra assembleia teria a
probabilidade de sentir suficiente confiança na sua própria situação,
para preservar, sem se deixar intimidar nem influenciar, a
necessária imparcialidade entre um indivíduo acusado, e os
representantes do povo, seus acusadores?
Poderia confiar-se no Supremo Tribunal como correspon-
dendo a esta descrição? É muito duvidoso que os membros
desse tribunal fossem sempre dotados de uma porção tão
eminente de força moral como a que seria precisa para a exe-
cução de tão difi.cil tarefa; e é ainda mais duvidoso que possuís-
sem o grau de crédito e autoridade que, em certas ocasiões,
poderia ser indispensável para reconciliar o povo com uma
decisão que viesse a colidir com uma acusação pronunciada

[583]
pelos seus representantes imediatos. Uma deficiência do
primeiro aspecto seria fatal para o acusado; do último, perigosa
para a tranquilidade pública. O risco inerente a estes dois
aspectos só poderia ser evitado, se é que o poderia, tornando
este tribunal mais numeroso do que aquilo que seria consistente
com uma atenção sensata à economia. A necessidade de um
tribunal numeroso para julgar os crimes de responsabilidade
é também ditada pela natureza do procedimento. Este nunca
pode ser manietado por regras tão estritas, quer na delineação
do crime pelos acusadores quer na interpretação dele pelos
juízes, como as que nos casos comuns servem para limitar o
arbítrio dos tribunais em benefício da segurança pessoal. Não
existirá júri para se interpor entre os juízes, que deverão
pronunciar a sentença legal, e a parte, que deverá recebê-la
ou sofrê-la. O terrível arbítrio, que um tribunal para os crimes
de responsabilidade tem necessariamente de possuir, para
decidir da honra ou da infunia das pessoas de maior confiança
e maior distinção da comunidade, proíbe a entrega dessa
responsabilidade a um pequeno número de pessoas.
Estas considerações parecem ser suficientes, só por si, para
autorizar a conclusão de que o Supremo Tribunal seria um
substituto impróprio do Senado como tribunal para julgar
crimes de responsabilidade. Resta uma última consideração,
que não pouco reforçará esta conclusão. É esta: a punição que
pode ser consequência da condenação por crime de responsa-
bilidade não esgota o castigo do condenado. Depois de ter
sido sentenciado a um ostracismo perpétuo em relação à
estima e confiança, e às honras e emolumentos do seu país,
ainda poderá ser sujeito a acusação e punição nos termos
ordinários da lei. Seria correcto que as pessoas que destruíram
a sua fama, e os seus direitos mais valiosos como cidadão num
julgamento, pudessem, noutro julgamento, pelo mesmo crime,
ter também nas suas mãos a vida e o destino dele? Não haveria
a maior das razões para temer que o erro, na primeira sentença,
seria progenitor do erro na segunda sentença? Que a forte

[584]
parcialidade de uma decisão seria capaz de ter mais força do
que a influência de quaisquer novos dados que pudessem ser
apresentados para alterar o teor de outra decisão? Os que
conhecem alguma coisa da natureza humana não hesitarão
em responder a estas perguntas pela afirmativa. E não lhes
custará compreender que, fazendo das mesmas pessoas juízes
em ambos os casos, os que fossem objecto de acusação seriam,
em grande medida, privados da dupla segurança que é intenção
de um duplo julgamento. A perda da vida e da propriedade
estaria muitas vezes virtualmente incluídas numa sentença
que, nos seus termos, importava apenas na destituição de um
cargo presente e na desqualificação para um cargo futuro.
Pode dizer-se que a intervenção de um júri, no segundo caso,
obviaria ao perigo. Mas os júris são frequentemente influencia-
dos pela opinião dos juízes. São por vezes induzidos a pronun-
ciar veredictos especiais que entregam a questão principal à
decisão do tribunal. Quem estaria disposto a apostar a sua
vida e a sua propriedade no veredicto de um júri agindo sob
os auspícios de juízes que tinham predeterminado a sua culpa?
Teria sido um aperfeiçoamento ao plano ter unido o
Supremo Tribunal com o Senado na formação do tribunal
de impugnação? Esta união teria sido certamente acompanhada
de diversas vantagens . Mas não teriam estas sido excedidas
pela assinalada desvantagem, já apresentada, resultante da
actuação dos mesmos juízes na dupla acusação a que o crimi-
noso estaria sujeito? Até certo ponto, os beneficias dessa união
serão obtidos pela designação do presidente do Supremo
Tribunal2 para presidente do tribunal para crimes de responsa-
bilidade, tal como é proposto que se faça no plano da Con-
venção, ao passo que os inconvenientes de uma completa
incorporação do primeiro no último seria substancialmente
evitada. Este era talvez o prudente termo médio. Abstenho-
-me de observações acerca do pretexto adicional de clamor

2 C hiefj ustice, no origi nal. (E. P.).

[585]
contra o sistema judicial que um aumento tão considerável
da sua autoridade teria proporcionado 3 .
Teria sido desejável ter formado o tribunal para julgar os
crimes de responsabilidade com pessoas totalmente distintas
dos outros departamentos do governo? Há argumentos de
peso tanto contra como a favor desse plano. Para alguns espí-
ritos isto não aparecerá como uma objecção trivial, que poderia
tender para aumentar a complexidade da máquina política, e
para dar ao governo um novo ramo cuja utilidade seria no
mínimo questionável. Mas uma objecção que ninguém
considerará indigna de atenção é a seguinte: um tribunal
constituído segundo esse plano, ou seria acompanhado de
uma grande despesa ou poderia na prática ser sujeito a uma
variedade de acidentes e inconvenientes. Ele tem de ser
composto por funcionários permanentes, colocados na sede
do governo, e evidentemente com direito a estipêndios fixos
e regulares, ou por certos funcionários dos governos dos
Estados, a serem chamados sempre que uma impugnação
estivesse efectivamente pendente. Não será facil imaginar uma
terceira maneira essencialmente diferente que pudesse racio-
nalmente ser proposta. Como o tribunal, por razões já apre-
sentadas, teria de ser numeroso, o primeiro esquema seria
reprovado por todos os homens que possam comparar a
extensão das necessidades públicas com os meios de as satisfazer.
O segundo seria adoptado com precaução por aqueles que
considerassem seriamente: a dificuldade de reunir homens
dispersos por toda a União; os prejuízos para os inocentes do
protelar da decisão acerca das acusações que poderiam ser-
-lhes feitas; a vantagem para os culpados resultantes das oportu-

3 Só dois presidentes passaram por todo o longo processo por crimes de


responsabilidade, até ao julgamento final pelo Senado sob presidência do
Presidente do Supremo Tribunal: Andrew Johnson (1868) e Bill Clinton (1998-
-1999) . Ambos foram ilibados. A demissão de Richard Nixon, em 1974, impe-
diu que as etapas constitucionais do impeachment se consumassem na totalidade.
(E . P.).

(586]
nidades que o adiamento daria à intriga e à corrupção; e em
alguns casos o detrimento para o Estado resultante da inacção
prolongada de homens que a firme e fiel execução do seu
dever pudesse ter exposto à perseguição de uma maioria
imoderada ou intrigante na Câmara dos Representantes.
Embora esta última suposição possa parecer chocante, e não
seja provável que se verifique com frequência, não deve
contudo ser esquecido que o demónio da facção estenderá,
em certas ocasiões, o seu ceptro sobre todos os corpos nume-
rosos de homens.
Mas mesmo que um ou outro dos substitutos que exa-
minei, ou qualquer outro que possa ser imaginado, devesse
ser considerado preferível a este aspecto do plano apresentado
pela Convenção, não se seguirá que a Constituição deva ser
rejeitada por esta razão. Se a humanidade viesse a resolver não
concordar com nenhuma instituição de governo até que cada
parte dele tivesse sido ajustada ao critério mais exacto de
perfeição, a sociedade depressa se converteria num palco de
anarquia geral, e o mundo num deserto. Onde se encontra o
critério de perfeição a adoptar? Quem empreenderá a unifica-
ção das opiniões discordantes de toda uma comunidade, no
mesmo juízo sobre ela? E quem persuadirá um planeador
presumido a renunciar ao seu critério infalível em troca do
critério falível do seu ainda mais presumido vizinho? Para res-
ponder ao propósito dos adversários da Constituição, eles
devem provar, não apenas que há disposições particulares nela
que não são o melhor que poderia ter sido imaginado, mas
que o plano no seu todo é mau e pernicioso.
PUBLIUS

[587]
O FEDERALISTA N." 66
[65]

Consideração suplementar das Objecções


ao Poder do Senado para se Constituir
como Tribunal para Crimes de Responsabilidade

ALEXANDER HAMILTON
8 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Não é improvável que um exame das principais objecções


que foram apresentadas contra o tribunal proposto para julgar
crimes de responsabilidade erradique os restos de quaisquer
impressões desfavoráveis que possam ainda existir em relação
a este assunto.
A primeira dessas objecções é que a cláusula em questão
confunde autoridades legislativas e judiciais no mesmo corpo,
violando essa máxima importante e bem estabelecida que
exige uma separação entre os diferentes departamentos do
poder. O verdadeiro significado desta máxima foi discutido

* Do Tf1e Independmt)ou mal, 8 de Março de 1788. Este artigo foi publicado


em 11 de Março no The ew- York Packet. Recebeu o número 66 na edição
de McLean e o número 65 nos jornais. QC).

[589]
e averiguado noutro local, e mostrou-se que era inteiramente
compatível com uma mistura parcial desses departamentos
para fins específicos, conservando-os, no essencial, distintos
e desligadosl. Esta mistura parcial é mesmo, em alguns casos,
não apenas correcta mas necessária para a defesa mútua dos
diversos órgãos do governo na relação de uns com os outros.
Admitem os mais hábeis peritos em ciência política que um
veto absoluto ou qualificado do executivo em relação às leis
da assembleia legislativa é uma barreira insustentável contra
as usurpações do poder do primeiro por parte da segunda.
E talvez se possa defender com não menos razão que os poderes
relacionados com os crimes de responsabilidade são, como
anteriormente foi dado a conhecer, um controlo essencial,
nas mãos dessa assembleia, contra as usurpações do executivo.
A sua divisão entre os dois ramos da legislatura, entregando
a um o direito de acusar e a outro o direito de julgar, evita o
inconveniente de fazer das mesmas pessoas acusadores e juízes
simultaneamente; e protege do perigo de perseguição resultante
da prevalência de um espírito faccioso em qualquer desses
ramos. Como serão precisos dois terços dos votos do Senado
para uma condenação, a segurança da inocência, por causa
desta circunstância adicional, será tão completa como ela
própria pode desejar.
É curioso observar a veemência com que é atacada esta
parte do plano, com base no princípio para que chamamos
aqui a atenção, por homens que declaram admirar, sem excep-
ção, a Constituição deste Estado, quando essa Constituição
faz do Senado, juntamente com o chanceler e os juízes do
Supremo Tribunal, não só um tribunal para julgar crimes de
responsabilidade, mas a mais alta instância judicial do Estado,
em todas as causas, civis e criminais. A proporção, no tocante
aos números, do chanceler e dos juízes em relação aos senadores
é tão insignificante que pode em verdade dizer-se que a auto-

I Ver artigos 47-52. QC).

[590]
ridade judicial de Nova Iorque, em último recurso, reside no
seu Senado. Se, neste aspecto, for imputável ao plano da Con-
venção um afastamento desta celebrada máxima que tão
frequentemente tem sido mencionada, e que parece ser tão
pouco compreendida, quão mais culpável deve ser a Constitui-
ção de Nova Iorque?2
Uma segunda objecção ao Senado como tribunal para
crimes de responsabilidade é que isso contribui para uma
indevida acumulação de poder nessa assembleia, tendendo a
dar ao governo uma expressão demasiado aristocrática.
É observado que o Senado irá ter uma autoridade concorrente
com o Executivo na celebração de tratados e na nomeação
para cargos e se, dizem os objectores, a estas prerrogativas for
acrescentada a de decidir em todos os casos de crimes de
respons bilidade, isso dará uma decidida predominância à
influência senatorial. A uma objecção tão pouco precisa, não
é fácil encontrar uma resposta muito precisa. Onde está a
medida ou critério aos quais possamos apelar para determinar
o que dará ao Senado muito, pouco, ou apenas o grau correcto
de influência? Não será mais seguro, bem como mais simples,
para pôr de parte cálculos tão vagos e incertos, examinar cada
poder por si e decidir, com base em princípios gerais, onde
é que ele pode ser depositado com maior vantagem e menos
inconvenientes?
Se seguirmos este curso ele levar-nos-á a um resultado
mais inteligível, se não mais certo. A disposição do poder de
celebrar tratados que prevaleceu no plano da Convenção
apresentar-se-á então, se não me engano, como totalmente
justificada pelas considerações desenvolvidas num artigo
anterior3 e por outras que aparecerão na próxima rubrica das

2 Na de N ova Jérsia a autoridade judiciária suprema reside também num


ramo da legislatura. No New-Hampshire, no Massachusetts, na Pensilvânia,
e na Carolina do Sul, um dos ramos da legislatura é o tribunal para julgamento
das impugnações. (Publius).
3 H amilton estava a referir-se ao artigo 64, escrito por John Jay. QC).

[591]
nossas investigações4. A conveniência da junção do Senado
com o Executivo no poder de nomear funcionários, será,
acredito eu, esclarecida de maneira não menos satisfatória nas
inquirições da mesma rubrica. E tenho esperança de que as
observações do meu último artigo tenham contribuído bastante
para provar que não era facil, se é que era praticável, encontrar
um receptáculo mais apropriado do que aquele que foi esco-
lhido para o poder de decidir sobre os crimes de responsabili-
dade. Se isto for realmente assim, o receio hipotético do peso
demasiado grande do Senado deve ser afastado dos nossos
raciocínios.
Mas esta hipótese, tal como se apresenta, já foi refutada
nas observações aplicadas à duração do mandato prescrita para
os senadoress. Elas mostraram, tanto por meio do crédito de
exemplos históricos como por meio do princípio da coisa,
que o ramo mais popular de qualquer governo que participe
do carácter republicano, por ser em geral favorito do povo,
estará também em geral totalmente à altura, se é que não é
capaz de levar a melhor, de qualquer outro órgão do Governo.
Porém, independentemente deste princípio, um dos mais
activos e operativos para assegurar o equilíbrio da Câmara dos
Representantes nacional, o plano da Convenção providenciou
em seu beneficio vários importantes contrapesos aos poderes
adicionais a serem conferidos ao Senado. O privilégio exclusivo
de emitir papel-moeda pertencerá à Câmara dos Represen-
tantes. A mesma Câmara possuirá o direito exclusivo de instruir
os processos relativos aos crimes de responsabilidade. Não é
isto um completo contrapeso ao poder de julgá-los? A mesma
câmara será o árbitro em todas as eleições do Presidente que
não reúnam os sufrágios de uma maioria do número total de
eleitores; um caso de que não se pode duvidar que acontecerá
algumas vezes, se não frequentemente. A permanente possibili-

4 Ver artigos 68 e 75. QC) .


5 Ver artigo 63. O ).

[592]
dade de isso acontecer deve ser uma frutífera fonte de influência
para essa assembleia. Quanto mais se pensa nisso tanto mais
importante se mostrará este poder derradeiro, apesar de
contingente, de decidir as rivalidades dos mais ilustres cidadãos
da União para o mais importante cargo dela. Talvez não seja
ousado prever que, como meio de influenciar, esse poder se
revelará como tendo mais importância do que todos os atri-
butos peculiares do Senado.
U a terceira objecção ao Senado como tribunal para
crimes de responsabilidade é extraída da acção que os senadores
irão ter nas nomeações para cargos. Imagina-se que serão juí-
zes demasiado indulgentes da conduta dos homens em cuja
criação oficial participaram. O princípio desta objecção conde-
naria uma prática que se pode ver em todos os governos dos
Estados , se não em todos os governos de que temos conhe-
cimento: refiro-me a fazer depender da vontade dos que os
nomeiam os que detêm cargos por tempo indefinido. Com
a mesma plausibilidade se pode alegar neste caso que o
favoritismo dos últimos seria sempre um asilo para a má
conduta dos primeiros. Porém, tal prática, em contradição
com este princípio, deriva da presunção de que a responsabili-
dade dos que nomeiam, em relação à adequação e competência
das pessoas a quem concedem a sua escolha, e o interesse que
terão na administração respeitável e próspera das coisas inspi-
rará uma disposição suficiente para afastar a participação nessa
adminis ração de todos aqueles que, pela sua conduta, se terão
mostrado indignos da confiança neles depositada. Embora os
factos possam nem sempre corresponder a esta presunção,
ainda assim, se ela for justa de uma maneira geral, ela deve
invalidar a suposição de que o Senado, que se limitará a
sancionar a escolha do Executivo, venha a sentir em relação
aos objectos dessa escolha uma parcialidade suficientemente
forte para o cegar para provas de culpa tão extraordinárias
que induziram os representantes da nação a tornarem-se seus
acusadores.

[593]
Se fossem necessários quaisquer argumentos adicionais
para demonstrar a improbabilidade de tal parcialidade, eles
podiam ser encontrados na natureza da acção do Senado em
matéria de nomeações. Será tarefa do presidente indigitar e,
com o conselho e consentimento do Senado, nomear. Não
haverá, é claro, nenhum exercício de escolha da parte do Senado.
Podem anular uma escolha do executivo e obrigá-lo a fazer
outra; mas não podem ser eles próprios a escolher - podem
apenas ratificar ou rejeitar a escolha do Presidente. Poderiam
até ter uma preferência por alguma outra pessoa, no próprio
momento em que estavam a concordar com a pessoa proposta,
por não existir fundamento positivo para se oporem a ela; e
poderiam não estar certos, se recusassem o seu consentimento,
de que a indigitação subsequente viesse a cair sobre o seu
próprio favorito, ou sobre qualquer outra pessoa que avaliassem
como mais merecedora do que a pessoa rejeitada. Assim
dificilmente poderia acontecer que a maioria do Senado
sentisse qualquer outra complacência em relação ao objecto
de uma nomeação além daquela que as aparências de mérito
pudessem inspirar e as provas de ausência dele destruir.
Uma quarta objecção ao Senado na qualidade de tribunal
para crimes de responsabilidade é derivada da sua união com
o executivo no poder de celebrar tratados. Isto, já foi dito,
constituiria os senadores como juízes em causa própria, em
todos os casos de uma execução corrupta ou pérfida dessa
obrigação. Depois de ter combinado com o executivo trair
os interesses da nação num tratado ruinoso, que perspectiva,
pergunta-se, haveria de lhes fazer sofrer a punição que
mereceriam, quando seriam eles mesmos a decidir sobre a
acusação de traição que lhes fosse feita e da qual tinham sido
culpados?
Esta objecção tem circulado com mais fervor e maiores
justificações do que qualquer outra que apareceu contra esta
parte do plano e, não obstante, estarei muito enganado se ela
não assentar num fundamento errado.

[594]
A segurança essencialmente pretendida pela Constituição
contra a corrupção e traição na celebração de tratados deve
ser procurada no número e na personalidade daqueles que os
irão celebrar. A ACTUAÇÃO CONJUNTA do primeiro magistrado
da união e de dois terços dos membros de uma assembleia
seleccionada pela sabedoria colectiva das legislaturas dos vários
Estados é concebida para ser penhor da fidelidade dos con-
selhos nacionais neste particular. A Convenção podia ter
meditado apropriadamente a punição do executivo por se
afastar das instruções do Senado, ou por uma ausência de
integridade na condução das negociações a ele entregues.
Podia também ter tido em vista a punição de alguns indivíduos
mais destacados do Senado que tivessem prostituído a sua
influência nessa assembleia enquanto instrumentos mercenários
da corrupção estrangeira, mas não poderia ter considerado a
impugnação e punição de dois terços do Senado que consen-
tissem num tratado iníquo, com mais ou igual correcção do
que urna maioria dele ou do outro ramo da legislatura nacional
que consentisse numa lei perniciosa e anticonstitucional
- um princípio que, acredito, nunca foi admitido por nenhum
governo. Como é que, de facto, poderia uma maioria da
Câmara dos Representantes impugnar-se a si mesma? Não
melhor, é evidente, do que dois terços do Senado se julgariam
a si mesmos. E, todavia, que razão há para que uma maioria
da Câmara dos Representantes, sacrificando os interesses da
sociedade através de um acto legislativo injusto e tirânico,
devesse escapar impune, mais do que dois terços do Senado,
sacrificando os mesmos interesses num tratado prejudicial
com uma potência estrangeira? A verdade é que em todos
estes casos é essencial, para a liberdade e para a necessária
independência das deliberações da assembleia, que os membros
dela devam estar isentos de punição por actos praticados
colectivamente. E a segurança da sociedade deve depender
do cuidado que toma em confiar o depósito nas mãos certas,
fazer com que seja interesse delas cumpri-lo com fidelidade,

[595]
e tornar tão dific · quanto possível para elas o combinarem-
-se em qualquer interesse oposto ao do bem público.
Na medida do que diz respeito à má conduta do executivo,
pervertendo as instruções ou transgredindo os pontos de vista
do Senado, não precisamos de recear a ausência de uma
disposição dessa assembleia para castigar o abuso da sua
confiança ou para sustentar a sua própria autoridade. Podemos
assim contar com o seu orgulho, se não com a sua virtude.
E me mo na medida em que possa respeitar à corrupção dos
seus membros mais destacados, por meio de cujos artifícios
e influência a maioria pode ter sido seduzida para medidas
odiosas para a comunidade, se as provas dessa corrupção forem
satisfatórias, a costumada propensão da natureza humana auto-
rizar-nos-á a concluir que não existiria normalmente nenhuma
falta de disposição da assembleia para afastar de si a indignação
pública, sacrificando prontamente os autores da sua má admi-
nistração e da sua desonra.
PUBLIUS

(596)
O FEDERALISTA N." 67
[66)

O Departamento Executivo

ALEXANDER HAMILTON
11 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A constituição do departamento executivo do governo


proposto reclama em seguida a nossa atenção.
Dificilmente haverá qualquer parte do sistema que pudesse
ter sido acompanhada de maior dificuldade de organização
do que esta e talvez não haja nenhuma que tenha sido invecti-
vada com menos lisura ou criticada com menos discernimento.
Neste ponto, os que escrevem contra a Constituição pare-
cem esforçar-se seriamente por assinalar o seu talento para a
deturpação. Contando com a aversão do povo pela monarquia,
esforçaram-se por trazer para o seu lado todas as suspeitas e
todos os receios em oposição ao projectado Presidente dos
Estados Unidos, não apenas como o embrião, mas como a

* Do The New-York Packet, 11 de Março de 1788. Este artigo foi publicado


em 12 de Março no The Independentjoumal. R ecebeu o nú mero 67 na edição
de McLean e o número 66 nos j ornais. QC) .

[597]
prole completamente desenvolvida desse detestável progenitor.
Para estabelecer a pretendida afinidade, não mostraram escrú-
pulos em apelar para recursos até das regiões da ficção. Os
poderes de um magistrado, em poucos casos maiores, em
alguns casos menores, do que os de um governador de Nova
Iorque, foram aur:1.entados até mais do que prerrogativas reais.
Ele foi revestido de atributos superiores em dignidade aos do
rei da Grã-Bretanha. Foi-nos mostrado com o diadema que
fulge na sua cabeça e a púrpura imperial arrastando na sua
esteira. Foi sentado num trono rodeado de pajens e camareiras,
concedendo audiências aos enviados de potentados estrangeiros,
em toda a altiva pompa da majestade. As imagens de despo-
tismo e de voluptuosidade asiáticos certamente que não falta-
ram para coroar a exagerada cena. Fomos ensinados a tremer
diante dos rostos terríveis de janízaros assassinos, e a corar
perante os desvendados mistérios de um futuro serralho.
Tentativas tão extravagantes como estas, para desfigurar
ou, podia dizer-se melhor, metamorfosear o objecto, tornam
necessário vê-lo com precisão na sua real natureza e forma,
com o intuito tanto de indagar do seu verdadeiro aspecto
e genuína aparência, como para desmascarar a dissimulação
e expor a falácia das semelhanças falsificadas que tão insidiosa
e diligentemente têm sido propagadas.
Na execução desta tarefa não existe homem que não ache
que é um árduo esforço observar com moderação, ou tratar
com seriedade, os expedientes, não menos medíocres do que
malévolos, que foram maquinados para perverter a opinião
pública em relação ao assunto. Estes excederam tanto a habitual,
embora injustificável, licença do artifício partidário que,
mesmo numa disposição das mais cândidas e tolerantes, têm
de forçar os sentin1.entos que favorecem uma interpretação
indulgente da conduta dos adversários políticos para dar lugar
a uma indignação voluntária e sem reservas. É impossível não
conferir a imputação de impostura deliberada e fraude às
grosseiras pretensões de uma semelhança entre o rei da Grã-

[598]
-Bretanha e um magistrado do tipo delineado para o Presidente
dos Estados Unidos. É ainda mais impossível negar essa
imputação aos expedientes inconsiderados e descarados que
têm sido empregues para proporcionar sucesso à impostura
tentada.
Num caso, que cito como amostra do espírito geral, a
temeridade chegou tão longe que atribuiu ao Presidente dos
Estados Unidos um poder que, pelo instrumento referido, é
expressamente conferido aos executivos dos Estados individuais.
Quero referir-me ao poder de preencher as vagas ocasionais
no Senado.
Esta ousada experiência sobre o discernimento dos seus
compatriotas foi arriscada por um escritor que (seja qual for
o seu mérito real) tinha tido uma participação não desprezível
nos aplausos do seu partido 1; e que, sobre esta sugestão falsa
e não fundamentada, construiu uma série de observações
igualmente falsas e não fundamentadas. Deixemos que ele
seja agora confrontado com a evidência do facto, e que, se
for capaz, justifique ou atenue o vergonhoso ultraje com que
presenteou os ditames da verdade e as regras do comporta-
mento honesto2.
A segunda cláusula da segunda secção do segundo artigo
dá poderes ao Presidente dos Estados Unidos "para indigitar
e, após parecer e aprovação do Senado, nomear embaixadores,
outros ministros e cônsules, juízes do Supremo Tribunal, e
todos os outros funcionários dos Estados Unidos cuja nomeação

1 Ver Cato, N.• S. (Publius). Hamilton referia-se ao quinto de uma série


de artigos de jornal assinados "Cato", presumivelmente escritos por George
Clinton, que foram publicados em Novembro de 1787 no The New- York
Journal. Esse artigo foi republicado em Paul Leicester Ford, ed., Essays on the
Constitution oJ the United States (Brooklyn, 1892), 265-269. QC).
2 A personalidade frontal de Hamilton leva-o a esta violenta diatribe
contra o poderoso Governador de Nova Iorque, George Clinton. A mesma
nota de carácter levá-lo- ia a aceitar entrar num duelo com Aaron Burr, em
Julho de 1804, no qual encontraria, prematuramente, a morte. (E. P.) .

[599]
não esteja aqui prevista e venha a ser estabelecida por lei." Imedia-
tamente após esta cláusula segue-se outra nestes termos:
"O Presidente terá poder para preencher todas as vagas que
possam ocorrer durante a suspensão dos trabalhos do Senado,
procedendo a nomeações que expirarão no fim da sessão seguinte."
Desta última disposição foi deduzido o suposto poder do
Presidente para preencher vagas no Senado. Um pouco de
atenção à ligação entre as cláusulas, e ao significado óbvio dos
termos, convencer-nos-á que a dedução nem sequer é plau-
sível.
A primeira destas duas cláusulas, é claro, só providencia
um modo de nomear os funcionários "cuja nomeação não
esteja aqui prevista e que venha a ser estabelecida por lei"; é evidente
que não pode estender-se às nomeações de senadores, cujas
nomeações estão previstas de um modo diferente na Constituição3,
e que são estabelecidas pela Constituição, e não precisarão de um
estabelecimento futuro por lei. Esta posição dificilmente será
contestada.
A última destas duas cláusulas é igualmente clara, e não
pode ser entendida como abrangendo o poder de preencher
vagas no Senado, pelas razões seguintes: Primeira. A relação
entre esta cláusula e a outra, que declara o modo geral de
nomeação para cargos dos Estados Unidos, denota que ela
não é mais do que um suplemento da outra, com o objectivo
de estabelecer um método auxiliar de nomeação, em casos
em que o método geral se mostre inadequado. O poder
ordinário de nomeação é confiado ao Presidente e ao Senado
conjuntamente e, portanto, só pode ser exercido durante a sessão
do Senado. Mas, como teria sido incorrecto obrigar essa
assembleia a estar continuamente em sessão para a nomeação
para cargos e como podem ocorrer vacaturas durante a suspensão
dos seus trabalhos, tais que possa ser necessário para o serviço
público preenchê-las sem demora, a cláusula que vem a seguir

3 Artigo I, secção 3, cláusula 1. (Publius).

[600]
tem evidentemente a intenção de autorizar o Presidente,
isoladamente, a fazer nomeações temporárias "durante a suspensão
dos trabalhos do Senado, procedendo a nomeações que expirarão
no fim da sessão seguinte". Segunda. Se esta cláusula deve ser
considerada como suplemento à cláusula que a precede, as
vacaturas de que ela fala devem ser interpretadas como refe-
rindo-se aos "cargos" descritos na cláusula precedente e isto,
vimo-lo, exclui da sua descrição os membros do Senado.
Terceira. O período durante o qual deverá funcionar o poder,
"durante a suspensão dos trabalhos do Senado", e a duração
das nomeações, "até ao fim da sessão seguinte" dessa assembleia,
combinam-se para elucidar o sentido da providência que, se
tivesse tido a intenção de abranger os senadores, teria natural-
mente referido o poder temporário de preencher as vacaturas
à suspensão dos trabalhos das legislaturas dos Estados, que
deverão fazer as nomeações permanentes, e não às suspensões
de trabalhos do Senado nacional, que não terá nada a ver com
essas nomeações; e teria alargado a duração do mandato dos
senadores temporários até à sessão seguinte da legislatura do
Estado, em cuja representação tinham ocorrido as vacaturas,
em vez de as fazer expirar no fim da sessão seguinte do Senado
nacional. As circunstâncias da assembleia autorizada a fazer
nomeações permanentes teria, sem dúvida, governado a modi-
ficação de um poder que se refere a nomeações temporárias;
e como o Senado nacional é a assembleia cuja situação é a
única contemplada na cláusula em que é baseada a sugestão
que estamos a examinar, as vacaturas a que alude só podem
ser julgadas como respeitando a esses cargos em cuja nomeação
essa assembleia tem uma actuação conjunta com o Presidente.
Mas, por último, a primeira e segunda cláusulas da terceira
secção do artigo primeiro não só obviam a toda e qualquer
possibilidade de dúvida mas destroem o pretexto do equívoco.
A primeira estipula que "o Senado dos Estados Unidos será
composto por dois senadores por cada Estado, eleitos por seis
anos pelas respectivas legislaturas''; e a última ordena que "se

[601]
ocorrerem vagas por renúncia, ou qualquer outra causa, sempre
que a assembleia estadual não estiver em sessão, o executivo estadual
poderá proceder a nomeações temporárias até à sessão seguinte
da assembleia, que então preencherá as vagas". Aqui está um
poder expresso que é dado, em termos claros e não ambíguos,
aos executivos dos Estados, para preencher as vagas ocasionais
no Senado, por meio de nomeações temporárias. E isto não
só invalida a suposição que a cláusula anteriormente conside-
rada poderia ter tido a intenção de conferir esse poder ao
Presidente dos Estados Unidos, mas prova que essa suposição,
destituída como está até do mérito da plausibilidade, deve
ter-se originado numa intenção de enganar o povo, demasiado
palpável para ser obscurecida pela sofistica, demasiado atroz
para ser mitigada pela hipocrisia.
Dei-me ao trabalho de seleccionar este exemplo de detur-
pação, e de o colocar debaixo de uma luz clara e forte, como
prova inequívoca dos indesculpáveis artificias que são praticados
para impedir um juízo honesto e imparcial acerca dos méritos
reais da Constituição apresentada à consideração do povo.
E também não tive escrúpulos, num caso tão flagrante, de me
permitir uma severidade de animadversão pouco condizente
com o espírito geral destes artigos. Não hesito em subme-
tê-la à decisão de qualquer adversário sincero e honesto do
governo proposto, se a linguagem pode fornecer epítetos com
demasiada aspereza para uma tentativa tão desavergonhada e
prostituída para abusar dos cidadãos da América.
PUBLIUS

[602]
O FEDERALISTA N." 68
[67]

O Modo de Eleição do Presidente

ALEXANDER HAM ILTON


12 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O modo de escolha do supremo magistrado dos Estados


Unidos é quase a única parte do sistema, de alguma importân-
cia, que escapou sem severa censura, ou que recebeu a mais
insignificante marca de aprovação dos seus opositores. O mais
plausível de entre eles, que foi publicado na imprensa, até se
dignou admitir que a eleição do Presidente está muito bem
acautelada 1 . Arrisco-me um pouco mais além, e não hesito
em afirmar, que a maneira de o fazer, se não é perfeita, é pelo

* Do Th e lndependent ]ournal, 12 de Março de 1788. Este artigo foi


publicado m 14 de Março no The New-York Packet. Recebeu o número 68
na edição de McLean e o número 67 nos jornais. QC).
1 Hamilton referia-se à Carta lii de Observation leading to aJair examirtation

of the system ofgovernment, proposed by the late Convention; and to severa/ essetltial
and r1ecessary alterations in it. ln a number of Letters from the Federal Farmer to the
R epublican (New York, 1787), que foi escrita Richard H enry Lee, um dos
mais capaz s opositores da constitui ção proposta. QC).

[603]
menos excelente. Ela une num grau eminente todas as vanta-
gens cuja união era possível desejar.
Era desejável que a opinião geral do povo interviesse na
escolha da pessoa a quem iria ser confiado um dever tão
importante. Esse objectivo será alcançado entregando o direito
de escolher, não a um corpo preestabelecido, mas a homens
eleitos pelo povo para esse fim especial e para essa particular
conjuntura.
Era igualmente desejável que a eleição directa fosse feita
pelos homens mais capazes de analisar as qualidades adaptadas
ao cargo e de agir sob a influência de circunstâncias favoráveis
à deliberação e a uma combinação judiciosa de todas as razões
e motivações adequadas para orientar a sua escolha. Um pe-
queno número de pessoas, seleccionadas pelos seus concidadãos
de entre a massa global, terá mais probabilidade de possuir a
informação e o discernimento exigidos para tão complicadas
investigações.
Era também particularmente desejável dar tão pouca opor-
tunidade quanto possível ao tumulto e à desordem. Este mal
não era o que menos havia a recear na eleição de um magis-
trado destinado a ter uma intervenção tão importante na
administração do governo como presidente dos Estados
Unidos. Mas as precauções que foram concertadas com tanta
felicidade no sistema que estamos a considerar prometem
uma eficaz protecção contra este mal. A escolha de vários,
para formar urna assembleia intermédia de eleitores, estará
muito menos apta a convulsionar a comunidade com quaisquer
movimentos extraordinários ou violentos do que a escolha
de um que devesse ser ele próprio o objecto final dos desejos
públicos. E como os eleitores, escolhidos em cada Estado, se
devem reunir e votar no Estado em que são escolhidos, esta
localização separada e dividida expô-los-á muito menos a
excitações e efervescências, que podiam comunicar-se deles
para o povo, do que se tivessem que se reunir todos no mesmo
momento e lugar.

(604]
Nada era mais desejável do que fossem opostos todos os
obstáculos praticáveis à cabala, à intriga e à corrupção. Podia
naturalmente esperar-se que estes mortais adversários do
governo republicano fizessem as suas abordagens a partir de
mais de um quadrante, mas especialmente do desejo nas potên-
cias estrangeiras de ganhar um ascendente indesejável nos
nossos conselhos. Como poderiam eles satisfazer melhor este
fim do que elevando um seu instrumento à suprema magis-
tratura da União? Mas a Convenção protegeu contra todos os
perigos desta natureza, com a mais providente e judiciosa
atenção. Não fez depender a escolha do Presidente de quaisquer
assembleias preexistentes, cujos membros poderiam ser
corrompidos antecipadamente para prostituírem os seus votos,
mas entregou-a em primeira instância a um acto directo do
povo da América, a ser empregue na escolha das pessoas para
o fim temporário e único de proceder à escolha. E excluiu da
elegibilidade para esta função todos aqueles cuja situação
pudesse ser suspeita de demasiada devoção ao presidente em
exercício. Nenhum senador, representante, ou outra pessoa
que detenha um lugar de confiança ou remunerado no governo
dos Estados Unidos, pode fazer parte do número de eleitores.
Deste modo, sem corromper a massa do povo, os agentes
directos da eleição assumirão a sua tarefa pelo menos livres de
qualquer sinistra parcialidade. A sua existência transitória, e a
sua localização separada, de que já se deu conta, proporcionam
uma perspectiva satisfatória de continuarem assim até à
conclusão da tarefa. O negócio da corrupção, quando tem de
abranger um número tão considerável de homens, requ er
tempo, bem como meios. E não se acharia facil envolvê-los
subitamente, dispersos como estão por treze Estados, em quais-
quer maquinações fundadas em motivos que, embora não
pudessem ser propriamente apelidados de corruptos, podiam
não obstante ser de natureza a desencaminhá-los do seu dever.
Outro desiderato, e não menos importante, era que o
Executivo fosse, para a sua permanência no cargo, indepen-

[605]
dente de toda a gente excepto do próprio povo. De outro
modo poderia ser tentado a sacrificar o seu dever à sua com-
placência para com aqueles cujo favor fosse necessário para a
duração da sua alta posição oficial. Esta vantagem será também
assegurada, fazendo com que a sua reeleição dependa de uma
assembleia especial de representantes, delegada pela sociedade
para o único fim de proceder a essa importante escolha.
Todas estas vantagens se combinarão com felicidade no
plano traçado pela Convenção, o qual consiste em que o povo
de cada Estado deverá escolher um certo número de pessoas
como eleitores, igual ao número de senadores e representantes
desse Estado no governo nacional, pessoas que deverão reunir-
-se dentro do Estado, e votar para uma pessoa apropriada para
ser presidente2. Os seus votos, assim expressos, deverão ser
transmitidos à sede do governo nacional, e a pessoa que venha
a ter uma maioria do número total de votos será o presidente.
Mas como pode acontecer que nem sempre se concentre uma
maioria de votos num só homem, e como pode ser inseguro
permitir que seja conclusiva menos que uma maioria, é
providenciado para que, numa contingência dessas, a Câmara
dos Representantes deva eleger de entre os candidatos que
tiverem as cinco mais altas votações, o homem que na sua
opinião estiver m elhor qualificado para o cargo3.
Este processo de eleição proporciona uma certeza moral,
a de que o cargo de presidente raramente caberá em sorte a
qualquer homem que não esteja provido, em grau eminente,

2 A existência do Colégio eleitoral destina-se a assinalar a natureza federal


da eleição presidencial. O Presidente é eleito pelo povo, mas através do filtro
dos Estados. Sem Colégio Eleitoral, o universo eleitoral norte-americano
tornar-se-ia único e "consolidado", desaparecendo com isso o traço federal
mais específico: a união de soberanias distintas. (E. P.) .
3 Este complicado processo de eleição seria posto à prova na eleição de

Jefferson, em 1800. Seria modificado no 12. 0 Aditamento, ratificado em 27


de Julho de 1804. O último Presidente a ser eleito pela Câmara dos Repre-
sentantes foi John Quincy Adams, em 9 de Fevereiro de 1825. (E . P.).

[606]
das qualificações indispensáveis. Os talentos para a baixa intriga
e as pequenas artes da popularidade podem chegar por si sós
para elevar um homem às mais altas honrarias de um Estado
singular. Mas serão precisos outros talentos e uma espécie
diferente de mérito para o estabelecer na estima e confiança
de toda a União, ou de uma parte tão considerável dela como
a que será necessária para fazer dele um candidato bem suce-
dido ao distinto cargo de presidente dos Estados Unidos. Não
será demasiado forte dizer que haverá uma constante proba-
bilidade de ver o cargo ocupado por pessoas preeminentes
pela sua capacidade e virtude. E isto será considerado como
não pequena recomendação da Constituição, por aqueles que
estão aptos a estimar a parte que o executivo de qualquer
governo deve necessariamente ter na boa ou má administração
deste. Embora não possamos concordar com a heresia politica
do poeta que diz:

"Quanto a formas de governo, deixem que os tolos


contestem
Que o melhor é o que é melhor administrado."

podemos, todavia, afirmar com segurança que a verdadeira


prova de um bom governo é a sua aptidão e tendência para
produzir uma boa administração.
O vice-presidente deverá ser escolhido da mesma maneira
que o presidente com esta diferença: que o Senado deverá
fazer, a respeito do primeiro, o que é para ser feito pela Câmara
dos Representantes a respeito do último.
A escolha de uma pessoa extraordinária, como vice-presi-
dente, sofreu objecção como sendo supérflua, se não perniciosa.
Foi alegado que teria sido preferível ter autorizado o Senado
a eleger, no interior da sua própria assembleia, um funcionário
correspondendo àquela descrição. Mas há duas considerações
que parecem justificar as ideias da Convenção a este respeito.
Uma é que, para assegurar sempre a possibilidade de uma

[607]
resolução definitiva da assembleia, é necessário que o seu
presidente tenha apenas um voto de qualidade. E tirar o
senador de qualquer Estado do seu lugar como senador, colocá-
-lo no lugar de presidente do Senado, seria trocar, em relação
ao Estado de que ele proveio, um voto constante por um con-
tingente. A outra consideração é que como o vice-presidente
pode ocasionalmente vir a ser um substituto do presidente,
na suprema magistratura executiva, todas as razões que
recomendam o modo de eleição prescrito para um se aplicam
com maior, se não com igual, força à maneira de escolher o
outro. É notável que nisto, como em muitos outros casos, a
objecção que é feita vai contra a Constituição deste Estado.
Temos um Vice-governador, escolhido pela maioria do povo,
que preside ao Senado, e é o substituto constitucional do
Governador, em casos semelhantes aos que autorizariam o
vice-presidente a exercer os poderes e cumprir os deveres do
presidente.
PUBLIUS

[608]
O FEDERALISTA N.• 69
[68]

A Verdadeira Natureza do Executivo

ALEXANDER HAMILTO N
14 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Prossigo agora para traçar as verdadeiras características do


Executivo proposto, tal como estão delineadas no plano da
Convenção. Isto servirá para lançar uma luz forte sobre a
injustiça das interpretações que têm sido feitas relativamente
a elas.
A primeira coisa que desperta a nossa atenção é que a
autoridade executiva, com poucas excepções, será investida
num único magistrado. No entanto, isto certamente que não
será considerado um ponto sobre o qual se possa fundamentar
qualquer comparação, porque, se, neste pormenor, existe uma
semelhança com o rei da Grã-Bretanha, não há menos seme-
lhança com o Grão Senhor, com o Cã dos Tártaros, _com o

* Do The New-York Packet, 14 de Março de 1788. Este artigo foi publicado


em 15 de Março no Th e Independentjournal. R ecebeu o número 69 na edição
de McLean e o número 68 nos jornais. QC).

[609]
homem das sete montanhas, ou com o Governador de Nova
Iorque.
Esse magistrado será eleito por quatro anos e deverá ser
reelegível tantas vezes quantas o povo dos Estados Unidos o
considere digno da sua confiança!. Nestas circunstâncias há
uma total dissemelhança entre ele e o rei da Grã-Bretanha,
que é um monarca hereditário, possuindo a coroa como um
património transmissível aos seus herdeiros para sempre. Mas
existe uma forte analogia entre ele e o governador de Nova
Iorque, que é eleito por três anos, e é reelegível sem limitação
nem interrupção. Se considerarmos quão menos tempo seria
indispensável para estabelecer uma influência perigosa num
único Estado do que para estabelecer uma influência seme-
lhante através dos Estados Unidos, teremos de concluir que
um mandato de quatro anos para o Supremo Magistrado da
União é um grau de permanência muito menos de recear
nesse cargo do que um mandato de três anos para um cargo
correspondente num único Estado.
O Presidente dos Estados Unidos pode ser impugnado
por crimes de responsabilidade, julgado e, se condenado por
traição, suborno, ou outros crimes ou delitos graves, demitido
do cargo; e depois disso estará sujeito a acusação e punição
segundo a lei ordinária. A pessoa do rei da Grã-Bretanha é
sagrada e inviolável. Não existe tribunal constitucional ao
qual possa estar sujeito sem envolver a crise de urna revolução
nacional. Nesta delicada e importante circunstância de respon-
sabilidade pessoal, o Presidente da América confederada não
estaria em melhor posição do que um Governador de Nova
Iorque, e estaria em pior posição do que os Governadores de
Maryland e Delaware.
1 Os dois mandatos de George Washington criaram uma regra tácita,
que só seria ultrapassada com as quatro eleições de Franklin Delano Roosevelt.
O 22.0 Aditamento, ratificado em 27 de Fevereiro de 1951, limitaria osten-
sivamente a dois os mandatos presidenciais que o mesmo indivíduo pode
desempenhar. (E. P.).

[610]
O Presidente dos Estados Unidos terá poder para devolver
um projecto de lei que tenha sido aprovado pelos dois ramos
da legislatura, para ser reconsiderado; e o projecto de lei assim
devolvido deverá tornar-se lei se, depois dessa reconsideração,
for aprovado por dois terços de ambas as câmaras. O rei da
Grã-Bretanha, pela sua parte, tem um veto absoluto sobre os
decretos das duas câmaras do Parlamento. A ausência do uso
desse poder durante um tempo considerável no passado não
afecta a realidade da sua existência; e essa ausência deve ser
inteiramente imputada ao facto de a coroa ter encontrado
meios de pôr a influência no lugar da autoridade, ou a arte
de conquistar uma maioria numa ou noutra das duas câmaras
no lugar da necessidade de exercer uma prerrogativa que
raramente poderia ser exercida sem arriscar alguma agitação
nacional. O veto qualificado do Presidente difere largamente
deste veto absoluto do soberano britânico e quadra exacta-
mente com a autoridade de revisão do conselho de revisão
deste Estado, de que o governador é uma parte constituinte.
Neste aspecto, o poder do Presidente excederia o do gover-
nador de Nova Iorque, porque o primeiro possuiria, sozinho,
o que o último partilha com o chanceler e com os juízes, mas
seria precisamente igual ao do governador de Massachusetts,
cuja Constituição, no que toca a este artigo, parece ter sido
o original que a Convenção copiou.
O Presidente será o "Comandante Supremo do Exército
e da Armada dos Estados Unidos e da Milícia dos diversos
Estados, quando convocada para o serviço dos Estados Unidos.
Terá poder: para indultos e perdões por delitos contra os
Estados Unidos, excepto nos casos de impugnação por crimes de
responsabilidade; para recomendar à atenção do Congresso as
medidas que julgue necessárias e convenientes; para convocar,
em ocasiões extraordinárias, ambas as câmaras da legislatura,
ou uma delas, e, em caso de divergências entre elas em relação
ao momento de suspensão dos trabalhos, determinar esse
momento para a data que julgue mais conveniente; zelar pelo

[611]
fiel cumprimento das leis; e delegar autoridade a todos os
funcionários dos Estados Unidos". Na maior parte destes
casos particulares, os poderes do Presidente assemelhar-se-ão
tanto aos do rei da Grã-Bretanha como aos do governador
de Nova Iorque. Os pontos mais substanciais de divergência
são os seguintes: Primeiro: o Presidente terá apenas o comando
ocasional da parte da milícia da nação que possa ser chamada
ao serviço da União por meio de um acto legislativo. O rei
da Grã-Bretanha e o governador de Nova Iorque têm sempre
o comando integral de toda a milícia dentro das suas várias
jurisdições. Neste particular, portanto, o poder do Presidente
será inferior ao do monarca ou do governador. Segundo: o
Presidente deverá ser o Comandante em Chefe do exército
e da marinha dos Estados Unidos. Neste aspecto a sua autori-
dade será nominalmente a mesma da do rei da Grã-Bretanha,
mas, em substância, será muito inferior a ela. Equivalerá ape-
nas ao comando supremo e direcção das forças militares e
navais, como primeiro General e Almirante da confederação,
ao passo que o poder do rei britânico se estende à declaração
de guerra e ao recrutamento e regulamentação de frotas e
exércitos- coisas que, pela Constituição que estamos a exami-
nar, pertenceriam todas à legislatura2. O governador de Nova
Iorque, por outro lado, é investido pela Constituição do Estado
apenas com o comando da milícia e da marinha. Mas as Cons-

2 Um escritor de um jornal da Pensilvânia, com a assinatura de Tamony,


afirmou que o rei da Grã-Bretanha deve a sua prerrogativa como comandante
em chefe a uma lei anual sobre motins. A verdade, pelo contrário, é que a sua
prerrogativa nesta matéria é imemorial, e só foi posta em causa, "contrariamente
a toda a razão e precedente", como diz Blackstone, vol. 1. , página 262, pelo
Longo Parlamento de Carlos I. Mas pelo decreto 13. 0 de Carlos II, cap. 6, foi
declarada residir unicamente no rei, porque o único supremo governo e
comando da milícia dentro dos reinos e dorrúnios de Sua M ajestade, de todas
as forças no mar e em terra e de todos os fortes e praças fortificadas, sempre
foi e é o direito indubitável de Sua Majestade e dos seus antepassados reais,
reis e rainhas de Inglaterra, e que tanto ambas como uma só âma ra do
Parlamento não pode nem deve pretender o mesmo. (Publius).

[612]
tituições de vários Estados declaram expressamente os seus
Governadores como Comandantes em Chefe, tanto do exér-
cito como da marinha; e pode muito bem questionar-se se
as de New Hampshire e Massachusetts, em particular, não
conferem, neste caso, poderes mais alargados aos seus respec-
tivos governadores do que aqueles que poderiam ser reivindica-
dos por um Presidente dos Estados Unidos. Terceiro: o poder
do Presidente, no que respeita aos indultos, estender-se-ia a
todos o casos, com excepção dos casos de impugnação por crimes
de responsabilidade. O Governador de Nova Iorque pode indultar
em todos os casos, mesmo nos de impugnação, com excepção
dos casos de traição ou assassínio. O poder do governador,
neste particular, e calculando as suas consequências políticas,
não é maior do que o do Presidente? Todas as conspirações
e conluios contra o governo que não amadureceram até à
traição efectiva podem ser isentados de punição de qualquer
natureza, pela interposição da prerrogativa do indulto. Por
consequência, se um Governador de Nova Iorque encabeçasse
qualquer conspiração desse género, poderia assegurar aos seus
cúmplices e partidários uma total impunidade até que o
desígnio se tivesse transformado em hostilidade aberta. Um
Presidente da União, por outro lado, embora possa perdoar
até a traição, quando a acusação se processa ao abrigo da lei
ordinária, não poderia abrigar nenhum criminoso, em qualquer
grau, dos efeitos da impugnação e da condenação. As pers-
pectivas de total impunidade para todos os passos preliminares
não seriam uma tentação para subscrever e perseverar num
empreendimento contra a liberdade pública maior do que o
seriam as meras perspectivas de uma isenção da morte e
confiscação, se a execução final do desígnio, depois de um
efectivo apelo às armas, viesse a abortar? Teria esta última
expectativa alguma influência, ainda que mínima, quando
fosse calculada a probabilidade de que a pessoa que devia pro-
porcionar essa isenção pudesse estar ela própria envolvida nas
consequências da medida, e a sua actuação a pudesse incapacitar

[613)
para proporcionar a desejada impunidade? Para melhor julgar
nesta matéria será ecessário lembrar que, segundo a Constitui-
ção proposta, o crime de traição é limitado "a fazer guerra
contra os Estados Unidos, e aderir aos seus inimigos, dando-
-lhes assistência e socorro"; e pelas leis de Nova Iorque está
confinada a limites semelhantes. Quarto: o Presidente pode
suspender a sessão da legislatura nacional exclusivamente no
caso de desacordo quanto à data da suspensão. O monarca
britânico pode prorrogar ou mesmo dissolver o Parlamento.
O Governador de Nova Iorque pode também prorrogar a
Legislatura deste Estado por um período limitado de tempo,
um poder que, em certas situações, pode ser empregue para
objectivos muito importantes.
O Presidente deverá ter poderes, com o conselho e consen-
timento do Senado, para celebrar tratados, desde que dois
terços dos senadores presentes os aprovem. O rei da Grã-Bre-
tanha é o único e absoluto representante da nação em todos
os negócios com o estrangeiro. Pode de moto próprio celebrar
tratados de paz, comércio, aliança, e de todas as outras naturezas.
Foi insinuado que a sua autoridade a este respeito não é con-
clusiva e que as suas convenções com potências estrangeiras
estão sujeitas à revisão do Parlamento e precisam da ratificação
deste. Mas acredito que nunca se ouviu falar nesta doutrina,
até começar a ser propalada na ocasião presente. Todos os
juristas3 desse reino, e todos os outros homens conhecedores
da sua Constituição, sabem, como facto estabelecido, que a
prerrogativa de celebrar tratados existe na coroa na sua máxima
plenitude e que os contratos firmados pela autoridade real
têm a mais completa validade legal e perfeição, independente-
mente de qualquer outra sanção. É verdade que se vê, por
vezes, o Parlamento a empenhar-se em alterar as leis existentes
para se conformarem com as estipulações de um novo tratado.
E isto pode talvez ter dado azo a imaginar que essa cooperação

3 Vide Blackstone, Commmtaries, Vol. I., p. 257. (Publius).

[614]
era necessária para a eficácia obrigatória do tratado. Mas esta
interposição parlamentar provém de uma causa muito diferente:
da necessidade de ajustar um sistema muito artificial e intrin-
cado de receita pública e leis comerciais às alterações que lhe
são feitas pelas cláusulas do tratado; e de adaptar novas dispo-
sições e precauções ao novo estado de coisas, para impedir
que a máquina corra para a desordem. Neste aspecto, por
conseguinte, não há comparação entre o poder previsto para
o Presidente e o poder efectivo do soberano britânico. Um
pode fazer sozinho o que o outro só pode fazer com a con-
cordância de um ramo da legislatura. Deve admitir-se que,
neste caso, o poder do executivo federal excederia o de qual-
quer executivo estadual. Mas isto resulta naturalmente da
posse exclusiva por parte da União do poder soberano referente
aos tratados. Se a confederação viesse a ser dissolvida, passaria
a ser um problema se os executivos dos vários Estados não
fossem exclusivamente investidos com essa delicada e impor-
tante prerrogativa.
O Presidente estará também autorizado a receber Embai-
xadores e outros Ministros públicos. Isto, embora tenha sido
um farto tema de peroração, é mais uma questão de dignidade
do que de autoridade. É uma circunstância que não terá
importância na administração do governo. E era muito mais
conveniente que fosse estabelecida desta maneira do que tivesse
de haver uma necessidade de reunir a legislatura, ou um dos
seus ramos, por ocasião da chegada de cada ministro estrangeiro,
apesar de este estar meramente a tomar o lugar de um ante-
cessor de partida.
O Presidente deverá propor e, com o parecer e aprovação do
Senado, nomear Embaixadores e outros Ministros públicos,
Juízes do Supremo Tribunal e em geral todos os altos fim-
cionários dos Estados Unidos estabelecidos por lei cujas
nomeações não estejam previstas de maneira diferente pela
Constituição. O rei da Grã-Bretanha é enfãtica e verdadeira-
mente intitulado a fonte das distinções. Não só pode nomear

[615]
para todos os cargos, mas pode criar cargos. Pode conferir
títulos de nobreza como quiser e tem à disposição uma
quantidade imensa de nomeações para cargos eclesiásticos.
Há evidentemente uma grande inferioridade no poder do
Presidente, neste particular, em relação ao poder do rei
britânico e também não é igual ao do Governador de Nova
Iorque, se interpretarmos o sentido da Constituição do Estado
pela prática que tem subsistido na vigência dela. O poder de
nomeação no nosso caso está depositado num Conselho,
composto pelo Governador e por quatro membros do Senado,
escolhidos pela Assembleia. O Governador reivindica, e tem
exercido frequentemente, o direito de indigitar o candidato,
e tem direito a um voto de qualidade na nomeação. Se tem
realmente o direito de indigitar, a sua autoridade é neste
aspecto igual à do Presidente, e excede a deste último no voto
de qualidade. No governo nacional, se o Senado viesse a estar
dividido, nenhuma nomeação podia ser feita. No governo de
Nova Iorque, se o Conselho vier a estar dividido, o Governador
pode inclinar o prato da balança, e confirmar a sua própria
proposta.4 Se compararmos a publicidade que tem necessaria-
mente de acompanhar o modo de nomeação pelo Presidente
e todo um ramo da legislatura nacional com a privacidade
no modo de nomeação pelo Governador de Nova Iorque,
fechado num compartimento secreto com quatro, no máximo,
e frequentemente com apenas duas pessoas; e se ao mesmo
tempo considerarmos como deve ser muito mais facil influen-
ciar o pequeno número de que se compõe o Conselho de

4 A honestidade, todavia, exige um reconhecimento: o de que não penso


que a reivindicação por parte do governador de Nova Iorque de um direito
de indigitação seja bem fundada. Não obstante, é sempre justificável raciocinar
a partir da prática de um governo, até que a sua correcção tenha sido
constitucionalmente questionada. E independentemente dessa reivindicação,
quando olhamos para as outras considerações, e as desenvolvemos através de
todas as suas consequências, ficaremos inclinados a extrair uma conclusão
muito semelhante. (Publius).

[616]
Nomeações do que o número considerável de que se comporá
o Senado nacional, não podemos hesitar em afirmar que o
poder do Supremo Magistrado deste Estado, na faculdade de
dispor dos cargos tem de ser, na prática, muito superior ao
do Supremo Magistrado da União.
Por este motivo é patente que, exceptuando a autoridade
concorrente do Presidente no caso dos tratados, seria difícil
determinar se esse magistrado possuiria, globalmente, mais
ou menos poder que o Governador de Nova Iorque. E é ainda
mais inequivocamente patente que não existe pretexto para
o paralelismo que foi tentado entre ele e o rei da Grã-Bretanha.
Mas para tornar este contraste ainda mais impressionante,
pode ser útil resumir as principais circunstâncias de disseme-
lhança num grupo mais compacto.
O Presidente dos Estados Unidos será um alto funcionário
eleito pelo povo por quatro anos; o Rei da Grã-Bretanha é
um príncipe perpétuo e hereditário. Um estará à mercê de
castigo pessoal e desonra; a pessoa do outro é sagrada e inviolá-
vel. Um teria um veto qualificado sobre as propostas da assem-
bleia legislativa; o outro tem um veto absoluto. Um teria um
direito de comandar as forças militares e navais da nação ; o
outro, além deste direito, possui o de declarar guerra, e de
recrutar e regulamentar armadas e exércitos por sua própria
autoridade. Um teria um poder concorrente com um ramo
da legislatura na celebração de tratados; o outro é o possuidor
exclusivo do poder de celebrar tratados. Um teria uma autori-
dade concorrente idêntica na nomeação de funcionários ; o
outro é o único autor de todas as nomeações. Um não pode
conferir nenhuns privilégios; o outro pode transformar
estrangeiros em cidadãos, plebeus em nobres e pode instituir
corporações com todos os direitos que pertencem a organismos
corporativos. Um não pode prescrever nenhuma norma
respeitante ao comércio ou à moeda da nação; o outro é em
vários aspectos o árbitro do comércio, e nessa qualidade pode
instituir mercados e feiras , regulamentar os pesos e medidas,

[617]
lançar embargos por um período limitado de tempo, cunhar
moeda, autorizar ou proibir a circulação de moeda estrangeira.
Um não tem nenhuma partícula de jurisdição espiritual; o
outro é o chefe supremo e governador da igreja nacional!
Que resposta devemos dar àqueles que nos persuadissem que
coisas tão diferentes se assemelham? A mesma que deveria ser
dada aos que nos dizem que um governo, cujo poder total
estará nas mãos de servidores eleitos e periódicos do povo, é
uma aristocracia, uma monarquia e um despotismo.
PUBLIUS

[618]
O FEDERALISTA N." 70
[69]

Considerações Adicionais
sobre o Departamento Executivo

ALEXANDER HAMILTON
15 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Há uma ideia, que não deixa de ter defensores, de que


um Executivo vigoroso é inconsistente com o génio do
governo republicano 1. Os esclarecidos simpatizantes desta
espécie de governo devem no rrúnimo esperar que a suposição
seja destituída de fundamento, dado que nunca podem admitir
a sua verdade sem admitir simultaneamente a condenação dos

* Do The lndependent j ournal, 15 de Março de 1788. Este artigo foi publi-


cado em 18 de Março no Th e New- York Packet. Recebeu o número 70 na
edição de McLean e o número 69 nos jornais. QC).
1 Contra a tese de alguns antifederalistas, que defendiam a criação de um
conselho executivo, Hamilton vai defender a unidade operacional do executivo
presidencial. Esse conselho funcionaria como um poder paralelo, já que, embora
o pluralismo seja uma qualidade que a Constituição reconhece e integra na
formação do poder legislativo, o pluralismo seria um factor perturbador e um
obstáculo ao correcto desempenho da magistratura executiva." (E.P).

[619]
seus próprios princípios. A energia no executivo é uma
característica principal da definição de um bom governo. Ela
é essencial para a protecção da comunidade contra os ataques
do exterior. E não é menos essencial para sustentar firmemente
a administração das leis, para a protecção da propriedade contra
essas maquinações irregulares e arrogantes que por vezes
interrompem o curso normal da justiça e para a defesa da
liberdade dos empreendimentos e assaltos da ambição, das
facções e da anarquia. Qualquer homem minimamente versado
na história de Roma conhece a frequência com que essa
república foi obrigada a refugiar-se no poder absoluto de um
único homem, sob o formidável título de ditador, tanto contra
as intrigas de indivíduos ambiciosos que aspiravam à tirania
como contra as sedições de classes inteiras da comunidade
cuja conduta ameaçava a existência de todo e qualquer governo,
e ainda contra as invasões de inimigos externos que ameaçavam
conquistar e destruir Roma.
Não pode haver necessidade, no entanto, de multiplicar
argumentos ou exemplos nesta matéria. Um executivo fraco
in1plica uma actuação fraca do governo. Uma actuação fraca é
apenas outra designação para uma actuação deficiente e um
governo que actua deficientemente, independentemente do
que possa ser na teoria, tem de ser, na prática, um mau governo.
Por conseguinte, tomando como certo que todos os
homens sensatos concordarão com a necessidade de um exe-
cutivo enérgico, fica apenas por inquirir: Quais são os ingre-
dientes que proporcionam essa energia - em que medida
podem ser combinados com os outros ingredientes que
constituem a segurança no sentido republicano? E em que
medida é que esta combinação caracteriza o plano que foi
apresentado pela Convenção?
Os ingredientes que dão energia ao executivo são: em
primeiro lugar, unidade; em segundo, duração do mandato;
em terceiro, disposições adequadas para a sua manutenção; e
em quarto, poderes apropriados.

[620]
As circunstâncias que definem a segurança no sentido
republicano são, em primeiro lugar, urna adequada dependência
do povo, e em segundo, uma adequada responsabilidade.
Os políticos e estadistas que foram os mais celebrados pela
solidez dos seus princípios e pela justeza das suas opiniões
declararam-se a favor de um executivo único e de uma legis-
latura numerosa. Com grande correcção, consideraram a
energia como a qualificação mais necessária do primeiro, e
viram isso como mais aplicável ao poder numa só mão, ao
passo que, com igual correcção, consideraram a última como
sendo mais bem adaptada à deliberação e sagacidade, e mais
bem adaptada para conciliar a confiança do povo e para prote-
ger os seus privilégios e interesses.
Que a unidade conduz à energia, ninguém contestará.
Decisão, actividade, sigilo e celeridade caracterizarão em geral
o comportamento de um homem só num grau muito mais
eminente do que o comportamento de um qualquer número
maior; e essas qualidades diminuirão na proporção em que o
número for aumentado.
Essa unidade pode ser destruída de duas maneiras: ou por
investir o poder em dois ou mais magistrados de igual dignidade
e autoridade; ou por investi-lo ostensivamente num só homem,
suj eito, no todo ou em parte, ao controlo e cooperação de
outros, na qualidade de seus conselheiros. Da primeira, os
dois cônsules de Roma podem servir como exemplo; da
última, encontraremos exemplos nas Constituições de diversos
Estados. Nova Iorque e NovaJérsia, se recordo correctamente,
são os dois únicos Estados que confiaram totalmente a auto-
ridade executiva a um único homem. 2 Ambos os métodos
de destruir a unidade do Executivo têm os seus partidários,

2 Nova Iorque não tem conselho, excepto para o único fim de nomear
para cargos; Nova Jérsia tem um conselho que o governador pode consultar.
Mas penso, a partir dos termos da Constituição, que as suas resoluções não o
obrigam. (Publius).

[621]
mas os defensores de um conselho executivo são mais nume-
rosos. Ambos estão suj eitos a objecções, se não iguais, ao
menos semelhantes, e podem em muitos aspectos ser
examinados conjuntamente.
A experiência de outras nações proporcionará poucos
ensinamentos nesta matéria. No entanto, na medida em que
ensina alguma coisa, ensina-nos a não ficarmos enamorados
pela ideia de pluralidade no executivo. Vimos que os Acaicos,
ao experimentarem dois Pretores, foram induzidos a abolir
um deles.3 A história romana regista muitos casos de danos à
república resultantes das dissensões entre os cônsules, e entre
os tribunos militares, que por vezes substituíram os cônsules.
Mas não nos dá nenhuma amostra de quaisquer vantagens
peculiares para o Estado derivadas da circunstância da plurali-
dade desses magistrados. Que as dissensões entre eles não
tenham sido mais frequentes nem mais fatais, é matéria de
espanto, até que atentemos na singular posição em que a
república estava quase continuamente colocada, e à prudente
política salientada pelas circunstâncias do Estado, e promovida
pelos cônsules, de efectuar uma divisão do governo entre si.
Os Patrícios empenhavam-se em luta perpétua com os plebeus
pela preservação dos seus antigos poderes e dignidades. Os
cônsules, que eram geralmente escolhidos na primeira destas
classes, estavam comummente unidos pelo interesse pessoal
que tinham na defesa dos privilégios da sua classe. Adicio-
nalmente a este motivo de união, depois de as armas da repú-
blica terem expandido consideravelmente as fronteiras do seu
império, tornou-se um costume estabelecido dos Cônsules a
divisão da administração entre eles, tirando à sorte, perma-
necendo um deles em Roma para governar a cidade e os seus
arredores, tomando o outro o comando em províncias mais
distantes. Este expediente deve ter tido, sem dúvida, uma

3 Ver artigo 18. QC).

[622)
grande influência em obviar a essas colisões e rivalidades que
de outro modo poderiam ter enredado a paz da república.
Mas abandonando a fraca luz da pesquisa histórica, e
dedicando-nos puramente aos ditames da razão e do bom
senso, descobriremos muito mais importantes causas para
rejeitar do que para aprovar a ideia da pluralidade do executivo,
seja qual for o seu aspecto.
Em todos os casos em que duas ou mais pessoas estão
empenhadas num empreendimento ou actividade comuns,
há sempre o perigo da diferença de opinião. Se for uma res-
ponsabilidade ou um cargo públicos, nos quais estão investidas
de igual dignidade e autoridade, existe o perigo peculiar de
emulação pessoal e até de animosidade. De qualquer deles, e
em especial de todas estas causas, podem brotar as mais ásperas
dissensões. Em todos os casos em que estas acontecem, elas
diminuem a respeitabilidade, enfraquecem a autoridade e
confundem os planos e a actuação daqueles que dividem. Se
vierem desgraçadamente a atacar a suprema magistratura
executiva de um país, consistindo esta de uma pluralidade de
pessoas, podem impedir ou frustrar as mais importantes medidas
do governo, nas mais críticas emergências do Estado. E, o
que ainda é pior, podem dividir a comunidade em facções
das mais violentas e irreconciliáveis, aderindo diferentemente
aos diferentes indivíduos que compõem a magistratura.
Os homens opõem-se frequentemente a uma coisa apenas
porque não tiveram parte no planeá-la, ou porque pode ter
sido planeada por aqueles de quem não gostam. Mas, se tives-
sem sido consultados e tivesse acontecido que desaprovassem,
a oposição seria então, na sua maneira de ver, um indispensável
dever de amor-próprio. Parecem pensar que estão obrigados
pela honra, e por todos os motivos de infalibilidade pessoal,
a derrotar o sucesso do que foi resolvido contrariamente aos
seus sentimentos. Os homens de temperamento íntegro e
benevolente têm em demasia oportunidade de observar, com
horror, até que extremos desesperados é por vezes levada esta

[623]
disposição, e como é frequente que os grandes interesses da
sociedade sejam sacrificados à vaidade, ao preconceito e à
obstinação de indivíduos que têm crédito suficiente para
tornar as suas paixões e os seus caprichos interessantes para a
humanidade. Talvez a questão que agora está perante o público
possa, nas suas consequências, proporcionar provas melancólicas
dos efeitos desta desprezível fraqueza, ou melhor, deste
detestável vício, da natureza humana.
Adoptando os princípios de um governo livre, os incon-
venientes da fonte que acaba de ser mencionada têm necessa-
riamente de ser admitidos na formação da legislatura, mas é
desnecessário, e portanto insensato, introduzi-los na constitui-
ção do executivo. É aí, também, que eles podem ser mais
perniciosos. Na legislatura, a prontidão de decisão é um mal
mais frequentemente do que um beneficio. As diferenças de
opinião e as incompatibilidades dos partidos nesse departa-
mento do governo, embora possam por vezes obstruir planos
salutares, promovem, todavia, com frequência, a deliberação
e a circunspecção, e servem para manter em respeito os excessos
da maioria. Uma vez tomada uma resolução, a oposição deve
terminar. Essa resolução é uma lei, e a resistência a ela é puní-
vel. Mas não há circunstâncias favoráveis que desculpem ou
reparem as desvantagens das dissensões no departamento
executivo. Neste, essas dissensões são puras e sem mistura.
Não há nenhum caso em que deixem de agir. Servem para
embaraçar e enfraquecer a execução do plano ou medida a
que se referem, desde o primeiro passo até à conclusão final
deste. Contrariam constantemente essas qualidades do exe-
cutivo que são os ingredientes mais necessários na sua compo-
sição, vigor e prontidão, e isto sem qualquer bem que os con-
trabalance. Na condução da guerra, em que a energia do
Executivo é o baluarte da segurança nacional, haveria a recear
tudo da sua pluralidade.
Deve confessar-se que estas observações se aplicam com
mais peso ao primeiro caso suposto, isto é, a uma pluralidade

[624]
de magistrados de igual dignidade e autoridade, um esquema
cujos defensores não formam provavelmente uma seita
numerosa. Mas aplicam-se com um peso considerável, embora
não igual, ao projecto de um conselho cujo concurso é tornado
constitucionalmente necessário para as operações do executivo
em título. Um astuto conluio nesse conselho seria capaz de
confundir e debilitar todo o sistema de administração. Se não
existisse tal conluio, a mera diversidade de pontos de vista e
opiniões seria por si só suficiente para tingir o exercício da
autoridade executiva com um espírito de fraqueza e dilação
habituais.
Mas uma das objecções com mais peso contra uma
pluralidade no executivo, e que se põe tanto contra o último
como contra o primeiro plano, é que ela tende para esconder
faltas e destruir a responsabilidade. A responsabilidade é de
dois tipos, de censurar e de punir. A primeira é a mais impor-
tante das duas, em especial num cargo electivo. Um homem
num cargo público agirá com muito maior frequência de uma
maneira que o tornará indigno de manter a confiança nele
depositada do que de uma maneira que o torne sujeito a puni-
ção. Mas a multiplicação do executivo aumenta a dificuldade
em qualquer dos casos. Torna-se muitas vezes impossível, por
entre as acusações mútuas, determinar em quem deve cair a
censura ou a punição por uma medida perniciosa, ou por
uma série de medidas perniciosas. É desviada de um membro
para outro com tanta destreza, e com aparências tão plausíveis,
que a opinião pública é deixada em suspenso acerca do
verdadeiro autor. As circunstâncias que podem ter conduzido
a qualquer malogro ou infortúnio nacional são por vezes tão
complicadas que nos casos em que exista um número de
actores que possam ter tido diferentes graus e tipos de parti-
cipação, embora possamos ver claramente na globalidade que
houve má administração, pode no entanto ser impraticável
dizer a quem pode ser verdadeiramente imputado o mal em
que se mcorreu.

[625]
"Fui ultrapassado pelo meu conselho. O conselho estava
tão dividido nas suas opiniões que era impossível obter qualquer
resolução melhor sobre o assunto." Este e similares pretextos
estão constantemente à mão, sejam verdadeiros ou falsos.
E quem haverá que se dê ao trabalho, ou incorra no ódio, de
um rígido escrutinar dos secretos motivos da transacção? Se
for possível encontrar um cidadão suficientemente zeloso para
empreender a pouco prometedora tarefa, se acontecer que
haja uma colisão entre os partidos envolvidos, como será facil
revestir as circunstâncias de tanta ambiguidade que torne
incerta qual a conduta exacta de qualquer desses partidos?
No único caso em que o governador deste Estado está
associado a um conselho, isto é, na nomeação para cargos,
vimos os males desse método no aspecto que estamos a
considerar4. Foram feitas nomeações escandalosas para cargos
importantes. Alguns casos, na verdade, foram tão flagrantes
que TODOS os PARTIDOS concordaram na incorrecção da
escolha. Quando foi feita uma investigação, a culpa foi atribuída
pelo governador aos membros do conselho que, pela sua parte,
a imputaram à nomeação feita por aquele. Enquanto o povo
ficou totalmente sem saber como determinar por cuja influên-
cia tinham os seus interesses sido entregues a mãos tão pouco
qualificadas e manifestamente inadequadas. Por delicadeza
para com os indivíduos, abstenho-me de descer a minudências.
É evidente a partir destas considerações que a pluralidade
do executivo tende a privar o povo das duas maiores garantias
que ele pode ter para o exercício fiel de todo o poder delegado:
primeiro, as barreiras da opinião pública, que perdem a sua
eficácia, tanto por causa da divisão por um grande número
de pessoas da censura coincidente com as medidas prejudiciais,
como por causa da incerteza sobre em quem devem elas recair;
e, segundo, a oportunidade de descobrir com facilidade e
clareza o mau comportamento das pessoas em quem confia,

4 Ver artigo 69. QC) .

[626]
com o intuito de os demitir do cargo ou de os punir efectiva-
mente em casos em que isso seja aplicável.
Em Inglaterra, o rei é um magistrado perpétuo. E é uma
máxima, que vingou a bem da paz pública, que ele não pode
ser responsabilizado pela sua administração, e que a sua pessoa
é sagrada. Portanto, nada pode ser mais avisado nesse reino
do que juntar ao rei um conselho constitucional, que pode
ser responsável perante a nação pelo conselho que dá. Sem
isto, não poderia existir absolutamente nenhuma responsa-
bilidade no departamento executivo, uma ideia inadmissível
para um governo livre. Mas mesmo em Inglaterra o rei não
está obrigado pelas decisões do seu conselho, embora ele seja
responsável pelas recomendações que faz. O rei é o senhor
absoluto da sua própria conduta no exercício do seu cargo,
e pode acatar ou ignorar a seu bel-prazer o conselho que lhe
é dado.
Mas numa república, onde cada magistrado deve ser
pessoalmente responsável pelo seu comportamento no cargo
que ocupa, a razão, que na Constituição britânica dita a justeza
de um conselho, não só deixa de se aplicar, mas volta-se contra
a instituição. Na monarquia da Grã-Bretanha, esse conselho
fornece um substituto para a inexistente responsabilidade do
supremo magistrado, que serve apenas em certa medida como
um refém da justiça nacional pelo seu bom comportamento.
Na república Americana, serviria para destruir, ou diminuiria
grandemente, a planeada e necessária responsabilidade do
próprio supremo magistrado.
A ideia de um conselho junto do executivo, que tão geral-
mente vingou nas Constituições dos Estados, foi extraída
daquela máxima da suspeita republicana que considera que o
poder está mais seguro nas mãos de um certo número de
homens do que o está na mão de um único. Se a máxima
fosse admitida como aplicável a este caso, eu objectaria que
a vantagem desse lado não contrabalançaria as numerosas des-
vantagens do lado contrário. Mas não penso que a regra seja

[627]
de todo aplicável ao poder executivo. Concordo claramente
com a opinião, neste aspecto particular, de um escritor que
o famoso Juniuss afirma ser "profundo, sólido e engenhoso",
de que "o poder executivo é mais facilmente confinado quando
se trata de um só"6 que é muito mais seguro que exista um
único objecto para a suspeita e a vigilância do povo e, numa
palavra, que toda a multiplicação do executivo é mais perigosa
para a liberdade do que amiga dela.
Uma humilde consideração convencer-nos-á de que a
espécie de garantia procurada na multiplicação do executivo
é inatingível. O número de membros deve ser tão grande que
torne difícil a associação, ou então serão mais uma fonte de
perigo do que de segurança. A junção do crédito e da influên-
cia de vários indivíduos deve ser mais formidável para a
liberdade do que o crédito e influência de qualquer deles
separadamente. Por conseguinte, o poder, quando é posto
nas mãos de um número de homens tão pequeno que admita
que os seus interesses e opiniões sejam facilmente combinados
num empreendimento comum por um chefe artificioso, fica
mais sujeito a abusos e é mais perigoso quando há abuso do
que se for depositado nas mãos de um único homem, que,
pela própria circunstância de ser um só, será vigiado mais de
perto e mais prontamente suspeito, e que não pode acumular
uma quantidade de influência tão grande como quando está
associado com outros. Os decênviros de Roma, cujo nome
denota o seu número,7 eram mais de temer na sua usurpação
do que um qualquer de entre eles teria sido isoladamente.

5 JuniiiS. Stat ominis Umbra (London: Printed for H enry Sampson


Woodfuli, 1772), I, xxxi. O escritor a que Junius se referia era de Lolme. Ver
nota abaixo. QC).
6 De Lo !me. (Publius). Jean Louis de Lolme, The Comtitution of England,

or an Account of the Eng/is h Government; ln which itJierior is compared with the


Republicai! Form of Government, ar1d occasionally with the other Monarchies in Europe
(3.' edição, Londres, 1781), 215. QC).
7 Dez. (Publius)

[628]
Ninguém pensaria em propor um executivo muito mais
numeroso do que essa assembleia. Para o conselho foi sugerido
um número entre seis e doze. O mais alto desses números
não é demasiado grande para uma facil associação. E a América
teria mais a temer de uma associação dessa natureza do que
da ambição de um único indivíduo. Um conselho junto de
um magistrado, que é ele próprio responsável pelo que faz,
não é em geral mais do que um embaraço em relação às suas
boas intenções, é frequentemente instrumento e cúmplice
das más, e é quase sempre uma capa para os seus erros.
Abstenho-me de repisar a questão da despesa, embora seja
evidente que, se o conselho for suficientemente numeroso
para responder ao fim principal procurado com a sua institui-
ção, os salários dos membros, que devem ser deslocados dos
seus lares para residir na sede do governo, formariam um item
no catálogo da despesa pública demasiado sério para ser
incorrido por um objecto de utilidade equívoca.
Acrescentarei apenas que, anteriormente ao aparecimento
da Constituição, raramente encontrei um homem inteligente
de qualquer dos Estados, que não admitisse, em resultado da
experiência, que a UNIDADE do executivo desse Estado era
uma das melhores de entre as características distintivas da nossa
Constituição.
PUBLIUS

[629]
O FEDERALISTA N." 71
[70]

A Duração do Mandato
dos Magistrados Executivos

ALEXANDER HAMILTON
18 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A duração do mandato foi mencionada como segundo


requisito para a energia da autoridade executiva. Isto tem
relação com duas coisas: com a firmeza pessoal do Magistrado
Executivo, no uso dos seus poderes constitucionais, e com a
estabilidade do sistema de administração que pode ter sido
adoptado sob os seus auspícios. No que respeita ao primeiro
aspecto, deve ser evidente que quanto maior for a duração
do mandato, maior será a probabilidade de conseguir uma
vantagem tão importante. E um princípio geral da natureza
humana que um homem estará interessado em qualquer coisa
que possua na proporção da firmeza ou precariedade do título

* Do The New- York Ptuket, 18 de Março de 1788. Este artigo foi publicado
em 19 de Março no The lndependent ]ou mal. R ecebeu o número 71 na edição
de McLean e o número 70 nos jornais. QC).

[631]
pelo qual a detém. Estará menos agarrado àquilo que detém
a título momentâneo ou incerto do que ao que desfruta a
título duradouro e certo. E, é claro, estará disposto a arriscar
mais a bem de um do que a bem do outro. Esta observação
não é menos aplicável ao privilégio político, ou a honrarias,
ou à confiança, do que o é à posse de qualquer bem ordinário.
A inferência a tirar daqui é que um homem, agindo na quali-
dade de Supremo Magistrado, com a consciência de que den-
tro de muito pouco tempo tem de abandonar o seu cargo,
estará apto a sentir-se muito pouco interessado nele para
arriscar qualquer censura ou perplexidade substanciais, devidas
ao exercício independente dos seus poderes, ou aos maus
humores, ainda que transitórios, que podem prevalecer, quer
numa parte considerável da própria sociedade, quer numa
facção predominante do corpo legislativo. Na eventualidade
de que ele pudesse abandoná-lo se não fosse mantido nele por
uma nova escolha, e se estivesse desejoso de ser mantido no
cargo, os seus desejos, conspirando com os seus receios, tende-
riam ainda mais poderosamente para corromper a sua inte-
gridade ou diminuir a sua força moral. Em qualquer dos
casos, a fraqueza e a irresolução seriam as características da
sua posição.
Existem algumas pessoas que estariam inclinadas a olhar
a servil docilidade do executivo para com uma corrente preva-
lecente, quer na comunidade quer na Legislatura, como a sua
melhor recomendação. Mas esses homens têm noções muito
rudes tanto das finalidades para que foi instituído o governo
como dos verdadeiros meios pelos quais pode ser promovida
a felicidade pública. O princípio republicano exige que a opi-
nião ponderada da comunidade governe a conduta daqueles
a quem ela entrega a administração dos seus assuntos, mas
não exige uma complacência incondicional em relação a qual-
quer sopro de paixão, ou a qualquer impulso transitório que
o povo possa receber das artes dos homens 9ue lisonjeiam os
seus preconceitos para trair os seus interesses. E uma observação

[632]
justa dizer que o povo normalmente pretende o BEM PÚBLICO.
Isto aplica-se muitas vezes aos seus próprios erros. Mas o bom
senso do povo desprezaria o adulador que alegasse que ele
pensa sempre correctamente acerca dos meios de promover esse
bem. O povo sabe por experiência que por vezes erra; e o
que espanta é que erre tão poucas vezes, assediado como é
continuamente pelos embustes de parasitas e aduladores, pelas
artimanhas dos ambiciosos, dos avarentos e dos desesperados,
pelos artifícios de homens que possuem a sua confiança mais
do que a merecem, e dos que procuram possuí-la mais do
que merecê-la. Quando se apresentam ocasiões em que os
interesses do povo divergem das suas inclinações, é dever das
pessoas que ele nomeou para serem guardiãs desses interesses
opor-se à ilusão temporária com o intuito de lhe dar tempo
e oportunidade para uma reflexão mais calma e ponderada.
Podem ser citados casos em que um comportamento desse
tipo salvou o povo de consequências fatais dos seus próprios
erros, e deu origem a monumentos duradouros da gratidão
do povo para com os homens que tiveram coragem e magna-
nimidade suficientes para o servir com o risco de lhe desa-
gradar.
Mas por mais propensos que possamos ser para insistir
numa complacência ilimitada do executivo em relação às
inclinações do povo, não podemos defender com justiça uma
complacência idêntica para com os humores da Legislatura.
Esta última pode por vezes estar em oposição ao primeiro, e
outras vezes o povo pode ser inteiramente neutral. Em qualquer
das hipóteses, é certamente desejável que o executivo deva
estar numa posição tal que ouse pôr em prática a sua própria
opinião com vigor e decisão.
A mesma regra que nos ensina a justeza de uma partilha
entre os vários ramos do poder ensina-nos também que essa
partilha deve ser estruturada de maneira a tornar uns indepen-
dentes dos outros. Com que finalidade se separa o executivo
ou o judicial do legislativo, se tanto o executivo como o judi-

[633]
cial forem constituídos de tal maneira que ficam na absoluta
dependência do legislativo? Uma separação desse tipo tem de
ser meramente nominal e incapaz de produzir os fins para
que foi estabelecida. Uma coisa é estar subordinado às leis,
outra estar dependente da assembleia legislativa. A primeira
é compatível com os princípios fundamentais da boa gover-
nação, a segunda viola-os; e, sejam quais forem as formas da
Constituição, junta todo o poder nas mesmas mãos. A tendên-
cia da autoridade legislativa para absorver todas as outras foi
inteiramente exibida e ilustrada por exemplos nos artigos
precedentes!. Em governos puramente republicanos, essa
tendência é quase irresistível. Os representantes do povo,
numa assembleia popular, parecem por vezes imaginar que
são o próprio povo, e traem fortes sintomas de impaciência
e aversão pelo mínimo sinal de oposição venha de que
quadrante vier, como se o exercício dos direitos respectivos,
quer pelo executivo quer pelo judicial, fosse uma violação do
seu privilégio e um ultraje à sua dignidade. Parecem muitas
vezes dispostos a exercer um controlo imperioso sobre os
outros departamentos e, como têm comummente o povo do
seu lado, agem sempre com uma energia tal que torna muito
difícil para os outros órgãos do governo a manutenção do
equilíbrio da Constituição.
Pode talvez perguntar-se: Como é que uma curta duração
de mandato pode afectar a independência do executivo em
relação à legislatura, a menos que um deles detivesse o poder
de nomear ou demitir o outro? Uma resposta a esta pergunta
pode ser extraída do princípio já salientado, ou seja, do escasso
interesse que um homem é capaz de ter numa vantagem de
curta duração e da pouca motivação que lhe proporciona para
se expor, por causa dela, a qualquer inconveniente ou risco
consideráveis. Outra resposta, talvez mais óbvia, embora menos
conclusiva, resultará da consideração da influência da assembleia

I Ver artigos 48 e 49. OC) .

[634]
legislativa sobre o povo, que pode ser empregue para impedir
a reeleição de um homem que, por uma honesta resistência
a algum projecto sinistro dessa assembleia, se tenha tornado
alvo do ressentimento dela.
Pode também perguntar-se se uma duração de quatro
anos responderia ao fim proposto; e se não respondesse, se
um período menor, que seria pelo menos recomendado por
uma maior garantia em relação a desígnios ambiciosos, não
seria, por essa razão, preferível a um período mais longo que
fosse, ao mesmo tempo, demasiado curto para o objectivo de
estimular a desejada firmeza e independência do magistrado.
Não pode afirmar-se que um mandato de quatro anos,
ou qualquer outro período limitado, responda inteiramente
ao fim proposto, mas contribuiria para ele num grau que teria
uma influência substancial no espírito e carácter do governo.
Entre o começo e o fim desse período, haveria sempre um
intervalo considerável, no qual a perspectiva de aniquilação
seria suficientemente remota para não ter um efeito inadequado
sobre o comportamento de um homem dotado de uma
razoável porção de força moral; e no qual ele poderia razoavel-
mente prometer a si mesmo que haveria tempo suficiente,
antes que esse período terminasse, para sensibilizar a comuni-
dade para a justiça das medidas que estivesse disposto a pro-
mover. Embora fosse provável que, à medida que se aproxi-
masse o momento em que o povo deveria, por meio de uma
nova eleição, mostrar a sua opinião sobre a conduta que tinha
tido, declinasse a sua confiança e, com ela, a sua firmeza; e,
todavia, tanto uma como a outra receberiam apoio das oportu-
nidades, que a sua prévia permanência no cargo lhe tinha
proporcionado, de se insinuar na estima e boa vontade dos
seus constituintes. Poderia então, arriscar com segurança, na
proporção das provas de sensatez e integridade que tivesse
dado, e do direito que tivesse adquirido ao respeito e afecto
dos seus concidadãos. Tal como, por um lado, um mandato
de quatro anos contribuiria para a firmeza do Executivo num

[635]
grau suficiente para ser um ingrediente muito valioso na
composição, também, por outro, ele não é suficiente para
justificar qualquer alarme em relação à liberdade pública. Se
a Câmara dos Comuns britânica, com o mais fraco dos come-
ços, por causa do mero poder de concordar ou discordar com o
lançamento de um novo imposto, reduziu, em rápidas passadas,
as prerrogativas da coroa e os privilégios da nobreza aos limites
que concebeu como compatíveis com os princípios de um
governo livre, enquanto se elevava à dignidade e importância
de um ramo co-igual da Legislatura; se foi capaz, numa ocasião,
de abolir tanto a realeza como a aristocracia, e derrubar todas
as instituições antigas, tanto na Igreja como no Estado; se foi
capaz, numa ocasião recente, de fazer tremer o monarca diante
da perspectiva de uma inovação2 tentada por ela, que coisa
seria de temer de um magistrado eleito por um período de
quatro anos, com os poderes limitados de um Presidente dos
Estados Unidos? Que coisa recear, excepto que ele pudesse
não estar à altura da tarefa que a Constituição lhe atribui?
Acrescentarei apenas que, se a duração do seu mandato for
tal que deixe alguma dúvida quanto à sua firmeza, essa dúvida
é inconsistente com uma suspeita de usurpação por parte dele.
PUBLIUS

2 Foi o caso do projecto de lei sobre a Índia do Sr. Fox, que foi aprovado
na Câmara dos Comuns e rejeitado na Câmara dos Lordes, com inteira satisfação,
diz-se, do povo. (Publius) . O projecto de lei, apresentado na Câmara dos Comuns
em 1783 por C harles James Fox, providenciava a reorganização do governo
da Índia. Depois de aprovada por uma votação de dois para um, Jorge III
comunicou à Câmara dos Lerdes que veria como seu inimigo pessoal qualquer
pessoa que votasse a favor dela, e o projecto de lei foi derrotado por treze
votos. QC).

[636]
O FEDERALISTA N." 72
[71]

Continuação do mesmo Assunto


e Consideração da Reelegibilidade do Executivo

ALEXANDER HAMI LTON


19 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

A administração do governo, no seu sentido mais lato,


abrange todas as operações do corpo político, quer seja legis-
lativo, executivo, ou judicial, mas no seu sentido mais usual,
e talvez mais preciso, está limitada a actividades executivas, e
cai mais particularmente dentro da província do departamento
executivo. A condução efectiva das negociações com o estran-
geiro, os planos preparatórios das finanças, a aplicação e
desembolso dos dinheiros públicos em conformidade com as
apropriações gerais da legislatura, os preparativos do exército
e da marinha, a direcção das operações de guerra - estes e
outros assuntos de natureza semelhante constituem o que
parece ser mais propriamente entendido por administração

* Do The Jndependent ) ou mal, 19 de M arço de 1788. Este artigo fo i


publicado em 21 de Março no The New- York Packet. R ecebeu o número 72
na edição de McLean e o número 71 nos jornais. QC).

[637]
do governo. Por conseguinte, as pessoas a cuja administração
imediata estão entregues estes diferentes assuntos devem ser
consideradas como assistentes ou representantes do supremo
magistrado e, neste aspecto, devem obter os seus cargos sendo
nomeados, ou pelo menos indigitados, por ele e devem estar
sujeitos à sua superintendência. Esta maneira de ver a questão
sugerirá imediatamente a íntima ligação entre a duração do
mandato do magistrado executivo e a estabilidade do sistema
de administração. Inverter e desfazer o que foi feito por um
antecessor é muitas vezes considerado por um sucessor como
a melhor prova que pode dar da sua capacidade e merecimento;
e, a acrescentar a esta propensão, nos casos em que a alteração
foi resultado da escolha do povo, a pessoa substituída fica auto-
rizada a supor que a destituição do seu antecessor proveio de
um desagrado em relação às medidas que ele tomou, e que
quanto menos se assemelhar a ele, tanto mais se recomendará
à aprovação dos seus constituintes. Estas considerações, e a
influência de confianças e amizades pessoais, induzirão prova-
velmente cada novo presidente a promover uma mudança de
homens para preencher os postos subordinados; e estas causas
todas juntas não deixarão de ocasionar uma mutabilidade
vergonhosa e ruinosa na administração do governo.
A uma duração positiva do mandato de considerável exten-
são ligo a circunstância da reelegibilidade. A primeira é
necessária para dar ao próprio funcionário a inclinação e a
resolução para desempenhar bem o seu papel, e à comunidade
o tempo e o vagar para observar a tendência das suas medidas,
e daí formar uma avaliação experimental dos seus méritos.
A última é necessária para dar ao povo a capacidade, quando
vê razões para aprovar a conduta desse magistrado, de o manter
no seu lugar com o intuito de prolongar a utilidade dos seus
talentos e virtudes, e de garantir ao governo a vantagem da
permanência num sistema sensato de administração.
Nada parece mais plausível à primeira vista nem mais mal
fundamentado, depois de um exame minucioso, do que o

(638]
esquema que em relação à presente questão teve alguns defen-
sores respeitáveis: quero referir-me ao esquema de manter o
magistrado supremo no seu cargo durante um certo tempo,
e depois excluí-lo dele, quer durante um período limitado,
quer para sempre. Essa exclusão, ou temporária ou perpétua,
teria aproximadamente os mesmos efeitos, e esses efeitos
seriam na sua maior parte mais perniciosos do que salutares.
Um efeito pernicioso da exclusão seria uma diminuição
da motivação para o bom comportamento. No cumprimento
de um dever, existem poucos homens que, quando estão cons-
cientes de que as vantagens do cargo a que o dever está asso-
ciado terão de ser abandonadas numa altura determinada, não
sintam muito menos zelo do que quando lhes é permitido
alimentar uma esperança de obter, por mérito, uma continua-
ção nesse cargo. Esta posição não será disputada enquanto for
admitido que o desejo de recompensa é um dos mais fortes
incentivos da conduta humana, ou que a melhor garantia para
a fidelidade da humanidade é fazer com que os seus interesses
coincidam com os seus deveres. Mesmo o amor da fama, a
paixão que governa os espíritos mais nobres, que impele um
homem para planear e empreender actividades vastas e árduas
em proveito do público, actividades que exigem um tempo
considerável de amadurecimento e aperfeiçoamento, se ele
puder alimentar a perspectiva de ser autorizado a acabar o
que começou, essa mesma paixão impedi-lo-ia, no caso con-
trário, de prosseguir o seu empreendimento ao antever que
teria de abandonar o palco ante de terminar a obra e de entre-
gar essa obra, juntamente com a sua reputação, a mãos que
poderiam não estar à altura ou não gostar da tarefal. Numa

1 Este é um excelente exemplo do método, que percorre O Federalista,


de fazer regular as institu ições pelo qu e poderíamos designa r co mo uma
"economia das paixões". O desejo de fama, por exemplo, aparece aqui, se
bem orientado, como uma paixão que pode ser colocada ao serviço do interesse
comum. (E. P.).

[639]
situação destas, o mais que se pode esperar da generalidade
dos homens é o mérito negativo de não praticar o mal, em
lugar do mérito positivo de fazer o bem.
Outro efeito pernicioso da exclusão seria a tentação para
ter pontos de vista sórdidos, para o peculato e, em alguns
casos, para a usurpação. Um homem avarento, que calhasse
ocupar o cargo, projectando-se para um tempo em que tem,
seja como for, de abandonar os emolumentos de que desfrutou,
sentiria uma propensão, a que não seria facil resistir, de fazer
o melhor uso da oportunidade de que gozava enquanto durasse,
e poderia não ter escrúpulos em recorrer aos meios mais
corruptos para tornar a colheita tão abundante quanto transi-
tória, embora o mesmo homem, provavelmente, com uma
perspectiva diferente diante de si, se pudesse contentar com
os proventos normais da sua situação e pudesse mesmo não
estar disposto a arriscar-se a sofrer as consequências de um
abuso das suas oportunidades. A sua cupidez poderia ser uma
protecção contra ela própria. Acrescente-se a isto que o mesmo
homem poderia ser vaidoso ou ambicioso, bem como cúpido.
E se pudesse esperar prolongar as suas honrarias através do
seu bom comportamento, poderia hesitar em sacrificar o seu
apetite por elas ao seu apetite pelo lucro. Mas tendo diante
dele a perspectiva de se aproximar de uma inevitável cessação,
a sua cupidez teria provavelmente a vitória sobre a sua cautela,
a sua vaidade ou a sua ambição.
Também um homem ambicioso, quando se encontrasse
alcandorado ao cume das honrarias do seu país, quando con-
templasse o momento futuro em que teria de se apear da sua
alta eminência para sempre, e reflectisse que nenhum esforço
de merecimento da sua parte o poderia salvar do indesejável
revés, um homem assim, nessa situação, seria tentado a apro-
veitar uma conjuntura favorável para procurar conseguir o
prolongamento do seu poder, com todos os riscos pessoais,
muito mais violentamente do que se tivesse a probabilidade
de conseguir o mesmo fim pela prática do seu dever.

[640]
Ter meia dúzia de homens que tiveram crédito suficiente
para serem elevados ao cargo da suprema magistratura, deam-
bulando por entre o povo como fantasmas descontentes e
suspirando por um lugar que nunca mais poderão possuir,
promoveria a paz da comunidade ou a estabilidade do governo?
Um terceiro efeito prejudicial da exclusão seria privar a
comunidade da vantagem da experiência adquirida pelo supre-
mo magistrado no exercício do seu cargo. Essa experiência
gera a sabedoria. É um provérbio cuja verdade é reconhecida
pelos mais sensatos bem como pelos mais simples dos homens.
O que é mais desejável e mais essencial do que esta qualidade
nos governantes de nações? Em que caso é mais desejável ou
mais essencial do que no primeiro magistrado de uma nação?
Será sensato colocar esta qualidade essencial sob a proibição
da Constituição e declarar que, no momento em que ela é
adquirida, o seu possuidor deverá ser obrigado a abandonar
o posto no qual foi adquirida, e ao qual está adaptado? Este,
todavia, é o alcance preciso de todas essas normas que excluem
certos homens de servirem o seu pais, por escolha dos seus
concidadãos, depois de se terem preparado, através de uma
carreira de serviço, para o fazer com um grau maior de uti-
lidade.
Um quarto efeito nocivo da exclusão seria proibir o acesso
de certos homens a cargos em que, em certas emergências
do Estado, a sua presença poderia ser da maior importância
para o interesse ou para a segurança públicos. Não há nação
que, num ou noutro momento, não tenha experimentado
uma necessidade absoluta dos serviços de determinados homens
em situações determinadas e, talvez não seja demasiado forte
dizê-lo, para a preservação da sua existência politica. Por con-
sequência, quão insensatos devem ser todos os decretos de
automutilação como os que servem para proibir uma nação
de usar os seus próprios cidadãos da maneira que melhor se
enquadra nas suas exigências e circunstâncias! Mesmo sem
supor a essencialidade pessoal do homem, é evidente que uma

[641]
troca do supremo magistrado, quando rebenta uma guerra
ou em qualquer crise semelhante, por um outro, ainda que
de mérito equivalente, será sempre em detrimento da comu-
nidade, na medida em que substituirá a experiência pela
inexperiência, e tenderá para transtornar e pôr à deriva os
procedimentos já ajustados da administração.
Um quinto efeito indesejável da exclusão seria que operaria
como uma interdição constitucional da estabilidade da admi-
nistração. Por necessitar de urna mudança de homens no primeiro
cargo da nação, ela necessitaria de uma mutabilidade de
medidas. Não se deve esperar, em geral, que os homens variem
e as medidas permaneçam uniformes. O contrário é que é
normal no decurso das coisas. E não precisamos de ficar
apreensivos que venha a existir demasiada estabilidade, quando
até existe a opção de mudar. Nem precisamos de desejar que
se proíba o povo de manter a sua confiança onde pensa que
ela possa estar posta com segurança, e onde, pela constância
por sua parte, o povo pode obviar aos inconvenientes fatais
de conselhos incertos e de uma política variável.
Estas são algumas das desvantagens que decorreriam do
princípio de exclusão. Aplicam-se muito energicamente ao
esquema da exclusão perpétua, mas, quando consideramos
que mesmo urna exclusão parcial tornaria sempre remota e
precária a readmissão da pessoa, as observações que foram
feitas aplicam-se quase tão completamente a um caso como
ao outro.
Quais são as vantagens prometidas para contrabalançar
estas desvantagens? É-nos dito que são: primeiro, maior inde-
pendência do magistrado; segundo, mais segurança para o
povo. A menos que a exclusão seja perpétua, não haverá pre-
tensões a demonstrar a primeira vantagem. Mas mesmo nesse
caso, não pode ele ter um objectivo para lá do seu cargo pre-
sente, ao qual possa sacrificar a sua independência? Não pode
ele ter relações, amigos, a bem dos quais possa sacrificá-la?
Não pode ele estar menos disposto a criar inimigos pessoais,

[642)
por causa de um comportamento firme, quando age debaixo
da impressão de que se aproxima celeremente um momento
em que ele não só PODE, mas DEVE, ficar exposto aos seus
ressentimentos, em pé de igualdade ou numa posição inferior?
Não é facil determinar se a sua independência seria mais pro-
movida ou mais comprometida por um arranjo deste tipo.
Quanto à segunda hipotética vantagem há ainda mais
razões para alimentar dúvidas a seu respeito. Se a exclusão
devesse ser perpétua, um homem de ambição irregular, o
único em relação ao qual poderia em qualquer caso haver
razão para alimentar apreensões, dobrar-se-ia, com infinita
relutância, à necessidade de se despedir para sempre de um
posto no qual a sua paixão pelo poder e pela preeminência
tinha adquirido a força de hábito. E se tivesse sido suficiente-
mente afortunado ou hábil para captar a boa vontade do povo,
podia induzir este último a considerar como uma restrição
odiosa e injustificável tombando sobre o próprio povo, como
uma cláusula que tinha a intenção de excluí-lo de dar novas
provas do seu afecto por um favorito. Podem ser concebidas
circunstâncias em que esse descontentamento do povo, secun-
dando a frustrada ambição de um tal favorito, poderia ocasionar
maiores perigos para a liberdade do que os que se poderiam
razoavelmente recear de uma perpetuação no cargo, pelos
sufrágios voluntários da comunidade, exercendo um privilégio
constitucional.
Há um excesso de refinamento na ideia de incapacitar o
povo de manter no cargo homens que fizeram jus, na sua opi-
nião, à aprovação e confiança, cujas vantagens são no melhor
dos casos especulativas e equívocas, e pesam menos que des-
vantagens muito mais certas e decisivas.
PUBLIUS

[643]
O FEDERALISTA N. 73 0

[72]

A Disposição para o Sustento do Executivo


e o Poder de Veto

ALEXANDER HAMILTON
21 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O terceiro ingrediente para constituir o vigor da autoridade


executiva é uma provisão adequada para o seu sustento.
É evidente que, sem uma apropriada atenção a este artigo, a
separação dos departamentos executivo e legislativo seria
apenas nominal e sem valor. A Legislatura, com um poder
discricionário sobre o salário e os emolumentos do Supremo
Magistrado, podia torná-lo tão obsequioso da sua vontade
quanto julgasse apropriado fazê-lo. Podiam, em muitos casos,
derrotando-o pela fome ou tentando-o com larguezas, sub-
meter quanto quisessem a sua opinião às inclinações dela.
Estas expressões, tomadas em toda a latitude dos termos, sem

* Do The New- Ytlrk Packet, 21 de Março de 1788. Este artigo foi publicado
em 22 de Março no The Independent j ournal. Recebeu o número 73 na edição
de McLean e o número 72 nos jornais. QC) .

[645)
dúvida que transmitirão mais do que o que se pretende. Exis-
tem homens que não podem ser afligidos nem conquistados
para um sacrifício do seu dever. Mas esta austera virtude é
coisa rara; e no essencial descobrir-se-á que um poder sobre
o sustento de um homem é um poder sobre a sua vontade.
Se fosse necessário confirmar urna verdade a tal ponto evidente,
não faltariam os exemplos, mesmo no nosso pais, da intimi-
dação ou sedução do executivo pelos terrores ou encantos
dos arranjos pecuniários do corpo legislativo.
Por conseguinte, não é fãcil elogiar em demasia a atenção
judiciosa que foi dada a este assunto na Constituição proposta.
Estipula-se nela que "O presidente receberá, em épocas deter-
minadas, uma remuneração pelos seus serviços, que não poderá
ser aumentada ou reduzida durante o periodo para o qual foi eleito
e não receberá, durante esse periodo, qualquer outro emolumento dos
Estados Unidos ou de qualquer dos seus Estados"t . É impossível
imaginar uma cláusula que fosse mais aceitável do que esta.
A Legislatura, na nomeação de um Presidente, deve declarar
de uma vez por todas qual será a compensação pelos seus
serviços durante o período para que foi eleito. Feito isto, não
terá poder para o alterar, nem aumentando-o nem diminuin-
do-o, até que uma eleição inicie um novo período de serviço.
Não pode nem enfraquecer a sua força moral explorando
as suas necessidades, nem corromper a sua integridade ape-
lando para a sua cupidez. Nem a União nem nenhum dos
seus membros terá liberdade para conceder, nem o Presi-
dente terá liberdade para receber, qualquer outro emolumento
além do determinado pelo primeiro decreto. Ele não terá, é
claro, motivação pecuniária para renunciar ou se demitir da
independência que a Constituição tem a intenção de lhe
conferir.
O último dos requisitos para a energia que foram enumera-
dos é a existência de poderes apropriados. Prossigamos agora

1 Art. 0 2, secção I, cláusula 7. (E.P).

[646]
para o exame dos poderes propostos para serem investidos no
Presidente dos Estados Unidos.
A primeira coisa que se oferece à nossa observação é o
veto qualificado do Presidente sobre as leis ou resoluções das
duas Câmaras da Legislatura; ou, por outras palavras, o seu
poder de devolver os projectos de lei juntamente com objec-
ções, para ter o efeito de impedir que eles se tornem leis, a
menos que sejam posteriormente ratificados por dois terços
de cada um dos membros componentes do corpo legislativo.
A propensão do departamento legislativo para se intrometer
ilegitimamente nos direitos dos outros departamentos e para
absorver os seus poderes foi já sugerida e repisada. A insufi-
ciência de uma simples delineação em pergaminho das frontei-
ras de cada um também já foi mencionada. E a necessidade
de dar a cada um armas constitucionais para a sua própria
defesa foi inferida e demonstrada2. Destes claros e indubitáveis
princípios resulta a justeza de um veto, absoluto ou qualificado,
para o executivo, a exercer sobre as leis dos ramos legislativos.
Sem um ou outro, o primeiro ficaria absolutamente incapaz
de se defender das depredações dos últimos. Podia ser gradual-
mente despojado da sua autoridade através de resoluções suces-
sivas, ou aniquilado por uma única votação. E, de um modo
ou do outro, os poderes legislativo e executivo podiam rapida-
mente vir a ficar misturados nas mesmas mãos. Mesmo se
nunca tivesse manifestado nenhuma propensão no corpo legis-
lativo para usurpar os direitos do executivo, as normas do
raciocínio sólido e da correcção teórica ensinar-nos-iam por
si sós que um não deve ser deixado à mercê do outro, mas
deve possuir um poder constitucional e efectivo de autodefesa.
M as o poder em questão tem uma utilização adicional.
Não somente serve como escudo para o executivo, mas pro-
porciona uma garantia suplementar contra a aprovação de leis

2 Ver artigos 48 e 49. Hamilton também discutiu o assunto nos artigos


69 e 71. QC) .

[647]
injustas. Estabelece um controlo salutar sobre o corpo legisla-
tivo, calculado para proteger a comunidade dos efeitos das
facções, da precipitação, ou de qualquer impulso hQ,stil ao
bem público, que possam vir a influenciar uma maioria desse
corpo.
A justeza de um veto foi, em algumas ocasiões, combatida
por uma observação que não se deveria presumir que um
único homem possuísse maior virtude e sabedoria do que
um grupo de homens e que, a menos que se aceitasse essa
presunção, seria incorrecto dar ao magistrado executivo
qualquer espécie de controlo sobre o corpo legislativo.
Mas esta observação, quando examinada, revelar-se-á mais
ilusória do que sólida. A correcção da coisa não gira em volta
da suposição de sabedoria ou virtude superiores no executivo,
mas em torno da suposição de que a legislatura não será
infalível, de que o amor pelo poder pode por vezes seduzi-
-la para uma disposição para usurpar os direitos de outros
órgãos do governo, de que um espírito de facção pode por
vezes perverter as suas deliberações e de que as impressões do
momento podem por vezes precipitá-la para medidas que ela
própria, depois de uma mais madura reflexão, condenaria.
O motivo principal para conferir o poder em questão ao
executivo é dar-lhe a capacidade de se defender e o secundário
é aumentar as probabilidades favoráveis à comunidade contra
a aprovação de leis injustas, por causa da pressa, da inadvertência
ou propositadamente. Quanto mais vezes se submeter a exame
uma medida, quanto maior for a diversidade de situações
daqueles que irão examiná-la, tanto menor deve ser o perigo
desses erros que decorrem da ausência da adequada deliberação,
ou daqueles maus passos que derivam do contágio de alguma
paixão ou interesse comuns. É muito menos provável que
intenções culpáveis de qualquer natureza venham a infectar
todas as partes do governo, no mesmo momento e em relação
ao mesmo objecto, do que elas venham sucessivamente a
governar e enganar cada um deles.

[648]
Pode talvez dizer-se que o poder de impedir leis injustas
inclui o poder de impedir leis justas e que pode ser usado
para esse fim tão bem como para o outro. Mas esta objecção
terá pouco peso para os que são capazes de avaliar correcta-
mente os prejuízos dessa inconstância e mutabilidade das leis
que constitui o maior defeito do carácter e génio dos nossos
governos. Esses considerarão cada instituição concebida para
restringir os excessos da legislação e para manter as coisas no
mesmo estado em que possam estar num momento dado
qualquer, como fazendo mais provavelmente bem do que
mal, porque ela é favorável a uma maior estabilidade no sistema
da legislação. O dano que possivelmente venha a ser feito por
causar o malogro de algumas leis justas será amplamente com-
pensado pela vantagem de impedir uma grande quantidade
de leis injustas.
E isto não é tudo. O peso e a influência superiores do
corpo legislativo num governo livre, e o risco para o executivo
numa prova de força com esse corpo, proporcionam uma
garantia satisfatória de que o veto será geralmente empregue
com grande cautela e de que, no seu exercício, haverá mais
vezes ocasião para uma acusação de timidez do que para uma
de temeridade. Um rei da Grã-Bretanha, com todo o seu
cortejo de atributos soberanos e com toda a influência que
deriva de um milhar de fontes, hesitaria, nos dias de hoje, em
vetar as resoluções conjuntas das duas câmaras do Parlamento.
Não deixaria de empregar os mais extremos recursos dessa
influência para estrangular, no seu progresso para o trono,
uma medida que lhe fosse desagradável, para evitar ficar redu-
zido ao dilema de permitir que entrasse em vigor ou de arriscar
o descontentamento da nação por causa de uma oposição à
opinião do corpo legislativo. E também não é provável que,
em última instância, se aventurasse a exercer as suas prerro-
gativas, excepto num caso de manifesta justiça, ou de extrema
necessidade. Todos os homens bem informados nesse reino
concordariam com a justeza desta observação. Já se passou

[649]
um período considerável desde que o veto da coroa foi exercido
pela última vez.
Se um magistrado tão poderoso e tão bem defendido
como um monarca britânico teria escrúpulos acerca do exer-
cício do poder que estamos a considerar, quanto maior não
será a cautela que se pode razoavelmente esperar do Presidente
dos Estados Unidos, investido por um curto período de quatro
anos da autoridade executiva de um governo inteira e pura-
mente republicano.
É evidente que existiria um perigo maior de ele não usar
do seu poder quando necessário do que de o usar com dema-
siada frequência ou excessivamente. Na verdade, foi extraído
desta fonte um argumento contra esta conveniência. Foi
mostrado, nesse argumento, como sendo um poder odioso
na aparência e inútil na prática. Mas do facto de poder ser
exercido raramente não se infere que nunca será exercido.
No caso para que foi especialmente concebido, o de um
ataque imediato aos direitos constitucionais do executivo, ou
num caso em que o bem público fosse evidente e claramente
sacrificado, um homem de razoável firmeza servir-se-ia dos
seus meios de defesa constitucionais e daria ouvidos às adver-
tências do dever e da responsabilidade. Na primeira hipótese,
a sua força moral seria estimulada pelo seu interesse imediato
no poder do seu cargo e na última, pela probabilidade da
aprovação dos seus constituintes que, embora se inclinassem
naturalmente para o corpo legislativo num caso duvidoso,
dificilmente suportariam a parcialidade deste para os enganar
num caso muito claro. Falo agora tendo em vista um magis-
trado que apenas possua um normal quinhão de firmeza.
Existem homens que, em quaisquer circunstâncias, terão a
coragem de cumprir o seu dever a todo o custo.
Mas a Convenção procurou um termo médio neste
assunto, que simultaneamente facilitará o exercício do poder
investido para este fim no magistrado executivo e fará com
que a sua eficácia dependa da opinião de uma parte consi-

[650]
derável do corpo legislativo. Em vez do veto absoluto, é
proposto que se dê ao Executivo o veto qualificado já descrito.
Este é um poder que seria exercido muito mais facilmente
do que o outro. Um homem que poderia ter medo de anular
uma lei só com o seu simples VETO pode não ter escrúpulos
em devolvê-la para ser reconsiderada, sujeita a ser finalmente
rejeitada somente na eventualidade de mais de um terço de
cada câmara concordar com as suas objecções. Esse homem
seria encorajado pela reflexão de que, a sua oposição, se viesse
a prevalecer, seria partilhada por uma parte muito respeitável
do corpo legislativo, cuja influência seria acrescentada à sua
própria no apoio à correcção da sua conduta junto da opinião
pública. Um veto directo e categórico tem na sua aparência
alguma coisa de mais chocante, e mais capaz de irritar, do
que a mera sugestão de objecções argumentativas a serem
aprovadas ou reprovadas por aqueles a quem são dirigidas. Na
proporção em que seria menos capaz de ofender, seria mais
capaz de ser exercido e, por esta mesma razão, pode, na prática,
ser considerado mais eficaz. É de esperar que não aconteça
muitas vezes que pontos de vista incorrectos venham a dominar
uma proporção tão grande como dois terços de ambos os
ramos da Legislatura ao mesmo tempo, e isto, também, apesar
do peso equilibrante do Executivo. Em qualquer caso é menos
provável que aconteça isto do que aconteça que esses pontos
de vista venham a contaminar as resoluções e a conduta de
uma maioria simples. Um poder desta natureza, no executivo,
terá muitas vezes uma actuação silenciosa e despercebida,
embora enérgica. Quando os homens empenhados em acti-
vidades injustificáveis têm consciência de que podem surgir
obstruções de um quadrante que não podem controlar, são
frequentemente refreados, pelo simples receio de oposição,
de fazer aquilo para que se precipitariam com impaciência se
não fossem de recear tais impedimentos externos.
Este veto qualificado, como já foi observado noutro local,
está, no nosso Estado, investido num conselho composto pelo

[651]
Governador juntamente com o Chanceler e os Juízes do
Supremo Tribunal, ou em dois quaisquer de entre eles3. Foi
livremente usado numa variedade de ocasiões, e muitas vezes
com sucesso. E a sua utilidade tornou-se tão visível que as
pessoas que, ao compilar a Constituição, eram violentos oposi-
tores dele se tornaram a partir da experiência seus admiradores
declarados. 4
Observei noutro lugar que a Convenção, na formação
desta parte do seu plano, se afastou do modelo da Constituição
deste Estado, em benefício do modelo do Estado de Massa-
chusettss. Podem ser imaginadas duas razões fortes para esta
preferência. Uma é que os Juízes, que deverão ser os intér-
pretes da lei, podem vir a mostrar uma parcialidade incor-
recta, por terem dado uma opinião anterior no uso da sua
competência de revisão. A outra é que, por estarem frequente-
mente associados com o executivo, podem ser induzidos a
concordar demasiado com os pontos de vista políticos desse
magistrado, e assim poderia ser cimentada, degrau a degrau,
uma poderosa combinação entre os departamentos executivo
e judicial. É impossível manter os juízes muito separados de
todas as outras ocupações além da de interpretar as leis. É par-
ticularmente perigoso colocá-los numa situação em que pos-
sam ser corrompidos ou influenciados pelo executivo.
PUBLIUS

3 Ver artigo 69. QC).


4 O Sr. Abraham Yates, um violento opositor do plano da Convenção,
conta-se neste número. (Publius). Este eminente e influente politico de Albany
(Nova Iorque), um ardente antifederalista, escreveu e discursou contra qualquer
aumento dos poderes do Congresso Continental ao longo dos anos 1780, e
era, em 1788, um chefe da oposição à Constituição proposta. QC) .
a
5 .Ver artigo 69. C).

[652]
O FEDERALISTA N. 0 74
[73]

O Comando das Forças Terrestres e Navais


e o Poder de Perdão do Executivo

ALEXANDER HAMILTON
25 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de ova Iorque.

O Presidente dos Estados Unidos deverá ser o "Coman-


dante Supremo do Exército e da Armada dos Estados Unidos
e da Milicia dos diversos Estados, quando convocada para o serviço
dos Estados Unidos"1 . A correcção desta cláusula é tão evidente
por si mesma e, ao mesmo tempo, está tão em harmonia com
os precedentes das Constituições dos Estados em geral, que
pouca coisa precisa de ser dita para a explicar ou para a fazer
cumprir. Mesmo aqueles de entre eles que, noutros aspectos,
associaram um Conselho ao Supremo Magistrado concen-
traram a parte mais importante da autoridade militar apenas

* Do Tlze lndependent j ournal, 25 de Março de 1788. Este arti go foi


publicado em 26 de Março no Th e New-York Packet. Recebeu o número 74
na edi ção de McLean e o número 73 nos jornais. OC).
I Art. 1, secção II , cláusula 1. (E.P).
0

[653]
neste último. De todas as preocupações e interesses do governo,
a direcção da guerra exige da forma mais peculiar essas quali-
dades que distinguem o exercício do poder por uma única
mão. A direcção da guerra implica a direcção da força comum
e o poder de dirigir e empregar a força comum constitui uma
parte usual e essencial da definição da autoridade executiva2 .
" O Presidente poderá pedir a opinião, por escrito, do
chefe de cada um dos departamentos do executivo sobre
assuntos relativos às suas atribuições."3 Considero isto como
uma simples redundância do plano, dado que o direito que
estipula resulta por si só do cargo.
Ele será também autorizado a conceder "indultos e perdões
por delitos contra os Estados Unidos, excepto nos casos de
impugnação por crimes de responsabilidade"4. A humanidade e a
boa politica concorrem para ditar que a benigna prerrogativa
do perdão deva ser impedida ou dificultada tão pouco quanto
possível. O código criminal de todos os países partilha em
tão grande medida da severidade necessária, que, sem um
fãcil acesso a excepções a favor da culpa desventurada, a justiça
apresentaria um semblante demasiado sanguinário e cruel.
Como o sentido de responsabilidade é sempre mais forte na
proporção em que é indiviso, pode inferir-se que um único
homem estaria mais pronto a atender ao valor de motivos que
pudessem pugnar por uma mitigação do rigor da lei e menos
apto a render-se a considerações que foram concebidas para
abrigar um objecto legítimo da sua vingança. A reflexão de
que o destino de um semelhante depende apenas da sua ordem
inspiraria naturalmente escrupulosidade e cautela; o medo de

2 De entre os três autores de O Federalista, Hamilton era aquele que

melhor habilitado estava para falar com propriedade de assuntos militares e


política de defesa. O seu desempenho militar na Guerra de Independência é
verdadeiramente notável. Em 1798, seria nomeado pelo Presidente John Adams,
Inspector-Geral das Forças Armadas. (E. P.).
3 Ibidem. (E. P.).

4 Ibidem. (E. P.) .

[654]
ser acusado de fraqueza ou conivência produziria igual cir-
cunspecção, embora de uma espécie diferente. Por outro lado,
como os homens geralmente derivam a sua confiança de serem
muitos, podem com frequência encorajar-se uns aos outros
num acto de obstinação, e podem ser menos sensíveis ao
receio de suspeita ou censura por uma clemência pouco judi-
ciosa ou emocionada. Nestes aspectos, um homem parece
ser, mais do que um corpo de homens, um administrador
mais aceitável da clemência do governo.
A conveniência de investir o poder de perdão no Presidente
apenas tem sido contestada, se não me engano, em relação
ao crime de traição. Foi alegado que este último deveria ter
ficado a depender do assentimento de um ou de ambos os
ramos do corpo legislativo. Não negarei que há fortes razões
a aduzir para requerer neste caso particular o concurso desse
corpo, ou de uma parte dele. Como a traição é um crime
contra a existência imediata da sociedade, uma vez que as leis
tenham averiguado a culpa do criminoso, parece ser apropriado
entregar a conveniência de um acto de clemência para com
ele ao julgamento da Legislatura. E isto ainda deveria ser mais
assim, dado que a suposição de conivência do Supremo Magis-
trado não deveria ser inteiramente excluída. Mas há também
fortes objecções a um tal plano. Não se pode duvidar de que
um único homem prudente e de bom senso está mais bem
adaptado, em conjunturas delicadas, para balancear os motivos
que podem advogar a favor e contra a remissão do castigo,
do que o está um corpo numeroso, seja ele qual for. Merece
particular atenção o facto de que a traição estará frequente-
mente ligada a sedições que abrangem uma grande porção da
comunidade, como recentemente aconteceu no Massachu-
settsS. Num caso como esse podemos esperar ver a representa-
ção do povo manchada com o mesmo espírito que deu origem
ao crime. E quando os partidos estiverem em pé de igualdade,

5 Hamilton referia-se à rebelião de Shays. Ver artigo 6. QC).

[655]
a simpatia secreta dos amigos e defensores da pessoa condenada,
aproveitando-se da bonomia e fraqueza dos outros, podem
frequentemente conferir impunidade nos casos em que era
necessário o terror de um exemplo. Por outro lado, quando
a sedição proveio de causas que inflamaram os ressentimentos
do partido maioritário, este pode muitas vezes mostrar- se
obstinado e inexorável, quando a política pedia uma conduta
de indulgência e clemência. Mas o argumento principal para
confiar, neste caso, o poder de perdão ao Supremo Magistrado
é este: que, em períodos de insurreição ou rebelião, há muitas
vezes momentos críticos em que uma atempada oferta de
perdão aos insurrectos ou rebeldes pode restaurar a tranquili-
dade da comunidade, e que, se for permitido que sejam desa-
proveitados, podem nunca mais voltar a ocorrer. O processo
dilatório de reunir a Legislatura, ou um dos seus ramos, com
o propósito de obter a aprovação da medida, daria frequente-
mente ocasião a que se deixasse fugir a preciosa oportunidade.
A perda de uma semana, de um dia, de uma hora, pode por
vezes ser fatal. Se for observado que um poder discricionário
com vista a estas contingências pode ser ocasionalmente
conferido ao Presidente, pode responder-se em primeiro lugar
que é questionável se, numa Constituição limitada, essa
competência possa ser delegada por lei, e, em segundo lugar,
que seria em geral pouco político dar antecipadamente qual-
quer passo que pudesse prometer a perspectiva de impunidade.
Um procedimento destes, fora do curso normal, seria prova-
velmente interpretado como um argumento de timidez ou
de fraqueza, e teria tendência para encorajar a culpa.
PUBLIUS

[656]
O FEDERALISTA N." 75
[74]

O Poder de Celebrar Tratados do Executivo

ALEXANDER HAMILTON
26 de Março de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorqu e.

O Presidente terá poderes, "mediante parecer e aprovação


do Senado, para celebrar tratados, de de que dois terços dos
senadores presentes concordem"'· Embora esta cláusula tenha
sido assaltada, com diferentes fundamentos, com não pequeno
grau de veemência, não tenho escrúpulos em declarar a minha
firme persuasão de que é uma das partes mais amadurecidas
e mais irrepreensíveis do plano. Um fundamento para objecção
é o tópico trivial da amálgama de poderes, defendendo alguns
que o presidente deveria ser o único a possuir o poder de
celebrar tratados, outros, que ele deveria ser exclusivamente
depositado no Senado. Outra fonte de objecções é derivada

* Do TI!e lndependent Journal, 25 de Março de 1788. Este artigo foi publi-


cado em 28 de Março no TI1e lndependent ] ou mal. Recebeu o número 75 na
edição de McLean e o número 74 nos jornais. QC) .
1 Art." 1, secção II, cláusula 2. (E. P).

[657)
do pequeno número de pessoas por quem pode ser celebrado
um tratado. Dos que abraçam esta objecção, uma parte é de
opinião de que a Câmara dos Representantes deveria estar a
associada neste assunto, enquanto outra parte parece pensar
que nada mais seria necessário além de substituir dois terços
dos membros presentes do Senado por dois terços de todos os
membros do mesmo. Como tenho confiança em que as obser-
vações feitas num artigo precedente acerca desta parte do
plano devem ter sido suficientes para o colocar, para um olhar
perspicaz, numa luz muito favorável2, contentar-me-ei aqui
com apresentar apenas algumas observações suplementares,
tendo principalmente em vista as objecções que acabam de
ser expostas.
Em relação à combinação de poderes, fiar-me-ei nas
explicações, já dadas noutra parte, acerca do verdadeiro sentido
da regra3 em que essa objecção é fundada. E tomarei como
certo, como uma inferência dessas explicações, que a união
do Executivo com o Senado, em matéria de tratados, não é
uma transgressão dessa regra. Arrisco-me a acrescentar que a
natureza particular do poder de celebrar tratados indica uma
correcção peculiar dessa união. Embora várias pessoas que
escreveram sobre o assunto da governação coloquem esse
poder na classe das autoridades executivas, isso é, evidente-
mente, uma disposição arbitrária, porque, se atendermos cui-
dadosamente ao seu modo de operar, notar-se-á que ele par-
tilha mais do carácter legislativo do que do carácter executivo,
embora não pareça cair estritamente dentro da definição de
qualquer deles. A essência da autoridade legislativa é fazer
leis, ou, por outras palavras, prescrever normas para a regulação
da sociedade. Ao passo que a execução das leis e o emprego
da força comum, quer para este propósito quer para a defesa
comum, parecem incluir todas as funções do magistrado exe-

2 O assunto tinha sido discutido porJohnJay no artigo 64. QC) .


3 Ver artigos 47 e 48 . QC).

[658]
cutivo. O poder de celebrar tratados não é, manifestamente,
nem uma coisa nem outra. Não se relaciona nem com a exe-
cução das leis existentes nem com a promulgação de novas
e é ainda menos um uso da força comum. Os seus objectos
são CONTRATOS com nações estrangeiras, que têm a força de
lei, mas que derivam essa característica das obrigações da boa
fé. Não são normas prescritas pelo soberano ao súbdito, mas
acordos entre um soberano e outro. O poder em questão
parece pois constituir um departamento distinto e não per-
tencer, com propriedade, nem ao legislativo nem ao executivo4.
As qualidades especificadas noutro lugar como indispensáveis
para a consecução das negociações com o estrangeiroS apontam
para o executivo como o agente mais bem adaptado a essas
transacções; ao passo que a vasta importância da responsabili-
dade e o funcionamento dos tratados como idênticos às leis
pugnam fortemente pela participação do todo ou de uma
parte do corpo legislativo na tarefa de os celebrar.
Por mais apropriado e seguro que possa ser, em governos
em que o magistrado executivo é um monarca hereditário,
entregar-lhe todo o poder de celebrar tratados, seria absoluta-
mente inseguro e inapropriado confiar esse poder a um magis-
trado eleito para um mandato de quatro anos. Foi observado,
noutra ocasião, e a observação é inquestionavelmente correcta,
que um monarca hereditário, embora seja muitas vezes um
opressor do seu povo, tem muito a arriscar pessoalmente no
governo para que exista qualquer perigo substancial de ele
ser corrompido por potências estrangeiras6. Mas um homem
elevado do estatuto de cidadão privado à hierarquia de supremo
magistrado, possuindo apenas uma fortuna moderada ou parca,

4 H amilton segue aqui a reflexão de Locke, que chega a identificar as


relações internacionais como constituindo um poder especial que ele designa
por " poder federativo" (federative power): Seco nd Treatise on Govemment ,
cap. XII,§ 146. (E. P.) .
5 Ver artigos 53 e 64. QC) .
6 Ver artigo 22 . QC).

[659]
e antecipando um período não muito remoto em que pode
provavelmente ser obrigado a regressar à posição social de
onde proveio, pode por vezes ter tentações de sacrificar o seu
dever ao seu interesse, para resistir às quais lhe seria exigida
uma virtude superlativa. Um homem avaro pode ser tentado
a trair os interesses do Estado para adquirir riqueza. Um
homem ambicioso pode fazer do seu próprio engrandeci-
mento, com a ajuda de uma potência estrangeira, o preço da
sua traição para com os seus constituintes. A história do com-
portamento humano não garante essa alta opinião da virtude
humana que faria com que fosse sensato que uma nação
confiasse interesses de uma natureza tão delicada e importante
como os que respeitam ao seu intercâmbio com o resto do
mundo à inteira disposição de um magistrado, investido e
contingente, como o seria o presidente dos Estados Unidos.
Ter confiado o poder de celebrar tratados unicamente ao
Senado teria sido renunciar aos benefícios da actuação cons-
titucional do presidente na condução das negociações com o
estrangeiro. É verdade que, nesse caso, o Senado teria a opção
de o empregar nessa qualidade, mas teria também a opção de
o deixar de lado, e o despeito e o conluio podiam induzir a
escolha da última mais do que da primeira. Além disto, não
se poderia esperar que o agente ministerial do Senado desfru-
tasse da confiança e respeito das potências estrangeiras num
grau semelhante ao dos representantes constitucionais da nação
e, é claro, ele não seria capaz de agir com igual grau de impor-
tância ou de eficácia. Enquanto a União perderia, por causa
disto, uma vantagem considerável na condução dos seus assun-
tos externos, o povo perderia a garantia adicional que resultaria
da cooperação do executivo. Embora fosse imprudente confiar
somente a este uma responsabilidade tão importante, não
pode apesar disso duvidar-se de que a sua participação aumen-
taria substancialmente a segurança da sociedade. Na verdade,
deve ser claro que a posse conjunta do poder em questão,
pelo Presidente e pelo Senado, proporcionaria uma melhor

[660]
perspectiva de segurança do que a posse separada desse poder
por qualquer deles. E quem quer que tenha pesado madura-
mente as circunstâncias que devem concorrer para a nomeação
de um Presidente ficará convencido de que estas prometerão
sempre que o cargo será preenchido por homens com um
carácter capaz de tornar particularmente desejável o seu con-
curso na celebração de tratados, tanto pelos traços da sensatez
como pelo da integridade.
As observações feitas num artigo anterior, às quais se aludiu
noutra parte deste artigo, aplicar-se-ão com força conclusiva
contra a admissão da Câmara dos Representantes a um papel
na negociação de tratados. A composição flutuante e, tendo
em conta o seu aumento futuro, numerosa dessa assembleia
interdita-nos de esperar nela essas qualidades que são essenciais
para a execução apropriada desse encargo. Um conhecimento
preciso e abrangente da política externa, uma firme e siste-
mática fidelidade aos mesmos pontos de vista, urna sensibilidade
escrupulosa e uniforme ao carácter nacional, decisão, sigilo e
celeridade, são incompatíveis com a índole de uma assembleia
tão variável e tão numerosa. A própria complicação do assunto,
pela introdução da necessidade da cooperação de tantos corpos
diferentes, proporcionaria por si só uma sólida objecção.
A maior frequência das convocações da Câmara dos Repre-
sentantes e o maior período de tempo que frequentemente
seria necessário mantê-la reunida quando em sessão, para
obter a sua aprovação nas fases progressivas de um tratado,
seria uma fonte de tanta inconveniência e despesa que só por
si deveria condenar o projecto.
A única objecção que falta debater é a de que substituiria
a proporção de dois terços dos membros presentes do corpo
senatorial por dois terços de todos os membros. Foi mostrado,
no segundo tópico das nossas investigações, que todas as dis-
posições que requerem mais do que maioria de qualquer
assembleia para as suas resoluções têm uma tendência directa
para criar embaraços às operações de governação, e uma ten-

[661]
ciência indirecta para submeter a opinião da maioria à da
minoria. Esta consideração parece ser suficiente para determinar
a nossa opinião, que a Convenção foi tão longe no esforço
para garantir a vantagem numérica na formação de tratados
quanto o que podia ser reconciliado quer com a actividade
dos conselhos públicos quer com uma atenção razoável à
opinião prevalecente da comunidade. Se tivessem sido exigidos
dois terços do número total, em muitos casos isso equivaleria
na prática a uma necessidade de unanimidade, pela não com-
parência de uma parte. E a história de todas as instituições
políticas em que este princípio prevaleceu é uma história de
impotência, perplexidade e confusão. Podem ser aduzidas
demonstrações desta posição dos exemplos do Tribunato
romano, da Dieta polaca, e dos Estados Gerais dos Países
Baixos, se um exemplo na nossa própria casa não tornasse
desnecessários os precedentes estrangeiros.
Exigir uma proporção fixa de toda a assembleia não
contribuiria, com toda a probabilidade, para as vantagens de
uma representação numerosa, mais do que exigir apenas uma
proporção dos membros presentes. A primeira, por tornar
sempre necessário um número determinado para aprovar uma
resolução, diminui os motivos de comparência pontual.
A última, por fazer depender a capacidade da assembleia de
uma proporção que pode variar em função da presença ou
ausência de um simples membro, tem o efeito contrário.
E, como, por promover a pontualidade, tende para manter
completa a assembleia, há grandes possibilidades de que as
suas resoluções sejam geralmente ditadas por um número tão
grande num caso como no outro; ao passo que haveria muito
menos ocasiões para adiamento. Não deve esquecer-se que,
ao abrigo da Confederação existente, dois membros podem
representar um Estado, e normalmente representam-no. Por
este motivo acontece que o Congresso, em quem estão pre-
sentemente investidos com exclusividade todos os poderes da
União, raramente consiste num número maior de membros

[662]
do que o Senado projectado. Se acrescentarmos que, como
os membros votam por Estados, e que, quando está um único
membro presente de um Estado, o seu voto é perdido, justifica-
-se uma suposição de que as vozes activas no Senado, em que
os membros votarão individualmente, raramente ficará aquém
em número das vozes activas no Congresso existente. Quando,
adicionalmente a estas considerações, tomarmos em conta a
cooperação do presidente, não deveremos hesitar em inferir
que o povo da América gozará de maior segurança em relação
a um uso incorrecto do poder de celebrar tratados, segundo
a nova Constituição, do que aquele de que agora desfruta
segundo a Confederação. E se dermos ainda mais um passo,
e anteciparmos o provável aumento do Senado, pela criação
de novos Estados, não só encontraremos ampla base de
confiança na suficiência do número de membros a cuja actua-
ção será confiado esse poder, mas seremos provavelmente
levados a concluir que seria muito plausível que uma assembleia
mais numerosa do que o Senado fosse muito pouco ajustada
para o correcto cumprimento desta responsabilidade.
PUBLIUS

[663]
O FEDERALISTA N.• 76
[75]

O Poder de Nomeação do Executivo

ALEXANDER HAMILTON
1 de Abril de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

O Presidente deverá "indigitar e, após parecer e aprovação


do Senado, nomear embaixadores, outros ministros e cônsules,
juízes do Supremo Tribunal e todos os outros funcionários
dos Estados Unidos cuja nomeação não esteja aqui prevista e
venha a ser estabelecida por lei. Mas o Congresso pode, por
lei, atribuir ao presidente, aos tribunais de justiça ou aos chefes
de departamento a nomeação dos funcionários subalternos,
conforme julgar mais conveniente 1. O presidente terá poder
para preencher todas as vagas que possam ocorrer durante a
suspensão dos trabalhos do Senado, procedendo a nomeaçõe
que expirarão no fim da sessão seguinte"2.

* D o TI!e N ew-York Packet, 1 de Abril de 1788. Este artigo foi publicado


em 2 de Abril no TI! e Independent joHrnal. Recebeu o número 76 na edi ção
de McLean e o número 75 nos jornais. QC).
I Art.• 2, secção II , cláusula 2. (E. P.)
2 Ar e.• 2, secção II , cláusula 3. (E. P.).

[665]
Observámos num artigo anterior que "a verdadeira prova
de um bom governo é a sua aptidão e tendência para produzir
uma boa administração"3. Se a correcção desta observação
for aceite, o modo de nomeação dos funcionários dos Estados
Unidos contido nas cláusulas que antecedem, quando exami-
nado, deve fazer jus a uma recomendação particular. Não é
facil conceber um plano melhor congeminado do que este
para promover uma escolha judiciosa dos homens que irão
ocupar os cargos da União; e não precisará de demonstração
que é deste ponto que, no e encial, deverá depender o carácter
da sua administração.
Toda a gente concordará que o poder de nomeação, em
casos normais, deveria ser modificado de uma de entre três
maneiras. Deveria ser investido num único homem, ou numa
assembleia seleccionada de tamanho moderado, ou num único
homem com o concurso dessa assembleia. O exercício desse
poder pela maioria do povo prontamente se admite como
impraticável, dado que, prescindindo de qualquer outra
consideração, lhe deixaria pouco tempo para fazer qualquer
outra coisa. Portanto, quando, nos argumentos subsequentes,
é feita menção a uma assembleia ou corpo de homens, o que
é dito deve ser entendido como referindo-se a um corpo ou
assembleia seleccionado do tipo já descrito. O povo colectiva-
mente, por causa da quantidade de indivíduos e da sua situação
dispersa, não pode ser governado nos seus movimentos por
esse sistemático espírito de conluio e intriga que será alegado
como sendo a principal objecção a entregar o poder em ques-
tão a um corpo de homens.
Os que reflectiram sobre o assunto, ou que acompanharam
as observações feitas noutras partes destes artigos em relação
à nomeação do Presidente, concordarão, presumo, com a
posição de que haverá sempre grande probabilidade de ter o
cargo ocupado por um homem com capacidades pelo menos

3 Ver artigo 68. QC) .

[666]
respeitáveis. Pondo isto como premissa, prossigo apresentando
como regra que um homem dotado de discernimento está
mais bem preparado para analisar e avaliar as qualidades peculia-
res adaptadas aos cargos particulares do que um corpo de
homens de discernimento igual ou me mo superior.
A responsabilidade única e indivisa de um só homem
produzirá naturalmente um mais activo sentimento de dever
e um mais perfeito respeito pela reputação. Ele sentir-se-á,
neste aspecto, com obrigações mais fortes e mais interessado
em investigar cuidadosamente as qualidades requeridas para
os lugares a preencher, e a preferir com imparcialidade as
pessoas que possam ter as mais justas pretensões a ocupá-los.
Terá menos amizades pessoais para recompensar do que um
corpo de homens dos quais se pode supor que cada um terá
uma quantidade igual, e estará muito menos sujeito a ser
enganado pelos sentimentos de amizade e afeição. Um único
homem bem dirigido por uma única razão não pode ser
distraído e pervertido por essa diversidade de pontos de vista,
sentimentos e interesses que frequentemente distraem e per-
vertem as resoluções de um corpo colectivo. Não há nada
tão apto para agitar as paixões da humanidade como as consi-
derações pessoais, quer se relacionem connosco quer com
outros que são os objectos da nossa escolha ou preferência.
Por este motivo, em todo o exercício do poder de nomear
para cargos por uma assembleia de homens, devemos esperar
ver uma completa exibição de todos os agrados e desagrados
privados e de partido, de todas as parcialidades e antipatias,
de todos os afectos e animosidades, que são sentidos pelos
que compõem a assembleia. A escolha que em qualqu er
momento pode ser feita debaixo dessas circunstâncias será
sem dúvida resultado de uma vitória ganha por um partido
sobre um outro, ou de um compromisso entre os partidos.
Em qualquer dos casos, o mérito intrínseco do candidato será
demasiadas vezes perdido de vista. No primeiro caso, as qualifi-
cações mais bem adaptadas para congregar os sufrágios do

[667]
partido serão mais consideradas do que as que tornam a pessoa
adaptada ao cargo. No último, a coligação chegará comum-
mente a algum equivalente interessado: "Dêem-nos o homem
que queremos para este cargo, e terão o que querem para
aquele." Esta será a condição habitual da negociação. E rara-
mente acontecerá que o progresso do serviço público seja o
objectivo primário quer das vitórias quer das negociações
partidárias.
A verdade dos princípios aqui apresentados parece ter sido
percebida pelos mais inteligentes de entre os que encontraram
defeitos na cláusula redigida, para este fim, pela Convenção.
Argumentam que o Presidente deveria ter sido exclusivamente
autorizado a fazer nomeações para o Governo Federal. Mas
é fácil de mostrar que todas as vantagens a esperar de um
arranjo deste tipo seriam, em substância, derivadas do poder
de indigitar o candidato, que se propõe que lhe seja conferido;
ao passo que várias desvantagens que poderiam acompanhar
o poder absoluto de nomeação nas mãos desse magistrado
seriam evitadas. No acto de indigitar o candidato, só o seu
julgamento seria exercido. E, como seria seu dever exclusivo
indicar o homem que, com a aprovação do Senado, viria a
ocupar um cargo, a sua responsabilidade seria tão completa
como se tivesse que fazer a nomeação final . Não pode haver,
neste aspecto, diferença entre indigitar o candidato e nomear.
Os mesmos motivos que influenciariam um cumprimento
adequado do seu dever num caso, existiriam no outro. E como
nenhum homem poderia ser nomeado sem a sua indigitação
prévia, todos os homens que viessem a ser nomeados seriam,
de facto, escolha sua.
Mas a indigitação não pode ser rejeitada? Concedo que
pode, e no entanto isto só pode ser feito para dar lugar a outra
indigitação pelo próprio Presidente. A pessoa que viesse
finalmente a ser nomeada tem de ser objecto da sua preferência,
embora talvez não em primeiro lugar. Também não é muito
provável que o candidato indigitado venha a ser rejeitado com

[668]
frequência. O Senado não pode ser tentado pela preferência
que sente por outro indivíduo para rejeitar aquele que é
indigitado; porque não pode ter a certeza de que o indivíduo
que possa desejar venha a ser objecto de uma segunda indi-
gitação ou de qualquer outra subsequente. Nem sequer pode
estar certo de que uma indigitação futura venha a apresentar
um candidato em alguma medida mais aceitável para ele.
E, como a sua discordância pode lançar uma espécie de estigma
sobre o indivíduo rejeitado e pode ter a aparência de uma
reflexão sobre o discernimento do supremo magistrado, não
é provável que a sua aprovação venha a ser recusada com fre-
quência, quando não existirem razões fortes e especiais para
a recusa.
Então, qual é a finalidade de exigir a cooperação do
Senado? Respondo que a necessidade do seu concurso terá
uma acção poderosa, embora geralmente silenciosa. Será um
excelente controlo de um espírito de favoritismo do Presidente
e tenderá em larga medida para impedir a nomeação de pessoas
incapazes, por preconceitos de Estado, por conexão familiar,
por afecto pe oal, ou tendo em vista a popularidade. E, adicio-
nalmente a isto, será uma fonte eficaz de estabilidade na
administração.
Facilmente se compreenderá que um homem que tivesse
as nomeaçõe à sua exclusiva disposição seria muito mais
governado pelas suas inclinações e interesses privados do que
no caso de ser obrigado a submeter a correcção da sua escolha
à discussão e decisão de um corpo independente e separado,
sendo esse corpo todo um ramo da Legislatura. A possibilidade
de uma rejeição seria um forte motivo para o cuidado na indi-
gitação. O perigo para a sua própria reputação e, no caso de
um magistrado eleito, para a ua existência política, pelo facto
de trair um espírito de favoritismo, ou uma imprópria busca
de popularidade, proveniente do exame por uma assembleia
cuja opinião teria grande peso na formação da opinião do
público, não poderia deixar de actuar como uma barreira

[669]
tanto para um como para a outra. Ficaria envergonhado e ao
mesmo tempo receoso, por apresentar, para as posições mais
distintas ou mais lucrativas, candidatos que não tivessem outro
mérito além de virem do mesmo Estado a que ele pertence,
ou de serem de uma maneira ou de outra seus aliados, ou de
possuírem a necessária insignificância ou docilidade para se
converterem em instrumentos obsequiosos do seu prazer.
A este raciocínio foi apresentada a objecção de que o
Presidente pode, pela influência do poder de propor candidatos,
assegurar a condescendência do Senado com os seus pontos
de vista. A suposição de universal venalidade na natureza
humana é, em raciocínio político, um erro pouco menor do
que a suposição de uma rectidão universal4. A instituição de
poderes delegados sugere que existe uma porção de virtude
e de honra no género humano, a qual pode ser um fundamento
razoável para a confiança. E a experiência confirma a teoria:
foi manifesta a sua existência mesmo nos períodos mais
corruptos dos mais corruptos governos. A venalidade da
Câmara dos Comuns britânica foi por muito tempo um tópico
de acusação contra essa instituição, no país a que ela pertence,
bem como no nosso. E não se pode duvidar de que a acusação
é, em grande medida, bem fundada. Mas tão pouco é de duvi-
dar que existe sempre uma grande proporção dessa assembleia,
consistindo em homens independentes e de espírito público,
que têm um peso influente nos conselhos da nação. É por
isso que (não exceptuando o presente reinado) se vê frequente-
mente a consciência dessa assembleia a controlar as inclinações
do monarca, tanto no que toca aos homens como às medidas
legislativas. Por consequência, embora possa ser admissível a
suposição de que o executivo influencie ocasionalmente alguns
indivíduos no Senado, ainda assim, a suposição de que ele
possa em geral comprar a integridade da totalidade da assem-

4 Encontramos aqui uma perfeita concordância de H arrúlton com a

doutrina antropológica de James Madison . Ver artigo 55. (E. P.) .

[670]
bleia seria forçada e improvável. Um homem disposto a ver
a natureza humana como ela é, sem adular as suas virtudes
nem exagerar os seus vícios, verá bases suficientes para a
confiança na probidade do Senado, de modo a ficar satisfeito
não só com o facto de que será impraticável para o Executivo
corromper ou seduzir uma maioria dos membros deste, mas
também com o facto de que a necessidade da sua cooperação
no assunto das nomeações será uma barreira considerável e
salutar à conduta daquele magistrado. E a integridade também
não é a única base da nossa confiança. A Constituição provi-
denciou algumas protecções importantes contra o perigo da
influência executiva sobre a assembleia legislativa. Ela declara
que "Nenhum Senador ou representante poderá, durante o
período do seu mandato, ser nomeado para qualquer cargo
público do Governo dos Estados Unidos, que tenha sido
criado ou cuja remuneração tenha sido aumentada durante
esse período; e nenhuma pessoa que ocupe um cargo no
Governo dos Estados Unidos poderá ser membro de qualquer
das Câmaras enquanto permanecer no exercício desse cargo".
PUBLIUS

[671]
O FEDERALISTA N." 77
[76]

Continuação da Análise do Poder de Nomeação


e Consideração de Outros Poderes do Executivo

ALEXANDER HAMILTON
2 de Abril de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Foi mencionada como uma das vantagens a esperar da


cooperação do Senado, no que se refere às nomeações, que
ela contribuiria para a estabilidade da administração 1 . O con-
sentimento dessa assembleia seria necessário tanto para destituir
como para nomear. Uma mudança do supremo magistrado,
portanto, não ocasionaria uma revolução nos funcionários do
governo tão violenta nem tão geral como se poderia esperar
se ele fosse o único a prover os cargos. Nos casos em que um
homem em qualquer posto tenha dado provas satisfatórias da
sua capacidade para o ocupar, um novo Presidente seria impe-

* D o The IndependentJournal, 2 de Abril de 1788. Este artigo foi publicado


em 4 de Abril no The New- Yo rk Packet. R ecebeu o número 77 na eclição de
M cLean e o número 76 nos jornais. QC).
1 Ver artigo precedente. QC).

[673]
elido de tentar uma mudança a favor de uma pessoa mais agra-
dável para si, pelo receio de que uma desaprovação do Senado
pudesse frustrar a tentativa e fazer recair algum grau de
descrédito sobre si próprio. Os que melhor podem avaliar o
valor de uma administração firme serão os mais dispostos a
valorizar uma cláusula que liga a existência oficial dos homens
públicos à aprovação ou desaprovação dessa assembleia que,
pela maior permanência da sua composição, estará com toda
a probabilidade menos sujeita a inconstância do que qualquer
outro órgão do governo.
A esta união do Senado com o presidente, no que respeita
às nomeações, objectou-se em alguns casos que serviria para
dar ao presidente uma influência indevida sobre o Senado, e
noutros casos que teria uma tendência oposta. Isto constitui
uma forte demonstração de que nenhuma das sugestões é
verdadeira.
Enunciar a primeira de forma correcta é refutá-la. Equivale
a isto: o presidente teria uma influênda inconveniente sobre o
Senado porque o Senado teria o poder de limitá-lo. Isto é um
absurdo nos termos. Não admite dúvida de que a totalidade
do poder de nomeação o capacitaria muito mais eficazmente
para estabelecer um perigoso império sobre esse corpo do que
um mero poder de indigitação, sujeito ao controlo deste último.
Examinemos a recíproca da proposição: "o Senado influen-
ciaria o executivo." Como tive ocasião de observar em várias
outras oportunidades2, a indistinção da objecção interdita uma
resposta precisa. De que maneira se irá exercer essa influência?
Em relação a que objectos? O poder de influenciar uma pessoa,
no sentido em que aqui é usado, tem de implicar um poder
de lhe conferir um benefício. Como poderia o Senado conferir
um beneficio ao presidente através do emprego do direito de

2 A possibilidade de o Senado influenciar o executivo tinha sido consi-


derada em muitas das discussões do cargo do executivo, matéria dos artigos
67-79. QC).

[674]
veto em relação às indigitações deste último? Se nos disse-
rem que pode por vezes recompensá-lo por meio de uma
aquiescência numa escolha favorita, quando os motivos
públicos possam ditar um comportamento diferente, respondo
que os casos em que o presidente poderia estar pessoalmente
interessado no resultado seriam demasiado poucos para admitir
que ele fosse substancialmente afectado pela complacência do
Senado. O PODER capaz de originar a disposição de honra-
rias e remunerações provavelmente atrairá mais do que será
atraído pelo PODER que apenas pode obstruir o seu caminho.
Se com a expressão influenciar o presidente se pretende
dizer rljTeá-lo, isso é precisamente o que houve intenção de
fazer. E foi mostrado que esse freio seria salutar ao mesmo
tempo que não seria tal que destruísse uma simples vantagem
que se deveria esperar da actuação incontrolada desse magis-
trado. O direito de indigitar candidatos produziria todo o
bem da nomeação e evitaria, em grande medida, os seus males.
Com base numa comparação do plano para a nomeação
dos funcionários do governo proposto com o que foi estabele-
cido pela Constituição deste Estado, deve ser dada uma pre-
ferência decidida ao primeiro. Nesse plano o poder de indigita-
ção é inequivocamente investido no executivo. E como será
necessário submeter cada indigitação ao julgamento de todo
um ramo da legislatura, as circunstâncias que acompanham
uma nomeação, dado o modo como é conduzida, tornar-se-
-iam naturalmente questões de notoriedade, e o público não
teria dificuldade em determinar que papel tinha sido desem-
penhado pelos diferentes actores. A censura por uma má
indigitação cairia única e exclusivamente sobre o presidente.
A censura por rejeitar uma boa estaria inteiramente à porta
do Senado, agravada pela consideração de terem contrariado
as boas intenções do executivo. Se fosse feita uma má nomea-
ção, o executivo e o Senado teriam participado, embora em
diferentes graus: um indigitando e o outro aprovando, no
opróbrio e na vergonha.

[675]
O oposto de tudo isto caracteriza a maneira de nomear
neste Estado. O conselho de nomeação consiste em três a
cinco pessoas, sendo o governador sempre uma delas. E te
pequeno corpo, fechado em aposentos privados, impenetrável
ao olhar do público, procede à execução da responsabilidade
que lhe foi cometida. É sabido que o governador reclama o
direito de indigitação, com base na força de certas expre sõe
ambíguas da Constituição, mas não é sabido em que medida,
ou de que maneira, o exerce, nem tão-pouco em que ocasiões
é contradito ou impedido. A censura por uma má nomeação,
dada a incerteza do eu autor, e dada a falta de um objecto
determinado, não tem vigor nem duração. E, enquanto per-
manece aberto um campo ilimitado para conluio e intriga,
toda a ideia de responsabilidade se perde. O máximo que o
público pode saber é: que o governador reclama o direito de
indigitação; que dois de entre o considerável número de quatro
homens podem muito frequentemente ser manobrados sem
muita dificuldade; que, se alguns dos membros de um conselho
particular manifestarem um carácter não colaborante, é fre-
quente que não seja impossível livrar-se da sua oposição
determinando os momentos de reunião de tal maneira que
torne inconveniente a sua presença; e que, seja qual for a causa
de que possa proceder, é feita de tempos a tempos uma grande
quantidade de nomeações inadequadas. Saber se um governa-
dor deste Estado se aproveita do ascendente que tem nece -
sariamente de possuir, nesta delicada e importante parte da
administração, para preferir para os cargos os homens que
estão melhor qualificados para eles, ou se prostitui essa vanta-
gem para a promoção de pessoas cujo mérito principal é a
sua devoção implícita à sua vontade, e em apoio de um vil e
perigoso sistema de influência pessoal, são questões que, infe-
lizmente para a comunidade, só podem ser matéria de espe-
culação e conjectura.
Qualquer simples conselho de nomeação, de qualquer
maneira que seja constituído, será um conclave, no qual o

[676]
conluio e a intriga terão a sua plena esfera de acção. O número
dos seus membros, sem um indefensável aumento de despesa,
não pode ser suficientemente grande para excluir uma
facilidade de combinação. E, como cada membro terá os seus
amigos e conexões para prover, o desejo de recompensa mútua
originará uma escandalosa permuta de votos e negociação de
lugares. Os afectos privados de um homem podem ser facil-
mente satisfeitos, mas satisfazer os afectos privados de uma
dúzia, ou de vinte homens, ocasionaria um monopólio de
todos os empregos importantes do governo em poucas farrúlias,
e levaria mais directamente a uma aristocracia ou a uma
oligarquia do que qualquer medida que pudesse ser imaginada.
Se, para evitar uma acumulação de cargos, existisse uma
mudança frequente das pessoas que compunham o conselho,
isso envolveria os males de uma administração mutável em
toda a sua extensão. Um tal con elho estaria também mais
sujeito à influência do executivo do que o Senado, porque o
número dos seus membros seria menor e estes agiriam menos
directamente sob a inspecção do público. Um tal conselho,
por fim, como substituto do plano da Convenção, seria
produtor de um aumento de despesa, de uma multiplicação
dos males que brotam do favoritismo e da intriga na distri-
buição das honrarias públicas, de um decréscimo de estabilidade
na administração do governo e de uma diminuição da garantia
contra uma influência indevida do executivo. E, no entanto,
um tal conselho foi calorosamente defendido como uma
emenda essencial da Constituição proposta.
Não poderia concluir convenientemente as minhas obser-
vações a respeito das nomeações sem dar atenção a um esquema
para o qual apareceram alguns, embora poucos, defensores.
Quero referir-me ao de juntar a Câmara dos Representantes
ao poder de as efectuar. No entanto, farei pouco mais do que
mencioná-lo, porque não consigo imaginar que tenha proba-
bilidades de obter a aprovação de uma parte considerável da
comunidade. Um corpo tão flutuante e ao mesmo tempo tão

[677]
numeroso nunca pode ser considerado adequado para o
exercício desse poder. A sua inadequação manifestar-se-á a
todos quando for lembrado que dentro de meio século ela
pode contar trezentas ou quatrocentas pessoas. Todas as vanta-
gens da estabilidade, tanto do executivo como do senado,
seriam derrotadas por esta união, e seriam ocasionados infinitos
adiamentos e embaraços. O exemplo da maior parte dos Esta-
dos nas suas Constituições locais encoraja-nos a reprovar a
ideia.
Os únicos poderes do executivo que restam estão com-
preendidos em: dar informação ao Congresso sobre o estado
da União; recomendar à consideração deste as medidas que
ele julgue oportunas; convocá-lo, ou apenas um qualquer dos
ramos, em ocasiões extraordinárias; suspender a sessão quando
ele não for capaz de chegar a acordo acerca do momento da
suspensão; receber embaixadores e outros ministros públicos;
executar fielmente as leis; e nomear interinamente todos os
funcionários dos Estados Unidos.
Exceptuando alguns sofismas acerca do poder de convocar
qualquer das câmaras da legislatura e o de receber embaixadores,
nenhuma objecção foi feita a esta classe de poderes, nem era
possível que ela admitisse alguma. Na verdade, isso exigiria
uma avidez insaciável pela censura para inventar excepções
às partes que tinham sido já objecto de excepção. Em relação
ao poder de convocar qualquer das câmaras da legislatura,
observarei apenas que, pelo menos no que respeita ao Senado,
podemos facilmente descobrir uma boa razão para ele. Como
este corpo tem um poder concorrente com o do executivo
no capítulo de tratados, pode muitas vezes ser necessário con-
vocá-lo com vista a esse objectivo, ao passo que seria desneces-
sário e impróprio convocar a Câmara dos Representantes.
Quanto à recepção de embaixadores, o que disse num artigo
anterior proporcionará uma resposta suficiente3.

3 Ver artigo 69. QC) .

[678]
Completámos agora um exame da estrutura e poderes do
departamento executivo que, esforcei-me por mostrá-lo,
combina, tanto quanto o admitem os princípios republicanos,
todos os requisitos necessários para ser enérgico. O que fica
por examinar é saber se combina também os requisitos para
a segurança, num sentido republicano, uma adequada depen-
dência do povo e uma adequada responsabilidade? A resposta
a esta pergunta foi antecipada na investigação das suas outras
características, e é satisfatoriamente dedutível destas circunstân-
cias: da eleição do presidente de quatro em quatro anos por
pessoas escolhidas directamente pelo povo para esse fim; e de
estar a todo o momento sujeito à impugnação por crimes de
responsabilidade, julgamento, demissão do cargo, incapacidade
para servir em qualquer outro cargo, e à perda da vida e dos
bens por um processo subsequente nos tribunais comuns. Mas
estas precauções, grandes como são, não são as únicas que o
plano da Convenção providenciou a favor da segurança pública.
Nos únicos casos em que o abuso de autoridade executiva
poderia ser substancialmente receado, o supremo magistrado
dos Estados Unidos estará, por esse plano, sujeito ao controlo
de um ramo do corpo legislativo. Que mais pode ser desejado
por um povo esclarecido e razoável?
PUBLIUS

[679]
O FEDERALISTA N. 0 78
[77]

O Departamento Judicial

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Prosseguimos agora para um exame do departamento


judicial do governo propostol.

* De J. e A. McLean, The Federalíst, II, 290-299, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788, e recebeu o número 78.
Foi publicado em 14 de Junho no The IndependentJournal onde teve o número
77, e começado em 17 de Junho e terminado em 20 de Junho no T11e New-
-York Packet, onde teve o número 78. QC).
1 Hamilton vai abordar o poder judicial federal, no topo do qual se
encontra o Supremo Tribunal, uma instituição que se tem revelado fundamental
na modelagem do federalismo norte-americano. A Constitui ção deixa ao
critério do Congresso a composição deste tribunal. Historicamente o seu
número variou entre um rrúnimo de cinco e um máximo de dez juízes. Desde
1869 que o Supremo Tribunal é composto por um presidente (Chie]Justice)
e oito juízes associados (Associated Justices) . O Supremo Tribunal iniciaria os
seus trabalhos em 2 de Fevereiro de 1790, sob a presidência de John Jay, um
dos três autores de O Federalista. (E. P.).

(681]
Ao revelar os defeitos da Confederação existente, a
utilidade e necessidade de urna judicatura federal foi claramente
salientada2. É tanto menos necessário recapitular as consi-
derações então alegadas, quanto a legitimidade da instituição,
em abstracto, não é contestada. As únicas questões que foram
levantadas são relativas à maneira de a constituir e à sua exten-
são. Será, portanto, a estes pontos que as nossas observações
se confinarão.
A maneira de constituir essa judicatura abrange vários
objectos: 1. o O modo de nomear os juízes; 2.o O título pelo
qual conservam os seus lugares; 3. 0 A repartição da autoridade
judicial entre os diferentes tribunais, e as relações destes uns
com os outros.
Primeiro. Quanto ao modo de nomeação dos juízes, ele é
idêntico ao da nomeação dos funcionários da União em geral,
e foi tão exaustivamente discutido nos últimos dois artigos
que nada pode ser dito aqui que não seja uma repetição inútil.
Segundo. Quanto ao título pelo qual os juízes manterão
os seus lugares, isto diz principalmente respeito à duração do
seu mandato, às providências para o seu sustento e às pre-
cauções quanto à sua responsabilidade.
Segundo o plano da Convenção, todos os juízes que
possam ser nomeados pelos Estados Unidos deverão manter
os seus cargos enquanto bem cumprirem, o que está conforme
com as mais aplaudidas das Constituições dos Estados e entre
as restantes, conforme também com a deste Estado. Que a
correcção daquele plano tenha sido questionada pelos seus
adversários, não é pequeno sintoma do furor pela objecção,
que desordena as suas imaginações e juízos. O critério do
desempenho meritório para a manutenção no cargo da magis-
tratura judicial é certamente um dos mais valiosos dos moder-
nos aperfeiçoamentos na prática da governação. Numa monar-
quia é uma excelente barreira ao despotismo do príncipe e

2 Ver artigo 22. QC).

[682)
numa república é uma não menos excelente barreira às
usurpações e opressões do corpo representativo. E é o melhor
recurso que pode ser imaginado em qualquer governo para
assegurar uma firme, íntegra e imparcial administração das
leis.
Quem quer que considere atentamente os diferentes
departamentos do poder deve perceber que, num governo
em que eles estão separados uns dos outros, o poder judicial,
pela natureza das suas funções, será sempre o menos perigoso
para os direitos políticos da Constituição, porque será o menos
capaz de molestá-los ou de lhes causar dano. O Executivo
não só distribui as honrarias, mas empunha a espada da comu-
nidade. A legislatura não só comanda a bolsa, mas prescreve
as normas pelas quais se devem regular os deveres e direitos
de todos os cidadãos. O judicial, pelo contrário, não tem
nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; nenhuma
condução da força ou da riqueza da sociedade; e não pode
tomar nenhuma resolução activa, seja ela qual for. Pode ser
dito com verdade que não tem Força nem Vontade, mas apenas
juízos. E tem de depender em última instância da ajuda do
braço executivo para a eficácia dos seus juízos.
Esta simples visão do assunto sugere várias consequências
importantes. Ela prova incontestavelmente que o judicial é
sem comparação o mais fraco dos três departamentos do
poder3, que nunca pode atacar com sucesso qualquer dos
outros dois e que é indispensável todo o cuidado possível para
lhe dar a capacidade de se defender dos ataques deles. Prova

3 O fam oso Montesquieu, falando deles, diz: "dos três poderes acima
mencionados, o JUD IC tAL não é qu ase nada." Spirit ofLaws, vol. I, página 186.
(Publius). N o original francês: Des trois puissances dont nous avons par/é, celle de
)r4ger est en quelque façon m~lle. Montesqui eu, De L'Esprit des Lois, Parte I,
Liv. XI , § 6. Hamilton procura mostrar que, de certo modo, a Constitui ção
Federal dos EUA parte de Montesquieu para o complementar e aperfeiçoa r,
ao criar condições para o robustecimento do poder judicial, aquele que aparece
como o mais frágil e indefeso de entre todos. (E. P.).

[683]
também que, embora a opressão individual possa, de vez em
quando, provir dos tribunais judiciais, nunca pode haver perigo
vindo desse quadrante para a liberdade geral do povo, quero
dizer, enquanto o judicial permanecer verdadeiramente distinto
tanto da Legislatura como do Executivo, porque concordo
que "não existe liberdade se o poder de julgar não for
independente dos poderes legislativo e executivo"4. E, em
último lugar, prova que, como a liberdade nada pode ter a
recear do poder judicial isoladamente, mas teria tudo a recear
da sua união com qualquer dos outros departamentos; que,
como todos os efeitos de uma tal união devem seguir-se de
uma dependência do primeiro em relação aos últimos, apesar
de haver uma independência nominal e aparente; que, como,
pela natural fraqueza do judicial, no seu risco contínuo de
ser subjugado, intimidado, ou influenciado pelos outros ramos
do poder que com ele se relacionam; e que, como nada pode
contribuir tanto para a sua firmeza como a independência e
a permanência no cargo, esta qualidade pode, portanto, ser
justificadamente vista como um ingrediente indispensável na
sua Constituição e, em grande medida, como a cidadela da
justiça e da segurança públicas.
A completa independência dos tribunais é particularmente
essencial numa Constituição limitada. Por Constituição limitada
entendo uma Constituição que contém certas excepções espe-
cificadas à autoridade legislativa, tais como, por exemplo, que
não deva aprovar leis de suspensão dos direitos civis, leis com
efeito retroactivos, e semelhantes. As limitações desta natureza
não podem, na prática, ser preservadas de nenhuma outra
maneira além dos tribunais, cujo dever será declarar nulos
todos os actos contrários ao teor manifesto da Constituição.
Sem isso, todas as ressalvas de direitos ou privilégios particulares
não valeriam nada.

4 Idem, página 181. (Publius).


5 Ex postfacto laws, no original. (E. P.).

[684]
Surgiu alguma perplexidade a respeito do direito dos
tribunais de declarar nulos os actos legislativos, por serem
contrários à Constituição, resultando de imaginar que a
doutrina implicaria uma superioridade do poder judicial em
relação ao poder legislativo. Alega-se que a autoridade que
pode declarar a nulidade dos actos de outra, tem necessaria-
mente de ser superior àquela cujos actos podem ser declarados
nulos. Como esta doutrina tem grande importância em todas
as Constituições americanas, não pode ser inaceitável uma
breve discussão dos fundamentos em que assenta.
Não existe nenhuma posição que dependa de princípios
mais claros do que a que sustenta que todos os actos de uma
au toridade delegada, contrários ao teor da delegação sob a
qual são exercidos, são nulos. Por conseguinte, nenhum acto
legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar
isto seria afirmar: que o delegado é maior do que quem delega;
que o servo está acima do seu senhor; que os representantes
do povo são superiores ao próprio povo; que os homens,
agindo em virtude de poderes concedidos, podem fazer não
só o que os poderes não autorizam, mas ainda o que eles
proíbem.
Se for dito que o corpo legislativo é o juiz constitucional
dos seus próprios poderes e que a interpretação que deles faz
é conclusiva para os outros departamentos, pode responder-
-se que e ta não pode ser a presunção natural, nos casos em
que não puder ser deduzida de quaisquer cláusulas específicas
da Constituição. Pelo contrário, não se deve supor que a
Constituição poderia ter a intenção de capacitar os represen-
tantes do povo para substituírem pela sua vontade a vontade
dos seus constituintes. É muito mais razoável supor que os
tribunais foram concebidos para serem um corpo intermediário
entre o povo e a legislatura, com o intuito de, entre outras
coisas, manter esta última dentro dos limites traçados para a
sua autoridade. A interpretação das leis é o terreno próprio
e particular dos tribunais. Uma Constituição é, de facto, e

[685]
assim deve ser olhada pelos juízes, uma lei fundamental.
Portanto, pertence-lhes averiguar o seu significado, bem como
o significado de qualquer lei particular procedente do corpo
legislativo. Se vier a dar-se o caso de existir uma divergência
irreconciliável entre as duas, a que tem obrigatoriedade e
validade sup erior deve, sem dúvida, ser preferida, ou, por
outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao decreto,
a intenção do povo à intenção dos seus agentes.
Nem tão pouco esta conclusão supõe de modo algum
uma superioridade do poder judicial sobre o legislativo. Supõe
apenas que o poder do povo é superior a ambos, e nos casos
em que a vontade da legislatura, declarada nos seus decretos,
está em oposição à do povo, declarada na Constituição, os
juízes devem ser governados pela última mais do que pela
primeira. Devem regular as suas decisões pelas leis fundamen-
tais de preferência a fazê-lo por aquelas que não são funda-
mentais.
Este exercício de arbítrio judicial na decisão entre duas
leis contraditórias é exemplificado por um caso familiar. Não
é raro acontecer que existam dois decretos simultaneamente,
colidindo um com o outro no todo ou em parte, sem que
nenhum deles contenha qualquer cláusula ou expressão de
revogação. Num caso desses é do domínio dos tribunais tor-
ná-lo líquido e fixar o seu significado e modo de operar. Na
medida em que possam, por meio de uma qualquer inter-
pretação justa, ser reconciliados um com o outro, razão e lei
contribuem para ditar que isto deve ser feito. Quando isso é
impraticável, torna-se uma questão de necessidade pôr em
vigor um deles, com exclusão do outro. A regra que foi usada
nos tribunais para determinar a sua validade relativa é que a
última na ordem cronológica deva ser preferida à primeira.
Mas isto é uma mera regra de interpretação, não derivada de
nenhuma lei positiva, mas sim da natureza e razão da coisa.
É uma regra que não é imposta aos tribunais por uma dis-
posição legislativa, mas é adoptada por eles como estando de

[686]
harmonia com a verdade e a correcção, para a orientação da
sua conduta como intérpretes da lei. Eles acharam razoável
que entre leis em colisão com autoridade igual, deveria ter
preferência a que era a mais recente indicação da vontade
legislativa.
Mas em relação às leis em colisão, emanadas de urna auto-
ridade superior e de uma subordinada, de um poder original
e de um derivado, a natureza e razão da coisa indicam a recí-
proca dessa regra como apropriada para ser seguida. Explicam-
-nos que o acto prévio de uma autoridade superior deve ser
preferido ao acto subsequente de uma autoridade inferior e
subordinada; e que, em conformidade com isso, sempre que
um decreto particular transgride a Constituição, será dever
dos tribunais judiciais aderir à última e ignorar o primeiro.
Não pode ter valor dizer que os tribunais, sob o pretexto
de desacordo com uma qualquer lei, podem substituir pelo
seu bel-prazer as intenções constitucionais da legislatura. Isto
pode também acontecer no caso de dois decretos contraditó-
rios, ou pode também acontecer em qualquer decisão sobre
um só decreto. Os tribunais devem esclarecer o sentido da lei
e, se estiverem dispostos a exercer a VONTADE em lugar do
JULGAMENTO, a consequência será também a substituição pelo
seu bel-prazer do bel-prazer do corpo legislativo. A observação,
se provar alguma coisa, provaria que não deveria haver juízes
distintos daquele órgão.
Então, se os tribunais judiciais devem ser considerados
como os baluartes de uma Constituição limitada contra usur-
pações legislativas, esta consideração proporcionará um forte
argumento a favor do título definitivo dos cargos judiciais,
dado que nada contribuirá tanto como isso para esse espírito
independente dos juízes, que deve ser essencial para a execução
fiel de tão árduo dever.
Esta independência dos juízes é também requerida para
proteger a Constituição e os direitos dos indivíduos dos efeitos
desses humores malévolos que as artes de homens intrigantes,

[687]
ou a influência de conjunturas particulares, por vezes disse-
minam no seio do próprio povo, e que, embora dêem
rapidamente lugar a melhor informação e a uma reflexão mais
deliberada, têm tendência, enquanto isso, para ocasionar peri-
gosas inovações na governação, e sérias opressões do partido
minoritário na comunidade. Embora eu confie em que os
amigos da Constituição proposta nunca cooperarão com os
inimigos dela6, questionando esse princípio fundamental do
governo republicano que admite o direito que o povo tem
de alterar ou abolir a Constituição em vigor, sempre que a
achar inconsistente com a sua felicidade. Apesar disso, não se
deve inferir deste princípio que os representantes do povo,
sempre que aconteça que uma inclinação momentânea,
incompatível com as disposições da Constituição existente,
se apodere de uma maioria dos seus constituintes, teriam
justificação, a este respeito, para a violação dessas disposições,
ou que os tribunais teriam uma maior obrigação de serem
coniventes com infracções desta natureza do que quando elas
tivessem procedido inteiramente dos conluios do corpo repre-
sentativo. Até que o povo tenha, através de algum acto solene

6 Vide Protesto da minoria da Convenção da Pensilvânia, discurso de


Martin , etc. (Publius). Hamilton referia-se ao "Discurso e Razões de Discor-
dância da Minoria da Convenção do Estado da Pensilvânia dirigido aos seus
Constituintes." Assinada por vinte e um membros da Convenção da Pensilvânia,
o "Discurso" apareceu no T11e Petmsylvatlia Packet and Daily Advertiser em 18
de Dezembro de 1787, seis dias depois de a Pensilvânia ter ratificado a Cons-
tituição.
"O discurso de Martin " referia-se presurnivelrnente a um discurso de
Luther Martin, membro da Convenção Constitucional mas grande inimigo
da Constituição proposta, pronunciado perante a Câmara de Delegados de
Maryland em 27 de Janeiro de 1788. QC).
Luther Martin, um firme antifederalista de Maryland, iria conhecer uma
derrota pessoal perante o Supremo Tribunal, na defesa falhada do seu Estado
no marcante caso McCulloch versus Maryland, 1819, onde esse Tribunal, sob a
direcção de John Marsahll, afirmou a importância da "cláusula elástica" na
expansão dos poderes de actuação da União. Ver artigo 33." (E. P.).

[688]
e de autoridade, anulado ou alterado a forma em vigor, ela
obriga-os colectivamente, bem como individualmente; e
nenhuma presunção, ou mesmo conhecimento, dos senti-
mentos do povo pode autorizar os seus representantes a
afastarem-se dela antes desse acto. Mas é fácil ver que o
cumprimento do seu dever como guardiões fiéis da Constitui-
ção requereria urna porção invulgar de força moral dos juízes,
nos casos em que as usurpações legislativas tivessem sido
instigadas pela voz da maioria da comunidade.
Mas não é só tendo em vista as infracções da Constituição
que a independência dos juízes pode ser uma salvaguarda
essencial contra os efeitos de ocasionais humores malévolos
na sociedade. Estes, por vezes, não vão mais longe do que o
prejuízo dos direitos privados de classes particulares de cidadãos,
através de leis injustas e parciais. Neste caso, a firmeza da
magistratura judicial é de grande importância para mitigar a
severidade e confinar a actuação de leis desse tipo. Não só
serve para moderar os males imediatos daquelas que possam
ter sido aprovadas, mas actua como controlo do corpo legis-
lativo no aprová-las. Este, percebendo que se devem esperar
obstáculos ao sucesso da intenção iníqua, postos pelos escrú-
pulos dos tribunais, é de certa maneira compelido, pelos
próprios motivos da injustiça que cogita, a moderar as suas
tentativas. Esta é uma circunstância concebida para ter mais
influência no carácter dos nossos governos, de que só poucos
podem ter consciência. Os beneficias da integridade e da
moderação do poder judicial já foram sentidos em mais de
um Estado. E embora possam ter desagradado àqueles cujas
expectativas sinistras possam ter frustrado, devem ter con-
quistado a estima e o aplauso de todos os virtuosos e desin-
teressados. Os homens ponderados de todos os tipos deveriam
prezar tudo o que tenda para produzir ou fortificar esse tem-
peramento nos tribunais, como nenhum homem pode estar
seguro de não ser amanhã vítima do espírito de injustiça que
hoje faz dele um ganhador. E todos os homens devem sentir

[689]
agora que a tendência inevitável de um tal espírito é minar
os alicerces da confiança pública e privada, e introduzir no
lugar dela a desconfiança e a angústia universais.
Essa inflexível e uniforme fidelidade aos direitos da
Constituição e dos indivíduos, que compreendemos ser indis-
pensável nos tribunais de justiça, certamente que não pode
ser esperada de juízes que detêm os seus cargos por um
mandato temporário. As nomeações periódicas, de qualquer
modo que fossem regulamentadas, ou por quem quer que
fossem feitas, seriam, de urna maneira ou de outra, fatais para
a sua necessária independência. Se o poder de nomear os
juízes fosse entregue ao executivo ou à legislatura, haveria o
risco de uma complacência imprópria com o ramo que
possuísse esse poder. Se a ambos, haveria uma relutância em
arriscar o desagrado de qualquer deles. Se ao povo, ou a pessoas
escolhidas por ele especialmente para esse fim, haveria uma
excessiva disposição para tomar em consideração a popula-
ridade, para justificar a confiança de que nada seria consultado
além da Constituição e das leis.
Há ainda uma razão adicional e de mais peso para a perma-
nência nos cargos judiciais que é dedutível da natureza das
qualificações que eles requerem. Foi frequentemente obser-
vado, com grande correcção, que um código de leis volumoso
é um dos inconvenientes necessariamente ligado com as
vantagens de um governo livre. Para evitar uma decisão arbi-
trária dos tribunais é indispensável que eles estejam obrigados
por normas e precedentes estritos, que servem para definir e
apontar o seu dever em cada caso particular que lhes é
apresentado. E facilmente se conceberá, dada a variedade de
controvérsias que brotam da loucura e maldade do género
humano, que os registos desses precedentes devem inevitavel-
mente crescer até um volume considerável, e devem pedir
um estudo longo e laborioso para adquirir um conhecimento
competente deles. Por este motivo é que só podem existir
poucos homens na sociedade que tenham competência sufi-

[690]
ciente no campo das leis para os qualificar para o lugar de
juiz. E dando o desconto apropriado à normal depravação da
natureza humana, deve ser ainda menor o número dos que
juntam a necessária integridade ao conhecimento indispensável.
Estas considerações fazem-nos saber que o governo pode não
ter grandes opções entre pessoas apropriadas, e que um man-
dato temporário, que naturalmente desencorajará essas pessoas
de abandonar uma prática lucrativa para aceitar um lugar no
banco dos juízes, terá uma tendência para atirar a administração
da justiça para as mãos dos menos capazes e mais mal qualifi-
cados para a conduzir com utilidade e dignidade. Nas presentes
circunstâncias do nosso país, e naquelas em que provavelmente
ele ainda se encontrará por muito tempo, as desvantagens
deste arranjo seriam maiores do que parecem à primeira vista,
mas deve confessar-se que são muitíssimo inferiores às que se
apresentam noutros aspectos deste assunto.
No conjunto, não pode haver lugar para duvidar que a
Convenção agiu avisadarnente ao copiar dos modelos dessas
Constituições que estabeleceram o desempenho meritório como
título de posse para os seus cargos judiciais, no que respeita
à duração; e que, longe de ser censurável a este respeito, o
seu plano teria sido indesculpavelmente defeituoso se lhe
tivesse faltado esta importante característica da boa governação.
A experiência da Grã-Bretanha proporciona um insigne comen-
tário sobre a excelência da instituição.
PUBLIUS

[691]
O FEDERALISTA N. • 79

O Departamento Judicial (continuação)

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

A seguir à permanência no cargo, nada pode contribuir


mais para a independência dos juízes do que uma remuneração
fixa para a sua subsistência. A observação feita em relação ao
presidente é igualmente aplicável neste caso 1. No curso geral
da natureza humana, um poder sobre a subsistência de um homem
equivale a um poder sobre a sua vontade. E nunca podemos esperar
ver realizada na prática a completa separação dos poderes
judicial e legislativo em qualquer sistema que deixe o primeiro
dependente, no que toca a recursos pecuniários, das subvenções
ocasionais do último. Os amigos e clarecidos do bom governo,
em todos os Estados, encontraram causas para lamentar a
ausência, nas Constituições estaduais, de precauções precisas
e explícitas acerca desta matéria. Algumas destas declararam

* D e J. e A. McLea n, The Federalist, II , 299-302, onde este artigo fo i


pela primeira vez publicado em 28 de M aio de 1788, e recebeu o número 79.
Foi publicado em 18 de Junho no Th e lndependentjournal onde teve o número
78, e em 24 de Junho no 11ze ew-York Packet, onde teve o número 79. OC).
I Ver arti go 73. QC).

[693]
na verdade que deveriam ser estabelecidos salários permanentes2
para os juízes, mas a experiência mostrou em alguns casos
que tais expressões não são suficientes para evitar evasões
legislativas. Ficou evidenciado que era indispensável algo ainda
mais positivo e inequívoco. O plano da Convenção providen-
ciou, em conformidade com isso, no sentido de que os juízes
dos Estados Unidos "receberão por perlodos determinados uma
remuneração pelos seus serviços, que não poderá ser reduzida
durante a sua permanência no cargo"3.
Consideradas todas as circunstâncias, esta é a disposição
mais aceitável que poderia ter sido imaginada. Facilmente se
compreenderá que as flutuações no valor do dinheiro e no
estado da sociedade tornavam inadmissível que a Constituição
indicasse um valor fixo de compensação. O que hoje pode
ser extravagante, poderá tornar-se mesquinho e inadequado
dentro de meio século4. Portanto, era necessário deixar ao
critério da legislatura variar as remunerações em conformidade
com as variações das circunstâncias, contudo sob restrições
tais que pusessem fora do alcance do poder desse órgão a
mudança para pior das condições de um indivíduo. Um
homem pode então estar seguro do chão que pisa, e nunca
pode ser dissuadido do seu dever pelo receio de ser colocado
numa situação menos aceitável. A cláusula que foi citada com-
bina ambas as vantagens. Os salários dos cargos judiciais podem
ser alterados de tempos a tempos, como a ocasião o requeira,
e contudo sem nunca diminuírem a retribuição que qualquer
juiz particular teve ao aceder ao cargo, e isto em relação a ele.

2 Vide Constituição do Massachusetts, Capítulo 2, Secção 1, Artigo 13.


(Publius) .
3 Art. 0 3, secção I, cláusula 1." (E. P.).
4 Sendo os cargos dos juízes do Supremo Tribunal tendencialmente

vitalícios (só podem ser afastados por crimes de responsabilidade), a questão


da inflação é um factor a ter em consideração. É de notar, contudo, que isso
não ocorre para o período de quatro anos do mandato presidencial, onde a
inflação não é tida em conta. (E. P.).

(694]
Notar-se-á que foi estabelecida pela Convenção urna diferença
entre a compensação do presidente e a dos juízes. A do pri-
meiro não pode ser aumentada nem diminuída; a dos últimos
só não pode ser diminuída. Isto proveio provavelmente da
diferença na duração dos respectivos mandatos. Como o
presidente deverá ser eleito para um máximo de quatro anos,
raramente pode acontecer que um salário adequado, fixado
no começo desse período, não continue a sê-lo até ao fim.
Mas em relação aos juízes que, se bem cumprirem, estarão
seguros vitaliciamente nos seus lugares, pode muito bem
acontecer, em especial nos primeiros períodos de governo,
que um estipêndio que seria muito suficiente quando da sua
primeira nomeação se torne demasiado pequeno na continua-
ção do seu serviço.
Esta disposição para a subsistência dos juízes manifesta
todas as marcas de prudência e eficácia. E pode afirmar-se
com segurança que, juntamente com a posse permanente dos
seus cargos, proporciona uma melhor perspectiva da sua
independência do que a que se pode descobrir nas Constitui-
ções de qualquer dos Estados em relação aos seus respectivos
juízes.
As precauções em relação à responsabilidade dos juízes
estão compreendidas no artigo que respeita aos crimes de
responsabilidade. Estão sujeitos a serem responsabilizados por
má conduta pela Câmara dos Representantes, e julgados pelo
Senado. E, se condenados, podem ser demitidos do cargo, e
desqualificados para ocupar qualquer outro. Esta é a única
disposição sobre o assunto que é consistente com a necessária
independência do carácter judicial, e é a única que encontra-
mos na nossa própria Constituição a respeito dos nossos pró-
prios juízes.
A ausência de uma disposição para demitir os juízes por
razões de incapacidade foi matéria de queixa. Mas todos os
homens ponderados serão sensíveis a que uma disposição dessa
natureza ou não seria praticada, ou estaria mais sujeita a abuso

[695]
do que seria adaptada a responder a algum bom fim. A medição
das faculdades da mente, creio, não tem lugar no catálogo das
artes conhecidas. Uma tentativa para fixar a fronteira entre as
regiões da capacidade e da incapacidade daria azo a amizades
e inimizades partidárias e pessoais muito mais frequentemente
do que faria progredir os interesses da justiça e do bem público.
O resultado, excepto no caso de insanidade, deve na sua maior
parte ser arbitrário, e a insanidade, sem qualquer disposição
formal ou expressa, pode ser considerada com segurança como
uma desqualificação virtual.
A Constituição de Nova Iorque, para evitar investigações
que têm de ser sempre vagas e perigosas, considerou uma
idade particular como critério de incapacidade. Nenhum
homem pode ser juiz depois dos sessenta anos. Acredito que
existem poucas pessoas presentemente que não desaprovem
esta disposição. Não há cargo em relação ao qual ela seja
menos apropriada do que em relação ao de juiz. As faculdades
de deliberação e de comparação conservam em geral a sua
força muito para lá desse período nos homens que lhe
sobrevivem. E quando, adicionalmente a esta circunstância,
consideramos quão poucos existem que sobrevivem ao tempo
do vigor intelectual, e como é improvável que qualquer porção
considerável dos magistrados, seja mais ou menos numerosa,
venha a estar simultaneamente nesta situação, estaremos prontos
para concluir que as limitações desta natureza têm pouco que
as recomende. Numa república, onde as fortunas não são
abundantes e as pensões não são adequadas, a demissão de
homens de lugares em que serviram o seu país longa e util-
mente, dos quais dependem para a sua subsistência, e para
quem será demasiado tarde para virar-se para qualquer outra
ocupação como seu modo de vida, deveria existir maior defe-
rência para com a humanidade do que a que se encontra no
perigo imaginário de uma magistratura caduca.
PUBLIUS

[696]
O FEDERALISTA N. • 80

Os Poderes do Departamento Judicial

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

Para julgar com exactidão da correcta extensão da judica-


tura federal será necessário considerar, em primeiro lugar,
quais são os seus objectos próprios.
Parece admitir escassa controvérsia que a autoridade judicial
da União se deveria estender a estes vários tipos de causas:
1. 0 , a todas as que resultam das leis dos Estados Unidos, aprova-
das no exercício dos seus justos e constitucionais poderes de
legislação; 2 .0 , a todas as que respeitam à execução de disposi-
ções expressamente contidas nos artigos da União; 3. 0 , a todas
aquelas em que os Estados Unidos são parte interessada;
4. 0 , a todas aquelas que envolvem a PAZ da CONFEDERAÇÃO,
que respeitem ao inter- relacionamento quer entre os Estados
Unidos e as nações estrangeiras quer entre os próprios Estados;

* De J. e A. McLean, Th e Federalist, Jl , 303-310, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788, e recebeu o número 80.
Foi publicado em 21 de Junho no The Independent journal onde teve o número
79, e começado a publicar em 27 de Junho e ternúnado em 1 de Julho no
The New-York Packet, onde teve o número 80. OC).

[697]
5. 0 , a todas as que se originam no alto mar, e pertencem a
uma jurisdição do almirantado ou marítima; e, por último,
6. 0 , a todas aquelas em que não se possa presumir que os
tribunais dos Estados sejam imparciais e desapaixonados.
O primeiro ponto depende desta consideração óbvia que
deveria existir sempre um método constitucional para conferir
eficácia às disposições constitucionais. De que serviriam, por
exemplo, as restrições à autoridade das legislaturas dos Estados,
sem um dispositivo constitucional que obrigasse à sua obser-
vância? Os Estados, segundo o plano da Convenção, estão
proibidos de fazer uma variedade de coisas, algumas das quais
são incompatíveis com os interesses da União, e outras com
os princípios da boa governação. A imposição de direitos
sobre artigos importados e a emissão de papel-moeda são
exemplos de um e de outro caso. Nenhum homem de bom
senso acreditará que essas proibições fossem escrupulosamente
respeitadas se não existisse algum poder efectivo do governo
para refrear ou corrigir as infracções. Este poder terá de ser
ou um veto directo sobre as leis dos Estados, ou uma autoridade
nos tribunais federais para anular o que puder estar em mani-
festa contravenção dos artigos da União. Não há terceira via
que eu seja capaz de imaginar. A última parece ter sido
considerada pela Convenção como preferível à primeira, e,
presumo, será a mais agradável para os Estados.
Quanto ao segundo ponto, é impossível, por meio de
qualquer argumento ou comentário, torná-lo mais claro do
que já é em si mesmo. Se existem alguns axiomas políti-
cos, a proprieda e de o poder judicial de um governo ser
coextensivo com o seu poder legislativo, pode ser contada
nesse número. A mera necessidade de uniformidade na
interpretação das leis nacionais decide a questão. Treze tribu-
nais independentes de jurisdição derradeira, julgando as mes-
mas causas, decorrentes das mesmas leis, são uma hidra na
governação, da qual não pode provir senão contradição e
confusão.

[698]
Menos ainda precisa de ser dito em relação ao terceiro
ponto. As controvérsias entre as nações e os seus membros
ou cidadãos só podem ser apropriadamente entregues aos
tribunais nacionais. Qualquer outro plano seria contrário à
razão, ao precedente, e ao decoro.
O quarto ponto assenta nesta simples proposição que a
paz do TODO não deveria ser deixada à disposição de uma
PARTE. A União será indubitavelmente responsável para
com as potências estrangeiras pela conduta dos seus mem-
bros. E a responsabilidade por um prejuízo deverá ser sem-
pre acompanhada da faculdade de impedi-lo. Como a recusa
ou perversão da justiça pelas sentenças dos tribunais, bem
como por outra maneira qualquer, é, com razão, classificada
entre as causas justas de guerra, seguir-se-á que a judicatura
federal deveria ter jurisdição sobre todas as causas em que
estão envolvidos cidadãos de outros países. Isto não é menos
essencial para a preservação da confiança pública do que para
a segurança da tranquilidade pública. Pode talvez ser ima-
ginada uma distinção entre casos resultantes de tratados e do
direito das gentes e aqueles que possam pertencer apenas ao
nível da lei municipal. O primeiro tipo pode ser considerado
adequado para a jurisdição federal, o último para a dos Esta-
dos. Mas é pelo menos problemático se uma sentença injusta
contra um estrangeiro, onde a matéria da controvérsia fosse
inteiramente relativa à lex loci, não seria, não sendo reparada,
uma agressão contra o seu soberano, tal como o seria uma
sentença que violasse as estipulações de um tratado ou a lei
geral das nações. E uma objecção ainda mais forte à distin-
ção resultaria da imensa dificuldade, se não impossibili-
dade, de uma discriminação prática entre os casos de um e
de outro cariz. Há uma tão grande proporção de casos, em
que os estrangeiros são partes, que envolvem questões nacio-
nais que é muito mais seguro e mais vantajoso remeter
todos os casos em que eles estão envolvidos para os tribunais
naciOnaiS.

[699]
O poder de decidir pleitos entre dois Estados, entre um
Estado e os cidadãos de um outro, e entre cidadãos de diferentes
Estados, é talvez não menos essencial para a paz da União do
que aquele que acaba de ser examinado. A história dá-nos
uma hórrida imagem das dissensões e guerras privadas que
perturbaram e devastaram a Alemanha antes da instituição da
CÂMARA IMPERIAL por Maximiliano, perto do fim do século
quinze; e informa-nos, ao mesmo tempo, da vasta influência
dessa instituição no apaziguamento das desordens e no
estabelecimento da tranquilidade do império. Esta Câmara
era um grande tribunal investido da autoridade para decidir
definitivamente todas as divergências entre os membros do
Corpo germânico.
Na vigência da autoridade da chefia federal, não foi esque-
cido um método para terminar as disputas territoriais entre
os Estados, apesar do sistema imperfeito com que até agora
se mantiveram unidos. Mas há muitas outras fontes, além das
conflituosas reivindicações de fronteiras, das quais podem bro-
tar questiúnculas e animosidades entre os membros da União.
Fomos testemunhas de algumas delas no decurso da nossa
experiência passada. Facilmente se conjecturará que aludo às
leis fraudulentas que foram aprovadas em muitos dos Estados.
E, embora a Constituição proposta institua defesas particulares
contra a repetição desses casos que até agora fizeram a sua
aparição, é no entanto legítimo recear que o espírito que as
produziu venha a assumir novas configurações que não
poderiam ter sido previstas nem especificamente precavidas.
Quaisquer práticas que possam apresentar uma tendência para
perturbar a harmonia entre os Estados são objectos próprios
de superintendência e controlo federal.
Pode ser considerado como base da União que "os cidadãos
de cada Estado terão direito aos mesmos privilégios e imuni-
dades que os cidadãos dos outros Estados" 1 . E, se for justo o

I Art.0 4.0 , secção li, cláusula 1. (E. P.).

[700]
princípio de que todos os governos devem possuir os meios de
executar as suas próprias disposições por sua própria autoridade,
seguir-se-á que, para a inviolável manutenção dessa igualdade
de privilégios e imunidades, a que os cidadãos da União terão
direito, a judicatura nacional deveria presidir em todos os
casos em que um Estado ou os seus cidadãos estão em oposição
a outro Estado ou aos cidadãos deste. Para garantir todo o
efeito de urna disposição tão fundamental contra toda a evasão
e subterfiígio, é necessário que a sua interpretação seja entregue
a esse tribunal que, não tendo ligações locais, terá maior
probabilidade de ser imparcial entre os diferentes Estados e
os seus cidadãos, e que, devendo a sua existência oficial à
União, nunca será susceptível de sentir uma predisposição
pouco auspiciosa em relação aos princípios em que está
fundado.
O quinto ponto pedirá pouca crítica. Os mais fanáticos
admiradores da autoridade dos Estados não mostraram até
aqui urna disposição para negar à judicatura nacional a juris-
dição dos pleitos marítimos. Estes dependem tão geralmente
do direito das gentes e afectam tão comummente os direitos
de estrangeiros que caem dentro das considerações relativas
à paz pública. A parte mais importante deles está, pela presente
Confederação, submetida à jurisdição federal.
A razoabilidade da actuação dos tribunais nacionais nos
casos em que os tribunais dos Estados não se podem presumir
imparciais fala por si. Decerto que nenhum homem deveria
ser juiz em causa própria, ou em qualquer causa a respeito da
qual tem o menor dos interesses ou a menor das predisposições.
Este princípio tem um peso de não pouco valor na designação
dos tribunais federais como sendo os tribunais apropriados
para a decisão das controvérsias entre diferentes Estados e os
seus cidadãos. E devia ter o mesmo efeito em relação a alguns
casos entre cidadãos do mesmo Estado. Reclamações de terras
com base em concessões de diferentes Estados, fundadas em
pretensões de fronteira opostas, pertencem a este género. Não

[701]
se pode esperar que sejam imparciais os tribunais de qualquer
dos Estados que outorgaram a concessão. As leis podem até
ter julgado antecipadamente a questão e obrigado os tribunais
a decisões em favor do Estado a que pertencem. E, ainda que
isto não tenha sido feito, será natural que os juízes, como
homens, sintam uma predilecção mais forte pelas reivindicações
do seu próprio governo.
Tendo assim apresentado e discutido os princípios que
deveriam regular a constituição do poder judicial federal,
prosseguiremos p ndo à prova, segundo esses princípios, os
poderes particulares de que, segundo o plano da Convenção,
ele se deverá compor. Deve abranger: "todas as causas, da lei
e da equidade, do âmbito da Constituição, das leis dos Estados
Unidos, dos trata os celebrados ou a celebrar sob a sua autori-
dade; todas as causas que envolvam embaixadores, outros
ministros e cônsules; todas as causas do almirantado e de
jurisdição marítima; litígios em que os Estados Unidos sejam
parte; litígios entre dois ou mais Estados; entre um Estado e
os cidadãos de outro Estado; entre cidadãos de diferentes
Estados; entre cidadãos do mesmo Estado reivindicando terras
por concessão de diferentes Estados; e entre um Estado ou
os seus cidadãos e Estados, cidadãos ou súbditos estrangeiros."2
Isto constitui a totalidade da autoridade judicial da União.
Examinemo-la agora detalhadamente. Ela deverá, portanto,
estender-se a:

2 Art.0 3, secção II, cláusula 1. O 11. 0 Aditamento (ratificado em 7 de


Fevereiro de 1795) modificou esta cláusula, no sentido de proteger a soberania
dos tribunais estaduais em matérias que digam respeito aos Estados. Os cidadãos
do próprio Estado, ou de um outro Estado, têm de recorrer em primeira
instância aos tribunais estaduais. Os tribunais federais, nomeadamente, o
Supremo Tribunal, funcionarão, apenas, como instância de recurso. Por outro
lado, esta cláusula contém inscrito o poder de "reapreciação judicial" (judidal
review), que permite ao Supremo Tribunal invalidar as leis do Congresso, ou
as acções do poder executivo, por inconstitucionalidade, como ocorreu, pela
primeira vez, no caso Marbury versus Madison, 1803. (E. P.).

[702]
Primeiro. Todas as causas, da lei e da equidade, do âmbito
da Constituição ou das leis dos Estados Unidos. Isto corresponde
às duas primeiras classes de pleitos que foram enumeradas,
como apropriadas para a jurisdição dos Estados Unidos. Foi
perguntado: O que significa "causas do âmbito da Constitui-
ção," em oposição a "causas do âmbito das leis dos Estados
Unidos"? A diferença já foi explicada. Todas as restrições pos-
tas à autoridade das legislaturas dos Estado fornecem exemplos
dela. O s Estados não deverão, por exemplo, emitir papel-
-moeda; mas a interdição resulta da Constituição, e não terá
qualquer conexão com nenhuma lei dos Estados Unidos. Se,
apesar disso, viesse a ser emitido papel-moeda, os litígios a
esse respeito seriam causas do âmbito da Constituição e não
do âmbito das leis dos Estados Unidos, no sentido normal
dos termos. Isto pode servir como uma amostra do todo.
Foi também perguntado: Qual a necessidade da palavra
"equidade"? Que pleitos de equidade podem brotar da
Constituição e das leis dos Estados Unidos? Dificilmente
existirá uma matéria de litígio entre indivíduos que possa não
envolver os ingredientes da fraude, acidente, confiança ou tribulação
que converteria o assunto em objecto de uma jurisdição de
equidade mais do que de jurisdição legal, tal como a distinção
é conhecida e está estabelecida em vários dos Estados. Por
exemplo, é do dorrúnio peculiar de um tribunal de equidade
desobrigar em relação ao que se chama um acordo leonino:
este é um contrato em que, embora po sa não ter havido
fraude ou dolo directos, suficientes para o invalidar num
tribunal, pode todavia ter havido alguma vantagem indevida
e exorbitante derivada das necessidades ou infortúnios de uma
das partes, que um tribunal de equidade não toleraria. Em
tais causas, quando estivessem envolvidos estrangeiros em
qualquer dos lados em litígio, seria impossível que a judicatura
federal fizesse justiça sem uma jurisdição de equidade, bem
como legal. O s acordos para a cedência de terras reclamadas
com base nas concessões de Estados diferentes podem propor-

[703]
cionar outro exemplo da necessidade de uma jurisdição
equitativa nos tribunais federais. Este raciocínio pode não ser
tão palpável nos Estados em que não é mantida a distinção
formal e técnica entre LEI e EQUIDADE, como acontece no
nosso Estado, onde ela é exemplificada na prática de todos os
dias3.
A autoridade judiciária deverá estender-se:
Segundo. Aos tratados já celebrados, ou que venham a ser
celebrados, sob a autoridade dos Estados Unidos, e a todas as
causas que envolvam embaixadores, outros ministros e cônsules.
Estas pertencem à quarta classe de causas enumeradas, dado
que têm uma conexão evidente com a preservação da paz
nacional.
Terceiro. Às causas do almirantado e de jurisdição marí-
tima. Estas formam, em conjunto, a quinta das classes enu-
meradas de causas apropriadas para a competência dos tri-
bunais nacionais.
Quarto. Aos litígios em que os Estados Unidos sejam parte.
Estes constituem a terceira daquelas classes.
Quinto. Aos litígios entre dois ou mais Estados, entre um
Estado e os cidadãos de outro Estado, entre cidadãos de dife-
rentes Estados. Estes pertencem à quarta daquelas classes, e
partilham, em alguma medida, da natureza da última.

3 Com a excepção do Estado da Lousiana (marcado pelo "direito civil"


[civil law], com raízes no Direito Romano e nos seus desenvolvimentos
posteriores na Europa continental), a ordemjuódica dos EUA é marcada pela
influência do "direito comum" (common law) inglês. Neste e nos artigos que
se seguem devemos ter presente a seguinte destrinça conceptual: a) "direito
codificado" (que aparece como civillaw, ou como statute law) , que se refere às
normasjuódicas escritas; b) "direito comum" ou "consuetudinário" (common
law), que não se encontra codificado, fundando-se, antes, na regra do precedente,
prendendo-se com a experiência acumulada da casuística judicial; c) "equidade"
(equity) , que visa encontrar soluções para casos específicos, em que nenhum
dos outros quadros juódicos se mostra capaz de dar uma resposta adequada.
(E. P.).

[704]
Sexto. Aos litígios entre cidadãos do mesmo Estado
reivindicando terras por concessão de diferentes Estados. Estes caem
dentro da última classe, e são os únicos casos em que a Constituição
proposta contempla directamente a jurisdição sobre as disputas entre
cidadãos do mesmo Estado.
Sétimo. Aos litígios entre um Estado ou os seus cidadãos
e Estados, cidadãos e súbditos estrangeiros. Sobre estes foi já
explicado que pertencem à quarta das classes enumeradas, e
foi mostrado que são, de maneira peculiar, matéria própria
da judicatura nacional.
Deste exame dos poderes particulares da judicatura federal,
tal como estão previstos na Constituição, fica patente que
todos se conformam com os princípios que deveriam ter
regido a estrutura desse departan1ento, e que eram necessários
para a perfeição do sistema. Se alguns inconvenientes parciais
aparentarem estar ligados à incorporação de qualquer deles
no plano, deveria ser recordado que a legislatura nacional terá
ampla autoridade para determinar as excepções e prescrever as
regulamentações que tenham a intenção de obviar ou afastar
esse inconvenientes. A possibilidade de males particulares
nunca pode ser vista, por um e pírito bem informado, como
uma objecção sólida a um princípio geral, que é concebido
para evitar males gerais e para obter vantagens gerais.
PUBLIUS

[705]
O FEDERALISTA N.• 81

Continuação do Exame do Departamento Judicial


e da Distribuição da Respectiva Autoridade

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

Regressemos agora à repartição da autoridade judicial


entre os diferentes tribunais e às relações destes uns com os
outros.
"O poder judicial dos Estados Unidos será" (segundo o
plano da Convenção) "atribuído a um Supremo Tribunal e
a tribunais inferiores que forem oportunamente definidos e
estabelecidos." t
Que deva existir um tribunal com jurisdição suprema e
final, é uma proposição que não é provável que seja contestada.
As razões para isso foram apresentadas noutro lugar2 e são

* De). e A. McLean, The Federalist, II , 310-322, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788, e recebeu o número 81.
Foi iniciada a sua publicação em 25 de Junho e concluída em 28 de Junho no
The Independent]ournal onde teve o número 80, e começado a publicar em 4
de Julho e terminado em 8 de Julho no The New- York Packet, onde teve o
número 81. QC) .
1 Art.O 3, Sec. 1. (Publius).
2 Ver Art. 0 22. QC).

[707]
demasiado óbvias para necessitarem de repetição. A única
questão que parece ter sido levantada a esse respeito é se deve-
ria ser um organismo distinto ou um ramo da legislatura.
É observável, em relação a esta matéria, a mesma contradição
que foi comentada em vários outros casos. Os próprios homens
que põem objecções ao Senado como tribunal para crimes
de responsabilidade, com o fundamento de uma mistura
imprópria de poderes, defendem, pelo menos por implicação,
a correcção de investir a decisão final de todos os pleitos em
todo o corpo legislativo, ou numa parte dele.
Os argumentos, ou melhor, sugestões, em que se funda
esta acusação, são para este efeito: "A autoridade do Supremo
Tribunal dos Estados Unidos proposto, que deverá vir a ser
um corpo separado e independente, será superior à da legisla-
tura. O poder de interpretar as leis de acordo com o espírito
da Constituição dará a esse tribunal a capacidade de moldá-
-las de qualquer maneira que ache justa; em especial porque
as suas decisões não serão de nenhuma maneira sujeitas à
revisão ou correcção pelo corpo legislativo. Isto é tão sem
precedentes como perigoso. Na Grã-Bretanha, o poder judicial
de última instância, reside na Câmara dos Lordes, que é um
ramo da legislatura; e esta parte do governo britânico foi imi-
tada nas Constituições dos Estados em geral. O parlamento
da Grã-Bretanha, e as legislaturas dos vários Estados, podem
em qualquer momento rectificar, por lei, as decisões discutíveis
dos tribunais respectivos. Mas os erros e as usurpações do
Supremo Tribunal dos Estados Unidos serão incontroláveis
e sem remédio." Ver-se-á, depois de um exame, que isto é
inteiramente composto por raciocínio falso com ba e em
factos mal compreendidos.
Em primeiro lugar, não há uma só sílaba no plano sob
consideração que conceda directamente aos tribunais nacionais
poderes para interpretar as leis de acordo com o espírito da
Constituição, ou que lhes dê uma maior latitude nesta matéria
do que a que pode ser reivindicada pelos tribunais de todos

[708)
os E tados. Admito, não obstante, que a Constituição deveria
ser o critério de interpretação das leis, e que sempre que exista
uma oposição evidente, as leis deveriam ceder o passo à
Constituição. Mas esta doutrina não é dedutível de nenhuma
circunstância peculiar do plano da Convenção, mas da teoria
geral de uma Constituição limitada. E, na medida em que for
verdadeira, é igualmente aplicável à maior parte dos governos
dos Estados, se não a todos. Portanto, não pode haver, a
respeito disto, objecção àjudicatura federal que não se aplique
às judicaturas locais em geral, e que não sirva para condenar
todas as Constituições que tentan1 traçar limites ao livre arbítrio
legislativo.
Mas talvez a força da objecção possa ser considerada como
consistindo na organização particular do Supremo Tribunal:
no facto de ele ser composto de um corpo de magistrados
distinto, em lugar de ser um dos ramos da legislatura, como
no governo da Grã-Bretanha e no deste Estado. Para insistir
neste ponto, os autores da objecção têm de renunciar ao
significado que se esforçaram por atribuir à célebre máxima
que requer uma separação dos departamentos do poder.
Todavia, deve ser-lhes concedido, de acordo com a interpre-
tação dada a essa máxima no decurso destes artigos, que ela
não é violada por investir o poder de julgar em última instância
numa parte do corpo legislativo. Mas, embora isso não seja
uma violação absoluta daquela norma excelente, aproxima-
-se muito dela, a ponto de bastar este aspecto para ser menos
aceitável do que o modo preferido pela Convenção. De um
corpo que tenha tido uma intervenção, ainda que apenas par-
cial, na aprovação de leis iníquas, raramente poderemos esperar
uma disposição para as mitigar e moderar na sua aplicação.
O mesmo espírito que tinha actuado ao fazê-las teria demasiada
aptidão para tingir a interpretação delas. E ainda se poderia
esperar menos que homens que tinham infringido a Constitui-
ção na sua qualidade de legisladores estivessem dispostos a
reparar a transgressão na qualidade de juízes. E isto não é tudo.

[709]
Todas as razões que recomendam a ocupação dos cargos judi-
ciais por aqueles que no seu desempenho mantenham bom
comportamento, militam contra depositar o poder judicial,
em último recurso, num organismo composto por homens
escolhidos por um período limitado. É um absurdo entregar
a decisão dos pleitos, em primeira instância, a juízes de nomea-
ção permanente e, em última, a outros de carácter temporário
e mutável. E é um absurdo ainda maior sujeitar as decisões
de homens escolhidos pelo seu conhecimento das leis, adqui-
rido através de longo e laborioso estudo, à revisão e controlo
de homens que, por falta da mesma vantagem, não podem
deixar de ser deficientes quanto a esse conhecimento. Os
membros da legislatura raramente serão escolhidos tendo em
vista as qualificações que preparam os homens para a posição
de juízes. E tal como haverá muita razão, neste aspecto, para
recear todas as consequências perniciosas de uma informação
deficiente, também, no aspecto da propensão natural desses
organismos para divisões partidárias, haverá não menos razão
para temer que o hálito pestilento da facção possa envenenar
as fontes da justiça. O hábito de estarem continuamente ali-
nhados em lados opostos conferirá uma tendência demasiado
forte para abafar a voz tanto da lei como da equidade.
Estas considerações ensinam-nos a aplaudir a sabedoria
desses Estados que entregaram o poder judicial de última ins-
tância não a uma parte da legislatura, mas a grupos de homens
distintos e independentes. Contrariamente à suposição dos
que, quanto a este aspecto, retrataram o plano da Convenção
como novo e sem precedentes, ele não é mais do que uma
cópia das Constituições de N ew Hampshire, Massachusetts,
Pensilvânia, Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte,
Carolina do Sul e Geórgia. E a preferência que foi dada a
esses modelos é altamente recomendável.
Não é verdade, em segundo lugar, que o parlamento da
Grã-Bretanha, ou as legislaturas dos Estados particulares,
possam rectificar as decisões criticáveis dos respectivos tribunais,

[710]
em nenhum outro sentido do que o que poderá ser feito por
uma futura legislatura dos Estados Unidos. A teoria, quer dos
britânicos quer das Constituições dos Estados, não autoriza
a revisão de uma sentença judicial através de um acto legislativo.
E também não existe nada na Constituição proposta, mais do
que em qualquer das outras, que a proíba. Na primeira, tal
como na última, a incorrecção da coisa, com base nos princí-
pios gerais da lei e da razão, é o único obstáculo. Uma legis-
latura não pode anular, sem exceder a sua esfera de acção,
uma decisão tomada num caso particular, embora possa pres-
crever uma nova norma para casos futuros. Este é o princípio,
e aplica-se com todas as suas consequências, exactamente da
mesma maneira e na mesma medida, aos governos dos Estados
e ao governo nacional agora sob consideração. Não pode ser
apontada a mínima diferença, seja qual for o ponto de vista
sobre o assunto.
Pode ser observado, em último lugar, que o suposto perigo
de usurpações da autoridade legislativa por parte do poder
judicial, que foi reiterado em muitas ocasiões, é na realidade
um fantasma. Podem ocorrer de vez em quando más inter-
pretações e contravenções da vontade da legislatura, mas nunca
podem ser tão extensas que sejam uma inconveniência, ou
que afectem em qualquer grau sensível a ordem do sistema
político. Isto pode ser inferido com certeza da natureza geral
do poder judicial, dos objectos debaixo da sua alçada, da
maneira como é exercido, da sua comparativa fraqueza e da
sua total incapacidade de apoiar as suas usurpações pelo recurso
à força. E a inferência é grandemente fortalecida pela consi-
deração do importante controlo constitucional que o poder
de iniciar os processos por crimes de responsabilidade, dado
a uma parte do corpo legislativo, e o poder de julgá-los, dado
a uma outra parte do mesmo corpo, terão sobre os membros
do departamento judicial. Isto só por si é uma completa pro-
tecção. Nunca pode haver perigo de que os juízes, por meio
de uma série de usurpações deliberadas da autoridade da

[711]
legislatura, se arrisquem ao ressentimento unânime do corpo
em quem foi investida essa autoridade enquanto esse corpo
tiver na sua posse os meios de castigar a sua presunção, des-
promovendo-os dos seus lugares. Isto, ao mesmo tempo que
deve afastar todos os receios nesta matéria, também proporciona
um argumento convincente para constituir o Senado como
tribunal para o julgamento dos processos por crimes de respon-
sabilidade.
Tendo examinado e, confio, afastado as objecções à organi-
zação distinta e independente do Supremo Tribunal, prossigo
para o exame da adequação do poder de instituir tribunais de
hierarquia inferior,3 e das relações que subsistirão entre estes
e o pnme1ro.
O poder de instituir tribunais inferiores é evidentemente
ponderado para obviar a necessidade de recorrer ao Supremo
Tribunal em todos os casos da alçada federal. É sua intenção
dar ao governo nacional a capacidade de instituir ou autorizar,
em cada Estado ou distrito dos Estados Unidos, um tribunal
competente para a decisão de assuntos de jurisdição nacional
dentro dos limites desse Estado ou distrito.
Mas, pergunta-se, porque não poderia o mesmo objectivo
ter sido alcançado usando como instrumentos os tribunais
dos Estados? Isto admite diferentes respostas. Embora se deva
conceder a máxima latitude à aptidão e competência desses
tribunais, a substância do poder em questão pode ainda ser
vista como uma parte necessária do plano, ainda que se limitasse
a dar poderes à legislatura nacional para lhes entregar a alçada
de causas do âmbito da Constituição nacional. Conferir poderes

3 Estes poderes foram absurdamente interpretados como tendo a intenção


de abolir todos os tribunais de condado em vários Estados, que são comummente
chamados tribunais inferiores. Mas as expressões da Constiruição são instiruir
" tribunais INFERIORES AO SUPREMO TRJBUNAL"; e O desígnio evidente da
cláusula é possibilitar a instituição de tribunais locais, subordinados ao supremo,
quer em Estados quer em grandes distritos. É ridículo imaginar qu e estavam
contemplados os tribunais de condado. (Publius).

[712]
para decidir essas causas aos tribunais existentes dos diversos
Estado seria talvez o mesmo que "instituir tribunais", tanto
como criar novos tribunais usando os mesmos poderes. Mas
não deveria ter sido incluída uma disposição mais directa e
explícita a favor dos tribunais dos Estados? Existem, na minha
opinião, razões substanciais contra uma disposição des e género.
Os mais perspicazes não podem antever até onde é que a
prevalência de um espírito local poderá desqualificar os tribu-
nais locais para a jurisdição das causas nacionais, ao passo que
qualquer homem pode perceber que os tribunais constituídos,
como os de alguns Estados, seriam canais impróprios da
autoridade judicial da União. Os juízes estaduais, detendo os
seus cargos enquanto aprouver ao governo dos Estados, ou
numa periodicidade de base anual, serão muito pouco indepen-
dentes para que se possa confiar neles para uma execução
inflexível das leis nacionais. E, se houvesse necessidade de
lhes confiar a alçada original de causas relevando dessas leis,
haveria uma necessidade correspondente de deixar a porta
do apelo tão aberta quanto possível. A facilidade ou dificuldade
dos apelos deveria ser proporcional aos graus de confiança ou
desconfiança nos tribunais ubordinado . E, convencido como
estou da correcção da jurisdição de recurso, nas várias classes
de pleito aos quais ela é alargada pelo plano da Convenção,
devo considerar todas as coisas elaboradas para produzir, na
prática, um recurso irrestríto aos recursos, como uma fonte de
inconveniência pública e privada.
Estou certo de que seria considerado altamente oportuno
e útil dividir os Estados Unidos em quatro ou cinco ou meia
dúzia de distritos, e instituir um tribunal federal em cada dis-
trito, em lugar de um em cada Estado4. Os juízes de ses tribu-

4 O sistema judicial federal envolve, actualmente, para além do Supremo


Tribunal, doze Trial Courts (designados, inicialmente, como Circuit Courts) e
oitenta e nove District Courts (que são tribunais federais de primeira instância) .
Existem ainda tribunais especializados federais. (E. P.).

[713]
nais, com a ajuda dos juízes dos Estados, podem deter circuitos
para o julgamento de pleitos nas várias partes dos respectivos
distritos. Através deles, a justiça pode ser administrada com
facilidade e rapidez em todo o distrito, e os recursos podem
ser circunscritos com segurança dentro de limites estreitos.
Este plano parece-me neste momento ser o mais aceitável de
todos os que pudessem ser adoptados e, para o realizar, é
necessário que o poder de instituir tribunais inferiores venha
a existir em toda a extensão no lugar onde será encontrado
na Constituição proposta.
Estas razões parecem suficientes para satisfazer um espírito
honesto, confirmando que a ausência desse poder teria sido
um grande defeito do plano. Examinemos agora de que
maneira se deverá distribuir a autoridade judicial entre os
tribunais supremo e inferiores da União.
O Supremo Tribunal deverá ser investido com jurisdição
originária apenas "em causas que afectem embaixadores,
outros ministros e cônsules, e em que UM ESTADO seja uma
parte". Os ministros de todas as classes são os representantes
imediatos dos seus soberanos. Todas as questões em que eles
estão envolvidos estão tão directamente conectadas com a paz
pública que, tanto para a preservação desta como por respeito
para com os soberanos que eles representa.rn, é simultaneamente
oportuno e correcto que essas questões sejam submetidas em
primeira instância à mais alta judicatura da nação. Embora os
cônsules não tenham, estritamente falando, um carácter diplo-
mático, como são, apesar disso, agentes públicos das nações
às quais pertencem, é-lhes aplicável em grande medida a
mesma observação. Quando possa acontecer que um Estado
seja uma parte num litígio, ajustar-se-ia mal à sua dignidade
que o mesmo fosse entregue a um tribunal inferior.
Embora isto possa ser considerado mais como uma digres-
são do assunto imediato deste artigo, aproveitarei a ocasião
para mencionar aqui uma hipótese que despertou algum
alarme com fundamentos muito errados. Foi sugerido que

[714]
uma atribuição dos títulos de crédito de um Estado aos cidadãos
de outro lhes permitiria processar esse Estado nos tribunais
federais pelo valor desses títulos. Uma sugestão que as consi-
derações seguintes provam ser não fundamentada.
É inerente à natureza da soberania não ter de responder
no processo de um indivíduo sem o seu consentimento. Este é
o sentido geral, e a prática geral da humanidade. E a excepção,
como um dos atributos da soberania, é presentemente desfru-
tada pelo governo de cada um dos Estados da União. Portanto,
a menos que haja uma renúncia a esta imunidade no plano
da Convenção, ela permanecerá nos Estados, e o perigo anun-
ciado deverá ser meramente ideal. As circunstâncias que são
necessárias para produzir uma alienação da soberania do Estado
foram discutidas ao considerar a questão da tributação, e não
precisam de ser repetidas aquis. Uma referência aos princípios
aqui estabelecidos convencer-nos-á de que não há razão para
pretender que os governos dos Estados seriam, pela adopção
desse plano, despojados do privilégio de pagar as suas dívidas
como entendessem, livres de todos os constrangimentos,
excepto os que decorrem das obrigações da boa-fé. Os con-
tratos entre uma nação e os indivíduos apenas obrigam a
consciência do soberano, e não têm pretensões a uma força
compulsiva. Não conferem nenhum direito de agir indepen-
dentemente da vontade soberana. Com que finalidade se auto-
rizariam processos contra Estados pelas dívidas que têm? Como
se poderiam conseguir as restituições? É evidente que isso
não poderia ser feito sem travar guerra contra o Estado contra-
tante; e atribuir aos tribunais federais, por mera implicação e
destruindo um direito preexistente dos governos dos Estados,
poderes que envolvessem tal consequência seria absolutamente
forçado e injustificável.
Resumamos o curso das nossas observações. Vimos que
a jurisdição originária do Supremo Tribunal ficaria confinada

s Ver artigo 32. GC).

[715]
a duas classes de pleitos de uma natureza que raramente ocor-
reria. Em todos os outros casos da alçada federal, ajuri dição
originária pertenceria a tribunais inferiores, e o Supremo
Tribunal não teria mais do que uma jurisdição de recurso,
"em conformidade com as excepções e normas que o Con-
gresso estabelecer" .
A correcção desta jurisdição de recurso foi muito pouco
trazida à questão em relação a matérias de direito mas foram
fortes o clamores contra ela quando aplicada a matéria de
facto. Alguns homens bem intencionados deste Estado,
derivando as suas noções da linguagem e formas que e tão
em uso nos nossos tribunais, foram induzidos a considerá-la
como uma revogação implícita do julgamento por júri, a favor
do modo de julgamento do direito civil, 6 que prevalece nos
nossos tribunais do almirantado, das sucessões e de equidade.
Foi atribuído ao termo "recurso" um sentido técnico que,
na nossa terminologia legal, é comummente usado com
referência a recursos nos processos do direito civil. Mas, se
não estou mal informado, não seria dado a esse termo o
mesmo sentido em nenhuma parte da Nova Inglaterra. Aí,
um recurso de um júri para outro é familiar tanto na linguagem
como na prática, e é mesmo uma coisa natural, até que tenha
havido dois veredictos a favor do mesmo lado. A palavra
"recurso", portanto, não erá entendida da mesma maneira
na Nova Inglaterra ou em Nova Iorque, o que mostra a
incorrecção de uma interpretação técnica derivada da jurispru-
dência de qualquer Estado particular. Tomada em ab tracto,
a expressão denota apenas o poder de um tribunal rever os
processos de outro, quer quanto ao direito quer quanto aos
factos, quer a ambos. O modo de o fazer pode depender de

6 Civil Law, no original. O julgamento por júri é uma das características


dos países cuja tradição radica no "direito comum" (common law). Esse recurso
pode ser usado, mas em condições especiais, nos países com tradição romano-
-germânica. (E. P.).

[716]
um costume antigo ou de disposições legislativas (num governo
novo deverá depender destas últimas), e pode ser com ou sem
a ajuda de um júri, como se achar aconselhável. Portanto, se
o reexame de um facto que já recebeu o veredicto de um júri
deve sempre ser admitido na vigência da Constituição proposta,
ele poderia ser regulamentado de maneira a ser feito por um
segundo júri, quer reenviando o pleito ao tribunal inferior
para um segundo julgamento dos fàctos, quer determinando-
-se imediatamente o Supremo Tribunal como incompetente
para o julgamento da causa7.
Mas não se segue que o reexame de um facto que já foi
estabelecido por um júri seja permitido no Supremo Tribunal.
Porque é que não pode ser dito, com a mais estrita correcção,
quando um recurso devido a erro é trazido de um tribunal
inferior para um tribunal superior neste Estado, que o último
tem jurisdição em matéria de facto, bem como em matéria
de direito? É verdade que não pode ordenar uma nova
investigação respeitante aos factos, mas toma conhecimento
deles como aparecem nas actas e decide que lei lhes é aplicáveiS.
Isto é jurisdição tanto de facto como de direito, e nem sequer
é possível separá-las. Embora os tribunais comuns deste Estado
verifiquem os factos controversos por meio de um júri, ainda
assim têm inquestionavelmente jurisdição tanto em matéria
de facto como em matéria de direito. E, em consequência,
quando os factos são estabelecidos nas alegações, não recorrem
a um júri, mas procedem imediatamente ao julgamento.
Afirmo, portanto, com este fundamento, que as expressões
"jurisdição de recurso tanto em matéria de direito quanto
em matéria de facto," não implicam necessariamente um

7 Direding out, no original. Trata-se de uma expressão técnica, significando


a declaração de incompetência de um tribunal para julgar uma determinada
causa ." (E. P.).
8 Esta palavra é composta de JUS e DICTJO, juris, dictio ou expressão
o u pronúncia da lei. (Publius).

[717]
reexame pelo Supremo Tribunal de factos decididos por júris
em tribunais inferiores.
Pode muito bem ser imaginado que o encadeamento de
ideias que se segue tenha influenciado a Convenção, em
relação a esta disposição particular. A jurisdição de recurso
do Supremo Tribunal (pode ter sido argumentado) estender-
-se-á a pleitos determináveis de diferentes maneiras, alguns
da alçada do DIREITO COMUM9, outros da alçada do DIREITO
CODIFICADolo. Nos primeiros, apenas a reapreciação legal
será, geralmente falando, o domínio próprio do Supremo
Tribunal. Nos últimos, o reexame dos factos é conforme aos
usos, e em alguns casos, dos quais são exemplo os pleitos sobre
mercadorias ou avios apresados, pode ser essencial para a
preservação da paz pública. Portanto, é necessário que essa
jurisdição de recurso deva, em certos casos, estender-se no
sentido mais lato à matéria de facto. Não servirá criar uma
excepção expressa de pleitos que tenham sido originalmente
julgados por um júri, porque nos tribunais de alguns Estados
todos os pleitos são julgados desse modoll. E uma excepção
assim impossibilitaria a revisão da matéria de facto, tanto
quando pudesse ser apropriada como quando fosse inapro-
priada. Para evitar todos os inconvenientes, será mais seguro
declarar na generalidade que o Supremo Tribunal possuirá
jurisdição de recurso tanto em matéria de direito como de
Jacto, e que essa jurisdição deverá ser sujeita às excepções e
regulamentações que a legislatura nacional possa prescre-
ver. Isto dará capacidade ao governo para a modificar da
maneira que melhor responda aos fins da justiça e da segurança
pública.

9 COMMON LAW, no original. (E. P.) .


10 CIVIL LAW, no original. (E. P.).
11 Sustento que os Estados terão jurisdição concorrente com a das
judicaturas federais subordinadas, em muitos casos de alçada federal, como
será explicado no meu próximo artigo. (Publius) .

[718)
Seja como for, esta maneira de ver a questão põe fora de
dúvida que a suposta abolição do julgamento por júri, pela
acção desta disposição, é falaciosa e falsa. A legislatura dos
Estados Unidos teria certamente plenos poderes para determi-
nar que nos recursos para o Supremo Tribunal não deva haver
reexame dos factos quando estes foramjulgados por júris nos
pleitos originais. Isso seria certamente uma excepção autori-
zada. Mas, se, pela razão já apresentada, se pensasse que ela
era demasiado alargada, poderia ser qualificada com uma
limitação apenas aos pleitos que se podem decidir no âmbito
do direito comum por esse modo de julgamento.
A súmula das observações feitas até aqui acerca da auto-
ridade do departamento judicial é a seguinte: que ele foi cui-
dadosamente restringido a essas causas que são manifestamente
apropriadas para a alçada da judicatura nacional; que na reparti-
ção dessa autoridade foi preservada uma pequena parcela da
jurisdição originária no Supremo Tribunal, e o resto foi con-
signado aos tribunais subordinados; que o Supremo Tribunal
possuirá uma jurisdição de recurso, tanto em matéria de direito
como de facto, em todos os casos que lhe sejam apresentados,
ambos sujeitos às excepções e regulamentações que possam ser
julgadas aconselháveis; que esta jurisdição de recurso não
abole, em caso algum, o julgamento por um júri; e que uma
normal gradação de prudência e integridade nos conselhos
nacionais nos garantirá sólidas vantagens provenientes da
instituição do poder judicial proposto, sem nos expor a nenhum
dos inconvenientes que se previu poderem provir dessa fonte.
PUBLIUS

[719]
O FEDERALISTA N." 82

O Departamento Judicial
(continuação)

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

A instituição de um novo governo, qualquer que seja o


cuidado ou a sabedoria que possa distinguir a obra, não pode
deixar de originar questões de complexidade e delicadeza.
E estas podem, de uma maneira particular, ser esperadas como
decorrendo do estabelecimento de uma Constituição fundada
na incorporação total ou parcial de um certo número de
soberanias distintas. Só o tempo pode amadurecer e aperfeiçoar
um sistema assim composto, liquidar o significado de todas
as partes e ajustá-las umas às outras num todo harmonioso e
consistente.
Por consequência, essas questões levantaram-se acerca do
plano proposto pela Convenção, e em particular no que res-
peita ao departamento judicial. A principal de entre elas

* De J. e A. McLean, The Federalist, 11, 322-327, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788, e recebeu o número 82.
Foi publicado em 2 de Julho no The Independent ]ou mal onde teve o número
81, e em 11 de Julho no The New-York Packet, onde teve o número 82. QC).

[721)
respeita à situação dos tribunais dos Estados em relação a esses
pleitos que deverão ser submetidos à jurisdição federal. Deverá
ela ser exclusiva, ou esses tribunais deverão possuir uma
jurisdição comum? No último caso, qual a relação em que
estarão com os tribunais nacionais? Estas são as perguntas que
encontramos nas bocas de homens de bom senso, e que
certamente são merecedoras de atenção.
Os princípios estabelecidos num artigo anterior! mostram-
-nos que os Estados conservarão todos os poderes preexistentes
que não sejam exclusivamente delegados na chefia federal e
que esta delegação exclusiva só pode existir em um de três
casos: quando uma autoridade exclusiva é expressamente
concedida à União; ou quando uma autoridade particular é
concedida à União, e o exercício de uma autoridade seme-
lhante é proibida a s Estados; ou quando é concedida à União
uma autoridade com a qual seria inteiramente incompatível
a existência de uma autoridade semelhante nos Estados.
Embora esses princípios possam não se aplicar ao poder judicial
com a mesma força com que se aplicam ao poder legislativo,
ainda assim estou inclinado para pensar que são, de modo
geral, justos em relação ao primeiro, e também em relação
ao último. E deb ixo desta impressão, estabelecerei como
norma que os tribunais dos Estados conservarão a jurisdição
que agora têm, a menos que suceda que ela lhes seja retirada
de um dos modo enumerados.
A única coisa na Constituição proposta que tem a aparência
de confinar as causas da alçada federal aos tribunais federais
está contida nesta passagem: "O PODER JUDICIAL dos Estados
Unidos será atribu{do a um Supremo Tribunal e a tribunais
inferiores que forem oportunamente definidos e estabelecidos
pelo Congresso."2 Isto pode ser interpretado como significando
que os tribunais supremo e subordinados da União serão os

1 Vol. I, N .0 XXXII. (Publius).


2 Art. 0 3, secção 1. (E. P.) .

[722]
únicos a ter poderes para decidir esses pleitos a que se deve
estender a sua autoridade; ou simplesmente como denotando
que os órgãos da judicatura nacional deverão ser um Supremo
Tribunal e tantos tribunais subordinados quantos o Congresso
ache por bem nomear, ou, por outras palavras, que os Estados
Unidos devem exercer o poder judicial de que serão investidos
através de um Supremo Tribunal e de um certo número de
tribunais inferiores, a serem instituídos por eles. A primeira
interpretação exclui, a segunda admite, a jurisdição comum3
dos tribunais estaduais. E como a primeira equivaleria, por
implicação, a uma alienação dos poderes dos Estados, a última
parece-me ser a interpretação mais natural e mais defensável.
Mas esta doutrina da jurisdição comum só é claramente
aplicável a essas variedades de causas que já eram da alçada
dos tribunais estaduais. Não é igualmente evidente em relação
a causas que possam resultar e ser peculiares da Constituição
que virá a ser estabelecida, dado que não permitir aos tribunais
dos Estados um direito de jurisdição nesses casos dificilmente
pode ser considerado como um cerceamento de uma autori-
dade preexistente. Por consequência, não pretendo defender
que os Estados Unidos, no decurso da legislação sobre os
objectos confiados à sua direcção, não possam entregar
unicamente aos tribunais federais a decisão de causas resultantes
de uma norma particular, se tal medida vier a ser julgada con-
veniente. Mas sustento que os tribunais dos Estados não serão
despojados de nenhuma parcela da sua jurisdição primitiva,
para além do que se relaciona com a última instância de
recurso. E sou mesmo de opinião que, em todos os casos em
que não forem expressamente excluídos pelos actos futuros
da legislatura nacional, estes certamente terão sob a sua alçada

3 Concurrent jurisdiction, no original. Uma tradução literal poderia, aqui,


induzir em erro. A "jurisdição comum" ocorre quando um determinado caso
legal pode ser tratado, indiferentemente, por dois ou mais sistemas judiciais
(o estadual e o federal, por exemplo). (E. P.).

[723]
as causas a que esses actos podem dar origem. Infiro isto da
natureza do poder judicial e das características gerais do sis-
tema. O poder judicial de todos os governos olha para além
das suas próprias leis locais ou municipais, e nos casos cíveis
toma a seu cargo todas as matérias de litígio entre as partes
dentro da sua jurisdição, apesar de as causas de disputa serem
relativas às leis das partes mais distantes do globo. As causas
do Japão, não menos que as de Nova Iorque, podem fornecer
objectos de discussão legal aos nossos tribunais. Quando,
adicionalmente a isto, considerarmos os governos dos Estados
e o governo nacional como realmente o são, no seu aspecto
de sistemas aparentados, e como partes de UM TODO ÚNICO,
parece ser conclusiva a inferência de que os tribunais dos
Estados terão uma jurisdição comum em todos as causas
resultantes das leis da União, nos casos em que ela não foi
expressamente proibida.
Aqui apresenta-se outra pergunta: Que relações subsistirão
entre os tribunais nacionais e os dos Estados nesses casos de
jurisdição comum? Respondo que seria certamente de admitir
um recur o dos últimos para o Supremo Tribunal dos Estados
Unidos. A Constituição dá ao Supremo Tribunal, em termos
directos, uma jurisdição de recurso em todos os casos enu-
merados da alçada federal em que ele não tenha uma jurisdição
originária sem uma única expressão para confinar a sua ope-
ração aos tribunais federais inferiores. Apenas são contemplados
os objectos de recurso e não os tribunais de cuja sentença se
apela. Por esta circunstância, e pela lógica da coisa, deve inter-
pretar-se que a jurisdição de recurso se estende aos tribunais
dos Estados. Ou tem de ser assim, ou os tribunais locais têm
de ser excluídos de uma jurisdição comum em matérias de
interesse nacional, ou então a autoridade judicial da União
pode ser iludida ao bel-prazer de qualquer queixoso ou acusa-
dor. Nenhuma destas duas consequências deveria, sem neces-
sidade evidente, estar implicada;. A última seria inteiran1ente
inadmissível, dado que faria malograr alguns dos mais impor-

[724]
tantes e confessados objectivos do governo proposto, e atra-
palharia essencialmente as suas medidas. Também não vejo
qualquer fundamento para tal hipótese. De acordo com a
observação já feita, os sistemas nacional e dos Estados devem
ser vistos como UM TODO ÚNICO . O s tribunais dos Estados
serão auxiliares naturais da execução das leis da União, e será
igualmente natural admitir um recurso das suas decisões para
esse tribunal que está destinado a unir e assimilar os princí-
pios da justiça nacional e as normas das decisões nacionais.
O objectivo evidente do plano da Convenção é que todas as
causas das classes especificadas recebam, por ponderosas razões
públicas, a sua decisão original ou final nos tribunais da União.
Por conseguinte, confinar as expressões gerais que conferem
jurisdição de recurso para o Supremo Tribunal apenas aos
recursos dos tribunais federais subordinados, em lugar de lhe
permitir o seu alargamento aos tribunais dos Estados, seria
limitar a latitude dos termos, subvertendo a intenção, con-
trariamente a todas as regras sólidas de interpretação.
Mas pode interpor-se um recurso das decisões dos tribunais
dos Estados para as judicaturas federais subordinadas? Esta é
outra das questões que foram levantadas, e de maior dificuldade
do que a anterior. As considerações seguintes apoiam a
afirmativa. O plano da Convenção, em primeiro lugar, autoriza
a legislatura nacional "a instituir tribunais inferiores ao Supremo
Tribunal"4. Declara, em seguida, que " O PODER JUDI C IAL
dos Estados Unidos será atribuído a um Supremo Tribunal e
a tribunais inferiores que forem oportunamente definidos e
estabelecidos pelo Congresso". E depois procede à enumeração
dos casos a que esse poder judicial se deverá estender. Em
seguida, divide a jurisdição do Supremo Tribunal em originária
e de recurso, mas não dá nenhuma definição da jurisdição
dos tribunais subordinados. As únicas linhas gerais descritas
para eles dizem que deverão ser "inferiores ao Supremo

4 Secção 8, Artigo 1. (Publius).

[725]
Tribunal", e que não devem exceder os limites especificados
do poder judicial federal. Se a sua autoridade deverá ser
originária ou de recurso ou ambas, não é declarado. Tudo
isso parece ser deixado ao critério da legislatura. E sendo este
o caso, não vejo presentemente nenhum impedimento para
o estabelecimento de um recurso das decisões dos tribunais
dos Estados para os tribunais nacionais subordinados e podem
ser imaginadas muitas vantagens atinentes ao poder de os fazer.
Diminuiria os motivos de multiplicação dos tribunais federais
e admitiria combinações concebidas para diminuir a jurisdição
de recurso do Supremo Tribunal. Os tribunais dos Estados
podem então ser deixados com uma maior carga de causas
federais e pode admitir-se que os recursos, em muitos casos
em que eles possam ser considerados apropriados, em vez de
serem levados ao Supremo Tribunal transitem dos tribunais
dos Estados para os tribunais de distrito da União.
PUBLIUS

[726)
O FEDERALISTA N. • 83

Continuação da Consideração
do Departamento Judicial.
A sua Relação com o Julgamento por Júri

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

A objecção ao plano da Convenção que encontrou mais


sucesso neste Estado, e talvez em vários outros Estados, é a
que se relaciona com a falta de uma disposição constitucional
para o julgamento por um júri em causas cíveis. A maneira
pouco franca com que esta objecção é normalmente enunciada
foi repetidamente apregoada e exposta, mas continua a ser
falada em todas as conversas e escritos dos opositores ao plano.
O simples silêncio da Constituição em relação a causas cíveis
é apresentado como uma abolição do julgamento por júri, e
as arengas a que serviu de pretexto são astuciosamente

* De]. e A. McLean, The Federalist, II , 327-344, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788 e recebeu o número 83.
Foi começado a publicar em 9 de Julho e concluído em 12 de Julho, no T11e
Independent journal onde teve o número 82; e começado em 15 de Julho,
co ntinuado em 18 de Julho e concluído em 22 de Julh o no The New- York
Packet, onde teve o número 83 . QC).

[727]
imaginadas para induzir uma persuasão que esta pretensa
abolição é completa e universal, estendendo-se não somente
a todas as espécies de causas cíveis, mas ainda às causas criminais.
Argumentar a respeito das últimas, no entanto, seria tão fútil
e estéril como tentar uma demonstração séria da existência
da matéria, ou demonstrar qualquer dessas proposições que,
pela sua própria evidência interna, forçam a convicção, quando
são expressas em linguagem própria para transmitir o seu
significado.
Em relação às causas cíveis, foram usadas subtilezas, quase
demasiado desprezíveis para justificar refutação, em apoio da
suposição de que uma coisa que não está contemplada é inteira-
mente abolida. Qualquer homem de discernimento deve
perceber imediatamente a enorme diferença entre silêncio e
abolição. Mas, como os inventores desta falácia tentaram secun-
dá-la por meio de certas máximas legais de interpretação, cujo
verdadeiro significado perverteram, pode não ser totalmente
inútil explorar o fundamento que invocaram.
As máximas em que confiam são desta natureza: "uma
especificação de particulares é uma exclusão do geral", ou "a
expressão de uma coisa é a exclusão de uma outra." Por este
motivo, dizem eles, como a Constituição estabeleceu o julga-
mento por júri nas causas criminais e permanece em silêncio
a respeito das cíveis, esse silêncio é uma proibição implícita
do julgamento por júri destas últimas.
As regras de interpretação jurídica são regras do senso
comum, adoptadas pelos tribunais para a interpretação das leis.
A verdadeira prova, portanto, de uma justa aplicação delas é
a sua conformidade com a fonte da qual são derivadas. Sendo
este o caso, deixem que pergunte: É consistente com o senso
comum supor que uma disposição, obrigando o poder legis-
lativo a entregar o julgamento de causas criminais aos júris,
é uma privação do seu direito de autorizar ou permitir esse
modo de julgamento nos outros casos? É natural supor que
uma ordem para fazer uma coisa é uma proibição de fazer

[728]
uma outra, que anteriormente se podia fazer e que não é
incompatível com a coisa que agora foi ordenado que se faça?
Se essa suposição é pouco natural e pouco racional, não pode
ser racional manter que uma ordem formal de julgamento
por júri em certos casos é uma interdição de semelhante
julgamento noutros casos.
Um poder para instituir tribunais é um poder de prescrever
a modalidade do julgamento e, consequentemente, se nada
fosse dito na Constituição a respeito dos júris, a legislatura
teria toda a liberdade de adoptar ou não essa instituição. Esta
liberdade de critério, em relação a causas criminais, é limitada
pela ordem formal de julgamento por júri de todas essas causas,
mas, claro está, continua a existir em relação às causas cíveis,
dado que existe um silêncio total sobre este assunto. A espe-
cificação de uma obrigação de julgar todas as causas criminais
de um modo particular exclui na verdade a obrigação ou a
necessidade de usar o mesmo modo nas causas cíveis, mas não
limita o poder da legislatura para determinar esse modo se vier
a achá-lo apropriado. Por conseguinte, a pretensão de que a
legislatura nacional não teria toda a liberdade para submeter
todas as causas cíveis de alçada federal à decisão de júris é uma
pretensão destituida de qualquer fundamento justo.
Destas observações resulta a seguinte conclusão: que o
julgamento por júri nas causas cíveis não seria abolido, e que
o uso que se tentou fazer das máximas que foram citadas é
contrário à razão e ao senso comum, logo inaceitável. Mesmo
se estas máximas tivessem um sentido técnico preciso, corres-
pondendo às ideias dos que as aplicam na presente ocasião, o
que, no entanto, não é o caso, ainda seriam inaplicáveis a uma
constituição de governo. Em relação a este assunto, o sentido
natural e óbvio das suas disposições, à parte qualquer regra
técnica, é o verdadeiro critério de interpretação.
Tendo agora visto que as máximas em que se confiou não
suportam o uso que delas se fez, esforcemo-nos por averiguar
o seu uso correcto e o seu verdadeiro significado. Isto será

[729]
mais bem realizado através de exemplos. O plano da Conven-
ção declara que o poder do Congresso ou, por outras palavras,
da legislatura nacional deve estender-se a certos casos enu-
merados. Esta especificação de particulares exclui evidente-
mente todas as pretensões a uma autoridade legislativa geral,
porque uma concessão afirmativa de poderes especiais seria
absurda, bem como inútil, se o que se pretendia era uma auto-
ridade geral.
De maneira semelhante, é declarado pela Constituição
que a autoridade judicial das judicaturas federais compreende
certos casos particulares especificados. A expressão desses casos
marca os limites precisos para lá dos quais os tribunais federais
não podem estender a sua jurisdição, porque, sendo enumera-
dos os objectos da sua alçada, a especificação seria nula se não
excluísse todas as ideias de uma autoridade mais alargada.
Estes exemplos podem bastar para elucidar as máximas
que foram mencionadas e para designar a maneira como elas
devem ser usadas. Mas, para que não possa subsistir nenhum
equívoco sobre este assunto, acrescentarei um caso mais, para
demonstrar o uso correcto dessas máximas e o abuso que delas
se fez.
Suponhamos que pelas leis deste Estado uma mulher casada
não tinha capacidade legal para transmitir os seus bens, e que
a legislatura, conjderando isso um mal, promulgava uma lei
dizendo que ela podia dispor dos seus bens por meio de uma
escritura feita em presença de um magistrado. Nesse caso não
pode haver dúvida de que a especificação equivale a uma
exclusão de qualquer outro modo de transmissão, porque,
não tendo a mulher anteriormente poder para alienar os seus
bens, a especificação determina o modo particular de que ela
pode servir-se para esse fim. Mas suponhamos ainda que numa
parte subsequente da mesma lei se declarava que nenhuma
mulher poderia dispor de qualquer bem de um valor determi-
nado sem o consentimento de três dos seus parentes mais
próximos, dado pela assinatura da escritura. Poder-se-ia inferir

[730]
desta norma que uma mulher casada não podia procurar a
aprovação dos seus parentes para urna escritura de transmissão
de bens de valor inferior? A posição é demasiado absurda para
merecer refutação, e, todavia, esta é precisamente a posição
que têm de estabelecer os que defendem que o julgamento
por júri em causas cíveis é abolido, porque é expressamente
providenciado para causas de natureza criminal.
Destas observações deve aparecer como inquestionavel-
mente verdadeiro que o julgamento por júri em caso algum
é abolido pela Constituição proposta, e é igualmente verdadeiro
que, nas controvérsias entre indivíduos em que seja provável
que a grande massa do povo esteja interessada, essa instituição
continuará precisamente na mesma situação em que é posta
pelas Constituições dos Estados, e em nenhuma medida será
alterada ou influenciada pela adopção do plano sob consi-
deração. O fundamento desta afirmação é que o poder judicial
nacional não terá jurisdição sobre elas, e é claro que elas serão
decididas como até aqui apenas pelos tribunais dos Estados,
e da maneira que prescrevem as Constituições e leis dos Estados.
Todos os pleitos sobre terras, excepto quando vêm à questão
reclamações relacionadas com concessões por diferentes
Estados, e todas as outras controvérsias entre os cidadãos do
mesmo Estado, a menos que dependam de violações positivas
dos artigos da União por decretos das legislaturas dos Estados,
pertencerão exclusivamente à jurisdição dos tribunais dos
Estados. Acrescente-se a isto que os processos do almirantado,
e quase todos os que são da jurisdição da equidade, podem
ser decididos sob o nosso próprio governo sem a intervenção
de um júri, e a inferência de tudo isto será que esta instituição,
tal como existe entre nós presentemente, não pode de maneira
alguma ser afectada grandemente pela alteração que foi proposta
ao nosso sistema de governo.
Os amigos e os adversários do plano da Convenção, mesmo
que não concordem em mais nada, concordam pelo menos
no valor que atribuem ao julgamento por júri, ou, se houver

[731]
alguma divergência entre eles, esta consiste no seguinte: os
primeiros vêem-no como urna valiosa salvaguarda da liberdade;
os últimos consideram-na como o verdadeiro paladino de um
governo livre. Pela minha parte, quanto mais observei o
funcionamento da instituição mais razões descobri para a ter
em alta estima. E seria completamente supérfluo examinar
em que medida ela merece ser considerada útil ou essencial
numa república representativa, ou se pode ter direito a maior
mérito como defesa contra as opressões de um monarca
hereditário do que como barreira à tirania dos magistrados
populares num governo popular. Discussões desta natureza
seriam mais curiosas do que benéficas, dado que todos estão
persuadidos da utilidade da instituição e dos seus aspectos
favoráveis à liberdade. Mas tenho de reconhecer que não
consigo discernir prontamente a conexão inseparável entre a
existência da liberdade e o julgamento por júri nos casos
cíveis. Impugnações arbitrárias, métodos arbitrários de proceder
contra pretensos delitos e punições arbitrárias resultantes de
condenações arbitrárias sempre me parecerem ser os grandes
mecanismos de despotismo judicial. E estes têm toda a relação
com os procedimentos criminais. O julgamento por júri em
causas criminais, ajudado pela lei de habeas corpus, parece,
portanto, ser o único a considerar nesta matéria. E ambos
estão providenciados, da maneira mais ampla, no plano da
Convenção.
Foi observado que o julgamento por júri é urna salvaguarda
contra o exercício opressivo do poder de tributação. Esta
observação merece ser discutida.
É evidente que ele não pode ter nenhuma influência sobre
a legislatura, no que respeita ao valor dos impostos a lançar,
aos objectos sobre os quais deverão ser lançados, ou à regra como
deverão ser redistribuídos. Se pode ter alguma influência, por
consequência, esta deverá incidir na maneira como são cobra-
dos e na conduta dos funcionários a quem é confiada a exe-
cução das leis da receita pública.

[732)
Quanto à maneira como são cobrados neste Estado, sob
a nossa própria Constituição, o julgamento por júri está em
muitos casos em desuso. Os impostos são normalmente
cobrados pelo processo mais sumário de penhora e venda,
como nos casos de arrendamento. E é reconhecido por toda
a gente que isto é essencial para a eficácia das leis sobre o ren-
dimento público. O curso dilatório de umjulgamento legal
para recuperar as taxas impostas aos indivíduos não se adequaria
com as exigências do público nem promoveria a conveniência
dos cidadãos. Ocasionaria frequentemente uma acumulação
de custos mais onerosa do que o total original do imposto a
cobrar.
E quanto à conduta dos funcionários das finanças, a
disposição a favor do julgamento por júri nas causas crimi-
nais proporcionará a garantia almejada. Os abusos premedi-
tados de uma autoridade pública, para a opressão do súbdito,
e todas as espécies de extorsão oficial são crimes contra
o governo, de que as pessoas que os cometem podem ser
acusadas e punidas em conformidade com as circunstâncias
do caso.
A excelência do julgamento por júri nos casos cíveis parece
depender de circunstâncias estranhas à preservação da liberdade.
O mais forte argumento a seu favor é que é uma garantia
contra a corrupção. Como há sempre mais tempo e melhores
oportunidades de interferir com um corpo permanente de
magistrados do que com um júri convocado para a ocasião,
há lugar a supor que uma influência corrupta abriria mais
facilmente caminho para o primeiro do que para o último.
A força desta consideração, todavia, é diminuída por outras.
O xerife, que é quem convoca os júris ordinários, e os oficiais
de diligências, que detêm a proposta de nomeação dos júris
especiais, são eles próprios funcionários permanentes e, agindo
individualmente, pode supor-se que serão mais acessíveis ao
toque da corrupção do que os juízes, que são um corpo colec-
tivo. Não é dificil ver que estaria no poder desses funcionários

[733]
seleccionar jurados que servissem o objectivo de uma das
partes do mesmo modo que um tribunal corrupto. Em seguida,
pode razoavelmente supor-se que haveria menos dificuldade
em conquistar alguns dos jurados, promiscuamente tirados da
massa do público, do que em conquistar homens que foram
escolhidos pelo governo pela sua probidade e bom carácter.
Mas, descontando todas estas considerações, o julgamento
por júri ainda é um controlo valioso da corrupção. Multiplica
grandemente os impedimentos ao sucesso desta última. Tal
como as coisas se apresentam hoje, seria necessário corromper
tanto o tribunal como o júri, porque, nos casos em que fosse
evidente que o júri se tinha enganado, o tribunal concederia
em geral um novo julgamento, e em muitos casos seria pouco
útil aproveitar-se do júri, a menos que o tribunal também
tivesse sido conquistado. Portanto há aqui uma dupla garantia,
e perceber-se-á facilmente que esta actuação complicada tende
para preservar a pureza de ambas as instituições. Aumentando
os obstáculos ao sucesso, desencoraja tentativas para seduzir
a integridade de qualquer delas. As tentações para prostituir-
-se que os juízes possam ter de superar devem certamente ser
menos, enquanto for necessária a cooperação de um júri, do
que poderiam ser se eles tivessem sozinhos a decisão de todas
as causas.
Por consequência, não obstante as dúvidas que exprimi
quando à essencialidade para a liberdade do julgamento por
júri nos casos cíveis, admito que esse método é na maior parte
dos casos, e com uma regulamentação adequada, um excelente
método de decisão das questões de propriedade, e que só por
isto ele faria jus a uma disposição constitucional a seu favor
se fosse possível fixar os limites dentro dos quais deveria ficar
compreendido. Há, contudo, em todos os casos, uma grande
dificuldade nisto. E os homens não cegos pelo entusiasmo
devem ser sensíveis a que num governo federal, que é uma
combinação de sociedades cujas ideias e instituições em relação
ao assunto diferem umas das outras de modo relevante, essa

[734]
dificuldade não será pouco aumentada t. Pela minha parte, a
cada novo ponto de vista que adopto sobre o assunto, fico
mais convencido da realidade dos obstáculos, dos quais somos
informados com autoridade, que impediram a inserção de
uma disposição sobre esta questão no plano da Convenção.
A grande diferença entre os limites do julgamento por
júri nos diferentes Estados não é em geral compreendida.
E dado que deve ter influência considerável na sentença que
devemos proferir acerca da omissão em relação a este ponto,
de que alguns se queixam, é necessária uma explicação dessa
diferença. Neste Estado, as nossas instituições judiciais asse-
melham-se, mais do que em qualquer outro, às da Grã-Bre-
tanha. Temos tribunais de direito comum, tribunais das
sucessões (análogos em certos aspectos aos tribunais eclesiásticos
na Inglaterra), um tribunal marítimo e um tribunal de equi-
dade. Só nos tribunais de direito comum é que prevalece o
julgamento por júri, e isto com algumas excepções. Em todos
os outros um único juiz preside e procede em geral em
conformidade com o direito canónico ou civil, sem a assistência
de um júri.2 Em Nova Jérsia, há um tribunal de equidade
que funciona como o nosso, mas não existe tribunal marítimo
nem tribunais das sucessões, no sentido em que estes últimos
estão instituídos entre nós. Nesse Estado os tribunais comuns
têm jurisdição sobre as causas que no nosso caso são decididas
no tribunal marítimo e nos tribunais das sucessões, e é claro
que o julgamento por júri é mais alargado em Novajérsia do
que em Nova Iorque. Na Pensilvânia, isto é talvez ainda mais

I Hamilton chama a atenção para as complexidades e dificuldades


resultantes do pluralismo cultural e histórico em que assenta uma sociedade
federal, que é, no fundo, "uma combinação de sociedades". (E. P.).
2 Foi insinuado erradamente, com respeito ao tribunal de equidade, que
este tribunal julga geralmente factos disputados por meio de um júri. A verdade
é que as referências a um júri nesse tribunal raramente acontecem, e em caso
algum são necessárias excepto quando vem à questão a validade de uma
transmissão de terras. (Publius).

[735]
assim, porque não existe tribunal de equidade nesse Estado,
e os seus tribunais comuns têm jurisdição de equidade. Tem
um tribunal marítimo, mas nenhum tribunal das sucessões,
pelo menos no plano do nosso. O Delaware imitou, neste
aspecto, a Pensilvânia. O Maryland aproxima-se mais de Nova
Iorque, tal como acontece com a Virgínia, excepto que este
último tem uma pluralidade de juízes de equidade. A Carolina
do No r te apresenta mais afinidade com a Pensilvânia e a
Carolina do Sul com a Virgínia. Acredito, no entanto, que,
em alguns desses Estados que têm tribunais marítimos inde-
pendentes, as ca sas da jurisdição destes podem ser julgadas
por júri. Na Geórgia há apenas tribunais de direito comum,
e é claro que se admite um recurso do veredicto de um júri
para um outro, que é chamado júri especial, e para o qual é
designado um modo particular de nomeação. No Connecticut,
não têm tribunais distintos nem de equidade nem marítimo,
e os seus tribunais das sucessões não têm jurisdição sobre
causas. Os seus tribunais comuns têm jurisdição marítima e,
em certa medida, de equidade. Em casos importantes, a sua
Assembleia Geral é o único tribunal de equidade. No Connec-
ticut, portanto, o julgamento por um júri estende-se na prática
muito mais do que em qualquer outro Estado já mencionado.
Rhode Island está, penso, numa situação muito semelhante
à do Connecticut no que toca a isto. Massachusetts e New
Hampshire, em relação à mistura de jurisdição comum, de
equidade e marítima, estão numa situação semelhante. Nos
quatro Estados orientais, o julgamento por júri não só assenta
num alicerce mais amplo que nos outros Estados, mas é acom-
panhado de uma peculiaridade desconhecida, na sua plena
extensão, de qu quer deles. Existe é claro um recurso de um
júri para outro, até que tenha havido dois veredictos entre
três para um dos lados.
Deste esboço sobressai que existe uma diversidade essencial,
tanto na modific ção como no âmbito da instituição do jul-
gamento por júri em causas cíveis, nos diversos Estados,

[736]
e deste facto decorrem reflexões óbvias: primeiro, que não
poderia ter sido fixada nenhuma regra geral pela Convenção
que tivesse correspondido às circunstâncias de todos os Estados;
e segundo, que, ao escolher o sistema de qualquer dos Estados
para padrão, poderia ter sido arriscado mais, ou pelo menos
outro tanto, do que por omitir inteiramente uma disposição
e deixar o assunto, como foi feito, para a regulamentação
legislativa.
As propostas que foram feitas para remediar a omissão
serviram mais para ilustrar do que para obviar à dificuldade
da coisa. A minoria da Pensilvânia propôs este modo de expres-
são para esse fim- "O julgamento por um júri deverá ser
como até aqui"3 - e mantenho que isto seria sem sentido e
sem validade. Os Estados Unidos, na sua qualidade unida ou
colectiva, são o OBJECTO por referência ao qual todas as dispo-
sições gerais da Constituição devem necessariamente ser inter-
pretadas. Agora é evidente que, apesar de o julgamento por
júri, com várias limitações, ser conhecido em cada Estado indi-
vidualmente, nos Estados Unidos, como tais, é neste momento
absolutamente desconhecido, porque o governo federal pre-
sente não tem absolutamente nenhum poder judicial; e, con-
sequentemente, não há antecedente propriamente dito nem
instituição prévia aos quais se pudesse referir a expressão até
aqui. Portanto, ela seria destituída de significado preciso e
inoperativa por causa da sua ambiguidade.
Como, por um lado, a forma da cláusula não cumpriria
a intenção dos que a propõem, também, por outro, se com-
preendo correctamente essa intenção, seria em si mesma
ineficaz. Presumo que as causas nos tribunais federais virão a

3 A Convenção de Ratificação da Pensilvânia reunira em Novembro de


1787 e adoptara a Constituição em 15 de Dezembro com uma votação de 46
contra 23. A oposição entregou quinze aditamentos (semelhantes aos primeiros
dez aditamentos subsequentemente adoptados) como condição para a sua
aprovação. O aditamento cobrindo o julgamento por júri que Hamilton discute
era um deles. QC).

[737]
ser julgadas por júri se, no Estado em que o tribunal funciona,
essa modalidade de julgamento for usada nos tribunais do
Estado em casos semelhantes. Quer isto dizer, as causas de
direito marítimo deveriam ser julgadas por júri no Connecticut,
e em Nova Iorque não. A operação caprichosa de um método
de julgamento tão dissemelhante nos mesmos casos, sob o
mesmo governo, é por si só suficiente para indispor contra
ela qualquer juízo sensato. Se a causa deveria ser julgada com
ou sem júri dependeria, em grande número de casos, da
situação acidental do tribunal e das partes.
Mas esta não é, do modo como vejo as coisas, a maior
objecção. Tenho uma convicção profunda e deliberada de
que existem muitos casos em que o julgamento por júri é
inaceitável. Penso isso em particular nos casos que dizem
respeito à paz pública com nações estrangeiras, isto é, na maior
parte dos casos em que a questão gira inteiramente à volta do
direito das gentes. Desta natureza são, entre outras, todas as
causas relativas a mercadorias apresadas. Não pode supor-se
que os júris serão competentes para investigações que requerem
um conhecimento profundo das leis e dos costumes das nações.
E estarão por vezes sob influência de impressões que não
tolerarão que dêem suficiente importância a essas considerações
de política pública que deveriam orientar as suas inquirições.
É claro que haveria sempre o risco de que os direitos das
outras nações pudessem ser infringidos pelas suas decisões,
de modo a permitir motivos de represália e de guerra. Embora
a esfera de acção competente dos júris seja decidir sobre maté-
ria de facto, em muitos casos as consequências legais são
complicadas pelos factos de tal maneira que se torna impraticá-
vel uma separação.
Acrescentará grande peso a esta observação, em relação
às causas relativas a mercadorias apresadas, mencionar que o
método de decidi-las foi julgado merecedor de regulamentos
particulares em vários tratados entre diferentes potências da
Europa, e que, no seguimento desses tratados, são decididas

[738]
na Grã-Bretanha, em última instância, pelo próprio rei, no
seu Conselho Privado, onde os factos, bem como a lei, são
submetidos a um novo exame. Basta isto para demonstrar a
inconveniência política de inserir uma cláusula fundamental
na Constituição que faria dos sistemas dos Estados um padrão
para o governo nacional na matéria sob consideração, e o
perigo de sobrecarregar o governo com quaisquer disposições
constitucionais cuja correcção não seja indisputável.
Tenho convicções igualmente fortes de que resultam
grandes vantagens da separação das jurisdições de equidade
e comum, e que as causas que pertencem à primeira seriam
incorrectamente confiadas a júris. O grande e primário uso
de um tribunal de equidade é dar assistência em casos extraordi-
nários, que são excepções4 às normas gerais. Unir a jurisdição
de tais casos com a jurisdição ordinária deve gerar urna tendên-
cia para abalar as normas gerais, e para sujeitar todos os casos
que apareçam a uma decisão especial. Ao passo que uma sepa-
ração das jurisdições tem o efeito contrário de converter cada
uma numa sentinela da outra, e de conservar cada uma delas
dentro dos limites convenientes. Além disto, as circunstâncias
que constituem casos adequados para os tribunais de equidade
são muitas vezes tão delicadas e intrincadas que são incompa-
tíveis com as características do julgamento por júri. Exigem
com frequência investigações tão longas, deliberadas e críticas
que seriam impraticáveis para homens desviados das suas
ocupações e obrigados a decidir antes que lhes fosse permitido
retornar a elas. A simplicidade e a prontidão, que são as caracte-
rísticas distintivas deste modo de julgamento, exigem que a
matéria a ser decidida seja reduzida a algum ponto simples e
óbvio; ao passo que os litígios usuais nos tribunais de equidade

4 É verdade que os princípios pelos quais essa assistência se rege estão

agora reduzidos a um sistema regular; mas não é menos verdade que são de
uma maneira geral aplicáveis a circ unstâncias ESPECIA IS, que constituem
excepções às regras gerais. (Publius).

[739]
abrangem frequentemente uma longa cadeia de particularidades
minuciosas e independentes.
É verdade que a separação da equidade e da jurisdição
legal é peculiar do sistema de jurisprudência inglês, que é o
modelo que foi seguido em vários Estados. Mas é também
verdade que o julgamento por júri foi desconhecido em todos
os ca os em que eles foram unidos. E a separação é essencial
para a preservação de sa instituição na sua pureza primitiva.
A natureza de um tribunal de equidade permitirá facilmente
a extensão da sua jurisdição a questões legais. Mas não é pouco
de suspeitar que a tentativa de estender a jurisdição dos tribunais
ordinários a questões de equidade não só não produzirá as
vantagens que podem ser derivadas dos tribunais de equidade,
no plano em que estes estão instituídos neste Estado, mas
tenderá gradualmente para alterar a natureza dos tribunais
ordinários e para minar o julgamento por júri, ao introduzir
questões demasiado complicadas para uma decisão nesse modo
de julgar.
Estas razões pareceram concludentes contra a incorporação
dos sistemas de todos os Estados na formação do poder judicial
nacional, de acordo com o que se podia conjecturar ter sido
a intenção da minoria da Pensilvânia. Examinemos agora em
que medida a proposta do Massachusetts é concebida para
remediar o suposto defeito.
Ela tem esta forma: "Nas acções cíveis entre cidadão de
diferentes Estados, qualquer questão de facto que se apresente
em acções do direito comum pode ser julgada por júri se as partes,
ou uma delas, o requerer."S
Isto, no melhor dos casos, é uma proposta confinada a
uma descrição de causas. E é justa a inferência de que ou a
Convenção do Massachusetts considerou que era a única classe

5 O Estado de Massachusetts tinha acompanhado a sua ratificação da


Constituição de uma recomendação que lhe fossem feitos nove aditamentos
gerais. Entre eles estava o aditamento aqui discutido por Harrúlton. QC).

[740]
de causas em que o julgamento por um júri seria apropriado,
ou que, se estavam desejosos de uma cláusula mais abrangente,
acharam impraticável congeminar uma que respondesse
apropriadamente ao objectivo. No primeiro caso, a omissão
de uma regulamentação respeitante a um objecto tão parcial
nunca pode ser considerada como uma imperfeição essencial
do sistema. No último, proporciona uma forte corroboração
da extrema dificuldade da coisa.
Mas isso não é tudo. Se nos reportarmos às observações
já feitas a respeito dos tribunais que subsistem nos diversos
Estados da União, e dos diferentes poderes exercidos por eles,
será visível que não existem expressões mais vagas e indeter-
minadas do que as que foram empregues para caracterizar a
espécie de causas que se pretende que tenham direito ao
julgamento por júri. Neste Estado, as fronteiras entre acções
de direito comum e acções caindo no âmbito da jurisdição
de equidade são estabelecidas em conformidade com as regras
que prevalecem em Inglaterra nessa matéria. Em muitos dos
outros Estados as fronteiras são menos precisas. Em alguns
deles, todas as causas devem ser julgadas em tribunais de direito
comum e, com base nisso, todas as acções podem ser consi-
deradas como sendo da esfera desse direito, para serem decididas
por um júri se as partes, ou apenas uma delas, o escolherem.
Por este motivo a aquiescência a esta proposta introduziria a
mesma irregularidade e confusão que já considerei como
resultando da regulamentação proposta pela minoria da
Pensilvânia. Num Estado, uma causa seria decidida por um
júri, se as partes, ou apenas uma delas, o requeressem; mas
noutro Estado, uma causa exactamente idêntica deveria ser
decidida sem a intervenção de um júri, porque os tribunais
do Estado diferiam quanto à jurisdição comum.
É óbvio, portanto, que a proposta do Massachusetts sobre
esta matéria não pode funcionar como uma regulamentação
geral, até que venha a ser adoptado pelos diferentes Esta-
dos um plano uniforme a respeito dos limites das jurisdições

[741]
comum e equitativa. Conceber um plano desse género, que
exigiria muito tempo e reflexão para ser amadurecido, é só
por si uma árdua tarefa. Seria extremamente difícil, se não
impossível, sugerir qualquer regulamentação geral que fosse
aceitável para todos os Estados da União, ou que se enquadrasse
perfeitamente nas várias instituições estaduais.
Pode perguntar-se: Porque é que não pôde ser feita uma
referência à Constituição deste Estado, que eu concedo ser
uma boa Constituição, assumindo-a como um padrão para os
Estados Unidos? Respondo que não é muito provável que os
outros Estados albergassem a mesma opinião que nós temos
sobre as nossas instituições. É natural supor que eles estão, até
agora, mais agarrados às suas próprias instituições, e que cada
um lutaria pela preferência. Se o plano de tomar um Estado
como modelo para todos tivesse sido pensado pela Convenção,
é de presumir que a sua adopção por essa assembleia teria sido
dificultada pela predilecção de cada representação a favor do
seu próprio governo, e tem de ser duvidoso qual dos Estados
deveria ter sido tornado como modelo. Foi mostrado que muitos
deles seriam inconvenientes. E deixo aberto à conjectura se,
consideradas todas as circunstâncias, é mais provável que Nova
Iorque, ou algum outro Estado, tivesse sido preferido. Mas,
admitindo que poderia ter sido efectuada uma escolha judiciosa
na Convenção, ainda assim haveria um grande risco de inveja
e descontentamento nos outros Estados, diante da parcialidade
que tinha sido mostrada para com as instituições de um deles.
Os inimigos do plano teriam sido presenteados com um
esplêndido pretexto para levantar uma hoste de preconceitos
locais contra ele, tal que talvez pudesse ter posto em risco, num
grau muito considerável, o seu estabelecimento final.
Para evitar os embaraços de uma definição dos casos que
o julgamento por júri deveria abranger, é por vezes sugerido
por homens de temperamento entusiástico que podia ter sido
incluída uma cláusula para o instituir em absolutamente todos
os casos. Para isto, creio, não foi encontrado nenhum prece-

[742]
dente em nenhum membro da União, e as considerações que
foram apresentadas na discussão da proposta da minoria da
Pensilvânia devem satisfazer qualquer espírito sóbrio no sentido
de que a instituição de julgamento por júri em todos os casos
teria sido um erro imperdoável do plano.
Em suma, quanto mais é considerada tanto mais árdua se
apresenta a tarefa de dar forma a uma cláusula de tal maneira
que não diga muito pouco para responder ao propósito, nem
demasiado para ser aconselhável, ou que pudesse não ter aberto
outras fontes de oposição ao grande e essencial objectivo de
introduzir um governo nacional firme.
Não posso deixar de me persuadir, por outro lado, de que
as diferentes perspectivas em que o assunto foi posto no decurso
destas observações ajudarão muito a remover, nos espíritos
desinteressados, as apreensões que estes possam ter alimentado
em relação a este ponto. Elas tenderam para mostrar: que a
garantia da liberdade está essencialmente implicada apenas no
julgamento por júri nos casos criminais, que foi providenciado
da maneira mais ampla no plano da Convenção; que mesmo
na grande maioria dos casos cíveis, e naqueles em que o grosso
da comunidade está interessada, esse modo de julgamento
permanecerá na sua plena força, tal como é estabelecido nas
Constituições dos Estados, intocado e não afectado pelo plano
da Convenção; que em caso algum é abolido6 por esse plano;
e que existem grandes dificuldades, se não insuperáveis, no
modo de criar uma cláusula precisa e apropriada para ele numa
Constituição para os Estados Unidos.
Os melhores juízes da questão estarão menos ansiosos por
uma instituição constitucional do julgamento por júri nas
causas cíveis, e estarão mais prontos a admitir que as mudanças
que estão continuamente a acontecer nos assuntos da sociedade

6 Ver n.0 81 , em que é examinada e refutada a suposição de ele ser abolido


pela jurisdição de apelo em matéria de fa cto investida no Supremo Tribunal.
(Publius).

[743]
podem tornar preferível um modo diferente de decidir questões
de propriedade, em muitos casos em que esse modo de julgar
agora se aplica. Pela minha parte, reconheço que estou conven-
cido que mesmo neste Estado ele podia ser alargado com
vantagem a alguns casos aos quais não se aplica presentemente,
e podia, com igual vantagem, ser limitado noutros. Os
exemplos de inovações que reduzem os seus antigos limites,
tanto nestes Estados como na Grã-Bretanha, permitem uma
forte presunção de que a sua esfera de acção anterior foi consi-
derada inconveniente, e abrem espaço para supor que a
experiência futura poderá desvendar a justeza e utilidade de
outras excepções. Suspeito que a natureza do problema tornará
impossível determinar o ponto salutar em que a actuação da
instituição deveria cessar, e isto é para mim um forte argumento
para deixar o assunto ao critério da legislatura.
Isto é agora claramente percebido como sendo o caso da
Grã-Bretanha, e é também assim no Estado de Connecticut.
E, no entanto, pode ser afirmado com segurança que, neste
Estado e desde a Revolução, foram feitas usurpações mais
numerosas ao julgamento por júri, apesar de consagrado por
um artigo positivo da nossa Constituição, do que o que acon-
teceu durante o mesmo período no Connecticut ou na Grã-
-Bretanha. Pode acrescentar-se que essas usurpações tiveram
em geral origem em homens que se esforçam por persuadir
o povo de que são os mais calorosos defensores da liberdade
popular, mas que raramente sofreram obstáculos constitucionais
que os detivessem numa carreira de favoritos. A verdade é
que o CARÁCTER geral de um governo é tudo em que se
pode substancialmente confiar para efeitos permanentes. Cláu-
sulas particulares, embora não completamente inúteis, têm
muito menos virtude e eficácia do que as que lhes são comum-
mente atribuídas; e a ausência delas nunca será, com homens
de sólido discernimento, uma objecção decisiva a qualquer
plano que exiba as características mais notáveis de um bom
governo.

[744]
Soa certamente como não pouco ousado e extraordinário
afirmar que não existe garantia para a liberdade numa Cons-
tituição que estabelece expressamente o julgamento por júri
nos casos criminais, porque não o faz também nos casos cíveis,
apesar de ser um facto notório que o Connecticut, que foi
sempre visto como o Estado mais popular da União, não se
possa gabar de qualquer disposição constitucional para nenhum
deles.
PUBLIUS

[745]
O FEDERALISTA N." 84

Consideração e Resposta a Objecções Gerais


e Diversas Colocadas à Constituição

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

No decurso da precedente análise da Constituição, dei


atenção e esforcei-me por responder à maior parte das objec-
ções que se levantaram contra ela. No entanto, restam algumas
que ou não se integravam naturalmente em nenhum tópico
particular ou ficaram esquecidas nos locais apropriados. Estas
serão discutidas agora, mas, como o assunto foi muito longa-
mente desenvolvido, considerarei nessa medida a brevidade
de modo a incluir todas as minhas observações sobre estes
pontos heterogéneos num único artigo.
A mais importante das objecções que restam é que o plano
da Convenção não contém nenhuma Carta de Direitos. Entre

* De J. e A. M cLean, The Federa/is!, II, 344-357, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de Maio de 1788 e recebeu o número 84.
Foi começado em 16 de Julho, continuado em 26 de Julho, e concluído em
9 de Agosto no The Independent j ournal onde teve o número 83; e começado
em 29 de Julho, continuado em 8 de Agosto e terminado em 12 de Agosto
no The New-York Packet, onde teve o número 84. QC).

[747]
outras respostas que foram dadas a isto, foi em diversas ocasiões
observado que as Constituições dos diversos Estados estão
numa situação semelhante. Acrescento que Nova Iorque
pertence a esse número. E no entanto os opositores do novo
sistema, neste Estado, que professam uma admiração ilimitada
pela sua Constituição, estão entre os imoderados partidários
de uma Carta de Direitos. Para justificar o seu zelo nesta
matéria, alegam duas coisas: uma é que, embora a Constituição
de Nova Iorque não seja precedida de uma carta de direitos,
contém todavia, no seu corpo, várias disposições a favor de
privilégios e direitos particulares, o que, em substância, equivale
à mesma coisa; a outra é que a Constituição adopta, em toda
a sua extensão, o direito comum e a lei escrita da Grã-Bretanha,
pela qual muitos outros direitos, não expressos nela, são
igualmente garantidos.
À primeira respondo que a Constituição proposta pela
Convenção contém, tal como a Constituição deste Estado,
um certo número de disposições dessas.
Independentemente das que dizem respeito à estrutura
do governo, encontramos o que segue: Artigo 1, secção 3,
cláusula 7- "A sentença por crime de responsabilidade não
poderá exceder a destituição da função e a incapacidade para
exercer qu quer função pública, honorífica ou remunerada,
nos Estadas Unidos, mas a parte condenada estará sujeita, no
entanto, a acusação, julgamento, sentença e punição em
conformidade com a lei." Secção 9, do mesmo artigo, cláusula
2 - "Não poderá ser suspenso o privilégio do habeas corpus,
excepto quando, em casos de rebelião ou invasão, a segurança
pública assim o exigir." Cláusula 3 - "Não poderão ser apro-
vados decretos de proscrição que condenem sem julgamento
nem leis com efeito retroactivo!." Cláusula 72- "Nenhum
título de nobreza será conferido pelos Estados Unidos: e

1 Ex post facto laws, no original. (E. P.).


2 Cláusula 8 na presente Constituição. QC).

[748]
nenhuma pessoa que exerça um cargo público remunerado
ou honorífico poderá, sem o consentimento do Congresso,
aceitar dádivas, emolumentos, cargos ou títulos, quaisquer
que sejam, oferecidos por reis, príncipes ou Estados estran-
geiros." Artigo 3, secção 2, cláusula 3 - "O julgamento de
todos os crimes, excepto em casos de crime de responsabili-
dade, será feito por júri e esse julgamento realizar-se-á no
Estado em que os crimes tiverem sido cometidos; mas, quando
não sejam cometidos em nenhum dos Estados, o julgamento
ocorrerá na localidade ou localidades que o Congresso designar
por lei." Secção 3, do mesmo artigo - "Traição contra os
Estados Unidas consistirá, unicamente, em lhes fazer guerra,
ou em aliar-se aos seus inimigos, prestando-lhes auxílio e
apoio. Ninguém será condenado por traição a não ser através
do depoimento de duas testemunhas sobre o mesmo acto,
ou de confissão em sessão pública do tribunal." E cláusula 3,
da mesma secção3- "O Congresso terá poder para fixar a
pena por crime de traição, mas fica vedada a morte civil ou
a confiscação de bens que não ocorra durante a vida do con-
denado."
Pode muito bem constituir uma questão saber se estas
cláusulas não são, no seu conjunto, de importância igual às
que se encontram na Constituição deste Estado. A instituição
do mandado de habeas corpus, a proibição de leis com ifeito
retroactivo4 e de TÍTULOS DE NOBREZA, para os quais não temos
disposições correspondentes na nossa Constituição, são talvez maiores
garantias de liberdade e republicanismo do que qualquer das
que ela contém. A criação de crimes após perpetração do
facto, ou, por outras palavras, sujeitar homens à punição por
coisas que, quando foram feitas, não eram violações da lei, e
a prática de detenções arbitrárias, foram, em todas as eras, os
instrumentos favoritos e mais formidáveis da tirania. As obser-

3 Cláusula 2 na presente Constituição. GC).


4 Ex postfacto laws, no original. (E. P.).

[749]
vações do judicioso Blackstone,s a respeito das últimas, são
muito merecedoras de citação: "Despojar um homem da vida,
(diz ele) ou confiscar os seus bens pela violência, sem acusação
nem julgamento, seria um acto de despotismo tão grosseiro
e notório que deveria soar imediatamente o sinal de alarme
da tirania por toda a nação; mas a prisão da pessoa, empur-
rando-a secretamente para a cadeia, onde os seus sofrimentos
são desconhecidos ou esquecidos, é um mecanismo de governo
arbitrário menos público, atraindo menos a atenção, e por
consequência mais perigoso." E como remédio para este mal
fatal é por todo o lado particularmente enfãtico nos seus encó-
rnios à lei de habeas corpus, que numa passagem chama
"o BALUARTE da Constituição britânica."6
Nada precisa de ser dito para ilustrar a importância da
proibição dos títulos de nobreza. Esta pode ser verdadeiramente
apelidada de pedra angular do governo republicano, porque,
enquanto eles forem excluídos, nunca pode haver um risco
sério de que o governo não seja o governo do povo.
À segunda, isto é, à pretendida instituição do direito
comum e da lei escrita pela Constituição, respondo que elas
são expressamente submetidas "às alterações e disposições que
a legislatura faça de tempos a tempos a respeito dos mesmos."
Portanto estão sempre sujeitas a revogação pelo poder legislativo
ordinário, e é claro que não têm confirmação constitucional.
A única utilidade da declaração era reconhecer a lei antiga e
afastar as dúvidas que poderiam ter sido ocasionadas pela
Revolução. Consequentemente isto não pode ser considerado
como parte de uma Carta de Direitos, que na vigência das
nossas Constituições deve destinar-se a limitar os poderes do
próprio governo.
Foi várias vezes observado com verdade que as cartas de
direitos são, na sua origem, convenções entre os reis e os seus

5 Ver Blackstone, Commentaries, Vol. 1, p. 136. (Publius).


6 Idem, Vol. 4, p. 438. (Publius).

[750]
súbditos, lirrútações da prerrogativa em favor do privilégio,
reservas de direitos não transferidos para o príncipe. Assim
era a MAGNA CARTA, obtida pelos barões, de espada na mão,
do Rei João. Assim eram as confirmações subsequentes dessa
Carta pelos príncipes seguintes. Assim era a Petição de Direitos
que teve o assentimento de Carlos I no princípio do seu
reinado. Assim, também, era a Declaração de Direitos apre-
sentada pelos Lordes e Comuns ao Príncipe de Orange em
1688, e depois convertida na forma de um decreto do parla-
mento, chamado Carta de Direitos. Portanto, é evidente que,
de acordo com o seu significado primitivo, elas não têm
aplicação a Constituições declaradamente fundadas no poder
do povo, e postas em execução pelos seus representantes e
servidores directos. Aqui, no sentido estrito, o povo não abdica
de nada, e como retém tudo não tem necessidade de reservas
particulares. "Nós, o POVO dos Estados Unidos, para garantir
as bênçãos da liberdade para nós e para os nossos descendentes,
ordenamos e institu{mos esta Constituição para os Estados Unidos
da América."7 Aqui está um reconhecimento dos direitos
populares melhor do que volumes e volumes desses aforismos
que são a principal figura de retórica em diversas das nossas
cartas de direitos dos Estados, e que soariam muito melhor
num tratado de ética do que numa Constituição de um
governo.
Mas uma especificação rrúnuciosa de direitos particulares
é certamente muito menos aplicável a uma Constituição como
a que está sob consideração, que é planeada meramente para
regular os interesses políticos gerais da nação, do que a uma
Constituição que integra a regulamentação de toda a espécie
de interesses pessoais e privados. Se, por conseguinte, forem
bem fundados os altos clamores contra o plano da Convenção
nesta matéria, nenhum epíteto de reprovação erá demasiado

7 Trata-se de uma transcrição parcial, provavelmente feita de memória,


do Preâmbulo da Constituição dos EUA. (E. P.).

[751]
forte para a Constituição deste Estado. M as a verdade é que
ambas contêm tudo o que, em relação aos seus objectivos, se
pode razoavelmente desejar8.
Vou mais longe e afirmo que as cartas de direitos, no sen-
tido e com o âmbito em que se argumenta a seu favor, não
só são desnecessárias na Constituição proposta, mas até seriam
perigosas. Conteriam várias excepções a poderes que não são
concedidos e, por este motivo, proporcionariam um pretexto
plausível para reclamar mais poderes do que os concedidos.
Pois para quê declarar que certas coisas não deverão ser feitas
se para elas não existe o poder de as fazer? Porquê, por exemplo,
deveria ser declarado que a liberdade de imprensa não deverá
ser restringida, quando não são concedidos poderes por meio
dos quais as restrições poderiam ser impostas? Não argumen-
tarei que uma disposição desse tipo conferiria poderes de
regulamentação, mas é evidente que forneceria, a homens
dispostos a usurpar, um pretexto plausível para reivindicar
esses poderes. Poderiam alegar com uma aparência de razão
que a Constituição não deveria ser carregada com o absurdo
de providenciar contra um abuso de uma autoridade que não
era concedida, e que a cláusula contra a restrição da liberdade
de imprensa proporcionava uma clara implicação, a saber,
que havia a intenção de investir o governo de um poder
para prescrever regulamentos apropriados a esse respeito. Isto
pode servir como um exemplo dos inúmeros motivos que
seriam dados à doutrina dos poderes interpretativos 9 pela

8 Hamilton adopta uma concepção moderna e funcional da Constituição,


recusando-lhe a tarefa de entrar numa "especificação minuciosa" . A questão
da Carta de Direitos não era, todavia, uma questão desse tipo. No debate pela
ratificação, em vários Estados, a promessa de acrescentar uma Carta de Direitos
à Constituição foi um factor decisivo para a vitória dos federalistas. James
Madison, encorajado pelas cartas enviadas de Paris, pelo seu amigo Thomas
Jefferson, tornar-se-ia no principal promotor da adopção da Bill of rights (os
dez primeiros Aditamentos) pelo Congresso. (E. P.).
9 Constructive powers, no original. (E. P.).

[752]
indulgência de um zelo pouco judicioso por uma Carta de
Direitoslo.
Em matéria de liberdade de imprensa, embora tanto tenha
sido dito, não posso abster-me de acrescentar uma observação
ou duas: em primeiro lugar, observo que não há uma única
sílaba a seu respeito na Constituição deste Estado; em seguida,
defendo que seja o que for que tenha sido dito acerca dela
na Constituição de qualquer outro Estado, isso é o mesmo
que nada. Que significa uma declaração de que "a liberdade
de imprensa deve ser inviolavelmente preservada" ? O que é
a liberdade de imprensa? Quem pode dar-lhe qualquer defi-
nição que não deixe uma enorme latitude para a evasão?
Sustento que tal definição é impraticável. E daqui infiro que
a sua garantia, sejam quais forem as belas declarações que
possam ser inseridas em qualquer Constituição a respeito dela,
deve depender inteiramente da opinião pública, e da consciên-
cia geral do povo e do governo.ll E aqui, afinal, tal como foi

10 De forma subtil e contrariando até o seu pendor fortemente nacio-


nalista, Hamilton adverte os amigos dos "direitos dos Estados" (States' rights)
para o risco de uma Carta de Direitos poder tornar-se num instrumento para
a ampliação cresce nte da auto ridade da União à custa da diminuição da
autoridade dos Estados. N o fundo, mais uma vez, Hamilton estava muito à
frente do seu tempo. (E. P.).
11 Para mostrar que há um poder na Constituição pelo qual a liberdade
de imprensa pode ser afectada, recorreu-se aos poderes de tributação. É dito
que podem ser lançadas taxas sobre as publicações, tão elevadas que equivalham
a uma proibição. N ão sei por meio de qu e lógica é que pode ser sustentado
que as declarações das constituições dos Estados a favor da liberdade de imprensa
seriam um impedimento constitucional ao lançamento de taxas sobre as
publicações pelas legislaturas dos Estados. Certamente que não se pode pretender
que qualquer valor das taxas, por baixo que fosse, seria uma limitação da
liberdade de imprensa. Sabemos que os j ornais são taxados na Grã-Bretanha
e no entanto é notório que em parte alguma desfru ta a imprensa de maior
liberdade do que nesse país. E, se as taxas de qualquer natureza podem ser
lançadas sem violação dessa liberdade, é evidente que o valor delas deve depender
do critério legislativo, regulado pela opinião pública, de forma que, afinal, as

[753]
sugerido noutra ocasião, devemos procurar as únicas bases
sólidas para todos os nossos direitos.
Resta apenas um outro aspecto desta questão para concluir
este ponto. A verdade é que, depois de todos os discursos que
ouvimos, a Constituição é ela própria, em todos os sentidos
racionais, e para todos os fins úteis, UMA CARTA DE DIREITOS.
As várias cartas de direitos da Grã-Bretanha formam a sua
Constituição e, reciprocamente, a Constituição de cada Estado
é uma Carta de Direitos. E a Constituição proposta, se for
adoptada, será a Carta de Direitos da União. Declarar e espe-
cificar os privilégios políticos dos cidadãos na estrutura e
administração do governo é um dos objectivos de urna Carta
de Direitos? Isto é feito da maneira mais ampla e mais precisa
no plano da Convenção, incluindo várias precauções a favor
da segurança púb ·ca, que não são encontradas em nenhuma
das Constituições dos Estados. Definir certas imunidades e
maneiras de proceder que são relativas a interesses pessoais e
privados é outro dos objectivos de uma Carta de Direitos?
Vimos que isso também recebeu atenção, numa variedade de
casos, no mesmo plano. Portanto, aludindo ao significado
substancial de uma carta de direitos, é absurdo alegar que ela
não se pode encontrar no trabalho da Convenção. Pode ser
dito que não vai suficientemente longe, embora não seja fãcil
tornar patente esse facto, mas não pode com justiça argu-
mentar-se que não existe tal coisa. Certamente que o modo
que é observado quanto à ordem de declarar os direitos dos
cidadãos deve ser irrelevante, se a declaração for encontrada
numa parte qualquer do instrumento que institui o governo.

declarações gerais respeitantes à liberdade de imprensa não lhe conferirão maior


garantia do que a que terá sem elas. As mesmas usurpações podem ser efectuadas
sob as constituições dos Estados que contêm essas declarações através dos meios
de tributação, tal como sob a Constituição proposta, que não tem nada desse
género. Seria absolutamente tão significativo declarar que o governo deveria
ser livre, que as taxas não deveriam ser excessivas, etc. , como declarar que a
liberdade de imprensa não deveria ser coarctada . (Publius).

[754)
E por este motivo deve ficar patente que muito do que foi
dito sobre a matéria assenta meramente em distinções verbais
e nominais, inteiramente estranha à substância da coisa.
Outra objecção que foi feita e que, pela frequência da sua
repetição, deve presumir-se que desfruta de aceitação é desta
natureza: - É incorrecto (dizem os objectores) conferir ao
Governo nacional poderes tão vastos como os que são pro-
postos, porque a sede desse Governo deverá necessariamente
ser demasiado afastada de muitos dos Estados para admitir um
conhecimento adequado, por parte do constituinte, da conduta
da assembleia representativa. Este argumento, se é que prova
alguma coisa, prova que não deveria haver nenhum governo
geral, fosse ele qual fosse, porque parece que toda a gente
concorda que os poderes que deverão ser investidos na União
não podem ser confiados com segurança a um corpo que não
esteja sob todos os controlos exigíveis. Mas existem razões
satisfatórias para mostrar que, na realidade, a objecção não é
bem fundada. Há, na maior parte dos argumentos que se refe-
rem à distância, uma ilusão palpável da imaginação. Quais são
as fontes de informação por meio das quais o povo no condado
de Montgomery12 pode orientar o seu juízo sobre a conduta
dos seus representantes na legislatura do Estado? Não podem
tirar nenhum beneficio da observação pessoal. Isso está
confinado aos cidadãos no local. Portanto têm de depender
da informação de homens inteligentes, em quem confiam.
E como é que esses homens podem obter a sua informação?
Evidentemente, a partir do carácter das medidas públicas, das
publicações difundidas , da correspondência com os seus
representantes e com outras pessoas que residem no local em
que eles deliberam. Isto não se aplica apenas ao condado de
Montgomery, mas a todos os condados a distância considerável
da sede do governo.

12 Era o condado maior e mais ocidental de Nova Iorque em 1788. QC).

[755]
É igualmente evidente que estariam abertas ao povo as
mesmas fontes de informação em relação à conduta dos seus
representantes no governo geral, e os impedimentos a uma
rápida comunicação que se pode supor criada pela distância
serão contrabalançados pelos efeitos da vigilância exercida
pelos governos dos Estados. Os corpos executivo e legislativo
de cada Estado serão outras tantas sentinelas em relação às
pessoas que trab am em qualquer departamento da admi-
nistração nacional. E como estará ao seu alcance adoptar e
procurar obter um sistema regular e eficaz de recolha de
informação, nunca podem ter dificuldade em conhecer o
comportamento dos que representam os seus constituintes
nos conselhos nacionais, e podem comunicar prontamente
esse conhecimento ao povo. Pode confiar-se na sua disposição
para informar a comunidade de tudo o que possa prejudicar
os seus interesses vindo de outro quadrante, ainda que fosse
apenas por rivalidade de poder. E podemos concluir com
completa segurança que o povo, através desse canal, será mais
bem informado da conduta dos seus representantes nacionais
do que pode sê-lo por quaisquer meios que hoje possua para
obter informação acerca dos seus representantes estaduais.
Deveria também ser recordado que os cidadãos que habi-
tam no campo e perto da sede do governo terão, em todas
as questões que afectem a liberdade e prosperidade gerais, o
mesmo interesse que os que estão distantes, e que estarão
prontos a dar o alarme quando necessário, e a chamar a atenção
para os actores de qualquer projecto pernicioso. Os jornais
públicos serão mensageiros expeditos da informação para os
habitantes mais remotos da União.
Entre as muitas extraordinárias objecções que apareceram
contra a Constituição proposta, a mais extraordinária e menos
aceitável é derivada da ausência de qualquer disposição respei-
tante aos débitos de que os Estados Unidos são credores. Isto
foi apresentado como uma renúncia tácita a esses débitos e
como um dispositivo perverso para esconder defraudadores

[756]
do público. Os jornais enxamearam com as mais inflamadas
invectivas a este respeito, e, todavia, não há nada mais claro
do que ser a sugestão inteiramente destituída de fundamento,
uma sequela da ignorância ou desonestidade extremas. Adicio-
nalmente às observações que fiz sobre o assunto noutro lugart3,
observarei apenas que tal como é um claro ditame do senso
comum assim é também uma doutrina estabelecida de legisla-
ção política que os "Estados nem perdem nenhum dos seus direitos
nem são desresponsabilizados de nenhuma das suas obrigações por
uma alteração na forma do seu governo civil"14.
A última objecção de alguma importância de que presen-
temente me lembro volta-se para a questão da despesa. Ainda
que fosse verdade que a adopção do governo proposto ocasio-
nasse um aumento considerável da despesa, seria uma objecção
que não deveria ter peso contra o plano. A grande maioria
dos cidadãos da América está convencida, com razão, de que
a União é a base da sua felicidade política. Homens de bom
senso de todos os partidos, com poucas excepções, concordam
que ela não pode ser preservada no presente sistema, nem
sem alterações radicais, que deveriam ser concedidos novos
e alargados poderes à chefia federal, e que estes exigem uma
organização diferente do governo federal, sendo que um único
corpo seria um depositário inseguro de poderes tão amplos.
Ao admitir tudo isto, a questão da despesa deve ser abandonada,
porque é impossível, com um mínimo grau de segurança,
estreitar os alicerces em que esse sistema deverá assentar. Os
dois ramos da legislatura contarão inicialmente apenas sessenta
e cinco pessoas, número que é o mesmo que pode contar o
Congresso existente na vigência da Confederação existente.

13 Ver artigo 43. QC).


14 Ver Rutherford, /nstitutes, Vol. 2, Livro II , Capítulo X, Secções XIV
e XV Ver também Grotius, Livro II , Capítulo IX, Secções VIII e IX. (Publius).
Embora Hamilton omita o título, o livro de Grotius em causa será, certamente,
o De jure bel/i ac pacis (1625). (E. P.).

[757]
É verdade que está planeado que esse número aumente, mas
isso para se manter a par do progresso da população e dos
recursos do país. É evidente que um número menor teria
sido, mesmo inicialmente, pouco seguro e que uma manuten-
ção do número presente seria, num estádio mais avançado da
população, uma representação muito inadequada do povo.
De onde resultará o temido aumento da despesa? Uma
fonte indicada é a multiplicação de cargos no novo governo.
Examinemos um pouco este aspecto.
É evidente que os principais departamentos da administra-
ção do presente governo são os mesmos que serão necessários
no novo. Existe agora um Secretário da Guerra, um Secretário
de Negócios Estrangeiros, um Secretário dos Assuntos Inter-
nos, uma Junta do Tesouro, composta de três pessoas, um
Tesoureiro, assistentes, amanuenses, etc. Estes funcionários
são indispensáveis em qualquer sistema, e serão tão suficientes
no novo como no velho. Quanto aos embaixadores e outros
ministros e agentes em países estrangeiros, a Constituição
proposta só pode ter por diferença tornar o seu papel mais
respeitável, nos locais onde residem, e os seus serviços mais
úteis. Quanto às pessoas a serem empregues na colecta dos
rendimentos públicos, é inquestionavelmente verdade que
provocarão um aumento considerável dos funcionários federais,
mas não se segue que isto venha a ocasionar um aumento da
despesa pública. Em muitos casos não será mais do que uma
troca de funcionários dos Estados por funcionários nacionais.
Na colecta dos direitos alfandegários, as pessoas empregues
estarão todas neste último caso. Os Estados, individualmente,
não precisarão de ninguém para este fim. Que diferença pode
fazer, no que respeita à despesa, pagar a funcionários alfande-
gários nomeados pelos Estados ou pelos Estados Unidos? Há
boas razões para supor que quer o número quer os salários
destes últimos não serão maiores do que os dos primeiros.
Onde deveremos então procurar esses objectos adicionais
de despesa que deverão avolumar a conta até à enorme

(758]
dimensão que nos foi apresentada? O ponto principal que
me ocorre diz respeito ao salário dos juízes dos Estados Unidos.
Não acrescento o Presidente, porque existe agora um
presidente do Congresso, cujos gastos não podem estar longe,
se o estiverem, dos que serão efectuados por causa do Presi-
dente dos Estados Unidos. A remuneração dos juízes será
claramente uma despesa extra, mas a sua medida está depen-
dente do plano particular que possa ser adoptado em relação
a este assunto. Mas com um plano razoável não pode equi-
valer a uma soma que seja objecto de consequências subs-
tanciais.
Vejamos agora o que existe para contrabalançar qualquer
despesa adicional que possa acompanhar o estabelecimento
do governo proposto. A primeira coisa que se apresenta é que
uma grande parte dos assuntos que agora mantêm o Congresso
em sessão durante todo o ano serão tratados pelo Presidente.
Até a direcção dos negócios estrangeiros lhe caberá natural-
mente, de acordo com princípios gerais concertados com o
Senado, e sujeita à concordância final deste último. Por este
motivo é evidente que uma porção do ano será suficiente
para a sessão tanto do Senado como da Câmara dos Represen-
tantes . Podemos supor cerca de um quarto do ano para a
última e um terço, ou talvez metade, para o primeiro. Os
assuntos adicionais dos tratados e das nomeações podem dar
esta ocupação adicional ao Senado. Desta circunstância pode-
mos inferir que, até que a Câmara dos Representantes seja
aumentada muito para além do presente número, existirá uma
considerável economia de despesa por causa da diferença entre
a sessão permanente do presente e a sessão temporária do
futuro Congresso.
Mas há outra circunstância de grande importância no
plano económico. Os assuntos dos Estados Unidos ocuparam
até agora as legislaturas dos Estados, bem como o Congresso.
Este último fez requisições que os últimos tinham de satisfazer.
Por este motivo aconteceu que as sessões das legislaturas dos

[759]
Estados foram grandemente dilatadas para além do que era
necessário para resolver os meros assuntos locais dos Estados.
Mais de metade do seu tempo foi frequentemente empregue
em assuntos que se referiam aos Estados Unidos. Ora os mem-
bros que compõem as legislaturas dos vários Estados equivalem
a mais de dois mil, número que até agora executou o que no
novo sistema será feito inicialmente por sessenta e cinco
pessoas, e provavelmente em nenhum período futuro por mais
de um quarto ou um quinto daquele número. O Congresso,
no governo proposto, tratará ele próprio de todos os assuntos
dos Estados Unidos, sem a intervenção das legislaturas dos
Estados, que a partir daí terão apenas de cuidar dos negócios
dos seus Estados particulares, e não terão de permanecer em
sessão durante um período tão longo como até agora aconte-
ceu. A diferença do tempo de sessão das legislaturas dos Estados
será um claro ganho, e constituirá por si só um objecto de
poupança, que pode ser visto como um equivalente de quais-
quer objectos adicionais de despesa que possam ser ocasionados
pela adopção de um novo sistema.
O resultado destas observações é que as fontes de despesa
adicional causadas pela adopção da Constituição proposta são
muito menos do que pode ter sido imaginado, que são con-
trabalançadas por objectos consideráveis de poupança, e que
embora seja questionável que prato da balança será prepon-
derante, é certo que um governo menos dispendioso seria
incompetente para os objectivos da União.
PUBLIUS

[760)
O FEDERALISTA N.o 85

Observações Finais

ALEXANDER HAMILTON
28 de Maio de 1788

De acordo com a divisão formal do tema destes artigos,


anunciada no primeiro deles, pareceria faltar ainda discutir
dois pontos: "a analogia do governo proposto com a Constitui-
ção do nosso próprio Estado," e a "garantia adicional que a
sua adopção proporcionará ao governo republicano, à liberdade,
e à propriedade." Mas estes pontos foram tão completamente
antecipados e esgotados na progressão do trabalho, que quase
não seria possível fazer agora mais do que repetir, numa forma
mais dilatada, o que foi dito até aqui, coisa que a fase avançada
da questão, e o tempo já despendido, contribuem para proibir.
É notável que seja válida a semelhança do plano da Con-
venção com o acto que organiza o governo deste Estado, não
menos no que toca a muitos dos supostos defeitos do que nas

* De J. e A. McLean, Th e Federalist, II , 357-365, onde este artigo foi


pela primeira vez publicado em 28 de M aio de 1788 e recebeu o número 85.
Foi começado a publicar em 13 de Agosto e concluído em 16 de Agosto, no
The Indepe~1dent j ournal onde teve o número 84, e foi publicado em 15 de
Agosto no The New- York Packet, onde teve o número 85. QC) .

[761]
reais excelências do primeiro. Entre os defeitos pretendidos
estão a reelegibilidade do Executivo, a ausência de um con-
selho, a omissão de uma Carta de Direitos formal, a omissão
de uma cláusula respeitante à liberdade de imprensa. Estes e
vários outros que foram notados no decurso do nosso exame
são tão imputáveis à Constituição deste Estado como à Consti-
tuição proposta para a União. E uma pessoa tem de ter escassas
pretensões à consistência para se queixar em relação à última
das mesmas imperfeições que não tem dificuldade em perdoar
à primeira. Nem pode na verdade existir melhor prova da
falta de sinceridade e afectação de alguns dos zelosos adversários
do plano da Convenção entre nós, que se afirmam devotados
admiradores do governo sob o qual vivem, do que a fúria
com que atacaram esse plano, por coisas em relação às quais
a nossa própria Constituição é igualmente, ou talvez mais,
vulnerável.
As garantias adicionais para o governo republicano, para
a liberdade e para a propriedade, a serem derivadas da adopção
do plano sob consideração, consistem principalmente: nas
restrições que a preservação da União imporá às facções e
insurreições locais, e à ambição de indivíduos poderosos em
Estados singulares, que podem adquirir crédito e influência
suficientes, desde os chefes aos favoritos, para se converterem
em déspotas do povo; na diminuição de oportunidades para
a intriga estrangeira, que a dissolução da Confederação con-
vidaria e facilitaria; no impedimento de grandes instituições
militares, que não poderiam deixar de brotar das guerras entre
os Estados numa situação de desunião; na garantia expressa
de uma forma republicana de governo para cada um deles;
na exclusão absoluta e universal dos títulos de nobreza; e nas
precauções contra a repetição, por parte dos governos dos
Estados, dessas práticas que minaram os alicerces da propriedade
e do crédito, semearam a desconfiança mútua nos corações
de todas as classes de cidadãos, e ocasionaram uma prostração
quase universal do moral.

(762]
Assim executei, meus concidadãos, a tarefa que me impus;
com que sucesso, isso deve a vossa conduta decidi-lo. Confio
pelo menos que admitireis que não falhei quanto à garantia
que vos dei a respeito do espírito com que os meus esforços
deveriam ser orientados. Dirigi-me puramente aos vossos
juízos e evitei estudadamente essas asperezas que são demasiado
capazes de desacreditar os contendores políticos de todos os
partidos, e que não foram pouco provocadas pela linguagem
e conduta dos opositores da Constituição. A acusação de cons-
piração contra as liberdades do povo, que foi indiscriminada-
mente proferida contra os defensores do plano, tem em si
algo demasiadamente arbitrário e perverso para não excitar
a indignação de qualquer homem que sente no seu íntimo
uma refutação da calúnia. As perpétuas acusações que foram
pronunciadas acerca dos ricos, dos bem nascidos e dos grandes
foram de molde a inspirar a repugnância de todos os homens
sensíveis. E as injustificáveis dissimulações e deturpações, que
foram praticadas de várias maneiras para afastar a verdade dos
olhos do público, foram de molde a exigir a reprovação de
todos os homens honestos. Não é impossível que essas cir-
cunstâncias me tenham traído ocasionalmente, levando-me
a intemperanças de expressão que não era minha intenção
ter. É certo que senti frequentemente uma luta entre a sensi-
bilidade e a moderação. E, se a primeira prevaleceu em alguns
casos, deve-me servir de desculpa que não foram nem nume-
rosos nem demasiado frequentes.
Façamos agora uma pausa e perguntemo-nos se, no
decurso destes artigos, a Constituição proposta não foi satis-
fatoriamente defendida das calúnias lançadas sobre ela, e se
não foi mostrado que ela é digna da aprovação do público, e
necessária para a segurança e prosperidade públicas. Todos os
homens ficam moralmente obrigados a responder a estas
questões para si mesmos, em conformidade com o melhor
das suas consciências e entendimento, e a agir de acordo com
os genuínos e sensatos ditames do seu discernimento. Este é

[763]
um dever de que nada pode dispensá-los. É um dever para
que são convocados, mais do que isso, forçados por todas as
obrigações, que formam os laços da sociedade, a cumprir
sincera e honestamente. Nenhum motivo parcial, nenhum
interesse particular, nenhum orgulho de opinião, nenhuma
paixão ou preconceito temporários justificarão perante si
mesmos, o seu país, ou a sua descendência, uma escolha
incorrecta do papel que devem desempenhar. Eles que se
acautelem com uma adesão obstinada a um partido, que
reflictam sabendo que o objecto sobre o qual têm de decidir
não é um interesse particular da comunidade, mas a própria
existência da nação, e que se lembrem que uma maioria da
América já deu o seu acordo ao plano que irão aprovar ou
rejeitar.
Não esconderei que tenho inteira confiança nos argumen-
tos que recomendam a vossa adopção do novo sistema e que
sou incapaz de discernir qualquer força real naqueles que se
lhe opuseram. Estou persuadido de que ele é o melhor que
a nossa situação política, os nossos hábitos e as nossas opiniões
admitirão, e superior a qualquer outro que a revolução pro-
duziu.
As concessões, por parte dos defensores do plano, de que
este não tem pretensões a uma perfeição absoluta, proporcio-
naram aos seus inimigos matéria para não pequenos triunfos.
Por que razão, dizem eles, deveríamos adoptar uma coisa
imperfeita? Porque não corrigi-la e torná-la perfeita antes de
ser irrevogavelmente instituída? Isto pode ser suficientemente
plausível, mas é apenas plausível. Em primeiro lugar, observo
que a extensão dessas concessões foi grandemente exagerada.
Foram enunciadas como equivalendo a uma admissão de que
o plano é radicalmente defeituoso, e que sem alterações subs-
tanciais os direitos e interesses da comunidade não podem
ser-lhe confiados com segurança. Isto, na medida em que
compreendi o que queriam dizer os que fazem as concessões,
é uma completa perversão do que eles pensam. Não pode ser

[764]
encontrado nenhum defensor da medida que não declare
como seu sentimento que o sistema, embora possa não ser
perfeito em cada uma das partes, é, no conjunto, um bom
sistema, que é o melhor que os presentes pontos de vista e
circunstâncias do país permitem, e que é tal que promete
todas as espécies de garantias que um povo razoável pode
desejar.
Respondo em seguida que avaliaria como extrema impru-
dência o prolongamento do estado precário dos nossos assuntos
nacionais, e a exposição da União ao risco de experiências
sucessivas na busca quimérica de um plano perfeito. Nunca
espero ver uma obra perfeita de um homem imperfeito.
O resultado das deliberações de todos os corpos colectivos
deve necessariamente ser um composto, tanto dos erros e
preconceitos, como do bom senso e sabedoria, dos indivíduos
que o constituem. Os contratos que deverão englobar treze
Estados distintos num laço comum de amizade e união têm
necessariamente de ser um compromisso de outros tantos
interesses e inclinações dissemelhantes. Como pode a perfeição
brotar desses materiais?
As razões aduzidas num excelente pequeno panfleto recen-
temente publicado nesta cidade 1 são irrespondíveis para mos-
trar a total improbabilidade de reunir uma nova Convenção,
em circunstâncias que sejam em qualquer medida tão favorá-
veis para um resultado feliz como aquelas em que a última
Convenção se reuniu, deliberou e tirou as suas conclusões.
Não repetirei os argumentos nele usados, dado que presumo
que ele próprio teve uma vasta circulação. É certamente digno
da atenção de todos os amigos deste país. Há, todavia, um
ponto a esclarecer em que a questão dos aditamentos ainda
está por considerar, e em que ainda não foi exibida perante

1 Intitulado "An Address to the People of the State of New York."


(Publius). Escrito porJohnJay, o panfleto foi publicado primeiro em Abril e
reimpresso em The American M14seum de Junho de 1788. QC) .

[765]
o público. Não me posso decidir a concluir sem primeiro
fazer um exame desse aspecto.
Apresenta-se-me como susceptível de demonstração
absoluta que será muito mais facil obter aditamentos subse-
quentes do que obter aditamentos prévios à Constituição. No
momento em que é feita uma alteração no presente plano,
ele torna-se, para os fins da sua adopção, um novo plano, e
deve submeter-se a uma nova decisão de cada Estado. Para a
sua integral instituição por toda a União exigirá, portanto, a
concordância de treze Estados. Se, pelo contrário, a Constitui-
ção proposta vier a ser ratificada por todos os Estados tal como
está, as alterações a ela poderão em qualquer momento ser
efectivadas por nove Estados. Então, as probabilidades neste
caso estão na proporção de treze para nove 2 a favor do
aditamento subsequente, em vez da adopção original de todo
um sistema.
Isto não é tudo. Qualquer Constituição para os Estados
Unidos tem inevitavelmente de consistir numa grande varie-
dade de particularidades, nas quais treze Estados indepen-
dentes têm de ser harmonizados nos seus interesses ou opiniões
sobre os seus interesses. É claro que podemos esperar ver,
qualquer que seja o corpo de homens encarregue da sua
formação inicial, combinações muito diferentes das partes em
relação a diferentes pontos. Muitos desses homens que estão
em maioria numa questão podem estar em minoria numa
segunda, e uma associação dissemelhante de qualquer das
outras pode estar em maioria numa terceira. Daí a necessidade
de moldar e combinar todas as particularidades que irão
compor o todo, de maneira a satisfazer todas as partes do
contrato, e daí também uma imensa multiplicação de dificul-
dades e incidentes na obtenção da concordância colectiva
com o documento final. O grau dessa multiplicação deve

2 Pode antes dizer-se DEZ, porque embora dois terços possam lançar a
medida, devem ser três quartos a ratificar. (Publius).

[766]
evidentemente estar na razão do número de particularidades
e do número de partes.
Mas qualquer aditamento à Constituição, uma vez adoptada
esta, seria uma simples proposta e poderia ser produzido
isoladamente. Então não haveria necessidade de habilidade
ou compromisso, em relação a nenhum outro ponto, nem
cedência nem conquista. A vontade do número requerido de
Estados daria imediatamente ao assunto uma solução decisiva.
E, consequentemente, sempre que nove, ou melhor, dez
Estados, estivessem unidos no desejo de um aditamento
particular, esse aditamento seria infalivelmente aprovado.
Portanto, não pode haver comparação entre a facilidade de
efectuar um aditamento e a facilidade de estabelecer em
primeira instância uma Constituição completa3.
Em oposição à probabilidade de aditamentos subsequentes,
foi alegado que as pessoas delegadas para a administração do
governo nacional terão sempre pouca inclinação para ceder
qualquer porção da autoridade que em tempos possuíram.
Pela minha parte reconheço que tenho uma profunda con-
vicção de que quaisquer aditamentos que possam, depois de
madura consideração, ser julgados úteis serão aplicáveis à
organização do governo, e não à massa dos seus poderes.
E com base apenas nesta razão, penso que a observação que
acaba de ser citada não tem peso. Penso também que há pouco
peso nela noutro aspecto. Em todo o caso, a dificuldade
intrínseca de governar TREZE ESTADOS, independentemente
de se contar com um grau normal de espírito e integridade
públicos, imporá constantemente, na minha opinião, aos
governantes nacionais a necessidade de um espírito de harmo-
nização com as expectativas razoáveis dos seus constituintes.

3 No fundo, o modelo de revisão da Lei Fundamental proposto combinava,


para Hamilton, o princípio da possibilidade de mudança legítima (decisivo
para Jefferson) com o princípio da estabilidade constitucional (essencial para
Madison) . (E . P).

[767]
Mas há ainda mais uma consideração que demonstra, para lá
de toda a possibilidade de dúvida, que a observação é fútil.
É ela que os governantes nacionais, sempre que nove Estados
concordam, não terão qualquer opção sobre o assunto. Pelo
artigo quinto do plano, o Congresso será obrigado "por solici-
tação das legislaturas de dois terços dos Estados (que neste
momento equivale a nove), a convocar uma Convenção para
propor aditamentos, que serão válidos, para todos os objectivos
e propósitos, como parte da Constituição, quando ratificados
pelas legislaturas de três quartos dos Estados, ou por convenções
em três quartos destes". O texto deste artigo é peremptório.
O Congresso "deverá convocar uma Convenção". Neste
particular, nada é deixado ao critério desse corpo. E, por
consequência, todas as declarações acerca da falta de inclinação
para a mudança se desvanecem no ar. Nem tão pouco, por
mais dificil que se possa supor que é juntar dois terços ou três
quartos das legislaturas dos Estados, em aditamentos que
podem afectar interesses locais, pode haver alguma razão para
recear qualquer dificuldade dessas numa união acerca de pontos
que são meramente relativos à liberdade ou segurança gerais
do povo. Podemos confiar com segurança na disposição das
legislaturas dos Estados para levantar barreiras contra as
usurpações da autoridade nacional.
Se o argumento anterior é uma falácia, é certo que eu
próprio sou enganado por ele, porque é, na minha maneira
de ver, um desses raros casos em que uma verdade política
pode ser trazida à prova de uma demonstração matemática.
Os que vêem a questão à mesma luz que eu a vejo, por mais
entusiastas que possam ser em relação aos aditamentos, têm
de concordar na correcção de uma adopção prévia como o
caminho mais directo para o seu próprio objectivo.
O entusiasmo por tentativas de aditamento, anteriormente
à entrada em vigor da Constituição, deve enfraquecer em
todos os homens que estejam prontos a concordar com a
verdade das seguintes observações de um escritor tão sólido

[768]
como engenhoso: "Equilibrar um vasto Estado ou uma vasta
sociedade (diz ele), quer seja monárquico quer republicano,
com base em leis gerais, é um trabalho de tão grande dificul-
dade que nenhum génio humano, por mais abrangente, é
capaz de o fazer unicamente pela força da razão e da reflexão.
Têm de unir-se na obra os juízos de muitos; a EXPERlÊNCIA
deve guiar o seu labor; o TEMPO deve trazê-lo à perfeição, e
o SENTIMENTO dos inconvenientes tem de corrigir os erros
em que inevitavelmente cairão nas suas primeiras tentativas e
experiências." 4 Estas judiciosas reflexões encerram uma lição
de moderação para todos os amigos sinceros da União, e
deveriam pô-los em guarda contra arriscar a anarquia, a guerra
civil, uma alienação perpétua dos Estados uns em relação aos
outros, e talvez o despotismo militar de um demagogo vito-
rioso, na prossecução do que não é provável que obtenham,
a não ser com TEMPO e EXPERIÊNCIA . Pode haver em mim
um defeito de força moral política, mas reconheço que não
posso alimentar uma tranquilidade igual à dos que afectam
tratar os perigos de uma mais longa continuação da nossa
situação presente como imaginários. Uma NAÇÃO, sem um
GOVERNO NACIONAL, é, na minha maneira de ver, um
espectáculo horrível. A entrada em vigor de urna Constituição,
num tempo de profunda paz, pelo consentimento voluntário
de todo um povo, é um PRODÍGIO, cuja realização eu espero
com trémula ansiedade. Não posso reconciliar com nenhumas
regras de prudência a perda da adesão que já temos, num
empreendimento tão árduo, em sete dos treze Estados, e depois
de ter percorrido uma parte tão considerável do terreno,
recomeçar o caminhoS. Receio ainda mais as consequências

4 Hume, Essays, Vol. I, p. 128: "The Rise of Arts and Sciences." (Publius) .
5 Este último artigo foi publicado primeiro em livro, e posteriormente
na imprensa. À data da publicação em livro deste artigo (28 de Maio de 1788),
já oito Estados haviam ratificado, em Convenções especiais, a Constituição.
Hamilton fala apenas em sete, certamente porque a notícia da ratificação do

[769]
de novas tentativas, porque sei que INDIVÍDUOS PODEROSOS,
neste e em outros Estados, são inimigos de um governo
nacional geral seja qual for a sua forma.
PUBLIUS

Estado da Carolina do Sul (23 de Maio de 1788) já lhe terá chegado numa
altura em que o livro estaria a sofrer a impressão final. Quando este artigo foi
publicado na imprensa, em 13 de Agosto de 1788, já 11 Estados tinham
ratificado, entre os quais o Estado de Nova Iorque (em 26 de Julho de 1788),
cuja peculiar situação política tinha sido a causa principal que levou à redacção
de «0 Federalista•. (E. P.) .

[770]
A

APENDICES
DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA*

Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna


necessário um povo dissolver os laços políticos que o ligam a outro
e assumir entre as potências da Terra uma posição igual e indepen-
dente, para a qual as leis da natureza e do Deus da natureza o
habilitaram, um honesto respeito pelas opiniões dos homens exige
que se declarem as causas que o impelem a essa separação.
Consideramos que estas verdades são evidentes, que todos os
homens nasceram iguais, que foram dotados pelo seu Criador de
certos direitos inalienáveis, que entre esses estão a vida, a liberdade
e a busca da felicidade.
Consideramos que, a fim de assegurar esses direitos, são instituí-
dos governos entre os homens, derivando os seus justos poderes do
assentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de
governo se torne destrutiva de tais fins, é direito do povo alterá-la
ou aboli-la e instituir um novo governo, fundamentando-o em tais
princípios e organizando os seus poderes na forma que se afigure
mais apropriada à sua segurança e felicidade. A prudência, na
realidade, ditará que não se mudem governos há muito instituídos
por causas inconsequentes e transitórias; aliás, em conformidade
com o que a experiência tem demonstrado, a humanidade está mais
disposta a sofrer, enquanto os males forem suportáveis, do que a
desagravar-se abolindo as formas a que se acostumara. Mas, quando
uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente

* Reproduzido, com permissão, de Cor1stituição dos EUA, trad. de M aria


Goes, Lisboa, USIS, 1993.

[773]
o mesmo objectivo, revela o desígnio de submeter um povo ao des-
potismo absoluto, é seu direito, é seu dever, abolir tal governo e
produzir novos guardiões da sua segurança futura. Tal tem sido o
paciente sofrimento destas colónias; e tal é agora a necessidade que
as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do
actual rei da Grã-Bretanha é uma história de repetidos danos e usur-
pações, todos tendo como objectivo directo o estabelecimento de
uma tirania absoluta sobre os Estados Unidos. Para o provar, per-
mitam que os factos sejam apresentados a um mundo de boa-fé.
Recusou dar o seu assentimento às leis mais salutares e necessárias
para o bem público.
Proibiu os seus governantes de aprovarem leis de importância
imediata e urgente, a menos que a sua eficácia fosse suspensa até o
seu assentimento poder ser obtido; e, uma vez suspensas, descurou
a sua atenção às mesmas.
Recusou promulgar outras leis para o bem-estar das popula-
ções de grandes regiões, a menos que elas renunciassem ao direito
de representação na assembleia legislativa, um direito que lhes era
inestimável e apenas temível para os tiranos.
Convocou os órgãos legislativos para locais incomuns, sem
conforto e distantes dos locais em que se encontram os seus arquivos
públicos, com o único propósito de os obrigar, pela fadiga, a aprovar
as suas medidas.
Dissolveu repetidamente Câmaras dos Representantes por estas se
oporem com vincada firmeza aos seus atropelos aos direitos do povo.
Recusou permitir por muito tempo, após tais dissoluções, que
outros fossem eleitos, pelo que os poderes legislativos, tornados
incapazes por aniquilação, foram devolvidos ao povo em geral; o
estado permaneceu, nesse ínterim, exposto a todos os perigos de
invasão externa e convulsão interna.
Procurou impedir o povoamento destes estados, obstruindo,
para tanto, as leis da naturalização de estrangeiros, recusando pro-
mulgar outras para ncorajar a sua migração para cá e dificultando
as condições de novas apropriações de terras.
Obstruiu a administração da justiça, recusando o seu assenti-
mento a leis para estabelecimento dos poderes judiciais.

[774]
Tornou os juízes dependentes apenas da sua vontade, mani-
pulando os mandatos para os respectivos cargos e o valor e pagamento
dos respectivos salários.
Criou uma multiplicidade de novos cargos e enviou para cá
multidões de funcionários para perseguir o nosso povo e devorar
as suas entranhas.
Manteve entre nós, em tempo de paz, exércitos permanentes
sem o consentimento dos nossos órgãos legislativos.
Tentou tornar a organização militar independente e superior
ao poder civil.
Combinou com outros sujeitar-nos a jurisdição estranha à nossa
Constituição e não reconhecida pelas nossas leis, dando assentimento
aos seus actos de pretensa legislação:

Para aquartelar grandes corpos de tropas entre nós;


Para os proteger, através de julgamentos simulados, da punição
por quaisquer assassínios que viessem a cometer contra os
habitantes destes estados;
Para pôr termo ao nosso comércio com todas as partes do
mundo;
Para nos lançar impostos sem o nosso consentimento;
Para nos privar, em muitos casos, dos beneficios de um
julgamento por júri;
Para nos transportar para além dos mares a fim de sermos julgados
por pretensas ofensas;
Para abolir o livre sistema de leis inglesas numa província vizinha,
estabelecendo aí um governo arbitrário e ampliando as res-
pectivas fronteiras, em ordem a torná-la, de imediato, um
exemplo e instrumento adequado para a introdução do
mesmo domínio absoluto nestas colónias;
Para nos tirar os nossos alvarás, abolindo as nossas mais valiosas
leis e alterando fundamentalmente as formas dos nossos
governos;
Para suspender as nossas próprias assembleias legislativas, decla-
rando-se investidos do poder de legislar para nós em todos
e quaisquer casos.

[775]
Abdicou do seu governo sobre nós ao declarar-nos fora da sua
protecção e entran o em guerra contra nós.
Saqueou os nossos mares, devastou as nossas costas, incendiou
as nossas cidades e destruiu a vida do nosso povo.
Está, neste mesmo momento, a transportar grandes exércitos
de mercenários estrangeiros para completar a obra de morte,
desolação e tirania já iniciada em circunstâncias de crueldade e
perfidia, raramente igualadas nas eras mais bárbaras e totalmente
indignas do chefe de uma nação civilizada.
Forçou os nossos concidadãos capturados no alto mar a apon-
tarem armas à sua própria pátria, a tornarem-se algozes dos seus
amigos e irmãos, ou a tombarem eles próprios às suas mãos.
Fomentou insurreições internas entre nós e procurou lançar
contra os habitantes das nossas fronteiras os impiedosos índios
selvagens, cuja conhecida lei de guerra é a destruição sem distinção
de idade, sexo ou condições.
Em cada fase de sas opressões apelámos à reparação, nos termos
mais humildes: os nossos repetidos apelos apenas tiveram por resposta
repetidos agravos. Um príncipe cujo carácter está assim marcado
por todos os actos que definem um tirano não está à altura de
governar um povo livre.
Tão-pouco deixámos de chamar a atenção dos nossos irmãos
britânicos. Repetidas vezes os advertimos das tentativas do seu poder
legislativo de estender sobre nós uma jurisdição injustificável.
Lembrámos-lhes as circunstâncias da nossa emigração e da nossa
instalação aqui. Apelámos para a sua justiça e magnanimidade natural
e exortámo-los, em nome dos laços do nosso parentesco comum,
a repudiarem essas usurpações, as quais interromperiam inevitavel-
mente as nossas ligaç- es e similaridade. Também eles permaneceram
surdos à voz da justiça e da consanguinidade. Devemos, portanto,
concordar na necessidade de proclamar a nossa separação e considerá-
-los, como consideramos o resto da humanidade, inimigos na guerra
e anugos na paz.
Nós, por conseguinte, os representantes dos ESTADOS UNIDOS
DA AMÉRICA, reunidos em congresso geral, apelando para o juiz
Supremo do mundo pela rectidão das nossas intenções, em nome

[776]
e com a autoridade do bom povo destas colónias, publicamos e
declaramos solenemente: que estas colónias unidas são e, por direito,
devem ser ESTADOS LNRES E INDEPENDENTES; que estão desobrigadas
de qualquer sujeição à Coroa Britânica e todos os vínculos políticos
entre elas e a Grã-Bretanha estão e devem ser totalmente dissolvidos;
e que, como ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES, têm total poder
para declarar guerra, concluir a paz, contrair alianças, estabelecer
o comércio e praticar todos os outros actos e acções a que têm
direito como estados independentes. E, em apoio desta Declaração,
firmemente confiantes na protecção da Divina Providência, empe-
nhamos mutuamente as nossas vidas, as nossas fortunas e a nossa
sagrada honra.

j OHN HANC OCK

John Adams William Floyd


Samuel Adams Benjamin Franklin
]osiah Bartlett E/bridge Geny
Carter Braxton Button Gwinnett
Charles Carrol/ Lyman Hall
of Carrollton Benjamin-Harrison
Samuel Chase John Hart
Abraham Clark Joseph Hewes
George Clymer Thomas Heyward, ]r.
William Ellery William Hooper
Stephen Hopkins George Read
Francis Hopkinson Caesar Rodney
Samuel Huntington George Ross
Thomas Jefferson Benjamin Rush
Francis Lighifoot Lee Edward Rutledge
Richard Henry Lee Roger Sherman
Francis Lewis James Smith
Philip Livingston Richard Stockton
Thomas Lynch, ]r. Thomas Stone
Arthur Middleton George Taylor

[777]
Thomas M' Kean Matthew Thornton
Lewis Morris George VM!lton
Robert Mo"is William Whipple
John Morton William Williams
Thomas Nelson, ]r. James Wilson
William Paca John Witherspoon
Robert Treat Paine Oliver Wolcott
John Penn George Wythe

[778]
ARTIGOS DA CONFEDERAÇÃO*

A todos os que o presente documento virem, nós, os abaixo


assinados, Delegados dos Estados identificados junto aos Nossos
nomes, enviamos saudações. Tendo em vista que os Delegados dos
Estados Unidos da América, reunidos em Congresso no dia quinze
de Novembro, no ano de Nosso Senhor de Mil Setecentos e Setenta
e Sete, e Segundo Ano da Independência da América, concordaram
com certos artigos de Confederação e União perpétua entre os
Estados de New Hampshire, Massachusetts-bay, Rhode Island and
Providence Plantations, Connecticut, Nova Iorque, Nova Jérsia,
Pensilvânia, Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte,
Carolina do Sul e Geórgia, nos termos que seguem, a saber, "Artigos
de Confederação e União perpétua entre os Estados de New
Hampshire, Massachusetts-bay, Rhode Island and Providence
Plantations, Connecticut, Nova Iorque, Nova Jérsia, Pensilvânia,
Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Carolina do Sul
e Geórgia".

Artigo I. O nome desta Confederação será "Estados Unidos


da América".

Artigo II. Cada Estado retém a sua soberania, liberdade e inde-


pendência, e todos os Poderes, Jurisdição e direito que não sejam
por esta Confederação expres amente delegados nos Estados Unidos,
reunidos em Congresso.

* Tradução de João C. S. Duarte.

[779]
Artigo m. Os ditos Estados entram assim separadamente numa
firme aliança de amizade uns com os outros, para a defesa comum,
a garantia das suas liberdades, e o bem-estar geral e mútuo, obri-
gando-se a ajudarem-se uns aos outros, contra toda a força imposta
ou ataques que lhes sejam feitos, ou a qualquer um deles, por motivo
de religião, soberania, comércio, ou qualquer outro pretexto.

Artigo IV. Para melhor assegurar e perpetuar a amizade mútua


e o trato entre as pessoas dos diferentes Estados nesta união, os habi-
tantes livres de cada um desses Estados, excluindo indigentes, vaga-
bundos e fugitivos à Justiça, terão direito a todos os privilégios e
imunidades de cidadãos livres nos diversos Estados; e o povo de cada
Estado deverá ter livre entrada e saída em e de qualquer outro Estado,
e deverá desfrutar nele de todos os privilégios de profissão e de comér-
cio, sujeito aos mesmos direitos, imposições e restrições dos habitantes
desse Estado, desde que tais restrições não se estendam até impedir
a circulação de bens importados num Estado qualquer para um outro
Estado de que o Proprietário é habitante; desde que, também, nenhum
imposto, direito ou restrição venha a ser lançado por nenhum Estado
sobre a propriedade dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados.
Se alguma Pessoa culpada ou acusada de traição, felonia, ou outro
delito grave em qualquer Estado, vier a fugir à Justiça e vier a ser
encontrada em qualquer dos Estados Unidos , deve, a pedido do
Governador ou poder executivo do Estado de onde fugiu, ser entregue
e transportada para o Estado que tem jurisdição sobre o seu crime.
Deve ser dado inteira fé e crédito em cada um desses Estados
aos registos, actas e processos dos tribunais e magistrados de qualquer
outro Estado.

Artigo V . Para uma administração mais conveniente dos inte-


resses gerais dos Estados Unidos, devem ser anualmente nomeados
delegados da maneira que a legislatura de cada Estado vier a decidir,
para se reunirem em Congresso na primeira segunda-feira de Novem-
bro de cada ano, com um poder reservado a cada Estado para chamar
de volta os seus delegados, ou qualquer um deles, em qualquer momen-
to do ano, e mandar outros em sua substituição, para o resto do ano.

[780]
Nenhum Estado deve ser representado no Congresso por menos
de dois, nem por mais de sete, membros, e ninguém deve ter a
capacidade de ser delegado por mais de três anos em qualquer
período de seis anos; nem ninguém deve, sendo delegado, deter
qualquer outro cargo nos Estados Unidos, para o qual receba, ou
outra pessoa receba em seu lugar, qualquer salário, gratificação ou
emolumento, seja de que tipo for.
Cada Estado deve prover o sustento dos seus delegados numa
reunião dos Estados, e enquanto actuarem como membros da
Comissão dos Estados.
Na decisão de questões nos Estados Unidos, reunidos em
Congresso, cada Estado deverá ter um voto.
A liberdade de palavra e de debate no Congresso não deve ser
impedida ou questionada por nenhum Tribunal, ou órgão exterior
ao Congresso, e os membros do Congresso devem ser protegidos
nas suas pessoas de detenção e prisão durante o tempo de ida, de
vinda e de participação no Congresso, excepto por traição, felonia,
ou violação da paz.

Artigo VI. Nenhum Estado, sem o Consentimento dos Estados


Unidos em Congresso, deverá enviar qualquer embaixada a, ou
receber qualquer embaixada de, ou entrar em qualquer convenção,
acordo, aliança ou tratado, com nenhum Rei ou príncipe ou estado;
nem nenhuma pessoa ocupando um cargo remunerado ou de
confiança nos Estados Unidos, ou em qualquer dos Estados, deverá
aceitar qualquer presente, emolumento ou título, seja qualquer for
o seu tipo, de nenhum rei, príncipe ou estado estrangeiro; nem os
Estados Unidos em Congresso, ou qualquer dos Estados, deverão
conceder nenhum título de nobreza.
Dois ou mais Estados não devem participar em nenhum tratado,
confederação ou aliança entre si, sem o consentimento dos Estados
Unidos em Congresso, especificando com precisão os fins para os
quais esse acordo é firmado, e por quanto tempo deve permanecer
em VIgor.
N enhum Estado deve lançar quaisquer impostos ou direitos
que possam interferir com o que estiver estipulado em tratados

[781]
celebrados pelos Estados Unidos em Congresso, com qualquer rei,
príncipe ou estado, na execução de quaisquer tratados já propostos
pelo Congresso com as cortes de França e da Espanha.
Nenhum Estado pode manter em actividade navios de guerra
em tempo de paz, c m excepção do estrito número que for consi-
derado necessário pelos Estados Unidos em Congresso para a defesa
desse Estado ou do ~eu comércio; nem deve ser mantido em activi-
dade qualquer corpo de forças armadas, em tempo de paz, excepto
as que, segundo a avaliação dos Estados Unidos, em Congresso,
forem consideradas exigíveis para guarnição dos fortes necessários
para a defesa desse Estado; mas cada Estado deve sempre manter
uma milícia bem organizada e disciplinada, suficientemente armada
e equipada, e deve providenciar para ter constantemente pronto
para uso, em armazéns públicos, um determinado número de peças
de artilharia e de tendas, e uma quantidade adequada de armas,
munições e equipamento de campo.
Nenhum Estado deve entrar em guerra sem o consentimento
dos Estados Unidos em Congresso, a menos que esse Estado seja
efectivamente invacGdo por inimigos, ou tenha sabido da resolução
tomada por alguma nação de Índios para invadir o dito Estado, e o
perigo seja tão iminente que não admita demora, até que os Estados
Unidos em Congresm possam ser consultados; nem nenhum Estado
deve atribuir missões a nenhum navio ou vaso de guerra, nem passar
cartas de corso e de represália, excepto após uma declaração de guerra
pelos Estados Unidos em Congresso, e nesse caso somente contra o
reino ou estado e os súbditos dele contra quem a guerra tenha sido
declarada, e segundo regras que forem estabelecidas pelos Estados
Unidos em Congre so, a menos que esse Estado seja assolado por
piratas, caso em qu os vasos de guerra podem ser equipados para
essa ocasião, e mantidos enquanto continuar o perigo, ou até que os
Estados Unidos em C ongresso determinem de outra maneira.

Artigo VII. Quando forem convocadas por qualquer Estado


forças terrestres para a defesa comum, todos os oficiais da patente
de coronel ou de patentes inferiores devem ser nomeados pelas
respectivas legislatur:as dos Estados que recrutem essas forças , ou da

(782]
maneira que esses Estados determinarem, e todas as vagas devem
ser preenchidas pelo Estado que fez a primeira nomeação.

Artigo VIII. Todas as despesas da guerra e todas as outras


despesas que venham a ser feitas para a defesa comum ou para o
bem-estar geral, e que sejam autorizadas pelos Estados Unidos em
Congresso, devem ser pagas por um tesouro comum, que deve ser
aprovisionado pelos diversos Estados na proporção do valor de toda
a terra dentro de cada Estado, concedida a, ou demarcada para,
qualquer Pessoa, devendo tal terra e as construções e melhoramentos
dela avaliar-se de acordo com o modo como os Estados Unidos
em Congresso, de tempos a tempos, o decidirem e fixarem. Os
impostos para pagar esse valor devem ser lançados e cobrados sob
autoridade e direcção das legislaturas dos diversos Estados dentro
do período de tempo acordado pelos Estados Unidos em Congresso.

Artigo IX. Os Estados Unidos em Congresso terão o direito


e o poder único e exclusivo de decidir sobre a paz e a guerra,
excepto nos casos mencionados no artigo sexto: de enviar e receber
embaixadores; de celebrar tratados ou alianças, desde que não seja
celebrado nenhum tratado de comércio pelo qual o poder legislativo
dos respectivos Estados seja coarctado quanto à imposição aos
estrangeiros dos mesmos impostos e direitos a que o seu próprio
povo está sujeito, ou que proíba a exportação ou importação de
qualquer espécie de mercadorias ou artigos; de estabelecer regras
para decidir em todos os casos que apreensões em terra ou no mar
serão legais, e de que maneira deverão ser partilhados ou apropriados
os bens apresados pelas forças terrestres ou navais ao serviço dos
Estados Unidos; de conceder cartas de corso e represálias em tempo
de paz; de instituir tribunai para julgar as piratarias e felonias
cometidas no alto mar e estabelecer tribunais para conhecerem e
decidirem dos recursos finais em todos os casos de capturas, desde
que nenhum membro do Congresso seja nomeado juiz de nenhum
dos ditos tribunais.
Os Estados Unidos em Congresso devem também ser a última
instância de apelo em todas as disputas e divergências actualmente

[783]
subsistentes, ou que possam surgir a partir de agora entre dois ou
mais Estados, a respeito de fronteiras, jurisdição, ou qualquer outra
causa; a sua autoridade deve ser sempre exercida da maneira que
se segue. Sempre que a autoridade legislativa ou executiva ou agente
legal de qualquer Estado em controvérsia com um outro apresente
uma petição ao Congresso explanando o assunto em questão e
solicitando ser ouvida, esse facto deve ser comunicado, por ordem
do Congresso, à autoridade legislativa ou executiva do outro Estado
que é parte da controvérsia, e marcado um dia para a apresentação
das partes representadas pelos seus agentes legais, sendo-lhes então
ordenado que nomeiem, por mútuo acordo, comissários ou juízes
para constituir um tribunal para ouvir e decidir o assunto em questão.
Mas se não puderem pôr-se de acordo, o Congresso deve indicar
três pessoas de cada um dos Estados dos Estados Unidos, e da lista
dessas pessoas cada parte eliminará alternadamente uma, começando
pelos que apresentaram a petição, até que o número fique reduzido
a treze; e desse número devem ser tirados à sorte, em presença do
Congresso, não menos de sete e não mais de nove, consoante o
Congresso determinar, e as pessoas cujo nome seja assim obtido,
ou quaisquer cinco de entre elas, serão comissários ou juízes para
ouvir e finalmente decidir a controvérsia, de forma a que a maioria
dos juízes que ouviram a causa concorde com a decisão; e se qualquer
das partes não comparecer no dia indicado, sem apresentar razões
que o Congresso julgue suficientes, ou, estando presente, se recusar
a eliminar nomes, o Congresso procederá à indicação de três pessoas
de cada Estado e o secretário do Congresso riscará os nomes em
vez da parte ausente ou que se recusa a fazê-lo; e o julgamento e
a sentença do tribu al nomeado da maneira anteriormente prescrita
serão finais e conclusivos; e se alguma das partes recusar a submissão
à autoridade desse tribunal, ou recusar comparecer ou defender a
sua reivindicação ou causa, o tribunal deverá apesar disso proferir
a sentença, ou o acórdão, que também deve ser final e decisiva ,
sendo o acórdão ou a sentença, em qualquer dos casos, transmitido
ao Congresso e incluído nas suas actas para segurança das partes
envolvidas; com a condição de que cada comissário, antes de ocupar
o seu lugar de juiz, deverá jurar perante um dos juízes do tribunal

[784]
supremo ou superior do Estado em que a causa venha a ser julgada:
"ouvir e decidir bem e com verdade o assunto em questão, segundo
o seu melhor juízo, sem favor, afeição ou esperança de recompensa";
com a condição também de que nenhum Estado seja privado de
território em benefício dos Estados Unidos.
Todas as controvérsias respeitantes ao direito privado à terra,
reclamadas de acordo com diferentes concessões de dois ou mais
Estados, sendo ajustadas as jurisdições que possam respeitar a essas
terras, e os Estados que fizeram essas concessões, e sendo simulta-
neamente reivindicado que as ditas concessões de qualquer deles
originaram antecedentes para tais determinações de jurisdição,
devem sob petição de qualquer das partes ao Congresso dos Estados
Unidos, ser finalmente decididas de uma maneira tão próxima
quanto possível da que foi precedentemente prescrita para decidir
as disputas a respeito da jurisdição territorial entre diferentes Estados.
Os Estados Unidos em Congresso devem também ter o único
e exclusivo direito e poder de regulamentar a liga metálica e o valor
da moeda cunhada sob a sua autoridade, ou sob a autoridade dos
Estados respectivos; fixar o padrão dos pesos e medidas para todos
os Estados Unidos; regulamentar o comércio e administrar todos
os negócios com os Índios, não membros de nenhum dos Estados,
desde que o direito legislativo de qualquer Estado dentro das suas
próprias fronteiras não seja infringido nem violado; estabelecer ou
regulamentar correios de um Estado para outro, em todos os Estados
Unidos, e cobrar taxas de correio sobre os documentos que transitam
pelos mesmos, do modo que possa ser exigido para pagar as despesas
do dito correio; nomear todos os oficiais das forças terrestres, ao
serviço dos Estados Unidos, com excepção dos oficiais regimentais;
nomear todos os oficiais das forças navais, e comissionar todos e
quaisquer oficiais ao serviço dos Estados Unidos; criar regras para
o governo e regulamentação das ditas forças terrestres e navais, e
dirigir as suas operações.
Os Estados Unidos em Congresso terão autoridade para: nomear
uma comissão, para se reunir durante a suspensão dos trabalhos do
Congresso, com o nome de "Comissão dos Estados", e que deve
contar um delegado por cada Estado; e nomear outras comissões

[785)
e funcionários civis que possam ser necessários para a administração
dos assuntos gerais dos Estados Unidos sob a sua direcção; nomear
um de entre esse número para presidir, desde que a ninguém seja
permitido servir no cargo de presidente por mais de um ano em
qualquer período de três anos; determinar as somas de dinheiro
necessárias para o serviço dos Estados Unidos, e recolher e aplicar
as mesmas para o pagamento das despesas públicas; contrair
empréstimos, ou emitir títulos de crédito dos Estados Unidos,
enviando, de seis em seis meses, aos respectivos Estados um relatório
das importâncias assim contraídas por empréstimo ou emitidas;
construir e equipar uma marinha; decidir quanto aos efectivos das
forças terrestres e requisitar a cada Estado a respectiva quota-parte,
proporcionalmente ao número de habitantes brancos de cada Estado
e a requisição deve er obrigatória e com base na qual a legislatura
de cada Estado deve nomear os oficiais regimentais, recrutar os
homens e fardá-los, armá-los e equipá-los como soldados, às custas
dos Estados Unidos, devendo os oficiais e homens assim fardados,
armados e equipados marchar para o lugar designado, e dentro do
período acordado pelos Estados Unidos em Congresso. Mas se os
Estados Unidos em Congresso, tendo em consideração as circunstân-
cias, acharem bem que um Estado não deva recrutar homens, ou
que deva recrutar um número menor do que a sua quota-parte, e
que outro Estado deva recrutar um número maior do que a quota-
-parte respectiva, esse número adicional deve ser recrutado, provido
de oficiais, fardado, armado e equipado da mesma maneira do que
a quota-parte desse Estado, a menos que a legislatura deste ache
que esse número adicional não pode ser dispensado com segurança,
caso em que deve recrutar oficiais, fardar, armar e equipar a parte
desse número adicional que com segurança se possa dispensar.
E os oficiais e os homens assim fardados, armados e equipados,
devem marchar para o lugar designado dentro do período acordado
pelos Estados Unidos em Congresso.
Os Estados Unidos em Congresso nunca deverão entrar em
guerra, nem conceder cartas de corso e represálias em tempo de paz,
nem tomar parte em nenhum tratado ou aliança, nem cunhar moeda
ou regulamentar o valor desta, nem determinar as sornas e despesas

[786]
necessárias para a defesa e bem-estar dos Estados Unidos, ou de qual-
quer um deles, nem emitir títulos de crédito, nem pedir emprés-
timos sobre o crédito dos Estados Unidos, nem afectar dinheiro, nem
decidir sobre o número de vasos de guerra a construir ou comprar,
ou a quantidade de forças terrestres ou navais a recrutar, nem nomear
um comandante em chefe do exército ou da marinha, a menos que
nove Estados concordem; nem deve ser decidida nenhuma outra
questão, a não ser que ela seja constantemente adiada, por menos da
maioria dos votos dos Estados Unidos em Congresso.
O Congresso dos Estados Unidos deve ter poder para adiar as
suas sessões para qualquer momento do ano e para transferi-las passa
qualquer lugar no interior dos Estados Unidos, de tal modo que
nenhum período de adiamento seja mais longo do que seis meses, e
deve publicar mensalmente o diário das suas sessões, excepto as partes
destas que respeitem a tratados, alianças ou operações militares, que
na sua opinião requeiram segredo; e os votos pró e contra dos delegados
de cada Estado acerca de cada questão devem ser registados no diário,
quando qualquer delegado assim o deseje; e os delegados de um
Estado, ou um qualquer de entre eles, a seu pedido devem receber
uma cópia do referido diário, com excepção das partes acima men-
cionadas, para ser apresentada à legislatura dos vários Estados.

Artigo X. A Comissão dos Estados, ou quaisquer nove de


entre eles, devem ser autorizados a usar, no período de suspensão
dos trabalhos do Congresso, os poderes com que o Congresso dos
Estados Unidos em Congresso, pelo consentimento de nove Estados,
achar por bem investi-los, com a condição de não ser delegado a
essa comissão nenhum poder cujo exercício exija, pelos artigos da
Confederação, a aprovação de nove Estados no Congresso dos
Estados Unidos.

Artigo XI. O Canadá, querendo aceder a esta Confederação,


e associando-se às medidas dos Estados Unidos, deve ser admitido
nela e ter direito a todas as vantagens desta união, mas nenhuma
outra colónia deve ser admitida na Confederação, a menos que essa
admissão tenha a concordância de nove Estados.

[787]
Artigo XII. Todos os títulos de crédito emitidos, empré timos
e dívidas contraídas pelo Congresso ou sob a sua autoridade, antes
da união dos Estados Unidos, em conformidade com a presente
Confederação, devem ser julgados e considerados como um com-
promisso dos Estados Unidos, para pagamento e satisfação dos quais
os ditos Estados U "dos e a boa-fé pública se comprometem aqui
solenemente.

Artigo XIII. Cada Estado deve acatar as determinações dos


Estados Unidos em Congresso, em todas as questões que por esta
Confederação lhes estão submetidas. E os Artigos desta Confederação
devem ser inviolavelmente observados por todos os Estados, e a
união deve ser perpétua; nem deve, em momento algum, ser feita
qualquer alteração nenhum deles, a menos que essa alteração seja
acordada num Congresso dos Estados Unidos, e posteriormente
confirmada pelas legislaturas de todos os Estados.
E visto que prouve ao Grande Governador do Mundo inclinar
os corações das legislaturas que respectivamente representamos em
Congresso, para aprovar e nos autorizar a ratificar os ditos artigos
de Confederação e união perpétua, saibam que nós, os delegados
abaixo assinados, em virtude do poder e da autoridade que nos foi
dada para esse fim, pelo presente documento, ratificamos e confir-
mamos total e inteiramente cada um dos ditos artigos de Confedera-
ção e união perpétua, em todas e em cada uma das matérias que
eles contêm. E além disso solenemente prometemos e empenhamos
a fe dos nossos respectivos constituintes em que obedecerão às deter-
minações dos Estados Unidos em Congresso, em todas as questões
que lhes forem submetidas pela dita Confederação. E que os artigos
aqui contidos serão inviolavelmente observados pelos Estados que
respectivamente representamos, e que a união deve ser perpétua.
Em testemunho do que demos as nossas mãos em Congresso. Feito
em Filadélfia no Estado de Pensilvânia no nono dia de Julho do
ano do Senhor de Mil Setecentos e Setenta e Sete, e terceiro da
independência da América.

(788]
CONSTITUIÇÃO
DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA*

PREÂMBULO

N ós, o povo dos Estados Unidos, com o fim de formar uma


União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade
interna, prover à defesa comum, promover o bem-estar geral e
garantir para nós e para os nossos descendentes os beneficias da
Liberdade, decretamos e confirmamos esta Constituição para os
Estados Unidos da América.

AR.TIGOl

SECÇÃO I
O poder legislativo

Todos os poderes legislativos conferidos por esta Constituição


serão confiados a um Congresso dos Estados Unidos, composto
por um Senado e por uma Câmara de Representantes.

* R eproduzido, com permissão, de Constituição dos EUA, trad. de Maria


Goes, Lisboa, USIS, 1993.

[789]
SECÇÃO II
A Câmara dos Representantes

1. A Câmara dos Representantes será constituída por membros


eleitos por dois anos pelo povo dos diversos estados, devendo os
eleitores de cada estado possuir as mesmas qualificações exigidas
para os eleitores da Câmara mais numerosa do órgão legislativo do
respectivo estado.
2. Ninguém poderá ser eleito representante se não tiver atingido
a idade de 25 anos, não for cidadão dos Estados Unidos há sete
anos e não for, aquando da eleição, habitante do estado que o eleger.
3. O número de representantes, assim como os impostos direc-
tos, serão rateados entre os diversos estados que venham a fazer
parte desta União, segundo o número de habitantes, que será deter-
minado adicionando ao número total de pessoas livres, incluindo
as pessoas em estado de servidão por tempo determinado e excluindo
os índios não colectados, três quintos da população restante.
O recenseamento será feito no prazo de três anos após a primeira
sessão do Congresso dos Estados Unidos e, posteriormente, de dez
em dez anos, de acordo com as leis que se adoptarem. O número
de representantes não excederá 1 por 30 000, mas cada estado terá
no mínimo 1 representante; e, enquanto não se fizer o recensea-
mento, o estado de New Hampshire terá direito de eleger 3 repre-
sentantes, Massachusetts 8, Rhode-Island e Providente Plantations
1, Connecticut 5, Nova Iorque 6, Nova Jérsia 4, Pensilvânia 8,
Delaware 1, Marilândia 6, Virgínia 10, Carolina do Norte 5, Carolina
do Sul 5 e Jórgia 3.
4. Quando ocorrerem vagas na representação de qualquer
estado, o poder executivo desse estado fará publicar editais de eleição
com vista ao seu preenchimento.
S. A Câmara dos Representantes elegerá o seu presidente e
demais membros da mesa e terá o poder exclusivo de impugnação
por crime de responsabilidade.

[790]
SECÇÃO III
O Senado

1. O Senado dos Estados Unidos será composto por dois sena-


dores de cada estado, eleitos pelas respectivas legislaturas por seis
anos, e cada senador terá direito a um voto.
2. Imediatamente após se reunirem em consequência da pri-
meira eleição, os senadores serão divididos em três classes iguais ou
aproximadamente iguais. Os assentos dos senadores da primeira classe
serão declarados vagos no termo do segundo ano, dos da segunda
classe no termo do quarto ano e dos da terceira classe no termo do
sexto ano, de modo que um terço do Senado possa ser eleito em
cada dois anos; e, se ocorrerem vagas por renúncia, ou qualquer outra
causa, sempre que a assembleia estadual não estiver em sessão, o
executivo estadual poderá proceder a nomeações temporárias. até à
sessão seguinte da assembleia, que então preencherá as vagas.
3. Não poderá ser senador quem não tiver atingido a idade de
30 anos, não for há nove anos cidadão dos Estadas Unidas e, à data
da eleição, habitante do estado que o escolher.
4. O vice-presidente dos Estados Unidas será o presidente do
Senado, mas sem direito a voto, excepto em caso de empate.
S. O Senado escolherá os demais membros da mesa, e também
um presidente pro tempore, na ausência do Vice-presidente, ou
quando este assumir o cargo de presidente dos Estados Unidos.
6. O Senado terá o poder exclusivo de julgar as acusações
deduzidas por crimes de responsabilidade [impeachments]. Quando
reunidos para esse fim, os senadores prestarão juramento ou com-
promisso. Quando for o presidente dos Estados Unidos a ser julgado,
é o presidente do Supremo Tribunal que deverá presidir, e nenhuma
pessoa será condenada sem a aprovação de dois terços dos membros
presentes.
7. A sentença por crime de responsabilidade não poderá exceder
a destituição da função e a incapacidade para exercer qualquer fun-
ção pública, honorífica ou remunerada, nos Estados Unidos, mas
a parte condenada estará sujeita, no entanto, a acusação, julgamento,
sentença e punição em conformidade com a lei.

[791]
SECÇÃO IV
Organização do Congresso

1. As épocas, locais e processos de realizar eleições para senadores


e representantes serão prescritos, em cada estado, pelo respectivo
órgão legislativo; mas o Congresso pode, em qualquer altura, fixar
ou alterar por meio de lei tais normas excepto quanto aos locais
de eleição dos senadores.
2. O Congresso reunir-se-á pelo menos uma vez por ano e
essa reunião realizar-se-á na primeira segunda-feira de Dezembro,
a menos que, por lei, seja designado um dia diferente.

SECÇÃO v

1. Cada uma das Câmaras ajuizará das eleições, votações e qua-


lificações dos seus próprios membros e, em cada uma delas, a maioria
constituirá quorum suficiente abara deliberar; mas um número inferior
de membros pode prorrogar a sessão dia a dia e ser autorizado a
compelir os membros ausentes a comparecerem, do modo e em
conformidade com as penalizações que cada Câmara estabelecer.
2. Cada uma das Câmaras é competente para elaborar o seu
regimento interno, punir os seus membros por conduta irregular
e, com a aprovação de dois terços, expulsar um dos seus membros.
3. Cada uma das Câmaras lavrará actas dos seus trabalhos, que
serão publicadas periodicamente, exceptuando as partes que no seu
entendimento requeiram segredo; e os votos, pró e contra, dos
membros de qualq er das Câmaras, sobre qualquer questão, serão
consignados em acta, a pedido de um quinto dos membros presentes.
4. Durante as sessões do Congresso, nenhuma das Câmaras
poderá, sem o consentimento da outra, suspender os trabalhos por
mais de três dias, nem realizá-los em qualquer outro local que não
seja aquele onde ambas as Câmaras estejam.

[792]
SECÇÃO VI

1. Os senadores e representantes receberão uma compensação


pelos seus serviços, a estabelecer por lei e paga pelo Tesouro dos
Estados Unidos. Durante a sua permanência nas sessões e no percurso
de e para as Câmaras não poderão ser presos, excepto por traição,
rebelião ou perturbação da paz; e fora do recinto das Câmaras não
serão obrigados a responder a interpelações sobre os seus discursos
ou debates.
2. Nenhum senador ou representante poderá, durante o período
·do seu mandato, ser nomeado para qualquer cargo público do
Governo dos Estados Unidos que tenha sido criado ou cuja remu-
neração foi aumentada durante esse período; e nenhuma pessoa
·que ocupe um cargo no Governo dos Estadas Unidos poderá ser
membro de qualquer das Câmaras enquanto permanecer no exercício
desse cargo.

SECÇÃO VII

1. Todos os projectos de lei respeitantes a aumentos de receita


devem ter origem na Câmara dos Representantes; mas o Senado
poderá propor ou apresentar emendas, como em outros projectos
de lei.
2. Todo o projecto de lei aprovado pela Câmara dos Repre-
sentantes e pelo Senado deverá, antes de se tornar lei, ser enviado
ao presidente dos Estados Unidos; se este o aprovar, assiná-lo-á,
mas, caso contrário, devolvê-lo-á com menção das suas objecções
à Câmara que teve a iniciativa do projecto, a qual registará as objec-
ções em acta e debaterá o projecto de novo. Se, após esse debate,
dois terços da Câmara em causa votarem pela manutenção do pro-
jecto, este será enviado, juntamente com as objecções, à outra
Câmara, que procederá também a novo debate, e, se o aprovar por
dois terços dos votos, o projecto tornar-se-á lei. Mas, em todos
estes casos, os votos em ambas as Câmaras revestirão a forma de
«sim» ou de «não», registando-se no livro de actas das respectivas

[793]
Câmaras os nomes dos membros que votaram a favor ou contra o
projecto de lei. Se qualquer projecto não for devolvido pelo
presidente no prazo de dez dias (excluídos os domingos) depois de
lhe ter sido presente, tornar-se-á lei, tal como se ele o tivesse assinado,
a não ser que o Congresso, suspendendo os trabalhos, impossibilite
a sua devolução, caso em que o projecto não passará a lei.
3. Qualquer disposição, resolução ou deliberação para a qual
seja necessário o concurso do Senado e da Câmara dos Represen-
tantes (excepto em matéria de suspensão das sessões) será enviada
ao presidente dos Estados Unidos; e, antes de entrar em vigor,
deverá ser por ele aprovada, ou, se o não for, deverá ser confirmada
por dois terços do Senado e da Câmara dos Representantes, em
conformidade com as regras e limitações prescritas para os projectos
de lei.

SECÇÃO VIII

O Congresso terá competência para:


1. Aplicar e arrecadar taxas, direitos alfandegários, impostos e
tributos, pagar dívidas e prover a defesa comum e o bem-estar geral
dos Estados Unidos; mas todos os direitos alfandegários, impostos
e tributos serão uniformes em todo o território das Estados Unidos.
2. Contrair empréstimos sobre o crédito dos Estados Unidos.
3. Regular o comércio com as nações estrangeiras, entre os
diversos estados e com as tribos índias.
4. Estabelecer uma lei uniforme de naturalização e leis unifor-
mes de falência para todo o país.
S. Cunhar moeda, regular o seu valor e o das divisas estrangeiras
e determinar o padrão de pesos e medidas.
6. Prover a punição dos falsificadores de títulos do Tesouro e
da moeda corrente dos Estados Unidos.
7. Estabelecer agências e estradas para o serviço postal.
8. Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo
aos autores e inventores, por tempo limitado, o direito exclusivo
aos seus escritos e invenções.

[794]
9. Criar tribunais inferiores ao Supremo Tribunal.
10. Definir e punir actos de pirataria e crimes cometidos no
alto mar e infracções ao direito das nações.
11. Declarar guerra, conceder cartas de corso e estabelecer
regras para apresamentos em terra e no mar.
12. Organizar e manter exércitos, estando porém vedada a aber-
tura de crédito para esse fim por períodos superiores a dois anos.
13. Organizar e manter uma Armada.
14. Regulamentar a administração e a disciplina das forças
terrestres e navais.
15. Organizar a mobilização da Milícia para garantir o cum-
primento das leis da União, reprimir insurreições e repelir invasões.
16. Prover a organização, armamento e disciplina da Milícia e
a administração do seu efectivo que seja afectado ao serviço dos
Estados Unidos, reservando-se aos estados a nomeação dos oficiais
e a autoridade para treinar a Milícia segundo a disciplina prescrita
pelo Congresso.
17. Legislar em exclusivo sobre qualquer matéria no distrito
(não superior a 10 milhas quadradas) que, por cedência de certos
estados e aceitação do Congresso, se torne a sede do Governo dos
Estados Unidos e assumir a autoridade sobre todas as áreas adquiridas
com o consentimento da Assembleia do estado em que se situem,
para a construção de fortes, armazéns, arsenais, estaleiros e outros
edifícios úteis.
18. Elaborar todas as leis necessárias e adequadas ao exercício
dos poderes acima mencionados e de todos os outros Poderes
conferidos pela presente Constituição ao Governo dos Estados
Unidos, ou a qualquer seu departamento ou funcionário.

SECÇÃO IX
Poderes vedados ao Congresso

1. A migração ou importação de indivíduos que qualquer dos


actuais estados julgar conveniente admitir não será proibida pelo
Congresso antes do ano de 1808, mas poderá ser lançado um imposto

[795]
ou direito sobre es a importação, não superior a 10 dólares por
pessoa.
2. Não poderá ser suspenso o privilégio do habeas corpus, excepto
quando, em casos de rebelião ou invasão, a segurança pública assim
o eXIgrr.
3. Não poderão ser aprovados decretos de proscrição que
condenem sem julgamento nem leis penais com efeito retroactivo.
4. Não será lançado imposto por capitação, ou outra forma de
imposto directo, a não ser na proporção do recenseamento da
população, em conformidade com as disposições aqui contidas.
5. Não serão lançados impostos ou direitos aduaneiros sobre
bens exportados de qualquer estado.
6. Nenhuma preferência será dada, por qualquer regulamentação
comercial ou fiscal, a portos de um estado sobre os de outro; nem
poderá qualquer navio, procedente de ou com destino a um estado,
ser obrigado a aportar, pagar direitos de trânsito ou alfandegários
em outro.
7. Nenhum dinheiro poderá ser retirado do Tesouro senão em
consequência de dotações aprovadas por lei; e será publicado
periodicamente um relatório e registo de todas as receitas e despesas
públicas.
8. Nenhum título de nobreza será conferido pelos Estados
Unidos: e nenhuma pessoa que exerça um cargo público remunerado
ou honorífico poderá, sem o consentimento do Congresso, aceitar
dádivas, emolumentos, cargos ou títulos, quaisquer que sejam,
oferecidos por reis, príncipes ou estados estrangeiros.

SECÇÃO X
Poderes vedados aos estados

1. Nenhum estado pode ser parte em tratados, alianças ou


confederações; conceder cartas de corso; cunhar moeda; emitir
títulos do Tesouro; autorizar o uso de qualquer coisa que não seja
ouro e prata para saldar dívidas; aprovar actos legislativos que
condenem sem julgamento, leis penais com efeito retroactivo, ou

[796]
leis que prejudiquem as obrigações dos contratos; ou conferir títulos
de nobreza.
2. Nenhum estado poderá, sem o consentimento do Congresso,
lançar impostos ou direitos sobre importações ou exportações,
excepto os absolutamente necessários à execução das suas leis de
inspecção; e o produto líquido de todos os direitos e impostos
lançados por um estado sobre as importações ou exportações passará
para o Tesouro dos Estados Unidos; e todas as leis dessa natureza
ficarão sujeitas à revisão e controlo do Congresso.
3. Nenhum estado poderá, sem o consentimento do Congresso,
lançar qualquer direito de tonelagem, manter tropas ou navios de
guerra em tempo de paz, celebrar acordos ou pactos com outro
estado, ou com potências estrangeiras ou entrar em guerra, excepto
quando invadido ou o perigo seja tão iminente que não admita
demora.

ARTIGO 2. 0

SECÇÃO I
O poder executivo

1. O poder executivo será investido em um presidente dos


Estados Unidos da América. Este exercerá o seu cargo por um
mandato de quatro anos e, juntamente com o vice-presidente,
escolhido por período igual, será eleito como se segue:
2. Cada estado nomeará, de acordo com o procedimento
determinado pelo respectivo órgão legislativo, um número de
eleitores igual ao número total de senadores e deputados a que tem
direito no Congresso; mas nenhum senador ou deputado, ou pessoa
que ocupe um cargo remunerado ou honorífico na Administração
dos Estados Unidos, poderá ser nomeado eleitor.
3. [Os eleitores reunir-se-ão nos seus respectivos estados e
designarão, por voto secreto, duas pessoas, uma das quais, pelo
menos, não será habitante desse mesmo estado. E farão uma lista
de todas as pessoas votadas e do número de votos que cada uma

[797]
teve, lista essa que assinarão e autenticarão, enviando-a selada para
a sede do Governo dos Estados Unidos, dirigida ao presidente do
Senado. O presidente do Senado, na presença do Senado e da
Câmara dos Representantes, procederá à abertura das listas e os
votos serão então contados. Será presidente a pessoa que obtiver o
maior número de votos, se esse número representar a maioria do
total dos eleitores nomeados; e, se houver mais de uma pessoa com
tal maioria e igual número de votos, a Câmara das Representantes
escolherá imediatamente uma delas, por voto secreto, para presidente;
e, se ninguém obtiver uma maioria, a mesma Câmara elegerá o
presidente, por processo igual de entre os cinco mais votados das
listas. Mas, quando for a Câmara dos Representantes a escolher o
presidente, os votos serão por estados, tendo os deputados de cada
estado direito a um voto; o quorum necessário para este fim consistirá
de um ou mais membros de dois terços dos estados, sendo necessária
uma maioria de todos os estados para haver escolha. Em qualquer
dos casos, após a eleição do presidente, a pessoa com maior número
de votos dos eleitores será o vice-presidente. Mas, se houver duas
ou mais com igual número de votas, o Senado escolherá dentre
elas, por voto secreto, o vice-presidente.]
4. O Congresso pode fixar a época da escolha dos eleitores e
o dia em que estes deverão votar; esse dia será o mesmo em todos
os Estados Unidos.
S. Nenhuma pessoa, excepto os cidadãos originários ou que
sejam cidadãos dos Estados Unidos aquando da adopção desta Cons-
tituição, será elegível para o cargo de presidente nem será elegível
para esse cargo uma pessoa que não tenha atingido os 35 anos de
idade nem seja residente há catorze anos nos Estados Unidos.
6. No caso de destituição do presidente, ou da sua morte,
renúncia ou incapacidade para exercer os poderes e obrigações do
dito cargo, o mesmo será entregue ao vice-presidente; e o Congresso
pode, através de lei, em caso de destituição, morte, renúncia ou
incapacidade tanto do presidente como do vice-presidente, deter-
minar qual o funcionário que deverá actuar na qualidade de presi-
dente, que assim agirá até cessar o impedimento ou ser eleito outro
presidente.

[798]
7. O presidente receberá, em épocas determinadas, urna remu-
neração pelos seus serviços, qu e não poderá ser aumentada ou
reduzida durante o período para o qual foi eleito, e não receberá,
durante esse período, qualquer outro emolumento dos Estados
Unidos ou de qualquer dos seus estados.
8. Antes de tomar posse do cargo fará o seguinte juramento
ou afirmação: <1uro (ou afirmo) solenemente que desempenharei
fielmente o cargo de presidente dos Estados Unidos e que empregarei
o máximo da minha capacidade para preservar, proteger e defender
a Constituição dos Estados Unidos. »

SECÇÃO II

1. O presidente será o comandante supremo do Exército e


Armada dos Estados Unidos e da Milícia dos diversos estados,
quando convocada para o serviço dos Estados Unidos; ele poderá
pedir a opinião, por escrito, do chefe de cada um dos departamentos
do executivo sobre assuntos relativos às suas atribuições e terá poder
para conceder indultos e perdões por delitos contra os Estados
Unidos, excepto nos casas de impugnação por crimes de responsa-
bilidade.
2. Ele terá poder, mediante parecer e aprovação do Senado,
para celebrar tratados, desde que dois terços dos senadores presentes
concordem; e poderá indigitar e, após parecer e aprovação do
Senado, nomear embaixadores, outros ministros e cônsules, juízes
do Supremo Tribunal e todos os outros funcionários dos Estados
Unidos cuja nomeação não esteja aqui prevista e venha a ser
estabelecida por lei; mas o Congresso pode, por lei, atribuir ao
presidente, aos tribunais de justiça ou aos chefes de departamento
a nomeação dos funcionários subalternos, conforme julgar mais
conveniente.
3. O presidente terá poder para preencher todas as vagas que
possam ocorrer durante a susp ensão dos trabalhos do Senado,
procedendo a nomeações que expirarão no fim da sessão seguinte.

[799]
SECÇÃO III

O presidente deverá, periodicamente, prestar ao Congresso


informações sobre o Estado da União e submeter à sua consideração
as medidas que julgue necessárias e convenientes; pode, em ocasiões
extraordinárias, convocar ambas as Câmaras, ou uma delas, e, em
caso de divergências entre elas em relação ao momento de suspensão
dos trabalhos, determinar esse momento para a data que julgue
mais conveniente; receberá embaixadores e outros diplomatas, zelará
pelo fiel cumprimento das leis e delegará autoridade a todos os
funcionários dos Estados Unidos.

SECÇÃO IV

O presidente, o vice-presidente e todos os funcionários civis


dos Estados Unido serão afastadas de suas funções em caso de
acusação e condenação por traição, suborno ou outros crimes graves
e delitos.

ARTIGO 3. 0

SECÇÃO I
O poder judicial

O poder judicial dos Estados Unidos será atribuído a um


Supremo Tribunal e a tribunais inferiores que forem oportunamente
definidos e estabelecidos pelo Congresso. Os juízes tanto do Supremo
como do tribunais inferiores manter-se-ão nos seus cargos enquanto
bem servirem e rece erão por períodos determinados uma remu-
neração pelos seus serviços, que não poderá ser reduzida durante
a sua permanência no cargo.

[800)
SECÇÃO II

1. O exercício do poder judicial, pela aplicação da lei e da equi-


dade, estender-se-á a todas as causas desta Constituição, às.leis dos
Estados Unidos e aos tratados celebrados ou a celebrar sob sua auto-
ridade; a todas as causas que envolvam embaixadores, outros ministros
e cônsules; a todas as causas do almirantado e de jurisdição marítima;
aos litígios em que os Estados Unidos sejam parte; aos litígios entre
dois ou mais estados; entre um estado e cidadãos de um outro estado;
entre cidadãos de diferentes estados, entre cidadãos do mesmo estado
reivindicando terras por concessões de outros estados e entre um
estado, ou os seus cidadãos, e estados estrangeiros, cidadãos ou súbditos.
2. Em todas as causas que envolvam embaixadores, outros
ministros e cônsules, e naquelas em que um estado for parte, o
Supremo Tribunal terá jurisdição originária. Nos demais casos
acima mencionados, o Supremo Tribunal terá jurisdição de recurso,
em matéria de direito e de facto, em conformidade com as excepções
e normas que o Congresso estabelecer.
3. O julgamento de todos os crimes, excepto em casos de
crime de responsabilidade, será feito por júri e esse julgamento
realizar-se-á no estado em que os crimes tiverem sido cometidos;
mas, quando não sejam cometidos em nenhum dos estados, o julga-
mento ocorrerá na localidade ou localidades que o Congresso
designar por lei.

SECÇÃO III

1. Traição contra os Estados Unidos consistirá, unicamente,


em lhes fazer guerra, ou em aliar-se aos seus inimigos, prestando-
-lhes auxílio e apoio. Ninguém será condenado por traição a não
ser através do depoimento de duas testemunhas sobre o mesmo
acto, ou de confissão em sessão pública do tribunal.
2. O Congresso terá poder para fixar a pena por crime de
traição, mas fica vedada a morte civil ou a confiscação de bens que
não ocorra durante a vida do condenado.

[801]
ARTIGO 4. 0

SECÇÃO I
Relação entre os estados

Cada estado dará inteira fe e crédito aos actos públicos, registos


e processos judiciais de todos os outros estados. E o Congresso pode,
através de leis gerais, prescrever o modo pelo qual tais actos, registos
e processos devam ser provados e os efeitos que possam produzir.

SECÇÃO II

1. Os cidadãos de cada estado terão direito aos mesmos privilé-


gios e imunidades que os cidadãos dos outros estados.
2. Uma pessoa acusada em qualquer estado por prática de
traição ou outro crime, que fuja à justiça e seja encontrada em outro
estado será, a pedido da autoridade executiva do estado de onde
tiver fugido, presa e entregue ao estado que tenha jurisdição sobre
o cnme.
3. Nenhuma pessoa sujeita a servidão ou trabalhos em um
estado, segundo as leis aí vigentes, e que se evada para outro estado
poderá, em virtude de lei ou regulamento aí em vigor, ser libertada
da sua condição, antes será entregue mediante reivindicação da
parte a que esteja submetida.

SECÇÃO III
Relações federais-estaduais

1. O Congresso pode admitir novos estados na União, mas


não poderá ser formado ou criado um novo estado dentro da
jurisdição de qualquer outro; nem poderá ser formado qualquer
estado pela junção de dois ou mais estados, ou partes de estados,
sem o consentimento das legislaturas dos estados envolvidos, bem
como do Congresso.

[802]
2. O Congresso terá poder para dispor do território ou de
outras propriedades pertencen tes aos Estados Unidos e, nesse
domínio, elaborar todas as leis e regulamentos necessários; e nada
nesta Constituição será interpretado em prejuízo dos direitos dos
Estados Unidos, ou de qualquer dos estados.

SECÇÃO IV

Os Estados Unidos garantirão a cada estado desta União uma


forma republicana de governo e assumirão a protecção de cada um
deles contra invasões, e, a pedido do órgão legislativo, ou do exe-
cutivo (na impossibilidade de aquele se reunir em sessão), a protecção
contra a violência interna.

5. 0
ARTIGO
Aditamentos à Constituição

O Congresso, sempre que dois terços dos membros de ambas


as Câmaras julgarem necessário, proporá aditamentos a esta Cons-
tituição, ou , a pedido de dois terços dos órgãos legislativos dos
diversos estados, convocará uma convenção para propor aditamentos,
os quais, num e noutro caso, serão considerados válidos para todos
os efeitos como parte desta Constituição, desde que ratificados em
legislaturas de três quartos dos estados, ou por convenções convocadas
para esse fim em três quartos dos estados, segundo o modo de
ratificação proposto pelo Congresso. Fica determinado que nenhum
aditamento proposto antes do ano de 1808 poderá de alguma forma
afectar os números 1 e 4 da secção IX do artigo 1. 0 ; e que nenhum
estado poderá ser privado, sem o seu consentimento, de igualdade
de sufrágio no Senado.

[803]
ARTIGO6. 0
Dívidas nacionais

1. Todas as dividas contraídas e compromissos assumidos antes


da adopção desta Constituição se manterão válidos para os Estados
Unidos no domínio desta Constituição, como o eram para a Confe-
deração.

Supremacia do governo nacional

2. Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos feitas em confor-


midade e todos os tratados celebrados ou por celebrar sob a auto-
ridade dos Estados Unidos constituirão a lei suprema da nação; e
os juízes de todos os Estados a ela estarão sujeitos, não obstante
qualquer disposição em contrário na Constituição ou leis de qualquer
dos Estados.
3. Os senadores e deputados acima mencionados, os membros
dos órgãos legislativos dos diversos Estados e todos os funcionários
dos poderes executivo e judicial, tanto dos Estados Unidos como
dos diferentes Estados, obrigar-se-ão, por juramento ou declaração
solene, a defender esta Constituição mas nenhum requisito religioso
poderá ser exigido como qualificação para o preenchimento de
qualquer cargo público dos Estados Unidos.

7. 0
ARTIGO
Ratificação da Constituição

A ratificação através de convenções de nove Estados será sufi-


ciente para a adopção desta Constituição nos Estados que a tiverem
ratificado.
Elaborado em convenção, com a aprovação unânime dos Estados
presentes, no dia 17 de Setembro do ano de N osso Senhor de 1787
e décimo-segundo da independência dos Estados Unidos da Amé-
rica. Em testemunho do que, assinamos abaixo os nossos nomes.

(804]
G. WASHINGTON
Presidente e deputado da Virgínia

DELAWARE NEW HAMPSHIRE


Geo. Read John LAngdon
Gunning Be4ford jun Nicho/as Gilman
John Dickinson
Richard Bassett MASSACHUSETTS
Jaco. Brown Nathaniel Gorham
Rufus King
MARJLÂNDIA
James McHenry CONNECTICUT
Dan oJ St. Thos. ]enifer Wm. Sam/. Johnson
Dan/ Carrol/ Roger Sherman

VIRGÍNIA NOVA IORQUE


John Blair Alexander Hamilton
James Madison, ]r.
NOVAJÉRSIA
CAROLINA DO NORTE Wil. Livingston
Wm. Blount David Brearley
Richd. Dobbs Spaight Wm. Paterson
Humano Williamson ]ona Dayton

CAROLINA DO SUL PENSILVÂNIA


]. Rutledge B. Franklin
Charles Cotesworth Pinckney Thomas Mijjlin
Charles Pinckney Robt Morris
Pierce Butler Geo. Clymer
Thos. Fitzsimons
JÓRGIA ]ared Ingersoll
Wiliiam Few James Wilson
Abr. Baldwin Gouv Morris
Atesta William Jackson, secretário

[805]
ÍNDICE

NOTA DE APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO GULBENKIAN DE O


FEDERALISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA DE O FEDERALISTA 7

A FILOSOFIA CONSTITUCIONAL DO FEDERALISMO


Estudo Introdutório à edição portuguesa de O Federalista 15

AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

NOTA À EDIÇÃO PORTUGUESA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

0
O FEDERALISTA N. 1 Introdução Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
0
o FEDERALISTA N. 2 Acerca dos Perigos da Força e da Influência
Estrangeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
o FEDERALISTA N . 3 Acerca dos Perigos da Força e da Influência
0

Estrangeiras (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
o FEDERALISTA N. 0 4 Acerca dos Perigos da Força e da Influência
Estrangeiras (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
o FEDERALISTA N. 0 5 Acerca dos Perigos da Força e da Influência
Estrangeiras (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
0
o FEDERALISTA N. 6 Acerca dos Perigos de Conflito entre os
Estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
o FEDERALISTA N. 0 7 Acerca dos Perigos de Conflito entre os Esta-
dos (continuação) com a Enumeração de Casos Particulares 91

[807)
o FEDERALISTA N.
0
8 Consequências das Hostilidades entre os
Estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
0
o FEDERALISTA N. 9 A Utilidade da União como Salvaguarda
contra a Facção e Insurreições Domésticas . . . . . . . . . . . . . 109
0
o FEDERALISTA N. 10 A Utilidade da União como Salvaguarda
contra a Facção e Insurreições Domésticas (continuação) . . . 117
o FEDERALISTA N. 0 11 A Utilidade da União .no que respeita às
Relações Comerciais e a uma Marinha . . . . . . . . . . . . . . . . 129
o FEDERALISTA N. 12 A Utilidade da União no que respeita à
0

Receita Pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139


o FEDERALISTA N. 13 Vantagem da União no que respeita à
0

Economia na Governação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147


o FEDERALISTA N. 14 Resposta a Objecções colocadas à Cons-
0

tituição Proposta a partir da Extensão do Território . . . . . . . 151


o FEDERALISTA N. 0 15 Insuficiência da Actual Confederação para
Preservar a União . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
o FEDERALISTA N. 16 Insuficiência da Actual Confederação para
0

Preservar a União (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171


0
o FEDERALISTA N. 17 Insuficiência da Actual Confederação para
Preservar a União (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
o FEDERALISTA N.
0
18 Insuficiência da Actual Confederação para
Preservar a União (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
o FEDERALISTA N. 0 19 Insuficiência da Actual Confederação para
Preservar a União (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
0
O FEDERALISTA N. 20 Insuficiência da Actual Confederação para
Preservar a União (continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
0
O FEDERALISTA N. 21 Outros Defeitos da Actual Confederação 207
0
o FEDERALISTA N. 22 Outros Defeitos da Actual Confederação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
o FEDERALISTA N. 0 23 Necessidade de um Governo pelo menos
tão Enérgico como o Proposto, para a Preservação da União 227
0
o FEDERALISTA N. 24 Considerações Adicionais sobre os Poderes
Necessários para a Defesa Comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
0
O FEDERALISTA N. 25 Considerações Adicionais sobre os Poderes
Necessários para a Defesa Comum (continuação) . . . . . . . . . 241

[808]
o FEDERALISTA N.
0
26 Consideração da Ideia de Restringir a
Autoridade Legislativa no que concerne à Defesa Comum . . 249
0
o FEDERALISTA N . 27 Consideração da Ideia de Restringir a
Auto ridade Legislativa no que concerne à Defesa Comum
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257
0
o FEDERALISTA N. 28 Consideração da Ideia de Restringir a
Autoridade Legislativa no que concerne à Defesa Comum
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
0
O FEDERALISTA N. 29 (35] Acerca da Milícia . . . . . . . . . . . . . . 269
0
O FEDERALISTA N . 30 (29] Acerca do Poder Geral de Tribu-
tação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
0
O FEDERALISTA N . 31 (30] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
0
o FEDERALISTA N . 32 (31] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
0
O FEDERALISTA N. 33 (31] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297
0
o FEDERALISTA N. 34 (32] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
0
O FEDERALISTA N . 35 (33] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
0
O FEDERALISTA N. 36 (34] Acerca do Poder Geral de Tributação
(continuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319
0
O FEDERALISTA N. 37 (36] Acerca das Dificuldades da Convenção
em Delinear uma Adequada Forma de Governo . . . . . . . . . 329
0
O FEDERALISTA N. 38 (37] Continuação do Assunto Anterior e
Exposição da Incoerência das Objecções ao Novo Plano . . . 339
o 0
FEDERALISTA N . 39 [38] Conformidade do Plano com os Prin-
cípios Republicanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
0
O FEDERALISTA N. 40 (39] Exame e Defesa dos Poderes da
Convenção para Formar um Governo Misto . . . . . . . . . . . . 361
0
o FEDERALISTA N. 41 (40] Observação Geral dos Poderes Con-
feridos pela Constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
0
O FEDERALISTA N. 42 (41] Considerações Adicionais sobre os
Poderes Conferidos pela Constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . 385

[809)
o FEDERALISTA N.
0
43 (42] Considerações Adicionais sobre os
Poderes Conferidos pela Constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . 395
o FEDERALISTA N .0 44 (43] Restrições à Autoridade dos Diferentes
Estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
o FEDERALISTA N . 0 45 (44] Consideração do Alegado Perigo
para os Governos Estaduais Decorrentes dos Poderes da
União . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
o FEDERALISTA N. 0 46 (45] Comparação entre a Influência dos
Governos Estadual e Federal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427
o FEDERALISTA N. 0 47 (46] A Estrutura Específica do Novo Governo
e a Distribuição de Poder entre as suas Diferentes Partes . . . . 437
o FEDERALISTA N. 48 (47] Os Departamentos do Novo Governo
0

não Devem ser tão Separados ao Ponto de Perderem o Controlo


Constitucional de Uns sobre os Outros . . . . . . . . . . . . . . . . 447
o FEDERALISTA N . 49 (48] Acerca do Método de Defesa contra
0

as Intromissões de Qualquer um dos Departamentos de Governo


através do Apelo ao Povo pela Convocação de uma Con-
venção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 455
o FEDERALISTA N .0 5 (49] Consideração dos Apelos Periódicos
ao Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461
o FEDERALISTA N .0 51 [50] A Estrutura do Governo Deve Fornecer
os Freios e Contrapesos (Checks and balances) Adequados entre
os Diversos Departamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 467
o FEDERALISTA N . 52 (51] A Câmara dos Representantes . . . . .
0
475
o FEDERALISTA N. 0 53 (52] A Câmara dos Representantes (conti-
nuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483
o FEDERALISTA N. 0 54 (53] Distribuição dos Membros da Câmara
dos Representantes entre os Estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . 491
0
o FEDERALISTA N. 55 (54] O Número Total dos Membros da
Câmara dos Representantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 499
o FEDERALISTA N .0 56 (55] O Número Total dos Membros da
Câmara dos Representantes (continuação) . . . . . . . . . . . . . . 507
o FEDERALISTA N .0 57 (56] A Alegada Tendência do Novo Plano
para Elevar os Poucos à Custa dos Muitos Considerada em
Relação com a Representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513

[810]
0
o FEDERALISTA N. 58 [57] Consideração da Objecção segundo a
qual o Número de R epresentantes não será Aumentado à
Medida que o Crescimento da População o Exija . . . . . . . . 521
o FEDERALISTA N. 0 59 [58] Sobre o Poder do Congresso na
Regulamentação da Eleição dos seus Membros . . . . . . . . . . 529
0
O FEDERALISTA N. 60 [59] Sobre o Poder do Congresso na
Regulamentação da Eleição dos seus Membros (continuação) 537
o FEDERALISTA N. 0 61 [60] Sobre o Poder do Congresso na Regu-
lamentação da Eleição dos seus Membros (continuação) . . . . 545
0
O FEDERALISTA N. 62 (61) 0 Senado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551
0
o FEDERALISTA N. 63 [62] O Senado (continuação) . . . . . . . . . 561
0
O FEDERALISTA N. 64 [63] Os Poderes do Senado . . . . . . . . . . 573
0
O FEDERALISTA N. 65 [64] Os Poderes do Senado (continuação) 581
0
O FEDERALISTA N. 66 [65] Consideração suplementar das Objecções
ao Poder do Senado para se Constituir como Tribunal para
Crimes de Responsabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 589
0
O FEDERALISTA N. 67 [66] O Departamento Executivo . . . . . . 597
0
o FEDERALISTA N. 68 [67] O Modo de Eleição do Presidente . 603
0
o FEDERALISTA N. 69 [68] A Verdadeira Natureza do Executivo 609
0
o FEDERALISTA N . 70 [69] Considerações Adicionais sobre o
Departamento Executivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 619
0
O FEDERALISTA N. 71 (70) A Duração do Mandato dos Magistrados
Executivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 631
o FEDERALISTA N. 0 72 [71] Continuação do mesmo Assunto e
Consideração da Reelegibilidade do Executivo . . . . . . . . . . 637
0
o FEDERALISTA N. 73 [72] A Disposição para o Sustento do
Executivo e o Poder de Veto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 645
o FEDERALISTA N. 0 74 [73] O Comando das Forças Terrestres e
Navais e o Poder de Perdão do Executivo . . . . . . . . . . . . . . 653
0
o FEDERALISTA N. 75 [74] O Poder de Celebrar Tratados do
Executivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 657
o FEDERALISTA N. 0 76 [75] O Poder de Nomeação do Executivo 665
0
o FEDERALISTA N. 77 [76] Continuação da Análise do Poder de
Nomeação e Consideração de Outros Poderes do Executivo 673
0
O FEDERALISTA N. 78 (77) 0 Departamento Judicial . . . . . . . . 681

[811]
o FEDERALISTA N. 79 O Departamento Judicial (continuação) .
0
693
o FEDERALISTA N . 80 Os Poderes do Departamento Judicial . . .
0
697
o FEDERALISTA N. 0 81 Continuação do Exame do Departamento
Judicial e da Distribuição da Respectiva Autoridade . . . . . . . 707
0
o FEDERALISTA N . 82 O Departamento Judicial (continuação) . 721
o FEDERALISTA N . 83 Continuação da Consideração do Departa-
0

mento Judicial. A sua Relação com o Julgamento por Júri . . 727


0
o FEDERALISTA N. 84 Consideração e Resposta a Objecções Gerais
e Diversas Colocadas à Constituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . 747
0
O FEDERALISTA N . 85 Observações Finais 761

APÊNDICES
Declaração de Independência 773
Artigos da Confederação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 779
Constituição dos Estados Unidos da América 789

ÍNDICE 807

(81'2]
Esta 2. • edição de O FEDERAUSTA foi composta,
impressa e encadernada para a Fundação Calousu
Gulbmkian, nas oficinas da G . C. - Gráfica
de Coimbra, Lda.

A tiragem é de 1000 exemplares

Maio de 2011

Depósiro Legal n.0 328470/11

ISBN 978-972-31-1384-6

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