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SÔBRE O PROBLEMA IX) SER

(1 CAMIXHO IX) CAMPO

Ao lado dos livros publicados por Heidegger,


"Sein und Zeit” (1927 )t "Holzwege” (1950)
e "Nietzsche” (1961), existem, pelo menos,
quinze textos curtos, redigidos de 1928 a 1962,
cuja importância é tanto maior quanto se sabe
que déles depende a compreensão do caminho
traçado pelo pensar do filósofo.
iniciando a apresentação dos opúsculos de
Heidegger, a Livraria DUAS CI DADES reune
num só volume dois dos mais importantes,
redigidos em 1948 (O CAMINHO DO CAM­
PO) e em 14?5 (SÔBRE O PROBLEMA DO
SER).
SOBRE O PROBLEMA DO SER é conside­
rado um dos textos mais “teóricos", isto é,
mais difíceis de Heidegger: concerne à questão
do pensamento. A questão é nêle pesquisa
precária, visando corresponder, isto é, respon­
der àquilo que nos coloca etn questão, que
nos põe suspensos e assim nos mantêm balou-
çundo na inconfortável, mas talvez salutar, di­
mensão do interrogar.
O CAMINHO DO CAMPO, por outro la­
do, é um rateo essencial onde o filósofo con­
densa seu pensamento e seu destino. Cada
coisa permanece em seu lugar próprio, em seu
êxtase íntimo. E a beleza, a paz, a serenidade,
são dadas em silêncio, por acréscimo.
Sôbre a tradução, oferecemos ao leitor pa­
lavras escritas pelo próprio filósofo pata a
edição francesa de um de seus livros: "Pela
tradução, o trabalho do pensamento se encontra
transposto no espírito de uma outra língua e
sofre assim uma transformação inevitável. Mas
essa transformação pode tornar-se fecunda, pois
faz aparecei sob nova luz a posição fundamental
da questão Fornece ocasião a cada um de se
tornar mais tJurividente e de discernir mais
clurank-nte seus limites próprios, pois uma tru-
dtlção não consiste simplesmente cm facilitar a
eiitmmiatçâu com o mundo de ura outra língua;
da í cm ai um decifratncnto da questão levan­
tada em comum. Serve à compreensão recíproca
cm um sentido superior. E cada passo nesta
viu í um# Ixtnçio para os povos.”
JoSll GltKAt.IXJ Ntx;utnxa Moutinho
SÔBRE O PROBLEMA DO SER

O CAMINHO DO CAMPO
MARTIN HEIDEGGER

SÔBRE
O PROBLEMA DO SER

O CAMINHO DO CAMPO

Tradução de Ernjldo Stein

Revisão de José Geraldo Nogueira Moutinho

1969

LIVRARIA DUAS CIDADES


Títulos do original alemão;

Zur Seinsfrage — Der Feldweg


(Edição de Vittorio Klostermann, Frankfurt-am-Main)

H 46J"

Direitos pura a língua portugu&sa reservados por


Livraria Duas Cidades, São Paulo.
INDICE

Nota do Tradutor ................................................................... 7

Prefácio ............................................................................ 11

I — Sôbre o Problema do Ser ............................................. 13

II — O Caminho do Campo ............................................... ! 65


NOTA DO TRADUTOR

Minha experiência no magistério universitário


vem-me revelando, progressivamente, a importância
da análise rigorosa de determinados textos fundamen­
tais para a formação da consciência especulativa. Cer­
tos ensaios de Heidegger, já incorporados ao patrimô­
nio da tradição filosófica, podem constituir momentos
dêste despertar para a filosofia.
Poucas obras, no século XX, contribuiram tanto
para a redescoberta do pensamento metafísico quanto
as do filósofo da Floresta Negra. Por isso, colocar
alguns dos seus trabalhos ao alcance de muitos estu­
diosos da filosofia no Brasil, é tarefa que merece qual­
quer sacrifício. O sacrifício alia-se ao risco que um
tradutor não profissional, como é o autor destas linhas,
corre ao tentar reescrever em português o que foi dito
originalmente em uma língua tão longamente polida
pela reflexão metafísica, quanto o alemão.
Todavia, a convicção de ser invariavelmente rela­
tivo o conhecimento que se pode atingir do pensa­
mento de um filósofo, é suficiente garantia ao leitor de
que não está sendo iludido pela tradução que tem sob
os olhos.
A Livraria Duas Cidades inaugura o lançamento
de alguns textos de Martin Heidegger com SÔBRE O

7
PROBLEMA DO SER, porque éstc trabalho constitui,
inegavelmente, uma das mais adequadas introduções
à intenção profunda que comanda sua reflexão cin­
quentenária. Através desta carta dirigida a Ernst Jün­
ger, o filósofo conduz-nos ao longo de seu caminho de
pensador, apontando-nos as instâncias decisivas que o
caracterizam. Todos os outros textos, a serem lança­
dos por esta editora, podem ser vistos como explicita­
ção de momentos essenciais aqui aflorados.
SÕBRE O PROBLEMA DO SER apresenta uma
unidade que toma sua estrutura quase linear. Toman­
do como ponto de partida a análise do problema do
niilismo realizada por Jünger em seu ensaio SÒbre a
Linha, Heidegger resume sua posição diante da meta­
física através do enfoque de sua característica funda­
mental: a subjetividade; apresenta sua interpretação
da relação entre ser e nada; mostra como sòmente
assim se pode pensar verdadeiramente o niilismo;
reporta o niilismo à essência da metafísica; afirma a
necessidade de superer-se a metafísica por ser esta
fundamentalmente esquecimento do ser; explica como
esta superação sòmente é possível enquanto recupera­
ção da metafísica; refere como tudo isto se liga a um
essencial problema da linguagem e conclui apontando
as intenções ocultas na pergunta: “Que é metafísica?”.
Ao discutir com Ernest Jünger o problema do niilis­
mo, levanta Heidegger graves questões enfrentadas pe­
la era da civilização planetária, dominada pela técnica
e pela figura do trabalhador. A “vontade de poder” de
Nietzsche torna-se um dos pontos de referência para
estas interrogações, ao longo das quais ressalta o ine­
vitável liame entre técnica, trabalho, niilismo e meta­
física.

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Heidegger procura alimentar a meditação com
perguntas a fim de impedir a emergência de soluções
prematuras, Sòmente assim o problema não tomba na
simplificação, surgindo, ao contrário, a certeza de que
o niilismo se desdobra nas inúmeras faces que consti­
tuem a própria condição humana. O ensaio de Hei­
degger não se pretende, portanto, definitivo: Seu fim
é nutrir a discussão e a meditação daquilo que se tor­
nou nosso destino.
O CAMINHO DO CAMPO, que segue SÔBRE O
PROBLEMA DO SER, tem com êste laços secretos; o
leitor atento os descobrirá. Esta página, quase auto­
biográfica, tratando do problema do ser em língua
poética, ultrapassou já os horizontes agrestes de
Messkirch, e encontra-se hoje vertida até para o
japonês.
Os dois textos empenham-se em clarificar certos
domínios novos, em cujo meio a reflexão filosófica
deve mostrar-se em nosso tempo. Heidegger exige
rigor do pensamento, atenção vigilante ao dizer e
economia de palavras. Para preparar tal atitude im-
põe-se, não simplesmente a leitura, mas o trabalho as­
síduo sobre os textos dos pensadores. E Martin Hei­
degger é, antes de tudo, um pensador.

Porto Alegre, julho de 1968


Eunjldo Stein.

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PREFÁCIO

Este trabalho apresenta o texto integral ampliado


com algumas linhas (pp. 24 segs.), da minha contribui­
ção ao volume comemorativo dos sessenta anos de
Ernst Jünger (1955). O título foi modificado. O
primitivo era: Sôbre “A Linha”. O nôvo título quer
indicar que a reflexão sôbre a essência do níilismo se
origina de uma discussão do ser enquanto De
acôrdo com a tradição, a filosofia entende por proble­
ma do ser a pergunta pelo ente enquanto ente. Ela é
a pergunta da metafísica. A resposta a esta pergunta
se refere sempre a uma explicitação do ser, que elimi­
na tôda problematicidade e que prepara o funda­
mento e o chão para a metafísica. A metafísica
não retoma a seu fundamento. Êste retomo é elucida­
do pela “Introdução” a Que é Metafísica?, que prece­
de, desde a quinta edição (1949), o texto da confe­
rência. (Sétima edição alemã, 1955, pp. 7-23).

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SÔBRE "A LINHA’*

Estimado Senhor Jüngerl


Minha homenagem pelo seu sexagésimo aniver­
sário acolhe, com uma ligeira modificação, o título do
ensaio que o senhor me dedicou em igual ocasião. Sua
contribuição Sôbre a Linha foi, entretanto, publica­
da em edição separada, ampliada em algumas pas­
sagens. Ela representa um “julgamento da situação”,
que trata do “cruzamento” da linha, não se esgotando,
entretanto, na descrição da situação. A linha é tam­
bém designada o “meridiano zero” (p. 29). O senhor
fala (p. 22 e 31) do “ponto zero”. O zero acena para
o nada e precisamente para o nada vazio. Onde tudo
se impulsiona para o nada domina o niilismo. No me­
ridiano zero o niilismo se aproxima de sua perfeição.
Tomando uma explicação de Nietzsche, o senhor com­
preende o niilismo como o processo no qual acontece
"a desvalorização dos valores supremos”, (Vontade de
Poder, número 2, ano de 1887).
A linha zero, enquanto meridiano, possui sua zona.
A zona do niilismo perfeito constituí a fronteira entre
duas idades do mundo. A linha que o caracteriza é a
linha crítica. Nela se decide se o movimento do niilis­
mo termina no nada nadificador ou se êle é a passagem

13
para a esfera de uma “nova manifestação do ser” (32).
O movimento do niilismo deve, de acôrdo com isto,
estar fundado a partir de si mesmo em diferentes pos­
sibilidades e ter, de acordo com sua essência, múltiplos
sentidos.
Seu julgamento da situação persegue sinais que
permitem saber se cruzamos a linha e em que medida
o fazemos para, desta maneira, sair da zona do niilismo
perfeito. No título de seu trabalho “Sôbre a Linha”
“sôbre” significa algo assim como: para além de,
trans, meta. As observações que seguem entendem,
pelo contrário, o "sôbre”' apenas na acepção de: de,
peri. Elas tratam "da” própria Linha, da zona do
niilismo que se aproxima da perfeição. Retendo a
imagem da linha descobrimos que ela percorre um
espaço, o qual, por sua vez, é determinado por um
lugar. O lugar reúne. A reunião abriga o que foi
reunido em sua essência. A partir do lugar da linha
resulta a origem da essência do niilismo e sua per­
feição.
Minha carta querería avançar o pensamento para
o lugar desta linha e, assim, discutir a própria linha.
Seu julgamento da situação enfocado sob o nome trans-
lineam e a minha discussão que se erige sob o nome
de linea se co-pertencem. Aquela envolve esta. Esta
depende daquela. Nada de especial lhe digo com isto.
O senhor sabe que o julgamento da situação do ho­
mem, em sua relação com o movimento do niilismo,
e em meio a êste movimento, exige uma suficiente de­
terminação da essência. Muitas vezes falta um tal
tipo de conhecimento. Esta carência perturba o olhar
no julgamento de nossa situação. Ela torna superficial

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o iuizo sôbre o niilismo e cega a vista para a presença
“deste mais estranho de todos os hóspedes” (Nietzsche,
Vontade de Poder. Sôbre o plano, WW XV, p. 141).
É designado “o mais estranho” porque, enquanto von­
tade incondicionada da vontade, quer a apatridade
enquanto tal. Por isto, de nada adianta apontar-lhe a
porta; já há muito tempo e de modo invisível, percorre
a casa toda. Trata-se de descobrir este hóspede e de
examiná-lo. O senhor mesmo escreve (p. 11): “Uma
definição precisa do niilismo seria comparável ao des­
cobrimento do agente cancerígeno. O descobrimento
não significaria já a cura, mas ao menos seus pressupos­
to, na medida em que homens afinal colaboram nisto.
Trata-se de um processo que ultrapassa amplamente
a história."
“Uma boa definição do niilismo" poder-se-ia as­
sim esperar de uma discussão de linea caso o esfôrço
humanamente possível pela cura possa comparar-se a
um acompanhamento trans linemn. Ê certo que o se­
nhor insiste em que não se pode equilibrar □ niilismo
à doença, como tampouco ao caos e ao mal. Como o
agente cancerígeno tampouco o niilismo é algo doen­
tio. No que diz respeito à essência do niilismo, não
existe perspectiva alguma nem pretensão razoável pa­
ra a cura. Entretanto, o seu trabalho revela um com­
portamento semelhante ao do médico, o que já se
depreende da divisão em prognose, diagnose e terapia.
O jovem Nietzsche designa, numa de suas obras, o
filósofo como “médico da cultura” (WW X, p. 225).
Agora, porém, não se trata apenas da cultura. O se­
nhor diz com razão; “O todo está em jôgo.” “O plane­
ta como um todo está em jôgo" (p. 28). A cura

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sòmente pode referir-se às consequências malignas e
às ameaçadoras manifestações secundárias deste pro­
cesso planetário. Tanto mais urgente torna-se o co­
nhecimento e o reconhecimento do agente, isto é, da
essência do niilismo. Tanto mais necessário torna-se
o pensamento, concedendo-se que sòmente é possível
preparar um conhecimento suficiente da essência
através de um pensamento correspondente. Entre­
tanto, a capacidade do pensamento também já se re­
duz na mesma medida em que desaparecem as pos­
sibilidades para uma cura imediata e eficaz. A êssen-
cia do niilismo não é nem curável nem incurável. É
o sem-cura e, enquanto tal, contudo, uma remissão
original ao salvífico. O pensamento sòmente se apro­
ximará da esfera da essência do niilismo quando se
tornar precursor e diferente.
Para um pensamento precursor torna-se proble­
mático se uma discussão da linha pode alcançar "uma
definição precisa do niilismo”, e mesmo se ela pode
aspirar a algo semelhante. Uma discussão sôbre a
linha deve tentar outra coisa. A renúncia, expressa
desta maneira, a uma definição, parece sacrificar o
rigor do pensamento. Podería, entretanto, ocorrer
também que sòmente aquela renúncia seja capaz de
colocar o pensamento no caminho de um esfôrço que
permita conhecer de que índole é o rigor adequado do
pensamento. Isto jamais poderá ser decidido a par­
tir do tribunal da ratio. Ela não é absolutamente um
juiz justo. Sem vacilar ela rejeita tudo o que não se
lhe adapta e o empurra para o presumido pântano do
irracional, delimitado, de resto, pela própria razão. A
razão e a sua representação constituem apenas uma

16
maneira de pensar e de nenhum modo são determina­
das por si mesmas, mas por aquilo que ordenou ao
pensamento pensar à maneira da ratio. O fato de o
domínio da razão se erigir como racionalização de to­
das as ordens, como normatividade, como nivelamento
na voragem do desdobramento do niilismo europeu
nos deve fazer pensar tanto quanto as tentativas de
fuga para o irracional que pertencem ao mesmo fato.
Mais grave, entretanto, é o processo que enreda
o racionalísmo e o irracionalismo, de modo igual, num
intercâmbio do qual não apenas não podem se libertar,
mas nem mesmo querem sair. Nega-se ao pensamento
qualquer possibilidade de descobrir um apelo situado
fora do dilema racional-irracional. Entretanto, um tal
pensamento poderia ser preparado por aquilo que en­
saia passos cautelosos nos modos da elucidação histó­
rica, da reflexão e da discussão.
Minha discussão quisera ir ao encontro do julga­
mento médico da situação apresentado pelo senhor.
O senhor olha e caminha para além da linha; eu, pri­
meiro, limito-me apenas a olhar para a linha que o se­
nhor imagina. Ambas as atitudes auxiliam-se recípro-
camente para ampliar e clarificar a compreensão.
Ambas as posições poderíam ajudar a despertar a
“suficiente fôrça do espírito” requerida para o cruza­
mento da linha,
Para podermos ver o niilismo na fase de sua per­
feição devemos percorrer seu movimento em sua ação.
O descrever esta ação tornar-se-á particularmente
marcante, se a própria ação, enquanto descrição, dêle
participar. Neste caso, todavia, a descrição correrá
um extraordinário risco, defrontando responsabilidade

21 17
de fundas consequências. Quem participa deste mo­
do deve concentrar sua responsabilidade naquela res­
posta que brota de uma interrogação constante em
meio à máxima problematicidade do niilismo, e que é
assumida e sustentada como correspondência a esta
problematicidade.
Sua obra O Trabalhador (1932) forneceu a des-
críação do niilismo em sua fase após a primeira guerra
mundial. Ela se desenvolve a partir de sua obra A
Mobilização Total (1930). O Trabalhador pertence à
fase do “niilismo ativo” (Nietzsche). A ação da obra
consistia — e consiste ainda em função modificada —
no fato de tomar manifesto o “caráter total de traba­
lho” de todo o real, através da figura do trabalhador.
Desta maneira, o niilismo, inicialmente apenas europeu,
aparece em sua tendência planetária. Entretanto, não
existe descrição em si, capaz de mostrar o real em si.
Toda descrição, quanto maior o rigor com que proce­
de, tanto mais decísivamente se movimenta, segundo
sua índole específica, numa determinada perspectiva.
Modo de ver e perspectiva — o senhor diz “óptica” —
resultam, para a representação humana, das experiên­
cias fundamentais do ente cm sua totalidade. Prece­
de-nos, porém, já uma iluminação, não factível pelo
homem, do modo como o ente “é”. A experiência fun­
damental que sustenta e perpassa sua representação
proveio das batalhas da primeira guerra mundial, em
que o fator decisivo eram o número e o poder das
armas. O ente em sua totalidade, porém, mostra-se
ao senhor na luz e nas sombras da metafísica da von­
tade de poder, explicitada por Nietzsche na forma de
uma doutrina dos valôres.

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No inverno de 1939 a 1940 eu explicava O Traba­
lhador num pequeno círculo de professôres universi­
tários, Surpreendia o fato de um livro tão clarividente
estar já publicado há anos e ninguém ainda haver
tentando enfocar o presente segundo a sua óptica, e a
pensar planetàriamente. Sentia-se que, neste caso,
também a consideração histórico-universal da histó­
ria do mundo não bastava. Lia-se com entusiasmo,
naquele tempo, Recifes de Mármore, mas, assim me
parecia, sem o horizonte suficientemente amplo, isto
é, planetário, Não nos surpreendeu também que uma
tentativa de explicar O Trabalhador fôsse vigiada e
por fim suspensa. Pois, pertence à essência da von­
tade de poder não deixar que se revele na realidade
que é própria de sua essência, o real do qual ela se
apodera pela força.
Permita-me reproduzir uma anotação da tenta­
tiva de explicação da qual falei acima. Faço isto por­
que espero poder dizer nesta carta algumas coisas com
mais clareza e liberdade. A nota diz:
“A obra de Ernest Jünger O Trabalhador tem pe­
so, porque consegue produzir, de um modo diferente
de Spengler, aquilo de que até hoje toda a literatura
sobre Nietzsche não foi capaz: transmitir uma com­
preensão do ente e de seu modo de ser à luz do projeto
de Nietzsche do ente como vontade de poder. Claro
que com isto a metafísica de Nietzsche não foi ainda
de nenhum modo compreendida pelo pensamento;
nem mesmo os caminhos para lá são mostrados; pelo
contrário; em vez de se tornar autênticamente proble­
mática esta metafísica torna-se óbvia e aparentemente
supérflua.”

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O senhor vê, a pergunta crítica pensa num senti­
do cuja perseguição, note-se, não pertence ao contexto
temático das descrições que realiza O Trabalhador.
Muita coisa daquilo que suas descrições evidenciavam
e faziam falar pela primeira vez, é vista e dita, hoje em
dia, por todos. Além disso, a minha conferência “A
Questão da Técnica” deve às descrições que aparecem
no Trabalhador um estímulo eficaz. No que diz
respeito às suas “descrições gostaria de observar que
elas não reproduzem apenas algo do real já conhecido
mas preparam o acesso a uma “nova realidade”
na qual se “trata menos de novos pensamentos ou de
um nôvo sistema..." (O Trabalhador, prefácio).
Mesmo hoje em dia ainda — e por que não? —
reúne-se o fecundo de seu dizer na “descrição” bem
entendida. Entretanto, óptica e perspectiva que orien­
tam a descrição, não estão mais ou ainda não estão
determinadas, de modo adequado, como outrora. Pois
o senhor não mais participa agora da ação do ativo
niilismo, que também já em O Trabalhador vem pen­
sada, segundo o sentido de Nietzsche, na direção de
uma superação. Não mais participar não significa,
todavia, já: estar situado fora do niilismo; sobretudo,
de nenhum modo, quando a essência do niilismo não
é nada de niilístico e quando a história desta essência
é mais antiga e permanece mais nova que as fases das
diversas formas do niilismo que podem ser estabeleci­
das historicamente. Por isso, a sua obra O Trabalha­
dor e o tratado que a seguiu e avança ainda mais,
Sóbre a Dor (1934), não pertencem ao “dossier” distan­
te do movimento niilista. Pelo contrário; parece-me
que estas obras permanecem, porque a partir delas,
na medida em que falam a linguagem de nosso século,

20
se pode reascender a discussão, de nenhum modo leva­
da a cabo, com a essência do niilismo.
Enquanto escrevo, recordo-me de um encontro
que tivemos nos fins de década de 40. Passeando por
um caminho da floresta detivemo-nos diante de uma
senda perdida. Eu o animava então a reeditar O
Trabalhador” sem modificações. Minha sugestão foi
aceita, embora o senhor vacilasse, menos por razões
relativas ao contendo do livro do que por considerar
inoportuna essa reedição. Interrompeu-se nosso diálo­
go sôbre o livro. Eu mesmo não dispunha no momen­
to de suficiente concentração para desenvolver com
a clareza necessária as razões de minha sugestão.
Talvez agora tenhamos chegado a momento oportuno
para fazê-lo.
De um lado, o movimento do niilismo tornou-se
mais manifesto em seu caráter planetário, incontrolá-
vel e multiforme que a tudo corrói. Nenhuma pessoa
que vê claro quererá ainda negar, hoje em dia, o fato
de que o niilismo é, nas formas mais diversas e escon­
didas o “estado normal” da humanidade (cf. Nietzsche,
Vontade de Poder, número 23). O melhor testemu­
nho disto são as tentativas que exclusivamente reagem
contra o niilismo, as quais, em vez de se dedicarem a
uma discussão com sua essência, procuram a restau­
ração do que imperara até agora. Buscam a salvação
na fuga, o que quer dizer, esquivam-se a contemplar
intimamente a problematicidade da posição metafísica
do homem. A mesma fuga também pressiona onde, “
segundo as aparências, se renuncia a toda metafísica,
substituindo-a pela logística, sociologia e psicologia. A
vontade de saber que aqui irrompe e sua organização
geral controlável apontam para um aumento da von­

51
tade de poder, que é de índole diversa daquela que
Nietzsche caracterizou como niilismo ativo.
De outro lado, o seu próprio poetar e meditar
reflete sôbre o modo de ajudar a sair do niilismo per­
feito, sem que o senhor renuncie ao traçado da perspec­
tiva aberta pelo livro O Trabalhador, a partir da me­
tafísica de Nietzsche.
O senhor escreve ( Sobre a Linha, p. 36): “A mo­
bilização total penetrou num estágio que supera, com
seu caráter ameaçador, o anterior. É claro que o ale­
mão não é mais seu sujeito, e por isso aumenta o risco
de êle ser concebido como seu objeto.” Mesmo agora
o senhor ainda vê e com razão, a mobilização total co­
mo um caráter distintivo do real. A sua realidade, en­
tretanto, não é mais agora, conforme sua opinião,
determinada pela “Vontade de (grifado por mim) to­
tal mobilização” (O Trabalhador, p, 148), e não é mais
como a única fonte da “doação de sentido” que a tudo
justifica. Por isso o senhor escreve (Sôbre a Linha,
p. 30): “Não há dúvida no fato de que os nossos efe­
tivos (isto quer dizer, conforme a página 31, “as pes­
soas, obras e instalações”) movem-se como totalidade
sôbre a linha crítica. Com isto se modificam riscos e
segurança". Na zona da linha □ niilismo se aproxima
de sua perfeição. A totalidade dos “efetivos huma-
pode cruzar, então, a linha quando êstes efetivos sai-
nos” sòmente pode cruzar, então, a linha, quando êstes
efetivos sairem da zona do niilismo perfeito.
De acordo com isto uma discussão da linha deve
perguntar: em que consiste a perfeição do niilismo?
A resposta parece evidente. O niilismo atinge a per­
feição ao envolver todos os efetivos, ao surgir em toda

22
a parte, quando nada mais se afirma como exceção, na
medida em que se torna a situação normal. Entretan­
to, na situação normal realiza-se apenas a perfeição.
Aquela é uma consequência desta. Perfeição signifi­
ca a reunião de todas as possibilidades essenciais do
niilismo, as quais em sua totalidade e individualmente
se tomam dificilmente transparentes. As possibilida­
des essenciais do niilismo sòmente podem ser pensadas
quando retrocedemos pensando até sua essência.
Falo em “retroceder” porque a essência do niilismo
supera e, portanto, precede os fenômenos niilistas iso­
lados e os reúne em sua perfeição. A perfeição do
niilismo não é, contudo, ainda seu fim. Com a per­
feição do niilismo começa apenas a fase final do niilis­
mo. A sua zona é presumivelmente extraordinaria­
mente larga, porque é dominada e perpassada por
uma situação normal e sua consolidação. É por isso
que a línha-zero, onde a perfeição se conclui, não é
absolutamente visível no fim.
Qual é, então, a situação em tomo da perspectiva
de um cruzamento da linha? Está o efetivo humano
já na passagem trans lineam ou pisa êle apenas o vasto
campo que se estende diante da linha? Pode ser tam­
bém que nos mantenha paralizados o encanto de uma
inevitável ilusão óptica. Talvez a linha-zero erga-se,
repentinamente, diante de nós, na forma de uma ca­
tástrofe planetária. Quem então ainda a cruza? E o
que podem as catástrofes? As duas guerras mundiais
não detiveram o movimento do niilismo nem lhe im­
primiram outra direção. O que o senhor (p. 36) diz
sôbre a mobilização total traz a confirmação. Qual é
agora a situação da linha crítica? Em qualquer caso
ela é tal, que uma discussão sôbre seu lugar podería

23
fazer-nos meditar se podemos pensar (e em que medi­
da) num cruzamento da linha.
Mas a tentativa de dizer algo íte linea, numa cor­
respondência com o senhor, defronta com uma dificul­
dade peculiar. A razão consiste no fato de o senhor
falar na passagem sôbre a linha, isto é no espaço aquém
e além da linha, a mesma linguagem. Parece que, de
certo modo, a posição do niilismo já foi abandonada
mediante o cruzamento da linha, tendo, entretanto,
permanecido sua linguagem. Não me refiro aqui à
linguagem como simples meio de expressão, que se
pode pôr de lado e trocar como um disfarce, sem que
com isto seja afetado aquilo que se expressou. Em
primeiro lugar, aparece na linguagem e nela se mani­
festa em sua essência aquilo que nós, no uso de pala­
vras adequadas, pronunciamos, aparentemente, só de
modo suplementar e, justamente, em expressões que
pensamos poder ser suprimidas arbitràriamente e
substituídas por outras. A linguagem no seu livro
O Trabalhador manifesta seus traços básicos, se­
gundo minha opinião, antes de mais nada, no subtítu­
lo da obra. Êste diz: “Domínio e Forma.’* Carac­
teriza a espinha dorsal da obra. “Forma” o senhor
compreende, antes de mais nada, no sentido da psico­
logia da forma daquela época, como “um todo que
compreende mais que a soma de suas partes." Pode­
ría alguém perguntar-se em que medida esta caracte­
rização da forma ainda sempre se apoia, através do
“mais” e da “soma”, na representação que soma, dei­
xando o que é característico da forma enquanto tal no
indeterminado. Mas o senhor dá à forma um nível de
culto, distinguindo-a, desta maneira, com razão, da
“pura idéia.”

24
No que se refere a isto, a “idéia” é compreendida,
modemamente, no sentido da perceptio, da represen­
tação pelo sujeito. De outro lado, a forma também
permanece apenas acessível para □ senhor em um ver.
Trata-se daquele ver que entre os gregos se designa
idem, palavra que Platão utilizou para um olhar que
não vê o mutável, sensrvel e experimentável, mas o
imutável, o ser, a idea. Também o senhor caracteriza
a forma como “ser em repouso." A forma não é, sem
dúvida, uma “idéia" no sentido moderno e por isso,
também não é uma representação reguladora da razão
no sentido kantiano. O ser em repouso permanece
perfeitamente distinto para o pensamento grego em
face do ente mutável. Esta diferença entre o ser e o
ente se manifesta, quando vista desde o ente para o
ser, como a transcendência, isto é, como o meta-físico.
A distinção, entretanto, não é uma separação absoluta.
Isto é tão certo que na presença (ser) o que se presen-
ta (ente) é produzido, não sendo, contudo, causado
no sentido de uma causalidade eficiente. O que pro-
-duz é, de vez em quando, pensado por Platão como
aquilo que marca (typos') (cf. Teeteto, L9a, 194b).
Também o senhor pensa a relação da forma com aqui­
lo que “forma”, como a relação entre o sinete e a mar­
ca. Seguramente o senhor entende o ato de marcar
de maneira moderna, como o fato de dar “sentido" ao
sem-sentído. A forma é “fonte da doação de sentido”
(O Trabalhador, p. 148).
A remissão histórica ao co-pertencer de forma,
idea e ser não pretende julgar sua obra historicamente,
mas quer acenar para o fato de ter sua terra de origem
na metafísica. Segundo ela, todo ente, o mutável e o
em movimento, o móvel e o mobilizado é .representado

25
a partir de um “ser em repouso”; isto acontece mesmo
onde, como no caso de Hegel e Nietzsche, o “ser” (a
realidade do real) é pensado como puro devir e abso­
luta mobilidade. A forma é “poder metafísico” (O,
Trabalhador, pp. 113, 124, 146).
Sob um outro ponto de vista, no entanto, a repre­
sentação metafísica em O Trabalhador se distingue da
representação platônica e mesmo da moderna, exce­
tuando a de Nietzsche. A fonte da doação de sentido,
o poder prcvíamente presente e, assim, capaz de mar­
car tudo, é a forma como figura de uma humanidade;
“A figura do trabalhador.” * A forma repousa na es­
trutura essencial de uma humanidade, a qual como
subiectum, é o fundamento de todo ente. Não é o ca­
ráter de eu de um homem isolado, □ caráter subjetivo
da egoidade, mas a presença pré-formada, com caráter
de forma de uma espécie de homem (tipo), que for­
ma a extrema subjetividade que se manifesta na perfei­
ção da metafísica moderna e que é apresentada através
de seu pensamento.
Na figura do trabalhador e no seu domínio não se
vê mais a subjetidade subjetiva e muito menos ainda
a subjetidade subjetivística do ser humano. O ver
metafísico da figura do trabalhador corresponde ao
> projeto da figura essencial de Zaratustra no seio da
metafísica da vontade de poder. Que se oculta
nesta manifestação da objetiva subjetidade do subiec­
tum (do ser do ente), a qual é entendida como forma
humana e não como um homem isolado?

* N. T.: Gestalt significa “forma e “figura.” Onde o texto original


acentua c segundo sentido sem. no entanto, desligá-lo do primeiro, pre­
ferimos traduzir Gestalt por "figura.”

26
Falar da subjetidade (não subjetividade) do ser
humano como do fundamento para a objetividade de
todo e qualquer sujeito (tudo o que se presents) pare­
ce, sob todos os pontos de vista, paradoxal e artificial,
A razão desta aparência reside no fato de apenas ter­
mos começado a perguntar por que e de que modo se
toma necessário, no seio da metafísica moderna, um
pensamento que represente Zaratustra como figura. A
explicação, tantas vêzes repetida, de que o pensamen­
to de Nietzsche descambou de modo fatal para a esfe­
ra da poesia, é ela mesmo apenas uma renúncia à
interrogação que pensa. Entretanto, nem mesmo pre­
cisamos retroceder com nosso pensamento até a dedu­
ção transcendental das categorias de Kant para com­
preendermos que o ver da forma como a fonte da
doação de sentido envolve a legitimação do ser do ente.
Seria uma explicação demasiado grosseira se se quises­
se dizer, neste caso, que, num mundo secularizado, o
homem, enquanto causa do ser do ente, passaria a
ocupar o lugar de Deus. O fato de que certamente
está em jogo o ser humano não permite dúvida alguma.
Mas o ser (essência em sentido verbal) do homem, *‘o
ser-aí do homem" (veja-se Kant e o Problema da Me­
tafísica”, primeira edição, 1929, § 43) não é nada de
humano. Para que a idea do ser humano possa atingir
o nível daquilo que repousa no fundamento de tudo
o que se presenta enquanto a presença que, primeira­
mente, proporciona uma “representação” no ente e,
assim, o "legitima” enquanto ente, deve o homem, em
primeiro lugar, ser representado no sentido de funda­
mento determinante. Mas, determinante para que?
Para a garantia do ente em seu ser. Em que sentido
se manifesta o “ser” quando se trata da segurança do

27
ente? No sentido do verificável, em tôda parte e a
qualquer momento, isto é, no sentido do representável.
Compreendendo, desta maneira, o ser, encontrou Des-
cartes a sujetividade do subiectum no ego cogito do
homem finito. O aparecimento da figura metafísica
do homem, enquanto fonte da doação de sentido é a
última consequência da fixação do ser humano como
o sujeito determinante. Em conseqüência disto, se
transforma a forma interior da metafísica, que repou­
sa no que se pode designar de transcencendência, Esta
tem, no seio da metafísica, por razões essenciais, uma
multiplicidade de significados. Onde esta multívoci-
dade não é tomada em consideração, se alastra uma
insanável confusão que pode valer como a característi­
ca da representação metafísica ainda hoje corrente.
A transcendência é, de um lado, a relação que,
partindo do ente ultrapassa-o para o ser, vige entre
ambos. Transcendência é, entretanto, simultaneamente
a relação que do ente mutável conduz para um ente
em repouso. Por transcendência se entende, final-
inente, conforme o uso da expressão "excelência”,
aquêle ente supremo em si mesmo, que então é tam­
bém chamado “o ser”; disto resulta uma estranha mis­
tura com o significado que aduzimos por primeiro.
Por que, afinal, o entedio, apontado para distin­
ções hoje tão magnânimamente manuseadas, isto é,
pràticamente não compreendidas em sua diversidade
e seu co-pertencer-se? Para tornar claro a partir dis­
to, como se transforma o meta-físico da metafísica, a
transcendência, quando no âmbito de sua distinção
aparece a figura do ser humano como fonte de doação
de sentido. A transcendência, entendida nos seus vá­
rios sentidos, se converte na correspondente rescen-

28
dência e nesta desaparece. O regresso desta índole,
motivado pela forma, acontece de tal modo que sua
presença se representa, tornando-se novamente presen­
te no que resulta de sua marca. A presença da figüla
do trabalhador é o poder. A representação da presença
é seu domínio como uma “nova e especial vontade de
poder” (O Trabalhador, p. 70).
O senhor conheceu e experimentou o novo e
especial no “trabalho” enquanto o caráter total da
realidade do real. Através disto, a representação me­
tafísica, à luz da vontade de poder, é arrancada mais
decisivamente da esfera biológico-antropológica que
confundia demasiadamente o caminho da Nietzsche.
Uma nota como a que segue pode provar isto: “Quais
aquêles que nisto se mostrarão como os mais fortes?
(no surgimento da doutrina do eterno retomo do mes­
mo). .. — Homens que estão seguros de seu poder e
aquêles que representam a força alcançada do homem,
com consciente orgulho” (Vontade de Poder, número
55, fim). “Domínio” é (O Trabalhador, p. 192) “hoje
apenas possível como representação da figura do tra­
balhador, a qual pretende validez planetária”. “Tra­
balho” no sentido supremo e que perpassa tôda a mo­
bilização é “representação da figura do trabalhador”.
(O Trabalhador p. 202). Mas o modo como a figura do
trabalhador começa a perpassar o mundo é o caráter
total do trabalhador” (O Trabalhador, p. 99). Com um
significado quase idêntico segue a frase numa página
mai adiante (p. 150): “A técnica é o modo pelo qual
a figura do trabalhador mobiliza o mundo.”
Uma página antes faz-se esta observação decisi­
va: “Para possuir uma relação real com a técnica, é
preciso ser mais do que técnico” (p. 149). Sòmente pos-

29
so entender esta proposição assim: com relação "real’'
o senhor entende a relação verdadeira. Verdadeiro é
aquilo que correspnode à essência da técnica. Pelo
produzir técnico imediato, isto é, pelo respectivo ca­
ráter especial de trabalho, jamais se atinge esta rela­
ção essencial. Esta repousa na relação com o caráter
total do trabalho. O "trabalho” assim entendido é,
todavia, idêntico ao ser no sentido de vontade de poder
(p. 86).
Que determinação essencial da técnica resulta
disto? Ela é “o símbolo da figura do trabalhador” (p.
72). “Enquanto mobilização do mundo pela figura
do trabalhador” (p. 154), fundamenta-se a técnica,
evidentemente, naquela conversão da transcendência
na rescendência da figura do trabalhador, através do
que a presença dela se desdobra na representação de
seu poder. Por isso o senhor pode escrever (ibidi-
nem): “A técnica é... como a destruidora de qual­
quer fé em geral, deste modo, também o poder anti-
cristão mais decisivo que até agora se manifestou.”
Sua obra, O Trabalhador, já esboça, através de
seu subtítulo, “Domínio e Forma”, os traços funda­
mentais daquela nova metafísica da vontade de poder
que se manifesta em sua totalidade, na medida em que
esta se apresenta agora, cm toda parte e plenamente,
como trabalho. Já na primeira leitura desta obra mo-
veram-se perguntas que ainda hoje preciso formular:
A partir de onde se determina a essência do trabalho?
Resulta ela da figura do trabalhador? O que faz da
forma a figura do trabalhador se a essência do traba­
lho não a perpassa? Donde resulta o sentido de traba­
lhar e trabalhadores no alto nível que o senhor atri­

30
bui à forma e seu domínio? Surge este sentido do fato
de o trabalhador ser pensado, neste caso, como marca
da vontade de poder? Ou origina-se talvez esta pe­
culiaridade da essência da técnica “como mobilização
do mundo, através da figura do trabalhador? E não
conduz, finalmente, a essência da técnica, assim deter­
minada, a âmbitos ainda mais originários?
Com demasiado facilidade podería apontar-se
para o fato de que, em sua explanação sôbre a relação
entre o caráter total de trabalho e a figura do traba­
lhador, existe um círculo que encerra o determinante
(o trabalho) e o determinado (o trabalhador) numa
recíproca relação. Em lugar de usar esta indicação
como atestado de um pensamento ilógico, tomo eu o
círculo como sinal para o fato de que aqui se deve
pensar a circularidade de um todo, evidentemente,
num pensamento para o qual não pode servir de me­
dida uma “lógica” que se conduz pelos patrões da não-
-con tradição.
As questões, há pouco suscitadas, tomam-se ain­
da mais problemáticas, se eu as concebo como quisera
tê-las apresentado, há pouco tempo, em aditamento à
minha conferência de Munique (A Pergunta pela Téc­
nica). Se a técnica é a mobilização do mundo através
da figura do trabalhador, então a mobilização aconte­
ce pela presença marcante desta peculiarmente huma­
na vontade de poder. Na presença e representação se
manifesta o traço fundamental daquilo que se desvelou
ao pensamento ocidental como ser. “Ser2_ significa,
desdeos primórdios da grecidade até os últimos tempos
de nosso século; presentar. Qualquer espécie de pre
sença (Praesenz) e presentação brota do acontecimen-

31
to da presença (Antvesenheit). A “vontade do poder”,
porém, é, enquanto a realidade do real, um modo de
aparecer do “ser” do ente. “Trabalho’ do qual, por
sua vez, a figura do trabalhador recebe seu sentido se
identifica com “ser”. Aqui resta considerar se e em
que medida o ser (Wesen} do “ser” é em si a relação
com o ser humano (cf. Que significa Pensar?) pp.
73 ss). Nesta relação deveria fundar-se então a relação
entre o “trabalho”, entendido metafisicamente, e o
“trabalhador.” Parece-me que as seguinte perguntas
se impõem necessariamente;
É-nos permitido pensar, ainda mais originária­
mente, em sua emergência essencial, a figura do tra­
balhador como figura, a idea de Platão com eidos?
Em caso negativo, quais as razões que impedem isto
e, em vez disto, exigem que simplesmente se tomem
forma e idea como algo último para nós e primeiro em
si? Em caso afirmativo, em que caminhos se pode
mover a pergunta pela origem essencial da idea e da
forma? Para dizê-lo numa fórmula, brota a essência
da forma da esfera originária daquilo que eu designo
com-posição? Não pertence também, de acôrdo com
isto, a origem essencial da idea à mesma esfera da qual
brota a essência da forma com ela aparentada? Ou é
a com-posição apenas uma função da forma de uma
humanidade? Neste caso o ser (Wesen) do ser e, em
última instância, o ser do ente permanecería uma obra
da representação humana. A época em que o pensa­
mento europeu pensava isto, ainda estende sôbre nós
as últimas sombras.
Por ora as perguntas pela forma e com-posição
permanecem como considerações particulares. Não

32
queremos impô-las a ninguém, principalmente porque
elas mesmas ainda se movem, com dificuldade, no pro­
visório. Não apresento também, nesta carta, as ques­
tões do mesmo modo como deveríam ser levantadas em
O Trabalhador. Exigir isto seria desconhecer o esti­
lo da obra. Ela assume como tarefa a explicação da
realidade sob o ponto de vista de seu caráter total de
trabalho; isto, no entanto, de tal modo que a própria
explicação participe deste caráter e manifeste o caráter
especial de trabalho de um autor nesta época. Por
isso, se encontram, no fim do livro, na “síntese” (p.
296, nota), as seguintes proposições: “Todos êstes
conceitos (fonna, tipo, construção orgânica, total)
existem, nota-bene, para serem compreendidos. Êles
não nos interessam diretamente. Que sejam esqueci­
dos e postos de lado, sem hesitação, depois de terem
sido usados como grandezas de trabalho para a com­
preensão de tuna determinada realidade que subsiste
apesar e além de qualquer conceito; o leitor deverá
olhar através da descrição como através de um siste­
ma óptico.”
Èste nota bene sempre o segui, na leitura de suas
obras, perguntando-me entretanto se é possível que,
para o senhor, os conceitos, os significados das pala­
vras, e, antes disto, a linguagem sejam apenas um “sis­
tema óptico”, se subsiste, em face destes sistemas, uma
realidade em si da qual os sistemas pudessem ser tira­
dos e substituídos por outros à semelhança de apare­
lhos montados. Não se esconde já, no sentido de
“grandezas de trabalho”, o fato de o senhor sempre
apenas determinar a realidade, o caráter total de tra­
balho de todo o real, do mesmo modo como o senhor
mesmo é determinado por êle? Conceitos existem,

s 33
sem dúvida nenhuma, "para serem com-preendidos.”
Mas a representação moderna do real, a objetivação,
em que se movimenta prèviamente o com-preender,
permanece, em tôda parte, uma agressão ao real, na
medida em que êste é provocado a se mostrar no hori­
zonte da (com-) preensão representativa. A provoca­
ção tem como consequência, no contexto da com-pre-
ensão moderna, o fato de a realidade com-preendida
passar, inopinadamente e, contudo, somente depois de
muito tempo, inadvertidamcnte, para o contra-ataque
pêlo qual a ciência moderna é surpreendida subita­
mente, apesar de Kant, precisando ela familiarizar-se
com esta surpresa, mediante descobertas próprias, no
seio do processo científico como um conhecimento se­
guro.
A relação de indetermínação de Heisenberg, cer­
tamente não se deixa nunca derivar diretamente da
explicação transcendental kantiana do conhecimento
físico da natureza. Tampouco, no entanto, pode aque­
la relação ser alguma vez representada, isto é, pensa­
da, sem que tal representação primeiramente retorne
à esfera transcendental da relação sujeito-objeto. Se
isto ocorreu, então surge apenas a pergunta pela ori­
gem essencial da objetivação do ente, o que quer dizer
pela essência do “com-preender.”
Tanto no seu como no meu caso não se trata, con­
tudo, nem mesmo apenas do conceito de uma ciência,
mas de palavras essenciais como forma, domínio, repre­
sentação, poder, vontade, valor, segurança, da presença
(presentar-se) e do nada que, enquanto ausência sus­
pende (‘ nadifica”) a presença, sem jamais a destruir.
Na medida em que o nada “nadifica”, confirma-se

34
ainda mais como excepcional presença, vela-se como
a própria presença, Nas palavras essenciais acima
referidas impera um dizer diferente das enunciações
científicas. É certo que também a representação me­
tafísica conhece conceitos. Êstes, contudo, não se
distinguem dos conceitos científicos apenas sob o pon­
to de vista do grau de generalidade. Kant foi o pri­
meiro a ver isto com tôda a clareza (Crítica da Razão
Pura, A 843, B 871). Os conceitos metafísicos são, em
sua essência, de outra ordem, na medida em que,
tanto o que compreendem como o próprio compreen­
der permanecem, num sentido originário, o mesmo.
Por isso, na esfera das palavras essenciais do pensa­
mento, é ainda menos indiferente o fato de esquecê-las
ou de prosseguir utilizando-as, constantemente e sem
consciência crítica, sobretudo ali, onde devemos sair
da zona, na qual os “con-ceitos” citados pelo senhor
dizem o decisivo: na zona do niilismo perfeito.
Seu trabalho Sôbre a Linha se refere ao niilismo
como “poder fundamental” (p. 60); interroga pelo
futuro “valor fundamental” (p. 31); toma a nomear a
"forma”, também a “figura do trabalhador” (p. 41).
Se vejo claro, parece-me que esta não é mais a forma
única, “na qual reside a tranqüilidade” (ibidem). O
senhor diz muito antes (p. 10) que a esfera de poder
do niilismo é de tal ordem, que lá “falta a nobre ma-
nifstação do homem.” Ou é a figura do trabalhador,
contudo, aquela forma nova em que se esconde ainda
a nobre manifestação? A “segurança” interessa tam­
bém à esfera da linha ultrapassada. Ainda agora a
dor continua a pedra de toque. O “caráter metafísico”
também impera no novo âmbito. Fala aqui ainda a
palavra essencial “dor”, a partir da mesma dimensão

35
significativa delimitada pelo seu tratado Sobre a Dor,
na qual a posição “do trabalhador” foi radicalizada até
um ponto não atingido anteriormente? Retém o que
possui caráter metafísico, mesmo além da linha, sen­
tido igual aquele que aparece no “trabalhador”, a sa­
ber, o "caráter de forma”? Ou surge agora, em lugar
da representação da forma de um ser humano, que era
antes a única forma de legitimação do real, o “trans­
cender” em direção de uma “transcendência" e exce­
lência dc ordem não-humana, mas divina? Chega,
por acaso, a manifestar-se o elemento teológico que
impera em tôda metafísica? (Sôbre a Linha, pp. 32,
39, 41). Quando o senhor diz, em sua obra, O Livro
do Relógio de Areia” (1954), p. 106: “Na dor se con­
firma a forma”, o senhor retém, tanto quanto vejo, a
estrutura fundamental de seu pensamento, fazendo, no
entanto, falar as palavras essenciais “dor” e “forma”
num sentido modificado, mas ainda não propriamente
elucidado. Ou equivoco-me?
Seria êste o momento oportuno para aprofundar
seu tratado Sôbre a Dor e trazer à luz a conexão
interna que une "trabalho” e “dor.” Esta conexão
aponta para relações metafísicas que se mostram ao se­
nhor a partir da posição metafísica de sua obra O Tra-
blahador. Para poder determinar melhor as relações
que sustentam a conexão de “trabalho” e “dor”, seria
necessário nada menos do que repensar profundamen­
te o traço fundamental da metafísica de Hegel, a uni­
dade que aproxima a Fenomenologia do Espírito e
a Ciência da Lógica. O traço fundamental é a “ne-
gatívidade absoluta”, enquanto a “força infinita” da
realidade efetiva, isto é, do “conceito existente.” No

36
mesmo (não igual) pertencer à negação da negação,
trabalho e dor manifestam seu mais íntimo parentesco
metafísico. Essa observação já acena suficientemente
às amplas discussões que aqui se exigem para perma­
necermos à altura da questão. Se alguém tentasse
pensar profundamente as relações entre "trabalho”,
enquanto traço fundamental do ente e a “dor”, pas­
sando pela Lógica, de Hegel, tomar-se-ia eloquente,
para nós, a palavra grega que exprime a dor: algos.
Provavelmente algos se liga etimològicamente a alego,
que, enquanto forma intensiva de lego, significa o ínti­
mo recolher. Então a dor seria aquilo que recolhe no
mais íntimo. O conceito hegeliano de "conceito” e seu
“esfârço” retamente entendidos dizem, no chão trans­
formado da metafísica absoluta da subjetividade, o
mesmo.
O fato de o senhor haver sido conduzido, por ou­
tros caminhos, ao âmago das relações entre trabalho e
dor, testemunha belamente como o senhor procura, à
maneira de sua representação metafísica, escutar a voz
que se faz ouvir a partir daquelas relações.
Que linguagem fala o projeto do pensamento que
esboça um cruzamento da linha? Será necessário con­
duzir a salvo para além da linha crítica a linguagem
da metafísica da vontade de poder, da forma e do va­
lor? Como seria isto viável, se precisamente a lingua-
guem da metafísica e a própria metafísica, seja ela a
do Deus vivo ou a do Deus morto, formaram, enquanto
metafísica, aquela barreira que impede a ultrapas-
sagem da linha, isto é, a superação do niilismo? Se a
situação fosse esta, não devería então tomar-se o cru­
zamento da linha, necessariamente, uma transforma-

37
ção do dizer e exigir uma relação diferente com a es­
sência da linguagem? E não está o senhor numa
relação com a linguagem que é de tal ordem que lhe
exige também uma caracterização bem distinta da
linguagem conceituai das ciências? Ainda que mui­
tas vezes se represente esta linguagem como nomina-
lismo, fica-se, contudo, sempre enredado na concepção
lógico-gramatical da essência da linguagem.
Escrevo tôdas estas coisas em forma de perguntas,
pois, tanto quanto vejo, um pensamento não é hoje
capaz de outro passo que não seja meditar insistente­
mente sôbre aquilo que suscitam as interrogações le­
vantadas. Talvez chegue o momento em que a essên­
cia do niilismo se mostre mais claramente à luz de
outros caminhos. Até lá satisfaço-me com a conjetura
de que somente podemos refletir sôbre a essência do
niilismo abrindo primeiro o caminho que conduz a
uma discussão do ser do ser. Somente neste caminho
se pode abordar o problema do nada. Mas a pergunta
peto ser do ser morre se ela não abandona a linguagem
da metafísica, porque a representação metafísica im­
pede que se pense a pergunta pelo ser do ser.
Parece que deveria ser evidente que a transforma­
ção do dizer que medita o ser do ser sofre outras exi­
gências além da simples troca de uma terminologia
obsoleta por uma nova. O fato da tentativa dessa
transformação poder permanecer presumivelmente por
muito tempo ainda, inadequada, não constitui razão
suficiente para que seja abandonada. Hoje está espe­
cialmente próxima a tentação de julgar o cuidado e o
vagar do pensamento pelo ritmo do cálculo e do
planejamento, que justificam imediatamente, junto a

38
qualquer um, pelos sucessos econômicos, as suas des­
cobertas técnicas. Êste julgamento do pensamento
violenta-o através de patrões que lhe são estranhos.
Ao mesmo tempo se atribui ao pensamento a pretensão
arrogante de saber a solução dos enigmas e de trazer
a salvação. Em oposição a isto merece pleno assenti­
mento o fato de o senhor apontar para a necessidade
de abriram-se tôdas as fontes de poder não maculadas,
e tomar atuante todo auxílio, para se poder subsistir
no "redemoinho do niilismo.”
Mas, se isto fazemos, não devemos, contudo, des­
prezar a discussão da essência do niilismo, já por isto
não, porque o niilismo procura desfigurar sua própria
essência e, assim, subtrair-se ao debate que a tudo
decide. Somente êle podería ajudar a abrir e prepa­
rar um âmbito livre, no qual pudesse ser experimenta­
do o que o senhor chama “uma nova volta do ser”
(Sôbre a Linha, p. 32).
O senhor escreve: "O momento, em que a linha
é cruzada, traz uma nova volta do ser e, com isto, co­
meça a brilhar o que é real.”
A proposição é de fácil leitura, mas difícil de ser
pensada. Antes de mais nada gostaria de perguntar se
não se dá o inverso: apenas a nova volta do ser traz
o momento oportuno para o cruzamento da linha. A
pergunta parece inverter sua proposição. Mas, sim­
plesmente inverter é sempre um procedimento capcio-
so. A solução que ela procura oferecer fica enredada
na pergunta que a inverteu. Sua proposição diz que
aquilo "que é real", portanto, a realidade, isto é, o ente,
começa a brilhar, porque o ser novamente se volta.
Por isso, perguntamos agora, mais adequadamente, se

39
o “ser” é algo para si ou se êle, além disso e de tempos
em tempos, se volta para o homem. Provavelmente o
próprio voltar-se é, ainda que de modo oculto, aquilo
que nós, bastante confusa e indeterminadamente, de­
signamos “o ser". Mas não acontece um tal voltar-se,
ainda mesmo e de modo estranho, sob o império do
niilismo, a saber, de tal modo que “o ser” se afasta e
se retrai para a ausência? Afastamento e retração não
são, contudo, nada. Êles imperam quase de modo
mais urgente para o homem; de tal modo que o ar­
rastam para longe, absorvem suas aspirações e ações
e, finalmente, o arrebatam ao centro do vórtice, de tal
modo que o homem pode chegar a pensar que apenas
se encontra ainda consigo mesmo. Na verdade, sua
mesmidade não é mais outra coisa que o uso de sua
ec-sistência em função do domínio daquilo que o se­
nhor caracteriza como o caráter total de trabalho.
Evidentemente, o voltar-se e o afastar-se do ser,
se atentamos de modo suficiente para êles, nunca se
deixam representar, como se atingissem, apenas de vez
em quando e por momentos, o homem. A essência do
homem repousa muito antes sôbre o fato de que ela
cada vez, desta ou daquela maneira, se demora e resi­
de no voltar-se e no afastar-se. Sempre dizemos mui­
to pouco do “próprio ser”, quando, dizendo “o ser”,
omitimos seu presentar-se para o ser humano, desco­
nhecendo nós, com isto, o fato de este ser do homem
em si mesmo participar da constituição “do ser”. Di­
zemos também muito pouco do homem, quando,
dizendo o “ser” (não □ ser-homem), pomos o homem
para si para, apenas então, afirmarmos uma relação do
assim posto com o “ser”. Mas, também dizemos de­

40
mais quando nos referimos ao ser como àquilo que
tudo compreende, representando, assim, o homem
apenas como um ente particular entre outros (planta,
animal) e estabelecendo entre ambos uma relação; pois
reside já no ser humano a relação para com aquilo que,
através da relação, — o relacionar no sentido de ne­
cessitar — é determinado como “ser” e, desta maneira,
despojado de seu presumido “em si e para si”. O
discurso sôbre o “ser” impele a representação de um
impasse para outro, sem que se manifeste a fonte de
tal perplexidade.
Parece, todavia, que tudo se organiza na melhor
das ordens se não deixamos de prestar intencionalmen­
te atenção ao já há muito pensado: a relação sujeito-
-objeto, Ela diz que a cada sujeito (homem) pertence
um objeto (ser) e vice-versa. Certamente. Contanto
que esta totalidade — a relação, o sujeito, o objeto —
já não repouse na essência daquilo que nós, como se
mostrou, representamos com absoluta insuficiência co­
mo a relação entre ser e homem. Subjetividade e
objetividade se fundamentam, por sua vez, já numa
original manifestação do “ser” e do “ser humano.” Ela
fundamenta a representação sôbre a distinção de am­
bos enquanto objeto e sujeito. Esta distinção vale,
desde então, como absoluta e condena o pensamento
a um bêco sem saída. Uma afirmação inicial do "ser”,
que quisera designar “o ser” desde o ponto de vista
da relação sujeito-objeto, não considera o que de pro­
blemático já deixa impensado. Desta maneira, pois,
o discurso sôbre um “voltar-se do ser” permanece um
expediente, e absolutamente problemático, porque o
ser repousa no próprio voltar-se, de sorte que o voltar-
-se nunca pode primeiro aproximar-se do “ser”.
Presentar-se (“ser”) é enquanto presentar-se sem­
pre presentar-se ao ser "humano, na medida em que
presentar-se é um apêlo que a cada instante chama o
ser humano. O ser humano é ouvinte enquanto tal
porque pertence ao apêlo que chama, porque pertence
ao pre-sentar-se. Seria isto, que é cada vez o mesmo,
o co-pertencer-se de apêlo e escuta, então “o ser”? Que
digo eu? “Scr” certamente não é mais, — caso pro­
curarmos pensar em sua profundidade e perfeição “ser’,‘
assim como êle impera historialmente, a saber como
presentar-se. Esta, no entanto, é a única maneira de
correspondermos à sua manifestação historiai. Deve­
riamos então abandonar com a mesma presteza a pa­
lavra que isola e separa: “o ser”, bem como o nome:
“o homem.” A pergunta pela relação entre ambos
revelou-se insuficiente porque jamais atinge a esfera
daquilo que gostaria de problematizar. Na verdade,
não podemos então nem mesmo dizer mais que “o ser”
e “o homem” “são” o mesmo, no sentido de se-co-per-
tencerem; pois, dizendo assim, ainda fazemos com que
cada um seja para si.
Mas, para que avento eu, numa carta sôbre a
essência do niilismo perfeito estas coisas embaraçosas
e abstratas? De um lado, para indicar que, de ne­
nhum modo, é mais fácil dizer “o ser” que falar do
nada; de outro lado, no entanto, para mostrar de nôvo
como aqui tudo depende inelutàvelmente do dizer
adequado, como tudo depende daquele logos, cuja
essência jamais serão capazes de experimentar a lógica
e a dialética que se originam da metafísica.
Depende do “ser” — designe a palavra agora, por
um instante, aquele problemático mesmo, no seio do
qual o ser do ser e o ser do homem se-copertencem —

42
depende do “ser” o fato de na correspondência com êle
fracassar nosso dizer e permanecer aquilo que apenas,
com excessiva pressa, se põe sob suspeita, dando-se-
-lhe o nome de “mística”? Ou depende de nosso dizer
o fato de ainda não falar, porque ainda não é capaz de
inserir-se numa correspondência com o ser do “ser”?
Fica, por acaso, entregue ao arbítrio dos que dizem,
a linguagem das palavras essenciais que falam no mo­
mento do cruzamento da linha, isto é, na travessia da
zona crítica do niilismo perfeito? Bastará que a lin­
guagem seja universalmente compreensível ou impe­
ram aqui outras leis c medidas que são tão singulares
como o momento da história universal da perfeição
planetária do niilismo e a discussão de sua essência?
Estas são perguntas que apenas começam a tor­
nar-se tão dignas de serem feitas, que nelas nos en­
contramos à vontade e não mais as abandonamos,
mesmo sob a ameaça de termos que renunciar a ar­
raigados hábitos de pensar no sentido da representação
metafísica e atrairmos o desprêzo de todo o são enten­
dimento.
Estas são perguntas que na passagem “sôbre a
linha” revelam ainda uma particular agudeza; pois
esta passagem se movimenta na esfera do nada. De­
saparecerá, com a perfeição ou ao menos com a supe­
ração do niilismo, o nada? Provavelmente sòmente se
chegará a esta superação quando, em lugar da apa­
rência do nada nadificante, puder advir a essência do
nada, desde antigamente ligada ao “ser” abrigando-se
junto a nós mortais.
De onde vem esta essência? Onde devemos pro­
curá-la? Qual é o lugar do nada? Nós não pergun-

43
tamos distraidamente demais quando procuramos pelo
lugar e discutimos a essência da linha. É isto, entre­
tanto, outra tentativa de produzir aquilo que o senhor
exige: “uma boa definição do niilismo”? Parece que
o pensamento é como que continuado num círculo
mágico em tôrno do mesmo, sem jamais poder aproxi-
mar-se deste mesmo. Mas talvez o círculo seja uma
oculta espiral. Quiçá esta se tenha, entretanto, estrei­
tado. Isto significa: os modos pelos quais nós nos
aproximamos da essência do niilismo se transformam.
A excelência da, com razão requerida, “bôa definição”
encontra sua confirmação no fato de abandonarmos a
vontade de definir, na medida em que ela deve anco­
rar em enunciações nas quais definha o pensamento.
Resta porém, uma vantagem menor, porque apenas
negativa, quando aprendermos que sôbre o nada e o
ser e o niilismo, sôbre sua essência e sôbre o ser (es­
sência no sentido verbal) da essência (essência no sen­
tido nominal) não se pode dar nenhuma referência que
possa preexistir em forma de enunciados para ser uti­
lizada.
Resta uma vantagem na medida em que compre­
endemos que aquilo para o qual deve valer a “boa
definição", a essência no niilismo, nos conduz para uma
dimensão que exige um outro dizer. Pertence o voltar-
-se ao "ser” e, sobretudo, de tal modo que o ser repousa
sôbre o voltar-se, então o “ser" se dissolve no voltar-se.
O voltar-se deve ser agora o digno de ser perguntado
e nisto deve ser pensado o ser que retornou à sua
essência e nela desapareceu. De acòrdo com isto, o
pensamento precursor somente pode ainda escrever,
nesta esfera, o "ser” de seguinte maneira; o>eíLO ris­
car cruciforme procura primeiramente repelir apenas o

44
inextirpável costume de representar “o ser" como algo
independente, para afirmá-lo como algo que, de vez
em quando, se opõe ao homem. De acordo com esta
representação surge a aparência de que o homem está
excluído do "ser”. Entretanto, o homem não apenas
está excluído, isto é, não apenas está incluído no “ser",
mas o “ser", necessitando do ser humano, está con­
denado a abandonar a aparência do para si, sendo,-
por isso também, de natureza bem diferente daquela
que quisera aceitar a representação de um conteúdo
que abarca a relação sujeito-objeto.
O sinal erucíforme não pode ser evidentemente,
pelo que ficou dito, simplesmente um sinal negativo
de algo que foi riscado. Ele aponta, muito antes para
as quatro regiões da quateunidade e sua reunião no
lugar do cruzamento (cf. Ensaios e Conferências, 1954,
pp. 145-204).
O pre-sentar-se volta-se enquanto tal para o ser
humano. Nisto o voltar-se se aperfeiçoa, na medida
em que a essência do homem dela se lembra. O ho­
mem é, por sua própria essência, a lembrança do ser,
mas do ser; Isto quer dizer; a essência do homem
copertence àquilo que no riscar erucíforme do ser
assume o pensamento para um apelo mais originário,
Pre-sentar-se radica no voltar-se, que, enquanto tal,
utiliza a essência do homem para que se dissipe por êle.
O nada também deveria ser escrito com o se?Ç
isto é, ser pensado. Nisto se oculta o seguinte: ao
nada pertence, não apenas como acréscimo, a essência
do homem enquanto êle sustenta a lembrança. Se,
portanto, o nada chega, de um modo particular, ao
domínio, no niilismo, então o homem não é apenas

45
atingido pelo niilismo, mas dêle se torna essencialmen-
te participante. Mas então também, todo o "efetivo”
humano não está, em algum lugar, aquém da linha,
para cruzá-la, e, além dela, estabelecer-se junto ao ser.
A própria essência do homem pertence à essência do
niilismo e desta maneira à fase de sua perfeição, O
homem, enquanto é aquele ser do qual o ser necessita,
participa da constituição da zona do ser e isto quer di­
zer, ao mesmo tempo, do niilismo. O homem não está
apenas postado na zona crítica da linha. Êle mesmo
é, mas não para si, e absolutamente não por si mesmo
unicamente, esta zona e, consequentemente, a linha.
Em caso nenhum é a linha, pensada como sinal da zo­
na do niilismo perfeito, algo que jaz diante do homem
e que pode ser ultrapassado. Mas então desaparece
também a possibilidade de um trans lineam e do cru­
zamento de que o senhor fala.
Quanto mais meditarmos sôbre 'a linha” tanto
mais desaparece esta imagem imediata e introdutória,
sem que, no entanto, percam seu significado os pensa­
mentos que com ela se desencadearam. No trabalho
Sobre a Linha o senhor apresenta uma descrição do
lugar do niilismo e um julgamento da situação e das
possibilidades de o homem se movimentar para o lu­
gar descrito e assinalado pela imagem da linha. Cer­
tamente é necessário uma topografia do niilismo, de
seu processo e de sua superação. Mas a topografia
deve ser precedida por uma topologia: a discussão
daquêle lugar que reúne o ser e o nada em sua essên­
cia, que determina a essência do niilismo, e, assim,
permite que se reconheçam os caminhos nos quais se
esboçam as maneiras de uma possível superação do
niilismo.

46
Qual a lugar a que pertencem ser e nada, entre os
quais se movimenta o niilismo e desdobra sua essên­
cia? No trabalho Sobre a Linha (pp. 22 segs.) o se­
nhor nomeia como uma das características principais
da corrente niilista “a redução": "A abundância se
esgota: o homem sente-se explorado em muitas de
suas relações e não apenas nas relações econômicas".
Mas com razão o senhor acrescenta: “Isto não exclui
que ela (a redução) esteja ligada, em longos trechos,
ao desenvolvimento crescente de poder e fôrça de pe­
netração", do mesmo modo como o desaparecimento
"não é unicamente desaparecimento” (p. 23).
Isto significa que: O movimento para o sempre-
-menos em plenitude e orlginàriedade, em meio ao ente
em sua totalidade, não é apenas acompanhado, mas
também determinado, por um aumento da vontade de
poder. A vontade de poder é a vontade que se quer.
Como tal vontade, e em suas ordens, aparece muito
cêdo prefigurado, e imperando de muitas maneiras,
aquilo que, representado a partir do ente, ultrapassa-o
e na ultrapassagem retroage sôbre o ente, seja enquan
to fundamento do ente, seja enquanto sua causa. A
redução que pode ser comprovada em meio ao ente
consiste numa produção do ser, isto quer dizer, no
desenvolvimento e transformação da vontade de poder
na incondicionada vontade de vontade. O desapare­
cimento, a ausência são determinados a partir de uma
presença e através dela. Esta presença precede a tu­
do o que desaparece e ultrapassa-o. Desta maneira
impera, então, também lá, onde o ente desaparece, não
apenas o ente para si mesmo, mas de maneira deter­
minante um outro. Em tôda parte a ultrapassagem

47
do ente que a êle retorna, o “transcendens por exce­
lência” (Ser e Tempo, § 7), é "o ser” do ente. Ultra -
passagem é a própria metafísica; com isto não se quer
dizer que êste nome signifique agora uma doutrina e
disciplina da filosofia, mas, simplesmente, o fato de
que “se” “dá” aquela ultrapassagem (Ser e Tempo, §
43 c). A ultrapassagem é dada, na medida em que é
levada ao caminho de seu imperar, isto é, é destinada.
A plenitude e subitâneidade imprevisível daquilo que
se, desenvolve como ultrapassagem, chama-se o des­
tino (genitivo objetivo) da metafísica.
De acordo com êste destino, a própria represen­
tação humana se toma metafísica. As represntações
metafísicas do ente podem ser apresentadas, evidente­
mente, històricamente, cm sua sucessão, como um
acontecer. Êste acontecer, porém, não é a história do
ser, mas êste impera como o destino da ultrapassagem.
O fato e o modo de “se” “dar” o ser do ente é a meta-
-físíca no sentido indicado.
O nada, mesmo quando o entendemos apenas no
sentido do nada absoluto de algo presente, pertence
como au-sente ao presente, enquanto é uma de suas
possibilidades. Se com isto, o nada impera no niilismo
e se a essência do nada pertence ao ser; se o ser, en­
tretanto, é o destino da ultrapassagem, então, a es­
sência da metafísica rcvela-se como o lugar essencial
do niilismo. Isto somente se pode dizer no momento
em que compreendemos a essência da metafísica como
o destino da ultrapassagem.
Em que consiste então a superação do niilismo?
Na recuperação da metafísica. Êste é um pensamento
chocante. Procura-se fugir dêle. Tanto menos, po­

48
rém, subsiste um pretexto para suavizá-lo. Entretan­
to, a admissão daquele pensamento tropeçará com
menos resistência, se atentarmos para o fato de que,
em conseqüência dêle, a essência do niilismo não é
nada de niilístico, e que nada será tirado da clássica
dignidade da metafísica, pelo fato de abrigar, em sua
própria essência, o niilismo.
A zona da linha crítica, isto é, o lugar da essência
do niilismo perfeito deve, por conseguinte, ser pro­
curada ali, onde a essência da metafísica desenvolve
suas possibilidades extremas e nelas se concentra. Isto
ocorre onde a vontade de vontade quer, isto é, provo­
ca, põe tudo o que se presenta unicamente apenas na
geral e uniforme factibilidade de seu fundo de reserva.
O ser não desaparece enquanto a reunião incondicio-
nada de um tal pôr, O ser irrompe com uma singular
estranheza. No desaparecimento e na redução apenas
se mostra o que antes se presentara, aquilo que a von­
tade de vontade ainda não apreendeu, mas que deixou
na vontade do espírito e seu automovimento total, no
qual se move o pensamento de Hegel.
O desenvolvimento do que antes se presentara
não é um desaparecer do presentar-se. Até, ao con­
trário, êste se retrai. Entretanto, a retração permane­
ce oculta para a representação determinada niilistica-
mente. A ela parece que, o que se presenta no senti­
do do fundo de reserva, se basta a si mesmo. A con­
sistência do fundo de reserva e aquilo que põe em tal
constância, a pre-sença do que se presenta, aparecem,
quando delas se chega a falar, como manifestação de
um pensamento divagador que de tanto “ser" não é
mais capaz de ver o ente, presumivelmente a única
“realidade.”

49
Na fase do niilismo perfeito tudo parece sugerir
que existe algo como ser do ente, que nada há com o
;se*r:íno sentido do nada nadificante). Ser de um mo­
do estranho fica ausente. Êle vela-se. Mantém-se
num velamento que se vela a si mesmo. Num tal ve­
lar consiste entretanto, a essência do esquecimento
experimentada pelos gregos. O esquecimento não é,
no fim, isto é, desde o começo de sua essência, nada
de negativo. Mas, enquanto velamento, é êle pres-
sumivelmente um abrigar que conserva o que ainda
não chegou ao desvelamento. Para a representação
corrente o esquecimento cáí facilmente na aparência
de uma mera omissão, da carência e do embaraçoso.
Costumeiramente tomamos o esquecer e a distração
exclusivamente como omissão, que, muitas vezes pode
ser encontrada como um estado do homem represen­
tado para si. Ficamos ainda muito longe de uma de­
terminação da essência do esquecimento. Contudo,
mesmo ali onde pudemos ver, em sua amplitude, a
essência do esquecimento caímos, com demasiada fa­
cilidade, no perigo de compreender o esquecimento
apenas como procedimento humano.
O “esquecimento do ser” foi, muitas vêzes, repre­
sentado como se o ser fôsse, para expressá-lo numa
imagem, o guarda-chuva que a distração de um pro­
fessor de filosofia esqueceu em algum canto.
Entretanto, o esquecimento não apenas afeta a
essência do ser, como algo aparentemente dela sepa­
rado. Êle pertence à tarefa do próprio ser, impera
como destino de sua essência. O esquecimento cor­
retamente pensado, o ocultamento do ser (essência no
sentido verbal) do ainda não desocultado, esconde

50
tesouros inexplorados e permanece a promessa de um
achado que apenas espera por uma procura adequada.
Para presumir tal coisa não são necessários dons pro­
féticos nem as manias dos pregoeiros; mas importa,
apenas a atenção, exercitada durante decênios, cen­
trada naquilo que foi e continua sendo, que se anuncia
no pensamento metafísico do ocidente. Isto que foi
e continua sendo está sob o signo do desvelamento do
que se presenta. O desvelamento consiste no vela­
mento do que se presenta. A este velamento, no qual
se funda o desvelamento (aletheia), deve dedicar-se a
lembrança. Ela lembra aquilo que foi, o que não pas­
sou porque permanece o imperecível em tudo o que
dura, que sempre garante o acontecimento do
A recuperação da metafísica é a recuperação do
esquecimento do ser. A recuperação se volta para a
essência da metafísica. Ela a envolve com aquilo que
acompanha a essência da metafísica até onde ela o
exige, na medida em que clama por aquela esfera que
a soerga ao espaço livre de sua verdade. Por isso o
pensamento, para corresponder à recuperação da me­
tafísica, deve antes elucidar a metafísica. A uma tal
tentativa a recuperação da metafísica parece, primeí-
ramente, uma superação que liquida a representação
exclusivamente metafísica, para conduzir o pensamen­
to ao livre espaço da essência recuperada da metafísi­
ca. Mas, na recuperação, a verdade permanente da
metafísica, aparentemente rejeitada, retoma pròpria-
mente como sua essência a partir de agora reconquis­
tada.
Aqui ocorre algo diferente de uma simples res­
tauração da metafísica. Ademais, não existe restaura­

52
ção que só possa assumir a tradição, como alguém que
recolhe as maçãs caídas da árvore. Cada restauração
é interpretação da metafísica. Quem hoje em dia
pensa ver mais claramente e acompanhar a interroga­
ção metafísica na totalidade de sua forma e história,
devería, já que se move com ar de superioridade e
prazer, em dimensões luminosas, meditar um dia sôbre
a fonte de onde tirou, afinal, a luz para um ver mais
claro. É difícil exagerar mais o grotesco quando se
proclama que minhas tentativas de pensamento são
a destruição da metafísica e quando, ao mesmo tempo,
alguém procura mauter-se, com o auxílio daquelas
tentativas, nos caminhos do pensamento e nas repre­
sentações que foram tiradas — não digo que se devam
a ela — daquela pressuposta destruição. Mas a in­
consciência já começou com a superficial falsa inter­
pretação da "destruição” abordada em Ser e Tempo
(1927), que não tinha outro propósito senão o de re­
conquistar as experiências originais do ser da metafí­
sica, através da derrubada de representações tornadas
correntes e vazias.
Para, entretanto, salvar a metafísica em sua es­
sência, a participação dos mortais nesta salvação deve
limitar-se primeiro a perguntar: Que é metafísica?
Correndo u risco de me estender em divagações e de
repetir o que foi dito em outras ocasiões, gostaria de
aproveitar a oportunidade desta carta para, mais uma
vêz, esclarecer o sentido e o alcance daquela pergunta.
Por quê? Porque também o senhor tem interesse em
colaborar, a seu modo, na superação do niilismo. Uma
tal superação, entretanto, ocorre no espaço da recupe­
ração da metafísica. Entramos neste espaço com a
pergunta: Que é metafísica? Meditadamente feita

52
esta pergunta já contém o pressentimento de que seu
modo próprio de perguntar começa, por si mesmo, a
vacilar. Que é... ? indica a maneira pela qual se
costuma perguntar pela “essência.” Se, entretanto, a
pergunta visa discutir a metafísica enquanto a ultra­
passagem do ser sôbre o ente, então se toma também
problemático, com o “ser” que ultrapassa, aquilo que
se distingue naquela distinção, em que se movem, des­
de a antiguidade, as doutrinas da metafísica e da qual
recebem o esquema fundamental de sua linguagem.
Esta é a distinção entre essência e existência, o que
algo é (Wízs-setn) e o fato de algo ser (Dass-seín).
A pergunta: Que é metafísica? usa primeiro
ingenuamente esta distinção. Logo, porém, a refle­
xão sôbre a ultrapassagem do ser sôbre o ente se mostra
como um daqueles problemas que devem atravessar
seu coração, não para que com isto o pensamento mor­
ra, mas viva transformado. Quando procurei explicar
a pergunta: Que é metafísica? — isto ocorreu um
ano antes do aparecimento de seu tratado A Mobili­
zação Total — eu não aspirava, de antemão, por algu­
ma definição de uma disciplina da filosofia acadêmica.
Eu discutia, muito antes, sob o ponto de vista da deter­
minação da metafísica, segundo o qual nela acontece a
ultrapassagem sôbre o ente enquanto tal, uma pergun­
ta que considera o outro com relação ao ente. Tam­
pouco. porém, esta pergunta foi levantada ao acaso e
dirigida ao indeterminado.
Depois de um quarto de século terá chegado o
tempo de apontar para um fato que, ainda hoje, se
passa por alto como se fôsse uma circunstância exte­
rior. A pergunta: Que é metafísica? foi abordada

S3
numa aula filosófica inaugural perante tôdas as facul­
dades reunidas. Ela se situa, portanto, no âmbito de
tôdas as ciências e a elas fala. Mas de que maneira?
Não com a arrogante intenção de corrigir seu traba­
lho ou de depreciá-lo.
A representação da ciência se dirige, em toda
parte, e, precisamente, a regiões delimitadas do ente.
Tratava-se de partir desta representação do ente e se-
-a, transigir com uma opinião muito cara às
ciências. Elas pensam que com a representação do en­
te se esgota tôda circunscrição do investigável e proble­
mático; de que fora do ente não existe “nada mais."
Esta opinião das ciências é assumida provisoriamente
pela pergunta pela essência da metafísica e, aparen­
temente, partilhada com elas. Entretanto, cada um
que sabe refletir já deve saber que uma pergunta pela
essência da metafísica sòmente pode ter em mira o que
caracteriza a meta-física: isto é, a ultrapassagem: o
ser do ente. Ao contrário, na perspectiva da represen­
tação científica, que sòmente conhece o ente, aquilo
que de nenhum modo é ente (a saber o ser) apenas se
pode oferecer como o nada. Por isso a preleção per­
gunta por êste nada. Ela não pergunta arbitrária e
indeterminadamente pelo nada. Ela pergunta: qual
é a situação daquilo que é totalmente diferente com
relação a qualquer ente, daquilo que não é um ente?
Com isto se manifesta: o ser-aí do homem "está sus­
penso” para dentro deste nada que é totalmente
diferente do ente. Expresso de outra maneira, isto
significa e sòmente podia significar: “O homem é o
lugar-tenente do nada.” A proposição diz: o homem
mantém livre o lugar para o totalmente outro do ente,
de tal modo que, em sua abertura, se possa dar algo

54
assim como pre-sença (ser), Êste nada que não é o
ente e que, contudo, se dá, não é nada que nadifica.
Pertence ao pre-sentar-se. Ser e nada não se dão lado
a lado. Um se emprega pelo outro num parentesco
cuja plenitude essencial quase ainda não consideramos,
Nós também não chegaremos a considerá-la enquanto
deixarmos de perguntar: qual o “se” que se visa e que
aqui “dá”? Em que dar ele dá? Em que medida per­
tence a êste “dá-se ser e nada” algo tal que se dá a
êste dom enquanto o conserva? Dizemos levianamen­
te: dá-se. O ser "é” tão pouco quanto o nada. Ambos
porém, dão-se.
Leonardo da Vinci escreve: “O nada não tem
centro, e seus limites são o nada.” “Entre as coisas
grandes que se podem encontrar entre nós, o ser do
nada é a maior”. (Diários e Notas, traduzidos confor­
me os manuscritos italianos para o alemão e editados
por Theodor Lücke, 1940, pp, 4 ss.). A palavra deste
grande homem não pode nem deve provar nada; mas
aponta para as perguntas: De que maneira dá-se ser,
dá-se nada? Donde nos vem um tal dar? Em que
medida estamos já a êle entregues enquanto somos
sêres humanos?
Pelo fato de a preleção Çue é Metafísica?, de
acordo com a ocasião aproveitada, perguntar, delimi­
tando intencionalmente seu horizonte, a partir da pers­
pectiva sôbre a ultrapassagem, isto é, sôbre o ser do
ente, por aquele nada, que se oferece primeiramente
para a representação científica do ente, tirou-se da
conferência “o” nada, fazendo-a um documento do
niilismo. Depois de longo tempo permito-me agora
fazer a pergunta; onde, em que proposição e em que

55
expressão, foi alguma vez dito que o nada a que mé
refiro na preleção é o nada no sentido do nada nadifi-
cante sendo, como tal, o fim primeiro e último de tôda
representação e existência?
A preleção encerra-se com esta pergunta: "Por
que é afinal o ente e não antes nada?” Aqui escrevo
intencionalmente e contra o costume NADA com le­
tra maiuscula. Literalmente, é claro, retoma aqui a
pergunta que Leibniz fêz e que Schelling assumiu.
Ambos os pensadores a compreendem como a pergun­
ta pela razão última e pela primeira causa entitativa
de todo ente. As tentativas atuais de restaurar a me­
tafísica retomam, com predileção, a pergunta assim
caracterizada.
Mas a preleção Que é Metafísica?, de acôrdo
com seu caminho de características diferentes, pensa,
através de uma outra esfera, também esta pergunta
num sentido diferente. Pergunta-se agora: de que
depende o fato de, em tôda parte, apenas o ente ter
a primazia, de não ser pensado antes o nada do ente,
“este nada”, isto é, o ser sob o ponto de vista de séu
ser? Quem procura pensar em profundidade a prele­
ção como um trecho do caminho de Ser e Tempo, po­
de entender a pergunta apenas no sentido a que aludi.
Tentar tal coisa se apresentava, primeiramente, como
uma pretensão estranha. Por isso a pergunta modifi­
cada foi expressamente elucidada na “Introdução”
(pp. 20 ss.) anteposta à quinta edição de Que é Me­
tafísica? (1949).
O que pretende tal indicação? Ela deve acenar
para a dificuldade e hesitação com que o pensamento
se dedica a uma reflexão que medita aquilo que cons-

56
titni também a preocupação de seu trabalho Sôbre a
Linha: a essência do niilismo.
A. pergunta: Que ê Metafísica? visa apenas
uma coisa: fazer com que as ciências meditem sôbre
o fato de, necessariamente, e, por isso, sempre e em
toda parte, toparem com o totalmente outro com rela­
ção ao ente, o nada no ente. Sem o saber elas já estão
situadas numa relação com o ser. Sòmente da verda­
de do ser, que impera sempre de outro modo, recebem
elas uma luz para poder, apenas então, ver e contem­
plar o ente por elas representado enquanto tal. O per­
guntar Que é Metafísica?, isto é, o pensamento que
dele brota não é mais ciência. Mas para o pensamento
a ultrapassagem enquanto tal, isto é, o ser do ente tor-
na-se agora digno de ser perguntado sob o ponto de
vista de seu ser e por isso jamais se toma digno de na­
da e nadificante. A palavra “ser”, aparentemente
vazia, é com isto pensada, constantemente, na pleni­
tude essencial daquelas determinações que, desde a
physis e o logos até a “vontade de poder”, mantém
referências recíprocas revelando, em tôda parte, um
traço fundamental que eu procuro designar pela pa­
lavra "pre-sença” (Ser e Tempo, § 6). Apenas porque
a pergunta: Que é metafísica? pensa de antemão na
ultrapassagem, no transcendente, no ser do ente, pode
ela pensar o nada do ser, daquêle nada que é co-origi-
nàriamente o mesmo com o ser.
É claro que aquele que nunca pensou sèriamente
e em seu conjunto a direção fundamental da pergunta
pela metafísica, o ponto de partida de seu caminho, a
ocasião de seu desenvolvimento, o âmbito das ciên­
cias a que se dirige a pergunta, deve descambar para

57
a interpretação de que aqui se apresenta uma filosofia
do nada (no sentido do niilismo negativo).
As interpretações errôneas, aparentemente não
extirpáveis, da pergunta: Que é metafísica? e o
desconhecimento são apenas, em parte mínima, a con-
seqüência de uma repulsa do pensamento. Sua ori­
gem está mais profundamente escondida. Tais inter­
pretações pertencem, entretanto, aos fenômenos que
iluminam nosso processo histórico: movimentamo-nos
ainda, com todo este espólio, em meio a zona do niilis­
mo, suposto que a essência do niilismo consiste no es­
quecimento do ser.
Como se situa então o cruzamento da linha? Con­
duz êle para fora da zona do niilismo perfeito? A
tentativa de cruzar a linha permanece cativa de uma
representação que pertence à esfera de domínio do es­
quecimento do ser. É por isso que ela também fala
ainda com os conceitos metafísicos fundamentais (for­
ma, valor, transcendência).
Pode a imagem da linha tornar suficientemente
intuitiva a zona do niilismo perfeito? É a imagem da
zona melhor?
Surgem dúvidas quanto à possibilidade de tais
imagens serem apropriadas para tornar visível a supe­
ração do niilismo, isto é, a recuperação do esquecimen­
to do ser. Mas provàvelmente qualquer imagem com­
porta tais dúvidas. Contudo, elas não são capazes de
macular a fôrça iluminadora de tais imagens, sua
presença originária e inelutável. Considerações de
tal espécie apenas atestam quão pouco versados esta­
mos no dizer do pensamento e quão pouco conhecemos
sua essência.

53
A essência do niilismo que se aperfeiçoa, final­
mente, no domínio da vontade de vontade, consiste no
esquecimento do ser. A este esquecimento parece que
correspondemos, antes de mais nada, pelo fato de es-
quecê-lo e isto significa aqui; quando o desprezamos.
Mas assim, não atentamos àquilo que significa o esque­
cimento enquanto velamento do ser. Se atentamos a
isto, experimentamos a desconcertante necessidade:
em vez de querer superar o niilismo devemos tentar
penetrar primeiro em sua essência. O ingresso em sua
essência é o primeiro passo pelo qual podemos deixar
o niilismo para trás. O caminho para êste ingresso tem
a direção e a característica de um regresso Êste re­
gresso evidentemente não se refere a um retôrno a tem­
pos mortos para experimentar de forma artificial seu
rejuvenescimento. O tornar atrás designa aqui a di­
reção para aquele lugar (o esquecimento do ser) a
partir do qual já a metafísica recebeu e conserva sua
origem.
De acordo com esta origem, a metafísica se vê
impossibilitada de experimentar alguma vez, enquan­
to metafísica, sua essência; pois, para a ultrapassagem
e no seio dela, mostra-se à representação metafísica o
ser do ente. Aparecendo, desta maneira, o ser assume
propriamente a representação metafísica. Não é de
estranhar, assim que esta representação metafísica se
revolte contra o pensamento de que ela se movimenta
no esquecimento do ser.
E, contudo, uma meditação suficiente e persisten­
te chega à convicção: a metafísica jamais proporciona,
por sua essência, ao habitar humano a possibilidade
de se estabelecer propriamente na paragem, isto é, na

59
essência do esquecimento do ser. É por isso que o
pensamento e a poesia devem retornar lá, onde, de
certo modo, já sempre tinham estado, e, contudo, nada
construiram. Nós, contudo, sòmente podemos prepa­
rar o habitar naquela paragem através do construir.
A um tal construir quase não lhe é permitido pensar
já na edificação da casa para o Deus e das moradas
para os mortais. Êle deve contentar-se em construir à
margem do caminho que conduz de volta para a para­
gem da recuperação da metafísica e que, por isso, per­
mite que percorramos e exploremos o que é convenien­
te e está destinado para uma superação do niilismo.
Quem se atreve a pronunciar tais palavras, e até
em texto público, sabe muito bem quão apressadamen­
te e com que facilidade êste dizer, que querería pro­
porcionar uma reflexão, é suprimido como um sombrio
murmúrio ou rejeitado como altivo prenuncio. Sem
dar importância para isto, aquele que vive numa apren­
dizagem constante deve pensar em examinar mais
profundamente e com mais cuidado o dizer do pensa­
mento que vive da lembrança. Um dia êle conseguirá
deixar habitar na plenitude do mistério êste dizer, co­
mo o dom supremo e o maior risco, como aquilo que
raramente tem sucesso e tantas vêzes se frustra.
Aqui descobrimos o motivo pelo qual todo o dizer
desta espécie abre custosa e desajeitadamente cami­
nho. Sempre se movimenta pela essencial multivoci-
dade da palavra e de suas expressões. A multivocidade
do dizer de nenhum modo se constitui apenas pela
simples acumulação de significados que surgem arbi-
tràriamente. Consiste num jogo, que tanto mais am­
plamente se desenvolve, tanto mais rigorosamente se

60
conduz por uma oculta regra, Ê através dela que a
multivocidade se conserva num equilíbrio cujo movi­
mento pendular raras vêzes percebemos. É por isso
que o dizer permanece ligado à lei suprema. Esta é
a liberdade que liberta a transformação que jamais
repousa, para dentro da estrutura em que tudo se mo­
vimenta. A multivocidade daquelas palavras, “que
brotam como flores” (Hõlderiin, “Pão e Vinho”), é o
jardim selvagem, no qual crescimento e cultura estão
reciprocamente harmonizados a partir de uma incom­
preensível intimidade. Não devería surpreendê-lo o
fato de a discussão da essência do niilismo atingir ine-
lutàvelmente, em cada etapa do caminho, o digno de
ser pensado que nos estimula e que nós designamos,
com bastante embaraço, o dizer do pensamento. Êste
dizer não é a expressão do pensamento, mas é o próprio
pensamento, sua marcha e seu canto.
Quais são as intenções desta carta? Ela tenta
elevar a uma multivocidade mais alta o título Sôbre
a Linha, isto quer dizer, tudo o que êle assinala no seu
e no meu sentido e o que permite mostrar no dizer es­
crito. Esta multivocidade nos permite conhecer em
que medida a superação do niilismo exige o ingresso
na essência daquilo, cujo advento caduca a vontade
de superação. A recuperação da metafísica chama o
pensamento para uma ordem mais originária.
Seu julgamento da situação trans lincam e a mi­
nha discussão de linea estão numa dependência recí­
proca. Unidos, ambos estão comprometidos a não
abandonar o esforço e a exercitar o pensamento pla­
netário num trecho, ainda que muito reduzido, do
caminho. Aqui também não é necessário que alguém
possua dons e gestos proféticos para pensar no fato

61
de que a construção planetária enfrentará encontros à
altura dos quais hoje, em nenhum lugar, estão aquêles
que lhes devem ir ao encontro. Isto vale do mesmo
modo para as línguas européias e para as do extremo
oriente, vale antes de tudo isto para o âmbito de seu
possível diálogo. Nenhuma das duas línguas será por
si capaz de abrir e fundar esta dimensão.
Nietzsche, à cuja luz e sombra cada contempo­
râneo, “a favor dele” ou "contra êle” pensa e poeta,
ouviu um apêlo, que exige uma preparação do homem
para assumir o domínio da terra. Êle viu e compre­
endeu a luta inflamada pelo domínio (XIV, p. 320,
XVI, p. 337, XII, p. 208). Não é uma guerra, mas o
polemos que faz aparecer deuses e homens, livres e
escravos definitivamente em sua respectiva essência e
que levanta uma discussão clarificadora do Em
comparação com tal luta as guerras mundiais perma­
necem superficiais. Elas poderão decidir cada vez
menos, quanto mais se servem da técnica para seus
armamentos.
Nietzsche ouviu aquêle apelo à meditação sôbre
a essência de um domínio planetário. Seguiu o cha­
mado no caminho do pensamento metafísico a êle des­
tinado e sucumbiu a caminho. Assim ao menos pare­
ce a uma consideração histórica. Talvez não tenha
sucumbido mas alcançado tão longe quanto pôde seu
pensamento.
O fato de o pensamento de Nietzsche ter deixado
coisas graves e difíceis para trás deveria lembrar-nos,
mais sèriamente ainda e de outra maneira que até ago­
ra, de que longínqua origem emerge a pergunta, nêle
despertada, que medita a essência do niilismo. A

62
pergunta não se tornou mais fácil para nós. Por isso
ela deve limitar-se ao provisório: meditar antigas e ve­
neráveis palavras cujo dizer nos inspira e revela o âm­
bito essencial do niilismo e sua superação. Existe uma
salvação mais trabalhosa daquilo que nos foi destinado
e no destino transmitido, do que tal lembrança? Eu
não conheço nenhuma. Mas isto parece revolucioná­
rio àqueles para os quais o usual permanece sem ori­
gem. O que simplesmente aparece já é tomado por
êles como o absolutamente válido. Exige que isto seja
apresentado em ambiciosos sistemas. Lá, ao contrário,
onde a meditação sempre se ocupa apenas com a tare­
fa de chamar atenção para o uso língüístico do pensa­
mento, não se quer ver utilidade alguma. Mas, às ve­
zes, uma tal meditação serve àquilo de que necessita
o que deve ser pensado.
Aquilo que a carta procura apresentar pode ma­
nifestar-se, muito brevemente, como insuficiente.
Entretanto, o modo como a carta quereria alimen­
tar a meditação e a discussão, Goethe o exprime numa
frase, com a qual quero encerrar esta carta: “Se
alguém considera a palavra e a expressão testemunhas
sagradas e não as quer colocar, como moeda divisio-
nária e papel-moeda em circulação rápida e momen­
tânea, mas as pretende cotadas como verdadeiro
equivalente no intercâmbio espiritual, não se pode
censurá-lo por denunciar expressões gastas, nas quais
ninguém vê mal algum, mas que na verdade exercem
prejudicial influência, obscurecem maneiras de ver,
desfiguram o conceito e imprimem a disciplinas intei­
ras uma falsa orientação,”
Saudo-o cordialmente.

63
O CAMINHO DO CAMPO

5
O CAMINHO DO CAMPO

Do portão do Jardim do Castelo estende-se até


as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as
velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar,
estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço
entre as sementeiras que nascem e as campinas que
despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primei­
ra colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do
campo, dobra em busca da floresta. Sauda, de pas­
sagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco
esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vêzcs, êste ou aquêle texto dos
grandes pensadores, que um jovem desageitado pro­
curava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam
e nenhuma saida se anunciava, o caminho do campo
oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos
passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da
terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os
mesmos textos ou com seus próprios problemas, retor­
na à vereda que o caminho estira através da campina.
Sob os pés, êle permanece tão próximo daquele que
pensa quanto do camponês que de madrugada cami­
nha para a ceifa.

67
Mais frequente com o correr dos anos, o carvalho
à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da in­
fância e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no
coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes
do machado, meu pai logo partia, atravessando a ma­
taria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo
de madeixa destinado à sua oficina. Era lá que traba­
lhava solícito e concentrado, nos intervalos de sua
ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos,
que, run e outros, mantêm relação própria com o tem­
po e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na
casca do carvalho. Equipados de banco para o rema­
dor e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach
ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes tra­
vessias atingiam facilmente seu termo e facilmente
recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era
protegida por um halo, apenas discernível, pairando
sôbre tôdas as coisas. O espaço aberto era-lhe limita­
do pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava
como se sua discreta solicitude velasse sôbre todos os
seres. Essas travessias de brinquedos nada podiam
saber das expedições em cujo curso tôdas as margens
rficam para trás. Entrementes, a consistência e o odôr

do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente,


da lentidão e da constância com que a árvore cresce.
O carvalho mesmo assegurava que só semelhante
' crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer
significa: abrir-se à anqjlidão dos céus, mjig também
deitar raízes iia obscuridãue da terra; que tudo o que
e verdadeiro e autêntico sòmente chega à maturidade
^se o homem fôr simultâneamente ambas as coisas:

6S
disponível ao apêlo do mais alto céu e abrigado pela
proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do
campo, que diante dêle corre seguro de seu destino.
O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno
dêle; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que
é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da co­
lina escoltam o caminho em cada estação, próximos
dêle com proximidade sempre nova. Quer a cordilhei­
ra dos Alpes acima das florestas se esbata no cre­
púsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre
os outeiros, a cotovia de manhã se lance ao céu de ve­
rão, quer o vento leste sopre a tempestade do lado em
que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador car­
regue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a la­
reira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao
celeiro, oscilando pelos sulcos do caminho, quer apa­
nhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do
prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua
sombria massa sôbre o vale, sempre e de tôdos os lados
fala, em tòrno do caminho do campo, o apêlo do
Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e
do que é grande. Visita os homens inesperadamente,
mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer.
O dom que dispensa está escondido na inaparência
do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadure­
cem e se demoram em tôrno do caminho, em sua am­
plitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz
o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a
ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que
Deus é verdadeiramente Deus.

69
í Todavia, o apelo do caminho do campo fala ape­
nas enquanto homens nascidos no ar que o cerca forem
capazes de ouvi-lo. São servos de sua origem, não
escravos do artifício. Em vão □ homem através de
planejamentos procura instaurar uma ordenação no
globo terrestre, se não for disponível ao apelo do
caminho do campo. O perigo ameaça, que o homenrH
de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seus ou- I >'
vidos retumba o fragor das máquinas que chega a to­
mar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa el
se torna errante. Aos desatentos o Simples parece |
uniforme. A uniformidade entendia. Os entendiados
só veem monotonia a seu redor. O Simples desvane-|
ceu-se. Sua fôrça silenciosa esgotou-se.
r~ O número dos que ainda conhecem o Simples co­
mo um bem que conquistaram, diminui, não há dúvi­
da, ràpidamente. Êsses poucos, porém, serão, em
tôda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüi-
lo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um
I dia às fôrças gigantescas da energia atômica, que o
j cálculo e a sutileza do homem engendraram para com
ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um senti­
do que ama o espaço livre c que, em momento oportu­
no, transfigura a própria aflição na serenidade der­
radeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo
trabalho: procurado apenas por si o trabalho promo­
ve aquilo que nadifica.
Do caminho do campa ergue-se, no ar variável
com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face
parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência

70
é uma sageza sutil. (*) Ninguém a obtém sem que
já a possua. Os que a têm, ieceberam-na do caminho
do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do in­
verno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da pri­
mavera e o ocaso tranquilo do outono; a alegria da
juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreen­
dem-se mutuamente. Tudo, porém, se insere plàcida-
mente numa única harmonia, cujo éco o caminho do
campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para
o eterno, Seus batentes giram nos gonzos que um
hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da exis­
tência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho re­
torna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina
sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às
muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce
das estrelas e se espraia sôbre as coisas. Atrás do
castelo alteia-se a torre da igreja de São Martinho.
Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas
das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O ve­
lho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se

* Literaímente: ''Esta gaia ciência é dm Kuinzige." £ste tèrtao


dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade
natal de Heidegger), corresponde etimològicamente a veirtuiiltig, “bom
para nada", “próprio para nada”, cujo sentido passou para o de "travesso",
"malicioso", e finalmente hoje designa um estado de serenidade livre e
alegre, que gosta de se ocultar, marcada por uma ironia afetuosa e por
um toque de melancolia: melancolia sorridente, sabedoria que apenas se
comunica discretamente nas palavras. Estas informações foram forne­
cidas pelo próprio autor ao tradutor francês dêste texto. Vide Martin
Heidegger "Quesliont III" — Editions Gallimard, 1966, Paris. Como
a palavra não tem equivalente em português, optamos em traduzi-la por
“sageza sutil”, pondo assim em circulação um antigo vocábulo registrado
pelos velhos léxicos da língua. (N. do T.)

71
aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas,
cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se
aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacri­
ficados prematuramente em duas guerras mundiais.
O Simples toma-se ainda mais simples. O que é sem­
pre o Mesmo desenraiza e liberta. O apêlo do cami­
nho do campo é agora bem claro. É a alma que fala?
Fala o mundo? Ou fala Deus?
, Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A
renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a fôrça inesgo­
tável do Simples. O apêlo faz-nos de novo habitar
uma distante Origem, onde a terra natal nos é de­
volvida,

72
NOVANDO O EMPRÉSTIMO OU

DEVOLVENDO ESTA OBRA ,

NA DATA ESTIPULADA 7
ERNILDO STEIN, tradutor dfate

volume, nasceu em 1934, em Santa Rosa,


Rio Grande do Sul. Estudou Filosofia

e Teologia no Seminário Imaculada Con­

ceição, em Viamão, próximo a Pôrto

Alegre. Licenciou-se em Filosofia e ba-

charelou-se em Ciências Jurídicas e So­

ciais pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul. Cursou um ano de

Filosofia na Universidade de Freiburg

im Breisgau, Alemanha, realizando es­

tudos sob a direção dos profcssôres

Werner Marx, Eugen Fink, Bernahrd

Welte, Erik Wolf, Rainer Marten e He-

ribert Boeder. Publicou ent 1966 o livro

“Introdução ao Pensamento de Martin

Heidegger". Professor de Filosofia, por


concurso, na Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, defendeu tese sfibre

a estrutura e movimento da interrogação

heideggetiana, “Compreensão e Finitude”.

Titular da Cadeira de Filosofia Geral da

Faculdade de Filosofia da Imaculada


Conceição de Viamão, onde ainda lecio­

na História da Filosofia Contemporânea,

é igualmente titular das Cadeiras de

Ética c Filosofia da Religião na Faculdade


de Filosofia da Universidade de Caxias

do Sul. Leciona Filosofia e Teologia no

Instituto Superior de Estudos Religiosos

da Pontifícia Universidade Católica do

Rio Grande do Sul. O professor ER­


NILDO STEIN traduzirá para esta co­

leção a maioria dos trabalhos do filósofo

Martin Heidegger,

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