Você está na página 1de 12

220 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n.

3 3 | julho 2017
EM QUEDA LIVRE: UM THOUGHT EXPERIMENT*
SOBRE PERSPECTIVA VERTICAL

Hito Steyerl

queda livre perspectiva linear


observação ponto de vista

Atravessando referências no histórico da perspectiva linear como uma construção para


a percepção, a autora permite-nos observar o atual estado de suspensão reforçado
pelas tecnologias de imagem em que outro olhar, deslocado de um plano estável,
busca observar ao redor, se localizar no tempo e no espaço.

Em queda livre: um thought experiment so- IN FREE FALL: A THOUGHT EXPERIMENT ON


bre perspectiva vertical VERTICAL PERSPECTIVE | Crossing references in
the history of linear perspective as a construct
Imagine que você está caindo. No entanto, não for perception, the author allows us to observe
há chão. Muitos filósofos contemporâneos apon- the current state of suspension reinforced
taram que o presente momento é distinto por by the technologies of image where another
view, displaced from a stable ground, seeks to
uma condição predominante de groundlessness.1 observe around, to locate in time and space.
Não podemos presumir qualquer terreno estável | Free fall, linear perspective, observation,
em que basear afirmações metafísicas ou mitos point-of-view.
políticos fundamentais. Na melhor das hipóteses,
somos confrontados com tentativas temporárias, contingentes e parciais de fundamentação. Se, porém,
não há terreno estável disponível para nossas vidas sociais e aspirações filosóficas, a consequência deve
ser um permanente, ou ao menos um estado intermitente de queda livre para sujeitos e objetos similares.
Por que, então, não percebemos?

Paradoxalmente, enquanto está caindo, você provavelmente se sente como se estivesse flutuando – ou
absolutamente imóvel. Cair é relacional – se não há nada na direção em que vai cair, talvez você nem
perceba que está caindo. Se não há chão, a gravidade pode estar baixa, e você se sentirá leve. Objetos
continuarão suspensos se você os soltar. Sociedades inteiras ao seu redor podem estar caindo, assim
como você. E isso pode realmente parecer inércia perfeita – como se história e tempo tivessem terminado
sem que você nem sequer se lembre de que o tempo já se moveu adiante.

Vista da instalação de Hito Steyerl ExtraSpaceCraft, 2016 Bienal de Berlim Foto Timo Ohler, Cortesia
de Hito Steyerl

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 221


Enquanto você cai seu senso de orientação pode modernidade. Na queda, as linhas do horizonte
começar a pregar outras peças em você. O hori- se despedaçam, giram e se sobrepõem.
zonte treme num labirinto de linhas em colapso,
Uma breve história do horizonte
e você pode perder qualquer noção de em cima e
embaixo, de antes e depois, de você e seus limites. Nosso senso de orientação espacial e temporal
Pilotos têm relatado que a queda livre pode desen- tem mudado drasticamente nos últimos anos,
cadear uma sensação de confusão entre eles e o acelerado por novas tecnologias de vigilância,
avião. Enquanto caem, as pessoas podem sentir-se rastreamento e orientação. Um dos sintomas

como coisas, enquanto coisas podem sentir-se como dessa transformação é o crescimento da im-
portância de vistas aéreas: panoramas, vistas
pessoas. Modos tradicionais de ver e sentir são rom-
do Google Maps, vistas de satélite. Estamos
pidos. Qualquer senso de equilíbrio é perturbado.
nos acostumando cada vez mais com o que era
Perspectivas são distorcidas e multiplicadas. Novos
chamado de Visão de Deus. Por outro lado, nós
tipos de visualidade emergem.
também percebemos a decrescente importância
Essa desorientação se deve parcialmente à perda de um paradigma de visualidade que por tanto
de um horizonte estável. E com a perda do hori- tempo dominou nossa visão: a perspectiva linear.
zonte também vem o desvio de um paradigma O ponto de vista estável e único da perspectiva
estável de orientação, que situou conceitos de linear está sendo complementado (e frequente-
sujeito e objeto, de tempo e espaço, por toda a mente substituído) por perspectivas múltiplas,

Hans Vredeman de Vries, matriz da gravura Perspective, 1604-1605

222 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 3 | julho 2017


sobreposição de janelas, linhas de voo distorcidas
e pontos de fuga divergentes. Como essas mu-
danças podem estar relacionadas ao fenômeno
de groundlessness e permanente queda?

Primeiro, vamos dar um passo atrás e considerar o


papel crucial do horizonte em tudo isso. Nosso sen-
so de orientação tradicional – e, com ele, conceitos
modernos de tempo e espaço – baseia-se em uma
linha estável: a linha do horizonte. Sua estabilida-
de depende da estabilidade do observador, que é
pensado para estar localizado em algum tipo de ter-
reno, um litoral, um barco – um chão que pode ser
imaginado estável, mesmo que não o seja de fato.

A linha do horizonte era um importante elemento


Instrumento náutico, o sextante determina o ângulo entre um objeto
de navegação. Ela definia os limites de comuni- celeste e o horizonte

cação e entendimento. Além do horizonte, havia


apenas mudez e silêncio. No interior, as coisas
podiam fazer-se visíveis. Também podiam, entre- horizontes artificiais foram finalmente inventados
tanto, ser usadas para determinar a própria locali- para criar a ilusão de estabilidade.
zação e relação com o entorno, destino ou ambi-
O uso do horizonte para calcular a posição pro-
ções de algo ou alguém. As navegações primitivas
piciou aos navegantes senso de orientação, per-
consistiam no uso de gestos e posturas em relação
mitindo assim o colonialismo e a expansão de um
ao horizonte. “Em tempos antigos [navegantes
mercado capitalista global; tornou-se também
árabes] usavam o espaço entre os dedos polegar
importante ferramenta para a construção dos pa-
e mindinho com o braço esticado, ou uma flecha
radigmas ópticos que vieram a definir a moderni-
mantida no comprimento do braço para ver o ho-
dade, sendo a chamada perspectiva linear o mais
rizonte na extremidade inferior e Polaris na parte
importante deles.
superior.”² O ângulo entre o horizonte e a estrela
Polar informava sobre a altitude em determinada Abu Ali al-Hasan ibn al-Haytham (965-1040),
posição. Esse método de medição era conhecido também conhecido como Alhazen, escreveu em
como avistar o objeto, mirar o objeto ou visar. 1028 um livro de teoria visual, Kitab al-Manazir.
Depois de 1200, ele foi disponibilizado na Europa,
Instrumentos como o astrolábio, o quadrante e o
e numerosos experimentos em produção visual
sextante refinaram esse modo de se obter orien-
surgiram entre os séculos 13 e 15, o que culminou
tação por meio do horizonte e das estrelas. Um
no desenvolvimento da perspectiva linear.
dos principais obstáculos com essa tecnologia, em
primeiro lugar, era o fato de o chão em que os Em Last Supper (1308-1311), de Duccio, há vários
marinheiros se situavam nunca ser estável. O hori- pontos de fuga evidentes. As perspectivas nesse
zonte estável permaneceu uma projeção, até que espaço não se fundem em uma linha do horizon-

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 223


te, nem se cruzam em único ponto de fuga. Em de pé sobre solo estável olhando na direção de
Miracle of the Desecrated Host (Scene I) (1465- um ponto de fuga em um horizonte plano e, na
1469), pintado por Paolo Uccello, um dos grandes realidade, bastante artificial.
entusiastas dos experimentos no desenvolvimento
A perspectiva linear, todavia, também realiza
da perspectiva linear, a perspectiva alinha-se para
uma operação ambivalente no que diz respeito
culminar em um só ponto de funga, localizado
ao observador. Como todo paradigma conver-
em horizonte virtual definido pela linha do olho.
ge em um dos olhos do observador, ele se tor-
A perspectiva linear se baseia em inúmeras ne- na central para a visão de mundo estabelecida
gações decisivas. Primeiro, a curvatura da Terra é pela perspectiva linear. O observador é refletivo
tipicamente desprezada. O horizonte é concebido no ponto de fuga e, assim, é construído por ele.
como uma linha reta abstrata para a qual con- O ponto de fuga dá ao observador um corpo e
vergem os pontos ou qualquer plano horizontal. uma posição. Por outro lado, porém, a impor-
Adicionalmente, como argumentou Erwin Pano- tância do espectador também é indeterminada
fsky,3 a construção da perspectiva linear declara a pela suposição de que a visão segue leis científi-
visão de um espectador monocular e imóvel como cas. Enquanto dá poder ao sujeito ao colocá-lo
norma – e a própria visão é dada como natural, no centro da visão, a perspectiva linear também
científica e objetiva. Assim, a perspectiva linear sabota sua individualidade, sujeitando-a a leis
baseia-se em uma abstração e não corresponde supostamente objetivas de representação.
a qualquer percepção subjetiva. Em vez disso, cal-
Evidentemente, essa reinvenção de sujeito, tempo
cula um espaço matemático, achatado, infinito,
e espaço forneceu ferramentas adicionais que per-
contínuo e homogêneo, e o declara realidade. A
mitiram a dominação ocidental e de seus concei-
perspectiva linear cria a ilusão de uma vista qua-
tos – como também a redefinição de padrões de
se natural para “fora”, como se a imagem plana
representação, tempo e espaço. Todos esses com-
fosse uma janela abrindo-se ao mundo “real”. Isto
ponentes são evidentes na pintura de seis painéis
também é o significado literal do latim perspecti-
de Uccello, Miracle of the desecrated host (1465-
va: para ver através.
1469). No primeiro, uma mulher vende uma hós-
Esse espaço definido pela perspectiva linear é cal- tia a um mercador judeu, que no segundo painel
culável, navegável e previsível. Ele permite o cál- tenta “profaná-la”. Junto com sua mulher e dois
culo de um risco futuro, que pode ser antecipado filhos pequenos, ele é amarrado a um pilar cujas
e, portanto, controlado. Como consequência, a paralelas convergem como se fossem marca de
perspectiva linear não só transforma o espaço, alvo. A data desses painéis representa brevemente
como também introduz a noção do tempo linear, a expulsão de judeus e muçulmanos da Espanha,
que permite a previsão matemática e, com isso, em 1492, ano da expedição de Cristóvão Colombo
um progresso linear. Este é o segundo significa- às Índias Ocidentais.5 Nessas pinturas, a perspec-
do temporal de perspectiva: uma vista sobre um tiva linear se torna matriz para propaganda racial
futuro calculável. Como argumentou Walter Ben- e religiosa, e atrocidades relacionadas. Essa visão
jamin, o tempo pode tornar-se tão homogêneo e de mundo dita científica ajudou a definir padrões
vazio quanto o espaço.4 E para todos esses cál- para marcar pessoas como ‘outro’, legitimando
culos operarem, devemos assumir um observador assim sua conquista e dominação.

224 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 3 | julho 2017


Por outro lado, a perspectiva linear também car- devorados por tubarões, são meras formas abai-
rega as sementes de sua própria queda. Seu fas- xo da superfície da água. A perspectiva linear, na
cínio científico e atitude objetivista estabeleceram visão dos efeitos do colonialismo e da escravidão
reivindicação universal para a representação, um – o ponto de vista central, a posição de domínio,
vínculo com a veracidade que minou visões de controle e subjetividade –, é abandonada e co-
mundo particularistas, mesmo que tardias e pou- meça a inclinar e tombar, levando consigo a ideia
co enfáticas. Assim, transformou-se em refém da de espaço e tempo como construções sistemáti-
verdade que havia tão seguramente proclamado. cas. A ideia de um futuro calculável e previsível
E uma profunda suspeita foi plantada à beira das mostra um lado assassino por meio de um segu-
pretensões de autenticidade desde seu início. ro que impede a perda econômica inspirando o
assassinato a sangue frio. O espaço se dissolve
A queda da perspectiva linear
no caos da superfície instável e ameaçadora de
A situação agora, contudo, é um tanto diferente. um mar imprevisível.
Parece que estamos em um estado de transição
Desde cedo, Turner experimentou perspectivas
em direção a um ou vários outros paradigmas
móveis. Conta-se que ele se amarrou ao mastro
visuais. A perspectiva linear foi complementada
de um navio que atravessava de Dover a Calais,
por outros tipos de visão, a ponto de concluir-
explicitamente para observar a mudança do hori-
mos que seu status como paradigma visual do-
zonte. Em 1843 ou 1844, ele manteve sua cabeça
minante está mudando.
para fora da janela de um trem em movimento
A transição já era aparente no século 19 no cam- por exatamente nove minutos, o que resultou
po da pintura. Uma obra em particular expressa na pintura Rain, steam, and speed − The Great
as circunstâncias dessa transformação: The slave Western Railway (1844). Nela, a perspectiva line-
ship (1840), de J. M. W. Turner. A cena nessa ar se dissolve ao fundo. Não há resolução, ponto
pintura representa um episódio real: quando o de fuga ou visão clara de qualquer passado ou
capitão de um navio negreiro descobriu que seu futuro. Novamente, é mais interessante a pers-
seguro cobria somente os escravos perdidos no pectiva do próprio espectador, que parece estar
mar, e não os doentes e moribundos a bordo, balançando no ar além dos trilhos de uma ponte
ele ordenou que esses fossem jogados ao mar. A férrea. Não há base definida sob essa suposta
pintura de Turner captura o momento em que os posição. Ele pode estar suspenso na névoa, flu-
escravos começam a afundar. tuando acima de chão ausente.
Nela, a linha do horizonte, se de todo distinguí- Nas duas obras de Turner, o horizonte aparece
vel, é inclinada, curvada e agitada. O observador embaçado, inclinado, mas não necessariamente
perdeu sua posição estável. Não há paralelas que rejeitado. As pinturas não negam sua existência;
possam convergir para ponto de fuga único. O deixam-no, porém, inacessível à percepção do ob-
sol, centro da composição, é multiplicado em re- servador. A questão do horizonte começa a flutuar,
flexos. O observador está transtornado, desloca- por assim dizer. Perspectivas assumem pontos de
do, posto ao lado da visão dos escravos, que não vista móveis, e a comunicação é inviabilizada, ain-
estão apenas afundando, como também têm seus da que sob um horizonte comum. Pode-se dizer
corpos reduzidos a fragmentos − seus membros, que o movimento descendente dos escravos afun-

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 225


dando afeta o ponto de vista do pintor e o arranca – e especialmente com a conquista do espaço side-
de uma posição de certeza e o sujeita à gravidade ral – vem o desenvolvimento de novas perspectivas
e ao movimento de um mar sem fundo. e técnicas de orientação, encontradas sobretudo
em números crescentes de vistas aéreas de todos
Aceleração
os tipos. Enquanto todos esses desenvolvimentos
Com o século 19, o desmantelamento da pers- podem ser descritos como características típicas da
pectiva linear começou a estabilizar-se em dife- modernidade, os últimos anos têm visto uma cul-
rentes áreas. O cinema anexa a fotografia com a tura visual saturada por vistas de cima de imagens
articulação de diferentes perspectivas temporais. A militares e de entretenimento.
montagem torna-se dispositivo perfeito para de-
Aeronaves expandem o horizonte de comunica-
sestabilizar a perspectiva do observador e quebrar
ção e agem como câmeras aéreas, fornecendo
o tempo linear. A pintura abandona em grande
planos de fundo para mapas de vistas aéreas.
parte a representação e destrói a perspectiva linear
Drones pesquisam, rastreiam e matam. A indús-
com o cubismo, a colagem e diferentes tipos de
tria do entretenimento, no entanto, também está
abstração. Tempo e espaço são reimaginados por
movimentada. Especialmente no cinema 3D, as
meio da física quântica e da teoria da relatividade,
novas características das vistas aéreas são explo-
enquanto a percepção é reorganizada pela guer-
radas a fundo ao encenar voos vertiginosos aos
ra, pela publicidade e pela esteira transportadora.
abismos. Pode-se dizer que o 3D e a construção
Com a invenção da aviação, aumentam as oportu-
de mundos verticais imaginários (prefigurados na
nidades de queda, mergulhos e colisões. Com isso
lógica dos jogos de computador) são essenciais
entre si. O 3D ainda intensifica hierarquias de
materiais necessários para acessar essa nova vi-
sualidade. Como argumentou Thomas Elsaesser,
um ambiente de hardware que integre o militar, a
vigilância e aplicações de entretenimento produz
novos mercados para hardware e software.6

Em texto fascinante, Eyal Weixman analisa a vertica-


lidade na arquitetura política, descrevendo uma mu-
dança espacial de soberania e vigilância em termos de
soberania vertical tridimensional 3D. Ele argumenta
que o poder geopolítico esteve distribuído em uma
superfície planar tipo mapa cujas fronteiras foram
desenhadas e defendidas. No presente, porém, a dis-
tribuição de poder – ele cita a ocupação israelita na
Palestina como exemplo, mas poderia haver muitas
outras – tem cada vez mais ocupado dimensão verti-
cal. A soberania vertical divide o espaço em camadas
horizontais empilhadas, separando não só o espaço
Jim Clark, da Netscape, no alto do mastro de 58m de seu superiate aéreo do chão, como também o chão do subterrâ-
Hyperion, durante uma sessão de fotos para a Fortune, em 1998
Louie Psihoyos/Science Faction Images

226 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 3 | julho 2017


neo, e o próprio espaço aéreo em várias camadas. filosófica de que nas sociedades contemporâneas
Diferentes camadas de comunidade são separadas não há sequer um chão? Como essas representa-
umas das outras em um eixo y, multiplicando locais ções aéreas – nas quais um aterramento constitui
de conflito e violência. Sendo assim, como afirma efetivamente um sujeito privilegiado − estão ligadas
Achille Mbembe, à hipótese de que nós atualmente habitamos uma
condição de queda livre?
a ocupação dos céus adquire importância crítica,
uma vez que a maior parte do policiamento é A resposta é simples: muitas das vistas aéreas, mer-
feito pelo ar. Várias outras tecnologias são mo- gulhos 3D, Google Maps e panoramas de vigilância
bilizadas para esse efeito: sensores em veículos na verdade não retratam um solo estável. Em vez
aéreos não tripulados UAV, jatos de reconheci- disso, criam uma suposição de que ele existe em pri-
mento aéreo, aviões de alerta aéreo Hawkeye, meiro lugar. Retroativamente, esse terreno virtual cria
helicópteros de ataque, satélites de observação, uma perspectiva de visão geral e vigilância para um
técnicas de “hologramatização”.8 espectador distante e superior flutuando, seguro, no
ar. Exatamente como a perspectiva linear estabeleceu
Queda livre
um observador imaginário estável e um horizonte, a
Como, no entanto, ligar esse policiamento obses- perspectiva de cima também estabelece um observa-
sivo, divisão e representação do chão à hipótese dor imaginário flutuando em solo firme imaginário.

Detritos de lixo espacial (como peças de foguete, satélites desativados e fragmentos de explosões e colisões) orbitando a Terra

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 227


Isso estabelece uma nova norma visual − uma de imagens aéreas fornecem uma ferramenta ilu-
nova subjetividade seguramente dobrada em sória de orientação, em condição na qual os hori-
tecnologia de vigilância e distração via tela.9 Al- zontes, de fato, se despedaçaram. O tempo está
guém poderia concluir que isso é, de fato, a desarticulado, e nós não mais sabemos se somos
radicalização − embora não seja uma supera- objetos ou sujeitos ao descer, em espiral, em im-
ção – de um paradigma da perspectiva linear. perceptível queda livre.13
Nessa direção, a distinção anterior entre objeto
Se, porém, aceitamos a multiplicação e a desli-
e sujeito é exacerbada e torna-se a única via de
nearização de horizontes e perspectivas, as novas
superiores sobre inferiores, olhando do alto para
ferramentas de visão talvez possam servir também
baixo. Além disso, o deslocamento de perspec-
para expressar, e até mesmo alterar, as condições
tiva cria um olhar desencarnado e remotamen-
contemporâneas de disrupção e desorientação. As
te controlado, terceirizado às maquinas e seus
últimas tecnologias de animação 3D incorporaram
objetos.10 Olhares já se tornaram decisivamente
múltiplas perspectivas, que são deliberadamente
móveis e mecanizados com a invenção da foto-
manipuladas para criar imagens multifocais e não
grafia, porém novas tecnologias permitiram o
lineares.14 O espaço cinemático é distorcido de
olhar desprendido do observador, que se tornou
qualquer modo imaginável, organizado ao redor
mais inclusivo e instruído do que nunca, a ponto
de perspectivas heterogêneas, curvadas e coladas.
de tornar-se massivamente intrusivo – tão mili-
A tirania das lentes fotográficas, amaldiçoadas pela
tarista quanto pornográfico, tão intenso quanto
promessa indexada de sua relação com a reali-
extenso, micro e macroscópico.11
dade, abriram caminho para as representações
hiper-realistas – não do espaço como ele mesmo,
mas do espaço como podemos fazê-lo – para
A política da verticalidade
melhor ou pior. Não há necessidade de renderings
A vista de cima é metonímia perfeita para uma ver- caros; uma simples colagem de telas verdes produz
ticalização de relações de classe mais geral no con- perspectivas cubistas impossíveis e concatenações
texto de uma luta de classes intensificada de cima implausíveis de tempos e espaços iguais.
– vista através de lentes e nas telas militares, do
Finalmente, o cinema alcançou as liberdades re-
entretenimento e das indústrias de informação.12
presentacionais e estruturais da pintura e do filme
É uma perspectiva indireta que projeta ilusões de
estrutural e experimental. E ao se fundir com as
estabilidade, segurança e extremo domínio sobre
práticas do design gráfico, desenho e colagem, o
um contexto de uma soberania 3D expandida. Se,
cinema ganhou independência das dimensões fo-
entretanto, as novas vistas de cima recriam socie-
cais que normalizaram e limitaram o domínio de
dades como abismos urbanos em queda livre e ter-
sua visão. Enquanto pode-se argumentar que a
renos de ocupação estilhaçados, podem também
montagem foi o primeiro passo em direção à libe-
– como a perspectiva linear fez – carregar com elas
ração da perspectiva linear cinemática – e foi, por
as sementes de sua própria destituição.
esse motivo, ambivalente para a maior parte de sua
Como a perspectiva linear começou a cair junto existência – só agora novos e diferentes tipos de
aos corpos de escravos afundando no oceano, visão espacial podem ser criados. Coisas similares
para muitas pessoas hoje os terrenos simulados podem ser ditas sobre projeções em múltiplas te-

228 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 3 | julho 2017


las, que criam um espaço de visualização dinâmico, libertação, uma condição que transforma pessoas
dispersando a perspectiva e possíveis pontos de vis- em coisas e vice-versa.17
ta. O observador não é mais unificado por tal olhar,
Finalmente, a perspectiva da queda livre nos ensina
mas antes dissociado e sobrecarregado, concebido
a considerar um cenário social e político da guerra
para dentro da produção de conteúdo. Nenhum
de classes radicalizada de cima, uma guerra que
desses espaços de projeção supõe um só horizonte
joga as desigualdades sociais em foco nítido. Cair,
unificado. Em vez disso, muitos chamam um es-
porém, não significa apenas estar caindo aos peda-
pectador múltiplo, que deve ser criado e recriado
ços, pode também significar uma convicção caindo
por articulações sempre novas de multidão.15
no lugar. Ao lutar com futuros desmoronando que
Em muitas dessas novas visualidades, o que pare- nos impulsionam de volta a um presente agoni-
cia uma queda desamparada no abismo na verda- zante, nós talvez possamos perceber que o lugar
de acaba por ser uma nova liberdade representa- no qual estamos caindo já não está mais aterrado,
cional. E talvez isso nos ajude a superar a última nem mesmo é estável. Ele não promete nenhuma
suposição implícita nesse thought experiment: comunidade, mas uma formação mutável.
a ideia de que nós precisamos de um chão em
primeiro lugar. Em sua discussão sobre o vertigi- Tradução Aline Mielli
noso, Theodor W. Adorno ridiculariza a obsessão Revisão técnica Michelle Sommer
da filosofia com a terra e a origem mediante uma
filosofia do pertencimento que obviamente vem NOTAS
carregada com o mais violento medo do que é in-
O texto foi publicado originalmente em:
fundado e insondável. Para ele, o vertiginoso não
e-flux journal #24 – april 2011 – Disponível
é sobre a perda desesperada de um chão imagina-
em: http://www.e-flux.com/journal/24/67860/
do para ser um refúgio seguro do ser:
in-free-fall-a-thought-experiment-on-vertical-
uma cognição que deve dar fruto ao se lançarem -perspective/ Acesso em 9 jun. 2017.
objetos à fond perdu (sem esperança). A vertigem
* Optamos por manter no idioma original as
que isso causa é um index veri; o choque da in-
expressões thought experiment e groundlessness,
clusão, o negativo como o que não pode deixar
com a intenção de preservar sua amplitude de
de aparecer no reino emoldurado e imutável, é
sugestão e contornar a ausência de termos que as
verdade apenas para inverdades.16
traduzam com exato sentido. Especificamente quanto
Uma queda em direção a objetos sem reserva, a groundlessness, pensamos em desmoronamento
abraçando um mundo de forças e matéria, no ou desmantelamento, porém ambos pressupõem
construções e, tão logo, terrenos. (NT)
qual falta qualquer estabilidade original e lança
faísca do choque súbito do aberto: uma liberda- 1 Exemplos da chamada filosofia anti e pós-
de que é assustadora, completamente desterrito- fundacional são dados no prefácio do volume
rializante, e sempre desconhecida. Estar caindo introdutório Post-Foundational Political Thought:
significa a ruína e o falecimento como também Political difference in Nancy, Lefort, Badiou and
o amor e o abandono, paixão e entrega, declínio Laclau (Edinburgh: Edinburgh University Press,
e catástrofe. Queda é corrupção como também 1997), 1-10. Resumindo, tal pensamento, como

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 229


proferido pelos filósofos em discussão, rejeita a pensamento e ação ocidentais nos últimos 500
ideia de um terreno metafísico dado e estável, anos. Nesses meios de ver que deram origem a
e gira em torno das metáforas heideggerianas uma larga série de inovações, como a pintura
de abismo e chão, como também de ausência de de painéis, a colonização marítima e a filosofia
chão. Ernesto Laclau descreve a experiência cartesiana, mas também a todo o conceito de
de contingência e groundlessness como uma projetar ideias, riscos, chances e linhas de ação
possível experiência de liberdade. para o futuro. Simuladores de voo e outros
tipos de tecnologia militar são parte de um
2 Peter Ifland, The history of the sextant. Talk
novo esforço para introduzir o 3D como o meio-
given at the amphitheatre of the Physics Museum
padrão de percepção – mas o desenvolvimento
under the auspices of the Pro-Rector for Culture
vai ainda mais longe para incluir a vigilância.
and the Committee for the Science Museum of
Isso abarca todo um catálogo de movimentos
The University of Coimbra, the 3 October 2000.
e comportamentos, todos intrinsicamente
Disponível em: www.mat.uc.pt/~helios/Mestre/
conectados ao monitoramento, condução
Novemb00/H61iflan.htm.
e observação de processos contínuos, e que
3 Erwin Panofsky. Die Perspektive alssymbolische delegam ou terceirizam o que já foi referido
Form. In: Kemp, Wolfgang et al. (Ed.). Erwin como introspecção, consciência de si mesmo e
Panofsky: Deutschsprachige Aufsätze II. Berlin: responsabilidade pessoal” ( Elsaesser, Thomas. The
AkademieVerlag, 1998: 664-758. dimension of depth and objects rushing towards

4 Walter Benjamin, Theses on the philosophy of


us. Or: the tail that wags the dog. A discourse on

history. In: Illuminations. Trans. H.Zohn. New York: digital 3-D cinema).

Schocken Books, 1969: 261. 7 Weizman, Eyal. The politics of verticality.

5 Balibar, Etienne; Wallerstein, Immanuel. Race, 8 Mbembe, Achille. Necropolitics, Public Culture,
nation, class: ambiguous identities. London, New v. 15, n. 1, Winter 2003: 29.
York: Verso, 1991.
9 Dieter Roelstraete e Jennifer Allen descrevem
6 A citação de Elsaesser a seguir pode ser essa nova normalidade de diferentes perspectivas
entendida como um projeto para este artigo, em ótimos textos: Roelstraete, Dieter. (Jena
cuja inspiração deriva de uma conversa informal Revisited) Ten Tentative Tenets. e-flux journal, issue
com o autor: “Isto significa que as imagens 16, May, 2010. Roelstraete, Dieter; Allen, Jennifer.
estereoscópicas e os filmes 3D são parte de um That eye, the sky. Frieze, 132, Jun.-Aug. 2010.
novo paradigma, que está transformando nossa
10 Parks, Lisa. Cultures in orbit: satellites and the
sociedade da informação em uma sociedade de
televisual. Durham: DukeUniversity Press, 2005.
controle e nossa cultura visual em uma cultura
de vigilância. A indústria do cinema, a sociedade 11 De fato, a perspectiva da câmera flutuante
civil e o setor militar estão todos unidos nesse pertence a um homem morto. Mais recentemente,
paradigma de vigilância, que, como parte de a desumanização (ou pós-humanização) do
um processo histórico, busca reposicionar a olhar é talvez lugar nenhum como literalmente
“visão monocular”, o modo de ver que definiu alegorizado no filme Viagem alucinante (Gaspar

230 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 3 | julho 2017


Noé, 2010), durante boa parte do qual um ponto Rusgmaier, Holly E. (Ed.). Proceedings of the
de vista desincorporado flutua infinitamente Eurographics Workshop on Rendering Techniques
sobre Tóquio. Esse olhar penetra qualquer espaço, 2000. London: Springer-Verlag, 2000: 125-136;
movendo-se sem limitações e com mobilidade Coleman, Patrick; Singh, Karan. Ryan: rendering
irrestrita, buscando um corpo para poder se your animation nonlinearly projected. In: NPAR’04:
reproduzir e reencarnar. Esse ponto de vista em Proceedings of the 3rd International Symposium
Viagem alucinante é reminiscente da visão de um on Non-photorealistic Animation and Rendering.
drone. Em vez de trazer a morte, no entanto, ele NewYork: ACM Press, 2004: 129-156; Glassner,
está buscando recriar sua própria vida. Para esse Andrew. Digital Cubism, part2. IEEE Computer
fim, o protagonista basicamente quer sequestrar Graphics and. Applications, v. 25, n. 4, Jul.
um feto. O filme, porém, também é muito seletivo 2004: 84-95; Singh, Karan. A fresh perspective.
sobre esse procedimento: fetos miscigenados são In: Peroche, Bernard; Rusgmaier, Holly E. (Ed.).
abortados em favor de fetos brancos. Há outras Proceedings of the Eurographics Workshop on
questões que ligam o filme a ideologias reacionárias Rendering Techniques 2000. London: Springer-
criacionistas. Flutuação e policiamento biopolítico Verlag, 2000: 17-24; Sudarsanam, Nisha; Grimm,
se misturam em uma obsessão com corpos Cindy; Singh, Karan. Interactive manipulation of
superiores, controle remoto e visão aérea digital, projections with a curved perspective. Computer
animada por computador. Assim, o olhar flutuante Graphics Forum, 24, 2005: 105-108; e Yang,
do homem morto literalmente ecoa a poderosa Yonggao; Chen, Jim X.; Beheshti, Mohsen.
descrição de Achille Mbembe de necropoder: Nonlinear perspective projections and magic
ele regula a vida pela perspectiva da morte. lenses: 3D view deformation. IEEE Computer
Poderiam essa tropas alegorizadas em um único Graphics Applications, v. 25, n. 1, Jan.-Feb.
(e, francamente, horrível) filme ser expandidas 2005:76-84.
em uma análise mais geral de pontos de vista
15 Steyerl, Hito. Is a museum a factory? e-flux
flutuantes a pairar? As vistas aéreas, perspectivas
journal, issue 7, June, 2009.
de drone e imersões 3D em abismos substituiriam
os olhares dos “homens brancos mortos”, uma 16 Adorno, Theodor W. Negative dialectics. Trans.
visão de mundo que perdeu sua vitalidade e E. B. Ashton. New York: Continuum,1972: 43.
persiste em uma ferramenta moribunda mas 17 Tomando a sugestão da reflexão de Gil Leung,
poderosa para policiar o mundo e controlar sua After before now: notes on In Free Fall.
própria reprodução?

12 Parafraseando a noção de military-surveillance-


entertainment complex, de Elsaesser.
Hito Steyerl é cineasta, artista visual e escritora.
13 Supondo que não há chão, mesmo aqueles
Seus interesses voltam-se para a mídia, a tecnologia
mais abaixo na hierarquia continuam caindo.
e a circulação de imagens em escala global. É
14 Essas técnicas são descritas em Agrawala, professora de New Media Art na University of Arts
Maneessh; Zorin; Denis; Munzer, Tamara. Artistic em Berlim, onde foi cofundadora do Research
multiprojection rendering. In: Peroche, Bernard; Center for Proxy Politics.

TEMÁTICAS | HITO STEYERL 231

Você também pode gostar