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Gomes, Paulo Cesar da Costa.

O Lugar do Olhar: elemen-


tos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2013.
gem não precisa de um correspondente “real”, como a
cópia. Ela pode ser o produto de um jogo de simula-
cros, de imagens que se referem umas às outras1.

Como potenciais consumidores de imagens, nosso


olhar, nossa atenção e nosso interesse são solicitados
permanentemente nesse desfile ininterrupto de formas,
Introdução: cores e significados. Há uma imensa competição des-
Visibilidade e espacialidade sas imagens pela captura atenta dos olhares. Não ape-
nas dos olhares, algumas imagens deliberadamente
procuram, sobretudo, atrair nossa atenção. Dentro de
um universo de múltiplas e contínuas possibilidades
colocadas ao olhar, as imagens que conseguem prender
nosso interesse estabelecem para elas um campo de
Atualmente é quase trivial dizer que vivemos em uma visibilidade privilegiado. Ao mesmo tempo, essas ima-
era de imagens. Elas estão presentes abundantemente gens, objetos centrais de nossa atenção, tornam as ou-
em todos os campos da vida social, grandes parcelas da tras desinteressantes ou despercebidas, ou seja, se esta-
comunicação e da informação são veiculadas por elas. belece paralelamente, por conseguinte, um campo de
Câmeras de gravação e variados aparelhos de reprodu- relativa invisibilidade. Assim, existem aquelas imagens
ção se associam a diferentes equipamentos e generali- que, por conseguirem se extrair do fluxo da continui-
zam o acesso à produção e à rápida transmissão de dade, se singularizam, mais do que percebidas, elas são
imagens. Sensações, momentos, experiências, lugares, individualizadas e recebidas com destaque.
pessoas, qualquer coisa para existir parece que deve
necessariamente ser fixada sobre um suporte imagéti- Determinadas condições contribuem diretamente para
co. Segundo Jean Baudrillard, nos últimos anos, um que algumas delas sejam mais notadas, sejam privilegi-
fato para ser verdadeiro precisa antes ser apresentado
1
como imagem e verdadeiro não quer dizer real. A ima- Baudrillard, Jean. La guerre du Golfe n’a pas eu lieu, Gallilé,
Paris 1991.
adas em detrimento de outras. Variados elementos são cepção e da atenção diferencial que dispensamos a
concebidos e construídos para realçá-las. Isso significa determinadas coisas e fenômenos expostos sobre um
que nessa competição entre imagens, se desenvolvem campo de visibilidade2. De que maneira a organização
verdadeiras estratégias para seduzir os olhares, para espacial desse campo intervém na percepção que te-
chamar a atenção, para capturar o interesse. Essas es- mos das coisas e na atenção que dispensamos a elas?
tratégias procuram primeiramente atrair, mas logo de-
pois procuram meios de fixar o foco sobre elas. É pre- A matéria reunida nesse livro é também e antes de
ciso capturar o olhar e simultaneamente conservá-lo. tudo fruto de um grande prazer, o prazer da observa-
Há muitas astúcias, das mais sutis às mais evidentes, ção. Desde o final do Século XVIII ficou claro, pela
para justificar e convencer sobre o porquê de conferir voz de Alexander von Humboldt, para todos aqueles
que praticariam a geografia, que a contemplação da
e guardar aquela visão. Algumas imagens se impõem
sobre outras e parecem legitimamente gozar do direito diversidade terrestre unia duas grandes fontes de pra-
de ofuscar as demais. zer: aquela advinda da sensibilidade estética e aquela
proveniente da possibilidade de compreensão dos fe-
Como geógrafos, obsessivamente preocupados com a nômenos observados. A observação ou, para usar o
questão espacial, ou seja, com o possível papel que a vocabulário da época, a contemplação foi um atributo
trama das localizações pode ter na construção e mani- básico da geografia clássica3. Nos anos mais recentes,
festação de um fenômeno, nossa pergunta fundamen- no entanto, esse procedimento foi aos poucos sendo
tal se dirige, também no que diz respeito à visibilidade, relegado e passou mesmo a ser mal visto como se a
para esse aspecto espacial. De forma ampla, nossa in- observação nada pudesse nos aprender. A tendência
dagação é sobre as possíveis relações entre imagens e
2
posição no espaço. Queremos saber: Como a disposi- Alguns autores trabalharam com essa noção de campo de
visibilidade, mas concederam pouca ênfase espacial à noção de
ção espacial eventualmente colabora no fenômeno da campo visual. Ver, por exemplo, Brighenti, Andrea. “Visibility:
visibilidade? Claro, não estamos nos referindo à ques- a category for the Social Sciences”, Current Sociology, 2007,
55: 323, http://csi.sagepub.com.
tão da física e da ótica, embora esse aspecto seja a base 3
Além de Alexander von Humboldt, encontramos esse vocábu-
necessária, aquilo que dá acesso ao tema. Estamos tra- lo numerosas vezes nas obras de Karl Ritter, de Elisée Reclus,
zendo à luz, no entanto, muito mais a questão da per- de Vidal de La Blache para citarmos apenas aqueles que estão
entre os mais reconhecidos nomes dessa Geografia Clássica.
mais valorizada atualmente é criar quadros teóricos tância ao foco do olhar, resultando então uma super-
cada vez mais complexos e enfeitados de muitos novos posição problemática entre duas coisas bem diversas: o
conceitos e expressões sem que isso, entretanto, man- ato de ver e o de conscientemente conferir valor ao
tenha qualquer correspondência necessária com um que é visto4.
quadro de análise empírico. Por isso, as imagens perde-
Nossa pergunta se dirige propriamente às condições de
ram seu lugar como elementos de análise, no máximo
elas são tomadas como exemplos, meras ilustrações de visibilidade segundo um ângulo da percepção, ou seja,
propósitos autônomos, gerados independentemente de a natureza da questão é sobre aquilo que é espontane-
qualquer observação. O trabalho de campo em geogra- amente observado pelo olhar. Queremos saber como a
fia se transformou assim em um procedimento meto- organização do espaço participa das estratégias que
oferecem ou ampliam a visibilidade de coisas, fenôme-
dológico secundário, momento de coleta de dados ou
simples recurso pedagógico, demonstração de um sa- nos ou pessoas. Queremos também compreender o
ber que se constrói fora da observação. papel das figurações desses complexos planos de posi-
ções espaciais - como as representações do espaço são
Acreditamos fortemente, contudo, que a observação elas mesmas passíveis de serem analisadas como ima-
faz parte do processo de descoberta nas ciências soci- gens de lugares?
ais. Podemos aprender com as imagens, podemos
compreender com elas. A comprovação disso habita Não se trata de mais uma vez retornar à análise de
mapas, de cartogramas, ou de outros elementos gráfi-
todo o esforço do que se segue nesse livro - De que
forma as imagens podem ser instrumentos para pensar, cos, nem tampouco das convenções que os estruturam
ao mesmo tempo, que são objetos do olhar? ou suas histórias, em busca dos sinais que orientam
nossas representações do espaço. Isso em grande parte
Na bibliografia mais corrente nas ciências sociais, a já foi feito5. O objetivo aqui é inquirir como as catego-
visibilidade é tratada quase unicamente como visibili-
4
dade ou invisibilidade de certos grupos sociais. Nesses Os exemplos são numerosos em várias áreas disciplinares, na
sociologia, na filosofia e mesmo na geografia.
casos, o fenômeno se confunde com a noção de reco- 5
Há muitos autores que trabalharam com a história da cartogra-
nhecimento e com uma forçosa atribuição de impor- fia. Muitos também já relataram e denunciaram o poder, o uso e
abuso das imagens, cartográficas ou não, em operações de con-
rias que classificam a espacialidade e tudo que dela coisas. Queremos pensar sobre as categorias espaciais
participa contribuem em nossa percepção visual. Co- que classificam o interesse do olhar.
mo essas categorias espaciais e sua experiência orien-
tam nosso olhar?

Esses propósitos podem não ser muito claros assim Duas advertências a considerar
apresentados. Pensemos, entretanto, em algumas cida- Para continuarmos é necessário fazer antes duas ob-
des que oferecem aos turistas que as visitam documen- servações preliminares. A primeira diz respeito ao fato,
tação, folders ou pequenos guias, onde são indicadas aparentemente paradoxal, de um livro que se propõe a
áreas no espaço com determinados percursos estabele- discutir imagens se apresentar sem nenhuma imagem
cidos em função do tempo de permanência do visitan- impressa diretamente em seu corpo. É verdade que
te. Indicam o que ver, como ver, o que significam, e as podemos sempre discutir qualquer coisa evocando-a
razões pelas quais devem ser vistas determinadas coi- simplesmente, sem que seja necessário convocá-la a se
sas. Muitas vezes, são apresentadas fotos ao lado das apresentar diretamente aos nossos olhos. O procedi-
indicações de como chegar. Áreas da cidade recebem mento de falar a partir de conceitos, de generalizar as
cores diferentes e nomenclatura associada aos aspectos informações sem identificá-las diretamente a algo es-
que estão ali sendo valorizados. Não apenas as cidades pecífico é amplamente praticado, sem que isso se cons-
o fazem, os grandes museus, os parques naturais, os titua de fato em um problema. As imagens estão, no
grandes espaços de exposição etc. Então, queremos entanto, em toda parte, muitos são aqueles que susten-
pensar um pouco mais sobre esses guias do olhar, que tam a tese segundo a qual a abundancia delas estaria
nos indicam o que ver segundo o lugar onde estão as modelando uma nova era e, por fim, acabamos de di-
zer que elas nos fazem compreender as coisas de outra
forma. Então por que não utilizá-las quando justamen-
quista e domínio. Ver, por exemplo, a esse respeito: Black,
te delas estamos falando?
Jeremy. Mapas e História: Construindo imagens do passado.
EDUSC, Bauru, 2005 e Gruzinsky, Serge. A guerra das ima- A razão fundamental é que, apesar das imagens faze-
gens: De Cristovão Colombo à Blade Runner (1492-2019). rem cada vez mais parte do universo cotidiano e visua-
Companhia das Letras, São Paulo, 2006.
lizá-las esteja entre as práticas mais comuns, o registro tos patrimoniais preferimos apenas indicar os endere-
e a reprodução de imagens são objetos de um crescen- ços eletrônicos onde é possível acessá-las mais direta-
te aparato que dispõe sobre os direitos patrimoniais, mente. Essa escolha foi também ditada pelas limitações
sobre a proteção à exposição daqueles ou daquilo que técnicas e econômicas impostas à apresentação das
fazem parte dessas imagens, sobre as condições de imagens nas publicações. Nos livros onde figuram
acesso e de veiculação, entre muitas outras coisas. As- imagens elas são, em geral, condenadas a figurar em
sim, somos bombardeados por milhares de imagens, apenas um caderno, onde o papel próprio à reprodu-
vemos se multiplicarem os tipos de suportes e veículos ção, que é muito dispendioso, concentra a apresenta-
e as formas de registro, entretanto, concomitantemente ção reunida de todas elas. Essa é a forma mais racional
também assistimos a uma progressiva corrida para de colocá-las. As imagens, no entanto, estão longe da
regular e, por isso, restringir seus usos. O paradoxo é parte do texto que as comenta, ficam descontextuali-
sensível na maneira mesmo como as pessoas se relaci- zadas. Outras vezes, para não restringir o lugar da
onam com os aparelhos de registro, suas reações são apresentação das imagens, os editores decidem colocá-
muito diversas. Uma câmera atrai, mas pode ser tam- las junto aos comentários dos textos, mas os livros
bém percebida como uma agressão. Há pessoas que assim se tornam demasiadamente caros. Há ainda o
procuram o olhar das câmeras, outras as ignoram, ou caso de imagens que são apresentadas com baixa qua-
pelo menos fingem fazê-lo, outras reagem com violên- lidade e mal reproduzidas, perdem-se os detalhes, as
cia à possível exposição. Há pessoas que se mostram cores, e dessa forma perdem-se as propriedades que as
simpáticas à troca com as câmeras, outras são refratá- tornam formas tão especiais de comunicação.
rias e agressivas.
Aqui oferecemos uma dupla possibilidade ao leitor. A
O mundo das imagens se constrói assim de forma bas- primeira e mais simples é acessar os sites indicados no
tante complexa. Por isso, preferimos aqui trabalhar, texto onde se encontram as imagens. O leitor poderá
sempre que possível, com imagens que estejam dispo- assim estabelecer a escala da observação e de detalhe
níveis ao domínio público. Isso significou optar por que lhe é necessária. Outro meio é acessar o texto em
comentar imagens clássicas e facilmente acessíveis, sua forma eletrônica e utilizar as indicações dos hiper-
conhecidas e comuns. Para contornar também os direi- textos para carregar as imagens no computador. A
escolha de publicar um livro em sua forma tradicional procuramos essa especificidade do ponto de vista geo-
e de também fazer dele uma versão eletrônica foi, em gráfico fica também claro para todos que estamos que-
grande parte, decidida em razão da reprodução das rendo observar o papel da espacialidade.
imagens.
Dito isso é preciso concordar que esse é um procedi-
A segunda observação necessária é que esse livro foi mento propriamente epistemológico, ou seja, não es-
escrito por um geógrafo. Muitos outros especialistas tamos querendo apenas acrescentar conteúdo a um
escreveram sobre imagens. Há uma enorme bibliogra- tema, estamos nos perguntando sobre as possibilidades
fia sobre o tema, com variadas abordagens que con- de descobrir novas questões a partir de um “outro
templam assuntos diversos dentro desse mesmo tema olhar”. Em outras palavras, o objetivo aqui é criar
– história e sociologia da arte, estética, semiologia etc. condições para gerar uma “outra visibilidade” do fe-
Não era nosso desejo escrever mais um texto seguindo nômeno. Esse procedimento epistemológico é o que
essas abordagens já plenamente constituídas na biblio- nos permite revisitar domínios já consagrados de um
grafia tradicional sobre o assunto. Falta-nos competên- conteúdo sobre o qual estamos nos propondo a trazer
cia e legitimidade para pretender acrescentar algum outra forma de conceber e de construir questões. Que
conteúdo mais significativo a esse tema se forem man- não nos seja por isso cobrado um conhecimento exa-
tidas essas “entradas” já tão consagradas. ustivo desses domínios tradicionais já tão examinados
e que o nosso trabalho seja julgado tão somente pela
A pergunta que nos guiou foi a de saber se haveria
capacidade de ter contribuído para o aparecimento
alguma possibilidade de constituir uma nova aborda- dessas novas questões que colocam como centro de
gem a partir de um ponto de vista geográfico. Quando interesse a espacialidade.
apresentamos assim a questão, se evidencia imediata-
mente o fato de que abordagens são também formas Falta-nos ainda deixar mais claro o que significa essa
de olhar – então podemos dizer que a pergunta fun- “espacialidade” e que potencial ela teria para gerar um
damental que nos guiou foi aquela de saber qual a es- campo de análise autônomo e relevante. Passemos
pecificidade do olhar geográfico quando o tema é jus- então a essa argumentação.
tamente o da visibilidade dos fenômenos? Quando
Uma questão de posição: ponto de vista, compo- de perder de vista o fenômeno original que gerou o
sição e exposição próprio vocábulo, ou seja, perdemos de vista (se é pos-
sível utilizar essa palavra) aquilo que constitui a raiz da
A idéia de espacialidade aqui está sendo empregada no expressão, aquilo para o qual a expressão foi criada
sentido de uma trama locacional associada a um plano,
para designar.
uma superfície ou volume. Espacialidade é o conjunto
formado pela disposição física sobre esse plano de Comumente, utilizamos a expressão ponto de vista como
tudo que ele contém. Corresponde, assim, ao resultado sinônimo de opinião, como uma maneira de considerar
de um jogo de posições relativas de coisas e/ou fenô- as coisas. É nesse sentido metafórico que a expressão,
menos que se situam ao mesmo tempo sobre esse aliás, é mais freqüentemente utilizada. De fato, tam-
mesmo espaço. bém a utilizamos, embora menos rotineiramente, em
um sentido mais concreto para designar lugares que
Três expressões nos interessam particularmente nessa oferecem uma visão panorâmica, de onde se pode ob-
discussão. Elas fazem parte tanto do nosso vocabulário servar uma paisagem, por exemplo.
cotidiano mais comum como também daquele que é
freqüentemente utilizado nos discursos sobre as artes. Consideremos, no entanto, que a palavra ponto nesse
Trata-se das seguintes expressões: ponto de vista; composi- caso indica um lugar determinado, seja ele concreto ou
ção; exposição. Nossa argumentação encontra sentido na metafórico. Isso quer dizer que ocupando aquele pon-
tentativa de demonstrar que essas três noções, tão ba- to, ou seja, naquela posição, podemos ver algo que não
nais, mas também tão essenciais aos fenômenos que veríamos se estivéssemos situados em outra posição
tratam da visibilidade, possuem um fundador consti- qualquer. A expressão estabelece, portanto, uma rela-
tuinte posicional. Em outros termos, essas expressões ção direta entre o observador e aquilo que está sendo
apresentam originariamente uma dimensão espacial. observado. Essa relação se estabelece por um jogo de
Elas são expressões desse jogo de posições ao qual nos posições, é a situação espacial que permite ao observa-
referimos acima e que denominamos de espacialidade. dor ver algo que de outro lugar não seria visível para
A conseqüência mais grave de utilizarmos essas três ele da mesma maneira. O ponto de vista é um dispositivo
noções sem que essa dimensão apareça com clareza é a
espacial (posicional) que nos consente ver certas coi- dos também de forma metafórica quando a expressão
sas. essa sendo empregada nesse sentido. Isso nos ajuda a
perceber que ao assumirmos uma posição estamos
A implicação mais direta disso é que coisas diferentes sempre privilegiando um campo de observação, tor-
aparecem quando mudamos as posições relativas entre
nando, por conseguinte, outras parcelas desse campo
o observador e o observado. Isso não quer dizer que
periféricas e sempre “dando às costas” para outra
estejamos condenados a cair no relativismo absoluto, imensa parcela. Uma concepção dada de um fenômeno
nem mesmo o estamos defendendo. A consideração também procede da mesma forma. Seja metaforica-
do ponto de vista como um elemento relativo à posi- mente, seja concretamente, a idéia de ponto de vista é a
ção no espaço tem, todavia uma importantíssima de- de um privilégio do olhar sobre algo. Esse algo, no
corrência direta que é a compreensão daquilo que
entanto é parte de um conjunto maior e a consciência
“vemos” como uma contingência das posições. Por dessa espacialidade na qual se constroem os pontos de
isso, um ponto de vista sempre deve ser contextualizado vistas é fundamental para a compreensão da relação
em relação ao campo onde estão estabelecidas as posi-
entre aquilo que é visto e daquilo que não está sendo
ções que o definem. O ponto de vista é a posição que nos contemplado. A análise de um fenômeno pode assim
permite ver certas coisas. O exame da espacialidade, ser feita com a consideração de seus limites e, portan-
onde estão situados o “olhar” e o “olhado”, nos abre to, com muito mais propriedade tendo isso em mente.
todo um campo inédito de análise. Empregar a expres-
são ponto de vista com um sentido metafórico de con- A segunda expressão, composição, é comumente utili-
cepção quer dizer que, tal qual quando olhamos uma zada para designar um conjunto estruturado de formas,
paisagem, escolhemos a posição do nosso olhar e a cores, ou coisas. Nós a entendemos, assim, como o
partir dessa posição serão determinados o ângulo, a resultado de uma combinação, combinação que pro-
direção, a distancia, entre outros atributos que são po- duz algo de novo formado pela junção estruturada de
sicionais. diversos elementos. Nas artes, fala-se em composição
para uma peça ou para uma forma de representação
No caso do ponto de vista concreto esses atributos são
capaz de produzir um resultado original. Diz-se assim,
geométricos, mas podem facilmente ser compreendi- por exemplo, de uma imagem (fotografia, pintura etc.)
que ela possui uma composição, ou seja, as diversas uma composição é compreender a sua espacialidade, o
coisas figuradas têm uma estrutura que as associa den- lugar dos elementos nesse conjunto.
tro de um mesmo quadro. A paisagem é também nesse
mesmo sentido sempre uma composição. Formas de Finalmente, a terceira expressão que nos interessa aqui
é exposição. Essa expressão é também definida pela
relevo, diferentes tipos de cobertura vegetal, ocupação
situação espacial. Como a própria designação indica,
das terras, entre muitos outros elementos, se associam
de maneira original e configuram uma paisagem. trata-se de uma posição de exterioridade e isso tem
implicações fundamentais. A primeira delas é que pas-
Queremos chamar a atenção para um aspecto habitu- samos a compreender as coisas segundo uma classifi-
almente negligenciado quando pensamos em composi- cação que institui o que deve ser exibido e o que deve
ção, mas que faz parte mesmo da etimologia da pala- ser escondido. Dito de outra maneira: há uma delimi-
vra. Dissemos que se trata de um conjunto e que esse tação que estabelece o que deve ser visto e o que não
conjunto tem uma estrutura, mas omitimos que nessa deve e isso é o resultado de uma classificação relacio-
estrutura há um aspecto essencial que é o jogo de posi- nada ao espaço, é uma questão de posição. Lugares de
ções. A forma de dispersão desses dados que integra- exposição são lugares de grande e legítima visibilidade.
dos dão origem a um novo elemento corresponde à O que ali se coloca tem um comprometimento funda-
espacialidade deles. Essa espacialidade ou esse “padrão mental com a idéia de que deve ser visto, olhado, ob-
de dispersão” é a marca de uma composição. Há uma servado, apreciado, julgado. Isso também significa
ordem espacial que é a chave da composição. Onde dizer que socialmente estabelecemos lugares onde essa
figura cada elemento nessa composição? Essa é uma visibilidade deve ser praticada, segundo complexas
pergunta essencial. Uma paisagem é constituída de escalas se valores e de significações. Foi essa simples
inúmeros aspectos, mas como eles estão combinados, constatação a responsável direta pela segunda parte
em que proporção, distancia e situação? Isso significa desse livro: o olho da rua. É fácil perceber que nas soci-
que composição é um jogo de posições relativas, de edades urbanas e democráticas um lugar privilegiado
coisas que estão dispersas sobre um mesmo plano. A de exposição são os espaços públicos. O atributo da
ordem espacial dessa dispersão é um constituinte. Essa visibilidade é, portanto, central na vida social moderna
é, aliás, a raiz etimológica da palavra. Assim, analisar e esse atributo se ativa e se exerce pela existência dos
diferentes espaços públicos. Dessa maneira, as dinâmi-
cas que afetam a visibilidade, aquilo que se exibe, o
público que observa, tudo isso deve ser reunido na
compreensão da vida social. Essa constatação já pode-
ria ser uma justificativa suficiente para a afirmação da
relevância do olhar geográfico. Nosso desafio é de-
monstrar que há muito mais do que isso.

Se nossas intenções ainda permanecem obscuras, pe-


dimos paciência e contamos com a atenção dos leitores
para que se deixem guiar pelos diferentes temas anali-
sados que são propostos nesse texto, seguindo as clas-
sificações dessa exposição que orienta e discute alguns
elementos em exibição.
São, por isso, situações que nos interpelam a refletir
diretamente sobre o papel da espacialidade, ou melhor,
nos indagam sobre como o espaço pode ser um ins-
Exposição de Motivos: trumento que faz ver, que torna visível.

Visita Guiada Representações visuais dependem de um campo de


expressão, campo visual, que estamos chamando aqui
de visibilidade. Dito isso, talvez fique mais compreen-
sível a natureza das questões anteriormente expostas.
Como já foi dito, elas se articulam em torno da aspira-
Já deve ter ficado claro pela leitura da introdução o que ção de saber como as condições espaciais participam
aqui pretendemos dizer quando nos referimos às ima- do fenômeno da visibilidade socialmente e cultural-
gens. Elas estão sendo consideradas exclusivamente mente construída.
como representações visuais, assentadas sobre diferen-
Para tornar essa discussão mais clara e objetiva, veja-
tes suportes, contando com forma e conteúdo, de ob-
mos, em um exemplo muito simples, o possível exercí-
jetos, de pessoas, de sítios e dos seus correlatos signifi-
cio de interpretação “geográfica” e os elementos que se
cados. Interessa-nos tudo aquilo que possa relacionar
impõem primeiramente nessa análise.
essas imagens aos lugares, ou seja, a posições relativas
a um espaço de referência. Esses espaços de referência
podem ser tanto aqueles em que essas imagens são
apreciadas, aqueles espaços nos quais elas são produzi- A visibilidade daquilo que se esconde: os óculos
das e os espaços que elas figuram. Em grande parte escuros
dos casos examinados então nesse percurso, esses três Alguém durante um velório utiliza óculos escuros,
estados do espaço: lugares de exposição de imagens, escondendo seus olhos. Para que? Que efeitos isso
sítios que são apreciados como composições e a repre-
pode ter? Que leituras podem ser feitas desse objeto
sentação de lugares em diferentes suportes, agem si- usado nestas circunstâncias e naquele lugar? O que está
multaneamente em nossa interação com as imagens.
fundamentalmente em jogo nessas ocasiões é o fato de fora dessas condições, e desses lugares, eles ganham
que esse objeto torna “visível” aquilo que ele preten- novas significações, eles chamam a atenção, tornam
samente deseja esconder. Nesse caso, ele pretende “visível” alguma outra coisa que, como mostra esse
esconder a explícita emoção das lágrimas. Entretanto, exemplo, é aquilo mesmo que ele pretende ou procura
ele pode também estar escondendo a ausência dessa esconder, seja a sincera emoção ou sua falta. O contex-
emoção, pela falta delas, das lágrimas. Nos dois casos, to e o lugar nos quais os óculos escuros são usados são
a presença dos óculos chama a atenção pela substitui- elementos centrais para fundamentarmos um entendi-
ção que pretende operar6. A visibilidade dos óculos mento. Se eles são usados na praia ou em um dia de
substitui a dos olhos ao deixá-los invisíveis aos obser- sol, passarão despercebidos, dissolvidos na funcionali-
vadores. Esse objeto, no contexto desse exemplo do dade básica do seu uso, se são usados em um velório
velório, também confere especial “visibilidade” aos poderão despertar curiosidade e dúvidas. O lugar físico
que o portam, uma vez que esses objetos identificam e o enredo dentro dos quais um objeto é exibido são
os personagens mais centrais, separando-os dos outros, elementos estruturantes para sua compreensão.
os secundários. Afinal, as pessoas que utilizam os ócu-
los escuros em tais ocasiões estão demonstrando, de Foi isso que tentamos demonstrar através do conceito
alguma forma, o quanto eles se associam intensamente de cenário7. Uma estória é constituída também pela ma-
à celebração daquela perda. Essas pessoas são centrais neira como se organizam pessoas, coisas, comporta-
ao enredo ou, pelo menos assim querem aparecer, esse
é o papel desejado dentro dessa trama. 7
Ver a esse respeito: Gomes, P. C. C. “A paisagem urbana
como cenário de uma cultura: algumas observações a propósito
Normalmente, óculos escuros são também usados para do Canadá”. In: Espaço e Cultura, 3: 7-15. UERJ, NEPEC, Rio
a proteção solar, contra uma forte luminosidade. Eles de Janeiro,1996; Gomes, P. C. C. “Cenários da vida urbana:
imagens, espaços e representações” In: Cidades, 5: 9-16. Presi-
são, assim, comumente vistos em ambientes de muita dente Prudente, 2008; Gomes, P. C. C. “Cenários para a geo-
luz ou de grande exposição ao sol. Quando são usados grafia: sobre a espacialidade das imagens e suas significações”.
In: Z. Rosendhal e R. L. Correa (org.). Espaço e Cultura: plu-
ralidade temática. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2008 ; Gomes, P.
6
Como disse Debray, a fixação em imagens opera sempre uma C. C. “Trois images, trois scénarios, un lieu: des Français à Rio
substituição e denota uma ausência. Debray, Régis. Vie et mort de Janeiro”. In: M. Guicharnaud-Trollis (org.) “Regards croisés
de l’image. Folio Essai, Gallimard, Paris, 1992. entre la France et le Brésil”. L’Harmattan, Paris, 2008.
mentos em um espaço. O lugar onde essa estória se Dessa forma, a visibilidade, como foi dito acima, é
passa, onde as coisas e os comportamentos ocorrem sempre desigual, a atenção é capturada por algo que
são elementos que, juntos, produzem sempre novos desperta o interesse. Esse interesse é a contrapartida
sentidos. As imagens das coisas não estão jamais sepa- para o desinteresse sobre as outras coisas potencial-
radas dos “lugares” onde elas são exibidas. Por isso, mente “visíveis”, mas que naquelas circunstâncias,
há, sem a menor dúvida, uma geografia que participa segundo aquele ponto de vista, não são vistas. O olhar
diretamente na produção de significações que nos vei- pode ser amplo e geral, mas a visibilidade é sempre
culam as imagens. É todo esse imenso campo de estu- dirigida e parcial. Assim, a crítica, tão comum, relativa
do que cabe aos geógrafos que trabalham, direta ou a tudo aquilo que determinados observadores deixam
indiretamente com imagens, desbravar e investigar. de ver em um fenômeno é completamente tautológica.
A visibilidade é irremediavelmente não-totalizadora.
Imagens sempre operam simultaneamente mostrando
e escondendo coisas. Há, irremediavelmente, uma de- Em compensação, ela pode ser analisada minuciosa-
sigual atitude face ao fenômeno visual. Vemos somen- mente em relação às razões que nos levam a ver e a
te aquilo que retiramos do fluxo contínuo do olhar. O não ver. Ela traz à tona claramente o questionamento
ato físico do olhar é pouco criterioso e se nutre de um sobre os dispositivos que são acionados e porque o são
homogêneo e generalizado desinteresse. O olhar per- para tornar determinadas coisas visíveis. Isso corres-
corre e não se fixa. Por isso, ver algo significa extraí-lo ponde a dizer que existem elementos que em determi-
dessa homogeneidade indistinta do olhar, significa nadas circunstâncias nos fazem ver coisas. Os óculos
conferir atenção, tratar esse algo como especial. A dife- escuros em um velório são um acanhado exemplo dis-
rença entre olhar e ver consiste, portanto, no fato de so.
que o olhar dirige o foco e os ângulos de visão, cons-
O que foi chamado acima de “determinadas circuns-
trói um campo visual; ver significa conferir atenção,
notar, perceber, individualizar coisas dentro desse tâncias” pode ser ainda um pouco melhor explorado e
grande campo visual construído pelo olhar. mais corretamente estabelecido. Essas circunstâncias
são as situações espaço-temporais, ou seja, um evento
que ocorre em um lugar e em um momento. As condi-
ções particulares desse lugar e desse momento impõem mento do papel daquelas posições no espaço na com-
um feixe de significações especiais ao evento. preensão dos fenômenos.

Se concordarmos com o que foi dito anteriormente, Em relação ao fenômeno da visibilidade, se estabele-
podemos prosseguir então e assegurar que a visibilida- cemos a existência de uma condição espacial que inter-
de é um fenômeno que está estreitamente relacionado vém diretamente nesse fenômeno então não é mais
à posição no espaço daquilo que é visto. Se isso tam- cabível duvidar da relevância e do alcance de uma aná-
pouco for contestado, podemos continuar e logica- lise que leve em consideração a trama das posições
mente afirmar que a visibilidade é um fenômeno que espaciais na compreensão daquilo que é visível e na
possui uma incontornável geograficidade. Em outras forma como ele se faz visível ou inversamente, daquilo
palavras, a posição é algo que se estabelece, primeira- que é invisível e sobre as formas pelas quais se produz
mente, pela situação de pertencer a um mesmo plano essa invisibilidade.
e, em segundo, por esse plano definir relações entre
muito diversas coisas ou estados (grande, pequeno, Há ainda um último ponto em relação ao exemplo
longe perto, primeiro, segundo, terceiro etc.). trazido. Foi dito acima que a visibilidade é construída
pela distribuição desigual do interesse sobre aquilo que
Notemos que a idéia de posição é sempre dependente é olhado, disso derivando que o visível é sempre corre-
de um sistema de referência. Quando essa posição é lativo ao seu inverso, o invisível. Merleau Ponty sugere
um lugar o sistema de referência é espacial, ou seja, é que essa estrutura dualista do pensamento, tão elemen-
um sistema composto por todas as relações entre as tar em nossos sistemas de compreensão, pode ser con-
coisas, pessoas, fenômenos, situados em posições geo- cebida não como uma estrutura de posições fixas, in-
referenciadas (para usar uma palavra muito empregada versas e contrárias, mas sim como situações de conti-
atualmente em sistemas de informação geográfica). nua reversibilidade8. Ao tocar algo somos também por
Essas posições e os fluxos que circulam entre elas são ele tocados, vemos algo, mas simultaneamente pode-
portadores de sentido e atributos. A análise possível
nesse caso é uma análise geográfica, ou seja, um julga- 8
Merleau-Ponty, Maurice. “Phénomenologie de la perception”,
(1945) e o manuscrito inacabado “Visible et invisible”, (1964)
in OEuvres, Gallimard, Paris, 2008.
mos também sermos vistos enquanto o vemos. Essa rências espaciais consistem em um elemento central,
reversibilidade nos transforma sempre em sujei- embora poucas vezes valorizado, no exame do fenô-
tos/objetos na vida. meno da visibilidade.

Os óculos escuros conferem especial visibilidade às A variação da posição espacial de um objeto, pessoa ou
pessoas em um velório, mas, simultaneamente, elas fenômeno altera completamente nossa percepção, nos-
também estão em uma situação de observadores privi- sa apreciação e nosso provável interesse sobre eles. A
legiados, na medida em que poderão “ver” sem que posição não é, entretanto, absoluta. Lugares dizem
necessariamente a atenção dispensada por eles a certos respeito, como vimos, a um sistema de referência es-
pontos seja percebida. Nesse caso, os óculos concen- pacial, então a natureza (o tipo de coisa) do que ali se
tram a atenção, mas aquele que os porta dispõe de apresenta, ou se mostra, intervém diretamente na cons-
condições para dirigir sua atenção sem que ela mesma trução de sentidos.
seja o foco de uma observação direta. Como se pode
constatar é um complicado jogo trazido por um tão O raciocínio pode parecer complexo, mas é bastante
simples objeto. simples: os lugares, como pontos dentro de um sistema
de referência, só passam a produzir sentido a partir do
momento em que são ocupados por alguma coisa. A
natureza, o conteúdo, a forma como ela se apresenta,
O que torna uma coisa visível sob um ponto de se combina com o lugar onde aparece, com a posição
vista geográfico?
que ocupa, e juntos, o lugar e o que nele se apresenta,
A resposta a essa pergunta, segundo o que acabamos produzem sentido. Justamente por isso uma análise
de estabelecer, só pode ser uma: a posição. Queremos espacial é necessária e rica uma vez que mostra a de-
dizer que a espacialidade é uma condição fundamental pendência da produção de sentido relativamente ao
no fenômeno da visibilidade. Em outras palavras, a universo posicional dentro do qual os objetos, as pes-
posição das coisas, dos objetos, das pessoas dentro soas e os fenômenos se inscrevem.
daquilo que chamamos de trama locacional, ou seja, as Se a justificativa da importância dessa análise é simples
posições relativas delas segundo um sistema de refe-
de ser formulada, embora à primeira vista possa ter
uma aparência complexa, ocorre exatamente o inverso ocorre, da existência de um público e da produção de
com a análise propriamente dita. Ela parece simples, uma narrativa, dentro da qual aquela coisa, pessoa,
até mesmo óbvia, mas ao ser desenvolvida se percebe fenômeno encontra sentido e merece destaque.
que ela abarca um universo de condições bastante in-
Esses três elementos podem ser reunidos e discutidos
trincado. Vejamos alguns desses elementos mais gerais
como condições gerais da visibilidade espacial. Associ-
para começar.
ados dessa forma esses três elementos compõem uma
A visibilidade, sua magnitude e alcance dependerão, ação que é bastante conhecida por todos nós: a exposi-
segundo o ponto de vista defendido aqui, de três prin- ção.
cipais elementos. Primeiramente, dependerá, como foi
dito, das leituras do sentido que emergem da associa-
ção entre o lugar e o evento, ou ainda, dependerá da O lugar de exposição: espaço da visibilidade
significação que nasce da posição dentro de um con-
texto espacial no qual se inscreve o fenômeno. Em A palavra “exposição” tem uma riqueza etimológica
seguida, dependerá também da possibilidade da morfo- particular para o tipo de argumentação sustentado
logia do espaço físico onde se mostra e que deve ser aqui.
capaz de garantir uma convergência dos olhares e a
Como vimos antes, exposição que dizer, antes de tudo,
desejada captura da atenção. Finalmente, o terceiro
colocar em uma posição de exterioridade, de apresen-
elemento é que esse lugar deve garantir a presença de
tação ao olhar. Usamos essa palavra também para de-
observadores sensíveis aos novos sentidos nascidos da
signar, por exemplo, a maneira pela qual a luz incide
associação entre o lugar e o evento que se apresenta.
em um lugar ou sobre um objeto, colocando-os em
Em termos mais simples, deve haver olhares concen-
evidência ou tirando-os da sombra, da invisibilidade.
trados em uma área, passíveis de serem atraídos para
Essa acepção de “exposição” inclui todos os matizes
aquele ângulo ou ponto de vista – um público.
que as idéias de luz e de luminosidade têm, inclusive
Em síntese a visibilidade, na forma que está sendo aquele que serviu para designar o período histórico de
abordada aqui, depende da morfologia do sítio onde
nascimento da esfera pública na Europa – o Iluminis- esse raciocínio podemos dizer que há lugares que têm
mo. vocação para serem lugares de exposição, ou são insti-
tuídos como lugares de visibilidade. Há uma geografia
Simultaneamente, no entanto, a mesma palavra pode própria ao fenômeno da visibilidade na maneira como
ter o sentido de narrar, explicar, declarar, ou manifes-
socialmente escolhemos lugares para mostrar ou es-
tar. Diz-se, dessa forma, “fazer uma exposição” para
conder, coisas, valores, comportamentos, na maneira
uma apresentação voltada para uma audiência, seja em como são mostrados e nas circunstâncias dessa exposi-
um colóquio, uma aula, uma sessão solene etc. Assim ção. Eles são exibidos em diferentes lugares e de dife-
também se passa com o verbo “expor”, que significa rentes formas e, a partir dessa imensa variedade, criam-
apresentar à vista, colocar em evidência, mostrar, mas se leituras, interpretações, narrativas.
correlatamente significa analisar. O sinônimo de expor
“exibir” demonstra também que essa apresentação se Além dessa escolha dos lugares que obviamente é soli-
faz para um público e, por isso, há o sentido possível dária da seleção dos valores que estão associados a
para a palavra expor como a idéia de sujeitar-se à ação essas localizações, há sempre uma ordem que é seguida
de outros, de correr riscos. Afinal, aquilo que está ex- na exposição, ordem espacial e temporal, ou seja, o que
posto o é à vista dos outros e se for visto, será passível vem antes, o que vem depois, no tempo e no espaço.
de análise, de julgamento. A palavra exposição contém Da sucessão, da ordem assim construída, também sur-
pois todos os três elementos que foram identificados gem sentidos. A exposição é um desfile. O desfile é
antes como componentes fundamentais da visibilidade: uma narração. A ordem espacial e temporal são os
a inserção em uma narrativa, a posição morfológica de elementos estruturantes da narrativa.
exterioridade e a apresentação ao público.

A exposição, ou a ação de expor, é a procura por uma


posição de absoluta ou de explicita visibilidade. Em As cortinas se abrem: todos os olhares se voltam
outros termos, colocar em exposição é estar ciente de para barracas vermelhas alinhadas ao longo de um
que há uma configuração espacial através da qual tor- canal.
namos algo visível, mostramos, exibimos. Seguindo
Em uma manhã de inverno no ano de 2006, em Paris, de uma ONG denominada Filhos de Dom Quixote
apareceram, cuidadosamente alinhadas ao longo de (Les Enfants de Dom Quichote) foi planejada uma ocupa-
grande parte das margens do Canal Saint-Martin, pe- ção das margens do canal, que consistiu basicamente
quenas barracas vermelhas em um grande número e na atribuição de pequenas barracas vermelhas a esses
densamente distribuídas9. O desenvolvimento desse moradores de rua, com algumas provisões e a organi-
episódio contém diversos elementos que podem nos zação de alguns serviços (médicos, sanitários, de abas-
ajudar a compreender melhor como a mudança de tecimento etc.).
certas condições é capaz de tornar determinadas coisas
mais visíveis, tirá-las das zonas de sombra do olhar, Imediatamente, essa ocupação começou a chamar a
despertar e manter o interesse voltado para elas, ou atenção e em pouco tempo se transformou em um
grande evento. Pessoas começaram a ir até o local para
seja, vê-las. Em outras palavras, nesse rápido exemplo
aparece de forma contundente como a visibilidade de ver a ocupação, os jornais faziam quase diariamente
um fato ou fenômeno muda segundo as propriedades grandes matérias dedicadas ao fato, a televisão organi-
zou programas especiais e séries de debates. Todos os
de sua exposição, segundo a ordem se sua apresenta-
ção. De fato, muda-se a narrativa pela qual eles são dias nos telejornais a “ocupação do Canal Saint-
apresentados. Martin” era uma das principais manchetes. Rapida-
mente também, um grande número de artistas ou de
As barracas vermelhas que ocupavam as margens do pessoas públicas começou a se apresentar no local,
Canal Saint-Martin compunham um acampamento de fazendo declarações de simpatia ao movimento e de-
moradores de rua ou sem domicílio fixo (SDF), como mandando medidas ao Estado para resolver o proble-
são conhecidas essas pessoas na França. Pela iniciativa ma. Quando esses personagens não apareciam fisica-
mente na área de ocupação do Canal Saint-Martin,
9 pelo menos, procuravam os meios de comunicação
Esse estudo foi mais minuciosamente apresentado em um
artigo: Gomes, P. C. C.; Fort-Jacques, Théo . Spatialité et para mostrar sua solidariedade com esses moradores
portée politique d'une mise en scène: le cas des tentes rouges au agora abrigados em barracas. Para alguém que não
long du Canal Saint-Martin. Géographie et Cultures (Paris), v. conhecesse a sociedade francesa poderia parecer que se
1, p. 7-22, 2010. tratava de um fenômeno completamente inédito e des-
conhecido até então, tal era a indignação das pessoas e Na forma como se apresentava o problema da popula-
das manifestações. Nada nesse comportamento pode- ção sem domicílio fixo nessa ocupação a única reação
ria indicar que a presença dessa população sem domicí- possível e aceitável era a solidariedade. Um consenso
lio fixo era um elemento habitual nas ruas de Paris há compassional tomou conta de todos. A visibilidade do
muito tempo. problema foi muito bem alcançada, a forma narrativa
pela qual essa visibilidade foi construída também pare-
Mais interessante ainda foi perceber que quase todos ce ter sido o resultado de uma ação muito bem plane-
os principais partidos políticos do país se fizeram pre- jada.
sentes nesse evento. Muitos de seus representantes
procuraram participar diretamente dos debates e fazi- A ocupação do Canal Saint-Martin foi principalmente
am inflamados discursos, se indignavam contra os res- orquestrada e dirigida por dois irmãos que têm uma
ponsáveis políticos, lembravam outros combates simi- grande experiência em teatro e em cinema. Alguns
lares e prometiam agir junto às esferas de decisão para detalhes relativos à imagem não podem, por isso, ser
resolver a situação daquelas pessoas. O partido político negligenciados na análise do sucesso dessa empreitada,
no poder, por mais estranho que possa parecer, tam- eles parecem ter sido pensados com muito cuidado
bém se mostrava indignado e se juntou ao clamor soci- pelos organizadores. O primeiro deles foi a semelhança
al se comprometendo a apresentar novos projetos no física e contextual buscada voluntariamente com um
Congresso para reverter o quadro de desamparo dessa grande personagem da história francesa recente, o
população. Abade (Abbé) Pierre. Nos anos posteriores à II Gran-
de Guerra, ele conseguiu sensibilizar e mobilizar toda a
Os franceses, conhecidos pelo apego que têm pelo França em uma campanha em prol dos carentes e de-
debate contraditório, nessa situação se mostravam sabrigados durante o inverno de 1954, particularmente
completamente consensuais. Afinal, quem poderia ser
frio, no qual houve inclusive mortos. A similaridade
contra a intervenção imediata para resolver os proble- entre a ocupação do canal Saint-Martin e o e o movi-
mas dessa população sem domicilio fixo? Sob que ar- mento de 1954 não foi, portanto fortuita.
gumentos poder-se-ia negar a gravidade do problema e
a urgência em resolvê-lo?
O Abade Pierre, fundador da organização Emmaüs, valores compassionais, pelo menos nos cabe analisá-
goza até hoje de uma imagem muito forte associada à los com algum distanciamento. O personagem do
solidariedade e a ação humanitária. Três aspectos na Abade Pierre e a imagem que ele veiculava foram, aliás,
biografia desse personagem são importantes de serem anos antes, objeto de análise de Roland Barthes. O
lembrados aqui. O primeiro foi a relação sempre muito capote, a barba de missionário, o corte de cabelo, to-
próxima dele com os meios de comunicação moder- dos esses elementos compunham, segundo Barthes,
nos. O apelo lançado por ele em 1954 foi feito através uma iconografia da bondade. Ele comentava:
de uma rádio, na época o veículo mais importante de
Preocupa-me uma sociedade que ao consumir tão avi-
comunicação. Além disso, enquanto vivia, o Abade
damente a imagem da caridade, se esquece de perguntar
Pierre era comumente convidado a participar de pro-
sobre suas conseqüências, seus usos e seus limites. Então
gramas televisivos e sua vida foi duas vezes transfor-
me pergunto se a bonita e tocante iconografia do Abade
mada em filmes épicos. O segundo aspecto foi a rela-
Pierre não é um álibi que uma boa parte da sociedade se
ção muito próxima dele com o mundo da política. Ele-
autoriza a usar, mais uma vez, para substituir impune-
geu-se deputado por um mandato e logo depois conti-
mente os signos da caridade pela realidade da justiça10.
nuou a sempre manter laços de proximidade com os
grandes personagens da vida política francesa de todas Certamente os aspectos iconográficos comentados por
as origens. Durante seu velório, em 2007, uma ampla e Barthes foram também considerados para a montagem
irrestrita gama de políticos e intelectuais se reuniu para da ocupação do Canal Saint-Martin pois um dos ir-
homenageá-lo. O aspecto consensual é uma imagem mãos protagonistas se apresentou no local, exibindo os
forte no personagem do Abade Pierre, conhecido tam- mesmos signos descritos por Barthes: a barba, o capo-
bém como um “cruzado da bondade”. Esse, aliás, é o te e o corte de cabelo. Se em 1954 a repercussão do
terceiro aspecto fundamental, na saga desse persona- evento se fez talvez pela imagem criada de forma es-
gem, a fixação de um tipo de imagem que se associa a pontânea, em 2006 tudo leva a crer que os elementos
ele – o justo combate da bondade. dessa composição, dessa verdadeira mise-en-scène, foram
Ainda que não haja socialmente muito espaço para
10
uma oposição direta a personagens que são ungidos de Barthes Roland, Mythologies. Seuil, Paris, 1975.
cuidadosamente estudados e escolhidos: o lugar, a or- concentração daquilo que se quer valorizar, ou fazer
dem das barracas, os personagens, seus figurinos, seus ver.
textos etc. Sublinhamos que a palavra composição traz
exatamente à tona essa idéia de um jogo de posições A imagem é nova. Ela gera outra visibilidade para um
fenômeno que na dispersão comum pela qual se apre-
que cria e faz circular significados na forma como coi-
senta ordinariamente nas cidades é olhado sem real-
sas, objetos e pessoas estão dispostos sobre um plano.
Insistimos, a composição é sempre, portanto, um fe- mente ser visto. Disperso e rarefeito, o fenômeno não
nômeno passível de ser analisado sob um ponto de consegue despertar o interesse, não consegue se extrair
vista geográfico. do fluxo comum e banal da experiência da cidade que
cotidianamente temos. Os organizadores da ocupação
A concentração do fenômeno, muitas barracas reuni- do Canal Saint-Martin, ao mudarem essa ordem de
das em um mesmo local; o alinhamento entre elas e a apresentação mudaram a visibilidade do fenômeno.
regularidade do padrão, barracas vermelhas semelhan- Restava o enredo, associar essa nova visibilidade a uma
tes organizadas segundo um ponto de vista longitudi- leitura, conduzir a interpretação, fixar a intriga: a bon-
nal, paralelas ao Canal; a escolha do Canal Saint- dade e a solidariedade através da imagem combativa e
Martin, sítio tradicional da cidade, muitas vezes trans- caridosa do Abade Pierre11. O espetáculo está pronto.
formado em locação de inúmeras produções cinema-
tográficas; todos esses ingredientes são os diretos res- Tão fortes são os elementos que estruturam essa saga
que eles retiram do debate todos os aspectos potenci-
ponsáveis pela produção de uma imagem nova no fe-
nômeno dos sem-teto. Eles aparecem através de uma almente divergentes que, no entanto, após a forte co-
homogênea e regular imagem de barracas similares moção inicial, acabam por se impor no curso destes
alinhadas; induzem uma percepção de que estão orga- eventos. Assim, as diferentes circunstâncias que levam
as pessoas a viver na rua, o papel da dependência do
nizados e concentrados e que fazem parte de um
mesmo e só problema. Nos jogos composicionais se álcool ou das drogas em grande parte dessa população,
sabe que o efeito de realce pode ser alcançado aumen- 11
Não podemos esquecer a força da própria denominação do
tando a acentuação ou simplesmente aumentando a movimento – Crianças de Dom Quixote- que age também no
sentido de produzir um sentido aventuroso e heróico ao movi-
mento.
a vontade de alguns de permanecerem na rua, os con- aos bem sucedidos ingredientes reunidos pelas mar-
flitos com os moradores do bairro, às diferentes pro- gens do Canal Saint Martin em Paris? Na cidade de
posições de solução - tudo isso é por um momento Nice apareceram barracas na praia, em frente à avenida
colocado em suspensão para que um grande consenso denominada Promenade des Anglais, lugar público mítico
se produza, um consenso trabalhado através da ima- desta cidade, registrado no antológico filme de Jean
gem. A complexidade da situação, com seus variados Vigo de 1929 e através do qual podemos reconhecer
ingredientes, só poderia aparecer dentro de outro tipo facilmente o papel central da visibilidade e do jogo
de narrativa, representada por imagens mais variadas e social em torno da avenida12. Em Bordeaux, a praça
não unificadoras. A tentação das imagens simples, ao mais central também foi investida pelas barracas e as-
contrário, consiste em produzir a imediata comunica- sim se passou sucessivamente em diversos outros cen-
ção de um sentido único capaz de gerar uma leitura tros urbanos da França naquele momento. Seria inte-
fácil e em torno da qual prontamente se produz adesão ressante analisar as diferentes escolhas locacionais nes-
e mobilização. sas variadas cidades francesas que tiveram ocupações
associadas a essa experiência, reconhecer estratégias,
A ocupação do Canal Saint-Martin em Paris se trans- tipologias e efeitos.
formou em um verdadeiro modelo e, em diversas ou-
tras cidades francesas, apareceram acampamentos de Como resultado prático dessa grande mobilização, uma
moradores de rua. A ação bem sucedida dos Enfants de nova lei foi votada na França e aprovada imediatamen-
Dom Quichote pareceu exemplar e muitos foram aqueles te por todos os parlamentares. A aplicação da lei é
que procuraram recriar condições semelhantes para complexa, limitada e pouco eficiente. Logo depois do
tentar obter a mesma repercussão, a mesma visibilida- desmonte das barracas, a presença desses moradores
de. sem-teto voltou a ser dispersa, esparsa, eventual e coti-
diana – pouco visível.
Podemos bem imaginar que uma pergunta fundamen-
tal nessas iniciativas que tentavam recompor o mesmo
cenário deve talvez ter sido aquela da escolha dos lo-
cais da montagem. Que sítios poderiam corresponder
12
À propos de Nice (A propósito de Nice) de Jean Vigo, 1929.
A propósito de pontos cegos e de exposições. os valores que devem ser julgados. A proposta de re-
gimes de visibilidade é uma analogia com a expressão
A partir da diferença entre imagens que são extraídas
dos “regimes de verdade”, cunhada por Michel Fou-
do fluxo e aquelas que simplesmente compõem os cault. Dizia ele que esses regimes nos informam sobre
quadros de nossas atividades cotidianas, poderíamos
quem está autorizado a falar, o tipo de discurso que é
conceber diferentes regimes de visibilidade das coi-
aceito como verdadeiro e os mecanismos que permi-
sas, pessoas ou fenômenos13. Um dos mais difundidos tem distinguir o falso do verdadeiro.
tipo de regime é aquele que faz parte do cotidiano e
pode ser dito ordinário. Ele é previsível, repetitivo, não Paralelamente, podemos dizer que regimes de visibili-
impactante. Outro tipo de regime poderia ser denomi- dade nos informam sobre o que deve ser visível, como
nado como extraordinário, captura a atenção, cria ou aquilo que é visto deve ser entendido e, simultanea-
se associa a um evento, tem impacto, mobiliza e inter- mente, o que não merece ser visto. De certa forma, os
fere nessa ordem do cotidiano. Há, por isso, muitas regimes de visibilidade têm como meta nos informar
coisas, muitas pessoas e fenômenos que olhamos, mas sobre o que pode ser considerado importante e o por-
não vemos. É preciso, às vezes, que elas mudem de quê dessa avaliação. Eles nos informarão também so-
lugar para que sejam vistas. A questão central nessa bre as condições necessárias para interpretação daquilo
apresentação é, pois, saber como a localização ou o que está sendo exposto, sua legitimidade. É nesse sen-
lugar figurado de uma ação faz parte dessas condições tido que os regimes de visibilidade ditam mais do que
capazes de mudar o regime de visibilidade das coisas, somente o que é visto e o que é mantido à sombra, eles
pessoas e fenômenos. ditam também o que deve ser lembrado e o que deve
ser mantido esquecido, suas continuidades e rupturas.
Por que regimes de visibilidade? A idéia principal nessa Como diria Foucault, esses regimes criam práticas,
expressão é a de que existe uma espécie de protocolo,
criam seus próprios critérios e regras de avaliação e de
cartilha de procedimentos regulares, que estabelecem legitimidade14
socialmente aquilo que deve ser visto, as condições e

13 14
O primeiro geógrafo que usou essa expressão foi Michel Foucault, Michel, Les mots et les choses. Gallimard, Paris,
Lussault em seu livro L’homme spatial, Seuil, Paris, 2007. 1994, p. 19-31.
Logicamente, sustentamos aqui que os regimes de visi- exposição. Esse é um exemplo bastante simples do que
bilidade são modulados pela espacialidade, ou seja, o está sendo aqui chamado de cartografia do olhar.
“que” ver e “como” ver são completamente tributários
de “onde” ver. Nesse sentido, não seria nem um pou- Sugestivo é perceber que podem existir outros objetos
dentro dessa mesma sala que não são “visíveis” embo-
co surpreendente afirmar que há uma geografia do
ra ocupem um espaço contíguo. É comum que as salas
olhar. Essa geografia nos informa sobre o que deve ser
visto naquele lugar e o que não deve ser visto. Ela nos de exposição dos museus ou de galerias sejam providas
informa sobre o estatuto e a compreensão possível de equipamentos contra incêndio, medidores de tem-
para as coisas que ali se apresentam, sua importância e peratura e de trepidação etc. Nenhum desses objetos,
seu sentido. no entanto, nos são “visíveis” durante a visita. Um
extintor ou um termômetro não solicitam nenhuma
atenção nessas situações, são banais pois exprimem tão
somente suas estritas funcionalidades, medir a tempe-
Cartografias do olhar ratura ou prevenir a extensão de um eventual foco de
Quando entramos em uma sala de um museu ou de fogo. Eles também estão expostos, devem ser visíveis
uma galeria de arte, sabemos previamente que os obje- em caso de necessidade, mas permanecem como em
tos que ali estão expostos são considerados como obje- situação de eclipse diante do nosso olhar de visitante.
tos detentores de um valor seja ele artístico, cultural ou Seguramente, seriam escrutados minuciosamente se
histórico. Muitas vezes, pouco sabemos sobre o que estivessem em outra posição dentro dessa sala, se a
está exposto. De fato, pouco importa o que veremos, posição indicasse que eles também são objetos de inte-
eles já estão classificados pela posição que ocupam resse, que devem ser vistos e admirados, como, por
nessa rede de posições espaciais como elementos de exemplo, em uma eventual exposição sobre extintores
valor. É a situação espacial deles que nos informa. Ca- ou sobre termômetros.
be ao olhar observá-los e identificar o que, naqueles Há uma ação geográfica nesse nosso olhar. Uma ime-
objetos, existe de interessante e de valor. A posição diata classificação das coisas pela posição que ocupam.
dos objetos os torna visíveis. Eles estão em situação de
Produzimos imediatas cartografias dos lugares e de
seus conteúdos, selecionamos o que deve ser figurado, única possível representação do terreno, como se fosse
o que deve ser examinado, estabelecemos pontos de ela o próprio terreno.
vista e até a escala dessa análise. Ângulos, distâncias,
observação ou não de detalhes e minúcias, movimen-
tos necessários, percurso da observação, comparações O lugar daquilo que está fora do lugar.
etc. são elementos que fazem parte dessa espécie de
cartilha de procedimentos estabelecida para dirigir o Em 1917, com o pseudônimo de R. Mutt, o conhecido
olhar e a atenção. Esse “olhar cartográfico” nos indica artista de origem francesa Marcel Duchamp enviou
o que deve ser visto e como deve ser visto. Tudo isso para o Salão da Associação de Artistas Independentes,
se faz segundo estritas normas e critérios, no caso que em Nova Iorque, associação da qual ele, aliás, era um
aqui nos interessa, apontando regras e critérios posici- dos membros, um urinol de louça, utilizado em sanitá-
onais. O tipo de espaço, o lugar ocupado, a rede de rios masculinos, com o sugestivo título de “Fonte”. O
relações dessa posição, tudo isso age como critérios salão, do qual Duchamp era um dos curadores, tinha
que guiam o olhar e o interesse e conferem diferentes estabelecido previamente como regra que não haveria
graus de visibilidade às coisas. jurados nem seleção das obras para a exposição. Sur-
preendentemente, no entanto, o urinol foi recusado. A
Essa ação geográfica realizada pelo olhar é tão facil- razão da recusa alegada pelos outros curadores foi a de
mente conseguida, tão imediatamente alcançada que que o lugar de um urinol não é em uma exposição de
temos a tentação de compreendê-la como um dado arte, ele estaria fora do seu lugar.
“natural” e absoluto, em outras palavras, como se fi-
zesse parte da natureza intrínseca das coisas - coisas A peça é um readymade na proposta de Duchamp, um
que são interessantes e coisas que são desinteressantes, objeto fabricado em outro contexto e com outro fim,
coisas que merecem atenção e coisas que não merecem deslocado de sua funcionalidade primeira e de seu am-
atenção. Quando assim procedemos, tomamos alguns biente comum para o meio da arte. Efetivamente, o
regimes de visibilidade como formas exclusivas e abso- urinol de Duchamp podia, na época, ser encontrado
lutas, como se fossem a única maneira de estabelecer em qualquer loja do ramo. Sem reconhecer Duchamp
critérios para o olhar, tomamos a carta como se fosse a no pseudônimo de R. Mutt, lhe foi sugerido que, como

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