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abril / 2023

corpo, espaço
e cotidiano:
uma experiência
em relatos

ufpb - dau - qualificação tcc


camila andrade
orientação de carolina oukawa
4 prefácio

11 fragmentos da cidade
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39 escrita por escrito


A escrita é o desconhecido. Antes de escrever, nada se
sabe do que se vai escrever. E em total lucidez.
[...]
Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes
de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não
ia valer a pena.

PREFÁCIO
Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria
se fossemos escrever — só se pode saber depois — antes,
é a pergunta mais perigosa que se pode fazer. Mas
também a mais comum.

Marguerite Duras em “Escrever” (1994)


O
nde residem as dimensões inventivas do cotidiano? O que Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa
a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir
escapa aos determinismos de uma conjuntura globalizada
como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela:
que tende a homogeneizar culturas e expressividades; a que procedimentos populares (também “minúsculos” e
sistematizar o que não é sistematizável? De que formas o valor de troca cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não
do espaço, enquanto ótica dominante que insere a cidade numa lógica se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que
mercadológica, é atravessado por perspectivas concretas — porque “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos
consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que
espacializadas — que insistem em resgatar o valor de uso do espaço ¹?
organizam a ordenação sócio-política.
Estudando as práticas culturais cotidianas, Michel de Certeau CERTEAU, 1990; 2008, p. 41.
(1990; 2008) elencou ações que abrem um universo de possibilidades
quanto às “maneiras de fazer”. Em comum entre essas ações está Logo, ele significa o cotidiano como sendo o movimento das
a ordinariedade delas: caminhar, cozinhar, ler, falar, habitar etc. ações que inevitavelmente vão conter em si — não de forma “pura”
Utilizando como um de seus pilares a obra de Foucault, que analisou ou precisamente objetiva — fragmentos de uma desobediência
instrumentos de controle pelos quais o espaço foi reorganizado a fim espontânea a uma ordem dominante. Para chamar essas pequenas
de instituir em sua própria forma as condições para um sistema de ações, por vezes transita pelas expressões “engenhosidades do fraco”
vigilância permanente, ele alega a importância de uma investigação e “metamorfoses da lei”. Essas construções com palavras atuam como
que vai na direção contrária, a fim de alcançar aquilo que constitui as uma espécie de metalinguagem da discussão empreendida, na medida
irresignações a essas estruturas de controle. em que compreendem “artesanias” da linguagem que em si explicam
É nesse encaminhamento que um debruce sobre as ações algo dessas pequenas inventividades desdobradas a partir de uma
cotidianas pode auxiliar na compreensão do não cumprimento de apropriação sobre outra coisa.
uma homogeneização estrutural pretendida, mas que não se realiza Se aquilo que se coloca como obstáculo principal (embora
por completo. certamente sutil) às lógicas estruturais de massificação e controle
reside em nossas “maneiras de fazer”, ou seja, nas maneiras que
¹ CARLOS, A. F. A. Geografia Crítica-Radical e a Teoria Social. In: Geografia Urbana arranjamos de realizar atos ordinários, na arquitetura são também
Crítica: Teoria e Método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. os conteúdos provenientes de uma cotidianidade — do uso do espaço

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pelo corpo ou, analogamente, das “maneiras de usar” o espaço — o arquitetura em um livro. Palavras e desenhos podem somente produzir
que fundamenta essas pequenas “resistências”. Investigar o cotidiano espaço no papel, não a experiência do espaço real. O espaço no papel,
pode ser uma forma de valorização daquilo que forja uma apropriação por definição, é imaginário: é uma imagem.”
da arquitetura e da cidade pelas pessoas: os conteúdos informais, No trecho que segue, o autor articula a ambivalência da natureza
subjetivos, banais. da arquitetura: matéria essa que demanda a experiência sensorial do
espaço para que sua singularidade seja contemplada, mas não por
Existe um elemento físico e dinâmico na criação e isso relega a construção de seus sentidos imaginários por meio da
apreensão da quarta dimensão com o próprio caminho; é a
linguagem erigida através das representações.
diferença que existe entre praticar esporte e olhar os outros
enquanto o praticam; entre dançar e ver dançar; entre amar
e ler romances de amor. Falta, talvez, na representação Há certas coisas que não podem ser compreendidas
cinematográfica, esse impulso de participação completa, diretamente. Elas requerem analogias, metáforas ou
esse motivo de vontade e essa consciência de liberdade que caminhos alternativos para ser apreendidas. Por exemplo, é
sentimos na experiência direta do espaço. pela linguagem que a psicanálise desvenda o inconsciente.
ZEVI, 2009. Como uma máscara, a linguagem dá indícios de algo mais
que está por trás dela mesma. Ela pode tentar escondê-lo,
mas ao mesmo tempo também o sugere. A arquitetura se
Os paralelos feitos por Zevi buscam tornar compreensível o que
assemelha a uma figura mascarada. Ela não se dá a conhecer
diferencia a experiência direta do espaço da experiência de consumir facilmente. Está sempre escondendo: por trás de desenhos,
suas representações. Para ele, a vivência — elemento imprescindível por trás de palavras, por trás de preceitos, por trás de hábitos,
para uma apreensão “completa” do espaço — é o que integra a quarta de restrições técnicas. Contudo, é a própria dificuldade de
desvelar a arquitetura que a torna intensamente desejável.
e mais singular dimensão da arquitetura. Nas analogias que faz, é o
Esse desvelamento faz parte do prazer da arquitetura.
corpo o elemento central que está ou não incluído de forma ativa nas TSCHUMI, 2006.
atividades; as sensações por ele sentidas — não apenas assistidas — só
podem existir enquanto desdobramentos da prática direta das ações. A construção de vias de entendimento alternativas diminui a
Bernard Tschumi inicia o fragmento 10 de seu ensaio “O distância entre a complexidade real da coisa e sua compreensão. Se
prazer da arquitetura” de forma categórica: “Não há como produzir bem feita, decerto não reduz a questão e, em vez disso, cria outras

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perspectivas para o olhar, tornando mais digeríveis e apropriáveis de Lina é a de que há por parte dela um princípio projetual de aposta
seus significados. Os desenhos e as palavras, elementos citados no porvir da utilização do edifício como substância primária de sua
pelo autor, integram representações arquitetônicas; elas podem ser arquitetura. Para isso, ela se desobriga de uma definição rígida dos
compreendidas, então, como formas de analogias possíveis ao espaço. usos dos espaços, lançando mão de elementos lúdicos que estimulam
Como toda analogia, oferecem uma perspectiva outra que pode a imaginação e a criatividade e deixam um tanto em aberto as
aproximar o interlocutor do objeto em questão, sustentando o risco possibilidades de apropriações pelos usuários — ainda “imprevisíveis”
também de confundir. É no exercício desse movimento que tensiona no ato do projeto. Essa experiência, que é espacial, é reconhecida por
experiência e representação — isto é, que é ora vivido diretamente, ora ele como muito próxima do que é a experiência da narração:
pensado e comunicado através de alguma ferramenta —, onde reside a
fruição da arquitetura. Narrar tem um sentido de criar memórias. Por outro viés,
é possível entender a busca do gênero narrativo com o
Como a escrita pode ser uma ferramenta para pensar
intuito de se contrapor à realidade factual, ou seja, uma
arquitetura? Foi Lina que disse: “O arquiteto não precisa desenhar. suposta verdade. Podemos ver isso como uma espécie
Ele pode escrever.”² É no mínimo interessante que parta de alguém de confronto com o que é imposto, por meio da busca de
tão afinado com o desenho a ideia de que ele não seja uma condição uma vivência paralela. O que o senso comum tem como
verdade absoluta pode ser posto em dúvida. Lina Bo Bardi
indispensável para o fazer arquitetônico. Um desdobramento dessa fala
parece buscar estratégias nas quais narrativas de caráter
é a reflexão de que, antes de desenhos, a arquitetura trata de espaços, e livremente ficcional se tornam verossímeis. É a tentativa de
é nessa via de sentido que a escrita se assegura como uma possibilidade transformar a ficção em realidade que torna fantasiosas as
equivalente. Como o croqui, entendido como um desenho que ensaia interioridades dos edifícios que projeta.
ideias, a escrita também pode ser um recurso de experimentação que PERROTTA-BOSCH, 2013.
permite uma atuação ensaística na arquitetura, tanto de investigação
como de proposição espacial. Assim, pode-se dizer que narrar é a liberdade de construir uma
Uma das leituras feitas por Perrotta-Bosch (2013) sobre a obra visão dos fatos com mais autonomia, desviando de um empréstimo
imponderado de narrativas já postas só por estarem disponíveis e
² PERROTTA-BOSCH. Lina: Uma biografia. São Paulo: Todavia, 2021. escolhendo, em vez disso, o exercício criativo de selecionar elementos,

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ordená-los, enfatizá-los ou atenuá-los, combiná-los ou descombiná- o pensamento de que a ficção seria um oposto da verdade: um recurso
los e, ao fazer isso, desvelar histórias e memórias que contem o que que trabalha necessariamente com a mentira e com coisas menos
queremos dizer, sem que seja preciso encontrar espelho nas histórias científicas ou verdadeiras.
“oficiais”. Para tensionar esse pensamento, caberia questionar se o que
Exercido de um lugar de subjetividade que assegura a caracterizaria a verdade seria, então, mais a “ausência de ficção” ou
inevitabilidade da fabulação, o ato de narrar é uma forma de a presença desses atributos que se convencionou compreender como
elaboração das próprias vivências e de produção e manutenção das “produtores de verdade” — cientificidade, objetividade e alguma dose
memórias. Pode ser entendido como uma forma subversiva de gerar de controle. Adere-se a isso uma camada moral que questiona as
narrativas outras; um jeito de produzir confrontações à história oficial ferramentas e os saberes nascidos da experiência (não do experimento),
reproduzida como universal e respaldada pelo que se acredita como fenômeno que em si articula corpo, espaço, subjetividade e, ao
“verdade”, muito embora ela mesma também não esteja blindada de ser narrado, necessariamente põe em movimento recursos quase
algum trabalho fictício, já que a ficção seria uma qualidade inerente a artesanais, como os da fabulação e da inventividade.
toda narrativa, inclusive as ditas oficiais (FONTENELE, 2021).
Engendrando uma reflexão sobre o ensaio como gênero excluído Uma proposição, por não ser fictícia, não é automaticamente
verdadeira. Podemos portanto afirmar que a verdade não
de um lugar de saber na academia, Larrosa (2003) entende, a partir
é necessariamente o contrário da ficção, e que, quando
dos escritos de María Zambrano, o caráter de “impureza” do ensaio e optamos pela prática da ficção não o fazemos com o propósito
de outros gêneros literários considerados menores como fruto de sua turvo de tergiversar a verdade. Em relação à dependência
aproximação da vida concreta, qualidade perdida nos gêneros de escrita hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a primeira
possuiria uma possibilidade maior que a segunda, é, desde
acadêmica dominantes e “puros” em que imperam a objetividade e as
já, no plano que nos interessa, uma mera fantasia moral.
políticas da verdade. […] Ao dar um salto em direção ao inverificável, a ficção
Nesse processo de privilegiamento da verdade, ou de situá- multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento. Não
la num lugar de pureza, de quase assepsia, em que as noções de vira as costas a uma suposta realidade objetiva: muito pelo
cientificidade, objetividade e controle da linguagem/escrita utilizada contrário, submerge em sua turbulência e desdenha da
atitude ingênua que consiste em fingir saber de antemão
para dizê-la revezam-se numa retroalimentação, se constitui também
como essa realidade está posta. Não é um erro diante dessa

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ou daquela ética da verdade, mas a busca por uma verdade convivência potencialmente construtiva e mobilizadora de saberes
menos rudimentar.
da experiência, que não necessariamente são saberes que serão
SAER, El concepto de ficción (2014: 10) apud FONTENELE (2019).
assimilados como o que compreendemos por conhecimento, como
aponta Larrosa (2002):
Nessa reflexão, porque se utiliza de liberdades literária e
artística, a ficção poderia ser entendida como um aprofundamento Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo
da verdade, potencializada pelas possibilidades — de questionar, de como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao
imaginar — que se apresentam ao soltar-se dos limites das coisas
acontecer do que nos acontece. No saber da experiência
verificáveis e estritamente ocorridas. O ofício da escritura de romances não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido
foi precisado pela escritora italiana Elena Ferrante como sendo o de ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da
“orquestrar mentiras que dizem sempre, rigorosamente, a verdade”. experiência tem algumas características essenciais que
(FERRANTE, 2003). A autora faz uso de um pseudônimo e concede raras o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como
conhecimento.
entrevistas, sempre escritas, em razão da escolha de preservar esse seu
LARROSA, 2002.
lugar distanciado da mídia que, segundo ela, a possibilita apresentar
“sua verdade romanesca e não os retalhos acidentais de autobiografia
Através do cruzamento entre meus relatos e da escuta de relatos
também contidos nele” (FERRANTE, 2003). É justamente através da
outros, o que tentarei fazer é aproximar a dimensão vivida da cidade e
ficção e de um afastamento da sua figura pessoal do meio público que
construída pela narração ao estudo dos espaços e dessa afetação mútua
sente ser possível aproximar-se essencialmente da própria realidade
sujeito-cidade e cidade-sujeito que ocorre no nosso cotidiano, na
e, mais livremente, utilizá-la para construir sua obra, permitindo-a
realização da vida. Na condução dos relatos como apenas fragmentos
narrar verdades perspicazes, ainda que ficcionalizadas.
da cidade, busco um lugar de mais consciência dos próprios limites e
Essas perspectivas outras sobre a ficção — também, se
possibilidades da escrita, ciente de que a comunicação e a oralidade
ampliarmos o pensamento, sobre o ato de narrar o espaço, que
não se pretendem absolutas, pois nunca podem desviar da alteridade
tem a ficção como qualidade inerente — deslocam-na de um lugar
que essencialmente fundamenta qualquer relação interlocutiva.
supostamente oposto ao da verdade, incorporando-a consigo numa
É importante deixar posto que não há nesse trabalho uma

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intenção de tratar os relatos como retratos dos lugares. O relato está tentar defini-las ou esgotá-las; trata-se mais de uma tentativa de
sendo colocado como uma ferramenta de exploração dos espaços, capturar acontecimentos de cotidianidades que constroem o espaço,
não comprometida em dar conta de aspectos gerais ou globais que num momento em que a quantidade de informações que recebemos
objetivamente “ajudariam a retratá-los” de maneira imparcial. É um e a velocidade com que as consumimos fazem da experiência um
ato de experimentação que se utiliza da liberdade ensaística para fenômeno cada vez mais raro (LARROSA, 2002).
aproximar a escrita das vivências da cidade, e por isso se desobriga
de um esgotamento ou mesmo da ideia generalista de oferecer um O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu
tempo buscando informação, o que mais o preocupa é
“panorama” sobre cada um dos espaços tratados; não se partiu de uma
não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez
lista de pontos a serem uniformemente analisados. Ademais, ainda está melhor informado, porém, com essa obsessão pela
que às vezes possa ocorrer um tom analítico em alguma passagem, os informação e pelo saber (mas saber não no sentido de
relatos também não são análises. “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que
consegue é que nada lhe aconteça.
Nessa experiência do relato, as coisas a serem ditas fazem parte
LARROSA, 2002.
de um processo como que de artesania, já que não há um conhecimento
anterior e absoluto do porvir da investigação e por isso necessita-se
Como se, sufocados pela urgência de estar informados a todo
de uma abertura que esteja aguçada para receber aquilo que conta o
tempo, tão quanto pelo dever que sentimos de dar conta de emitir
lugar ou o que ali surge; assim, as derivas e as conversas, que nutrem
opiniões sobre esse “tudo” que acontece, para além do excesso de
os relatos, exigem atenção e algum exercício de alteridade, para que
trabalho e da falta de tempo consequente desse excesso, estivéssemos
os próprios acontecimentos possam se tornar nortes de pesquisa, no
apartados da sutileza, da abertura e da humildade que requer a
sentido de que “se sai ao encontro daquilo que só quando se encontra
experiência para existir.
se sabe que se estava buscando” (Morey, 2004 apud Vignale, 2016).
Entendida por Larrosa (2002) como “aquilo que nos passa, que
É nesse lugar de cruzamento entre a arquitetura e a narração
nos acontece, que nos toca e terminantemente distinguida daquilo
que este trabalho pretende se situar. Enxergando o potencial de uma
que se passa, que acontece ou que toca”, a experiência talvez esteja
coisa e de outra por lentes que buscam dar contorno a formas mais
submetida a uma posição de delicada fragilidade se pensarmos que
artesanais e menos visíveis de produção da cidade, sem no entanto
somos constantemente roubados do momento e do lugar que ocupamos

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para ficar sabendo de algo sempre muito importante que acontece
noutro espaço-tempo. Ao conferir uma camada distorcidamente
estimulante sobre a informação, perde vigor a nossa experiência. É
essa quantidade de informações a que somos submetidos o tempo
todo, junto à velocidade com que se tornam obsoletas, o que vai nos
colocando num estado de cansaço, esgotamento e até de cinismo ante
as coisas que acessamos viver.
Se ela é o fato que nos atravessa e não tem como existir em si
apenas, de maneira distanciada, não pode haver experiência sem um
corpo a vivê-la, a encarná-la. Cada uma dessas vivências possui suas
singularidades e o desejo de narrá-las é movido principalmente pela
confiança na sugestão de que, pelo relato e pela escrita, seja possível
desvelar sentidos e aprofundar percepções da arquitetura por vezes
não realizadas apenas pela experiência direta do espaço. Os lugares e
espaços do cotidiano, então, passaram a formar uma frente que, junto
ao relato, foram me conduzindo mais organicamente aos encontros
pela cidade e pela memória.

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FRAGMENTOS DA CIDADE
01
frequentarem, e isso atinge mais fortemente as mães.
Nesse sentido, os parques e as praças parecem ser os espaços
idades públicos que mais se aproximam de lugares com um potencial atrativo
multigeracional. Os espaços culturais, esses arquitetônicos, também
podem representar atrações nesse sentido. Mas o lugar que suscitou
esse pensamento não foi nenhum deles; foi na verdade um bar, um
espaço físico lido como semi-público, embora suas mesas e cadeiras

N
ocupassem o espaço público, a rua, que parecia satisfatoriamente
ão são todos os espaços da cidade que convidam várias idades
interditada para carros em razão desse uso. Causava a impressão de que
a fruir do espaço juntas. Há algo de especial e democrático
o bar fosse antes um amparo a quem ocupa a rua do que o contrário — a
naqueles lugares em que várias gerações se sentem estimuladas
rua como um amparo ao bar — ainda que as mesas e cadeiras fossem
a conhecer e frequentar. O que atrai diferentes idades para um mesmo
aquelas típicas de bar: de plástico, vermelhas.
lugar? O que dilui categorizações em espaço de criança, espaço de
Me chamou atenção porque era interessante um espaço em
jovem, espaço de adulto, espaço de velho?
que os grupos todos parecessem tão confortáveis e identificados com
Crianças não andam só, são acompanhadas por algum adulto.
o lugar, e que não fosse um parque ou uma praça. Não raro, espaços
Se crianças não são bem vindas em algum lugar, isso significa dizer de
que abrigam diversas idades deixam alguns mais satisfeitos, enquanto
uma privação ao espaço que pode se estender também a quem ocupa
outros usufruem mais entediados. Não era esse o caso. Ali, de forma
esse papel de cuidador.
geral, o coletivo parecia bem arranjado, interessado. Era um bar, mas
Um espaço, por exemplo, que seja lido como “só de criança”,
como estava, ainda era um espaço público.
exclui quem delas cuida; não na forma de interdição de seu acesso, mas
no sentido de que apenas crianças e pais terão motivos para frequentar
esse lugar e, assim, muito provavelmente, amigos desses pais não se
sentirão tão entusiasmados a irem, isolando-os do que pode ter sido
seu grupo de amigos. Por outro lado, um espaço que não aceita ou que
repele crianças, pode por vezes minar a possibilidade de seus pais o

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02
para gritar, para ver e para ser visto — ainda que de uma maneira
estreita, restrita. Das varandas as pessoas se expressam politicamente.
se perdendo (em casa) As projeções nas empenas punham ilustrado no concreto dos prédios
as indignações, as dores, o luto por que passava; uniam os olhares e os
gritos saídos das varandas.
Como esses textos, que se apresentam como retalhos soltos de um
todo não abarcável que é a cidade, as varandas, quando no conjunto de
um prédio, são pequenos fragmentos de formas de vida. É precisamente
É numa casa que a gente se sente só. Não do lado
de fora, mas dentro. Em um parque, há pássaros, o aspecto da pretensa conformidade arquitetônica que há entre elas
gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. e, apesar dela, a alteridade que naturalmente e de forma frequente
Em um parque a gente não está sozinha. Mas consegue ir se estabelecendo no edifício à medida que as unidades de
dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se moradia vão sendo ocupadas, desocupadas e reocupadas — processo que
perde. pode ser acompanhado de fora, justamente pelas varandas — o que as
Marguerite Duras em “Escrever” (1994). tornam interessantes enquanto amostras de existências diversas entre
si.

E
u gosto e observo muito as varandas. Gosto porque de uma Algumas varandas são quase que completamente ocupadas
só fachada é possível ter várias amostras de formas de vida. por plantas: vasos no piso, vasos pendurados no teto, trepadeiras que
Porque, das alturas, é o elo de contato visual e sonoro entre casa cobrem as paredes. Há as que são protegidas com telas, geralmente
e rua. Ou entre varanda e varanda. Porque da minha varanda, através quando há crianças ou animais morando. Há também as sem tela, ainda
da observação das varandas alheias, com sorte posso acompanhar o que com gatos. Outras, destoando da fachada inteira, são fechadas por
cotidiano morar acontecendo. vidros, os chamados sistemas de cortina europeu. Provavelmente são
Durante os momentos mais críticos da pandemia, quando sair essas que deixaram de ser varandas para que a sala pudesse ter mais
na rua não era uma possibilidade sanitária, das varandas muita gente espaço e, tornando-se sala, deixou de fazer sentido o aspecto “molhado”
encontrou algum escape possível: para tomar sol, para fazer barulho, geralmente contemplado pelas varandas.

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De onde moro, vejo varandas que são tão pouco utilizadas a cotidianos outros estão sempre em curso — percepção cuja obviedade
ponto de gerarem a dúvida se são mesmo varandas ou áreas técnicas é tornada turva se ficamos muito tempo em casa. No limite, podem
de ar condicionado. A pouca utilização não é o único motivo do significar a possibilidade de um ponto âncora fora, ao qual podemos nos
questionamento, que é alimentado também pelo fato de serem varandas ater para que, estando em casa, não nos percamos no dentro.
muito pouco convidativas, fazendo pensar que poderia tanto ser uma Agora lembro que há senhoras que vejo frequentemente no
coisa como outra, não fossem alguns acontecimentos que respondem a prédio à frente. O prédio tem planta em forma de U, sendo as pontas do
dúvida: são varandas, porque quando ocorrem acidentes no cruzamento U as duas torres, e a parte côncava do U o corredor de circulação. Das
que tem ao final da rua — onde a preferência de uma das vias sobre a vezes que as vi, geralmente aos finais de tarde, elas não estavam em suas
outra é algo em que alguns que dirigem costumam depositar confiança varandas — que não são varandas, mas janelões na sala — mas em um
demais, sem reduzir a velocidade para verificar se está livre a passagem desses corredores, escoradas no guarda-corpo. Passam alguns minutos,
— as pessoas brotam, ocupando-as, e é nesse contexto aflito que podemos observando a rua e conversando. O corredor, que fica paralelo à rua, para
então sabê-las como varandas. elas acaba funcionando como uma longa varanda, de encontro porque é
Houve uma noite em que um caminhão mais alto do que os fios de uso comum. Nem sempre vejo as duas por lá, às vezes é só uma dela.
dos postes acabou se enroscando nos fios e derrubando um poste. Algum Meus pais, quando vêm pra cá, costumam passar muito tempo na
barulho, algumas faíscas, e logo se amontoaram muitas pessoas nas varanda e também eles acham curioso não ver outras pessoas ocupando
varandas e na rua. Conheci, então, de longe, alguns moradores desses esse mesmo espaço de seus apartamentos. Por morarem no interior,
apartamentos, que quase nunca vejo. numa casa, e num lugar em que quase a totalidade das moradias são
Morar em um prédio em que conheço cada morador, ao mesmo casas, não prédios, eles encontram alguma dificuldade em assimilar
tempo que elimina o vazio que talvez seria morar em uma casa grande com um morar que, sendo em apartamento — o que pra eles já é algo que em
pouca gente para ocupá-la (seríamos eu e minha irmã), me traz alguma si constitui alguma restrição — não abarca a varanda como ambiente
sensação de comunidade, de pertencimento e de segurança. Ao observar essencial, fundamental de uso diário.
varandas, casualmente encontro lampejos de vidas acontecendo dentro Talvez as varandas sejam esse espaço da casa ou do apartamento
dessas cápsulas abertas. Esses lampejos são uma aliviante notícia de que (e, nesse caso, vai depender da altura em que ele está) de onde podemos,
há um outro, de que há formas tantas de se morar e de se viver, e de que de longe, ver os pássaros, os gatos — esquilos não exatamente e furões

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também não com muita frequência, ao menos onde moro — que falou
Marguerite Duras em relação aos parques. Não são jamais equivalentes,
contudo, mais do que fazem as janelas, as varandas nos aproximam de
algum movimento de dinâmicas vivas e externas a nós, mesmo que
internas, que fazem da moradia um lugar menos enclausurado em si.

15
03
fazendo o mesmo percurso. Mesmo assim, às vezes essa resposta não é
suficiente, e é acatada com indigestão. Continuo andando e continua
posso andar aqui? estranho, mas é só esse o caminho possível; deve ser ele mesmo.
A outra opção seria pegar o ônibus. Mas para a direção que
vou, rumo aos Bancários, preciso atravessar uma via de quatro faixas.
Fui ver no Google Maps para ter certeza se são quatro faixas; minha
impressão de pedestre exagerou, na verdade são três. Agora sei que

U
essas vias largas se chamam vias expressas. E, na verdade, são três
ma pergunta simples (tão simples que soa ingênua, e de fato é):
faixas em uma via. Só que a parada de ônibus está não a uma, mas
Em que ritmo acontece a cidade?
a duas vias expressas de mim. Isso significa seis faixas de carro de
Depende. Da cidade. Do bairro. Das ruas. Dos usos que
distância.
formam a parte construída das ruas. E daqueles usos ambulantes,
Prescindir de pegar o ônibus para voltar para casa só me é
em movimento, que ora estão e ora não. Também da quantidade de
uma opção porque moro a mais ou menos um quilômetro e meio
pessoas que são atraídas por esses usos. Da hierarquia viária da rua
da universidade. Por isso a resistência em usar o ônibus: é um
em questão. E de sua largura, que muito provavelmente tem algo a ver
destino que está muito próximo para ser razoável precisar de algum
com a capacidade de automóveis que comporta. E se, existindo uma
transporte. Enquanto caminho em direção ao pórtico de entrada da
pavimentação, de seu tipo. Por último, em ordem e não em importância,
universidade (que agora é para mim de saída), teimo por um tempo.
há a variável do horário do dia.
Mas é a hostilidade da calçada tão estreita quanto eterna que me faz
Tem percursos que são tão hostis a ponto de a sensação criada ao
considerar a possibilidade.
caminhar neles ser a de se questionar se aquilo é mesmo um caminho.
Nesses momentos, relembro as definições de transporte ativo e
Um deles é o percurso que faço a pé, da universidade à minha casa.
passivo dentro do urbanismo. São feitas considerando o ser humano
Pode ser um padrão meu esse de colocar em dúvida a legitimidade do
como parâmetro. Se há o uso de energia humana para o deslocamento,
uso de cada espaço se fizer pouco sentido na minha experiência. “Será
é ativo. Se não há, é passivo. Mas nesse choque abissal de velocidade,
que aqui é mesmo caminhável e eu deveria andar por aqui?” O que
potência, importância, quantidade, preocupação e priorização por
costuma responder a essa pergunta é a presença de outras pessoas

16
parte do planejamento, não consigo me pensar aqui, enquanto
pedestre, fazendo um deslocamento dito como transporte ativo; pois
apenas me é possível operar na função mais passiva possível.
Por outro lado, chegar à parada traz igualmente a sensação de
um nado contra a corrente, a impressão forte de estar no lugar errado,
numa circunstância muito mais vulnerabilizada do que a de pedestre
numa relação pedestre/carro normalmente já é. Não penso que a
conjuntura expresse que mais agravantes sejam necessários, mas se
eles existem prefiro contá-los. Mencionei as duas vias expressas, que
somam seis faixas de veículos. Após elas está a parada de ônibus, como
um canteiro. Depois da parada, há um desnível de mais ou menos três
metros. Nas “costas” da parada, há apenas um curto corrimão — frizo
ser um corrimão, não um guarda-corpo — separando esse lado e o
outro, onde está a Rodovia Transamazônica, ou a BR-230.
Beira o bizarro imaginar a facilidade que seria cair do outro
lado. Algumas vezes eu e alguns amigos rimos dessa possibilidade, no
sentido de que é estranhíssimo que uma situação tão espacialmente
violenta esteja ali, presente, em frente à universidade, integrada aos
dias de centenas de estudantes todos os dias. Mas está. E ainda que seja
bizarro, é um espaço de normalidade, utilizado, comum, construído e
fixo. Nada original.

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04
A casa em que moram meus pais, estando onde está, fazia muito
mais sentido com a ideia de isolamento, de um ponto de vista sanitário
trânsitos, e também espacial. A casa é bem maior do que o apartamento que na
época eu morava em João Pessoa, o aspecto de ruralidade da cidade em
que se situa é talvez sua característica urbana mais forte, conferindo-
lhe mais uma camada de segurança, e significando a disponibilidade
de espaços livres em que não se encontra quase ninguém, às vezes nem

V
uma pessoa sequer. É óbvio que isolar-se aqui era uma ideia melhor, não
oltar ao interior, aos fins de ano, é sempre uma experiência.
chegou a ser uma questão naquele momento.
Nos primeiros anos da faculdade eu costumava vir mais vezes,
Depois que voltei a João Pessoa no fim de 2020, só retornei à Santa
em vez de aos fins do ano, vinha aos fins de cada semestre. Nos
Cruz no Natal de 2021, quando o reencontro com o quarto, a casa e a
primeiros períodos, quando a carga horária do curso de arquitetura era
cidade em que passei tanto tempo e que vivi tantos isolamentos remexeu
bem mais intensa e os laços com minha cidade de “origem” eram mais
os conteúdos da memória que estavam antes “decantados”, parados ali.
fortes, a sensação de pegar o caminho escuro da rodoviária de João
As memórias são aquilo que lembramos ter vivido em um lugar; logo,
Pessoa (porque sempre à noite e em ruas de usos comerciais diurnos) era
contam também um pouco daquilo que não tendo sido vivido, viveu-se a
mesmo do início de um percurso de escapismo. Era como ter disponível
falta que fez.
uma rota de fuga para um ponto de paz antigo e seguro, distante do que
Minha relação com esse lugar, que em algum momento foi de
naquele momento era tão novo e ainda pouco conhecido.
conforto afetivo por significar um escape, foi sendo transmutada na
A partir do ano de 2020, durante o início e de grande parte da
sensação de estar em um esconderijo sufocante, muito pelas lembranças
pandemia (ou da parte mais intensa) retornei e aqui fiquei de março
do isolamento pandêmico, e um outro tanto pela falta daquilo que não
até o mês de dezembro do mesmo ano, quando decidi retornar a João
costumava ser vivido aqui mesmo nos anos não pandêmicos, pelos
Pessoa. Foi um período confuso, angustiante, destemperado pelo medo e
limites que impõem a cidade. Ainda e talvez principalmente, porque
por uma convivência excessiva entre mim e minha família, que aflorou
eu tenha alcançado uma vivência maior de João Pessoa para não mais
todos os ânimos e em dado momento fez emergir questões até então
carecer de algo como uma rota de fuga para um lugar conhecido. João
meio esquecidas por nós, meio silenciadas pelas dinâmicas da vida.

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Pessoa se tornou o meu lugar conhecido, para o qual volto aliviada em Eu perguntei a um outro amigo sobre essa sensação anterior e ele
voltar. disse sentir de forma menos brusca: como se percebesse, nesse retorno
De toda forma, novamente, em 2022, vim apenas no Natal, e sinto à casa e cidade em que morava com os pais, apenas forças¹ que tentam
ser o suficiente. Os espaços de tempo são preenchidos pelas festividades torná-lo a ser quem antes era, mas que conseguia resistir a elas — não sem
e dão ao lugar um outro sentido, uma cara diferente das lembranças algum desgaste mental, e por isso só lhe cabia ficar poucos dias, evitando
costuradas pelo silêncio de um estado de languidez quase permanente, um esgotamento consequente de sua insubordinação às forças. Como se a
quase imperturbável. sua subjetividade, exercida pelo corpo e por isso sempre em algum lugar,
Morando em outra cidade devido à universidade, o deslocamento fosse profundamente afetada pelo espaço que ocupa, manifestando-se
para a casa da família na época do Natal é trivial entre mim e a maioria de maneiras diferentes em cada um deles e chegando ao limite de estar
dos meus amigos, que em sua maioria viajam para o interior, seja da inclusive temporariamente “suspensa” para o recrudescimento do que
Paraíba ou de estados vizinhos. São pessoas com quem divido alguns seriam versões suas anteriores, da fase em que era adolescente e suas
sentimentos de identificação e desidentificação em relação a esses dinâmicas de vida eram outras.
trânsitos de dezembro e às movimentações internas que causam, e os Nesses relatos há um tom fabulado e por ora hiperbólico que dá
aproveito como fonte investigativa. sinais de uma afetação notória, vivida e causada na materialidade a partir
Um amigo fez uma analogia com a ideia de que, de forma dos espaços que ocupamos e que são tão essencialmente constituídos
metafórica e imaginativa, existiriam duas versões dele, uma pertencente pelas pessoas que o ocupam e geram dinâmicas vivas, assim como pela
a João Pessoa, sua cidade atual, e outra à sua cidade natal, Fortaleza. Nessa nossa memória, que levita coisas do passado, dando-lhe algum espaço de
construção alegórica, ele disse que a cada vez que chega em um desses acomodação na vivência do presente.
lugares, é como se continuasse a viver do ponto em que parou naquela Se considerarmos o pensamento de que em viagens podemos
cidade específica. Vivendo em João Pessoa desde 2017, um exemplo seria construir ficções de nós mesmos através da experiência em espaços
o seu retorno à sua cidade natal em dezembro: ao retornar à cidade, ele
sente voltar também a ser uma “versão” de si que não já existe mais, ¹ Isso que ele sintetiza denominando como forças, claro, poderia ser destrinchado e os
desdobramentos revelados certamente passariam pelas dimensões de autonomia e
mas existia na época em que lá morou, e que retoma a “vivê-la” quando
liberdade que por vezes só é possível alcançar através do morar sozinho ou o morar com
retorna a essa cidade, incorporando-a novamente. alguém que não a família, e em outra cidade.

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desconhecidos, podemos utilizar essa leitura para entender os escutei eles lembrarem desse lugar com muito afeto e saudade, ao ponto
deslocamentos migratórios que fazemos ao longo da vida como novos de começarem a sonhar com um possível retorno. Esse sonho, que era
pontos de partida na nossa história: marcos de ruptura, inflexão, deles, passou a ser também meu, mesmo não estando eu retornando a
retomada ou atualização de quem somos, em constante movimento. um lugar conhecido, mas me dando a conhecer um novo lugar.
Os lugares onde nossa vida vai sendo corporificada são de variadas Não lembro de ter empreendido alguma resistência a esse
escalas: o quarto em que adormecemos e acordamos, a casa e as formas deslocamento, não era como se eu tivesse algum sentimento de
de morar que empreendemos nela, as pessoas com quem dividimos a pertencimento à minha cidade de origem e fosse doer abandoná-la; pela
rotina, a rua e os vizinhos, o bairro em que geralmente fazemos curtos minha idade, a minha vivência dela foi limitada pela dos meus pais, que
trajetos, a cidade e as possibilidades que nela se abrigam ou não. Essas dentro de suas possibilidades alternavam entre a casa, a escola, o clube
escalas não são dimensões separáveis. Uma está contida pela outra, a e o shopping. Eu estava mais interessada em conhecer o lugar que era o
primeira sempre abrigada pela seguinte. dos meus pais, o lugar que pelos seus relatos eu já havia imaginado tanto
Na ocasião de uma revisita, traz à superfície memórias desses a ponto de construí-lo ficcionalmente. Ao chegar aqui, e passados alguns
lugares em que são remexidas as lembranças e algum tom de angústia anos, não consegui sentir que era o meu lugar também. Era o dos meus
ganha cor. Uma amiga atentou para a possibilidade não muito lembrada, pais, que se reencontraram e conseguiram encontrar meios de sustentar
mas sempre disponível, de podermos criar novas memórias no momento sua sobrevivência e, portanto, sua vivência aqui.
presente (se o que se lembra do passado traz algum sofrimento). Esse trânsito foi feito por eles e também por algumas tias, com
A primeira mudança que me lembro fazer eu tinha oito anos. as quais conversei. Eu queria saber dos aspectos que os fizeram partir,
Deixava a minha cidade de origem, São Bernardo do Campo, em São voltar, retornar, ficar. Do que em cada lugar os cativou ou os repeliu.
Paulo, para ir morar na cidade de origem dos meus pais, Santa Cruz, Do que fez sentido e deixou de fazer. Principalmente do sentimento de
no interior da Paraíba. Meus pais já moravam em São Bernardo há identificação e de pertencimento que se é possível ou não encontrar nesses
quatorze anos e, como conta meu pai, a vontade de retorno começou a novos pontos de recomeço. O que nos torna pertencente a um lugar?
irromper e se fortalecer mais ou menos por volta de quando ele e minha A expressão de pertencer a algum lugar pode soar dura, arbitrária, na
mãe completaram dez anos morando lá. Durante os dez aos quatorze medida em que pode endereçar ao indivíduo uma ideia de propriedade.
anos, de 2003 a 2007, quando eu tinha entre quatro e oito anos de idade, Na direção contrária e na perspectiva que costuma ser mais utilizada,

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geralmente remete a afeto, conforto e identificação que sentimos ter em 2007 — que tanto gostava de lá e por isso nunca cogitou se mudar —
com o lugar. que ela decidiu ir morar na zona urbana, Santa Cruz, onde vive até hoje.
No caso deles, foi a busca por melhores condições que motivou Perguntei se não lhe incomodava sair na rua e ser conhecida por
seu deslocamento para São Paulo. A possibilidade de retorno à Paraíba quase todos que aparecem (bem como o oposto: saber quem é a maioria
começou a se tornar decisão para os meus pais quando a saudade das pessoas que encontra). Pelo contrário, ela vê nisso a graça. Lhe traz
prevaleceu ao medo da incerteza de não conseguir se estabelecer aqui. uma sensação de acolhimento, como se fosse seu lar urbano; uma cidade
Das minhas tias, uma retornou para cá, e a outra mora lá até hoje. A de conhecidos. Ou de filhos de conhecidos, netos de conhecidos, sobrinhos
que retornou, veio quando meu avô faleceu, fato que coincidiu com a de conhecidos; não há pessoas desconhecidas, sem algum enraizamento
data de término de sua faculdade. Ela diz que gostava da novidade de familiar com alguém que se conhece. É mais do que comum acontecer de
conhecer pessoas e criar afetos com quem lhe conhecia primeiro por passar algum rosto mais jovem, e por isso menos visto, e então perguntar
sua personalidade, e não por quem era filha. Enquanto morava lá, se à vizinha “de quem é” aquela pessoa (de que família). Das vezes que eu
identificava com São Bernardo, assim como hoje gosta de morar em presenciei essa pergunta sendo feita, quase sempre (para não arriscar a
Santa Cruz. A minha outra tia não declarou sentir um “pertencimento” presunção de um sempre) se obteve respostas.
à cidade; tratou como algo que foi acontecendo como consequência de Nessas dimensões de território, o ver e o ser visto não têm como
não querer voltar: “Não sei se comecei a gostar de lá, eu só não queria vir”. acontecer de forma efêmera e superficial. A pessoa vista não escapa
A minha avó materna morou a maior parte de sua vida na zona com rapidez ou superficialidade. Há um tempo próprio: o tempo de
rural, vivendo da agricultura. Nasceu e se criou em um sítio chamado uma cidade em que, no cotidiano, os olhos mais que veem, perscrutam
Pelado, ou Serra do Pelado, lugar onde conheceu o rapaz que se tornaria quem passa. Porque o que nutre as principais dinâmicas não é tanto as
meu avô. Quando se casou, mudou-se para um outro sítio, esse na época atividades em si — que obviamente existem, mas pela própria escala,
chamado de Tigre. Depois de um tempo, passou a ser mais conhecido são reduzidas e pontuais — mas as trocas engendradas pelo elo de saber
como Sítio Tirada. Morou lá por mais ou menos quarenta anos, sem quem é quase todo mundo. Esse elo inevitável transita por um senso que
gostar muito, pelas inúmeras dificuldades de acesso a itens básicos é ora de cuidado, ora de controle. Os dois andam juntos, às vezes um
de sobrevivência como a água e serviços essenciais como mercados, mais em evidência que o outro, embora frequentemente se misturem e
farmácias, assistência médica. Somente com o falecimento do meu avô, se confundam.

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Essa via de mão dupla, que é a natureza do espaço público, aqui portanto o cuidado estava então menos centralizado nos meus pais e
dá um passo à frente e assume a posição de oferecer encontros em que, redistribuído entre muitas pessoas, espalhadas nos espaços.
distinguindo-se das um pouco maiores e das grandes cidades, não Com mais pessoas vivendo por ali, o provérbio africano que diz
apenas vemos pessoas e somos vistos por elas, mas vemos e somos vistos da necessidade de haver uma vila para educar uma criança, resumia
por pessoas conhecidas. Essa relação, penso só ser possível de maneira o cenário. Era uma redistribuição da carga do cuidado parental entre
mutuamente equilibrada quando, numa hipótese em que existam duas várias pessoas, familiares e não familiares, e que por consequência
pessoas, ambas são nascidas e criadas no lugar ou pelo menos mora-se concedia à minha mãe a possibilidade de trabalhar fora, que por todo o
lá há muito tempo. Há alguma descompensação se uma das pessoas tempo que morou em São Bernardo se dedicou ao trabalho reprodutivo
dessa interrelação não vive na cidade, está visitando ou “chegando”, — de criação dos filhos e de manutenção do lar, da vida. Apesar da beleza
retornando a seu lugar de origem. Pois em geral quem chega não tem em do provérbio e do fato de haver realmente uma tranquilidade maior no
mãos a principal moeda de troca em circulação nesses lugares: o capital brincar na rua ou nas casas outras, no circular sozinha pela cidade ou
de saber distinguir quem é quem, para então poder ter algum domínio com outras crianças apenas; convivi com a sensação de estar fora de casa
sobre a comunicação de informações sobre o que acontece na cidade. quase todo o tempo que morei lá, ainda que eu não sentisse também que
Quando fui eu a pessoa que estava “chegando”, dentre as coisas retornando a São Bernardo eu encontraria minha casa.
que sentia produzir um distanciamento entre mim e o lugar, estava, Se quem chega não conhece quase ninguém além dos familiares
talvez em primeiro plano, a minha não compreensão de muitas palavras mais próximos, não tem em mãos o recurso principal que movimenta
do vocabulário — que hoje parece até meio tonto dizer quais eram (as que os acontecimentos da cidade. Embora houvesse os momentos em que
lembro), por agora eu reconhecê-las tão inseridas e cheias de significado com alguns amigos eu passava a conhecer os caminhos da cidade,
para mim — também pela idade que era pouca. Um clima diferente os costumes de frequentação da quase que única praça aos fins de
implica rotinas diferentes, horários diferentes. A existência de uma rede semana, das andanças de bicicleta diárias, dos deslocamentos de moto,
de apoio que avançava os limites da família imediata e passava a incluir dos eventos festivos juninos ou de aniversário do município ao fim do
avós, tios, vizinhos em algum grau parentes e também conhecidos ano, ou mesmo as idas à casa da minha avó; essas pareciam vivências
determinava outras relações com os espaços da cidade, assumindo uma de algum modo afetivas. Digo de algum modo porque por mais que se
cara de território mais seguro, já que havia mais “olhos” para cuidar, e repetissem cotidianamente e fossem em si prazerosas, durante o que

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acabou sendo uns seis anos, sempre senti ocupar a posição de alguém ou talvez eu não soubesse o que fazer com aquele material; algo de não
que está experimentando, aprendendo e conhecendo o território — fazer ideia de como usá-lo de maneira emancipatória, numa construção
nunca alguém com pleno domínio das “regras do jogo”, mesmo que subjetiva de autonomia que está intimamente vinculada à relação
não houvessem bem regras, ou jogo. Eram bons momentos que, depois empreendida com o funcionamento da cidade.
de vividos, se assemelhavam mais com distrações para uma sensação
insistente e maior: a de não alcançar os recursos comunicativos,
linguísticos, conhecedores para poder me situar como sujeito-parte
daquela cidade.
Essas compreensões, que eu não tinha aos oito anos, me
intrigam e por isso talvez utilize esse espaço para ensaiá-la. Tem
relação, certamente, com a transição de um lugar em que as pessoas
que passavam cotidianamente por mim não eram mais do que pessoas
inseridas em dinâmicas externas (de maneira significante apenas no
limite da humanidade de saber que também são pessoas, mas que não
se relacionavam comigo em medida íntima alguma; e sobre as quais os
olhos passavam em geral sem muitas pausas) para de repente estar em
um lugar em que essas pessoas cotidianas, antes externas, eram agora
tudo o que importava nos dias, assim como a percepção delas de mim,
que não saía “ilesa”.
Quase como se estivesse ocorrendo um jogo no qual vai bem
quem vê as movimentações na cidade (essas são mesmo fragmentos do
dia a dia; informações pequenas e rápidas: quem tá chegando, quem tá
doente, quem ganhou algo, quem perdeu algo, qualquer acontecimento
a alguém conhecido) e sabe articular as informações. Eu via e era vista,
mas considerando que o que eu via ou ficava sabendo não me servia;

23
05
estar sempre “devendo” ou precisando fazer algo “produtivo” com nosso
tempo, roubando de nós os espaços de vida ordinários e banais em que
centro há espontaneidade e possibilidade de experiências.
São muitos sons, cheiros e cores acontecendo ao mesmo tempo,
que se sobrepõem e se cruzam numa velocidade muito rápida. Não
a velocidade da informação que falei há pouco, mas uma celeridade
de sentidos múltiplos sendo estimulados; tantos mais que a visão não

O
tem tempo de dar conta. Por ser um lugar que ativa tantos sentidos
centro, como está, limitadamente no tempo desse texto, pelo
de uma forma tão única, brinquei com uma amiga que com algum
menos durante a semana, parece um lugar de resolver coisas. De
tempo caminhando pela Lagoa a nossa vista fica limpa, quase como
comprar isso e aquilo, de resolver aquela coisa que há anos ocupa
se funcionasse um reset que te convida, quase obriga, a se envolver
um lugar na lista de coisas a ser feitas — mas que podem ser adiadas e
completamente no momento, secundarizando de forma convicta a
por isso mesmo acabam sendo adiadas durante algum tempo até que se
importância do que acontece noutro lugar.
esteja ali. Estar ali dá vontade de consertar coisas, comprar o que precisa,
Na Praça de Cem Réis, há as características mesas de concreto
resolver pendências, cumprir afazeres.
com tabuleiro azulejado de dama. Outros jogos também acontecem.
O lugar do lazer ou do ócio no espaço público me instiga porque
Dá vontade de assistir porque parece um grande torneio, e tem plateia.
penso que o fazer nada — que não exatamente é fazer nada mas fazer
São rodas de pessoas. Talvez quinze pessoas? Não contei. Penso em me
algo por diversão, e o nada se inclui nisso — ou ainda os chamados
aproximar mas estou indo fazer outra coisa, comprar algo ali, que na
passeios-deriva, com pouco objetivo em virtude de uma abertura a
verdade nem era minha intenção, mas como faço menção de parar para
descobertas no percurso, talvez venha perdendo força. Num tempo em
ver os jogos e não paro, sigo caminhando. Um detalhe chama atenção:
que uma ideologia neoliberal dominante propaga a máxima “tempo é
não há mulheres. Nem jogando, nem assistindo. Se eu me aproximasse,
dinheiro” e por todo lado recebemos estímulos e informações (com as
talvez me destacasse. Nesse dia, não me aproximei.
quais não sabemos muito o que fazer, senão absorver), paira no nosso
Fui seguindo e descobrindo que talvez eu precisasse comprar
cotidiano uma sensação de urgência que determina um estado de alerta
algumas coisas. Eu, que não pretendia comprar nada, logo lembrei
quase permanente. Esse ritmo acelerado nos impele a uma ideia de

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do que precisava comprar. Comprar uma capinha pro celular, trocar a integra as dinâmicas ao seu redor não lhe atinge. É uma zona que apesar
película. Adquirir algumas canetas novas. Esse é o barato do centro. A de não estar isolada, opera num outro ritmo, de lentidão. Tem uma
gente sempre encontra coisas para resolver, mas que nunca dá tempo, e atmosfera menos resolutiva e mais voltada ao lazer, ao ócio e à diversão.
nisso vamos esquecendo. Centro é tempo rápido, resolutivo. Circulando, É um ponto que parece funcionar como uma área de alívio ao ir
circulando. O Terceirão é um concentrado de pequenos comércios. Dá e vir agitado que nutrem as ruas que encontram o anel. Uma mulher
pra ver no semblante de quem trabalha aqui a afinidade com o lugar; com com quem conversei estava esperando pacientemente (e por isso
caminha com segurança, como quem sabe o que fazer e com quem falar mais de longe) na Lagoa, seu ônibus, 003. Pernambucana, veio para a
para resolver. Acho que me neguei a ver com calma, percebi que só de Paraíba morar em João Pessoa aos 13 anos, com a família. Na ocasião da
passagem eu não conseguiria perceber nada. É preciso parar. Não sei conversa, estava de férias, mas o centro também é o seu local de trabalho.
que horas o Terceirão fecha, mas dá para assistir nitidamente o fervor Relembrou momentos muito bons vividos ali, resgatando memórias da
de movimentação dos transeuntes se arrefecendo e dando início a um Festa das Neves, quando esta ainda acontecia na Lagoa.
outro tipo de fluxo também rápido e atento: o do horário de fechamento.
O processo de esvaziamento do centro começa por volta das 16:30 A lagoa não tem mais a cara que tinha antigamente.
horas. Tudo acontece muito rápido. É nesse horário que algumas lojas
começam a se aprontar para fechar, às 17:00. Um pouco mais tarde, às Falava com tom saudoso sobre uma Lagoa querida em sua
18:00, os comércios que restaram abertos também já estão fechados. As vivência, que se referiu como sendo uma época anterior à reforma que
luzes dos postes da Lagoa acendem. As ruas que encontram o parque, alargou a praça com passeios mais largos. Estava muito incomodada
antes tão movimentadas, vão perdendo atividade — que passa a se com a solução dada para os pontos de ônibus. Perguntei quais lugares
concentrar na área do terminal de integração. Pessoas se amontoam costumava frequentar hoje em dia, ao que respondeu que o shopping,
ali e os inúmeros ônibus chegam, se enfileiram no apertado vão pela questão da segurança e da praticidade, de “encontrar tudo num só
exclusivamente destinado aos ônibus entre as duas vias e rapidamente, lugar”, respondia bem às suas necessidades. Mais uma vez, a sensação
ao serem enchidos, deixam o local. Às 19:00 horas, já é possível visualizar de insegurança no espaço público foi colocada como uma questão
uma outra dinâmica. considerada na preferência por outros locais de “lazer”. Primeiro porque
A lagoa é um anel; a partir dele saem ruas radiais. A rapidez que se tornou evangélica, segundo porque, segundo ela, o fato de a festa

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ter passado a acontecer no Ponto de Cém Réis, tornava um local que melhorou, embora tenha dito também que a violência aumentou, e que
considerava muito apertado para acomodar a festa, perdendo o sentido já presenciou a ocorrência de mortes por ali, à luz do dia. Foi categórica
para ela. ao dizer que não moraria no centro, sendo para ela apenas um local de
A cada pessoa com quem converso e a cada relato escutado, me são trabalho.
apresentados elementos, dinâmicas, memórias e configurações espaciais A segunda pessoa com quem falei estava sentada em um banco da
que eu não teria como obter apenas através da minha experiência. De praça Ponto de Cém Réis, rindo sozinha. Achei curioso e me aproximei.
fato, o meu interesse maior é dispor de fragmentos que, singularmente Repetiu algumas vezes que de noite o centro “fica sinistro”. Seus espaços
e com toda a subjetividade que implicam, revelam óticas e sentidos que de lazer são a Bica (Parque Zoobotânico Arruda Câmara), e a Lagoa,
nos ajudam a construir uma relação de compreensão com a arquitetura lugares aos quais gosta de sair. Moradora do município de Bayeux, região
mais aprofundada, ou no mínimo mais balizada pela experiência. metropolitana de João Pessoa, contou que sua frequentação no centro
A primeira pessoa com quem falei foi uma mulher que trabalhava começou mais na fase adulta, quando passou a “precisar” ir ao centro
em uma das lojas situadas no perímetro da praça Ponto de Cem Réis, para resolver coisas. Mas seu uso da praça não se restringe a esse aspecto
no centro histórico de João Pessoa. Num primeiro momento, ela disse objetivamente utilitário.
não saber muito sobre [a história do] o lugar, demonstrando alguma
insegurança em falar sobre o espaço — quando, no entanto, contou Gosto de ficar lá sentada, olhando, assim, as coisas. [...] [aqui] a gente é
que já trabalhava ali há 27 anos. Respondi que 27 anos é muito tempo, e observado, a gente gosta de observar as coisas da vida.
que seria suficiente contar um pouco do que vivenciou ali durante esse
período e suas impressões. Pedi que me contasse histórias do lugar, ou
coisas que julgasse importante dizer.
Quando se fala sobre o centro, a questão da violência é quase
sempre mencionada. Nesse caso, foi inclusive a primeira coisa a ser
dita. Explicou que aquele espaço já foi muito diferente. Contou que
quando começou a trabalhar na loja, aos 19 anos, a praça era um lugar
que tinha muito “cheira-cola”, em 1997. Passado algum tempo, a praça
*Relato não finalizado e possivelmente descartado.

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06
No ônibus, voltando do Centro, não pela primeira vez entramos
no assunto de quando ele morava em seu segundo apartamento aqui em
dimensões João Pessoa — ele já se mudou algumas cinco vezes desde que veio morar
aqui. Não dá para dizer que era um assunto novo porque, gostando
tanto de morar lá, lembro de termos conversado sobre isso mais do que
algumas vezes.
Enquanto morava lá, ele adorava o processo de chegar em casa.

E
A caminhada até seu prédio era tranquila e confortável. Dizia-se até
sse relato é de um amigo que costuma andar sempre rápido,
bonita, também porque a chegada era ao anoitecer, e esse percurso que
atento, em estado de alerta. A conversa aconteceria às 20:00 do dia
fazia andando era a transição pedida entre o trabalho e o estar em casa.
28 de fevereiro. Acabou começando às 20:34 do mesmo dia porque
eu demorei jantando e porque ele estava limpando o banheiro. Foi tudo
(...) a casa é o canto que você mais se sente seguro.
online, por chamada de vídeo de whatsapp. Antes de nos encaminharmos
para uma conversa mais direcionada a este trabalho, conversamos
Escutando música nos fones de ouvido, sentia-se bem e em
algum tempo sobre o processo de mudança de apartamento que estava
segurança, podia ir aos poucos desacelerando o ritmo apressado trazido
fazendo, as luzes do seu computador novo e seu computador antigo. Não
do trabalho, conforme caminhava. Havia perto um empraçamento e um
posso deixar de dizer que essa é também parte da graça de substanciar
parquinho que, juntos, a partir das pessoas sentadas em seus bancos e
um trabalho com escuta de relatos de amigos; tudo se mistura e é difícil
das crianças que no parquinho brincavam, lhe traziam alguma sensação
dizer onde acaba uma coisa e onde começa outra, as transições entre
de acolhimento, de leveza. Esse lugar que morava é um condomínio
assuntos não são muito nítidas ou duras, a troca já está mobilizada e a
fechado, ou, como na definição que encontrei pesquisando pelo Google
subsequência da contação dos relatos pode fluir como fluem as conversas
Maps, um “complexo de condomínios”. Possui ruas e os blocos são todos
do cotidiano. Prova disso é que uma das razões pelas quais quis escutá-
de pilotis mais três pavimentos. A sua caminhada acontecia ali, por
lo foi justamente a curiosidade em saber mais de uma fala sua que
entres os blocos, pelo empraçamento e por essas breves ruas.
tinha ouvido tempos atrás e me marcou de algum modo, durante uma
Como moramos muito próximos e fazíamos percursos bem
conversa antiga acontecida antes mesmo de eu iniciar esse trabalho.

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parecidos, foi curioso saber que essa gradação entre estar na rua e estar casa ou a outros destinos (sensação de alívio? não muita coisa? tédio?),
em casa sentida com calmaria, que eu sentia nos meus trajetos diários que sentidos são convocados nesses percursos e como somos afetados
na rua mesmo, por ele era sentida apenas nas curtas e fechadas ruas por eles?
do condomínio e, portanto, pôde ser experimentada somente durante Essas são questões que quis prestar atenção por terem sido
o período de tempo em que lá morou e quando morou num outro mobilizadas em mim enquanto o escutava contar de seu alívio em passar
complexo de condomínios, não se repetindo nos prédios seguintes, já da portaria para dentro. Alguns metros antes de poder cruzar a portaria
que eram sempre um bloco apenas e portanto sem “ruas” onde pudesse ele passava pela principal via do bairro Bancários, em João Pessoa, e por
caminhar desatento antes de chegar em casa; nesses outros, sentia a isso me gerou alguma surpresa saber que o momento de estar do lado
chegada sempre abrupta, rápida demais, objetiva, um percurso muito de dentro da guarita era significada como um encontro com o alívio e
rápido entre fora e dentro. Só descomprimia em casa. a segurança — numa área com tanta movimentação de pessoas indo e
É dispensável dizer que as sensações de medo e as noções vindo o tempo todo.
de perigo são para cada indivíduo de modos, em circunstâncias e
intensidades particulares, diferentes entre si, dimensões atravessadas Percebi que eu ficava mais em alerta quando eu andava nos becos, andava
pela interseccionalidade entre gênero, raça e classe. As condições de olhando pra trás.
segurança que para mim costumo pensar que são o horário diurno, ser
um lugar conhecido e a presença de pessoas, para ele parecia ir além, O reflexo de olhar para trás tornou-se mais frequente após ter
acrescendo de outras coisas e sentida com mais nitidez em espaços de vivenciado uma tentativa de assalto quando, já morando em outro
alguma forma monitorados ou controlados. prédio, estava chegando em casa, no beco que lhe dava acesso. Na ocasião,
Me fez pensar sobre como nos comportamos ao caminhar na não estava com nada de valor que pudesse ser entregue, por isso o assalto
rua; como nos sentimos nos nossos trajetos diários e, a partir dessas foi apenas uma tentativa.
sensações, em que velocidade ou ritmo andamos, e em que direção nosso O fato de portar ou não o celular e o notebook influenciam em
olhar se atenta, e como decidimos esses percursos e optamos por mantê- sua rigidez ao caminhar. No sentido de que, estando sem essas coisas,
los ou variá-los vez por outra, e se neles é possível em algum momento sua sensação de perigo iminente reduz, já não possuindo ali “nada
nos permitirmos estar desatentos, e o que denota a nossa chegada em para ser roubado”. Contudo, apesar de na rua seu corpo sem “posses”

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lhe proporcionar mais tranquilidade, mesmo em se tratando de um havia sido uma criança que passou boa parte da infância se mudando (de
corpo masculino (contra o qual ao menos a ameaça de violência sexual casa em casa, e a cada casa, de vida em vida). Em dado momento pareceu
atinge em menor frequência do que em relação a mulheres e grupos não se satisfazer mais com a capacidade representativa das palavras
minoritários de gênero), afirmou caminhar sempre atento, em alerta. faladas e quis me explicar passeando pelo Google Maps. Mostrou-me a
Vila Guilhermina, onde não viveu muito tempo, embora suas melhores
— *AAAAAAAAR* memórias de infância lembradas tenham acontecido por lá.
— Desculpa!! Sofri uma tentativa de assalto aqui, tô assustado!!!
— Pois eu vou andar rápido!!! Talvez não tenha muito a ver com arquitetura… era o momento da vida.
— ANDE!!!! Meus pais estavam mais presentes, a gente brincava no corredor. [...] Quando
saí, eu falava que ia sentir saudade da vila, fui muito feliz lá.
Um diálogo parecido com este aconteceu numa noite em que
estava saindo de casa e se surpreendeu com a presença de alguém atrás A certa altura, mudou-se para uma casa menos próxima da
de si, no beco. Era uma mulher, que de sobressalto não deve ter entendido zona urbana, quase como um sítio. Um terreno enorme, em dimensões
o grito. A ela explicou seu susto, e ela, se antes não estava caminhando de fazenda. De fato, criavam cavalos e galinhas. Havia sinuca, piscina,
atenta, com aquele relato decidiu passar a estar, logo acelerando seus tanque, todo um aparato para o lazer. O problema aqui, foi que nessa
passos. mesma época seus pais começaram a trabalhar demais, e a maior parte
Eu sabia que ele já havia morado numa cidade do interior, e de seu tempo passava sozinho. Sobre seus pais recaía boa parte de suas
perguntei-lhe se sua experiência por lá de curtos trajetos nas ruas possibilidades de companhia, já que a casa não tinha mais por perto
também era atravessada pelo medo, por essa atenção carregada na sua avó, seus amigos vizinhos ou mesmo qualquer tipo de vizinhança.
crença de um perigo iminente. Respondeu que não, que isso era coisa de Sentia-se isolado, dentro dos limites dos muros que cercavam o grande
capital. terreno.
Nisso, foi me conduzindo por todas as casas em que morou num
outro estado, antes de se mudar para a Paraíba, ou João Pessoa. Eu não Por mais que a casa fosse muito boa: piscina, espaço pra correr… não
fazia ideia de que ele já tinha vivido em tantas casas. De que também ele adiantava, porque não tinha ninguém pra brincar… e eu ficava dentro.

29
Quando meus primos iam pra lá era muito bom, mas era uma vez perdida.

A manutenção da casa do sítio, com suas dimensões e seus


diversificados animais, era custosa, e chegou um momento em que
não estava mais dentro das condições de seus pais mantê-la em
funcionamento. A solução foi o retorno para uma antiga casa amarela de
número pintado a mão, que ele mesmo pintou, onde já havia morado uma
vez, uns poucos anos. Lá ele morou até se mudar, dessa vez sem a família,
para João Pessoa. O que nos traz pro momento atual, que é também de
mudança de apartamento. Está saindo de um prédio implantado numa
rua que, direcionando-se a partir da principal para dentro do bairro, é
a terceira rua paralela a ela. Seu novo lugar é um prédio situado bem
na principal. Seus percursos, suas dinâmicas de morar, de sair e entrar,
seus horários, os sons da cidade e o ritmo que adota provavelmente serão
outros. Ou não.

30
07
Nenhuma dessas observações têm pretensões revelatórias.
Pensar em condomínios fechados é necessariamente pensar em
novela seus muros; é o que materializa seus limites, os tornando fechados. Muros
determinam limites, e o elemento que parecia ordenar os acontecimentos
do condomínio resgatava repetidamente a ideia de limite. Os lotes, os
recuos, as formas de agenciamentos; tudo estava muito bem organizado,
muito bem delimitado e definido.

F
Parte das pessoas que lá estavam trabalhavam na construção da
oi por uma visita no estágio que pude conhecer melhor um
minicidade, enquanto a outra parte estava cuidando da manutenção
condomínio. Fui no horário da tarde, e o que constituía a principal
dela. Uma porção menos visível de pessoas certamente ocupava a
dinâmica de movimento ali eram as construções de algumas casas.
posição de moradores. Havia uma logística de segurança que a cada
Sendo um condomínio relativamente novo, ainda havia muitos terrenos
medida restritiva de acesso se distanciava mais da noção de urbanidade
vagos ou com casas levantando.
e também das possibilidades de surpresas, aproximando-se, em vez
disso, de uma monotonia silenciosa e cada vez mais imutável.
Algumas percepções rápidas:
É uma construção de realidade que tem por intenção ser paralela
Parecia haver mais pessoas trabalhando na construção e na manutenção
e que orgulhosamente se empenha no papel de constituir ali uma
do funcionamento de uma figuração de cidade do que, de fato, pessoas
idealidade; uma realidade formatada. Se a condição para isso é se valer
morando. Parecia, na verdade, e também talvez porque naquele momento
de um tipo de aprisionamento, que seja ele feito, os bucolismos podem
tivessem várias casas em construção, um lugar cenográfico ainda em
ajudar a tornar desejáveis e vendáveis formas de vida isoladas. Retirada a
obras, que ao ser finalizado poderia vir a servir de fundo para alguma
variável da imprevisibilidade da rua e das dinâmicas possíveis da cidade
novela. Mesmo as casas já construídas e habitadas pareciam esvaziadas;
em sua concretude e contraditoriedade, o que se tem é o suprassumo dos
e isso pode dizer do horário, que era comercial, ou de arquiteturas que
conteúdos entediantes.
induzem formas de morar não tão expressivas para quem está fora. Como
Se o sonho ideológico da segurança se encontra realizado no
talvez já se pudesse esperar, havia um vazio profundo de dinâmicas
morar que um condomínio fechado oferece, a impressão que causa é
orgânicas e autênticas.

31
que, ali, a arquitetura pensada para possibilitar essa moradia passa a
encarar uma missão que talvez possa-se declarar falha já na sua origem:
a de gerar alguma dinâmica mais intuitiva, alguma surpresa, alguma
aproximação de um fio de imprevisibilidade. É vão tentar compensar
com alguma arquitetura o que não é papel dela, mas das dinâmicas do
espaço público e da rua.

32
08
ver depois, já maior, nas fotos reveladas.
A da minha amiga foi pela vivência, mesmo. Ao contrário da
trânsitos (partilhados), minha família, a dela visitava sua cidade de origem todo ano. Dos
doze meses do ano, três ou quatro passavam lá. Costumava ser junho,
dezembro e janeiro. Desses quatro, às vezes era preciso passar algum
tempo estudando numa escola de lá, porque não fazendo isso, as
escolas não aceitariam sua transferência quando retornasse, pelo

D
número de faltas. Então, todo ano, por algum curto período de tempo
ivido algumas mudanças de vida com duas amigas. Seus pais,
era matriculada numa outra escola no Ceará; era coisa rápida, então
como os meus, fizeram parte dos fortes fluxos migratórios
nem chegava a precisar utilizar o uniforme da escola. Mas o hino
Nordeste-Sudeste, durante os anos 1990. Elas também
do município, precisava cantar, ou pelo menos passar pelo ritual de
nasceram no estado de São Paulo, e por volta dos oito anos de idade
cantar, já que não ficava lá tempo suficiente para aprender.
“retornaram” aos lugares de origem de seus pais. Ceará, Rio Grande do
Era possível construir vínculos nos dois lugares. Sua vó, que
Norte, Paraíba.
morou a vida toda na mesma rua e mora até hoje, funcionara então
Apesar da proximidade das cidades — São Paulo, Santo André
como um ponto âncora que contribuía para que suas idas e vindas
e São Bernardo — e das nossas idades — oito e dez anos — com que
pudessem correr com mais constância, a cada ano podendo voltar
fizemos essas migrações, de alguma forma marcantes e importantes
para o mesmo lugar e reconhecer os amigos da rua e da escola do ano
nas nossas vidas, e ocorridas muito antes de nos conhecermos, a
anterior.
maneira com que nos relacionamos ao longo da infância com esse
lugar de origem e essa sensação de não-lugar que se instala ou não a
Meu caráter, sabe, aquela coisa de construir personalidade?... É
partir da mudança, foi diferente.
completamente do Ceará.
A minha maneira foi muito mais mediada pela construção
imaginária do lugar a partir do afeto que ouvia meus pais falarem do
Seu processo de mudança foi acontecendo aos poucos, com sua
lugar. No meio disso, teve uma viagem que fizemos quando eu tinha
participação, e à medida em que essa possibilidade ia sendo fabricada.
três anos, da qual minhas lembranças não vão muito além do que pude

33
Isso porque a volta dependia de haver algum conforto financeiro, que eu caminhava com meu pai nas calçadas da rua Marechal Deodoro e,
nesse caso se apresentava como a construção de uma casa. Com a ajuda por ser uma rua quase sempre lotada de pessoas, ele me situava meio
de um amigo caminhoneiro, os materiais de construção comprados por trás dele para facilitar a caminhada, já que ele quem ia abrindo
nas lojas de São Paulo eram transportados e iam, aos poucos, edificando o caminho, mas aí eu ficava sem visão alguma e eu, com raiva, me
a casa no Ceará. A obra era gerenciada pelo mestre e por pessoas da recolocava ao seu lado, porque não via sentido em andar por andar,
família que mais ou menos acompanhavam o processo. Nas viagens sem poder ver nada.
que faziam anualmente, podiam revisitar e ver de perto como estava
ficando. Quando a casa ficou pronta, em 2009, ela tinha dez anos. Foi o Eu transferi a falta de cinemas, shoppings, pras quermesses (…) e todo
momento do retorno. meio do ano tem o rodeio, o são joão, as quadrilhas, o desfile da rainha do
Após tantos anos indo e vindo, se mudou de fato, e o que fez município…
mais falta foi menos o lugar e suas possibilidades e mais os afetos
que já haviam sido construídos. Quero dizer que sua nova cidade lhe Ao chegar no seu novo lugar, viveu algum tempo de angústia,
apresentava novas possibilidades, bem diferentes das de antes. Mas não sem comer, sem querer fazer nada. Fazia falta a Nicole, sua amiga cuja
estava exatamente animada com a mudança. Sua vida estava, na sua casa era onde passava boa parte de seu tempo, quando os ânimos em
visão, confortável por lá: a sua amiga da escola havia se matriculado sua própria casa não eram dos melhores. Para ela, não foi brusca a
na escola onde estudava o Menino Maluquinho e acompanhá-la nesse mudança como foi para mim. Ela que costumava ir, com seus pais, às
caminho estava em seus planos. (Não estava nos planos de seus pais.) lojas, fazendo parte das decisões dos revestimentos, por exemplo, que
No meu caso, a mudança ocorreu em 2007, quando eu tinha oito iriam cobrir sua casa, ainda a ser feita.
anos. Não lembro de ter muitos planos nessa idade e eu estava bem
animada com a mudança. Mas depois de algum tempo na nova cidade,
também senti que eu fora meio “carregada” pelos meus pais, no sentido
de que quando se é criança as experiências de cidade, ainda quando
têm alguma importância, pela própria limitação da idade, em geral
não vêm em primeiro plano nas tomadas de decisões. Como quando
*Relato não finalizado, a ser trabalhado.

34
09
falado seja o mesmo, culturalmente, somos profundamente plurais e
até na própria língua os neologismos compõem parte importante de
a mala nossos vocábulos, e variam de região em região. Um outro aspecto de
desassossego, este não particular das viagens, é com o olhar do outro.
Nessa viagem já adulto, a tônica era outra. Planejou por algum
tempo a viagem, listou suas intenções de roteiro e viajou. Foi sozinho
e, chegando lá, quis ir de metrô. O metrô não estava lotado, mas os

F
trajetos da maioria das pessoas pareciam ser em sua maioria de
oi a São Paulo duas vezes. Na primeira ainda era criança, e suas
trabalho ou no mínimo cotidianos. Uma mulher que parecia muito
memórias dessa viagem se restringem ao deslocamento de táxi.
cansada, possivelmente voltando do trabalho, lhe marcou. Ele, que
Ademais, foi uma viagem tranquila, organizada e conduzida
estava de mala, e logo percebeu que dentro do seu raio de visão estava
pelos seus pais.
sozinho de mala, se percebeu como ainda mais estrangeiro e, pior que
isso, de alguma maneira vulnerabilizado por poder ser lido como “de
Era táxi, táxi, táxi, táxi, táxi. (...) Eu era pequeno, não tava nem aí pra
fora”, gerando mais camadas ao seu desconforto prévio.
nada.

Fiquei com medo de parecer que eu não era de lá, e eu não sou de lá, mas
Deve ter querido dizer que em sua mente não tinham
não queria parecer.
preocupações. Preocupações típicas de viagens: com os destinos ou
com o roteiro, com os deslocamentos, com a estadia e especialmente
Sem muita consciência do que seu olhar apreensivo buscava,
com a natureza do desconhecido que nos deparamos em viagens a
quando encontrou um outro alguém também segurando uma mala,
lugares que nunca fomos, ou que fomos ainda poucas vezes. A primeira
pôde se permitir relaxar um pouco: era a mínima identificação
definição do dicionário para estrangeiro é que ou o que é de outro
que precisava para sentir algum acolhimento, tão urgente naquele
país, que ou o que é proveniente, característico de outra nação. Num
momento. Entendendo pouco dos fluxos e das lógicas da estação,
país de dimensões continentais como é o nosso, é possível se sentir
pensou que faria sentido segui-lo, assumindo o risco e contando com a
assim a partir da simples transição entre estados, ainda que o idioma

35
ventura de que talvez seus percursos fossem parecidos. Começou a andar na direção contrária à que as pessoas estavam
andando. Então foi abordado por alguém que pedia uma ajuda, mas
A sorte foi o moço de mala… que não veio comigo, mas eu tava ali, pertinho ele não tinha consigo dinheiro físico.
dele.
— SE NÃO QUER AJUDAR É SÓ DIZER!
Seguiu-o e pegou a mesma escada rolante que ele, e então parou
e esperou a escada conduzi-lo. Mas não estava informado de que, No grito, de novo. Se deu por vencido, quis só entrar num uber e ir
como nas estradas duplicadas em que os carros com mais velocidade embora.
pegam a esquerda, existiam também duas vias (estas virtuais) em
curso no metrô: uma mais rápida e utilizada por quem tem pressa, e
outra lenta, que pode ser usada inclusive estando parado, aguardando
a escada automática fazer seu trabalho. Apesar da afobação que
sentia por desconhecer o lugar que estava, ele não estava com pressa,
principalmente porque ali já havia encontrado um rumo a seguir,
o mesmo que o moço de mala faria. Por isso, acabou parando, por
desconhecimento, do lado esquerdo.

— TÁ DO LADO ERRADO!

Gritaram. Então soube. Corrigiu seu lado, foi para a direita. Mas não
diminuiu seu desconcerto, que crescia na medida em que sentia-
se cada vez mais forasteiro, dentro de si e aos olhos dos outros. No
nervosismo, perdeu de vista a figura do seu outro parecido.

36
com mais fluência pelas palavras. Apesar de academicamente estarmos
sempre lidando com palavras e com o ato de escrever, na experiência que
tive, foram pontuais as vezes em que o texto foi colocado como questão
a ser problematizada, não sendo tratado como algo fundamental a
se pensar sobre; e mesmo quando aconteceu de ser, foi mais por haver
uma preocupação com a objetividade e a limpeza das frases do que de
fato com o que se pensou durante o tempo em que se escrevia, ou com
a relação entre o que se queria dizer e o que estava sendo dito — o jogo
Durante a graduação, os trabalhos que mais gostei de fazer tinham a ver
dialético da escrita; em que nos esforçamos continuamente para dizer
com a escrita. Nas disciplinas de projeto, os momentos em que mais me
algo como é (esse “como é” nunca único, total, neutro ou imparcial, mas
animei com o processo foram quando, eventualmente, os professores
sempre situado em algum lugar pessoal, político, estético).
pediam que usássemos da escrita para nos aproximar da discussão do
Fazer do TCC um lugar para explorar uma escrita mais livre
projeto; era o encontro de algo que eu gostava de fazer projetualmente
é finalmente poder experimentar dar vazão a uma escrita menos
— e, sem muita consciência disso e com outras demandas à frente, nem
formatada por parâmetros da impessoalidade que ditam a forma “certa”
sempre fazia — com o que era pedido. Entre muitas aspas, parecia então
de dizer as coisas — uma voz da obrigação moral acadêmica que ecoa
legitimado um pensar arquitetura pela escrita; ferramenta com a qual
— e mais guiada pelo compromisso com rigor (embora não rígido)
tenho mais afinidade do que outras como o desenho, por exemplo. Aos
com a perspectiva ensaística de me colocar a serviço da percepção de
poucos, percebi que a escrita investigativa/exploratória/para conhecer
experiências da cidade cotidianas; em si não esgotantes.
(como queira chamar, não sei ainda como a chamo) foi se configurando
Iniciei por relatos meus, alguns de vivências diárias, outros
como um caminho que, ao percorrê-lo, soube poder encontrar
mais ativados por viagens e mudanças maiores. Mas antes disso, estava
potencialidades a serem exploradas: ideias, conceitos, diagnósticos e
presente a ideia ainda imatura de trabalhar com relatos dos outros.
dimensões propositivas do projeto tornavam-se mais distinguíveis,
Conforme fui escrevendo meus próprios relatos e gostando do processo
ganhavam maior clareza.
de feitura, sentia falta de relatos dos outros. Fez falta porque meus
Construir uma ideia espacial, ainda que em algum ponto vire
relatos não alcançavam tantos espaços, perspectivas e mesmo gerações,
croqui, desenho, e posteriormente espaço construído, às vezes pode correr

37
nem tinham como me proporcionar a experiência de uma oralidade do lugar de estrangeiro; de limiares entre espaços de dentro e de fora; da
presente, dimensão que aciona a escuta e a troca, e nisso constrói um memória dos tempos e espaços que se foram e do conteúdo atual, diário,
outro caminho possível — que é o de conhecer a experiência do outro, ou que se vive agora. Fazer uma costura praticável entre eles, possibilitando
de uma interação entre a minha e a do outro. um aprofundamento desses elementos temáticos que aparecem e
Comecei pelos familiares, porque imaginamos que dar início às reaparecem é uma intenção para os próximos momentos do trabalho.
conversas com pessoas próximas poderia ser um caminho de destrave Aproveito para mencionar a ideia de prescindir das imagens, que é
da minha própria fala, da minha escuta e principalmente da escrita. uma experimentação de mobilização da imaginação pelas palavras. Mas
Logo incluímos conversas com amigos. Conversas essas que passaram a a experiência estética de pensar algumas poucas imagens, de fotografia
formar boa parte do corpo do trabalho, e que me interessei em segui- ou mesmo desenhos, rabiscos, também pode ser uma possibilidade para
las pela situação de algum laço afetivo viabilizar uma soltura e uma trabalhar em cima de alguns resquícios de visualização desses espaços.
partilha generosa das vivências cotidianas e das relações marcantes que
temos com a cidade; as quais me convocam mais.
Nesse meio-tempo, testamos também conversar com pessoas
que encontrei em derivas. Fui ao centro, lugar que imaginei haver uma
abundância de pessoas e ritmos diversos acontecendo. De fato havia,
percorri algumas praças, conversei com algumas pessoas; ouvindo e
tentando saber de saberes, de memórias do lugar, de deslocamentos
curtos e de mudanças vividas por essas pessoas e do que mais quisessem
contar. Esse é o relato de número 05. Acabei não indo muito em frente,
mas ainda penso em ir, embora esteja nesse momento mais voltada ao
trabalho com esses relatos de pessoas mais próximas.
Começo a enxergar alguns fios de relação entre eles, que
transitam por discussões de vínculos construídos pelo pertencimento
e identificação, ao tempo de seus contrários também: de um não-lugar,

38
ESCRITA Abro a seguir um espaço para expor parte dos
escritos que, numa via em segundo plano, foram

POR
feitos durante o processo. Os escrevi mais para
mim, num esforço de tatear os momentos confusos
do percurso; por isso, talvez, o tom escorregue um
pouco para lugares de algumas constatações meio
brutas, ou que são colocadas de maneira meio dura,

ESCRITO
sem muita elaboração. São questões e entraves que
dão notícia de uma convivência com a dúvida. Ao
partilhá-los, os assumo como parte constitutiva do
trabalho.
28/11/22
eu já abri inúmeros documentos no google drive. algum momento vou retornar a elas para alimentá- formação, com urgência e repetidamente nos
esse é mais um. “documento sem título”. sempre las, em vez de apenas assisti-las sendo relegadas ao solicitam respostas. e as respostas têm seu valor,
que sinto que preciso escrever algo que sai da linha abandono enquanto sigo abrindo novos documentos mas são restringidas pelos limites das perguntas.
do que já escrevi em um, crio outro. criei um para e novas categorias que serão usadas só até o próximo talvez seja preciso acreditar nas próprias perguntas,
os relatos, chamei de “fragmentos da cidade”. um texto. por mais ingênuas e tolas que elas possam soar num
para frases soltas que me marcaram e me ensinaram primeiro momento. talvez seja imprescindível não
algo, foi “palavras importantes”. um em que escrevi hesitar na decisão consciente e prática de levá-las a
12/12/22
coisas que não me deixassem perder de vista o que sério.
era importante nessa pesquisa, que no fluxo do ir e o trabalho de conclusão de curso tem que ser uma
vir do começo de trabalho e das tomadas de decisões experimentação autoral. isso precisa ser lembrado e por um deslize mínimo, frequentemente nos
tenho medo de ir esquecendo ou deixando ir com o relembrado, resgatado aqui e ali. numa formação que desconectamos do que guia nossa vontade de
vento, “ideia a perseguir”. eu queria tomar decisões em geral não encoraja de forma firme, assumida e descoberta e somos arrastados, com enfado, a seguir
para que, tendo-as estabelecidas enquanto plano-guia eficaz uma autonomia da inventividade e do pensar, é aquilo que por impressões construídas desde a
que me gera alguma segurança criativa, eu pudesse um lembrete que deve ser despertado a todo tempo. é disciplina de metodologia do trabalho científico (cujos
experimentar não me prender a elas; me libertar fácil desviar-se da investigação pretendida para uma efeitos acompanham toda a graduação) nos parece
justamente através de seu suporte. pois sem um via de trabalho que mais reproduz o conhecimento ser mais “acadêmico”, pois soa mais consistente e
plano bem definido, me sinto meio que “condenada à do que o produz, justamente porque às vezes não “científico”, ainda que isso signifique ir aceitando
liberdade” (clarice disse isso uma vez). se encontra a confiança necessária para acreditar fazer algumas concessões.
que a pesquisa em curso pode, sim, se sustentar
ainda tem um em que aglomerei desabafos sobre o em seu próprio percurso, de maneira honesta; sem essas concessões, embora pareçam pequenas, se
processo, “escrever e a escrita”. não vou mencionar os presunções asseguradas numa ideia de fixidez do frequentes, quando totalizadas, acabam por reduzir
de sínteses teóricas, os de ensaios soltos, outros em conhecimento que ceifa as possibilidades de dúvida o campo de experimentação possível, porque, no
que misturo tópicos, prosa, textos que não são meus. e de liberdade. que possamos rever os caminhos limite, ensejam a coerência científica. no entanto,
investigativos ao longo do caminho. uma coerência que talvez seja incapaz de dar conta
sobre os pedaços residuais que escrevo, não consigo da realidade contraditória dos conteúdos concretos
mantê-los juntos. a desorganização me incomoda, por ruídos externos internalizados, podemos ir da vida e da natureza investigativa por vezes não
vou criando novos arquivos e nomeando-os, quase aos poucos desacreditando da potência das nossas absoluta de pesquisas que perpassam discussões
acreditando que se eu tiver categorias o suficiente, em dúvidas, uma vez que, no papel de arquitetos em de arquitetura e cidade. ao deslocar o foco para o

40
cumprimento de uma objetividade “coesa”, corre- solicitado uma confiança no percurso e alguma
se o risco de desvalorizar aspectos significativos do paciência que, por vezes, não encontro em mim.
trabalho, na medida em que se “corta” todos aqueles
resíduos que não podem ser contidos pelo formato quando o desânimo vem se aproximando,
exigido, o que enfraquece os argumentos fabricados. rapidamente desacredito do que estou pensando na
escritura do momento e passo a não mais ver valor
aquilo que há de mais fundamental se encontra naquilo. surge um ímpeto de largar o texto pela
justamente na medida em que é possível estarmos metade e começar uma outra investigação, nova e
conectados e entrelaçados com a investigação em fresca: ao começar um outro ensaio, logo me animo
curso. uma pesquisa não se faz sozinha, mas estar e passo a ver sentido no que estou fazendo. com o
amalgamado a ela é tão possível quanto distanciar-se passar de (poucos) dias, esse sentido vai se perdendo
a ponto de tornar sua tônica antes burocrática do que de mim, se esvaindo rapidamente até escapar quase
curiosa e investigativa. por completo a ponto de eu não querer mais retornar
a ele.
*esse foi escrito após a experiência de assistir à
defesa de tcc alguns amigos, também formandos em se repete.
arquitetura.*

04/01/23
Conforme o trabalho foi ganhando mais fluência,
a vivência dessa escrita está se saindo mais complexa essa linha de escrita foi cedendo força à dos relatos,
do que eu pensei que fosse ser. escrever é uma com os quais fui me afinando mais com o processo —
atividade que se dá de maneira fluida pra mim, não encontrando menos obstáculos que me paralisassem
sinto muitas dificuldades com a articulação das — e, assim, fui deixando-a mais de lado.
ideias e gosto do exercício. mas escrever na busca
de fragmentos tem sido um processo que tem me Obrigada pela leitura!

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referências

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Geografia Urbana Crítica: Teoria e Método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. https://www.revistaserrote.com.br/2013/12/a-arquitetura-dos-intervalos-porfrancesco-
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