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Semiosfera do Espaço Vazio1

Lucrecia D’Aléssio Ferrara. (Coord.)


Teglis Pepe Barbalho Arnas
Alexandre Pereira Cruce
Eduardo Louis Jacob
Fábio Sadao Nakagawa
Regiane Miranda de Oliveira Nakagawa
Celso Figueiredo Neto
Wilson Alexandrino da Silva
Karin Vecchiatti

1. Introdução

Seria possível construir uma semiosfera do espaço? Ou o espaço caracterizaria


somente uma semiosfera vazia? Dominado pelo hábito de ver e pelas significações
consagradas pelo senso comum, o espaço pode inicialmente parecer desprovido de uma
interpretação capaz de caracterizá-lo no panorama semiótico da cultura. No entanto, em suas
variadas operações enquanto meio, mídia ou mediação, como suporte de veículos (desde os
gráficos aos digitais), como interface com os signos que caracterizam a comunicação de
massa, ou como lugar de fluxos sociais e culturais, o espaço certamente pode se aproximar da
possibilidade epistemológica de uma semiosfera.
Este é o desafio encarado pelas análises que compõem este trabalho: delinear o espaço
como uma semiosfera para a qual convergem diferentes bases epistemológicas que o tem
como objeto de investigação. Esse desafio é encarado através da análise de diferentes
modelizações que emergem em processos comunicativos, em conjunto com a percepção e
interpretação do desenho do espaço na interface das suas conexões sociais e culturais.
A análise dos trabalhos apresentados nos leva a propor a seguinte pergunta como base
para investigação: Seria possível analisar as diferentes modelizações do espaço em processos
comunicativos como indicadores da construção do espaço enquanto semiosfera?

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Trabalho apresentado pelo Grupo de Pesquisa Espaço/Visualidade – Comunicação/Cultura no 1º. Encontro
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2. Território desconhecido de investigação

A possibilidade de responder a essa pergunta nos convida a investigar um território


que escapa às noções do espaço consagradas pelo senso comum. Esse território de
investigação se constrói à medida que enxergamos determinadas modelizações em processos
comunicativos contemporâneos – arte, design, publicidade, cinema, fotografia por exemplo –
e enxergamos as “intersecções” que colocam em evidência os ruídos que podem ou não ser
posteriormente absorvidos pelos sistemas modelizantes, ou seja, pelo próprio espaço. Neste
trabalho, analisamos modelizações presentes em diferentes mídias, especificamente, no
comercial televisivo, na peça publicitária gráfica, no cinema, na fotografia e no design. Entre
elas podemos identificar intersecções e ruídos que resultaram na construção de tropos,
metáforas, e no embate entre programa e projeto, que coloca em teste o próprio conceito de
lugar.
Enxergar essas intersecções e ruídos implica em uma necessidade de encarar,
primeiramente, o estranhamento que se dá a partir do encontro entre essas diferentes
modelizações do espaço. Em segundo lugar, requer a adoção de um pensamento transversal
que possibilite a compreensão de um mecanismo de tradução ou recodificação entre os
sistemas de linguagem, sobretudo entre as características de espacialidade, visualidade,
visibilidade, comunicabilidade, perceptibilidade e persuasividade. O ponto em comum entre
as modelizações analisadas é a identificação de intersecções entre sistemas de linguagem que
por sua vez geram espacialidades vinculativas, ou seja, geram espacialidades enquanto
vínculo comunicativo, nas quais o espaço não é meramente suporte, mas assume
características que faz com que o processo de mediação funcione como vínculo. O salto
epistemológico dessa constatação, como poderá ser concluído adiante, está na possibilidade
de enxergar, a partir dos vínculos comunicativos, uma semiosfera do espaço.

Internacional para o Estudo da Semiosfera


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3. “Faces”: modelizações e a construção de tropos

O comercial televisivo “Faces” criado em 2001 para Museu de Arte de São Paulo
(MASP)2 mostra um indivíduo fazendo uma careta que será, em seguida, apalpada por um
cego. Enquanto o cego vê com as mãos a careta no rosto da pessoa, a câmera faz um
travelling por trás do cego, deixando também o espectador cego por um momento. O
travelling continua descortinando uma tela de Picasso entre os interlocutores e dessa maneira
correlaciona a careta com a imagem cubista do pintor catalão. Segue-se uma tela preta com a
mensagem “A Arte é para todos” e a assinatura com a logomarca do MASP.

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Comercial criado em 2001 pela agência de publicidade DM9DDB por Miguel Bemfica, Paulo Diehl e Paulo
Bemfica, sob direção criativa de Erh Ray.

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Seqüência do anúncio publicitário FACES

Nesse exemplo, observamos a construção do tropo a partir de um determinado tipo de


modelização do espaço no comercial que se apresenta em intersecções e produz correlações
entre capacidades de ver. Lembramos que, para Lotman (1996), o tropo é um deslocamento
paradigmático no significado das palavras, uma substituição semântica visando ao
enriquecimento, aprofundamento e alargamento da apreensão da mensagem, de maneira que
se busca uma forma inovadora de comunicar determinado conteúdo a um auditório. Nesse
sentido, o comercial apresenta, de maneira bastante explícita, a narrativa de um cego
enxergando por meio da careta de outra pessoa, uma obra de arte cubista, com seu recorte
multifacetado da realidade.
Essa narrativa, por si só, já apresenta um deslocamento tópico já que, ao “ver com o
tato” o cego nos mostra a importância de “ver com os olhos” deslocando a questão corriqueira
da visão para uma situação especial que qualifica o sentido e desperta o desejo de enxergar. A
idéia é reforçada pela assinatura da peça, a frase: a arte é para todos. Em um primeiro
momento, se poderia dizer tratar-se de uma afirmação de cunho popular, carregada de marcas
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ideológicas associadas aos movimentos sociais, do socialismo a maio de 1968. Contudo, ao
dar-se conta de que, foi o cego quem nos fez ver, nota-se que o conteúdo social no comercial
é de menor importância, já que a mensagem implícita sob a camada superficial da narrativa é
que nós, espectadores, devemos valorizar mais o dom da visão, que temos de maneira natural
e para a qual não damos muita atenção, deixando de apreciar maravilhosas obras de arte que
estão ali para serem vistas, enxergadas, usufruídas.
O tropo se coloca ao construir este twist visual, em que o cego é aquele que enxerga,
enquanto o observador, o espectador, que tem o dom da visão está “cego” às maravilhas da
arte, mesmo tendo capacidade para usufruir delas. Quando o espaço se fragmenta e desloca a
habilidade de visão para a as mãos, quebra-se o paradigma de que a visão se dá pelos olhos,
bem como a de que quem tem visão é o único a enxergar. O cego enxerga melhor do que
aquele que vê. Esse deslocamento da idéia de visão pelo fragmento do espaço amplia,
aprofunda, enriquece a própria idéia, permitindo a construção de uma rica poética visual que
dificilmente seria alcançada sem o deslocamento proposto pelo tropo.
A publicidade se utiliza sobremaneira desse tipo de modelização do espaço por meio
de recursos retóricos, capta a atenção do espectador acerca de um produto, serviço, marca ou,
como no caso analisado, um museu de arte. O estranhamento (que também pode ser encarado
como um ruído) provocado pelo deslocamento semântico e pela intersecção entre formas de
ver funciona como anzol, que fisga a atenção do espectador que naturalmente tentará
decodificá-lo. Ao inserir-se no processo de compreensão, de decodificação da peça, o
espectador passa da posição de mero observador para interlocutor. Assim, ao decodificar o
deslocamento tópico processa-se um envolvimento do espectador no processo comunicativo,
garantindo-se com isso melhores índices de atenção ao comercial e à mensagem propagada.

4. Modelizações e metáforas nas peças publicitárias gráficas

A peça do colírio Lerin, feita em página dupla, é composta por duas pimentas
vermelhas alocadas uma em cada página, sendo a disposição de ambas similar à posição
ocupada pelos olhos no rosto de um indivíduo. No canto inferior direito da segunda página há
a frase “Ardeu? Use”, aliada à representação imagética do produto anunciado. Na peça, a

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pimenta, que provoca ardor quando degustada, é correlacionada à ardência dos olhos, sendo
este aspecto acentuado pela cor vermelha vibrante do bago, por meio da qual, busca-se
enfatizar o principal problema que o colírio promete resolver e, em conseqüência, sua
eficácia. Nesta correlação, percebe-se que o efeito de sentido provocado pela percepção
gustativa é transposto para a percepção tátil, sendo esta relação materializada na peça por
meio da representação imagética. A relação entre as duas páginas é do tipo causa e
conseqüência, ou seja, se ardeu então use, ou a percepção gustativa é causa da percepção tátil
que é sua conseqüência. A espacialidade em duas páginas condiciona esta linearidade entre
antes e depois.

A relação da pimenta àquilo que arde, não apenas no plano físico mas também no
afetivo, compõe um paralelo há muito já trabalhado na comunicação cotidiana. Embora essa
forma associativa não seja meramente arbitrária, uma vez que a pimenta realmente possui um
sabor picante, sua utilização na construção de determinados paralelismos nos permite
reconhecer um traço simbólico, ou, ainda, um legi-signo que perpassa a correlação
estabelecida, pois a recorrência associativa evidencia um hábito já estabelecido e uma

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convencionalidade quando se busca estabelecer uma associação a algo que é quente, forte,
picante, ardido ou sensual.

O efeito de sentido −resultante da associação da pimenta com os olhos− é acentuado


se considerarmos um provérbio muito utilizado na comunicação oral espontânea quando se
busca enfatizar que a dificuldade alheia é branda para quem a observa à distância. Trata-se da
expressão “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Apesar do anúncio não fazer uma
remissão direta a esta frase, pode-se atentar para a recorrência do provérbio e sua acentuada
difusão nos diálogos informais, de cuja decodificação depende a apreensão metafórica
materializada visualmente na espacialidade do anúncio, facilitando assim sua inteligibilidade.
Neste caso, a possível associação do provérbio à composição presente no anúncio, e,
anteriormente, a transposição de diferentes efeitos de sentido, implicam em recriações da
associação presentificada na metáfora, até culminar numa composição codificada pelos
recursos gráfico-visuais característicos do sistema impresso. Este “criar de novo” àquilo que é
dado numa outra estrutura sígnica configura não apenas um movimento distintivo da cultura,
resultante do diálogo existente entre diferentes sistemas sígnicos, mas também evidencia a
possibilidade de ressignificar determinadas metáforas, que passam a ser percebidas de modo
não-usual, em virtude do modo como são materializadas por um sistema ou suporte
específico. A introdução de novos suportes midiáticos e a conseqüente produção de novas
formas de significado propiciam uma espécie de “reatualização” de certas relações
associativas, acarretando a desautomatização do modo como são percebidas. Esta atualização,
por sua vez, não exclui a superposição de sentidos que formam a composição. No anúncio do
colírio Lerin, torna-se possível reconhecer distintas camadas de sentido superpostas,
decorrente de diferentes formas perceptivas - gustativa, tátil, visual, oral- que coexistem na
materialidade sígnica da página.

Um traço recorrente nas metáforas construídas pela publicidade visando incitar a


rápida percepção dos anúncios refere-se à utilização de elementos prosaicos, característicos
da comunicação interpessoal cotidiana mais ordinária. Nestes casos, torna-se possível
apreender o diálogo existente entre sistemas e gêneros discursivos distintos. De acordo com
Mikhail Bakhtin (1997: 281), a peculiaridade de um gênero deve-se, dentre outros fatores, à
diferença existente entre o gênero primário e o gênero secundário. O primeiro refere-se às
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formas discursivas mais elementares, frutos da comunicação interpessoal verbal espontânea,
sem artificialismos. Os gêneros secundários, por sua vez, referem-se a construções textuais
vinculadas a relações comunicativas mais complexas, e, por isso, requerem uma feitura
discursiva mais “elaborada”. Eles são uma expansão do primeiro e acrescentam aos dois uma
incorporação do segundo significado no primeiro.

A inter-relação entre os gêneros primário e secundário pode ser visto no anúncio


produzido em 1993 para o inseticida em spray Baygon. A peça, feita em página dupla possui,
do lado esquerdo, a representação imagética do produto e, sobre o frasco, há a expressão
verbal “Pá.”. A página ao lado é composta por uma espiral e, no final dela, há um inseto
morto. Na parte superior da espiral há a expressão “Pum.”. A assinatura do anúncio possui a
logomarca do anunciante e o slogan da marca.

A estrutura compositiva da peça estabelece um paralelo entre a eficácia do produto e


uma expressão oral muito utilizada no dia-a-dia para se referir a algo cuja ação é
excessivamente rápida. Um dos principais traços característicos da comunicação oral deve-se
à proximidade existente entre os enunciados e a vida cotidiana, ao contrário do que ocorre

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com a comunicação escrita e tipográfica, cujas formas de verbalização impressa propiciam o
distanciamento entre os textos e seu contexto de produção. Por isso, em geral, as formas
discursivas orais tendem a ser mais situacionais, uma vez que a relação comunicativa expande
a oralidade até a configuração do anúncio.

A proximidade entre experiência e texto é facilmente reconhecível na expressão “Pá.


Pum.”, pois a concisão da frase estabelece, de antemão, um paralelo com a agilidade. Ou seja,
a própria materialidade do enunciado já incorpora traços daquilo que pretende significar. No
entanto, ao ser incorporada pelo anúncio, esta expressão reveste-se de uma forma sonoro-
visual. A palavra impressa tanto é percebida por meio do som, pois a apreensão do anúncio
dificilmente ocorre sem um mínimo de sensibilidade à sonoridade da expressão inscrita, como
por meio da visualidade espacial e gráfica das unidades verbais, relacionadas aos elementos
figurativos presentes na peça: é a relação de causa e conseqüência metaforizada na página
dupla. O verbal-oral inscrito na mensagem contrapõe-se à forma linear característica do
verbal escrito, pois dificilmente uma sentença verbal caracterizada pela contigüidade poderia,
por meio da sua materialidade sígnica, estabelecer uma relação de similaridade com a
velocidade, especialmente se considerarmos o tempo que demanda a leitura de uma seqüência
linear.

Na peça, há ainda uma outra correlação estabelecida, desta vez, entre formas
geométricas, cuja presença reforça a associação estabelecida no plano figurativo. Toda espiral
é composta por uma linha curva, que tem início num ponto e afasta-se dele gradualmente,
afunilando aos poucos a figura. Se contornarmos a espiral presente no anúncio com linhas
retas, temos a formação de um triângulo, cuja base se encontra voltada para a parte superior
da página. Esta figura estabelece um paralelo esquemático com o triângulo vermelho presente
na embalagem do produto, cuja base também está voltada para a parte superior do frasco. A
similitude de ambas as formas é acentuada pela presença de insetos na ponta dos dois
triângulos, por meio do qual, se busca enfatizar tanto o problema que o produto resolve
quanto a sua infalibilidade.

A repetição de um mesmo elemento, tal como acontece com os triângulos presentes no


anúncio do inseticida Baygon, é um dos meios utilizados pelo discurso publicitário com o

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intuito de ratificar positivamente o valor do objeto anunciado, evitando opiniões contrárias
ou, ainda, uma possível dúvida sobre aquilo que se afirma sobre o produto e, em
conseqüência, sobre a validade da sua compra. Nestas mensagens, é muito comum que a
repetição seja efetivada pelo código verbal, em virtude da precisão do modo como este código
representa algo, evitando assim qualquer interpretação que não seja aquela prevista pela
crença no consumo. Vista como um recurso persuasivo, a enunciação das mesmas idéias
anteriormente apresentadas num texto pode ser entendida como um outro traço característico
das regras ordenadores do sistema publicitário e, por isso, sua “ação” torna-se recorrente nos
anúncios, ainda que esta repetição não seja realizada apenas por meio do código verbal.

No anúncio, esta correlação sígnica possui ainda uma especificidade, pois a


composição em página dupla orientada pela expressão oral “Pá. Pum.” indica a presença de
dois tempos distintos: o primeiro designa o “antes”, isto é, o uso do produto, e o segundo
apresenta o “depois”, em que é enfatizado o bom resultado decorrente da ação do inseticida.
A sucessão presente na peça não apenas interage com a expressão oral, que também abriga
uma seqüência temporal; mas a reiteração imagética presente nas duas páginas estabelece um
vínculo visual entre ambos os tempos, acentuando, de modo incisivo, o diferencial do
inseticida. A correlação dos dois triângulos acarreta a espacialização da seqüência temporal,
do qual também resulta a espacialização do modo como a peça é percebida. Ao minimizar a
lógica da sucessão, este anúncio evidencia um traço distintivo central do atual ambiente
midiático, ou seja: impressão simultânea de diferentes signos, acarretando formas de
apreensão imediatas e instantâneas, características de uma comunicação cada vez mais intensa
e veloz, em detrimento da temporalidade característica da hierarquização de uma construção
linear discursiva.

5. Modelizações na imagem: a fotografia e o cinema

Dando continuidade ao “preenchimento da semiosfera do espaço vazio” por meio das


construbilidades das espacialidades, este tópico da análise pretende entender como são
construídas as imagens e como elas se modelizam e são modelizadas pelas espacialidades em
dois sistemas midiáticos: a fotografia e o cinema. Para isso, como recurso metodológico de
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análise, foram selecionados dois textos, um de cada sistema, para que se pudesse fazer uma
leitura mais elaborada de cada um. São duas cenas pertencentes ao longa-metragem “Central
do Brasil”, filmado por Walter Lima Jr, e lançado no ano de 1998, e duas fotos publicadas no
livro “Caiapó Metutire”, editado no ano de 2004, fotografadas por Vito D’Alessio.
Conforme afirma Ferrara (2002), duas categorias epistemológicas de análise devem
ser ressaltadas ao se tentar compreender a complexidade da construtibilidade da imagem: a
primeira é denominada como visualidade, cuja concretude imagética “frouxamente se
insinua”, pois a relação entre a percepção e a imagem é modelizada pelas qualidades do signo
visual. A segunda categoria, denominada como visibilidade, não está diretamente relacionada
à imagem, mas se constrói a partir dela, isto porque, por meio da leiturabilidade da
iconicidade do signo visual são construídas relações prováveis através de diagramas que
permitem o surgimento de signos mais elaborados. Dessa maneira, o diagrama constrói e é
construído por uma espacialidade entre “à elaboração perceptiva e reflexiva das marcas
visuais que ultrapassam o recorte icônico para serem flagradas em sutis indícios”
(FERRARA, 2002: 120) e as transduções das relações diagramáticas que permitem a
construbilidade de sínteses interpretativas.
Ao ressaltar o diagrama como elemento mediador entre a imagem e sua leitura, é
possível perceber uma operação lógica da visibilidade que funciona como uma fronteira
existente entre a materialidade do signo visual e a síntese construída por uma mente
interpretadora, através de índices que desempenham o papel de mecanismos tradutores. Estes
índices filtram determinados aspectos da imagem em detrimento de outros, ao estabelecer
relações de dominância na sua superfície, fazendo com que ela passe por dois procedimentos
semióticos dialógicos: o processo de hierarquização e o de fragmentação do todo. Ambos,
possibilitam criar o descontínuo no continuo, ao traduzirem as qualidades estruturais e não
adjetivas do signo em quantidade informacional por meio de signos relacionais da estrutura,
isto porque “a estrutura atinge os padrões estruturais de um organismo e não as suas
propriedades” (FERRARA, 1986: 56). Assim, a totalidade da imagem passa a ser
transduzida, e portanto vista de uma outra maneira, pela alteridade das relações existentes
entre os nexos informacionais que compõem o diagrama, o que implica em dizer também que

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é no plano da visibilidade que se constrói a temporalidade da imagem, isso porque, é nela
que se estabelecem as probabilidades combinatórias entre as relações temporais.

No centro da encruzilhada da Central do Brasil

As duas seqüências selecionadas para essa análise, provenientes do longa-metragem


Central do Brasil, ocorrem aproximadamente aos 13:00 e 59:25 da projeção do filme. Na
primeira, o menino Josué, interpretado pelo ator Vinícius de Oliveira, senta em um banco
localizado na Central do Brasil, após perder sua mãe em um acidente com um ônibus circular.
Na segunda, Dora, personagem interpretada por Fernanda Montenegro, ao se arrumar em um
banheiro de um bar de beira de estrada, com a intenção de conquistar o caminhoneiro César,
Othon Bastos, o vê , através do vitrô, partindo em seu caminhão.

A seqüência do desamparo e sofrimento do menino Josué é composta principalmente


por um plano médio fixo, frontal e centralizado da personagem que está chorando a morte de
sua mãe. A imagem da personagem se une à imagem do encosto do banco, em razão da baixa
iluminação da cena e da curta distância focal, e essa fusão constrói a imagem diagramática na
forma de cruz através da verticalidade do corpo de Josué adicionada à horizontalidade do
banco.
A cruz se torna mais visível com a acentuação de suas partes compositivas feita com
os transeuntes que atravessam os planos durante toda a seqüência, destacando a
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horizontalidade, e com a reiteração da verticalidade através de dois planos fixos de pessoas
em pé, paradas no local, que aparecem, alternadamente, sempre após o plano de Josué, como
se fossem contra-planos do plano principal. A construtibilidade da imagem diagrama da cruz
se torna importante na seqüência para que se possa trazer ao texto toda simbologia que
envolve o signo cruz. Dessa maneira, a história do protagonista Josué se assemelha à história
de Cristo, pois ambos, crucificados, percorrem o mundo à espera do encontro com o pai.
Vale lembrar que no caso do enredo do filme de Walter Salles, o pai de Josué se chama Jesus,
o que constrói uma história dentro da outra: o filho em busca do filho do filho do Pai.
Apesar do protagonista passar todo o filme procurando seu pai, o seu encontro acaba
sendo com Dora; uma espécie de espelho do herói na narrativa que se solidariza com a causa
de Josué e passa a acompanhá-lo em sua busca. Dessa maneira, a cruz que carrega o
protagonista se transforma na encruzilhada de Dora, ao ter o seu percurso dividido entre o
antes e o depois do encontro com o garoto. Nessa metamorfose, Dora passa de vilã a
provedora, até se contaminar com a esfera de ação do herói, quando a cruz que ela carrega se
deixa ver.
A imagem diagrama da cruz é refeita na outra protagonista da narrativa, na segunda
seqüência selecionada para esta análise. Sua construtibilidade acontece também por meio de
um plano centralizado da personagem, enquadrada na altura do cotovelo para cima. A
verticalidade é formada pelo corpo de Dora, que está em pé, pendurada no vitrô do banheiro
do bar de estrada, e é acentuada por um movimento da câmera que realiza uma breve
panorâmica vertical de cima para baixo, ao acompanhar um leve abaixar-se de Dora. Já, em
relação à horizontalidade, esta é composta através das folhas basculantes do vitrô e das várias
ondulações existentes no vidro canelado disposto horizontalmente. A cruz, ao ser refeita em
uma outra personagem, acaba por promover uma espacialidade diagramática entre Dora e
Josué, cuja visibilidade é modelizada pela analogia, “isto porque a analogia é exatamente a
faculdade de variar as imagens, de combiná-las, de fazer que a parte de uma coexista com a
parte da outra e de perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas”
(VALÉRY, 1984: 22-23). A semelhança estrutural através do signo cruz aproxima
seqüências distintas, permitindo com que a carga simbólica do texto mítico também dialogue
com o percurso da segunda personagem. Segundo Walter Salles Jr:

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“As opções formais de Central foram claramente definidas antes do filme.
Havia também um desejo de que os planos dialogassem entre si. Os planos,
tanto do ponto de vista da imagem quanto do som, desejavam ser ‘grávidos’
dos planos antecedentes, o que também possibilitava ‘engravidar’ os planos
seguintes. O filme é construído em torno de rimas visuais e sonoras, que
foram idealizadas antes da filmagem.” (NAGIB, 2002: 421).

Apesar da relação de semelhança feita por meio da imagem diagrama da cruz


estabelecida entre as duas seqüências funcionar como uma rima visual, conforme ressalta
Salles, é preciso o retorno ao plano da visualidade para perceber também as relações
distintivas. Para isso, ressaltamos primeiramente o movimento da personagem Dora que, ao
abaixar-se, tem o seu rosto cortado pelas várias texturas do vidro canelado. Cada relevo
formado por uma elevação no vidro, ao ser percorrido pelo rosto de Dora, forma níveis
distintos em relação à verticalidade do corpo, construindo uma cruz atrás da outra e
sobrepondo uma à outra a partir do eixo da similaridade. Dessa maneira, enquanto Josué
carrega a sua primeira grande cruz em razão da sua pouca idade, é possível perceber que a
trajetória de vida de Dora já está marcada por outras tantas. No caso da seqüência em
questão, a desilusão afetiva provocada pela fuga do caminhoneiro César, não foi e tampouco
aponta ser a última a ser carregada por ela. Por fim, outra característica visual distintiva
entre as imagens analisadas, se refere à disposição dos atores em relação à horizontalidade.
Conforme já ressaltamos no início desta análise, no caso de Josué, o signo da cruz é composto
pela fusão entre a verticalidade do seu corpo sobreposta à horizontalidade do encosto do
banco, o que não acontece com a seqüência de Dora, pois sua imagem ao estar por trás da
imagem do vitrô basculante, além de compor o signo cruz, também constrói, através da
horizontalidade das linhas do vitrô, uma espécie de cerca que aprisiona a personagem, isto
porque, apesar dos caminhos das personagens se entrecruzarem, a busca de cada uma é
motivada por razões distintas: Josué tenta encontrar o pai, conforme já foi dito, e Dora, no
processo de sua metamorfose, busca se libertar do peso das cruzes que carregou antes do seu
encontro com Josué.

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A montagem do Capoto

A segunda parte dessa análise faz uma leitura de um texto que pertence ao sistema
modelizante fotográfico. São duas fotos que foram selecionadas do livro Caiapó Metutire, no
qual a configuração da página dupla funciona como mecanismo de transdução da montagem
ideogramática feita por Eisenstein no cinema. Dessa maneira, tem-se uma inter-relação de
linguagens, onde o meio livro possibilita a construção de uma espacialidade de fronteira entre
o cinema e a fotografia, ao aproximar, através do contraste, duas visualidades distintas, cada
uma lugarizada em uma folha da configuração da página dupla, como se fossem dois planos
cinematográficos. Esse outro uso do meio impresso —que funciona como uma tela de
cinema—, também é favorecido pela padronização do “livro de arte”, feito na forma de
catálogo, que, ao ser aberto, forma a figura plana do retângulo, cuja estrutura é acentuada
pelas margens negras superior e inferior da página dupla.

A montagem cinematográfica proposta por Eisenstein é construída pelo choque entre


as qualidades visuais (e sonoras) presentes nos planos, criando uma visibilidade modelizada
pela relação conflituosa, ou seja, a relação de dominância montada na imagem é feita quando
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uma qualidade visual existente no plano X estabelece uma relação de oposição com outra
pertencente a outro plano, tornando-se visível pela mediação do conflito.
No texto selecionado para esta análise, duas fotos são colocadas em relação: do lado
direito da página dupla, uma foto intitulada como “Entardecer no Capoto” e do lado esquerdo,
outra denominada como “Amanhecer no Capato”. Capoto é o nome da reserva, chamada de
Capoto- Jarina, do povo Caiapó Metutire, localizada no estado do Mato Grosso. Nesta
representação proposta por Vito D’Alessio, a aldeia é vista no confronto de duas visualidades
modelizadas por temporalidades distintas do ciclo do sol, cujas diferenças são ressaltadas por
outras qualidades. Dessa maneira, a relação de oposição estabelecida entre o fim da tarde e o
início do dia é intensificada por outras, tais como: a dominância da luz avermelhada em
oposição à luz ambiente; o plano de conjunto da aldeia em relação ao plano geral; a
dominância da horizontalidade na foto –formada por uma faixa escura da fusão entre a aldeia,
a vegetação e o índio– que se contrapõe à figura do espaço na segunda fotografia — formado
por um semicírculo do plano geral da aldeia, feito através de um efeito obtido por uma lente
grande angular; e por fim, a dominância da figura do sol se pondo, no fundo da cena, em
contraste com o azul do céu presente na outra imagem.
O contraste das visualidades fotográficas permite “descongelar” os momentos
capturados do ciclo do sol no cotidiano da aldeia —o amanhecer e o entardecer— ao colocá-
los em fluxo informacional. Trata-se de uma construção que propõe uma leitura do sentido
feito no entre-fotos, pois cada foto compreende uma fração, um instante que funciona como
índice do que Prigogine e Stengers denominam como “dimensão fraccionária” (1990: 91),
cuja totalidade é visualizada por meio de suas partes compositivas. Através de dois pontos,
vistos como variáveis necessárias, é possível formar abstratamente uma superfície, já com
três, é possível compor um volume. Assim, a montagem funcionando como elemento
mediador de cada variável compõe uma terceira variável, que constrói a tridimensionalidade
que supera a espacialidade bidimensional.

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6. Modelizações no design: a fronteira entre programa e projeto

O design é a atividade de fronteira que acrescenta sentido ao objeto. Essa passagem de


objeto único em seriado e deste em produto é mediada pelo design. Ele estabelece um
pensamento que supõe uma crítica do sistema produtivo, ao perguntar: seria possível
estabelecerem fronteiras entre arte e objeto?
Os trabalhos elaborados tanto no sistema “arte” quanto no sistema “objeto” carregam
as marcas de seu sistema de produção. De um lado presenciamos um sistema artesanal de
produção cujo resultado é o objeto único, com características irreprodutíveis e que serve a um
interesse individual, adquirindo um nível máximo de valor. O sistema de produção industrial,
por sua vez, transforma objeto em produto e torna esse produto acessível a um número
ilimitado de usuários. Assim, a partir da linha de montagem, da fabricação seriada de um
produto, atende-se às necessidades e anseios de um interesse coletivo mas, comandada pelo
sistema produtivo. Permanecendo na fronteira entre os sistemas produtivos, o design busca,
na arte, seu reflexo criativo e entrega, à indústria, um modelo pronto para uso.
A inovação faz parte da prática do design. A idéia do novo traz em si uma raiz
histórica da qual o design não pode, em essência, prescindir. Sem o contexto histórico, o novo
não existe. A atividade projetiva é o método de criação natural do design. O projeto
flexibiliza a criação e estimula a conversa com outros usos e espaços, além de potencializar
novas atitudes relacionais entre várias linguagens e redimensionar percepções a respeito de
processos que compõem o cotidiano dos usuários.
Mas, em oposição ao projeto, o programa anula esses aspectos históricos ao
estabelecer um código pré-determinado de conduta criativa, programada, em função de um
interesse econômico, retirando dos indivíduos a capacidade de se relacionar com outros
códigos. O programa supõe uma descontinuidade e fixa uma cultura programada. O
industrialismo em voga impõe seus modelos, sintetizados a partir das configurações limitadas
de suas linhas de montagem. O programa estabelece uma rede de sucessivos esquemas a
priori nos quais a atitude criativa fica circunscrita a uma combinação dos elementos que
compõem a linguagem desse programa. Uma modularização no sentido de figurar a partir de
módulos pré-estabelecidos. Opõem-se modelização e modularização, projeto e programa.

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A pretensão hegemônica da tecnosfera (SANTOS: 2004) instiga um cooptação do
design enquanto linguagem, a fim de elaborar modelos a partir dessa linguagem limítrofe dos
programas e desenvolver modelagens capazes de serem reproduzidas em série. Instaura-se aí
uma crise do design (ARGAN: 1992) ao fechar as fronteiras e encerrar as modelizações entre
os sistemas, submetendo-se ao modelo produzido em série e em linha de montagem.
O projeto é invenção e produção de informação nova. Na correlação programa –
projeto, o design procura, pelo projeto, inserir nova informação no programa. Nesse sentido,
podemos afirmar que o projeto é um ruído introduzido no programa. Pode manter-se ruído ou
ser absorvido. A falta de máquinas, problemas de custo, problemas quanto à absorção do
mercado, são fatores que fazem com que o ruído não seja absorvido de imediato. No entanto,
o ruído é fundamental para a renovação do programa. E é quando o ciclo se completa: o
design é estimulado a interagir com outros códigos culturais a fim de estabelecer novos textos
culturais e elaborar novos produtos para a tecnosfera.

7. A semiosfera do espaço enquanto intercurso semiótico

A adoção dos sistemas modelizantes e suas possibilidades de tradução enquanto eixos


de investigação permitem ver o espaço enquanto representação. Permite ver, sobretudo, que o
espaço se modeliza não somente ao reproduzir modelos, mas, principalmente, ao estabelecer
correlações a partir dos processos de tradução. Como apreender os sistemas modelizantes e os
tipos de modelizações do espaço que eles apresentam foi o foco principal das análises
apresentadas. O que procuramos mostrar por meio destas análises é que, na intersecção entre
modelizações e conseqüente construção de espacialidades enquanto vínculo comunicativo,
existe uma interligação entre vários planos de um pensamento transversal que nos permite
vislumbrar os sistemas modelizantes enquanto totalidade; trata-se de uma espacialidade
construída por meio de um fluxo contínuo, ou seja, por meio de processos tradutórios que
levam em consideração as variáveis e invariáveis sistêmicas. Através dessa ótica, se faz clara
a necessidade de análise concomitante de processos e de estruturas, de variáveis e invariáveis,
de manifestações da tecno e da psicosfera.

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Ao enxergarmos o vínculo comunicativo na ótica de uma semiosfera do espaço (que
em muito se aproxima da postura epistemológica proposta pela biosfera), a continuidade das
possibilidades de tradução ou semiose se fazem de extrema importância. O que a biosfera
apresenta como um curso natural, a semiosfera apresenta como um intercurso semiótico. Um
processo contínuo de tradução que se dá a partir das fronteiras e intersecções.
Essa racionalidade atinge o modo como apreendemos as modelizações do espaço, pois
novos signos surgem a partir do entrelaçamento que ocorre entre a observação sistêmica do
fenômeno, a relação comunicativa entre disciplinas e a transformação do próprio sujeito do
conhecimento. Aqui está o salto epistemológico que permite delinear uma semiosfera do
espaço e a possibilidade de uma abordagem transdisciplinar.
A questão fundamental para as pesquisas segundo uma semiosfera do espaço não é
necessariamente ressaltar um ou outro tipo de modelização como se ele fosse símbolo único
da cultura mundializada, mas sim compreender a intricada e contínua relação entre as
espacialidades que constroem uma semiosfera.

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. A crise do desing. In: História da arte como história da cidade.
Tradução de Píer Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva, 1986.
_______________________. Design em espaços. São Paulo: Rosari, 2002.
PINAGÉ, Paulo; D’Aléssio, Vito. Caiapó Metutire. São Paulo: Dialeto, 2003.
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. Tradução de
Florbela Fernandes e José Carlos Fernandes. Lisboa: Gradiva, 1990.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP, 2004.
LOTMAN, Iuri M. La semiosfera I. Tradução de Desiderio Navarro. Madri: Ediciones
Cátedra, 1996.
NAGIB, Lúcia. O cinema da Retomada. São Paulo: Editora 34, 2002.

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VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Tradução de Geraldo
Gérson de Sousa. São Paulo: Editora 34, 1998.

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