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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E EXPERIÊNCIA POÉTICA:


A questão da produção de sentidos1
Laan Mendes de Barros 2

Resumo: Reflexões sobre experiência estética, do objeto estético à percepção


estética, a partir de releituras de Mikel Dufrenne e de alguns fundamentos de
Hermenêutica. A experiência estética desdobrada em experiência poética e o lugar
da produção de sentidos, na perspectiva da “Estética da Recepção” da Escola de
Konstanz. Experiência estético-poética, mediações e midiatização: articulações
entre semântica e pragmática no pensamento de Martín-Barbero e de autores
brasileiros sobre sociedade e cultura midiatizada.

Palavras-Chave: Experiência estética 1. Experiência poética 2. Produção de


sentidos 3. Mediações e midiatização 4.

1. Introdução

Este artigo surge a partir da leitura de trabalhos apresentados no GT Comunicação e


Experiência Estética, no Encontro Anual da Compós de 2011, e de alguns outros levados ao
GT Estéticas da Comunicação, nos anos de 2007, 2008 e 2009, com a intenção de dialogar
com seus autores. Nele, retomamos questionamentos referentes à produção de sentidos e às
relações entre poética e estética com os quais temos lidado em outros trabalhos (BARROS,
2008, 2009 e 2011). Também, apresentamos articulações entre os conceitos de mediações e
midiatização, que podem nos ajudar a estabelecer nexos entre experiência estética e o que
poderíamos chamar de experiência poética nos estudos dos processos e produtos midiáticos.
Chamou-nos atenção a mudança da denominação do GT, de Estéticas da Comunicação
para Comunicação e Experiência Estética. Sem haver participado das discussões que levaram
a tal alteração, adotamos a leitura de que o novo título indicava uma priorização da
percepção estética em relação ao objeto estético. Pareceu-nos, então, que havia lugar no GT
para discussões sobre os processos de recepção dos produtos midiáticos, frequentemente

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXI Encontro da
Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.
2
Professor titular e docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São
Paulo, doutor em Ciências da Comunicação, laan.barros@metodista.br

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imersos na lógica do belo, e sobre a produção de sentidos que se dá na experiência estética


das pessoas, a partir de sua relação com a obra e de sua inserção na sociedade. Daí a
motivação de propor este texto, que se dispõe a diferentes leituras, aberto ao diálogo.
As reflexões aqui apresentadas passam pela leitura da Fenomenologia da experiência
estética de Mikel Dufrenne e por breves destaques da Hermenêutica de Ricœur. Também,
pelos questionamentos dos pensadores da Escola de Konstanz, que prepuseram uma “Estética
da Recepção”, na qual a experiência estética se desdobra em experiência poética. Ainda, por
articulações entre os conceitos mediações e midiatização, presentes no pensamento
comunicacional latino-americano contemporâneo, com destaque às formulações de Jesús
Martín-Barbero e de José Luiz Braga.

2. Do objeto estético à percepção estética

A obra-prima do filósofo francês Mikel Dufrenne, Phénoménologie de l’expérience


esthétique, publicada originalmente em 1953, é dividida em dois volumes: I) L’objet
esthétique (1992a) e II) La perception esthétique (1992b). Tal desmembramento reforça as
duas ênfases mais freqüentes nos estudos sobre os fenômenos estéticos e, mais
particularmente, sobre o universo da “experiência estética”: a obra produzida pelo artista e
sua fruição por parte do receptor. Sem a pretensão de avançar, de maneira mais qualificada,
nas discussões sobre Fenomenologia – que implicariam um tratamento filosófico de maior
densidade3 – trazemos para este texto os dois recortes propostos por Dufrenne, que ao
examinar separadamente sujeito e objeto investe, justamente, na articulação entre eles, como
instâncias interdependentes no contexto da experiência estética. Ainda para localizar esse
autor pouco presente nos estudos de Comunicação brasileiros, vale registrar sua proximidade
com Sartre e Merleau-Ponty e suas raízes no pensamento de Alain (Émile Chartier) que foi
seu professor no início de sua formação. Deste último trazemos dois fragmentos, da virada do
século XIX, que podem nos ajudar a compreender de onde vem a visão ontológica de
Dufrenne sobre a experiência estética e sua abertura aos processos de interpretação
vivenciados pelos espectadores. O primeiro, confronta pensamento e percepção: « la plus

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Até porque Dufrenne não se vincula de maneira rigorosa ao pensamento de Husserl.

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grande partie des perceptions qui paraissent immédiates sont en réalité le résultat d’une
éducation dont la mémoire n’a pas gardé les traces, et qu’avant d’apprendre à penser, nous
avons dû apprendre à percevoir »4 (ALAIN, 1900, p. 747 / Ed. digital p. 4). O segundo,
articula objeto e interpretação: « Il vaut mieux conclure que le donné est le même pour tous,
mais que chacun ne sait pas également bien l’organiser et l’interpréter »5 (idem, p. 754 / Ed.
digital p. 11).
Dufrenne tomou os ensinamentos de Alain e avançou na fundamentação de uma
fenomenologia da experiência estética, que extrapola o plano da existência ao adotar a
categoria experiência em suas reflexões sobre os fenômenos estéticos. Daí o relevo que ele dá
à figura do espectador, a quem cabe a interpretação na fruição do objeto, e sua condição ativa
no processo de produção de sentidos. Estes, construídos em uma relação entre cognição e
percepção, entre representação e imaginação. Não que ele despreze a condição do artista, o
exercício da criação; mas fica evidente que entre o criador e o espectador existe uma relação
de troca, de cooperação, organizada a partir da relação de ambos com a obra, então
convertida em objeto estético. Isso já estava bem assentado na obra de 1953:

Et nous pensons qu’une étude exhaustive de l’experiénce esthétique devrait joindre


de toute façon le deux approches. Cars, s'il est vrai que l'art suppose l'iniciative de
l'artiste, il est vrai aussi qu'il attend la consécration d'un public. Et, plus
profondément, l'expérience du créateur et celle du spéctateur ne sont pas sans
communication : car l'artiste se fait spectateur de son œuvre à mesure qu'il la crée,
et le spectateur s'associe à l'artiste dont il reconnaît l'acte sur l'œuvre.6
(DUFRENNE, 1992a, p. 2)

E volta a ser tema quatorze anos depois7: “O espectador não é somente a testemunha
que consagra a obra, ele é, à sua maneira, o executante que a realiza; o objeto estético tem
necessidade do espectador para aparecer.” (DUFRENNE, 1981, p. 82). Esta condição
realizadora do receptor é, para nós, ponto de destaque. Ela merece um item específico em

4
Em tradução livre: “Os sentidos podem nos enganar, portanto, é razoável concluir que, em sua maioria, as
percepções que se apresentam de imediato são na verdade o resultado de uma educação da qual a memória não
reteve os traços, e que antes de aprender a pensar, nós tivemos de aprender a perceber.”
5
Em tradução livre: “Pode-se, então, concluir que o objeto dado é o mesmo para todos, mas que cada um irá
organizá-lo e interpretá-lo de maneira diferente.”
6
Em tradução livre: “Entendemos que um estudo exaustivo da experiência estética deveria articular, de toda
maneira, as duas abordagens. Pois, se é verdade que a arte supõe a iniciativa do artista, é verdade também que
ela espera a consagração de um público. E, mais profundamente, a experiência do criador e a do espectador não
estão sem comunicação: porque o artista se faz espectador de sua obra na medida em que a cria, e o espectador
se associa ao artista do qual reconhece o ato na obra.”
7
O livro Esthétique et Philosophie teve sua primeira edição, em francês, publicada em 1967.

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nosso texto, no qual observamos que a experiência estética se desdobra em experiência


poética. Isso vale mesmo quando o foco é o próprio objeto estético, como nas formulações do
volume I da obra principal de Dufrenne, aqui trabalhada. O fruidor se apropria da obra,
transformando-a em objeto estético, a partir de uma relação de troca, de natureza especular.
Neste sentido poderíamos tomá-lo como um “expectador”, que tem expectativas em relação à
obra, então tomada como objeto, no contexto da experiência estética.
Vale, aqui, distinguir obra e objeto estético. Para Dufrenne (1992a, p. 47),
La distinction entre l'oeuvre et l'objet esthétique ne pourrait être durcie que par une
psychologie qui subordonnerait radicalement l'être de l'objet à la conscience, qui
ferait de l'objet esthétique une simple representation, et de l'oeuvre, par contre, une
chose. Mais l'éxperience esthétique, qui est une expérience perceptive, impose cette
évidence que le perçu n'est pas seulement du représenté, et que l'objet est toujours
dejá constitué: pas conséquent que l'objet esthétique renvoie à l'oeuvre et en est
inséparable.8

Para ele a obra de arte e o objeto estético devem ser pensados de maneira concomitante,
“a obra enquanto ela tem sua finalidade no objeto estético e se compreende por ele”. Embora
reconheça sua importância, Dufrenne não traz o artista para o centro de sua reflexão. Até
porque, para ele, “o artista está sempre presente em sua obra e tanto mais presente, quanto
mais discreto” (1881, p. 55). Assim, ao invés da genialidade do artista, o que ressalta é a
obra, que pode então se converter em objeto estético.
A partir dessa articulação, interessa-nos observar como esse objeto estético se oferece
às dinâmicas de fruição, como se dá sua interação com o espectador. Do objeto estético
deslocamos a atenção à percepção estética, aos processos de recepção e de produção de
sentidos. Com isso, acompanhamos Dufrenne na caracterização da experiência estética como
experiência do espectador. Isso implica, especialmente para quem pensa a partir do universo
da Comunicação, em reconhecer no receptor uma condição ativa e criativa, que lhe permita
enxergar para além das aparências do objeto. Nas palavras de Dufrenne (1992b, p. 421),
« Percevoir n’est pas enregistre passivement des apparences en elles-mêmes insignifiantes,
c’est connaître, c’est-à-dire decouvrir, à l”interieur ou au delá des apparences, un sens

8
Em tradução livre: “A distinção entre a obra e o objeto estético só poderia ser consolidada por uma psicologia
que subordinaria radicalmente o ser do objeto à consciência, que faria do objeto estético uma simples
representação, e da obra, ao contrário, uma coisa. Mas a experiência estética, que é uma experiência perceptiva,
impõe esta evidência de que o percebido não é somente o representado, e que o objeto está sempre já
constituído: consequentemente o objeto estético se refere à obra e dela é inseparável.”

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qu’elles ne livrent qu’à qui sait les déchiffrer »9. A produção de sentidos, que dá também
sustentação aos processos comunicacionais, está na essência da experiência do espectador.
A fenomenologia da experiência estética de Dufrenne é bem analisada por José Carlos
Henriques (2008), em dissertação de Mestrado que merece nossa leitura. Ele percorre as
obras do pensador francês e recupera bem suas principais idéias e ênfases. Como observa o
pesquisador, “a experiência do espectador da obra de arte é o caminho privilegiado de acesso
à compreensão da essência da experiência estética” (p. 54).
Com Dufrenne, fazemos essa transição da experiência estética: do campo do objeto
estético ao campo da percepção estética. Com isso, a produção de sentidos se dá na esfera da
fruição, que não se limita, no entanto, a um estado contemplativo – na perspectiva do
pensamento idealista – do espectador frente à obra. A fruição implica no exercício de
apropriação e de socialização da produção de sentidos, que ganha, então uma dimensão
coletiva e cultural. Em seu livro Esthétique de la communication, Jean Caune também
repassa as idéias de Dufrenne, que privilegiam a experiência estética do ponto de vista do
espectador, e nos adverte:
Il convient de distiguer réception individuelle et reception institucionnelle - celle qui
relève du monde de l’art. Il s’agit d’une distinction entre une perspective
sociologique, et Dufrenne ne manque pas de signaler que l’oeuvre d’art n’est oeuvre
que parce qu’elle est reconnue comme telle, par une instituition ou un public. La
nature de l’expérience esthétique est définie avant tout par la perception esthétique :
celle-si fonde l’objet esthétique en lui faisant droit et en se soumettant à lui.10
(CAUNE, 1997, p. 19)

Esse reconhecimento da obra pelo público e esse caráter “institucional” que ela ganha
nos levam a pensar a experiência estética no contexto social em que ela é vivenciada.
Também, sua natureza coletiva e sua existência estendida no tempo e no espaço. Algumas
pontuações de Monclar Valverde (2008, p. 3) nos ajudam a pensar essas dimensões da
experiência estética e dos processos de percepção: “a recepção é uma prática coletiva, que se
desenvolve segundo rotinas, contextos e formatações que são anteriores à criação de cada

9
Em tradução livre: “Perceber não é registrar passivamente as aparências elas mesmas insignificantes, é
conhecer, isto é descobrir, internamente ou além das aparências, um sentido que elas revelam somente a quem
sabe decifrá-las”.
10
Em tradução livre: “É preciso distinguir recepção individual e recepção institucional - a que diz respeito ao
mundo da arte. Trata-se de uma distinção entre uma perspectiva sociológica, e Dufrenne não deixa de fazer
notar que a obra de arte é obra somente porque é reconhecida como tal, por uma instituição ou um público. A
natureza da experiência estética é definida antes de tudo pela percepção estética: esta fundamenta o objeto
estético reconhecendo-o e submetendo-se a ele”.

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obra particular”; e “a experiência estética se caracteriza pela imersão do espectador numa


região do mundo sensível”. E nessa imersão, os seres humanos compartilham seus repertórios
simbólicos, suas representações, que resultam na construção de um imaginário coletivo. Na
mesma linha de reflexão, Eduardo Duarte (2008, p. 2) nos lembra que “a linguagem é nossa
técnica antropológica de compartilhamento de mundos, de construção de identidades. O uso
racional e afetivo que fazemos da linguagem constrói marcas em nossas subjetividades”.
Caune (1997, p. 21-22) identifica os elementos constitutivos da experiência estética,
dentre os quais dois merecem nosso destaque: a) « L’expérience esthétique n’est pas
seulement expérience du sujet, elle est expérience de la relation à l’autre: elle est
intersubjectivité »11; b) « l’éxperience esthétique, parce qu’elle met en raport
l’intersubjetivité, se réalise dans un monde vécu qui est aussi un ‘horizon d’attentes’, dessiné
par une culture, struturé par une organisation sociale »12. Ou seja, a experiência estética se
dá na sociedade, em dinâmicas de interlocução entre pares, balizada por um conjunto
complexo de “mediações culturais”, como veremos logo adiante. A produção de sentidos
extrapola, assim, uma dimensão sintático-semântica, e se insere em um plano semântico-
pragmático. E nesta perspectiva a produção de sentidos se desdobra em ação. “Do texto à
ação”, movimento bem presente nos ensaios de hermenêutica de Paul Ricœur (1998). Embora
a atenção primeira da hermenêutica se dê em relação à recuperação do ato criador, ela não
deve ficar limitada a esses contornos, próprios da exegese. A esse respeito Ricœur argumenta
que quando a atenção se volta a “uma problemática do texto, da exegese e da filologia, parece
que restringimos a visada, o alcance e o ângulo da visão hermenêutica” (RICŒUR, 1990, p.
135). E a radicalização desse deslocamento “do texto à ação” pode nos levar da hermenêutica
à pragmática.
O deslocamento do objeto estético à percepção estética, como lugar de produção de
sentidos, também está presente no pensamento de John Dewey, que valoriza a experiência do
espectador – dando ênfase à dimensão experencial, bem na linha do pensamento pragmático
– e lembra que o processo de percepção implica em um ato de recriação:

11
Em tradução livre: “A experiência estética não é somente experiência do sujeito, ela é experiência da relação
ao outro: ela é intersubjetividade”.
12
Em tradução livre: “A experiência estética, porque ela põe em contato a intersubjetividade, se realiza em um
mundo vivido que é também um ‘horizonte de expectativas’, desenhado por uma cultura, estruturado por uma
organização social”.

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Para perceber, um espectador precisa criar sua própria experiência. E sua criação tem
de incluir conexões comparáveis àquelas que o produtor original sentiu. Não são as
mesmas, em qualquer sentido literal. Não obstante, com o espectador, assim como
com o artista, tem de haver uma ordenação dos elementos do todo que é, quanto à
forma, ainda que não quanto aos pormenores, a mesma do processo de organização
que o criador da obra experimentou conscientemente. Sem um ato de recriação, o
objeto não será percebido como obra de arte. O artista selecionou, simplificou,
clarificou, abreviou e condensou de acordo com seu desejo. O espectador tem de
percorrer tais operações de acordo com seu ponto de vista próprio e seu próprio
interesse. (DEWEY, 2010, p. 103-104)

Em suas reflexões sobre “a arte como experiência”, Dewey situa o ponto de vista do
espectador no contexto social no qual ele está inserido, marcado por uma determinada
condição situacional e por inter-relações entre as pessoas. E é nesse contexto, em que se dá a
experiência estética, que ele confronta as perspectivas do artista às do espectador e reconhece
que no campo da recepção ocorre uma nova construção estética que é, de certa maneira, uma
nova poética.

3. Da experiência estética à experiência poética

Ao discutirmos a experiência estética no contexto social e priorizarmos a percepção


estética em relação ao objeto estético, trazemos para o centro de nossa discussão a
problemática da recepção, desdobrada em experiência poética. Para tanto, revisitamos a
“Estética da Recepção” proposta pelos pensadores da Escola de Konstanz, por volta dos anos
sessenta do século XX. Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e outros integrantes daquele grupo
procuraram revalorizar a figura do leitor no processo de interpretação das obras literárias,
superando o determinismo marxista e a linearidade formalista.
Na perspectiva daqueles autores, entre obra e espectador ocorre uma relação de
interação, que foge ao controle do artista-escritor. Segundo Jauss,
quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto, revelar-
se-á o hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção ao
propósito com que compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e na
interpretação sucessivas, uma multiplicidade de significados que, de muito,
ultrapassa o horizonte de sua origem. (JAUSS in: LIMA, 2002, p. 102)

Já para Iser, entre autor e leitor ocorre como que um jogo, no qual “o texto é composto
por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a

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imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo” (ISER in: LIMA, 2002, p.107). Para ele, essa dupla
operação de imaginar e interpretar leva o leitor a construir novas formas e sentidos, a partir
de seu contexto, “transgredindo” as referências propostas no texto. Supera-se, assim, o
confronto entre emissor e receptor, seja na perspectiva de que o “público alvo” é manipulado
pelo aparato midiático, ou na busca de justificativas para a perda de informação no processo
comunicacional, como ocorre, por exemplo, nas discussões sobre ruídos e redundâncias,
presentes na chamada Teoria da Informação.
Nesta altura do presente texto é necessário alargarmos de vez nossa reflexão para além
dos fenômenos artísticos. Ela passa a trazer de maneira mais evidente a dimensão
comunicacional de nosso pensamento.
Como escrevemos anteriormente (2011, p. 19), na perspectiva da estética da recepção
o leitor é mais que mero destinatário das ações de comunicação. “Ele projeta na mensagem
que frui as suas expectativas, ‘concretiza’ a obra em um processo de re-criação, legitimando-
a então. Podemos, então, entender esse processo de re-criação como uma nova poética no
contexto da experiência estética”. Mais do que os sentidos produzidos no ato de concepção da
mensagem e nela contidos, próprios do exercício da poética (poiesis), interessa-nos pensar os
sentidos recriados no processo de recepção, na experiência estética (aisthesis). Se
entendermos que no campo da recepção se opera um novo processo criativo, podemos, então,
afirmar que a experiência estética se desdobra em experiência poética.
Ao reler os textos do grupo de Konstanz, em 1986, a pesquisadora portuguesa Maria
Teresa Cruz já observava a superação do isolamento da obra na crítica literária, então
estudada a partir do encontro da obra com o leitor. Ela sugere uma passagem da “poiesis”
para a “aisthesis”, quando se pretende compreender a produção de sentidos. E explica esse
deslocamento teórico-metodológico, como uma “passagem de uma problemática da produção
(...) para uma problemática da recepção e do confronto com a obra, em consonância com o
sentido original da ‘aisthesis’ grega e, mais tarde, da estética kantiana” (CRUZ, 1986, p. 57).
Neste caso, a recepção se configura como algo mais complexo que a mera decodificação da
mensagem. Trata-se de uma reelaboração dos sentidos propostos no texto. Para Cruz,
A recepção seria, portanto, também, de uma certa forma, uma produção, cujas
determinantes se trata de um novo descobrir, já não pelo lado do autor, mas pelo lado
do leitor. Um discurso, pois, que poderíamos tanto apelidar de “estética da recepção”
como de “poética da recepção”. Se num caso temos um pleonasmo, no outro teremos
algo de aparentemente paradoxal, em função do antigo dualismo, tratando-se aqui, na

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realidade, da tentativa de sua dissolução: uma recepção que, no limite, se confunde


com uma produção. Uma obra cujo sentido é tanto produto de quem o codifica como
de quem o descodifica; um sentido, portanto, que já não é dado; uma obra que já não
existe independentemente do sujeito que com ela se confronta. (CRUZ, 1986: 57-58)

Poderíamos, então, propor um desdobramento da experiência estética em experiência


poética. Nela teriam lugar não só os movimentos interpretativos realizados na fruição, mas
também, a transformação dos sentidos ali produzidos em novos discursos, que se oferecem a
novas interpretações, em um processo dialógico e dialético, vivenciadas por “comunidades
interpretativas”, para adotarmos a denominação de Stanley Fish. Este conceito, que recupera
a condição do ser humano como “ser social” e lembra que a cultura é resultado da ação da
coletividade, é central na estética da recepção, juntamente com o de “horizonte de
expectativas”, proposto por Jauss, para explicar a produção de sentidos na relação entre o
leitor e a obra. Este segundo conceito projeta uma relação de interação entre os dois, ao
lembrar que a obra pauta o processo sígnico, propondo um campo temático para o processo
interpretativo. Já o leitor, o “fruidor”, projeta na obra as suas expectativas e interesses, em
uma relação especular, como já tratamos anteriormente.
Nossas articulações entre estética e comunicação podem ser vistas desde a perspectiva
da pragmática, como bem elabora Ângela Marques (2011, p. 2):
Uma reflexão de cunho pragmático que articule as noções de estética e comunicação
deve se preocupar em como pensar as relações que se estabelecem entre os
indivíduos em um dado contexto social, ou seja, como se manifestam as formas
situadas de contato, de diálogo, de negociação e de questionamento das ordens
valorativas e simbólicas que ditam o modo como indivíduos desenvolvem suas ações
e interações, não só em contextos institucionais, mas sobretudo nos múltiplos
contextos das interações cotidianas.

O contexto da recepção no espaço da coletividade não se caracteriza, é verdade, em


lugar de convergências e harmonias, mas de negociações. Os sentidos produzidos não são
fruto de consensos. No contexto social, mesmo entre os pares das “comunidades
interpretativas”, as apropriações são dinâmicas e plurais e os sentidos surgem do debate, em
um processo dialético contínuo, que sempre recoloca as interpretações em discussão. Trata-se
de um processo em situação, onde os sentidos são experenciados. Jeder Janotti Junior (2011,
p. 8) identifica nesse campo da experiência estética “a proposta de uma estética relacional,
que parte da noção de John Dewey de experiência” e que “coloca em perspectiva a

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importância dos aspectos sensoriais das vivências humanas diante dos produtos da
comunicação midiática”.

4. Estética e poética, mediações e midiatização (à guisa de conclusão)

Nossa movimentação entre as esferas da estética e da poética, registrada neste trabalho,


nos leva a pensar na confrontação entre mediações e midiatização, dois conceitos bem
presentes nos debates comunicacionais contemporâneos. Eles são trazidos neste texto de
forma apenas pontual e servem como nossas considerações finais – que não devem ser
tomadas como conclusivas.
A idéia de mediações está bem difundida no pensamento comunicacional latino-
americano. Trata-se de uma chave de leitura dos processos comunicacionais, que se aplica em
diferentes abordagens e recortes e que encontra nos estudos de recepção ambiente bastante
fértil. Desde 1987, quando Jesús Martín-Barbero propôs o deslocamento “dos meios às
mediações”, o termo mediações passou a integrar o vocabulário dos pesquisadores da área.
Entre adeptos e críticos, ele segue presente em nossos discursos e formulações. Nos últimos
dez anos o termo mediações tem sido confrontado, cada vez mais frequentemente, com o
termo midiatização. Para alguns eles são contraditórios; para outros, complementares.
Colocamo-nos neste segundo grupo.
Essa complementaridade fica ainda mais assentada quando considerada a revisão
promovida por Martín-Barbero em relação à sua formulação original “dos meios às
mediações”, que rompia com o midiacentrismo predominante em nossa área de
conhecimento. Quando ele inverte a idéia de “mediações culturais da comunicação” para
“mediações comunicacionais da cultura”, dá-se uma aproximação à discussão sobre a
midiatização da sociedade. A idéia de “mediações comunicativas da cultura” pode ser
articulada à idéia de midiatização da cultura, trazida por pensadores da área da Comunicação.
Entendemos que a sociedade contemporânea vive, sim, sob a lógica da midiatização e
que, nessa relação com a mídia, ela conta com “dispositivos crítico-interpretativos em um
sistema social de resposta”, como nos sugere José Luiz Braga (2006a, p. 309). Mas também,
que esse sistema tem seu balizamento regido por um complexo sistema de mediações

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socioculturais, que alimenta a produção de sentidos que se dá no campo da experiência


estética. Neste novo cenário de midiatização generalizada, híbrido e dinâmico, as
possibilidades de ações colaborativas e de circulação de informações que provoquem
desdobramentos sociais se aceleram e se intensificam. De certa forma, ele dá materialidade à
idéia de mediações comunicacionais da cultura, vez que as dinâmicas culturais se veem
atravessadas pelos sistemas de informação e comunicação
O autor espanhol-colombiano tem sido trazido aos debates deste GT, desde sua
formatação anterior. Em 2007, César Geraldo Guimarães e Bruno Souza Leal já examinavam
o modelo proposto por ele, que articula lógicas de produção e competências de recepção, em
um eixo sincrônico, e matrizes culturais e formatos industriais em um eixo diacrônico. Os
colegas de Minas Gerais ressaltavam o “espelhamento” entre mídia e público presente no
conceito de “mediações”, proposto por Martín-Barbero, como algo decisivo: “entre a
experiência vivida e a experiência mediada, surgia, por assim dizer, uma série de distorções e
refrações, além de zonas de opacidade e até mesmo de indiscernibilidade” (2007, p. 4). Mas,
também, questionavam a “extensão excessivamente ampla e aberta da noção de mediação”,
sugerindo a necessidade de uma melhor delimitação. No ano passado, Jorge Cardoso Filho
propôs a releitura e, mesmo, a radicalização do modelo teótico-metodológico que Martín-
Barbero (2004) publicara em Ofício de Cartógrafo13.
Estabelecendo um diálogo entre as mediações sociais e as qualidades materiais da
situação, a investigação ganha amplitude suficiente para incorporar novos elementos
que venham a ser desenvolvidos ou que participem da dinâmica de conformação da
experiência, bem como oferece possibilidade de tematizar os aspectos singulares que
se configuram na experiência. Transitar pelas mediações e materialidades para
estudar a experiência significa radicalizar as reflexões de Martín-Barbero, tanto a
partir dos elementos presentes na sua tese quanto dos elementos somente anunciados.
Mais importante, significa desenvolver um procedimento analítico de apreensão das
possíveis experiências estéticas. (CARDOSO FILHO, 2011, p. 11)

Ao colocarmos mediações e midiatização como conceitos complementares


pretendemos dar um sentido mais complexo ao universo da experiência estética, desdobrada
em experiência poética. Se os processos de interpretação e produção de sentidos “transitam
por mediações e materialidades”, como nos propõe Cardoso Filho, e se entranham e se
espalham pelas dinâmicas sociais, “não só em contextos institucionais, mas sobretudo nos

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Vale registrar que, antes d’Ofício de Cartógrafo, Martín-Barbero já havia publicado o referido modelo no
prefácio à quinta edição em espanhol de sua obra clássica Dos meios às mediações, lançada em 1999.

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múltiplos contextos das interações cotidianas”, nos dizeres de Marques, é bem viável pensar
em um “sistema de interação social sobre a mídia”, como nos propõe Braga (2006).
As reflexões aqui trazidas sobre experiência estética, desde uma perspectiva
pragmática, que insere a produção de sentidos no contexto social no qual estão os
interlocutores, permitem que utilizemos também na Comunicação os conceitos e
procedimentos de análise já consolidados no campo das Artes. Seria uma boa contribuição à
pesquisa em nossa área de conhecimento se avançássemos nos estudos da comunicação e
experiência estética.

Referências

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