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Poesia concreta e a representação visual de palavras

Introdução
De acordo com a tradição Peirciana de semiótica, um signo é como uma tradução de
um determinado objeto: ele é algo que tem uma relação com seu objeto e com um
interpretante, de modo a formar uma relação do interpretante ao objeto que seja similar a sua
própria relação ao objeto. O interpretante e o objeto também não são estáticos: são objetos
dinâmicos que se influenciam continuamente em constante semiose.
Assim como muito na teoria, de forma geral os signos são categorizados
triádicamente, como índices, ícones e símbolos. O ícone é definido por uma semelhança ao
seu objeto, assim como uma foto, ou um desenho de algo específico, ou um conceito. O
índice é determinado por uma relação real com seu objeto dinâmico, assim como fumaça está
para o fogo ou pegadas na praia estão para pessoas. O símbolo se define em relação ao seu
objeto dinâmico somente no sentido que ele será interpretado dessa forma, e portanto conta
com o contexto cultural em que se insere para se relacionar com o interpretante. Palavras em
si são símbolos, não significando muita coisa para alguém que não saiba o seu significado. As
letras C-Ã-O juntas não significam muito para alguém que não entende português, mas para
falantes, elas apontam em uma direção específica.

Desenvolvimento da pesquisa
No manifesto da poesia concreta, vemos um entendimento e aplicação muito direta
desses conceitos, principalmente do símbolo. Eles descrevem o movimento em si como a
“Tensão de palavras-coisas no espaço-tempo”. Palavras-coisas pois, no cerne da poesia
concreta está a rejeição de palavras como meros verbetes com significados fixos e imutáveis,
mas ir diretamente ao centro das palavras, e as olhar como objetos dinâmicos, essencialmente
signos que portanto estão sujeitos a influência do interpretante, e vice versa.
A poesia concreta também toma uma abordagem gráfica em sua produção, colocando
as palavras simplesmente no espaço, liberando assim a obra de um “sentido de leitura” e
deixando o objeto magnético que é a palavra correr mais livremente. Por meio de sua
desconstrução visual e silábica, a palavra é quase desconectada de seu contexto cultural e
olhada diretamente como uma coleção de letras, marcas, sílabas e sons

Na obra Beba coca cola, de Décio Pignatari, é possível ver claramente esses conceitos à
mostra. A frase “Beba coca cola”, um slogan reconhecível da época, aqui é torcido de várias
Beba coca cola, 1957
Décio pignatari

maneiras diferentes, mostrando tanto sua aliteração como também sua capacidade de novo
significado e portanto de novos interpretantes. Dentro desse espaço é possível ver palavras
que são vistas o tempo todo, bombardeadas no público por meio de publicidade, com novos
olhos.
A mesma coisa é produzida com o som nas gravações de poemas concretos. Em vez
de desconstruir o símbolo da palavra escrita, é desconstruído o da palavra falada, que apesar
de não ser visual, é tão signo quanto a escrita. Na gravação em áudio de Beba coca cola, é
possível observar tanto isso como uma desconstrução da linguagem e dos signos musicais. As
sílabas e notas crescem e diminuem na peça de maneiras surpreendentes, e é explorado o
potencial plástico da voz humana no canto coral.
Assim, a pesquisa buscou achar outras maneiras visuais de representar esses símbolos
e, assim como na poesia concreta, empurrar e desconstruir esse objeto dinâmico que é a
palavra até que seja possível vê-la com outros olhos.
A primeira coisa encontrada foram fonemas: representação visual dos sons produzidos
por falantes da maioria das linguagens, a menor unidade sonora da qual se forma e se
articulam as palavras. É possível achar exemplos de palavras escritas foneticamente nos
verbetes de muitos dicionários, que se utilizam dos símbolos da IPA (International phonetic
association, ou associação fonética internacional). Aqui a palavra “caro” seria dada como
“caro [k′aru]” com os fonemas em colchetes.
Porém, outro caminho se apresentou quando eu entrei em contato com apostilas do
método fônico de alfabetização, onde letras são apresentadas não só com palavras que podem
ser facilmente associadas a elas, mas também com o formato feito pela boca ao pronunciá-las.
APOSTILA DE ATIVIDADES E EXERCÍCIOS MÉTODO FÔNICO DE ALFABETIZAÇÃO
Disponível em: https://www.espacoeducar.net/2009/02/apostila-de-exercicios-metodo-fonico.html
Acesso em: 14/12/2022

Em suas páginas de exercícios é possível também ver palavras inteiras “escritas” somente
com as fotos da boca, que muitas vezes são rearranjadas para formar outras palavras. Um dos
aspectos interessantes nesse método é o fato de que é possível ensinar a pronúncia perfeita de
uma palavra sem ao menos ensinar o significado dela. É possível aprender a falar algo, mas
entender esse conceito é uma coisa completamente diferente. Tal qual a poesia concreta, isso
pode ser utilizado para desconstruir a palavra no espaço-tempo e tensionar seu suposto
significado com a coleção de sons e imagens que realmente a compõem.
Burocracia, 1978
Anna Bella Geiger
Óleo e acílica sobre tela
100,00 cm x 80,00 cm
Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo

A obra Burocracia de Anna Bella Geiger explora muitos desses mesmos conceitos,
colocando a palavra “Burocracia” em tensão com o método infantil de alfabetização, e
desnudando o fato de que aprender esse tipo de código não ajuda nada em lidar com a
burocracia em si. Além disso a obra pode ser lida também pela lente do analfabetismo
funcional, que justamente se mostra mais problemático em processos burocráticos e
contratuais, onde só conseguir ler e pronunciar uma palavra não se traduz necessariamente ao
entendimento dela, signos levam a interpretantes diferentes dependendo do nível de
letramento da pessoa entrando em contato com ele.
Conclusão
Assim, meu projeto consiste em uma série de três telas, que juntas formam a palavra
“amo” somente com os formatos feitos pela boca ao pronunciá-la. As formas serão pintadas
da forma mais simples e sólida possível, e serão preenchidas de cor sólida para se contrastar
com o fundo. “amo” é uma palavra que em sua pronúncia se abre, fecha e abre de novo, e
esse movimento traz um elemento estético interessante na obra, e nesse encaixe da
palavra-coisa no espaço tempo. Fora isso, seguindo o conceito de olhar para a palavra como
um objeto dinâmico, a escolha de “amo” vem do fato de que é uma palavra muito usada
porém que nunca tem um significado necessariamente fixo: Depende do contexto, e portanto
ela consegue gerar muitos interpretantes diferentes, fazendo com que a desconstrução dela
em três partes pequenas e separadas gere ainda mais tensões e mais espaços de pensamento e
discussão.

Bibliografia
● PEIRCE, Charles Sanders, 1994. The electronic edition of the collected Papers of Charles
Sanders Peirce. Utah:Folio Corporation [Vol. I-VI edited by Charles Hartshorne e Paul
Weiss; vol. VII-VIII edited by Artur W.
● GEIGER, A. B. Burocracia, 1978. Disponível em:
<https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra33422/burocracia>. Acesso em: 14 dez.
2022
● CAMPOS, Augusto De; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo De. Teoria da
poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 2. ed. São Paulo: Livraria
duas cidades, 1975.
● ESPAÇO EDUCAR. APOSTILA DE ATIVIDADES E EXERCÍCIOS MÉTODO
FÔNICO DE ALFABETIZAÇÃO. Disponível em:
https://www.espacoeducar.net/2009/02/apostilade-exercicios-metodo-fonico.html.
Acesso em: 14 dez. 2022.
● LIEB, Irwin C.. Charles S. Peirce's letters to Lady Welby. 1. ed. New Haven,
Connecticut: Whitlock's INC., 1953.

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