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GILLIAN ROSE
A questão_____________________________
implicações dessa compreensão de que a
geografia é, também, uma forma de
lugar comum ouvir o veredito proferido de que produzir obras que poderiam se equiparar com
a geografia é uma “disciplina visual” (vejam estudos recentes, tais como Visualising Theory
exemplos em GREGORY 1994; SMITH 2000; (1994) de Lucien Taylor, Rethinking Visual
SUI, 2000). Não há dúvida de que esses Anthropology (1997) de Marcus Banks e
geógrafos estão certos nesta afirmação; com Howard Murphy, Raw Histories (2001) de
caráter particular entre as ciências sociais por (2001) de Sarah Pink ou Picturing Culture
ter sempre contado, e continuar contando, com (2000) de Jay Ruby, esses geógrafos que
para construir seus saberes. Entretanto, se, por (ocularcentrism) da geografia o fazem tão
pelo visual dentro da antropologia, tanto como outras articulações sensoriais do conhecimento,
um objeto de estudo como também um meio de mais comumente a auditiva. Obviamente, este
sobre culturas, por outro lado, os geógrafos relevantes. Todavia, parece supor que, uma vez
parecem bem menos preocupados em buscar as que nós, como geógrafos em uma “disciplina
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visual”, já entendemos “o visual”, é importante conhecimentos estes – e, dessa forma,
que analisemos as geografias de outros sentidos. visualidades – que são sempre carregados pelas
Esta suposição está certamente equivocada. Na relações de poder. Hal Foster (1988: ix) usa o
prática, com a exceção do estudo de David termo “visualidade” para referir-se a “como
Matless (1996) sobre a “cultura visual e vemos, como somos capazes, autorizados, ou
cidadania geográfica”, o “visual” não tem sido forçados a ver, e como entendemos nisso a
analisado de maneira consistente em relação à capacidade de se ver ou não”. As visualidades
geografia como uma disciplina acadêmica¹. Há, aplicadas pela produção do conhecimento
certamente, obras importantes sobre as histórias geográfico nunca é neutra. Elas têm seus
da cartografia, pinturas topográficas e fotografia próprios focos, zoom, seus destaques, suas
colonial (vejam exemplos em COSGROVE, limitações do olhar e sua cegueira; estes
1998; HARLEY, 1992; PINNEY, 1997; RYAN, aspectos são centrais tanto para a geografia
1997; SCHWARTZ, 1996; STAFFORD, como disciplina quanto para seus sujeitos –
1984), mas a relevância dessas obras para a tanto aqueles que ela estuda como aqueles que a
reflexão sobre geografias acadêmicas no século estudam.
20 – quanto mais no século 21 – não está, até A importância de certos tipos de
onde eu sei, sendo explorada. Nós visualidade para os modos como o mundo é
simplesmente não sabemos de que maneira a visto já tem sido tratada pela disciplina. Muito
geografia é uma disciplina visual. da “nova” geografia cultural segue o argumento
A forma mais óbvia de caracterizar a de Gordon Fyfe e John Law (1988: 1) segundo
geografia como uma disciplina visual, suponho, o qual “[Uma] imagem nunca é somente uma
seria destacar a infinidade de recursos visuais ilustração... é o lugar para a construção e
usados por geógrafos quando estão produzindo, representação da diferença social”. Fyfe e Law
interpretando e disseminando o trabalho (1988: 1) aprofundaram sobre a necessidade de
geográfico: todos aqueles mapas, vídeos, se considerar criticamente os efeitos das
esboços, fotografias, slides, diagramas, gráficos imagens nesses termos: “Entender uma
e tudo o mais que preenche os livros-textos, visualização é... investigar... a atividade social
conferências, seminários, apresentações em que ela faz. É notar seus princípios de inclusão e
congressos e – em grau muito menor – artigos e exclusão, detectar os papéis que ela torna
livros publicados (vejam observações de acessíveis, entender a forma na qual eles são
MARTIN, 2000 sobre o tema). Porém, números distribuídos e decodificar as hierarquias e
absolutos não significam muito. A questão mais diferenças que ela naturaliza”.
importante, penso eu, são as formas em que Essa pauta não é novidade para muitos
determinadas visualidades estruturam certos geógrafos culturais, nem para muitos geógrafos
tipos de conhecimentos geográficos, radicais. Neste ensaio, contudo, quero reler
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Fyfe e Law com a intenção de deslocar o uma resposta crítica deveria ter. Quero discutir
argumento deles de como as imagens “em si” que questões de poder e de desempenho devem
representam “hierarquias e diferenças”. Ao invés ser centrais para se pensar as visualidades da
disso, quero considerar as formas nas quais os geografia e, assim, também, deveriam ser as
geógrafos, seu público e suas imagens também questões sobre o espaço.
interagem no sentido de produzir hierarquias e Para sustentar o argumento, discutirei
diferenças. Quando geógrafos usam imagens no um aspecto da prática acadêmica na geografia
auditório, livro ou site, isso também estabelece que me parece ser surpreendentemente
papéis e posições, hierarquias e diferenças no uniforme. Na realidade, seja qual for o tipo de
âmbito acadêmico. Produz diferença, por geografia feita, sempre se nota o uso de slides
exemplo, em torno do que pode ou não ser no ensino e nas apresentações em congressos.
visto, do que permanece invisível e o que é Meus comentários serão baseados em minhas
tornado sombra por estratégias específicas de próprias experiências nos últimos quinze anos
apresentação, e em torno de quem pode não ensinando em universidades na Escócia e
interpretar o visível, e de que maneira. São esses Inglaterra, em apresentações de congressos e
tipos de visualidades disciplinares que mais me seminários às quais assisti, em sua maioria no
preocupam aqui, especialmente pela pouca Reino Unido e na América do Norte (embora
atenção recebida dos geógrafos interessados no eu tenha assistido a algumas na Europa
visual. Ocidental também), e em conversas com
Ao debater o que acabo de intitular colegas sobre slides. A partir dessa experiência,
“visualidades disciplinares”, quero reconhecer o uso de slides parece esmagadoramente
que há mais de uma visualidade que estrutura os uniforme: o palestrante se posiciona diante de
conhecimentos geográficos, uma vez que há, seu público, projetam-se os slides em uma sala
obviamente, diferentes tipos de conhecimentos, escurecida, na parede ou tela também de frente
cada qual com diferentes formas de se para ao público, e o palestrante fala sobre eles.
reivindicar – e visualizar – uma relação com o Este cenário contém os três elementos cuja
mundo. Todavia, neste pequeno ensaio, não interseção, como argumentei anteriormente
posso ir além de reconhecer essa diversidade. com maior profundidade (ROSE, 1997, 2000,
Não é possível detalhar exatamente como a 2001), gera um efeito visual: a imagem, seu
geografia é uma disciplina visual, pois este público e seu espaço de exibição. Não vou,
questionamento requer um trabalho empírico portanto, dar atenção para nenhuma exibição de
cuidadoso que possa reconhecer as diversas slide em particular. Em vez disso, quero
modalidades incorporadas pelo visual na considerar os efeitos do uso dos slides em geral
disciplina. Ao invés disso, quero, aqui, apenas – sua “slideness”, se preferir. O que acontece
delinear alguns dos parâmetros teóricos que quando as luzes são apagadas, o projetor ao
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fundo começa a zumbir e as imagens radiantes mostrado como slide não é salientado. Contudo
aparecem? O que mais é produzido quando a existem, claro, grandes diferenças entre o
exibição dos slides começa? fotografado e sua imagem correspondente no
slide. Obviamente, estar na Antártica, em uma
galeria de arte ou na rua não é o mesmo que ver
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de contextualização faz com que a plateia tenha problematizado também. Todavia, o uso dos
um olhar fixo voltado para eles. Parafraseando slides traça uma distinção fundamental entre o
Norman Bryson (1991: 71), “O poder do [slide] geógrafo que expõe os slides e as pessoas que
está lá, nos milhares de olhares capturados por os assistem. Isso porque a mais importante
sua superfície, e o giro resultante, e a mudança, distinção entre um slide e o que ele ilustra é
o redirecionamento do fluxo discursivo”. menos visual, penso eu, do que relacional. Isto
Pensem no modo como, quando um slide ou um é, tem menos a ver com tamanho, cor, inércia,
retroprojetor é projetado em uma palestra ou enquadramento etc, e muito mais a ver com a
seminário, o interlocutor com frequência parece diferença de relação entre o geógrafo e a
sentir-se compelido a virar-se em direção à tela referência do slide e entre o geógrafo e o slide.
e falar com o projetor ao invés de falar com a A relação entre o geógrafo e a inserção do slide
sua plateia. Ou como, para alguns palestrantes, é em uma palestra ou conferência não é –
um alívio quando os slides são apresentados e a usualmente – a mesma que a existente entre o
atenção do público é desviada para a tela. geógrafo e o que o slide mostra, seja o gelo da
Talvez seja por isso que, apesar de todo Antártica, um quadro em uma galeria ou uma
trabalho recente sobre representação, rua. Nesses últimos lugares, a relação entre o
textualidade etc, a diferença que existe entre o geógrafo e o referente fotografado pode assumir
que é mostrado como um slide e sua imagem todos os tipos de formas e não apenas aquelas
referente seja tão raramente explorada. As que tornam o geógrafo inseguro do que sabe:
qualidades formais dos slides desencorajam isso. destemido, perplexo, intrigado, ansioso,
Ao contrário, deslumbrados, somos convidados curioso. Por contraste, no âmbito acadêmico,
a crer no que eles exibem... slides usualmente funcionam para conferir
autoridade ao seu expositor. Uma vez que a
especificidade do slide não é reconhecida e
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mediação entre a plateia e a imagem para abordagens contemporâneas para a história da
explicá-la ao público e a aparente verdade da arte de comparação entre imagens; as
imagem fotográfica produz um efeito-verdade comparações eram alcançadas mais efetivamente
nas palavras do geógrafo também. Talvez seja ao se mostrarem duas imagens lado a lado.
esta também a razão pela qual nós, geógrafos, Nelson, portanto, associa a lógica do uso de
achamos os slides persuasivos: eles confirmam a dois projetores às metodologias fundacionais da
verdade de nossas palavras. história da arte, e seria instrutivo se os
Naturalmente, diversas plateias, ao geógrafos fizessem o mesmo para a nossa
assistir à performance do geógrafo, reagirão às disciplina. Deveríamos questionar se o uso de
apresentações de certos slides diferentemente. um único projetor de slides é hegemônico na
Eu estive em muitas apresentações nas quais geografia porque reitera a visão do homem-
alguém do público oferece uma interpretação de “observador” ("seeing-man"), descrito por Mary
uma imagem mostrada que difere da Louise Pratt (1992: 7): “aquele cujos olhos
interpretação do palestrante. Isso significa que, imperiais passivamente observam com cuidado e
ao mostrar slides ou projeções, se abre o tomam posse”. Se tais homens ("seeing-men")
processo interpretativo de alguma forma? fossem os descobridores fundadores da
Certamente, e eu repito essa questão a seguir. disciplina e seus panoramas fossem os campos
Mesmo assim, expor slides é um de fundação da geografia; se os primeiros
instrumento poderoso e seu efeito-verdade é encontros da Sociedade Real Geográfica (RGS
acentuado por outro aspecto do "usar" slides – Royal Geographical Society) em Londres
dos geógrafos: o número de projetores de slides incluíssem regularmente exibições de projetores
usados. Eu me lembro de minha surpresa a iluminados por lanterna e filmes; se as
primeira vez que fui a um seminário ministrado sociedades geográficas contemporâneas
por um historiador da arte e dois projetores de conhecidas também frequentemente
slides foram ligados e usados juntos, às vezes de oferecessem slides aos palestrantes (ou talvez
modo consecutivo e às vezes em paralelo. Até slides com palestrantes); se a tradição do
aquele momento, eu supunha que usar apenas instrutor de trabalho de campo continuasse
um projetor era simplesmente como o processo enquanto estudantes e participantes de
funcionava – não o era, aprendi então. O ensaio congressos acadêmicos olhassem através das
de Nelson (2000) sobre o uso de slides na janelas do instrutor para uma paisagem e
história da arte é útil de novo nesse contexto. enquanto o conferencista explicasse a eles o que
Ele aponta que o uso de dois projetores foi eles veem; mesmo que textos teóricos chave
estabelecido no âmbito acadêmico da história escritos ainda em 1989 possam ser criticados
da arte por volta de 1900, e argumenta que esta por suas inclinações voyeurs (DEUTSCHE
prática foi encorajada pela importância de várias 1996) –; então talvez o único projetor esteja, de
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fato, atuando com o palestrante, um ato duplo conferência”) e, consequentemente,
fundamental à epistemologia da disciplina. reproduzem esse contexto em sua performance.
Apesar de outras tradições de trabalho de Assistir a um video clip de um filme
campo (vejam o exemplo de Merrifield, 1995), a hollywoodiano enquanto se está sentado em um
única visão do projetor e a voz solitária do auditório é muito diferente de assisti-lo em um
palestrante atuam conjuntamente para cinema; ver um anúncio em um informativo não
reproduzir a visão do geógrafo como é o mesmo que encontrá-lo em uma revista.
testemunha do real. O estudo de Jonathan Crary (1999)
sobre o histórico surgimento da ideia de
“prestar atenção” pode ser relevante aqui. Crary
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perguntar em uma galeria de arte ou, por performance lhe conferem como testemunha. A
exemplo, em uma loja de posters –, não seria verdade do slide, a visão do projetor e a recusa
tão apropriado em um seminário. Em vez disso, pelo geógrafo em problematizar um ou outro
eu perguntaria o que a imagem ou cena exibida colaboram para posicionar o geógrafo e sua
por um slide significa: o que ela testemunha? E visão como autoritários, demandando atenção.
minha resposta não seria que ela testemunha o Se esta análise está de alguma forma
desejo do geógrafo pela verdade e autoridade, correta, a pergunta daqueles interessados em
mas que o slide de uma geleira mostra algo estabelecer um ensino mais participativo e
sobre o fluxo do gelo, ou o slide de uma rua democrático, disseminando métodos, seria:
mostra alguma coisa sobre o espaço público. O então o que fazemos? Eu penso que a
modo de ver slides acadêmicos em espaços especificidade dos slides precisa ser
acadêmicos incita a descontextualização radical reconhecida e discutida: sua atração, sua
do slide e a invisibilidade das práticas de descontextualização, sua referencialidade. Assim
apresentação do geógrafo. como nos livros-textos (JOHNSTON 2000),
seu processo de construção necessita ser aberto.
E aqui é importante notar que esses espaços de
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não por suas próprias reflexões cuidadosamente estudantes, aparentemente, e que produz não o
consideradas em suas práticas, mas pelas mesmo efeito da autoridade do testemunho,
tecnologias de visualização propriamente ditas. como descrevi acima, mas, ao contrário disso,
Projetores que derretem slides, ou que agarram algo, de preferência, mais diletante.
slides ou, misteriosamente, os exibem na ordem Talvez, então, o uso crítico dos slides já
equivocada, leitores de vídeo com a seleção de se faça presente na prática acadêmica
faixas sem controle, projetores com uma contemporânea em formas que as minhas
ventoinha que faz um barulho mais alto que a considerações aqui não deram a devida atenção.
sua voz, essas são as razões pelas quais cada Nesse caso, apenas posso reiterar meu ponto de
aluno que faz uma apresentação pela primeira partida e também o principal: que os geógrafos
vez é advertido por seu orientador para verificar críticos precisam explorar as visualidades da
os recursos audiovisuais antes de ter de falar. disciplina com mais atenção. Há uma
Além do mais, a plateia pode não ser sempre necessidade de uma pesquisa cuidadosa e
persuadida pela autoridade do palestrante. Há empírica que investigue a dinâmica da imagem,
aqueles estudantes que recusam a demanda de do público e do espaço de maneira atenta às
atenção exercida pelo auditório e aparecem relações de poder inerentes a todos eles.
apenas para sentar-se na fileira de trás e
adormecem após cinco minutos. Há alunos que
podem, talvez apenas momentaneamente, Agradecimentos________________________
exercer mais autoridade que o palestrante. Há
públicos acadêmicos em que o objetivo maior Gostaria de agradecer a Neil Brenner,
parece ser questionar a autoridade do Nigel Clark, Catherine Nash e Michael Pryke
interlocutor. E, então, existe o que deveria ser por suas observações muito úteis em uma versão
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Contudo, é interessante que isso parece não acontecer no MCKENDRICK, J. H. and BOWDEN, A. Something for
contexto do ensino. Este é um exemplo de especificidade everyone? An evaluation of the use of audio-visual resources in
necessária para se explorar as visualidades na geografia acadêmica. geographical learning in the UK. Journal of Geography in Higher
4. Vejam Delph-Janiurek (1999) sobre vozes acadêmicas.
Education 23:9–19, 1994.
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