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COLEÇÃO PERSPECTIVAS DO MUNDO

1. A Arte de Amar — ERICH FROMM. Tradução de MILTON AMADO.


2. O Encontro do Amor e do Conhecimento — MARTIN D'ARCY S.J.
Tradução de ESTHER DE CARVALHO.
3. Caminhos para Deus — JACQUES MARITAIN. Tradução de NEIL
R. DA SILVA.
4. Mística: Cristã e Budista — D. T. SuzuKI. Tradução de DAVID
JARDIM.
A ARTE DE AMAR
COLEÇÃO PERSPECTIVAS DO MUNDO
Planejada e Dirigida por RUTH NANDA ANSTEN
ERIC }1 FBOli3I

CONSELHO EDITORIAL
Niels Bohr, Richard Courant, Hu Shih, Ernest Jackh, Robert M.
Maclver, Jacques Maritaim J. Robert Oppenheimer, Radhakrishnan,
Alexander Sacha, L I. Rabi
A
1. ARTE
DE AMAR

TRADUÇÃO DE
MILTON AMADO

LIVRARIA ITATIAIA EDITORA LIMITADA EDITORA o~ LIMITADA


BELO HORIZONTE: Rua- d a Bahia, 902 - Fones: 222-8630 e 221-0832
Av. Afonso Pena, 766 - Fones: 222-6140 e 224-5151 BELO HORIZONTE
TITULO DO ORIGINAL AMERICANO:

THE ART OF LOVING

Com éste livro de Erich Fromm,


editado nos Estados Unidos por Harper
& Brothers e, na Grã Bretanha, pela
Casa George Allen & Unwin Ltd., como
parte da coleção "World Perspectives",
iniciamos a publicação, em língua por-
tuguesa, de uma coleção correspondente
— PERSPECTIVAS DO MUNDO. A
planejadora e diretora dessa coleção,
Dra. Ruth Nanda Anshen, expõe, nas
páginas introdutórias, o espirito que a
orienta e as finalidades a que ela visa.

OS EDITORES

Direitos de propriedade literária da presente tradução adquirid 3, p ela


EDITARA ITATIAIA LIMITADA, de Belo Horizonte, -

IMPRESSO NO BRASIL
Pfl/NTE0 8.211,
O que esta Coleção significa

P
ERSPECTIVAS DO MUNDO é um plano de apre-
sentar livros sucintos sôbre setores variados, de
autoria de pensadores contemporâneos dos mais
responsáveis. Seu objetivo é revelar novas tendências
básicas da civilização moderna, interpretar as fôrças
criadoras que agem no Oriente assim como no Ocidente,
e apontar a uma nova consciência aquilo que possa con-
tribuir para mais profunda compreensão das relações
mútuas entre o homem e .o universo, o indivíduo e a
sociedade, e dos valores de que todos os povos compar-
tilham. PERSPECTIVAS DO MUNDO representa 'a
comunidade mundial de idéias num universo de debate,
acentuando o princípio da unidade na humanidade, da
permanência dentro da mutação.
Desenvolvimentos recentes em muitos campos do
pensamento abriram possibilidades insuspeitadas de mais
profunda compreensão da situação do homem e de mais
adequada apreciação dos valores e aspirações humanos.
Tais possibilidades, ainda que produto de estudos pura-
mente especializados em setores restritos, exigem, para
ser analisadas e sintetizadas, nova estrutura, novo en-
quadramento, em que possam ser exploradas, enriqueci-
das e levadas avante em todos os seus aspectos, para pro-
veito do homem e da sociedade. Tal estrutura e tal

A ARTE DE AMAR 9
enquadramento, PERSPECTIVAS DO MUNDO procura a inflexível necessidade de descobrir um principio de
defini-los no esperançoso rumo de uma doutrina do diferenciação, e contudo de relação, bastante lúcido para
homem. justificar e purificar o conhecimento científico, filosófico
Pretende ainda esta Coleção : vencer uma enfermi- e qualquer outro, ao mesmo tempo que aceitando sua
dade principal . da humanidade, a saber, os efeitos da mútua interdependência. Esta é a crise da consciência
atomização do conhecimento produzida pela acabrunhante que se articula através da crise da ciência. É o novo
acumulação de fatos que a ciência criou; esclarecer e despertar.
sintetizar idéias por meio da profunda fertilização dos Esta Coleção se dedica a reconhecer que tôdas as
espíritos; mostrar, de diversos e importantes pontos de grandes mudanças são precedidas de vigorosa reavaliação
vista, a correlação de idéias, fatos e valores que estão em e reorganização intelectuais. Nossos autores estão cons-
perpétuo jôgo mútuo; demonstrar o caráter, a conexão, cientes de que o pecado da arrogância pode ser evitado
a lógica e a operação do organismo inteiro da realidade, mostrando-se que o próprio processo criador não é uma
mostrando ao mesmo tempo a persistente interrelação atividade livre, se por livre entendermos o arbitrário ou
dos processos da mente humana e, nos interstícios do o não relacionado com a lei cósmica. De fato, o processo
conhecimento, revelar a síntese interior e a unidade or- criador na mente humana, o processo de desenvolvimento
gânica da própria vida. na natureza orgânica e as leis básicas do reino inorgâ-
PERSPECTIVAS DO MUNDO sustenta a tese de nico podem ser apenas expressões variadas de um pro-
que, apesar da diferença e diversidade das disciplinas cesso formativo universal. Assim, PERSPECTIVAS DO
representadas, existe forte acôrdo comum entre seus au- MUNDO espera mostrar que, embora o presente período
tores, no que diz respeito à esmagadora necessidade de apocalíptico seja de tensões excepcionais, também existe
contrabalançar a multidão de incitantes atividades cientí- em ação um movimento excepcional no rumo de uma
ficas e investigações de fenômenos objetivos, da física à unidade compensadora que não possa violar o derradeiro
metafísica, da história e da biologia, relacionando-as com poder moral que embebe o universo, êsse mesmo poder
experiências significativas. A fim de oferecer êsse equi- de que todos os esforços humanos devem, afinal, depen-
líbrio, é necessário estimular a compreensão do fato bá- der. Dêsse modo, podemos chegar a compreender que
sico de que, afinal, a personalidade humana individual existe uma independência de crescimento espiritual e
deve atar tôdas as pontas sôltas em um conjunto orgâ- mental que, embora condicionada por circunstâncias,
nico, deve relacionar-se consigo mesma, com a humani- nunca é pelas circunstâncias determinada. De modo
dade e com a sociedade, ao mesmo tempo que aprofunda idêntico, a grande pletora de conhecimentos humanos pode
e incentiva sua comunhão com o universo. Alicerçar êsse ser correlacionada com a penetração na natureza da na-
espírito e gravá-lo na vida espiritual e intelectual da tureza humana, ao ser sincronizada com a ampla e pro-
humanidade, nos que pensam como nos que atuam, é em funda escala do pensamento e da experiência humanos.
verdade enorme e desafiante tarefa, que não pode ser
Realmente, o que falta não é o conhecimento da estrutura
deixada totalmente à ciência natural, de um lado, nem à
do universo, mas a consciência da unicidade qualitativa
religião organizada, do outro. Confronta-nos, realmente,
da vida humana.

10 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 11


E, por fim, esta Coleção sustenta a tese de que o
homem se acha em processo de desenvolver uma nova
compreensão que, apesar de seu aparente cativeiro espi-
ritual e moral, pode vir a erguer a raça humana acima e
além do mêdo, da brutalidade, da ignorância e do isola-
mento que hoje a afligem. A essa nascente consciência,
a esse conceito do homem nascido de uma viçosa 1ND ICE
visão da realidade é que PERSPECTIVAS DO MUNDO
é dedicada.
O que esta coleção significa 9
Nova York, 1958. Preâmbulo • 15
I É o amor uma arte? 19
RUTH NANDA ANSHEN II A teoria do amor 27
1 — Amor resposta ao problema da existên-
cia humana 26
2 — Amor entre pais e filhos 63
3 — Dos objetos do amor 71
III O amor e sua desintegração na Sociedade
Ocidental Contemporânea 111
IV A Prática do Amor 139

12 ERICH FROMM
Preâmbulo

LEITURA dêste livro seria decepcionante


experiência para quem esperasse fácil
instrução sôbre a arte de amar. Êste
livro, ao contrário, quer mostrar que o amor não
é um sentimento em que qualquer um se possa
comprazer, sem levar em conta o nível de matu-
ridade que alcançou. Deseja convencer o leitor
de que tôdas as suas tentativas de amar estão
fadadas a falhar se êle não procurar, com o
máximo de atividade, desenvolver sua persona-
lidade total, de modo a conseguir uma orientação
produtiva; convencê-lo de que a satisfação no
amor individual não pode ser atingida sem a
capacidade de amar ao próximo, sem verdadeira
humildade, coragem, fé e disciplina. Numa cul-
tura em que tais qualidades são raras, o alcance
da capacidade de amar deve permanecer uma
conquista rara. Ou... qualquer um pode per-
guntar a si mesmo quantas pessoas tem conhe-
cido que verdadeiramente amam.
Contudo, a dificuldade da tarefa não deve
ser razão para que nos abstenhamos de tentar

A ARTE DE AMAR 15
conhecer-lhe os óbices, assim como as condições
de sua realização, para evitar complicações des-
necessárias, tentei tratar do problema em lin-
guagem que, tanto quanto possível, não é técnica.
Pela mesma razão, também reduzi ao mínimo as
referências à literatura sôbre o amor.
Para outro problema não encontrei solução
completamente satisfatória: foi o de evitar re-
petição de idéias expressas em anteriores livros
meus. O leitor familiarizado, especialmente, com Quem nada conhece, nada anut.
Evasão da Liberdade, O Homem para Si Mesmo Quem nada pode fazer, nada compreende.
e A Sociedade Sadia encontrará neste livro mui- Quem nada compreende, nada vale. Mas
tas idéias manifestadas nessas obras precedentes. quem compreende também ama, observa,
vê. . . Quanto mais conhecimento houver
Contudo, A Arte de Amar de modo algum é prin-
inerente numa coisa} tanto maior o
cipalmente uma recapitulação. Apresenta muitas
amor... Aquele que imagina que todos
idéias além das prèviamente expressas e, muito
os frutos amadurecem ao mesmo tempo,
naturalmente, mesmo idéias antigas às vêzes ga- como as cerejas, nada sabe a respeito
nham perspectivas novas pelo fato de se centra- das uvas.
lizarem tôdas em tôrno de um tópico, o da arte
de amar. PARACELSO

16 ERICH FROMM
É o Amor uma Arte?

O AMOR uma arte? Se o é, exige conhe-


cimento e esf Orço. Ou será o amor uma
sensação agradável, que se experimente
por acaso, algo em que se "cái" quando se tem
sorte? Êste livrinho baseia-se na primeira hipó-
tese, embora indubitàvelmente a maioria das pes-
soas, hoje, acredite na segunda.
Não é que se pense que o amor não é im-
portante. Todos sentem fome dêle ; assistem a
infindável número de filmes sôbre história de
amor, felizes e infelizes, ouvem centenas de so-
vadas canções que falam de amor; e, contudo,
quase ninguém pensa haver alguma coisa a res-
peito do amor que necessite ser aprendida.
Essa atitude peculiar baseia-se em várias
premissas que, isoladas ou combinadas, tendem
a sustentá-la. A maioria das pessoas vê o pro-
blema do amor, antes de tudo, como o de ser
amado, em lugar do de amar, da capacidade de
alguém para amar. Assim, para essas pessoas o
A ARTE DE AMAR 19
problema é como serem amadas, como serem matrimonial, ou sem o auxílio desses intermediá-
amáveis. Na busca desse alvo, seguem diversos rios; consumava-se na base de considerações so-
caminhos. Um deles, especialmente utilizado ciais e julgava-se que o amor se desenvolveria
pelos homens, é ter sucesso, ter todo o poder e depois de efetuado o casamento. Nas últimas
riqueza que a sua posição social permitir. Ou- poucas gerações, o conceito de amor romântico
tro, especialmente utilizado pelas mulheres, é tornou-se quase universal no mundo do Ocidente.
tornarem-se atraentes, pelo cuidado com o corpo, Nos Estados Unidos, ainda que considerações de
o vestuário, etc. Outros modos de se fazer al- natureza convencional não estejam de todo au-
guém atraente, usados tanto por homens como sentes, vasto número das pessoas anda à busca
por mulheres, são o desenvolvimento de maneiras do "amor romântico", da experiência pessoal de
agradáveis, conversação interessante, a prestati- amor que acabe por levar ao matrimônio. Êsse
vidade, a modéstia, a inofensividade. Muitas das novo conceito de liberdade no amor deve ter
maneiras de uma pessoa se tornar amável são as acentuado grandemente a importância do objeto
mesmas empregadas para obter sucesso, "para em contraste com a importância da função.
conquistar amigos e influenciar os outros". Na Relaciona-se estreitamente com êsse fator
realidade, o que a maioria dos de nossa cultura outro aspecto característico da cultura contem-
considera ser amável é, essencialmente, uma mis- porânea. Tôda a nossa cultura se baseia no ape-
tura de ser popular e possuir atração sexual. tite da compra, na idéia de uma troca mútua-
Segunda premissa por trás dessa atitude de mente favorável. A felicidade do homem moder-
que nada há a aprender a respeito do amor é a no consiste na sensação de olhar as vitrinas das
idéia de que o problema do amor é o problema lojas e em comprar tudo quanto esteja em con-
de um objeto e não o de uma faculdade. Pensa-se dições de comprar, quer a dinheiro, quer a prazo.
que amar é simples, mas que é difícil encontrar Éle (ou ela) encara as pessoas de maneira seme-
o objeto certo a amar — ou pelo qual ser amado. lhante. Para o homem, uma mulher atraente (e,
Tal atitude tem muitas razões enraizadas no de- para a mulher, um homem atraente), eis o lucro
senvolvimento da sociedade moderna. Uma des- a obter. "Atraente" vem a significar, normal-
sas razões é a grande mudança ocorrida no século mente, um bom fardo de qualidades que sejam
XX com relação à escolha de um "objeto de populares e muito procuradas no mercado da
amor". Na época vitoriana, como em muitas personalidade. O que torna especificamente unia
culturas tradicionais, não era o amor principal- pessoa atraente depende da moda da época, tanto
mente uma experiência pessoal espontânea que física como mentalmente. Na década de 1920,
a seguir pudesse levar ao casamento. Ao con-
uma moça que bebesse e fumasse, fôsse decidida
trário, o casamento se contratava por convenção
e sensual, era atraente; hoje, a moda pede mais
-- ou pelas famílias respectivas, ou por um agente domesticidade e recato. No fim do século XIX

20 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 21


e no comêço do atual, um homem tinha de ser experiências da vida. Ë tudo o que há de mais
agressivo e ambicioso, para ser "mercadoria" admirável e miraculoso para quem tem estado
atraente : hoje, tem de ser sociável e tolerante. fechado em si, isolado, sem amor. Êsse milagre
De qualquer modo, a sensação de cair enamorado de súbita intimidade é muitas vêzes facilitado
só se desenvolve normalmente com relação aos quando se combina, ou se inicia, com a atração
artigos humanos que estejam ao alcance das pos- sexual e sua satisfação. Contudo, tal tipo de
sibilidades de transação de alguém. Saio para amor, por sua própria natureza, não é duradouro.
uma troca : o objeto deve ser desejável, sob o As duas pessoas tornam-se bem conhecidas, sua
aspecto de seu valor social, e ao mesmo tempo intimidade perde cada vez mais o caráter mira-
deve desejar-me, levando em consideração minhas culoso, e seu antagonismo, suas decepções, seu
potencialidades e recursos expostos e ocultos. mútuo fastio acabam por matar tudo quanto res-
Assim, duas pessoas se apaixonam quando sentem tava da excitação inicial. Entretanto, no comêço,
haver encontrado o melhor objeto disponível no elas de nada disso sabem; de fato, tomam a
mercado, considerando as limitações de seus pró- intensidade da paixão, a "loucura" que sentem
prios valores cambiais. Muitas vêzes, como na uma pela outra, como prova da intensidade de
compra de um imóvel, as potencialidades ocultas seu amor, quando isso apenas provaria o grau
que possam ser desenvolvidas desempenham con- de sua anterior solidão.
siderável papel na transação. Numa cultura em Essa atitude — a de que nada é mais fácil
que prevalece a orientação mercantil, e em que do que amar — tem continuado a ser a idéia
o sucesso material é o valor predominante, pouca predominante a respeito do amor, apesar da es-
razão há para surpresa no fato de seguirem as magadora prova em contrário. Dificilmente ha-
relações do amor humano os mesmos padrões de verá qualquer atividade, qualquer empreendimen-
troca que governam os mercados de utilidades e to que comece com tão tremendas esperanças e
de trabalho. expectativas e que, contudo, fracasse com tanta
O terceiro êrro que leva à idéia de nada haver regularidade, quanto o amor. Se isso se desse
para ser aprendido a respeito do amor consiste com qualquer outra atividade, todos estariam
na confusão entre a experiência inicial de "cair" ansiosos por saber das razões do fracasso, por
enamorado e o estado permanente de estar aman- aprender como se poderia fazer melhor — ou
do, ou, como poderíamos dizer melhor, de "per- então desistiriam de tal atividade. Como esta
manecer" em amor. Se duas pessoas estranhas última alternativa é impossível no caso do amor,
uma à outra, como todos somos, sübitamente dei- parece haver apenas um meio adequado de su-
xam ruir a parede que as separa e se sentem perar a falência amorosa: examinar as razões
próximas, se sentem uma só, esse momento de dessa falência e passar a estudar significação
unidade é uma das mais jubilosas e excitantes do amor.

22 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 23


O primeiro passo a dar é tornar-se consci- amor, quase tudo mais é considerado mais impor-
ente de que o amor é uma arte, assim como viver tante do que o amor: o sucesso, o prestígio, o
é uma arte; se quisermos aprender como se ama, dinheiro, o poder. Quase tôda a nossa energia é
devemos proceder do mesmo modo por que agi- utilizada em aprender como alcançar esses alvos
ríamos se quiséssemos aprender qualquer outra e quase nenhuma é dedicada a aprender a arte
arte, seja a música, a pintura, a carpintaria, ou de amar.
a arte da medicina ou da engenharia. Dar-se-á que só se considerem dignas de ser
Quais são os passos necessários para apren- cendidas aquelas coisas com as quais se pode
der qualquer arte? ooter dinheiro ou prestígio, e que o amor, que
"só' traz proveito à alma, mas não é proveitoso
O processo de aprendizado de uma arte pode
no sentido moderno, seja um luxo, em que não te-
ser adequadamente dividido em duas partes: uma,
nhamos o direito de gastar muita energia? Seja
o domínio da teoria: outra, o domínio da prática.
como fôr, o debate em que vamos entrar tratará
Se eu quiser aprender a arte da medicina, devo a arte de amar no sentido das seguintes divisões:
primeiro conhecer os fatos a respeito do corpo primeiramente, discutirei a teoria do amor — e
humano e de várias doenças. Quando tiver todo isto compreenderá a maior parte do livro; em
êsse conhecimento teórico, de modo, algum serei seguida, discutirei a prática do amor — o pouco
competente na arte da medicina. Só me tornarei que pode ser dito a respeito de prática. neste como
mestre nessa arte depois de grande prática, até em qualquer outro campo.
que os resultados de meu conhecimento teórico e
os de minha prática acabem por mesclar-se numa
só coisa: em minha intuição, essência do domínio
de qualquer arte. Além, entretanto, de aprender
a teoria e a prática, há um terceiro fator neces-
sário para que me torne mestre em qualquer arte:
o domínio da arte deve ser qüestão de extrema
preocupação ; nada deve existir no mundo de mais
importante do que essa arte. Isto é verdade
quanto à música, à medicina, à carpintaria — e
quanto ao amor. E talvez aí esteja a resposta
à indagação sôbre os motivos pelos quais a gente
de nossa cultura tão raramente tenta aprender
essa arte, •a, despeito de seus evidentes fracassos :
apesar da profundamente enraizada avidez pelo

24 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 25


II

A Teoria do Amor.

1 — AMOR, RESPOSTA AO PROBLEMA DA


EXISTÊNCIA HUMANA

UALQUER teoria do amor deve começar com


uma teoria do homem, da existência hu-
mana. Se encontramos amor, ou antes, o
equivalente do amor nos animais, seus afetos são
principalmente parte do seu equipamento instin-
tivo; só remanescentes dêsse equipamento instin-
tivo podem ser vistos em ação no homem. Es-
sencial na existência do homem é o fato de que
êle emergiu do reino animal, da adaptação ins-
tintiva, transcendeu a natureza — embora sem
nunca a deixar; é parte dela — e, contudo, uma
vez desviado da natureza, não pode voltar a ela;
uma vez expulso do paraiso — estado de unidade
original com a natureza — um querubim de es-
pada flamejante barra-lhe o caminho, caso tente
retornar. O homem só pode ir á frente desen-

A ARTE DE AMAR 27
volvendo sua razão, encontrando uma nova har- as coisas e as pessoas, de modo ativo; signi-
monia, que seja humana, em lugar da harmonia fica que o mundo nos pode invadir sem que
pre-humana irrecuperavelmente perdida. tenhamos condições para reagir. Assim, a se-
Quando o homem nasce — a raça humana paração é a fonte de intensa ansiedade. Além
assim como o indivíduo — é lançado fora de unia disso, ela dá origem à vergonha e ao sentimento
situação que era definida, tão definida quanto de culpa. Esta experiência de culpa e vergonha
os instintos, para uma situação indefinida, incer- ria separação está expressa na história Bíblica
ta e exposta. Sómente há certeza com relação de Adão e Eva. Depois que Adão e Eva come-
ao passado — e, quanto ao futuro, apenas com ram da "árvore do conhecimento do bem e do
relação à morte. mal", depois que desobedeceram (pois não há
bem nem mal a menos que haja a liberdade de
O homem é dotado de razão; é a vida cons-
desobedecer), depois que se tornaram humanos
ciente de si mesma; tem, consciência de si, de
por se terem emancipado da original harmonia
seus semelhantes, de seu passado e das possibi-
animal com a natureza, isto é, depois de seu nas-
lidades de seu futuro. Essa consciência de si
cimento como seres humanos, — viram que "es-
mesmo como entidade separada, a consciência de
tavam nus e ficaram envergonhados". Devería-
seu próprio e curto período de vida, do fato de
mos imaginar que um mito tão antigo e elementar
haver nascido sem ser por vontade própria e de
como êste tenha a moral pudica da concepção do
ter de morrer contra sua vontade, de ter de
século XIX e que o ponto importante que a his-
morrer antes daqueles que ama, ou êstes antes
tória deseja mostrar-nos é a confusão por esta-
dêle, a consciência de sua solidão e separação,
rem visíveis seus órgãos genitais? Dificilmente
de sua impotência ante as fôrças da natureza e
poderia ser assim e, se entendermos a história
da sociedade, tudo isso faz de sua existência
com espírito vitoriano, perderemos o ponto prin-
apartada e desunida uma prisão insuportável.
cipal, que parece ser o seguinte: depois que o
Êle ficaria louco se não pudesse libertar-se de
homem e a mulher ficaram conscientes de si mes-
tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma
mos e cada um do outro, tiveram a consciência
forma ou de outra com êles, com o mundo ex- de que eram separados, de sua diferença, tanto
terior. quanto de pertencerem a diferentes sexos. Mas,
A experiência da separação desperta a an- ao reconhecerem sua separação, permaneceram
siedade; é, de fato, a fonte de tôda ansiedade. estranhos, porque ainda não haviam aprendido
Ser separado significa ser cortado, sem qualquer a amar um ao outro (o que é também tornado
capacidade de usar os poderes humanos. Eis claro pelo fato de que Adão se defende culpando
porque ser separado é o mesmo que ser de- Eva, em vez de tentar defendê-la). A consciên-
samparado, incapaz de apreender o mundo, cia da separação humana, sem a reunião pelo

28 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 29


rio, desde que ignoremos as diferenças menores,
amor, é a fonte da vergonha. É, ao mesmo tempo,
que mais pertencem à periferia do que ao centro,
a fonte da culpa e da ansiedade.
descobrimos que só um limitado número de res-
A mais profunda necessidade do homem,
postas pode ser dado, e só tem podido ser dado
assim, é a necessidade de superar sua separação, pelo homem, nas várias culturas em que tem vi-
de deixar a prisão em que está só. A falência
vido. A história da religião e da filosofia é a
absoluta em alcançar êsse alvo significa loucura,
história dessas respostas e de sua diversidade,
porque o pânico do isolamento completo só pode
assim como de sua limitação em número.
ser ultrapassado por um afastamento do mundo
exterior de tal modo radical que o sentimento Dependem as respostas, em certa extensão, do
da separação desapareça — porque o mundo ex- grau de individualidade que um indivíduo alcan-
terior, de que se está separado, também desapa- çou. Na criança, o ego desenvolveu-se apenas
receu. pouco ainda; ela ainda se sente unida à mãe, não
tem sentimento de separação enquanto a mãe está
O homem — de tôdas as idades e culturas
— vê-se diante da solução de uma só e mesma presente. Seu sentimento de solidão é curado
pela presença física ,da mãe, seu seio, sua pele.
qüestão: a de como superar a separação, a de
Só chegado o grau em que a criança desenvolve
como realizar a união, a de como transcender a
própria vida individual e encontrar sintonia. A seu sentimento de separação e individualidade é
que a presença física da mãe já não mais basta,
questão é a mesma para o homem primitivo da
surgindo a necessidade de superar por outros
vida em cavernas, para o nômade a cuidar de
meios a separação.
seus rebanhos, para o camponês do Egito, o mer-
cador fenício, o soldado romano, o monge me- De igual modo, a raça humana, em sua in-
dieval, o samurai japonês, o escriturário e o fância, sente-se ainda unida à natureza. O solo,
operário modernos. E a questão é a mesma por- os animais, as plantas ainda são o mundo do
que se ergue do mesmo campo; a situação hu- homem. Êle se identifica com os animais e isto
mana, as condições da existência humana. A se expressa pelo uso de máscaras de animais, pela
resposta varia. Pode a questão ser respondida adoração de um tótem animal ou de deuses ani-
mais. Quanto mais, porém, a raça humana emer-
pelo culto animal, pelo sacrifício humano ou pela
ge dêsses laços primários, tanto mais se separa
conquista militar, pelo comprazimento na luxúria,
do mundo natural, tanto mais intensa se torna a
pela renúncia ascética, pelo trabalho obcecado,
pela criação artística, pelo amor de Deus e pelo necessidade de encontrar meios novos de fugir à
amor do Homem. Se há, porém, muitas respos- separação.
tas — e seu registro forma a história humana — Um meio de alcançar esse objetivo está em
não são elas, entretanto, inúmeras. Ao contrá- tôdas as espécies de estado orgíacos. Podem ter

A ARTE DE AMAR 31
30 ERICH FROMM
eles a forma de um transe auto-provocado, às
socialmente modelada, tais indivíduos sofrem sen-
vêzes com a ajuda de drogas. Muitos ritos de timentos de culpa e remorso. Ao tentarem fugir
tribos primitivas oferecem vivo quadro desse tipo
da separação pelo refúgio no álcool e nos entor-
de solução. Num estado transitório de exaltação,
pecentes, sentem-se ainda mais separados depois
o mundo externo desaparece, e, com êle, o senti-
que termina a experiência orgíaca, e assim são
mento de estar dele separado. E como êsses ritos
levados a recorrer a ela com freqüência e inten-
são praticados em comum, acrescenta-se uma ex-
sidade aumentadas. Pouquíssimo diferente dis-
periência de fusão com o grupo qúe dá a tal
so é o recurso a uma solução orgíaca sexual. Até
solução o máximo de eficiência. Estreitamente
certo ponto, é uma forma natural e normal de
relacionada com essa solução orgíaca e muitas
superar a separação e uma resposta parcial ao
vêzes mesclada a ela está a experiência sexual.
problema do isolamento. Mas, em muitos indiví-
O orgasmo sexual pode produzir um estado se-
duos em que a separação não é aliviada por outros
melhante ao produzido por um transe, ou pelos
meios, a procura do orgasmo reveste-se de uma
efeitos de certas drogas. Ritos de orgias sexuais
função que não a faz muito diferente do alcoo-
comunitárias faziam parte de muitos rituais pri-
lismo e do vício das drogas. Torna-se uma ten-
mitivos. Parece que, depois da experiência or-
tativa desesperada para fugir à ansiedade en-
gíaca, o homem pode continuar por algum tempo
gendrada pela separação e resulta num sempre
sem sofrer demais com sua separação. Vagaro-
crescente sentimento de separação, visto como o
samente, a tensão da ansiedade sobe, e é de novo
ato sexual sem amor nunca lança uma ponte sôbre
reduzida pela realização repetida do rito.
o abismo entre dois seres humanos, senão mo-
Enquanto êsses estados orgíacos forem motivo
mentaneamente.
de prática comum numa tribo, não produzem eles
ansiedade ou culpa. Agir de tal modo é reto, Tôdas as formas de união orgíaca têm três
virtuoso mesmo, pois é um modo de que todos características: são intensas, violentas até; ocor-
compartilham, aprovado e requerido pelo pagé rem na personalidade total, no corpo e no espírito;
ou pelos sacerdotes; daí não haver razão para são transitórias e periódicas. Exatamente o opos-
que alguém se sinta culpado ou envergonhado. to é verdadeiro quanto àquela forma de união
que é, em muito, a solução mais freqüente esco-
Bem diferente é o caso quando a mesma solução
é escolhida por um indivíduo em uma cultura lhida pelo homem no presente e no passado: a
união baseada na conformidade com o grupo, seus
que deixou para trás essas práticas comuns. O
costumes, práticas e crenças. Aqui, mais uma
alcoolismo e o uso de drogas são as formas que
vez, encontramos considerável desenvolvimento.
o indivíduo escolhe numa cultura não orgíaca.
Em contraste com os que tomam parte na solução Numa sociedade primitiva o grupo é peque-
no; consiste daqueles com que alguém compar-

32 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 33


tilha do sangue e do solo. Com o desenvolvi- de estar que poucos passos fora do rebanho,
mento crescente da cultura, o grupo amplia-se; quando se compreendem as profundidades da ne-
consta dos cidadãos de uma polis, dos cidadãos cessidade de não ser separado. Ás vêzes, êsse
de um grande estado, dos membros de uma igreja. mêdo do não-conformismo é racionalizado como
Mesmo o pobre romano sentia orgulho de poder temor a perigos reais que podem ameaçar a não-
dizer: "civis romanus sum"; Roma e o Império conformista. Mas, na realidade, as pessoas que-
eram sua família, seu lar, seu. mundo. Também rem conformar-se em grau muito mais alto do
na sociedade ocidental contemporânea, a união que são forçadas a conformar-se, pelo menos nas
com o grupo é o modo predominante de superar democracias ocidentais.
a separação. É uma união em que o ser indi- Na maioria, o povo nem sequer tem consci-
vidual desaparece em ampla escala, em que o ência de sua necessidade de conformar-se. Vive
alvo é pertencer ao rebanho. Se sou como todos sob a ilusão de seguir suas próprias idéias e
os mais, se não tenho sentimentos ou pensamentos inclinações, de ser individualista, de ter chegado
que me façam diferentes, se estou em conformi- a suas opiniões como resultado de seus próprios
dade com os costumes, idéias, vestes, padrões do pensamentos — apenas acontecendo que suas
grupo, estou salvo; salvei-me da terrível experi- idéias são as mesmas da maioria. O consenso de
ência da solidão. Os sistemas ditatoriais utili- todos serve como prova da correção de "suas"
zam ameaças e terror para levar a essa confor- idéias. Havendo ainda necessidade de sentir
midade; os paises democráticos usam a sugestão certa individualidade, essa necessidade é satis-
e a propaganda. Há, na verdade, uma grande feita com relação a diferenças menores; o mono-
diferença entre os dois sistemas. Nas democra- grama na pasta ou no suéter, a placa com o nome
cias, o não-conformismo é possível e, de fato, não do caixa do banco, o fato de pertencer ao Partido
está de modo algum inteiramente aiisente; nos Democrático contra o Republicano, ou a esta as-
sistemas totalitários, só uns poucos e insólitos sociação em vez de àquela, tornam-se expressão
heróis e mártires podem ser considerados capa- de diferenças individuais. O "slogan" de anúncios
zes de recusar obediência. Apesar, entretanto, de de que uma coisa "é diferente" demonstra essa
tal diferença, as sociedades democráticas mostram necessidade patética de diferença, quando na rea-
esmagador grau de conformismo. A razão está lidade quase nenhuma resta.
no fato de que é preciso haver uma resposta ao A tendência crescente para eliminação das
anseio de união e, se não houver outro meio me- diferenças relaciona-se de perto com o conceito e
lhor, então a união da conformidade no rebanho a experiência da igualdade, tal como se desen-
se torna a predominante. Só se pode compre- volve nas mais adiantadas sociedades industriais.
ender a fôrça do mêdo de ser diferente, do mêdo A igualdade tem significado, num contexto reli-

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gioso, sermos todos filhos de Deus, participar- mas idéias. A este respeito, deve-se também
mos todos da mesma substância humano-divina, olhar com certo ceticismo certas conquistas que
sermos todos um. Significa também que as pró- são costumeiramente louvadas como marcos de
prias diferenças entre indivíduos devem ser res- nosso progresso, tais como igualdade das mulhe-
peitadas, pois, se é verdade que somos todos um, res. É desnecessário dizer que não estou falan-
não menos verdade é que cada um de nós é uma do contra a igualdade das mulheres; mas os
entidade única, um cosmos por si mesmo. Tal aspectos positivos dessa tendência para a igual-
convicção da singularidade do indivíduo é mani- dade não devem enganar ninguém. Ela é parte
festada, por exemplo, na afirmativa Talmúdica: da inclinação para a eliminação de diferenças.
"Quem salva uma só vida faz como se salvasse A igualdade é adquirida exatamente a este pre-
o mundo inteiro; quem destrói uma só vida faz ço: as mulheres são iguais, porque já não são
como se houvesse destruido o mundo inteiro". mais diferentes. A proposição da filosofia das
Igualdade como condição para o desenvolvimento Luzes, l'âme n'a pas de sere, a alma não tem
da individualidade era também a significação sexo, tornou-se a prática geral. A polaridade
desse conceito na filosofia ocidental das Luzes. dos sexos está desaparecendo, e com ela o amor
Significava (mais claramente formulada por erótico, que se baseia nessa polaridade. Ho-
Kant) que nenhum homem deve servir de meio mens e mulheres tornam-se os mesmos polos,
para os fins de outro homem; que todos os ho- e não polos como opostos. A sociedade
mens eram iguais visto como eram fins, ~ente contemporânea advoga êsse ideal de igualdade não
fins, e nunca meios para qualquer outro. Acom- individualizada, porque necessita de átomos hu-
panhando as idéias da Filosofia das Luzes. pen- manos, cada qual o mesmo, a fim de fazê-los
sadores socialistas de várias escolas definiram a funcionar numa agregação de massa, suavemente,
igualdade como a abolição da exploração, do uso sem fricções, obedecendo todos ao mesmo coman-
do homem pelo homem, não importando que esse do e, contudo, convencido -cada qual de estar se-
uso fôsse cruel ou "humano". guindo seus próprios desejos. Assim como a mo-
Na sociedade capitalista contemporânea, o derna produção em massa exige a padronização
significado de igualdade transformou-se. Por dos artigos, também o processo social requer a
igualdade, faz-se referência à igualdade dos autô- padronização do homem, e tal padronização é
inatos, dos homens que perderam sua individua- chamada "igualdade".
lidade. igualdade, hoje significa "mesmice", em
vez de "unidade". É a mesmice das abstrações, A união pela conformidade não é intensa e
dos homens que trabalham nos mesmos serviços, violenta; é calma, ditada pela rotina e, por essa
têm as mesmas diversões, lêem os mesmos jornais, mesma razão, é muitas vêzes insuficiente para
experimentam os mesmos sentimentos e as mes- apaziguar a ansiedade da separação. A incidên-

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cia do alcoolismo, do vício de drogas, do sexua- os filmes pelos donos dos cinemas e pelas su-
lismo forçado e do suicídio na sociedade ocidental gestões de anúncios que êles pagam; o resto é
contemporânea é sintoma dessa falência relativa também uniforme: o passeio dominical de auto-
da conformidade de rebanho. Além do mais, tal móvel, a sessão de televisão, o jôgo de cartas, as
solução diz respeito principalmente à mente e festas sociais. Do nascimento à morte, de se-
não ao corpo e, por essa razão, é demasiado falha gunda a segunda-feira, de manhã à noite, tôdas
em relação às soluções orgíacas. O conformismo as atividades são rotinizadas e prefabricadas.
Como poderia um homem apanhado nessa rede
de rebanho tem apenas uma vantagem: é perma-
nente e não espasmódico. O indivíduo é intro- de rotina deixar de esquecer que é um homem,
duzido no padrão conformista com a idade de um indivíduo único, alguém a quem só é dada
esta oportunidade única de viver, com esperanças
três ou quatro anos e daí por diante nunca perde
e decepções, com tristezas e temores, com a ânsia
o contacto com o rebanho. Mesmo seu funeral,
que êle antevê como o último de seus grandes de amar e o horror ao nada e à separação ?
eventos sociais, está em estreita conformidade Terceiro meio de alcançar a união está a
com os padrões. atividade criadora, seja ela a do artista ou do
Além da conformidade como meio de aliviar artesão. Em qualquer espécie de' trabalho cria-
a ansiedade que nasce da separação, outro da dor, a pessoa que cria une-se a seu material, que
vida contemporânea deve ser considerado: o papel representa o mundo que lhe é exterior. Faça
do trabalho de rotina e do prazer de rotina. O um marceneiro uma mesa, ou um ourives uma
homem torna-se "sujeito a ponto", é parte da joia, cultive o camponês seu cereal, ou pinte o
fôrça de trabalho, ou da fôrça burocrática de pintor um quadro, em todos os tipos de obra
escreventes e gerentes. Tem pouca iniciativa, criadora o trabalhador e seu objeto tornam-se
suas tarefas são prescritas pela organização do um, o homem se une ao mundo no processo da
trabalho; existe mesmo pouca diferença entre os criação. Isto, porém, só permanece verdadeiro
que estão no alto da escada e os que ficam em para o trabalho produtivo, para a obra que eu
baixo. Todos realizam tarefas prescritas pela planejo, produzo e em que vejo o resultado de
estrutura total da organização, a velocidade pres- meu trabalho. No moderno processo de trabalho
crita, da maneira prescrita. Mesmo os sentimen- de um escrevente, do operário na plataforma sem
tos são prescritos: cordialidade, tolerância, leal- fim, pouco resta dessa qualidade unidora da obra.
dade, ambição e capacidade de conviver com todos O trabalhador torna-se apêndice da máquina ou
sem atritos. A diversão é rotinizada de maneiras da organização burocrática. Deixou de ser êle
semelhantes, embora não de todo tão drásticas. mesmo; daí porque não se verifica outra união
Os livros são escolhidos pelos clubes de livros, fora da do conformismo.

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A unidade realizada na obra produtiva não mas imaturas do amor que podem ser chamadas
é interpessoal; a unidade conseguida na fusão união simbiótica? Nas páginas seguintes, darei
orgíaca é transitória; a unidade alcançada pelo o nome de amor apenas à primeira. Começa-
conformismo é apenas pseudo-unidade. Eis por- rei a discussão sôbre o "amor" com a última.
que são tôdas, apenas, respostas parciais ao pro- A união simbiótica tem seu modelo biológico
blema da existência. A resposta completa está na relação entre a mãe grávida e o foto. São
na realização da unidade interpessoal, da fusão dois e, contudo, um. Vivem "juntos" (sym-bio-
com outra pessoa: está no amor. sis), necessitam um do outro. O feto é parte da
O desejo de fusão interpessoal é o mais po- mãe, recebe dela tudo de que necessita; a mãe é
deroso anseio do homem. É a paixão mais fun- seu mundo, em suma : alimenta-o, protege-o, mas
damental, é a fôrça que conserva juntos a raça também a própria vida dela é acrescida por êle.
humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso Na união simbiótica psíquica, os dois corpos são
em realizá-la significa loucura ou ,destruição — independentes, mas a mesma espécie de ligação
auto-destruição ou destruição de outros. Sem existe psicolôgicamente.
amor, a humanidade não poderia existir um só A forma passiva da união simbiótica é a da
dia. Contudo, se ,chamarmos "anior" a realiza- submissão, ou, se usarmos um termo clínico, a
ção da união interpessoal, poderemos encon- do masoquismo. A pessoa masoquista foge ao
trar-nos em séria dificuldade. A fusão pode ser insuportável sentimento de isolamento e separa-
obtida de diversos modos — e as diferenças não ção tornando-se parte e porção de outra pessoa,
são menos significativas do que aquilo que é que a dirige, guia, protege; que, em suma, é sua
comum às várias formas de amor. Devem ser vida e seu oxigênio. O poder daquele a quem
tôdas chamadas amor? Ou devemos reservar a alguém se submete é expandido, trate-se de uma
palavra "amor" sômente para um tipo específico pessoa ou de um deus; é tudo, e o submisso nada,
de união, aquêle que tem sido a virtude ideal exceto naquilo em que é parte dêle. Como parte,
para tôdas as grandes religiões humanísticas e é parcela da grandeza, da fôrça, da certeza. A
sistemas filosóficos dos últimos quatro mil anos pessoa masoquista não tem de tomar decisões,
de história ocidental e oriental. não precisa assumir quaisquer riscos ; nun-
Como se dá com tôdas as dificuldades se- ca está só — mas não é independente; não
mânticas, a resposta só pode ser arbitrária. O tem integridade; ainda não nasceu de todo. Num
que importa é sabermos de que espécie de união contexto religioso, o objeto da adoração é cha-
estamos falando, quando falamos de amor. Re- mado ídolo; num contexto secular de relações
ferimo-nos ao amor como à resposta amadurecida de amor masoquista, o mecanismo essencial, o da
ao problema da existência, ou falamos das for- idolatria, é o mesmo. A relação masoquista

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pode-se misturar com o desejo físico, sexual; neira sadista para com o povo, mas masoquista-
neste caso, não é só urna submissão de que par- mente para com o destino, a história, o "poder
ticipe o espírito de alguém, mas também todo o mais alto" da natureza. Seu fim — o suicídio
corpo. Pode haver submissão masoquista ao des- em meio à destruição geral — é tão característico
tino, à enfermidade, à música rítmica, ao estado quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação
orgíaco produzido por drogas ou sob transe hip- total. (Fears of Escape from Freedon, E.
nótico: em todos esses exemplos a pessoa renun- Fromm, Londres, Routledge, 1942).
cia à sua integridade, torna-se o instrumento de Em contraste com a união simbiótica, o amor
alguém ou de algo fora dela própria; não precisa amadurecido é união sob a condição de preservar
de resolver o problema de viver por meio da ati- a 'integridade própria, a própria individualidade.
vidade produtiva. O amor é uma fôrça ativa no homem; uma fôrça
A forma ativa da fusão simbiótica é a do- que irrompe pelas paredes que separam o homem
minação, ou, para empregar o termo psicológico de seus semelhantes, que o une aos outros; o
correspondente ao masoquismo, o sadismo. A amor leva-o a superar o sentimento de isolamento
pessoa sadista quer escapar de sua solidão e de e de separação, permitindo-lhe, porém, ser êle
sua sensação de encarceramento, fazendo de ou- mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre
tra pessoa uma parte, uma parcela de si mesma. o paradoxo de que dois seres sejam um e, con-
Expande-se e valoriza-se incorporando outra pes- tudo, permaneçam dois.
soa, que a adora. Ao dizermos que o amor é uma atividade,
A pessoa sadista depende tanto da pessoa enfrentamos uma dificuldade que reside na sig-
submissa quanto esta daquela; uma não pode nificação ambígua desta palavra. Por "ativida-
viver sem a outra. A diferença só está Pm que de", no emprêgo moderno do têrmo, queremos
normalmente referir-nos a uma ação que produz
a pessoa sadista ordena, explora, fere, humilha,
mudança numa situação existente, por meio de
e a masoquista é mandada, explorada, ferida,
gasto de energia. Assim, um homem é conside-
humilhada. Tal diferença é considerável num
rado ativo quando faz negócios, estuda medicina,
sentido realista ; num sentido emocional mais
trabalha numa usina, fabrica uma niesa ou dedica
profundo, a diferença não é tão grande quanto a esportes. Tôdas essas atividades têm sido em
o que ambas têm em comum: fusão sem inte- comum: dirigem-se para um alvo exterior a ser
gridade. Se se compreende isto, também não é alcançado. O que não se leva em conta é a mo-
surpreendente verificar que normalmente uma tivação da atividade: Veja-se, por exemplo, um
pessoa reage tanto da maneira sadista como da homem impelido a incessante trabalho por uni
masoquista, de modo geral para com objetos sentimento de profunda insegurança e solidão;
diversos. Hitler reagia primordialmente de ma- ou outro impulsionado pela ambição, ou pela

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avidez por dinheiro. Em todos êsses casos a pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes
pessoa é escrava de uma paixão, e sua atividade de tudo, consiste em dar, e não em receber.
é de fato uma "passividade", porque ela é im-
pelida; é o paciente, não o "ator". De outro Que é dar? Embora pareça simples a res-
lado, alguém que se assente calmo e contempla- posta a esta pergunta, ela em verdade é cheia
tivo, sem outro alvo que não o de experimentar-se de ambigüidades e complexidades. O equívoco
e à sua unidade com o mundo, é considerado mais vastamente espalhado é o que entende que
como "passivo", porque não está "fazendo" coisa dar é "abandonar" alguma coisa, ser privado de
alguma. E, na verdade, esta atitude de medita- algo, sacrificar. A pessoa cujo caráter não se
ção concentrada é a mais alta atividade que existe, desenvolveu além da etapa da orientação recep-
uma atividade da alma. só possível sob condições tiva, explorativa, ou amealhadora, experimenta
de independência e liberdade interiores. Um con- o ato de dar dessa maneira. O caráter mercantil
ceito de atividade, o moderno, refere-se ao uso deseja dar, mas só em troca de receber ; dar sem
de energia para consecução de metas externas; receber, para êle, é ser defraudado. (Man for
o outro conceito de atividade refere-se ao uso Hiniself, E. Fromin, Londres, Routledge, 1949.)
dos poderes inerentes ao homem, , sem que im- _Aqueles cuja principal orientação é não-produ-
porte a produção de qualquer mudança exterior. tiva sentem que dar é um empobrecimento. A
Êste último conceito de atividade foi formulado maioria dos indivíduos dêsse tipo, portanto, re-
com muita clareza por Spinoza. Diferencia êle cusa dar. Alguns fazem do ato de dar uma vir-
os afetos entre ativos e passivos, "ações" e "pai- tude, no sentido de um sacrifício. Sentem que,
xões". No exercício de um afeto ativo, o homem por ser doloroso dar, deve-se dar; a virtude de
é livre, é o senhor de seu afeto; .no exercício de dar, para êles, reside no próprio ato de aceitação
um afeto passivo, o homem é impelido, é objeto do sacrifício. Para êles, a norma de que é me-
de motivações de que êle próprio não tem cons- lhor dar do- que receber significa que é melhor
ciência. Assim Spinoza chega à afirmação de sofrer privação do que experimentar alegria.
que virtude e poder são uma só e a mesma coisa. Para o caráter produtivo, dar tem um sen-
(Spinoza, Ética, IV, Def. 8) a inveja, o ciume, tido inteiramente diverso. Dar é a mais alta
a ambição, qualquer espécie de cobiça são pai- expressão da potência. No próprio ato de dar,
xões; o amor é uma ação, a prática de um poder ponho à prova minha fôrça, minha riqueza, meu
humano, que só pode ser exercido na liberdade poder. Essa experiência de elevada vitalidade
e nunca como resultado de uma compulsão. e potência enche-me de alegria. Provo-me como
O amor é uma atividade, e não um afeto superabundante, pródigo, cheio de vida e, por-
passivo ; é um "erguimento" e não uma "queda". tanto, como alegre. (Compare-se a definição de
De modo mais geral, o caráter ativo do amor alegria dada por Spinoza.) Dar é mais alegre

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do que receber, não por ser uma privação, mas ráter quanto de suas posses efetivas. É bem
porque, no ato de dar, encontra-se a expressão sabido que os pobres são mais inclinados a dar
de minha vitalidade. do que os ricos. Não obstante, a pobreza além
Não é difícil reconhecer a validez dêsse prin- de certo ponto pode tornar impossível dar, e
cípio aplicando-o a vários fenômenos específicos. assim é degradante, não só pelo sofrimento que
O exemplo mais elementar está na esfera do causa diretamente, mas pelo fato de privar o
sexo. A culminação da função sexual masculina pobre da alegria de dar.
reside no ato de dar ; o homem se dá à mulher, A mais importante esfera de dar, entre-
dá-lhe seu órgão sexual. No momento do or- tanto, não é a das coisas materiais, mas está
gasmo, dá-lhe seu sêmen. Não pode deixar de no reino especificamente humano. Que dá uma
dar, se fôr potente. Se não pode dar, é impo- pessoa a outra ? Dá de si mesma, do que tem
tente. Para a mulher, o processo não é diverso, de mais precioso, dá de sua vida. Isto pão
embora algo mais complexo. Ela também se dá ; quer necessariamente dizer que sacrifique sua
abre as portas de seu centro feminino; dá, no vida por outrem, mas que lhe dê daquilo que
ato de receber. Se fôr incapaz dêsse ato de dar, em si tem de vivo; dê-lhe de sua alegria, de seu
se só puder receber, é frígida. Nela, o ato de interesse, de sua compreensão, de seu conheci-
dar volta a ocorrer, não na função de amante, mento, de seu humor, de sua tristeza — de tôdas
mas na de mãe. Dá de si ao filho que cresce as expressões e manifestações daquilo que vive
dentro dela, dá seu leite à criança, dá-lhe o em si. Dando assim de sua vida, enriquece a
calor de seu corpo. Não dar seria doloroso. outra pessoa, valoriza-lhe o sentimento de vita-
Na esfera das coisas materiais, dar signi- lidade ao valorizar o seu próprio sentimento de
fica ser rico. Não é rico quem muito tem, mas vitalidade. Não dá a fim de receber ; dar é, em
quem muito dá. O avaro que ansiosamente re- si mesmo, requintada alegria. Mas, ao dar, não
pode deixar de levar alguma coisa à vida da
ceia perder alguma coisa é, psicolOgicamente fa-
outra pessoa, e isso que é levado à vida reflete-se
lando, a homem pobre, o empobrecido, não im-
de volta no doador ; ao dar verdadeiramente,
porta quanto possua. Quem é capaz de dar si
não pode deixar de receber o que lhe é dado de
é rico. Põe-se à prova como quem pode conceder
retôrno. Dar implica fazer da outra pessoa tam-
de si aos outros. Só quem fôr privado de tudo bém um doador e ambos compartilham da ale-
quanto vá além das mais simples necessidades gria de haver trazido algo à vida. No ato de
da existência será incapaz de gozar o ato de dar, algo nasce, e ambas as pessoas envolvidas
dar coisas materiais. Mas a experiência diária são gratas pela vida que para ambas nasceu.
mostra que aquilo que alguém considera como Com relação especificamente ao amor, isso signi-
necessidades mínimas depende tanto de seu ca- fica : o amor é uma fôrça que produz amor ;

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impotência é a incapacidade de produzir amor. produtiva; nessa orientação a pessoa superou a
Êste pensamento foi belamente expresso por dependência, a onipotência narcisista, o desejo de
Marx : "Imaginai — diz êle — o homem como explorar os outros, ou de amealhar, e adquiriu
homem e sua relação com o mundo como uma re- fé em seus próprios poderes humanos, coragem
lação humana, e só podereis trocar amor por amor, de confiar em suas fôrças para atingir seus alvos.
confiança por confiança, etc. Se quiserdes gozar No mesmo grau em que faltarem essas qualida-
a arte, devereis ser uma pessoa de preparo artís- des é ela temerosa de dar-se — e, portanto, de
tico; se quereis ter influência sôbre outras pesso- amar.
as, devereis ser uma pessoa que tenha sôbre outras ,Além do elemento de dar, o caráter ativo do
pessoas influência realmente estimuladora e pro- amor torna-se evidente no fato de implicar sem-
motora. Cada uma de vossas relações com o pre certos elementos básicos, comuns a tôdas as
homem e com a natureza deve ser uma expres- formas de amor. São êles: cuidado, responsa-
são definida de vossa vida real, individual, cor- bilidade, respeito e conhecimento.
respondente ao objeto de vossa vontade. Se Que amor implica cuidado é mais do que
amais sem atrair amor, isto é, se vosso amor é evidente no amor da mãe pelo filho. Nenhuma
tal que não produz amor, se através de uma afirmativa sôbre seu amor nos impressionaria
expressão de vida como pessoa amante não fa- como sincera se a víssemos sem cuidado para
zeis de vós mesmo uma pessoa amada, então com a criança, se se desleixassem em alimentá-la,
vosso amor é impotente, é um infortúnio." banhá-la, dar-lhe confôrto físico; ao passo que
("Nationalõkonomie und Philosophie", 1844, pu- seu amor nos impressiona se a vemos cuidar do
plicado em Die Frühschriften de Karl Marx, filho. O caso não difere mesmo quanto ao amor
Alfred Krõner Verlag, Stuttgart, 1953, pags. por animais ou flôres. Se uma mulher nos diz
300, 301. A tradução é minha.) Mas não é só que ama as flôres e vemos que ela se esquece
no amor que dar significa receber. O mestre é de regá-las, não acreditamos em seu "amor" pe-
ensinado por seus alunos, o ator é estimulado las flôres. Amor é preocupação ativa pela vida
por sua audiência, o psicanalista é curado por e crescimento daquilo que amamos. Onde falta
seu cliente — contanto que não se tratem uns essa preocupação ativa não há amor. Ésse ele-
aos outros como objetos, mas se relacionem uns mento do amor é belamente descrito no livro de
com os outros genuina e produtivamente. Jonas. Deus disse a Jonas que fôsse a Nínive
Quase não é necessário acentuar o fato de advertir os habitantes de que seriam punidos, a
que a capacidade de dar depende do desenvolvi- menos que se emendassem de sua má conduta.
mento do caráter da pessoa. Pressupõe o alcan- Jonas foge de sua missão, por temer que o povo
çamento de uma orientação predominantemente de Nínive se arrependa e Deus o perdôe. É um

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homem de forte senso de ordem e lei, mas sem muitas vêzes se entende a responsabilidade como
amor. Contudo, em sua tentativa de evasão, denotando dever, algo imposto de fora a alguém.
vê-se no ventre de uma baleia, simbolizando o A responsabilidade, porém, em seu verdadeiro
estado de isolamento e encarceramento que a sentido, é ato inteiramente voluntário; é a res-
falta de amor e solidariedade lhe trouxe. Deus posta que damos às necessidades, expressas ou
o salva e Jonas vai a Nínive. Prèga aos habi- não expressas, de outro ser humano. Ser "res-
tantes como Deus lhe dissera, e a própria coisa ponsável" significa ter de "responder", estar
que temera acontece. Os homens de Nínive ar- pronto para isso. Jonas não se sentiu respon-
rependem-se de seus pecados, emendam-se e Deus sável pelos habitantes de Nínive. Como Caim,
lhes dá perdão e decide não destruir a cidade. poderia indagar: "Sou acaso o guarda de meu
Jonas fica intensamente encolerizado e decepcio- irmão?" A pessoa que ama responde. A vida
nado; queria que se fizesse "justiça" e não mi- de seu irmão não importa sômente a seu irmão,
sericórdia. Afinal, encontra certo confôrto à mas também a ela. Sente-se responsável por
sombra de uma árvore que Deus fizera crescer seus semelhantes, como se sente responsável por
para ele, a fim de protegê-lo do sol. Mas quan- si mesma. Essa responsabilidade, no caso da
do Deus faz a árvore murchar, Jonas fica de-
mãe e do filho, refere-se principalmente ao cui-
primido e colèricamente se queixa a Deus. Res-
dado das necessidades físicas. No amor entre
ponde-lhe Deus : "Tu te lastimas por causa de adultos, refere-se principalmente às necessidades
uma aboboreira que não te custou trabalho al-
psíquicas da outra pessoa.
gum, nem a fizeste crescer ; que nasceu numa
noite e numa noite pereceu. E então não hei A responsabilidade poderia fàcilmente cor-
de poupar a grande cidade de Nínive, onde há romper-se em dominação e possessividade se não
mais de cento e vinte mil pessoas que não sabem houvesse um terceiro elemento do amor, o res-
discernir entre a sua mão direita e a sua mão peito. Respeito não é mêdo e temor; denota, de
esquerda, e ainda um grande número de ani- acôrdo com a raiz da palavra (respicere -= olhar
mais'?" A resposta de Deus a Jonas deve ser para), a capacidade de ver uma pessoa tal como
entendida simbolicamente. Deus explica a Jonas é, ter conhecimento de sua individualidade sin-
que a essência do amor é "trabalhar" por al- gular. Respeito significa a preocupação de que
guma coisa e "fazer alguma coisa crescer", que a outra pessoa cresça e se desenvolva como é.
amor e trabalho são inseparáveis. Ama-se aqui- Respeito, assim, implica ausência de exploração.
lo por que se trabalha e trabalha-se por aquilo Quero que a pessoa amada cresça e se desenvolva
que se ama. por si mesma, por seus próprios modos, e não
Cuidado e preocupação implica outro aspecto para o fim de servir-me. Se amo a outra pessoa,
do amor: o da responsabilidade. Hoje em dia, sinto-me um com ela, ou êle, mas com ela tal

50 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 51


como é, não como eu necessito que seja para desejo especificamente humano, o de conhecer "o
objeto de meu uso. É claro que o respeito só segrêdo do homem". Se a vida, em seus aspectos
é possível se eu mesmo alcancei a independência; meramente biológicos, é um milagre e um se-
se puder levantar-me e caminhar sem precisar grêdo, o homem, em seus aspectos humanos, é
de muletas, sem ter de dominar e explorar qual- um segrêdo insondável para si mesmo — e para
quer outro. O respeito só existe na base da li- seus semelhantes. Nós nos conhecemos, e con-
berdade: "Pamour est l'enfant de la liberte", tudo, mesmo apesar de todos os esforços que
como diz velha canção francesa; o amor é filho possamos fazer, não nos conhecemos. Conhece-
da liberdade, nunca da dominação. mos nosso semelhante, e contudo não o conhece-
mos, porque não somos uma coisa, nem o nosso
Respeitar uma pessoa não é possível sem
semelhante é uma coisa. Quanto mais penetra-
conhecê-la; cuidado e responsabilidade seriam
mos nas profundezas de nosso ser, ou do ser de
cegos se não fôssem guiados pelo conhecimento.
outrem, tanto mais nos escapa o alvo do conhe-
O conhecimento seria vazio se não fôsse moti-
cimento. Não podemos, todavia, evitar o desejo
vado pela preocupação. Há muitas camadas de
de penetrar no segrêdo da alma do homem, no
conhecimento; o conhecimento que é um aspecto
do amor é aquele que não fica na periferia, mas mais interno núcleo do que "êle" é.
penetra até o âmago. Só é possível quando pos- Há um meio, um desesperado meio, de co-
so transcender a preocupação por mim mesmo e nhecer o segrêdo: é o do completo poder sôbre
ver a outra pessoa em seus próprios têrmos. a outra pessoa; poder que a obrigue a fazer o
que quisermos, sentir o que quisermos, pensar
Posso saber, por exemplo, que uma pessoa está
encolerizada, ainda que ela não o mostre aber- o que quisermos; que a transforme numa coisa,
nossa coisa, possessão nossa. O grau derradei-
tamente; mas posso conhecê-la mais profunda-
ro dessa tentativa de conhecer reside nos extre-
mente do que isso; sei então que ela está ansiosa
mos do sadismo, desejo e capacidade de fazer
e preocupada; que se sente só, que se sente cul-
um ser humano sofrer : torturá-lo, forçá-lo a trair
pada. Sei então que sua cólera é apenas a ma-
seu segrêdo em seu sofrimento. Nesta avidez
nifestação de algo mais profundo, e vejo-a como
de penetrar no segrêdo do homem, no seu e,
ansiosa e preocupada, isto é, como pessoa que
portanto, no nosso próprio, está uma motivação
sofre, em vez de como a que se encoleriza. essencial da profundidade e da intensidade da
O conhecimento tem mais uma relação — e crueldade e da destruição. De modo muito su-
mais fundamental — com o problema do amor. cinto, essa idéia foi expressa por Isaac Babel.
A necessidade básica de fusão com outra pessoa Cita êle um sujeito, oficial na guerra civil russa,
de modo a transcender a prisão da própria se- que acabava de espezinhar seu antigo patrão até
paração relaciona-se muito de perto com outro à morte, como dizendo: "Com um tiro — vou

52 ERICH FROMM A ARTE DE. AMAR 53


dizer a coisa deste jeito — com um tiro a gente descubro-me, descubro-nos a ambos, descubro o
apenas fica livre de um camarada... Com um homem.
tiro, nunca se alcança a alma, onde ela está num A ardente aspiração de nos conhecermos e
sujeito, nem como se mostra. Mas eu não me de conhecer nossos semelhantes encontrou ex-
canso e mais de uma vez já pisoteei um inimigo pressão na sentença délfica : "Conhece-te a ti
por mais de uma hora. Vocês sabem, eu quero
mesmo". Esta é a fonte principal de tôda psi-
chegar a saber o que a vida realmente é, como
cologia. Como, porém, o desejo é o de conhecer
é a vida aqui no nosso mundo". (I. Babel, The
tudo sôbre o homem, seus mais íntimos segredos,
Colleeted Stories, Criterion Book, Nova York,
tal desejo nunca pode ser efetivado no conhe-
1955.)
cimento de tipo normal, no conhecimento só pelo
Quando crianças, muitas vêzes vemos com
pensamento. Ainda que conheçamos mil vêzes
tôda a clareza êsse caminho para o conhecimento.
mais sôbre nós mesmos, nunca alcançaremos o
A criança apanha alguma coisa e quebra-a a fim
fundo. Permaneceremos ainda um enigma para
de conhecê-la ; ou apanha um animal ; cruelmente
nós próprios, como nossos semelhantes continua-
arranca as asas de uma borboleta a fim de co-
rão sendo um enigma para nós. O meio único
nhecê-la, de forçar seu segrêdo. A crueldade,
de conhecimento completo está no ato do amor:
em si, é motivada por algo mais profundo: o
êsse ato transcende o pensamento, transcende as
desejo de conhecer o segrêdo das coisas e da vida.
palavras. É o mergulho ousado na experiência
O outro caminho de conhecer o "segrêdo"
da união. Contudo, o conhecimento pelo pensa-
é amar. O amor é penetração ativa na outra
mento, que é conhecimento psicológico, torna-se
pessoa, em que meu desejo de conhecer é disti-
condição necessária para o pleno conhecimento
lado pela união. No ato da fusão, eu te conhe-
no ato do amor. Preciso conhecer-me, e à outra
ço, eu me conheço, conheço a todos — e nada
pessoa, objetivamente, a fim de poder ver sua
"conheço". Conheço pelo único meio por que é
realidade, ou melhor, de superar as ilusões, o
possível, para o homem, o conhecimento do que
retrato irracionalmente desfigurado que tenho
é vivo — pela experiência da união —, e não
dela. Só se conhecer objetivamente um ser hu-
por qualquer conhecimento que nosso pensamen-
to possa dar. O sadismo é motivado pelo desejo mano poderei conhecê-lo em sua essência última,
de conhecer o segrêdo, e contudo permaneço tão no ato de amor. (*)
ignorante quanto antes era. Despedacei o outro
(•) A afirmação acima tem importante significação quanto
ser membro a membro, e entretanto tudo o que ao papel da psicologia na cultura ocidental contemporânea. Embora
fiz foi destrui-lo. O amor é o único meio de a grande popularidade da psicologia certamente indique interêsse
conhecimento que, no ato da união, responde à pelo conhecimento do homem, ieso também revela a falta funda-
mental de amor nas relações humanas hoje em dia. O conh-eci-
minha pergunta. No ato de amar, de dar-me, mento psicológico torna-se, assim, substituto do pleno conhecimento
no ato de penetrar a outra pessoa, encontro-me, no ato de amor, em vez de ser um passo para Me.

54 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 55


O problema de conhecer o homem é paralelo que abandonou os sonhos narcisistas de onisciên-
ao problema religioso de conhecer Deus. Na cia e onipotência, que adquiriu humildade alicer-
teologia convencional ocidental, faz-se a tenta- çada na f Orça íntima sOmente dada pela germina
tiva de conhecer Deus pelo pensamento, de fazer atividade produtiva.
afirmações a respeito de Deus. Presume-se que Até aqui falei do amor como a superação
eu possa conhecer Deus em meu pensamento.
da separação humana, como o cumprimento da
No misticismo, que é o resultado lógico do mo-
aspiração de união. Acima, porém, da necessi-
noteismo (como tentarei mostrar mais adiante),
dade universal e existencial de união ergue-se
abandona-se a tentativa de conhecer Deus pelo
outra, mais específica, biológica: o desejo de
pensamento, que é substituida pela experiência
união entre os polos masculino e feminino. A
de união com Deus, na qual não há mais lugar
idéia dessa polarização é ,mais fortemente ma-
para o conhecimento a respeito de Deus — nem
nifestada no mito de que, originalmente o ho-
há necessidade disso.
mem e a mulher eram um só, de que foram
A experiência de união com o homem, ou, partidos ao meio e, de então em diante, cada
religiosamente falando, com Deus, não é de modo
ser masculino vem procurando a perdida parte
algum irracional. Ao contrário, é, como Albert
feminina de si mesmo, a fim de voltar a unir-se
Schweitzer mostrou, a conseqüência do naciona-
com ela. (A mesma idéia da unidade original
lismo, sua conseqüência mais audaciosa e radical.
dos sexos está contida na história Bíblica de
Baseia-se em nosso conhecimento das limitações
fundamentais, e não acidentais, do que nos é Eva feita da costela de Adão, embora nessa
possível conhecer. É o conhecimento de que história, no espírito do patriarcalismo, a mulher
nunca poderemos "apreender" o segrêdo do ho- seja considerada secundária em relação ao ho-
mem e do universo, mas que, não obstante, po- mem.) A significação do mito é bastante clara.
demos conhecer no ato de amor. A psicologia, A polarização sexual leva o homem a procurar
como a ciência, tem suas limitações e, assim corno a união de maneira específica, a da união com
a conseqüência lógica da teologia é o misticismo, o outro sexo. A polaridade entre os princípios
também a conseqüência derradeira da psicologia masculino e feminino existe também dentro de
é o amor. cada homem e cada mulher. Assim como, fisio-
Cuidado, responsabilidade, respeito e conhe- lôgicamente, o homem e a mulher têm, cada qual, .
cimento são mutuamente interdependentes. Cons- hormônios do sexo oposto, também no sentido
tituem uma síndrome de atitudes que vamos psicológico são ambos bissexuais. Levam em si
encontrar na pessoa amadurecida, isto é, na pes- mesmos o princípio de receber e de penetrar, da
soa que desenvolve produtivamente seus próprio matéria e do espirito. O homem, tal como a
poderes, que só quer ter aquilo por que trabalhou, mulher, só encontra união dentro de si na união

56 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 57


de sua polaridade masculina e feminina. Essa Ao olhar dos sábios, o Céu é homem e a Terra é
polaridade é a base de tôda criatividade. mulher: a Terra cria o que o Céu deixa cair.
Quando à Terra falta calor o Céu o envia; quando
A polaridade masculino-feminina é também ela perde seu frescor e umidade, o Céu os
a base da criatividade interpessoal. Isto se restaura.
torna biolôgicamente evidente no fato de ser a Anda o Céu às voltas como um marido a buscar
união do esperma e do ovo a base do nascimento provisões para a espôsa;
de uma criança. Não há diferença, entretanto, E a Terra se atarefa com as coisas de casa: cuida
no reino puramente psíquico: no amor entre dos nascimentos e de amamentar aquilo que
dá à luz.
homem e mulher, cada um dêles torna a nascer.
Olha a Terra e o Céu como dotados de inteligência,
(O desvio homossexual é o fracasso em atingir
pois fazem o trabalho de seres inteligentes.
essa união polarizada, e por isso o homossexual
Se ambos não extráem prazer um do outro, por que
sofre a dor da separação ,nunca solucionada, então se adulam mutuamente como namorados?
fracasso, entretanto, de que com êle compartilha Sem a Terra, como poderiam as árvores florir?
o heterossexual comum que não consegue amar.) Para que, então produziria o Céu água e calor?
A mesma polaridade dos princípios masculi- Assim como Deus colocou o desejo no homem e na
no e feminino existe na natureza•- não só, como mulher, para que o mundo seja preservado por
sua união.
é evidente, em animais e planta, mas na polari-
Também implantou em cada parte da existência o
dade das duas funções fundamentais, a de re- desejo da outra parte.
ceber e a de penetrar. É a polaridade da terra Dia e Noite são inimigos externamente; contudo,
e da chuva, do rio e do oceano, da noite e do ambos servem a uma finalidade.
dia, da escuridão e da luz da matéria e do es- Cada qual ama o outro, a fim de aperfeiçoar sua
pírito. Tal idéia foi belamente expressa pelo obra mútua.
grande poeta e místico muçulmano Rumi : Sem a Noite, a natureza do homem não receberia
qualquer rendimento e nada haveria para que
Nunca, em verdade, procura o amante sem ser bus- o Dia gastasse.
cado pelo ente amado. (R. A. NICEOLSON, Rumi, George Allen and
Quando o raio do amor se atirou neste coração, sabe Unwin, Ltd., Londres, 1950, págs. 122-123.)
que existe amor naquele coração.
Quando o amor de Deus cresce em teu coração, sem O problema da polaridade masculino-femi-
dúvida alguma Deus tem amor por ti.
lina leva a mais alguma discussão sôbre o as-
Nenhum som de palmas vem de uma só mão sem a
outra mão.
mnto do amor e do sexo. Já falei anteriormente
A Divina Sabedoria é destino e decreto que nos
lo êrro de Freud em ver no amor exclusiva-
fazem amantes uns dos outros. nente a expressão — ou uma sublimação — do
Por êste pre-ordenamento, cada parte do mundo se instinto sexual, em vez de reconhecer que o de-
acasala com seu par. ;ejo sexual é uma manifestação da necessidade

58 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 59


de amor e união. O êrro de Freud, porém, vai A atração sexual entre os sexos é apenas
mais fundo. Na linha de seu materialismo fi- em parte motivada pela necessidade de remover
siológico, ele vê no instinto sexual o resultado a tensão; é, principalmente, necessidade de união
de uma tensão quimicamente produzida no cor- com o outro polo sexual. De fato, a atração
po, que é dolorosa e procura alívio. O alvo do erótica de modo algum sõmente se expressa na
desejo sexual é a remoção dessa tensão dolorosa; atração sexual. Há masculinidade e feminilida-
a satisfação sexual reside em concretizar tal re- de no caráter, tanto quanto na função sexual.
moção. Este conceito tem validez até ao ponto O caráter masculino pode ser definido como
em que o desejo sexual opera da mesma forma tendo as qualidades de penetração, orientação,
que a fome e a sede, quando o organismo está atividade, disciplina e aventura; o caráter femi-
subnutrido. O desejo sexual, em tal concepção, nino, pelas qualidades de receptividade produ-
é um prurido, e a satisfação sexual é a remoção tiva, proteção, realismo, paciência, maternidade.
do prurido. De fato, até onde êsse conceito de (Deve-se sempre ter em mente que, em cada
sexualidade abrange, a masturbação seria a sa- indivíduo, ambas as características se mesclam,
tisfação sexual ideal. O que Freud ignora, bas- mas com a preponderância das que pertencem ao
tante paradoxalmente, é o aspecto psico-biológico sexo "dele" ou "dela".) Muitas vêzes. se os
da sexualidade, a polaridade masculino-femini- traços do caráter masculino de um homem se
na, e o desejo de ligar essa polaridade pela união. enfraquecem porque ele permanece emocional-
Tão curioso êrro foi provàvelmente facilitado mente criança, tentará compensar essa falta pela
pelo extremo patriarcalismo de Freud, que o acentuação exclusiva sare seu papel masculino
levOu à idéia de que a sexualidade, por si, é no sexo. O resultado é o Dom Juan, que ne-
masculina, fazendo-o ignorar assim a sexualida- cessita de provar sua potencialidade masculina
de feminina específica. Expressou essa idéia em no sexo, por estar inseguro de sua masculini-
Três Contribuições à Teoria do Sexo, dizendo dade no sentido caracterológico. Quando a pa-
que a libido tem regularmente "uma natureza ralisia da masculinidade é mais extrema, o sa-
masculina", não importa seja a libido num ho- dismo (uso da fôrça) torna-se o substituto prin-
mem ou numa mulher. A mesma idéia é tam- cipal — e pervertido — da masculinidade. Se
bém expressa em forma racionalizada na teoria a sexualidade feminina se enfraquece ou perver-
de Freud de que o menino experimenta a mulher te, transforma-se em masoquismo, ou possessivi-
como um homem castrado, e que ela própria dade.
procura várias compensações para a perda do Freud tem sido criticado pelo excesso de
órgão genital masculino. Mas a mulher não é importância que dá ao sexo. Tais críticas mui-
um homem castrado, e sua sexualidade é espe- tas vêzes foram incentivadas pelo desejo de re-
cificamente feminina, e não de "natureza mas- mover um elemento do sistema de Freud que
culina". despertava censuras e hostilidade entre pessoas

60 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 61


de mentalidade convencional. Freud sentiu agu- listas ortodoxos, tal aceitação não levou a uma
damente essa motivação e, por essa própria ra- revisão fundamental do conceito de libido, espe-
zão, combateu qualquer tentativa de alterar sua cialmente na parte referente ao trabalho clínico.)
teoria do sexo. De fato, em seu tempo, a teoria
de Freud teve um caráter desafiador e revolu- 2 - AMOR ENTRE PAIS E FILHOS
cionário. O que, porém, era exato por volta de
1900, já não o é mais cinqüenta anos depois. A criança, no momento de nascer, sentiria
Os costumes sexuais mudaram tanto que as o temor de morrer, se um destino amável não
teorias de Freud não mais escandalizam as clas- a preservasse de qualquer consciência da ansie-
ses médias ocidentais, e quando, hoje, analistas dade ligada à separação da mãe e da existência
ortodoxos ainda pensam que são corajosos e ra- intra-uterina. Mesmo depois de nascer, a crian-
dicais por defenderem a teoria sexual de Freud, ça quase não difere do que era antes do nasci-
apenas mostram um tipo quixotesco de radica- mento; não pode reconhecer objetos, não tem
lismo. De fato, seu ramo de psicanálise é con- ainda ciência de si, nem do mundo como enti-
formista e não tenta suscitar questões psicológi- dade que lhe é exterior. Apenas sente o estí-
cas que possam levar a uma crítica da sociedade mulo positivo do calor e do alimento e não di-
contemporânea. ferencia ainda calor e alimento de sua fonte: a
Minha crítica da teoria de Freud não é a mãe. A mãe é calor, a mãe é alimento, a mãe é
de que êle deu ênfase excessiva ao sexo, mas a o estado eufórico de satisfação e segurança.
de que falhou em compreender o sexo com bas- Ésse estado é o de narcisismo, para usar o termo
tante profundidade. Deu o primeiro passo ao de Freud. A realidade externa, pessoas e coisas,
descobrir a significação das paixões interpesso- só têm significado nos termos em que satisfaçam
ais; de acôrdo com suas premissas filosóficas, ou frustrem o estado interno do corpo. Só é
explicou-as fisiológicamente. No ulterior desen- real o que está por dentro; o que está por fora
volvimento da psicanálise, é necessário corrigir
apenas é real em têrmos das necessidades da
e aprofundar o conceito de Freud, transladan-
criança, e nunca em termos das qualidades ou
do-se o que êle discerniu, das dimensões fisio-
necessidades que tenha.
lógicas, para as biológicas e existenciais. (O
próprio Freud deu um passo nesta direção, em Quando a criança cresce e se desenvolve,
sua concepção posterior dos instintos de vida e torna-se capaz de perceber as coisas tais como
de morte. Seu conceito do primeiro ( giros) como são; a satisfação de ser alimentada torna-se di-
um princípio de síntese e unificação, acha-se em ferenciada da mamadeira, o seio diferencia-se
plano inteiramente diferente do de seu conceito da mãe. Acaba a criança por sentir sua sêde,
da libido. Apesar, porém, de haver sido a teoria o leite que a satisfaz, o seio e a mãe, como
dos instintos de vida e de morte aceita por ana- entidades diferentes. Aprende a perceber mui-

62 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 63


tas outras coisas como sendo diferentes, como amado pelo que se é. A criança até essa idade
tendo existência própria. Neste ponto, aprende ainda não ama ; corresponde gratamente, alegre-
a dar-lhes nomes. Ao mesmo tempo, aprende a mente, a ser amada. Nesse ponto do desenvol-
lidar com elas ; aprende que o fogo é quente' e vimento infantil, entra em cena um novo fator-:
doloroso, que o corpo da mãe é aquecido e agra- o de um novo sentimento de produzir amor pela
dável, que um pau é duro e pesado, que o própria atividade. Pela primeira vez a criança
papel é leve e pode ser rasgado. Aprende a pensa em dar alguma coisa à mãe (ou ao pai),
tratar com as pessoas: mamãe sorrirá quando de produzir alguma coisa: um poema, um dese-
eu comer, tomar-me-á nos braços quando eu cho- nho, seja o que fôr. Pela primeira vez na vida
rar, louvar-me-á quando eu fizer um movimento da criança a idéia de amor se transforma de ser
canhestro. Tôdas essas experiências cristali- amada em amar ; em criar amor. Muitos anos
zam-se e integram-se na experiência: sou amado. vão dêste primeiro início ao amadurecimento do
Sou amado por ser o filho de minha mãe ; sou amor. Mas por fim a criança, que agora pode
amado por ser indefeso; sou amado por ser belo, ser um adolescente, supera seu egocentrismo; a
admirável. Sou amado porque minha mãe pre-
outra pessoa não é mais primariamente um meio
cisa de mim. Usando uma fórmula mais geral:
de satisfação de suas próprias necessidades. As
sou amado pelo que sou; ou, talvez com exatidão
maior : sou amado porque sou. Esta experiência necessidades da outra pessoa são tão importantes
de ser amado pela mãe é passiva. Nada tenho quanto as suas próprias — de fato, tornaram-se
de fazer a fim de ser amado; o amor de minha mais importantes. Dar tornou-se mais satisfa-
mãe é incondicional. Tudo o que tenho a fazer tório, mais alegre do que receber; amar, mais
é ser — ser o seu filho. O amor da mãe é cego, importante mesmo do que ser amado. Amando,
é pacífico, não precisa ser adquirido, não ne- a criança deixou a cela da prisão da solidão -e
cessita ser merecido. Mas há um lado negativo, do isolamento, que era constituida pelo estado
também, na qualidade incondicional do amor de de narcisismo e de centralização em si mesma.
mãe. Não só ele não precisa ser merecido ; não Experimenta um sentimento de nova união, de
pode, igualmente, ser adquirido, produzido, con- participação, de unidade. Mais do que isso, sen-
trolado. Se existe, é como uma bênção; se não te a potência de produzir amor pelo fato de
existe, é como se desaparecesse da vida tôda a amar — em lugar da dependência de receber
beleza — e nada posso fazer para criá-lo. pelo fato de ser amada — e, por essa razão, de
Para a maior parte das crianças antes da ter de ser pequena, indefesa, enfêrma — ou
idade de entre oito e meio e dez anos, (conf. "boa". O amor infantil segue o principio:
The Interpersonal Theory of Psychiatry, Sulli- "Amo porque sou amado". O amor amadurecido
van, Londres, Tavistock, 1955) o problema é segue o princípio: "Sou amado porque amo".
quase exclusivamente o de ser amado — de ser O amor imaturo diz : "Amo-te porque necessi-

64 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 65


to de ti". Diz o amor maduro: "Necessito de profundas aspirações, não só da criança, mas
ti porque te amo". de qualquer ente humano; por outro lado, ser
Estreitamente relacionado ao desenvolvimen- amado em razão dos próprios méritos, por me-
to da capacidade de amar é o desenvolvimento recê-lo, sempre deixa dúvida; talvez eu não agra-
do objeto do amor. Os primeiros meses e anos de à pessoa que desejo que me ame, talvez isto,
da criança são aquêles em que sua ligação mais ou aquilo — há sempre o temor de que o amor
estreita é com a mãe. Essa ligação começa antes possa desaparecer. Além do mais, o amor "me-
do instante do nascimento, quando mãe e filho recido" fàcilmente deixa o amargo sentimento
ainda são um, embora sejam dois. O nascimen- de que não se é amado por si mesmo, de que se é
to muda a situação sob certos aspectos, mas não amado apenas por agradar, de que, em última
tanto quanto pareceria. A criança, se agora vive análise, não se é amado em absoluto, mas utili-
fora do ventre, ainda depende completamente zado. Não é de admirar que todos nos ape-
da mãe. Dia a dia, porém, torna-se mais inde- guemos ao anseio pelo amor materno, como
pendente: aprende a andar, a falar, a explorar crianças e também como adultos. A maioria
o mundo por si; a relação com a mãe perde das crianças é bastante feliz em receber amor
algo de sua significação vital e, em lugar disso, materno (até que extensão, discutiremos mais
a relação com o pai torna-se cada vez mais im- adiante). Quando adultos, a mesma aspiração é
portante. muito mais difícil de efetivar-se. No mais sa-
A fim de compreender essa mudança da mãe tisfatório desenvolvimento, permanece como um
para o pai, devemos considerar as essenciais componente do amor erótico normal; muitas vê-
diferenças de qualidade entre o amor materno zes encontra expressão em formas religiosas, e
e o paterno. Já falamos a respeito do amor mais vêzes ainda em formas neuróticas.
materno. Por sua própria natureza, o amor ma- A relação para com o pai é inteiramente
terno é incondicional. A mãe ama a criança
diferente. A mãe é o lar de que proviemos, é
recém-nascida porque é seu filho, e não porque
a natureza, o solo, o oceano; o pai não representa
o filho tenha preenchido qualquer condição es-
qualquer dêsses lares. naturais. Tem pouca li-
pecífica ou correspondido a qualquer expectativa
gação com o filho nos primeiros anos de sua vida,
específica. (Naturalmente, ao falar aqui do
amor de mãe e de pai, falo dos "tipos ideais" e sua importância para a criança, nesse período
— no sentido de Max Weber, ou de um arqué- primitivo, não pode ser comparada com a da
tipo no sentido de Jung — e não pretendo que mãe. Se, porém, não representa o mundo na-
todos os pais e mães amem de tal modo. Re- tural, o pai representa o outro polo da existên-
firo-me .ao princípio paternal e maternal, .que é cia humana : o mundo do pensamento, das coisas
representado na pessoa paterna e materna.) O feitas pelo homem, da lei e da ordem, da dis-
amor incondicional corresponde a uma das mais ciplina, das viagens e da aventura. O pai é

66 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 67


aquêle que ensina ao filho, que lhe mostra a ridade e orientação. A mãe tem a função de
estrada do mundo. fazê-lo seguro na vida, o pai tem a de ensiná-lo
guiá-lo a enfrentar os problemas com que a so-
Relacionada de perto com essa função acha-se
ciedade particular em que o filho nasceu o con-
a que se liga ao desenvolvimento rocio-econô-
fronta. No caso ideal, o amor de mãe não tenta
mico. Quando a propriedade privada veio a
impedir o filhó de crescer, não tenta premiar-lhe
existir, e quando a propriedade privada pôde
o desamparo. A mãe deve ter fé na vida, não
ser herdada por um dos filhos, o pai começou
ficando portanto excessivamente ansiosa e, assim,
a escolher aquêle filho a quem deixaria seus
não contagiando o filho com sua preocupação.
bens. Naturalmente, era aquêle que o pai con-
Parte de sua vida deve ser o desejo de que o
siderava em melhores condições de tornar-se seu
filho se torne independente e acabe por sepa-
sucessor, o filho que mais se parecesse com êle
rar-se dela. O amor do pai deve ser guiado
e de que, conseqüentemente, gostasse mais. O
por princípios e expectativas; deve ser paciente
amor paterno é amor condicional. Seu princí-
e tolerante, mais do que ameaçador e autoritário.
pio é: "Amo-te porque preenches minhas ex- Deve dar à criança que se desenvolve um sen-
pectativas, porque cumpres o teu dever, porque
timento crescente de competência e acabar por
és como eu". No amor paterno condicional en-
permitir-lhe que se torne sua própria autoridade
contramos, como se dá com o incondicional amor
e dispense a do pai.
materno, um aspecto negativo e um positivo.
Afinal, chega a pessoa amadurecida ao ponto
O aspecto negativo está no próprio fato de que
em que se torna seu próprio pai e sua própria
o amor paterno tem de ser merecido, de que
mãe. Tem, por assim dizer, uma consciência
pode ser perdido se não se faz o que é esperado.
materna e paterna. A consciência materna diz :
Pertence à natureza do amor paterno o fato de
"Não há ação má nem crime que possa privar-te
tornar-se a obediência a principal virtude e a
desobediência o principal pecado — sendo sua de meu amor, do que desejo para tua vida e
punição a retirada do amor paterno. O lado felicidade". A consciência paterna diz: "Agis-
positivo é igualmente importante. Sendo seu te mal, não podes deixar de aceitar certas conse-
amor condicionado, posso fazer algo para adqui- qüências de teus erros, e, antes de tudo, deves
ri-lo, posso trabalhar por ele; seu amor não está mudar de conduta se quiseres que eu goste de
fora de meu contrôle, como está o amor materno. ti". A pessoa amadurecida libertou-se dos vul-
tos externos do pai e da mãe e construiu-os
As atitudes do pai e da mãe para com o
dentro de si. Em contraste com o conceito do
filho correspondem às próprias necessidades
super-ego, de Freud, entretanto, não os cons-
dêste. A criança necessita do amor incondicio-
nal da mãe, de seu cuidado, fisiolôgicamente e truiu ela dentro si incorporando pai e mãe, mas
pela edificação de uma consciência materna sô-
psicolôgicamente. O filho, após seis anos, co-
bre sua própria capacidade de amar, e de uma
meça a necessitar do amor do pai, de sua auto-

A ARTE DE AMAR 69
68 ERICH FROMM
consciência paterna sôbre sua razão e julga- pessoa transferir a necessidade de proteção ma-
mento. Além disso, a pessoa amadurecida ama terna para seu pai e as subseqüentes imagens
tanto com a consciência materna quanto com a do pai, caso em que o resultado final é seme-
paterna, apesar do fato de parecerem elas con- lhante ao do anterior, ou em que se desenvolverá
tradizer-se mütuamente. Se quisesse reter ape- numa pessoa de orientação unilateralmente pa-
nas a consciência paterna, tornar-se-ia áspera e terna, completamente entregue aos princípios da
inumana. Se quisesse apenas reter a consciên- lei, da ordem e da autoridade, faltando-lhe a
cia materna, estaria em condições de perder a capacidade de esperar ou receber amor incon-
capacidade de julgar e de impedir o desenvol- dicional. Tal desenvolvimento é ainda mais in-
vimento seu e dos outros. tensificado se o pai fôr autoritário e, ao mesmo
Nessé desenvolvimento do afeto centralizado tempo, fortemente ligado ao filho. Caracterís-
na mãe para o afeto centralizado no pai e em tico de todos êsses desenvolvimentos neuróticos
sua síntese ulterior reside a base da saude men- é o fato de que um princípio, o paterno ou o
tal e da completação da maturidade. Nas falhas materno, deixa de se desenvolver, ou — e é o
de tal desenvolvimento acham-se as causas bá- que ocorre no desenvolvimento neurótico mais
sicas da neurose. Embora esteja fora dos alvos grave — de que os papéis do pai e da mãe se
deste livro o trato mais amplo de tal tendência tornam confusos, tanto com relação às pessoas
do pensamento, algumas breves observações po- exteriores quanto com relação a êsses papéis no
dem servir para esclarecer esta afirmativa. interior da pessoa. Mais extenso exame pode
Uma causa de desenvolvimento neurótico mostrar que certos tipos de neurose, como a
pode residir no fato de ter um menino uma neurose obsidente, desenvolvem-se mais sôbre a
mãe amorosa, mas ultra-indulgente ou domina- base de um afeto paterno unilateral, ao passo
dora, e um pai fraco e desinteressado. Neste que outras, como a histeria, o alcoolismo, a
caso, pode êle permanecer agarrado a um afeto incapacidade de afirmar-se e de enfrentar a vida
materno antigo, desenvolvendo-se numa pessoa realisticamente, e as depressões, resultam da cen-
que depende da mãe, que se sente desamparada tralização na mãe.
e tem as características de empenho da pessoa
receptiva, isto é, receber, ser protegida, ser 3 — DOS OBJETOS DO AMOR
cuidada, faltando-lhe as qualidades paternas:
disciplina, independência, capacidade de domi- O amor não é, primacialmente, uma relação
nar a vida por si mesma. Pode tentar encon- para com uma pessoa específica; é uma atitude,
trar "mães" em tôda gente, às vêzes em mulhe- urna orientação de caráter, que determina a re-
res, às vêzes em homens em situação de auto- lação de alguém para com o mundo como um
ridade e poder. Se, por outro lado, a mãe fôr todo, e não para com um "objeto" de amor. Se
fria, sem correspondência e dominadora, pode a uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e é

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indiferente ao resto dos seus semelhantes, seu o teu próximo como a ti mesmo. O amor fra-
amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou terno é amor por todos os seres humanos; ca-
um egoismo ampliado. Contudo, a maioria crê racteriza-se pela própria falta de exclusividade.
que o amor é constituido pelo objeto e não pela Se desenvolvi a capacidade de amar, então não
faculdade. De fato, acredita-se mesmo que a posso deixar de amar meus irmãos. No amor
prova da intensidade do amor está em não amar fraterno há a experiência da união com todos
ninguém além da pessoa "amada". Êste o mes- os homens, da solidariedade humana, do sincro-
mo equívoco de que acima já falamos. Por nismo humano. O amor fraterno baseia-se na
não se ver que o amor é uma atividade, uma experiência de que todos somos um. As dife-
fôrça da alma, acredita-se que tudo quanto é ne- renças de talento, inteligência, conhecimento são
cessário encontrar é o objeto certo — e tudo o mesquinhas em comparação com a identidade do
mais irá depois por si. Tal atitude pode ser núcleo humano comum ,a todos os homens. A
comparada à de alguém que queira pintar mas, fim de sentir essa identidade é necessário pe-
em vez de aprender a arte, proclama que lhe netrar da periferia até ao núcleo. Se percebe
basta esperar pelo objeto certo, passando a pin- em outra pessoa principalmente a superfície,
tá-lo belamente quando o encontrar. Se verda- percebe principalmente as diferenças que nos
deiramente amo alguém, então amo a todos, amo separam. Se penetro até ao núcleo, percebo
o mundo, amo a vida. Se posso dizer a outrem, nossa identidade, o fato de nossa fraternidade.
"Eu te amo", devo ser capaz de dizer: "Amo Essa relação de centro a centro, em vez da de
em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me periferia a periferia, é "relação central". Ou,
a mim mesmo em ti". como Simone Weil expressou com tanta beleza:
Dizer que o amor é uma orientação que se "As mesmas palavras (por ex., um homem diz
refere a todos e não a um não implica, entre- à sua espôsa, "Eu te amo") podem ser lugares
tanto, a idéia de que não haja diferenças entre comuns ou extraordinárias, de acôrdo com a ma-
vários tipos de amor, que dependem da espécie neira por que sejam faladas. E essa maneira
de objeto que é amado. depende da profundidade da região de um ser
humano de que procedam, sem que a vontade
a) Amor fraterno. seja capaz de fazer qualquer coisa. E, por um
A mais fundamental espécie de amor, que maravilhoso concerto, elas alcançam a mesma
alicerça todos os tipos de amor, é o amor fra, região em quem as ouve. Assim, o ouvinte pode
terno. Entendo por isto o sentimento de res- discernir, se tiver algum poder de discernimento,
ponsabilidade, de cuidado, de respeito por qual- qual é o valor das palavras". (Gravity and
quer outro ser humano, o seu conhecimento, o trace, Simone Weil, Londres, Routledge, 1955).
desejo de aprimorar-lhe a vida. Desta espécie O amor fraterno é amor entre iguais; mas,
de amor é que a Bíblia fala, quando diz: ama na verdade, mesmo como iguais não somos sem-

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pre "iguais"; e por sermos humanos, temos todos
necessidade de ajuda. Hoje eu, amanhã tu. b) Amor materno
Essa necessidade de ajuda, todavia, não significa Já tratamos da natureza do amor materno no
que um seja desamparado e o outro poderoso. capítulo anterior, em que discutimos a diferença
O desamparo é uma condição transitória; a entre o amor materno e o paterno. Como disse
permanente e comum é a capacidade de erguer-se ali, o amor materno é uma afirmação incondicio-
e caminhar pelos próprios pés. nal da vida do filho e de suas necessidades.
Contudo, o amor ao desamparado, o amor ao Adição importante, porém, a essa descrição deve
pobre e ao estranho é o começo do amor fraterno. ser feita aqui. A afirmação da vida do filho tem
dois aspectos; um é o do cuidado e responsabili-
Amar a própria carne e sangue de alguém não é
dade absolutamente necessários para preservação
completa realização. O animal ama suas crias e da vida do filho e o seu crescimento. O outro
cuida delas. O desamparado ama seu protetor, aspecto vai mais longe do que a simples preser-
pois sua vida depende dele; o filho ama os pais, vação. É a atitude que infunde no filho o amor
pois precisa deles. Só no amor aos que não à vida, que lhe dá o sentimento de ser bom viver,
servem a uma finalidade começa o amor a des- de ser bom ser um menino ou uma menina, de
dobrar-se. De modo significativo, no Velho ser bom estar nesta terra! Estes dois aspectos
Testamento, o objeto central do amor humano é do amor materno expressam-se muito sucinta-
o pobre, o estrangeiro, a viuva, o órfão, e por mente na história Bíblica da criação. Deus
fim o inimigo nacional, o egípcio e o edomita. criou o mundo e o homem. Isto corresponde
ao simples cuidado e à afirmação da existência.
Tendo compaixão pelo desamparado, o homem
Mas Deus vai além dêsse requisito mínimo. Cada
começa a desenvolver o amor por seu irmão; e
dia, depois que a natureza — e o homem — são
em seu amor por si mesmo ama também o que criados, Deus diz: "É bom". O amor materno,
necessita de auxílio, o frágil, o inseguro ser hu- neste segundo passo, faz o filho sentir : é bom
mano. A compaixão envolve o elemento de conhe- ter nascido. Instila na criança o amor pela vida
cimento e de identificação. "Conheceis o coração e não só o desejo de permanecer vivo. A mesma
do estrangeiro — diz o Velho Testamento — idéia pode ser expressa em outro simbolismo Bí-
pois fôstes estrangeiros na terra do Egito ;... blico. A terra prometida (a terra é sempre um
portanto, amai o estrangeiro!" (A mesma idéia símbolo materno) é descrita como aquela em que
foi expressa por Hermann Cohen em seu livro "corre leite e mel". O leite é o símbolo do pri-
Religion der Vernunft aus den Quellen des Ju- meiro aspecto do amor, o do cuidado e afirma-
dentums, 2.a edição, J. Kaufmann Verlag, Frank- ção. O mel simboliza a doçura da vida, o amor
por ela e a felicidade de estar vivo. Muitas mães
furt sôbre o Meno, 1929, pag. 168 seg.).
sáo capazes de dar "leite', mas só a minoria o

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é também de dar "mel". A fim de ser capaz de
mente humanos responsáveis por êsse tipo de
dar mel, a mãe deve não só ser uma "boa mãe", amor materno. Um dêles pode ser achado no
mas ainda uma pessoa feliz — e êste alvo não é elemento narcisista do amor de mãe. Visto como
alcançado por muitas. O efeito sôbre o filho a criança é ainda considerada parte da própria
dificilmente poderá, ser exagerado. O amor da mãe, o amor e a ufania desta podem ser uma
mãe pela vida é tão contagioso quanto o é a sua satisfação de seu narcisismo. Outra motivação
ansiedade. Ambas as atitudes têm profundo pode ser encontrada no desejo da mãe de poder,
efeito sôbre tôda a personalidade do filho; pode- ou possessão. A criança, por ser desamparada
se, em verdade, distinguir, entre crianças — e e inteiramente submetida à sua vontade, é um
adultos —, aquêles que só receberam "leite" e objeto natural de satisfação para uma mulher
aquêles que tiveram "leite e mel". dominadora e possessiva.
Em contraste com o amor fraterno e o amor Embora freqüentes, tais motivações são pro-
erótico, que são amor entre iguais, a relação de vàvelmente menos importantes e menos universais
mãe e filho é, por sua própria natureza, de do que a que pode ser chamada necessidade de
desigualdade; nela, um necessita de tôda a ajuda, transcendência. Esta é uma das necessidades
o outro a dá. Por êsse caráter altruista, abne- mais básicas do homem, com raiz no fato de sua
gado, é que o amor de mãe tem sido considerado consciência de si mesmo, no fato de não se satis-
a mais alta espécie de amor, o mais sagrado de fazer com o papel de criatura, de não poder
todos os laços emocionais. Parece, porém, que aceitar-se como um dado lançado do copo. Êle
a concretização real do amor materno não está necessita sentir-se como o criador, como alguém
no amor da mãe pela criancinha, mas em seu que transcende o papel passivo de ser criado.
amor ao filho que cresce. De fato, a vasta Há muitos meios de realizar essa satisfação de
maioria das mães compõe-se de mães amorosas criação; o mais natural e mais fácil de efetuar
enquanto o filho é pequenino e ainda completa- é o cuidado e o amor da mãe por sua criatura.
mente dependente delas. A maioria das mulhe- Ela se transcende na criança, seu amor por ela
res quer filhos, sente-se feliz com o recém-nas- dá à sua vida sentido e significação. (Na pró-
cido, ansiosa em seu cuidado por êle. Isto é pria incapacidade do ser masculino para satis-
assim, apesar do fato de que elas nada "recebem" fazer essa necessidade de transcendência por meio
do filho em retribuição, à exceção de um sorriso da criação de filhos está sua insistência em
ou uma expressão de satisfação no rosto. Pa- transcender-se pela criação de coisas e idéias de
rece que essa atitude de amor enraiza-se em parte feitura humana.)
num equipamento instintivo que se encontra entre O filho, porém, deve crescer. Deve sair do
os animais, como no ente humano feminino. Seja
ventre da mãe, do seio da mãe; deve acabar por
qual fôr, entretanto, o pêso dêsse fator instin-
tornar-se um ente humano completamente sepa-
tivo, também há fatôres psicológicos especifica-
rado. A própria essência do amor materno é

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cuidar do crescimento do filho, e isso significa
querer o filho separado dela mesma. Aqui está c) Amor erótico
a diferença básica em relação ao amor erótico.
No amor erótico, duas pessoas que eram separadas O amor fraterno é amor entre iguais; o
tornam-se unia. No amor materno, duas pessoas amor materno é amor pelo desamparado. Dife-
que eram uma tornam-se separadas. A mãe não rentes embora um do outro, têm em comum o fato
só deve tolerar como deve desejar e ajudar a de, por sua própria natureza, não se restringirem
separação do filho. Só nessa etapa é que o amor a uma só pessoa. Se amo meu irmão, amo todos
materno representa uma tarefa tão difícil que os meus irmãos; se amo meu filho, amo todos os
requer abnegação, a capacidade de dar tudo e meus filhos; mais ainda: além disso, amo todos
nada querer senão a felicidade do ente amado. os filhos, todos os que necessitem de minha
É também nessa etapa que muitas mães falham ajuda. Em contraste com esses dois tipos de
em sua tarefa de amor materno. A mulher nar- amor, o amor erótico é o anseio de fusão com-
cisista, dominadora, possessiva pode conseguir pleta, de união com uma outra pessoa. É, por
ser mãe "amorosa" enquanto o filho é pequenino. sua própria natureza, exclusiva e não universal;
Só a mulher realmente amorosa, a que é mais é também, talvez, a mais enganosa forma de
feliz em dar do que em receber, firmemente ali- amor que existe.
cerçada em sua própria existência, só esta con- Antes de tudo, confunde-se êle muitas vêzes
segue ser mãe amorosa quando o filho se acha no com a experiência explosiva de "cair" enamora-
processo da separação. do, o súbito colapso das barreiras que até certo
O amor materno pelo filho que cresce, o amor momento existiam entre dois estranhos. Mas,
que nada quer para si, talvez seja a mais difícil como já antes apontamos, esta experiência de
forma de amor a realizar, tanto mais enganadora súbita intimidade é, por sua própria natureza,
em razão da facilidade com que a mãe pode de vida curta. Depois que o estranho se tornou
amar o filho pequenino. Justamente, porém, em pessoa intimamente conhecida, não há mais bar-
vista de tal dificuldade é que a mulher.sômente reiras a superar, não há mais proximidade súbita
pode ser mãe em verdade amorosa se puder a ser realizada. A pessoa "amada" fica sendo
amar; se fôr capaz de amar seu marido, outras tão bem conhecida como a gente mesma. Ou
crianças, estranhos, todos os seres humanos. A talvez seja melhor dizer: tão pouco conhecida.
mulher que não fôr capaz de amar nesse sentido Se houvesse mais profundidade na experiência
poderá ser mãe afetuosa enquant.o o filho estiver da outra pessoa, se se pudesse experimentar a
pequeno, mas não poderá ser mãe amorosa, pois infinidade de sua personalidade, a outra pessoa
a prova disto é a boa vontade em suportar a nunca seria tão familiar — e o milagre de
separação — e, mesmo depois da separação, con- superar as barreiras poderia ocorrer de novo a
tinuar amando. cada dia. Mas, para a maioria, a própria pessoa,

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assim como as outras, é logo explorada e logo
dão, pela vontade de conquistar ou ser conquis-
exaurida. Para a maioria, a intimidade se esta-
tado, pela vaidade, pelo gôsto de ferir e mesmo
belece antes de tudo pelo contacto sexual. Desde destruir, assim como pode ser estimulado pelo
que primeiramente se experimente a separativi- amor. Parece que o desejo sexual pode ser
dade da outra pessoa como separatividade física, misturado fàcilmente a qualquer emoção forte,
a união física significa a superação da separação. nela encontrando incitamento; e o amor é apenas
Além disso, há outros fatores que, para uma dessas emoções. Por estar o desejo sexual
muitos, denotam a superação da separação. emparelhado na mente de muitos com a idéia de
Falar da própria vida pessoal, das próprias es- amor, são eles com facilidade levados à má
peranças e ansiedades, mostrar-se nos seus aspec- conclusão de que amam um ao outro quando se
tos infantis ou pueris, estabelecer um interêsse querem um ao outro fisicamente. O amor pode
comum em face do mundo — tudo isso é tomado inspirar o desejo de união sexual; neste caso,
como superação da separação. Mesmo mostrar falta à relação física a avidez, a vontade de
cólera, ódio, falta completa de inibição é tomado conquistar ou ser conquistado, mas mistura-se
por intimidade, e isso pode explicar a atração nela a ternura. Se o desejo de união física não
pervertida que casais muitas vêzes sentem um fôr estimulado pelo amor, se o amor erótico
pelo outro, só parecendo íntimos quando se também não fôr amor fraterno, nunca levará à
achem na cama ou quando dêem expansão a seu. união mais do que num sentido orgíaco e transi-
ódio e raiva mútuos. Todos êsses tipos de proxi- tório. A atração sexual cria, no momento, a
midade, entretanto, tendem a reduzir-se cada vez ilusão de união, mas, sem amor, essa "união"
mais com o correr do tempo. A conseqüência é deixa os estranhos tão afastados quanto antes se
buscar-se amor em outra pessoa, em novo es- achavam; muitas vezes, faz com que se enver-
tranho. E de novo o estranho se transforma gonhem um do outro, ou mesmo faz com que
em pessoa "íntima", de novo a experiência de mutuamente se odeiem, pois, partida a ilusão,
cair enamorado é jubilosa e intensa, e de novo, sentem sua estranheza ainda mais acentuadamen-
vagarosamente, vai perdendo intensidade, para te do que antes. A ternura de modo algum é,
terminar no desejo de nova conquista novo amar
como acreditava Freud, uma sublimação do ins-
— sempre com a ilusão de que o novo amor será
tinto sexual; é o produto direto do amor fraterno
diferente dos anteriores. Essas ilusões são gran-
e existe tanto nas formas físicas do amor quanto
demente incentivadas pelo caráter enganador do nas não físicas.
desejo sexual.
No amor erótico há uma exclusividade que
O desejo sexual objetiva a fusão — e não falta ao amor fraterno e ao materno. Êsse
é, de modo algum, apenas um apetite físico, o caráter exclusivo do amor erótico permite um
alívio de uma tensão dolorosa. Mas o desejo se- pouco mais de debate. Freqüentemente a exclusi-
xual pode ser estimulado pela ansiedade da soli- vidade do amor erótico é mal interpretada como

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significando afeição possessiva. Muitas vezes temporânea, esta idéia parece inteiramente falsa.
encontramos duas pessoas "amando-se" uma à Supõe-se que o amor seja o resultado de uma
outra, sem sentirem qualquer amor por mais reação espontânea, emocional, quando alguém é
alguém. Seu amor, de fato, é um egoismo a de súbito apanhado por um sentimento irresis-
dois; são duas pessoas que se identificam mutua- tível. Neste conceito, apenas se vêem as peculia-
mente e que resolvem o problema da separação ridades dos dois indivíduos envolvidos — e não
ampliando em dois o singular individual. Têm o fato de serem todos os homens parte de Adão
a experiência de superar a solidão e, contudo, e tôdas as mulheres parte de Eva. Deixa-se de
por estarem separadas do resto da humanidade, ver um fator importante no amor erótico, o da
permanecem separadas uma da outra e alienadas vontade. Amar alguém não é apenas um senti-
de si mesmas; sua experiência de união é uma mento forte: é uma decisão, um julgamento, unia
ilusão. O amor erótico é exclusivo, mas ama na promessa. Se o amor apenas fôsse um sentimen-
outra pessoa tôda a humanidade, tudo quanto to, não haveria base para a promessa de amar-se
vive. É exclusivo apenas no sentido de que só um ao outro para sempre. O sentimento vem
me posso fundir plena e intensamente com uma e pode ir-se. Como posso julgar que ficará
pessoa. O amor erótico apenas exclui o amor para sempre, se meu ato não envolve julgamento
aos outros no sentido da fusão erótica, da plena e decisão?
entrega em todos os aspectos da vida, mas não no Levando essas opiniões em conta, pode-se
sentido do profundo amor fraterno. chegar á posição de que o amor é exclusivamente
O amor erótico, se é amor, tem uma premissa um ato de vontade e entrega, e portanto, funda-
que eu ame da essência de meu ser e experi- mentalmente, não importa quem sejam as duas
mente a outra pessoa na essência do seu pessoas. Seja o casamento arranjado por outros,
Em essência, todos os seres humanos são idênti- ou resultado de escolha individual, uma vez con-
cos. Somos todos parte de Um; somos Um. cluido, o ato da vontade assegurará a continuação
Sendo assim, não fará qualquer diferença quem do amor. Esta concepção parece desprezar o
amemos. O amor será essencialmente um ato caráter paradoxal da natureza humana e do amor
de vontade, de decisão de entregar minha vida erótico. Somos todos Um — e contudo cada um
completamente à de outra pessoa. Isto é, em de nós é uma entidade única, induplicável. Em
verdade, o que existe de racional por trás da nossas relações com os outros o mesmo paradoxo
idéia da indissolubilidade do casamento, como se repete. Por sermos todos um, podemos amar
por trás das muitas formas de matrimônio tra- a todos do mesmo modo, no sentido do amor
dicional, em que os dois participantes não se fraterno. Mas, por sermos todos também dife-
escolhem um ao outro, mas são escolhidos um rentes, o amor erótico requer certos elementos
para o outro — esperando-se contudo que específicos, altamente individuais, que existem
mutuamente se amem. Na cultura ocidental con- entre certas pessoas, mas não entre tôdas.

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Assim, ambas as concepções, a do amor eró- Educação Cristã, Filadélfia, 1928, Cap. 7, par.
tico como atração completamente individual, 4, pag. 622). Freud fala do amor próprio em
única, entre duas pessoas específicas, e a outra têrmos psiquiátricos mas, não obstante, seu julga-
opinião de que o amor erótico apenas é um ato mento de valor é o mesmo de Calvino. Para êle,
de vontade, são verdadeiras; ou, como se pode amor próprio é idêntico a narcisismo, a volta da
dizer mais adequadamente, a verdade não é esta libido para a própria pessoa. O narcisismo é
nem aquela. Eis porque a idéia de que uma a mais antiga etapa do desenvolvimento humano
relação pode ser fàcilmente dissolvida se não se e a pessoa que, mais tarde na vida, retorna
teve sucesso nela é tão errônea como a idéia de etapa narcisista, é incapaz de amar; no caso
que sob circunstância alguma deva a relação ser extremado, é louco. Freud considera que o amor
dissolvida. é a manifestação da libido e que a libido ou se
volta para os outros — amor —, ou se volta
d) Amor próprio (*) para a própria pessoa — amor próprio. Amor
e amor próprio são, assim, mútuamente exclusi-
Embora não haja objeções à aplicação do
vos, no sentido de que, quanto mais houver de
conceito de amor a vários objetos, é crença das um, menos haverá do outro. Se o amor próprio
mais espalhadas a de que, se é virtuoso amar os é mau, conclui-se que a abnegação é virtuosa.
outros, é pecaminoso amar a si mesmo. Admite- Suscitam-se estas questões: Sustenta a obser-
se que, no grau em que me amo a mim mesmo, vação psicológica a tese de haver uma contra-
não amo os outros, que o amor próprio é o dição básica entre o amor por si mesmo e o amor
mesmo que egoismo. Essa concepção recua longe pelos outros? É o amor por si próprio o mesmo
no pensamento ocidental. Calvino fala do amor fenômeno que o egoismo, ou são opostos? Além
próprio como "uma peste". (João Calvino, do mais, é o egoismo do homem moderno real:
Institutes of the Christian Religion, tradução mente uma preocupação por si mesmo como
inglesa de J. Albau, Comissão Presbiteriana de indivíduo, com tôdas as suas potencialidades
intelectuais, emocionais e sensoriais? Não se
(•) Paul Tillich, numa critica de The Sane Society, em Pas- tornou "êle" um apêndice de seu papel socio-
toral Psychology, de setembro de 1955, sugeriu que melhor seria
abandonar a expressão ambígua "amor próprio" e substitui-la por econômico ? .É seu egoísmo idêntico ao amor
"afirmação natural de si" ou "auto-aceitação paradoxal". Por próprio, ou não será causado pela própria falta
muito que encare os méritos desta sugestão, não posso concordar
com êle em tal ponto. Na expressão "amor próprio" o elemento
diste?
paradoxal do amor de si mesmo acha-se mais claramente contido. Antes de começarmos a discutir o aspecto
Expressa-se o fato de ser o amor uma atitude que é a mesma
para com todos os objetos, incluindo eu próprio. Também não se
psicológico do egoismo e do amor próprio, deve
deve esquecer que a expressão "amor próprio", no sentido em que ser frisado o êrro lógico da noção de que o amor
aqui é usada, tem uma história. A Bíblia fala de amor próprio pelos outros e o amor por si mesmo miltuamente
quando manda: "ama teu próximo como a ti mesmo", e Meister
Eckhart fala de amor próprio no mesmíssimo sentido. se excluam. Se é uma virtude amar o meu

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próximo, como um ser humano, deve ser uma pessoa amada, enraizado na própria capacidade
virtude — e não um vício — amar a mim mesmo, de amar que alguém tem.
pois também sou um ser humano. Não existe Amar alguém é a atualização e a concentra-
conceito de homem em que eu próprio não esteja ção da fôrça de amar. A afirmação básica con-
incluido. Uma doutrina que proclame tal ex- tida no amor dirige-se para a pessoa amada como
clusão demonstra-se intrinsecamente contraditó- uma encarnação de qualidades essencialmente
ria. A idéia expressa no Bíblico "ama teu humanas. Amar uma pessoa implica amar o
próximo como a ti mesmo" implica que o res- homem como tal. A espécie de "divisão de tra-
peito pela própria integridade e singularidade balho", como a chama William James, pela qual
de alguém, o amor e a compreensão de seu alguém ama sua família mas não tem sentimentos
próprio ser, não se podem separar do respeito, pelo "estranho", é um sinal de incapacidade
do amor e da compreensão para com outro indi- básica de amor. O amor ao homem não é, como
víduo. O amor por meu próprio ser liga-se inse- freqüentemente se supõe, uma abstração que
paràvelmente ao amor por qualquer outro ser. acompanhe o amor a uma pessoa específica, mas
Chegamos agora às premissas psicológicas é sua premissa, embora genèticamente se adquira
básicas sôbre que se edificam as conclusões de amando indivíduos específicos.
nossa argumentação. Em geral, essas premissas Daí se segue que meu próprio ser deve
são as seguintes: não só os outros, mas nós mes- tornar-se tanto objeto de meu amor quanto outra
mos, somos o "objeto" de nossos sentimentos e pessoa. A afirmação da vida própria de alguém,
atitudes; as atitudes para com os outros e para de sua felicidade, crescimento, liberdade, enraiza-
conosco mesmos, longe de serem contraditórias, se na sua capacidade de amar, isto é, no cuidado,
são bàsicamente conjuntivas. Com referência ao respeito, responsabilidade e conhecimento. Se
problema em discussão, isto significa : o amor um indivíduo é capaz de amar produtivamente,
aos outros e o amor a nós mesmos não são alter- também ama a si mesmo; se só puder amar os
nativas. Ao contrário, a atitude de amor para outros, não pode amar, em absoluto.
consigo mesmo é encontrada em todos aquêles Admitido que o amor por si mesmo e pelos
capazes de amar aos outros. O amor, em princí- outros, em princípio, é conjuntivo, como expli-
pio, é indivisível até onde se trata da conexão caremos o egoísmo, que evidentemente exclui
entre os "objetos" e o próprio ser de alguém. qualquer preocupação genuína pelos outros? A
O amor genuino é uma expressão de produtivi- pessoa egoista só se interessa por si mesma, tudo
dade e implica cuidado, respeito, responsabili- quer para si, não sente prazer em dar, mas só
dade- e conhecimento. Não é um "afeto", no em tomar. O mundo exterior é encarado apenas
sentido de ser afetado por alguém, mas um es- do ponto de vista daquilo que ela pode extrair
fôrço ativo pelo crescimento e felicidade da dele; falta-lhe interêsse pelas necessidades

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alheias, respeito por sua dignidade e integridade. pada, não por amar o filho demais, mas por ter
Não pode ela ver senão a si mesma; julga tudo de compensar sua falta de capacidade para de
e todos pela utilidade que lhe possam ter; é qualquer modo amá-lo.
basicamente incapaz de amar. Não prova isto Esta teoria da natureza do egoismo origina-
que a preocupação pelos outros e a preocupação se da experiência psicanalítica com a "abnega-
por si mesmo sejam alternativas inevitáveis? ção" neurótica, sintoma de neurose observado em
Seria assim, se o egoismo e o amor próprio fôs-
número não pequeno de pessoas que normalmente
sem idênticos. Mas esta concepção é o próprio
são perturbadas, não por êsse sintoma, mas por
engano que tem levado a tantas conclusões errô-
outros a êle ligados, como a depressão, o cansaço,
neas relativas a nosso problema. O egoísmo e
o amor próprio, longe de serem idênticos, são a incapacidade de trabalhar, o fracasso nas rela-
efetivamente opostos. A pessoa egoista não ama ções amorosas e assim por diante. Não só a
a si mesma demais, mas demasiado pouco; de abnegação deixa de ser sentida como um "sin-
fato, odeia-se. Esta falta de efeiçã o e cuidado toma"; muitas vêzes, é o único traço redentor
por si mesma, que apenas é expressão de sua de caráter de que tais pessoas se orgulham. A
falta de produtividade, deixa-a vazia e frustrada. pessoa "abnegada" "nada quer para si"; "vive
É necessàriamente infeliz e ansiosamente preocu- mó para os outros", orgulha-se de não se consi-
pada em furtar da vida as satisfações que a si derar importante. Fica perplexa por verificar
própria impede de atingir. Parece cuidar de- que, apesar de sua falta de egoismo, é infeliz,
masiado de si mesma, mas de fato apenas faz que suas relações com os que lhe são mais che-
uma tentativa mal sucedida de encobrir e com- gados não se mostram satisfatórias. O trabalho
pensar seu fracasso em cuidar de seu ser real. analítico vem mostrar que sua abnegação não é
Freud sustenta que a pessoa egoista é narcisista, algo separado de seus outros sintomas, mas um
COM) se tivesse retirado seu amor dos outros, dêles, muitas vêzes, de fato, o mais importante;
voltando-o para si própria. É verdade que as que a pessoa está paralisada em sua capacidade
pessoas egoístas são incapazes de amar os outros, de amar ou de gozar de qualquer coisa; que está
mas também não são capazes de amar a si, mes- invadida pela hostilidade para com a vida e que,
mas. por trás da fachada de abnegação, esconde-se
É mais fácil compreender o egoismo compa- uma sutil, mas não menos intensa, centralização
rando-o com a ávida preocupação pelos outros, em si mesma. Tal pessoa só poderá ser curada
como a vemos, por exemplo, na mãe super- se sua abnegação fôr também interpretada como
solícita. Se, em consciência, ela acredita gostar um sintoma juntamente com os outros, de modo
particularmente do filho, na verdade tem uma que sua falta de produtividade, que está na raiz
hostilidade profundamente reprimida para . com tanto de sua abnegação como na de seus outros
o objeto de sua preocupação. Vive ultra-preocu- incômodos, possa ser corrigida.

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A natureza da abnegação torna-se especial- exclusão de ti, ama-los-ás como uma só pessoa,
mente evidente em seu efeito sabre os outros e, e essa pessoa é tanto Deus quanto homem. Assim,
com freqüência maior em nossa cultura, no efeito grande e reto é aquêle que, amando-se, ama a
que a mãe "abnegada" tem sôbre os filhos. Ela todos igualmente". (Meister Eekhart, tradução
acredita que, por sua abnegação, seus filhos inglêsa de R. B. Blakeny, Londres, Watkins,
experimentarão o que significa serem amados e 1955).
aprenderão, por sua vez, o que significa amar.
O efeito de sua abnegação, entretanto, não cor- e) Amor de Deus.
responde em absoluto a tais expectativas. Os
Dissemos acima que a base de nossa necessi-
filhos não mostram a felicidade de pessoas con-
dade de amar reside na experiência da separação
vencidas de que são amadas; vivem preocupados,
e na necessidade resultante de superar a ansie-
tensos, temerosos da desaprovação da mãe,
ansiosos por corresponder a suas expectativas. dade da separação pela experiência de união.
Comumente são afetados pela oculta hostilidade A forma religiosa de amor, que se chama amor
da mãe para com a vida, que mais sentem do de Deus, não é diferente, psicolôgicamente fa-
que reconhecem claramente, e acabam por ficar lando. Surge da necessidade de superar a sepa-
imbuidos dela. De igual modo, o efeito da mãe ração e realizar, a união. De fato, o amor de
"abnegada" não é demasiado diferente do da Deus tem muitas qualidades e aspectos diferentes,
egoista ; na verdade, muitas vêzes é pior, porque como o amor do homem — e em grande extensão
a abnegação da mãe impede os filhos de criticá- encontramos as mesmas diferenças.
la. Ficam com a obrigação de não a decepciona- Em tôdas as religiões teístas, sejam politeís-
rem; são ensinados, sob a máscara da virtude, tais ou monoteístas, Deus representa o mais alto
a não gostar da vida. Quem tem oportunidade valor, o bem mais desejável. Eis porque a
de estudar o efeito de uma mãe com genuino significação específica de Deus depende de qual
amor próprio pode ver que nada é mais indicado seja, para uma pessoa, êsse mais desejável bem.
para dar a uma criança a experiência do que A compreensão do conceito de Deus, portanto,
são o amor, a alegria e a felicidade, do que ser deve começar com uma análise da estrutura do
amada por uma mãe que ame a si mesma. caráter da pessoa que o adora.
Estas idéias sôbre o amor próprio não pode- O desenvolvimento da raça humana, até onde
riam ser melhor sintetizadas do que citando a temos algum conhecimento dela, pode ser carac-
respeito Meister Eckhart: "Se te amas, amas terizado como a ascensão do homem a emergir
a todos os demais como a ti mesmo. Enquanto da natureza, da mãe, dos laços de sangue e solo.
amares outra pessoa menos do que amas a ti No comêço da história humana, o homem, embora
mesmo, não conseguirás realmente amar a ti lançado fóra da unidade original com a natureza,
mesmo, mas se a todos amares igualmente, sem ainda se aferra a êsses elos primários. Sente-se

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ainda identificado com o mundo dos animais e da rejeição que receberam de muitos círculos
das árvores e tenta encontrar a unidade perma- acadêmicos, pouca dúvida pode existir quanto
necendo unido ao mundo natural. Muitas reli- a ter havido uma fase matriarcal da religião a
giões primitivas dão testemunho dessa etapa de preceder a patriarcal, pelo menos em muitas cul-
desenvolvimento. Um animal é transformado turas. Na fase matriarcal, o ser mais elevado
em tótem; usam-se máscaras de animais nos atos é a mãe. Ela é a deusa, é também a autoridade
religiosos mais solenes e na guerra; adora-se um na família e na sociedade. A fim de entender a
animal como Deus. Numa etapa ulterior de essência da religião matriarcal, basta-nos lembrar
desenvolvimento, quando a capacidade humana se o que ficou dito acerca da essência do amor
desenvolve até ao ponto de habilidade artesanal materno. O amor de mãe é incondicional, tudo
e artística, quando o homem não mais depende protege, tudo envolve; por ser incondicional, não
exclusivamente das dádivas da natureza — do pode também ser controlado ou adquirido. Sua
fruto que acha e do animal que mata — trans- presença dá à pessoa amada um sentimento de
forma êle num deus o produto de suas próprias bemaventurança ; sua ausência produz um senti-
mãos. Esta é a etapa da adoração de ídolos mento de abandono e de extremo desespero.
feitos de barro, prata ou ouro. O homem projeta Visto como a mãe ama os filhos por serem seus
seus próprios poderes e capacidades nas coisas filhos, e não por serem "bons" e obedientes, nem
que faz e assim, de modo alienado, adora sua por cumprirem seus desejos e ordens, o amor de
potência, suas posses. Num estágio ainda pos- mãe se baseia na igualdade. Todos os homens
terior, dá a seus deuses a forma de seres huma- são iguais, porque são todos filhos de uma só
nos. Parece que isto só pode ocorrer quando êle mãe, por serem todos filhos da Mãe Terra.
se torna ainda mais cônscio de si mesmo e A etapa seguinte da evolução humana, única
quando descobre o homem como a mais elevada de que temos completo conhecimento sem necessi-
e digna "coisa" existente no mundo. Nesta fase dade de confiar em inferências e reconstruções,
do culto do deus antropomórfico, encontramos é a fase patriarcal. Nessa fase, a mãe é destro-
um desenvolvimento em duas dimensões. Uma nada de sua posição excelsa e o pai se torna o
refere-se à natureza feminina ou masculina dos Ente Supremo, na religião como na sociedade.
deuses, a outra ao grau de maturidade que o A natureza do amor paterno é a de fazer exi-
homem atingiu e que determina a natureza de gências, estabelecer princípios e leis; seu amor
seus deuses e a natureza de seu amor por êles. pelo filho depende da obediência dêste àquelas
Falemos primeiramente do desenvolvimento exigências. Éle gosta mais do filho que mais se
das religiões de centralização materna para as lhe assemelhe, que lhe seja mais obediente e mais
de centralização paterna. De acôrdo com as preparado se mostre para tornar-se seu sucessor,
grandes e decisivas descobertas de Bachofen e como quem lhe deve herdar os bens. (O desen-
Morgan nos meados do século XIX e a despeito volvimento da sociedade patriarcal caminha a

92 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 93


par do desenvolvimento da propriedade privada.) é ter fé (como diz o Salmista: "Tu me confiaste
Em conseqüência, a sociedade patriarcal é hierár- aos seios de minha mãe" — Salm., 22:10), e
quica ; a igualdade dos irmãos abriria caminho transformar-me na criança desamparada e sem
à competição, à luta entre êles. Quer pensemoi, fôrças. Mas é peculiar à fé luterana ter sido a
nas culturas indiana, egípcia ou grega, ou nas figura da mãe eliminada do quadro à mostra, e
religiões judáico-cristã ou islamita, estaremos em súbstituida pela do pai; em vez da certeza de
meio de um mundo patriarcal, com seus deuses ser amado pela mãe, o aspecto culminante tornou-
masculinos, sare os quais reina um deus chefe, se a dúvida intensa, esperando contra a espe-
ou em que todos os deuses foram eliminados com rança pelo amor incondicional do pai,.
exceção do -único, o Deus. Entretanto, como o
Tive de discutir esta diferença entre os ele-
desejo do amor materno não pode ser erradicado
mentos matriarcais e patriarcais na religião a
dos corações humanos, não é de surpreender que
fim de mostrar que o caráter do amor de Deus
a figura da mãe amorosa jamais possa ser plena-
depende do pêso respectivo dos aspectos matri-
mente tirada do panteão. Na religião judáica,
arcais ou patriarcais da religião. O aspecto
os aspectos maternos de Deus são reintroduzidos
patriarcal faz-me amar a Deus como a um pai;
especialmente nas várias correntes_ de misticismo.
imagino que êle é justo e estrito, que pune e
Na religião Católica, a Mãe é simbolizada pela
recompensa; e que poderá eleger-me seu filho
Igreja e pela Virgem. Mesmo no protestantismo,
favorito, como Deus elegeu Abraão-Israel, como
a figura da Mãe não foi inteiramente arrancada,
embora permaneça oculta. Lutero estabeleceu, Isaac escolheu Jacob, como Deus escolhe sua
nação favorita. No aspecto matriarcal da reli-
como seu princípio mais importante, que nada
que o homem faça pode obter o amor de Deus. gião, amo a Deus como a urna mãe que tudo
abraça. Tenho fé em seu amor; ela me há de
O amor de Deus é Graça, e a atitude religiosa
é ter fé nessa graça, fazer-se pequenino e desam- amar, não importa que eu seja pobre e impo-
parado; nenhuma boa ação pode influenciar tente, não importa que eu tenha pecado; não
Deus, ou fazer com que Deus nos ame segundo preferirá a mim qualquer de seus outros filhos;
postula a doutrina católica. Podemos verificar aconteça o que acontecer, redimir-me-á, salvar-
aqui que a doutrina católica das boas obras é me-á, perdoar-me-á. Desnecessário é dizer que
parte do quadro patriarcal: posso alcançar o meu amor a Deus e o amor de Deus por mim
amor paterno pela obediência, pelo cumprimento não podem ser separados. Se Deus é um pai,
de suas exigências. A doutrina luterana, de outra ama-me como filho e amo-o como pai. Se Deus
parte, a despeito de seu caráter manifestamente é mãe, o seu e o meu amor são determinados por
patriarcal, leva consigo um elemento matriarcal êsse fato.
oculto. O amor materno não pode ser adquirido; Esta diferença entre os aspectos materno e
ou existe, ou não existe; tudo quanto posso fazer paterno do amor de Deus é, porém, apenas um

94 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 95


fator na determinação da natureza dêsse amor; obrigado por seu próprio princípio, o da justiça,
o outro fator é o grau de maturidade alcançado e sôbre tal base Deus pode ceder ao pedido de
pelo indivíduo e, daí, em seu conceito de Deus Abraão para que poupe Sodoma caso ali haja
e em seu amor a Deus. pelo menos dez homens justos. O desenvolvimento,
Visto a evolução da raça humana haver-se entretanto, vai mais além do que a transformação
desviado de uma estrutura da sociedade, assim de Deus da figura de chefe tribal despótico na
como da religião, centralizada na mãe, para uma de pai amoroso, pai que se restringe a si mesmo
centralizada no pai, podemos acompanhar o pelos princípios que êle próprio postulou; marcha
desenvolvimento de um amor em maturação na direção de transformar Deus, da figura de
principalmente no desenvolvimento da religião pai, em símbolo de seus princípios, os da justiça,
patriarcal. (Isto é especialmente certo com re- verdade e amor. Deus é verdade, Deus é justiça.
lação às religiões monoteístas do Ocidente. Nas Nesse desenvolvimento, Deus deixa de ser uma
religiões indianas, a figura da mãe retém boa pessoa, um homem, um pai; torna-se o símbolo
parte de influência, como por exemplo na deusa do princípio de unidade por trás da multiplici-
Kali; no budismo e no taoismo, o conceito de um dade dos fenômenos, da visão da flor que crescerá
Deus — ou uma Deusa — não tem significação da semente espiritual dentro do homem. Deus
essencial, quando não é de todo eliminado.) No não pode ter nome. Um nome sempre denota
comêço daquele desenvolvimento, encontramos um uma coisa, ou uma pessoa, algo finito. Como
Deus ciumento, despótico, que considera o ho- pode ter Deus um nome, se não é uma pessoa,
mem, por êle criado, como propriedade sua e nem uma coisa?
tem o direito de fazer com êle o que lhe aprouver. O mais impressionante incidente desta mu-
Esta é a fase da religião em que Deus expulsa o dança está na história Bíblica da revelação de
homem do paraiso, para que êle não coma da Deus a Moisés. Quando Moisés lhe diz que os
árvore do conhecimento e assim não fique igual hebreus não acreditarão que Deus o . enviou, a
a Deus; é a fase em que Deus decide destruir a menos que êle possa dizer-lhes o nome de Deus
raça humana pelo dilúvio, porque ninguém lhe (e como poderiam adoradores de ídolos com-
agrada, com exceção do filho favorito, Noé; é preender um Deus sem nome, uma vez que ter
a fase em que Deus exige de Abraão que mate nome faz parte da própria essência de um ídolo?),
seu único e amado filho Isaac, para provar seu Deus faz lima concessão. Diz a Moisés (pie seu
amor a Deus através do ato da extrema obediên- nome é "Eu-sou-quem-sou". "Eu-sou é meu
cia. Mas, simultâneamente, nova fase começa; nome". O "Eu-sou" significa que Deus não é
Deus faz uma aliança com Noé, em que promete finito, nem uma pessoa, nem um "ser". A tra-
nunca voltar a destruir a raça humana, aliança dução mais adequada da sentença seria: dize-
pela qual êle mesmo se restringe. Não só é lhes que "meu nome é Inominado". A proibição
obrigado por suas promessas, como também é de fazer qualquer imagem de Deus, de pronunciar

96 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 97


seu nome em vão, ou mesmo de pronunciar seu objetividade de verificar minhas limitações como
nome de qualquer forma, visa o mesmo alvo, o ser humano, minha ignorância, meu desamparo.
de libertar o homem da idéia de que Deus é um Ainda proclamo, como uma criança, que deve
pai, de que é uma pessoa. No desenvolvimento haver um pai que me socorra, que me vigie, que
teológico subseqüente, a idéia é levada mais me puna, um pai que goste de mim quando sou
adiante, no princípio de que não se deve sequer obediente, que se lisongeie com meu louvor e se
dar a Deus qualquer atributo positivo. Dizer encolerize com a minha desobediência. Muito
que Deus é sábio, forte, bom, implica de novo evidentemente, a maioria das pessoas ', em seu
ser êle uma pessoa; o máximo que posso fazer desenvolvimento pessoal, não suplantou essa etapa
é dizer o que Deus não é, apresentar atributos infantil; daí ser a crença em Deus, para a maio-
negativos, postular que êle não é limitado, nem ria, a crença num pai anviliador, uma ilusão de
injusto, nem mau. Quanto mais sei o que Deus criança. Apesar do fato de ter sido tal conceito
não é, tanto mais conhecimento tenho de Deus. de religião superado por alguns dos mestres da
(Cf. o conceito de Maimonides quanto aos atri- raça humana e por uma minoria de homens. é
butos negativos, no Guia dos Perplexos.) êle ainda a forma predominante de religião.
Acompanhar o amadurecimento da idéia do Considerando isso assim, a crítica da idéia
monoteismo em suas ulteriores conseqüências só de Deus, tal como Freud a expressou, é inteira-
pode levar a uma conclusão: não mencionar em mente correta. O êrro, entretanto, está no fato
absoluto o nome de Deus, não falar acêrca de de que êle ignorou o outro aspecto da religião
Deus. Então, Deus se torna o que potencial- monoteísta, seu verdadeiro núcleo, cuja lógica
mente é numa teologia monoteísta, o Inominado, leva exatamente à negação de tal conceito de
um balbuciar inexprimível, que se refere à Deus. A pessoa verdadeiramente religiosa, se
unidade que alicerça o fenômeno universal, o segue a essência da idéia monoteísta, não pede
campo de tôda a existência; Deus torna-se verda- coisa alguma, nada espera obter de Deus ; não
de, amor, justiça. Torna-se Eu, da mesma forma ama a Deus como um filho ama seu pai ou sua
que sou humano. mãe; adquiriu a humildade de sentir suas limita-
Com tôda evidência, esta evolução do princí- ções até o grau de saber que nada sabe a respeito
pio antropomórfico para o puramente monoteísta de Deus. Deus torna-se para ela um símbolo em
faz tôda a diferença quanto à natureza do amor que o homem, numa etapa anterior de sua evolu-
de Deus. O Deus de Abraão pode ser amado ou ção, expressou a totalidade daquilo por que o
temido como um pai, sendo às vêzes o aspecto homem luta, o reino do mundo espiritual, do
predominante a sua misericórdia, ou a sua cólera. amor, da verdade, da justiça. Tem fé nos prin-
Assim como Deus é o pai, eu sou o filho. Não cípios que "Deus" representa; pensa verdade,
emergi completamente do desejo autístico de vive amor e justiça e considera a sua vida inteira
onisciência e onipotência. Ainda não adquiri a como só valiosa enquanto lhe dá ocasião de

9 8 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 99


alcançar um sempre mais amplo desdobramento ceito teísta e que, para mim, o conceito de Deus
de seus poderes humanos — como a única reali- é apenas um conceito histôricamente condicionado,
dade que importa, como o único objeto de em que o homem expressou sua experiência de
"preocupação última"; e acaba não falando a poderes mais altos, sua aspiração à verdade e à
respeito de Deus, nem mesmo mencionando seu unidade, em dado período histórico. Mas tam-
nome. Amar a Deus, se tal pessoa fôsse usar bém acredito que as conseqüências do monoteismo
esta expressão, significaria, então, ansiar pelo estrito e uma extrema preocupação não-teísta
atingimento da plena capacidade de amar, pela com a realidade espiritual são duas concepções
realização daquilo que "Deus" representa em que, diferentes embora, não precisam combater-
alguém. se mutuamente.
Deste ponto de vista, a conseqüência lógica
Neste ponto, porém, surge outra dimensão
do pensamento monoteísta é a negação de qual- do problema do amor de Deus que deve ser
quer "teo-logia", de qualquer "conhecimento a discutida, a fim de sondarmos a complexidade
respeito de Deus". Contudo, permanece uma do problema. Refiro-me a uma diferença fun-
diferença entre essa concepção não-teológica ra- damental na atitude religiosa entre o Oriente
dical e um sistema não-teísta, como o que encon- (China e Índia) e o Ocidente; esta diferença
tramos, por exemplo, no budismo primitivo ou pode ser expressa em têrmos de conceitos lógicos.
no taoismo. Desde Aristóteles, o mundo ocidental tem seguido
Em todos os sistemas teístas, mesmo num os princípios lógicos da filosofia aristotélica.
não-teológico, místico, há a idéia da realidade do Esta lógica se baseia na lei da identidade, que
reino espiritual, como transcendendo o homem, afirma que A é A; na lei da contradição (A não
dando significação e validade aos poderes espiri- é não-A), e na lei do meio excluido (A não pode
tuais do homem e à sua luta pela salvação e pelo ser A e não-A, nem A nem não-A). Aristóteles
nascimento interior. Num sistema não-teísta, explica sua posição muito claramente na seguinte
não existe reino espiritual fora do homem, ou sentença: "É impossível para a mesma coisa ao
que o transcenda. O reino do amor, da razão e mesmo tempo pertencer e não pertencer à mesma
da justiça só existe como realidade porque, e coisa e ao mesmo respeito; e quaisquer outras
visto como, o homem foi capaz de desenvolver distinções que possamos acrescentar para enfren-
essas faculdades em si mesmo através de todo o tar objeções dialéticas devem ser acrescentadas.
processo de sua evolução. Sob este aspecto, não Êste, pois, é o mais certo de todos os princí-
há sentido para a vida, a não ser o sentido que pios . . " (Aristóteles, Metafísica).
o próprio homem lhe dá; o homem é extrema- Éste axioma da lógica aristotélica imbuiu
mente só, a não ser quando ajuda outro. tão profundamente nossos hábitos de pensamento
Falando do amor de Deus, quero tornar claro que é 'considerado "natural" e evidente por si
que eu mesmo não penso em termos de um con- mesmo, ao passo que, de outro lado, a afirmação

100 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 101


de que X é A e não-A parece ser insensata. tôda existência. "Não compreendem — diz êle
(Naturalmente, a afirmação refere-se ao sujeito — que o Um-total, conflagrando-se em si mesmo,
X em um tempo dado, e não a X agora e a X é idêntico a si mesmo: harmonia em conflito,
mais tarde, ou a um aspecto de X pôsto em como no arco e na lira". (W. Capelle, _Ne
contradição com outro aspecto.) Vorsokratiker, Alfredo Kroener Verlag, Stut-
Em oposição à lógica aristotélica acha-se o tgart, 1953, pag. 1,34.) Ou, ainda mais clara-
que se poderia chamar lógica paradoxal, que mente: "Entramos no mesmo rio, e contudo não
admite que A e não-A não se excluem mútua- no mesmo; somos nós e não somos nós". (Ibid.,
mente como predicados de X. A lógica paradoxal pag. 132). Ou: "Um e o mesmo manifestam-se
predominou no pensamento indiano e chinês, na nas coisas como vivas e mortas, despertas e ador-
filosofia de Heráclito e mais tarde, sob o nome mecidas, jovens e velhas". (Ibid., pag. 133).
de dialética, tornou-se a filosofia de Regei e de Na filosofia de Laotsé, a mesma idéia se
Marx. O princípio geral da lógica paradoxal foi expressa de maneira mais poética. Um exemplo
claramente descrito por Lao-tsé: "As palavras característico do pensamento paradoxal taoista
que são estritamente verdadeiras parecem ser é a seguinte afirmação: "A gravidade é a raiz
paradoxais". (Cf. a edição inglesa, por F. Max da leveza; a quitetude, a norma do movimento".
Mueller, das obras de Lao-tsé, The Tao Teh (Mueiler, ob. cit., pág. 69) Ou: "O Tao em seu
King, The Sacred Books of the East, Vol. 39, curso regular nada faz, e assim nada há que êle
Oxford, Londres, University Press, 1927, pag. não faça". (Ibid., pág. 79) Ou: "Minhas pa-
120.) E por Chuang-tzu: "O que é um, é um. lavras são muito fáceis de saber e muito fáceis
O que é não-um, também é um". Estas formula- de praticar; mas ninguém há no mundo capaz
ções da lógica paradoxal são positivas: é e não é. de sabê-las e capaz de praticá-las". (Ibid., pág.
Outra formulação é negativa: não é isto nem 112). No pensamento taoista, como no indiano
aquilo. A primeira expressão de pensamento é e no socrático, o mais alto passo a que o pensa-
encontrada no pensamento taoista, em Heráclito, mento pode levar é saber que não sabemos. "Sa-
e de novo na dialética hegeliana; a segunda for- ber e contudo (pensar) que não sabemos é o
mulação é freqüente na filosofia indiana. mais alto (objetivo) ; não saber (e contudo pen-
Embora ultrapasse o âmbito dêste livro dar sar) que sabemos é uma doença". (Ibid., pág.
mais detalhada descrição da diferença entre a 113) Conseqüência apenas desta filosofia é não
lógica aristotélica e a paradoxal, mencionarei poder ser nomeado o Deus mais alto. A última
alguns exemplos a fim de tornar o princípio mais realidade, o último Um não pode ser apreendido
compreensível. A lógica paradoxal no pensa- em palavras ou em pensamentos. Como diz
mento ocidental teve sua mais antiga expressão Lao-tsé: "O Tao que se pode trilhar não é o
filosófica na filosofia de Heráclito. Concebe Tao permanente e imutável. O nome que pode
éle o conflito entre os opostos como a base de ser nomeado não é o nome permanente e imu-

A ARTE DE AMAR 103


102 ERICH FROMM
tável". (Ibid., pág. 47) Ou, em formulação di- percebe. O pensamento percebedor deve trans-
ferente: "Olhamos para êle, e não o vemos, e cender-se, se quer atingir a realidade verdadeira.
denominamo-lo o "Uniforme". Ouvimo-lo, e não A oposição é uma categoria da mente do homem,
o ouvimos, e denominamo-lo o "Inaudível". Ten- e não em si mesma um elemento da realidade.
tamos apreendê-lo, e não o apanhamos, e deno- No Rig-Veda, o princípio é expresso desta forma:
minamo-lo o "Sutil". Com estas três qualida- "Sou os dois, a fôrça da vida e a vida material,
des, êle não pode ser feito objeto de descrição; os dois ao mesmo tempo". A conseqüência final
por isso, misturamo-las e obtemos o Um." (Ibid., da idéia de que o pensamento só pode perceber
pág. 57). E ainda outra formulação da mesma em contradições encontrou seguimento ainda mais
idéia : "Quem conhece (o Tao) não (se preocupa drástico no pensamento vedântico, que postula
em) falar (a respeito dele) ; quem entretanto ser o pensamento — com tôda a sua fina distin-
está pronto a) falar a respeito dêle, não o co- ção — "apenas um horizonte mais sutil de igno-
nhece". (Ibid., pág. 100.) rância, de fato o mais sutil de todos os enga-
A filosofia bramânica preocupava-se com a nadores recursos do maga" (Ibid., pag. 424.)
relação entre a multiplicidade (dos fenômenos) A lógica paradoxal tem significativa impor-
e a unidade (brâmane). Mas a _filosofia para- tância para o conceito de Deus. Como Deus
doxal, nem na Índia, nem na China, deve ser representa a realidade final, e como a mente
confundida com um ponto de vista dualista. A humana percebe a realidade em contradições,
harmonia (unidade) consiste na posição confli- nenhuma positiva afirmação de Deus pode ser
tante de que ela é feita. "O pensamento bra- feita. Nos Vedantes, a idéia de um Deus onis-
mânico centralizou-se desde o comêço em tôrno ciente e onipotente é considerada, a forma extre-
do paradoxo dos antagonismos simultâneos — e ma da ignorância. (Cf. Zimmer, ibid., p. 424.)
contudo — identidade das fôrças e formas ma- Vemos aqui a conexão com a inominabilidade
nifestas do mundo fenomenal..." (Philosophies do Tao, o nome sem nome do Deus que se revela
of India, H. R. Zimmer, Londres, Routledge, a Moisés e o "Nada absoluto" de Meister Eckhart.
1955.) O último poder no Universo, assim como O homem só pode conhecer a negação, nunca a
no homem, transcende ao mesmo tempo a esfera posição da realidade última. "Embora o homem
dos conceitos e a dos sentidos. É, portanto, "nem não possa saber o que Deus é, mesmo assim êle
isto, nem assim". Mas, como nota Zimmer, "não pode estar sempre bem cônscio do que Deus não
há antagonismo entre "real e irreal" nesta rea- é... Assim, satisfeita com nada, a mente clama
lização estritamente não-dualista". (Ibid.) Em pelo mais elevado de todos os bens". (Meister
sua procura da unidade por trás da multiplici- Eckhart, em tradução inglêsa de R. B. Blakney,
dade, os pensadores bramânicos chegaram à con- Harper & Brothers, Nova York, 1941, pag. 114).
clusão de que o par percebido de opostos reflete Para Meister Eckhart, "O Divino é uma nega-
a natureza não das coisas, mas da mente que os ção das negações, um desmentido dos desmenti-

104 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 105


dos... Tôda criatura contém uma negação: uma reta, mas a ação reta. Encontramos a mesma
nega o que é a outra". (Ibid., pag. 247. Cf. ênfase na religião judáica. Quase nunca houve
também a teologia negativa de Maimonides.) É um cisma sôbre a crença na tradição judáica
apenas conseqüência ulterior torna-se Deus, para (a única exceção grande, a diferença entre fa-
Meister Eckhart, "o Nada absoluto", assim como riseus e saduceus, era essencialmente a de duas
a realidade última, para a Cabala, é o "En Sof", classes sociais opostas). A ênfase da religião
o Sem-Fim. judáica colocava-se (especialmente a partir do
Discuti a diferença entre a lógica aristotélica início de nossa era) no modo reto de viver, o
e a paradoxal a fim de preparar o campo para "Halacha" (tendo esta palavra, efetivamente, a
uma diferença importante no conceito do amor mesma significação do "Tao").
de Deus. Os mestres da lógica paradoxal dizem Na história moderna, o mesmo sentido se
que o homem só pode perceber a realidade em expressa no pensamento de Spinoza, Marx e
contradições e nunca podem perceber em pensa- Freud. Na filosofia de Spinoza, a ênfase des-
mento a realidade-unidade final, o próprio Um. via-se da reta crença para a reta conduta de
Isto leva á conseqüência de que não se busca vida. Marx expõe o mesmo princípio, quando
como alvo derradeiro encontrar a resposta em diz: "Os filósofos têm interpretado o mundo
pensamento. O pensamento só nos pode levar de maneiras diferentes: a tarefa é transfor-
ao conhecimento de não nos poder dar a última má-lo". A lógica paradoxal de Freud leva-o ao
resposta. O mundo do pensamento permanece processo da terapia psicanalítica, à experiência
prêsa do paradoxo. O único meio pelo qual o de alguém, sempre mais profunda.
mundo pode ser apreendido de forma final não Do ponto de vista da lógica paradoxal, a
está no pensamento, mas no ato, na experiência ênfase não se situa no pensamento, mas no ato.
da unidade. Assim, a lógica paradoxal leva à Esta atitude tem várias outras conseqüências.
conclusão de que o amor de Deus não é o co- Antes de tudo, leva à tolerância que encontramos
nhecimento de Deus em pensamento, nem o pen- no desenvolvimento religioso indiano e chinês.
samento do amor de alguém a Deus, mas o ato Se o reto pensamento não é a verdade final, se
de experimentar a unidade com Deus. não é o caminho da salvação, então não há razão
Isto conduz à ênfase sôbre o modo reto de para combater os outros, aquêles cujo pensa-
viver. Tudo o que há na vida, tôda ação pe- mento tenha chegado a formulações diferentes.
quena, e tôda importante, devotam-se ao conhe- Esta tolerância vem belamente expressa na histó-
cimento de Deus, mas a um conhecimento não ria de diversos homens a que se pediu que des-
em reto pensamento, e sim em reta ação. Isto crevessem um elefante no escuro. Um, tocan-
pode ser claramente visto nas religiões orientais. do-lhe a tromba, disse: "este animal é como um
No bramanismo, assim como no budismo e no cano de agua"; outro, tocando-lhe a orelha, disse:
taoismo, a meta final da religião não é a crença "este animal assemelha-se a um leque"; um ter-

106 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 107


Em suma, o pensamento paradoxal condu-
ceiro, tocando-lhe as pernas, descreveu o elefante ziu à tolerância e a um esf Orço para a auto-
como uma coluna. transformação. A posição aristotélica conduziu
Em segundo lugar, o ponto de vista para- ao dogma e à ciência, à Igreja Católica e à
doxal leva à ênfase sôbre o homem em trans- descoberta da energia atômica.
formação, em vez de levar ao desenvolvimento
do dogma, de um lado, e da ciência, do outro. As conseqüências, para o problema do amor
Das posições indianas, chinesas e místicas, a de Deus, desta diferença entre os dois pontos de
tarefa religiosa do homem não é pensar reta- vista, já foram explanadas implicitamente e só
mente, mas agir retamente e (ou) tornar-se um precisam ser brevemente sintetizadas.
com o -único, no ato da meditação concentrada. No sistema religioso ocidental predominan-
O oposto é exato quanto à principal do te, o amor a Deus é essencialmente o mesmo que
pensamento ocidental. Como se espera encon- a crença em Deus, na existência de Deus, na
trar a verdade final no pensamento reto, a ênfase justiça de Deus no amor de Deus. O amor a
maior é posta sôbre o pensamento, embora a reta Deus é essencialmente uma experiência do pen-
ação seja também considerada importante. No samento. Nas religiões orientais e no misticis-
desenvolvimento religioso, isto levou à formula- mo, o amor a Deus é uma experiência intensa-
ção de dogmas, a infindáveis discussões sôbre mente sentida de unidade, inseparàvelmente
formulações dogmáticas e à intolerância quanto ligada à expressão dêsse amor no próprio ato
ao "incréu" ou hereje. Levou, ainda mais, a de viver. A mais radical formulação foi dada
acentuar a "crença em Deus" como o alvo prin- a êste alvo por Meister Eckhart: "Mudei-me
cipal de uma atitude religiosa. Isto, sem dúvida, portanto em Deus e Êle me fêz um consigo, e
não significa que não houvesse também o con- assim, pelo Deus vivo, não há distinção entre
ceito de que se devesse viver retamente. Mas, nós... Algumas pessoas imaginam que vão ver
não obstante, quem acreditasse em Deus — ainda Deus, que verão Deus como se Éle estivesse além
que não vivesse Deus — considerava-se superior e elas ali, mas não é assim. Deus e eu: somos
a quem vivesse Deus, mas não crêsse nêle. um. Conhecendo Deus, tomo-o para mim. Aman-
A ênfase sôbre o pensamento tem também do a Deus, penetro-o". (Meister Eckhart, ob.
outra conseqüência histôricamente muito impor- pags. 181-2).
tante. A idéia de que se pode encontrar a ver- Podemos agora voltar a um paralelo impor-
dade no pensamento levou não s6 ao dogma, mas tante entre o amor pelos pais e o amor por Deus.
também à ciência. No pensamento científico, o A criança começa ligando-se à mãe como "o ter-
pensamento correto é tudo quanto importa, tanto reno de todo ser". Sente-se desamparada e ne-
do aspecto da honestidade intelectual quanto do cessita do oniabrangente amor da mãe. Volta-se
aspecto da aplicação do pensamento científico à depois para o pai como o novo centro de suas
prática — isto é, à técnica.
A ARTE DE AMAR 109
108 ERICH FROMM
afeições, sendo o pai um princípio orientador indivíduo retém em si, no seu inconsciente, como
do pensamento e da ação; nesta etapa, tem como Freud mostrou, tôdas as etapas, a partir da
motivo a necessidade de adquirir o louvor do criança desamparada. A qüestão está em ver
pai e evitar o seu descontentamento. Na etapa até que ponto êle cresceu. Uma coisa é certa:
da plena maturidade, liberta-se da pessoa da mãe a natureza de seu amor a Deus corresponde
e da do pai como fôrças de proteção e de co- natureza de seu amor ao homem; e, além disso,
mando; estabelece os princípios materno e pa- a real qualidade de seu amor a Deus e ao homem
terno dentro de si. Torna-se o pai e a mãe de é muitas vêzes inconsciente — encoberta e ra-
si mesma: é pai e mãe. Na história da raça cionalizada por um pensamento mais maduro
humana vemos — e podemos prever — o mesmo daquilo que seu amor é. Mais ainda, o seu amor
desenvolvimento: do início do amor por Deus ao homem, embora diretamente plantado em suas
como a ligação desamparada a uma Deusa mãe, relações com sua família, é determinado, em úl-
e pela ligação obediente a um Deus paternal, tima análise, pela estrutura da sociedade em que
até ao estado amadurecido em que Deus deixa êle vive. Se a estrutura social é de submissão
de ser uma fôrça exterior, em que o homem à autoridade — autoridade declarada, ou a auto-
incorpora a si mesmo os princípios de amor e ridade anônima do mercado e da opinião pública
justiça, em que se torna um com Deus, e em que — seu conceito de Deus deve ser infantil e
pode chegar ao ponto de só falar de Deus em afastado do conceito maduro, cujas sementes se
sentido poético e simbólico. vão encontrar na história da religião monoteísta.
Destas considerações segue-se que o amor
por Deus não pode ser separado do amor pelos
pais. Se uma pessoa não emerge da ligação
incestuosa com a mãe, o clã, a nação, se conserva
a dependência infantil para com um pai que pune
e recompensa, ou para com qualquer outra au-
toridade, não pode desenvolver amor mais ama-
durecido por Deus; então, sua religião é a da
primitiva fase religiosa, em que Deus era sen-
tido como mãe que tudo protegia, ou como pai
que castigava e premiava.
Na religião contemporânea, encontramos tô-
das as fases ainda presentes, do mais antigo e
mais primitivo desenvolvimento ao mais elevado.
A palavra "Deus" indica o chefe tribal assim
como o "Nada absoluto". Do mesmo modo, cada

110 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 111


III

O Amor e sua Desintegração na Sociedade


Ocidental Contemporânea

E O AMOR é uma capacidade do caráter


produtivo e maduro, segue-se Taí que a
_
capacidade de amar, num indivíduo que
viva em qualquer_ cultura dada, depende da in-
i'llnência-clessa-~sôbre o caráter da pess-Oa
comum. Se falamos de amor na cultor -n-
tal contemporânea, temos de indagar se a estru-
tura, social da civilização ocidental e o espirito
dela resultante são de molde a conduzir ao de-
senvolvimento do amor. Suscitar a pergunta é
responder pela negativa. Nenhum observador
objetivo de nossa vida ocidental pode duvidar
de que o amor — amor fraterno, amor materno
e amor erótico — seja fenômeno relativamente
raro, sendo seu lugar tomado por numerosas
formas de pseudo-amor que, em realidade, são
outras tantas formas de desintegração do amor.

A ARTE DE AMAR 113


sociedade capitalista baseia-se no princi- centração de capital. As grandes emprêsas cres-
pio da liberdade política, de um lado e, do outro, cem continuamente de tamanho e as menores vão
no do mercado como o regulador de tôdas as sendo expulsas. A propriedade do capital in-
relações econômicas e, portanto, sociais. O mer- vertido nessas empresas é cada vez mais sepa-
cado das utilidades determina as condições sob rada da função de geri-las. Centenas de milha-
que os artigos se trocam; o mercado de trabalho res de acionistas "são donos" da emprêsa; uma
regula a aquisição e a venda do trabalho. Tanto burocracia gerencial, que é bem paga mas não
as coisas úteis, como a energia e a capacidade possúi a emprêsa, encarrega-se de dirigi-la. Esta
humanas úteis, são transformadas em artigos que burocracia está menos interessada em fazer o
são trocados, sem o uso da fôrça e sem fraude, máximo de lucros do que na expansão da em-
sob as condições do mercado. Sapatos, por úteis prêsa e de seu próprio poder. A crescente con-
e necessários que possam ser, não terão valor centração de capital e o aparecimento de uma
econômico (valor de troca) se no mercado não poderosa burocracia de gerência são acompanha-
houver procura dêles; energia e capacidade hu- dos, paralelamente, pelo desenvolvimento do mo-
manas não terão valor de troca se não houver vimento trabalhista. Através da sindicalização
procura delas sob as condições de mercado exis- do trabalho, o trabalhador individual não tem
tentes. O possuidor de capital pode comprar de transacionar no mercado de trabalho por si
trabalho e ordenar que ele trabalhe em bem do e para si; está unido em grandes associações
proveitoso investimento de seu capital. O pos-
trabalhistas, também dirigidas por poderosa bu-
suidpr de trabalho deve vendê-lo aos capitalis-
tas sob as condições de mercado existentes, a rocracia e que o representam em face do colosso
menos que vá morrer de fome. Essa estrutura industrial. A iniciativa se transladou, para me-
econômica reflete-se numa hierarquia de valores. lhor ou para pior, nos campos do capital como
OeLpiiital comanda o trabalho; as coisas acumu- nos do trabalho, do indivíduo para a burocracia.
adas, que são mortas, têm valor superior ao Crescente número de pessoas deixa de ser inde-
trabalho, às fôrças humanas, àquilo que é vivo. pendente e torna-se dependente dos que dirigem
Esta tem sido a estrutura básica do capita- os grandes impérios econômicos.
lismo desde seu início. Mas, se ela ainda é ca- Outro aspecto decisivo resultante dessa con-
racterística do capitalismo moderno, alterou-se centração de capital e característico do capitalis-
certo número de fatôres, que dão ao capitalismo mo moderno está no modo específico de organi-
contemporâneo qualidades específicas e que têm zação do trabalho. Empresas vastamente cen-
profunda influência sôbre a estrutura do caráter tralizadas, com uma divisão de trabalho radical,
do homem moderno. Como resultado do desen- levam a uma organização de trabalho em que o
volvimento do capitalismo, testemunhamos um indivíduo perde sua individualidade, em que se
processo sempre crescente de centralização e con- torna um parafuso a ser gasto na máquina. O

114 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 115


problema humano do capitalismo moderno pode civilização oferece muitos paliativos que ajudam
ser formulado assim: as pessoas a se tornarem conscientemente incons-
O capitalismo moderno necessita de homens cientes dessa solidão: antes de tudo, a estrita
que cooperem sem atrito e em amplo número; rotina do trabalho mecânico, burocratizado, que
que queiram consumir cada vez mais; e cujos as auxilia a permanecerem sem conhecimento de
gostos sejam padronizados e possam ser nen- seus desejos humanos mais fundamentais, da
mente influenciados e previstos/ Necessita de aspiração de transcendência e unidade. Como a
homens que se sintam livres e independentes, rotina, por si só, não o consegue, o homem su-
não submissos .a qualquer autoridade, ou princí- pera seu desespêro inconsciente através da rotina
pio, ou consciência — e contudo desejosos de ser da diversão, do consumo passivo de sons e visões
mandados, de fazer o que se espera dêles, de ade- oferecidos pela indústria do divertimento; e,
quar-se em fricção à máquina social; que possam além disso, pela satisfação de comprar sempre
ser guiados sem fôrça, dirigidos sem líderes, im- coisas novas e de logo trocá-las por outras. O
pulsionados sem alvos — exceto o de produzir homem moderno está efetivamente próximo do
bem, estar em movimento, funcionar, ir adiante. quadro que Huxley descreve em seu Admirável
Qual e o resultado? O homem moderno é Mundo Novo: bem alimentado, bem trajado, se-
alienado de si mesmo, de seus semelhantes e da xualmente satisfeito, e contudo sem personali-
natureza. (Veja-se mais detalhada discussão do dade, sem qualquer contacto com seus semelhan-
problema da alienação e da influência da socie- tes a não ser o mais superficial, guiado pelos
dade moderna sôbre o caráter do homem em The lemas que Huxley formulou tão sucintamente,
Sane Society, E. Fromm, Routledge (Kegan como êstes: "Quando o indivíduo sente, a co-
Paul, Londres.) Transformou-se num artigo, munidade vacila"; "Nunca deixes para amanhã
experimenta suas fôrças de vida como um inves- o prazer que podes ter hoje", ou, como afirma-
timento que lhe deva produzir o máximo lucro tiva culminante: "Todos agora são felizes". A
alcançável sob as condições de mercado existen- felicidade do homem, hoje em dia, consiste em
tes. As relações humanas são essencialmente as "divertir-se". E divertir-se consiste na satisfa-
de autômatos alienados, cada qual baseando sua ção de consumir e "obter" artigos, panoramas,
segurança na posição mais próxima do rebanho alimentos, bebidas, cigarros, gente, conferências,
e em não ser diferente por pensamentos, senti- livros, filmes — tudo é consumido, engolido. O
mentos ou ações. Ao mesmo tempo que todos mundo é um grande objeto de nosso apetite, uma
tentam estar tão próximos quanto é possível dos grande maçã, uma grande garrafa, um grande
demais, todos se sentem extremamente sós, inva- seio; somos os sugadores, os eternamente em ex-
didos pelo profundo sentimento de insegurança, pectativa, os esperançosos — e os eternamente
ansiedade e culpa que sempre ocorre quando a decepcionados. Nosso caráter é_engenado para
separação humana não pode ser superada. Nossa trocar e recebei., para transacionar e constiinir:

116 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 117


tudo, os objetos espirituais como os materiais, tável sentimento de solidão. No "amor" encon-
torna-se objeto de troca e de consumo. tra-se, afinal, um pôrto ao abrigo da. solidão.
A situação, no que refere ao amor, corres- Forma-se uma aliança de dois contra o mundo,
ponde, como não pode deixar de ser, a êsse caráter e êsse egoismo a dois é enganosamente tomado
social do homem moderno. Autômatos não po- por amor e intimidade.
dem amar; podem trocar seus "fardos de perso- Esta acentuação do espírito de equipe, da
nalidade" e esperar um bom negócio. Uma das tolerância mútua e assim por diante é um de-
expressões mais significativas do amor, e espe- senvolvimento relativamente recente. Foi pre-
cialmente do casamento, nessa estrutura alienada, cedido, nos anos que se seguiram à primeira
é a idéia de "equipe". Em qualquer número de guerra mundial, por um conceito de amor em
artigos escritos sôbre o casamento feliz, o ideal que a satisfação_ sexual mútua se supunha ser
descrito é o da equipe que funcione lubrifica- a base de , relações de amor' satisfatórias e, espe-
damente. Essa descrição não difere muito da cialmente, de um casamento feliz. Acreditava-se
idéia de um empregado que funcione lubrifica-
que as razões das freqüentes infelicidades no
damente: êle deve ser "razoàvelmente indepen- casamento estavam no fato de que os ,nubentes
dente", cooperativo, tolerante e, ao mesmo tempo,
não haviam feito um "ajustamento sexual" cor-
ambicioso e agressivo. Assim, diz-nos o conse-
reto; via-se o motivo desta falta na ignorância
lheiro matrimonial, o marido deve "compreen-
em encarar a conduta sexual "correta" e, por-
der" sua mulher e ser-lhe de auxilio. Deve_ fazer
tanto, na técnica sexual falha de um ou de ambos
comentários favoráveis sôbre seu vestido novo,
--,— os parceiros. A fim de "curar" essa falha e
sôbre um prato gostoso. Ela, por sua vez, deve
com _ preendê-lo quando ele chega à casa cansado ajudar os casais infelizes que não conseguiam
amar-se mutuamente, muitos livros davam instru-
e_ resmungão, deve ouvi-lo atentamente quando
êle fala de seus aborrecimentos nos negócios, não ções e conselhos relativos á correta conduta sexual
deve encolerizar-se, mas mostrar-se compreensiva, e prometiam, implícita ou explicitamente, que
se êle se esquece de que ela faz anos. Tôda felicidade e amor viriam em seguida. A idéia
esta espécie de relações, na verdade, vem a dar subjacente era a de que o amor é filho do prazer
na bem lubrificada relação entre pessoas que sexual, a de que, se duas pessoas aprendem a
permanecem estranhas a vida inteira, que nunca satisfazer-se sexualmente, amar-se-ão uma à ou-
chegam a uma "relação central", mas que mútua- tra. Adequava-se à ilusão geral da época ima-
mente se tratam com cortesia e que tentam fazer ginar que o uso das técnicas corretas é a solução
com que a outra pessoa se sinta melhor. não só dos problemas técnicos da produção indus-
Neste conceito de amor e casamento, a prin- trial, como também de todos os problemas huma-
cipal ênfase é colocada no encontro de um refú- nos. Ignorava-se que a verdade está no oposto
gio para o que, de outra forma, seria insupor- a essa idéia subjacente.

A ARTE DE AMAR 119


118 ERICH FROMM
i0 amor não é o resultado da adequada sa- para êle, o protótipo de tôda felicidade, deve ter
tisfação sexual, mas a felicidade sexual — e sido por isso impelido a buscar ainda mais sua
mesmo o conhecimento da chamada técnica sexual felicidade pelo caminho das relações sexuais, a
é que é o resultado do amor; ge-, à parte a fazer do erotismo genital o ponto central de sua
observação quotidiana, esta tese precisasse ser vida." (S. Freud, A Civilização e seus Des-
provada, poder-se-ia encontrar tal prova em am- contentes.) A experiência do amor fraterno é,
plo material de dados psicanalíticos. O estudo para Freud, um produto do desejo sexual, mas
dos mais freqüentes problemas sociais — a fri- o instinto sexual a transformar-se num impulso
gidez nas mulheres e as formas mais ou menos de "alvo inibido". "A amor de alvo inibido, na
graves de impotência psíquica nos homens — verdade, era originàriamente cheio de amor sen-
mostra que a causa não está numa falta de sual, e na mente inconsciente do homem ainda
conhecimento da técnica correta, mas nas ini- o é." (Ibid.) Quanto ao sentimento de fusão,
bições que tornam impossível amar. O mêdo do de unidade ("sentimento oceânico"), que é a
outro sexo, ou o ódio para com êle, acham-se no essência da experiência mística e a raiz do mais
fundo das dificuldades que impedem uma pessoa intenso sentido de união com outra pessoa, ou
de entregar-se completamente, de agir esponta- com os semelhantes, era êle interpretado por
neamente, de confiar no parceiro sexual numa Freud como um fenômeno patológico, como uma
direta e imediata proximidade física. Se uma regressão a um estado de primitivo "narcisismo
pessoa sexualmente inibida puder emergir do ilimitado". (Ibid.)
mêdo ou do ódio e, portanto, tornar-se capaz de Só mais um passo e, para Freud, oamor,
amar, seus problemas sexuais, dêle ou dela, es- em si m , é um fenômeno irracional. A di-
tarão resolvidos. Se não, nenhum total de co- erença entre o amor irracional e o amor como
nhecimento a respeito de técnicas sexuais servirá expressão da personalidade amadurecida não
de ajuda. existe para êle. Num artigo sôbre o amor de
Mas, ao mesmo tempo que os dados da transferência (Freud, Gesainte TVerke, Londres,
terapia psicanalítica indicam o 'erro da idéia de 1940i52, Vol. X), indicou êle que o amor de
que o conhecimento da técnica sexual .correta transferência essencialmente não difere do fe-
leva à felicidade sexual e ao amor, fato é que nômeno "normal" do amor. Cair enamorado
a concepção, subjacente de que o amor logo se ser 2re fica à beira do anormal, sempre é acom-
segue à satisfação sexual mútua foi amplamente panhado pela cegueira à realidade, pela compul-
influenciada pelas teorias de Freud. Para Freud, sividade, e é uma transferência dos objetos de
o amor era bàsicamente um fenômeno sexual. amor da infância. O amor como fenômeno ra-
"O homem, tendo descoberto pela experiência cional, como realização coroadora da maturida-
que o amor sexual (genital) lhe concedia a maior de, não era assunto sujeito à investigação para
de suas satisfações, de modo a tornar-se de fato, Freud, pois não tinha existência real.

120 ERICH FLOMM A ARTE DE AMAR 121


Seria, contudo, um engano superestimar a lismo predominante no século XIX. Acredita-
influência da idéia de Freud sôbre o conceito va-se que o substrato de todos os fenômenos men-
de que o amor é o resultado da atração sexual, tais se encontrava nos fenômenos fisiológicos:
ou antes, de que é a mesma coisa que a satisfação daí serem o ódio, o amor, a ambição, o ciume
sexual, refletida no sentimento consciente. Es- explicados por Freud corno outros tantos produ-
sencialmente, o nexo causal anda por outro rumo. tos das várias formas do instinto sexual. Êle
As idéias de Freud foram em parte influencia- não via que a realidade básica está na totalidade
das pelo espírito do século XIX; em parte se da existência humana, antes de tudo na situação
tornaram populares em vista do espírito domi- humana comum a todos os homens, e depois na
nante nos anos que seguiram à primeira guer- prática da vida determinada pela estrutura es-
ra mundial. Entre os fatôres que influenciaram pecífica da sociedade. (O passo decisivo além
tanto os conceitos populares quanto os de Freud dêsse tipo de materialismo foi dado por Marx,
está, primeiro, a reação contra o estrito mora- em seu "materialismo histórico", em que não o
lismo da era vitoriana. O segundo fator deter- corpo, nem um instinto como a necessidade de
minante da teoria de Freud reside no conceito alimento ou posse, serve de chave e compreensão
vigente do homem, que se baseia na estrutura do homem, e sim o total processo vital do homem,
do capitalismo. A fim de provar que o capita- sua "prática da vida".) De acôrdo com Freud,
lismo correspondia às necessidades naturais do a satisfação plena e sem inibições de todos os
homem, tinha-se de mostrar que o homem, por desejos instintivos criaria a saude mental e a
natureza, era competitivo e cheio de hostilidade felicidade. Mas os fatos clínicos evidentes mos-
mútua. Enquanto os economistas o "provavam" tram que os homens — e as mulheres — que
em termos do desejo insaciável de lucro econô- devotam as vidas à irrestrita satisfação sexual
mico, e os Darwinistas em termos da lei bioló- não alcançam a felicidade. e muitas vezes sofrem
gica da sobrevivência dos mais aptos, Freud che- de graves conflitos ou sintomas neuróticos. A
gava ao mesmo resultado pela idéia de que o completa satisfação de tôdas as necessidades ins-
homem é impelido por um desejo ilimitado de tintivas não só não é base da felicidade, como
conquista sexual de tôdas as mulheres, e que só nem mesmo assegura a sanidade. Contudo, a
a pressão da sociedade impede que êle aja de idéia de Freud apenas poderia ter-se tornado
acôrdo com seus desejos. Em resultado, os ho- tão popular no .período posterior à primeira
mens são necessàriamente ciumentos uns dos ou- guerra mundial em razão das mudanças que
tros, e esse ciume mútuo, essa competição, con- ocorreram no espírito do capitalismo, passando
tinuariam ainda que desaparecessem tôdas as da acentuação dada à poupança para a dada ao
suas razões econômicas e sociais. gasto e da auto-frustração como meio de sucesso
Mais tarde, Freud foi amplamente influen- econômico para o consumo como base de um
ciado em seu pensamento pelo tipo de materia- mercado sempre a expandir-se e como a princi-

122 ERICH FROMM A. ARTE DE AMAR 123


pal satisfação do indivíduo ansioso e automati- melhante ao amor pleno, psiquiàtricamente de-
zado. Não adiar a satisfação de qualquer desejo finido".) Se libertarmos a afirmação de Sulli-
tornou-se a tendência principal na esfera do van da sua linguagem um tanto enrolada, a
sexo, assim como na de todo consumo material. essência do amor é vista numa situação de co-
É interessante comparar os conceitos de laboração em que duas pessoas sentem: "Jo-
Freud, que correspondem ao espírito do capi- gamos de acôrdo com as regras do jôgo, para
talismo tal como existia, ainda incólume, por preservar nosso prestígio e nosso sentimento de
volta dos começos dêste século, com os conceitos superioridade e merecimento". (Ibid., pag. 246.
teóricos de um dos mais brilhantes psicanalistas Outra definição de amor, dada por Sullivan, a
contemporâneos, o falecido H. S. Sullivan. No de que o amor começa quando uma pessoa sente
sistema psicanalítico de Sullivan encontramos, que as necessidades de outra pessoa são tão im-
em contraste com Freud, unia estrita divisão portantes quanto as suas próprias, é menos co-
entre sexualidade e amor. lorida de aspecto transacional do que a formu-
Qual é a significação de amor e intimidade lação acima.)
na conceituação de Sullivan? "Intimidade é Assim como o conceito de amor de Freud
aquele tipo de situação que envolve duas pessoas é uma descrição da experiência do macho patri-
e que permite a validação de todos os compo- arcal em têrmos do capitalismo do século XIX,
nentes de valor pessoal. A validação do valor a descrição de Sullivan refere-se à experiência
pessoal requer um tipo de relações que chamo da personalidade alienada, mercantil, do século
colaboração, querendo com isso referir-me a ajus- XX. É a descrição de um "egoismo a dois", de
tamentos claramente formulados da conduta de duas pessoas que reunem seus interesses comuns
uma pessoa às necessidades expressas de outra e ficam juntas contra um mundo hostil e alie-
pessoa, na busca de satisfações crescentemente nado. De fato, sua definição de intimidade
idênticas — isto é, cada vez mais quase mútuas um princípio válido para o sentimento de qual-
— e na manutenção de operações de segurança quer equipe em cooperação, em que cada qual
crescentemente similares". (II. S. Sullivan, The "ajusta sua conduta às necessidades expressas
Interpersonal Theory of Psychiatry, W. W. da outra pessoa, na busca de alvos comuns".
Norton, Co, Nova York, 1953, pag. 246. Deve-se (É digno de nota que Sullivan fale aqui de
notar que, embora Sullivan dê esta definição necessidades expressas, quando o mínimo que se
em conexão com os esforços da pre-adolescência, poderia dizer a respeito do amor é que ele im-
fala delas como tendências integrantes, que apa- plica uma reação a necessidades não expressas
recem durante a pre-adolescência, "as quais, entre duas pessoas.)
quando são completamente desenvolvidas, cha- Amor como satisfação sexual mútua e amor
mamos amor", e diz que este amor na pre-ado- como "trabalho de equipe" e como pôrto ao ãbri-
lescência "representa o início de algo muito se.- go da solidão são as duas formas "normais" da

124 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 125


desintegração do amor na sociedade ocidental querem o amor incondicional da mãe, amor que

Moderna, a patologia do amor socialmente mo- é dado pela única razão de necessitarem dêle,
delada. Muitas formas individualizadas existem de serem o filho de sua mãe, de serem desam-
da patologia do amor, que resultam em sofri- parados: Ësses homens freqüentemente são mui-
mento consciente e são consideradas neuróticas to afetuosos e encantadores ao tentarem induzir
pelos psiquiatras e também por número crescente uma mulher a amá-los, e até mesmo depois que o
de leigos. Algumas das mais freqüentes vão conseguem. Mas suas relações com a mulher
sucintamente descritas nos exemplos que se se- (como, de fato, com tôdas as outras pessoas)
guem. permanecem superficiais e irresponsáveis. Exis-
A condição básica do amor neurótico está te comumente boa quantidade de vaidade nesse
no fato de que um dos "amantes" (ou ambos) tipo de homens, com idéias grandiosas mais ou
permaneceu \à-fe-rrado a figura de um dos pais e menos ocultas. Se encontrassem a mulher certa,
transfere os sentimentos, expectativas e temores sentir-se-iam seguros, na cumieira do mundo, e
que outrora experimentou para com o pai, ou poderiam exibir muito afeto e encanto; • eis a
a mãe, paLa . ...„9„pessoa amada na vida_ adulta ; as razão por que esses homens são muitas vezes tão
pessoas envolvidas nunca emergiram de um pa- decepcionantes. Mas quando, após algum tempo,
drão de relação infantil e procuram êsse padrão a mulher não continua a corresponder a suas
em suas exigências afetivas da vida adulta. Em fantásticas expectativas, conflitos e ressentimen-
tais casos, a pessoa permaneceu, afetivamente, tos começam a desenvolver-se. Se a mulher nem
uma criança de dois, de cinco, ou de doze anos, sempre os admira, se reivindica uma vida pró-
ao passo que intelectual e socialmente se acha pria, se também ela deseja ser amada e prote-
no nível _ de sua idade cronológica. Nos casos gida, e, em casos extremos, se não se mostra
mais graves, essa imaturidade emocional conduz disposta a perdoar as questões amorosas dêles
a perturbações em sua eficiência social, nos me- com outras mulheres (ou mesmo a ter por elas
nos graves, limita-se o conflito à esfera das re- um interêsse de admiração), tais homens sen-
lações pessoais íntimas. tem-se profundamente feridos e decepcionados e
Referindo-nos à nossa anterior discussão da habitualmente racionalizam êsse sentimento com
personalidade centralizada na mãe — ou pai — o a idéia de que a mulher "não os ama, é egoista,
seguinte exemplo desse tipo de relação de amor ou é dominadora". Qualquer falha na atitude
neurótico, freqüentemente encontrado hoje, trata de mãe amorosa para com um filho encantador
de homens que, em seu desenvolvimento emo- é tomada como prova de falta de amor. Tais
cional, permaneceram fincados num apêgo in- homens usualmente confundem sua conduta afe-
fantil à mãe. São homens que, por assim dizer, tuosa, seu desejo de agradar, com o genuino amor
nunca se "desmamaram" da mãe. Tais homens e chegam, assim, à conclusão de que estão sendo
ainda sentem como crianças; querem a proteção tratados com inteira injustiça; imaginam-se os
da mãe, seu amor, calor, cuidado e admiração;
126 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 127
grandes amorosos e queixam-se amargamente da o adolescente, o homem; êle não deve ser capaz
ingratidão de sua parceira de amor. de respirar senão por meio delas; não deve ser
Em casos raros, uma dessas pessoas centra- capaz de amar senão num superficial nível sexual
lizadas na mãe pode funcionar sem graves per- — degradando tôdas as outras mulheres; não deve
turbações. Se sua mãe, de fato o "amava" de ser capaz de tornar-se um ser livre e indepen-
maneira ultra-protetora (talvez sendo domina- dente, mas sim um eterno aleijado ou um cri-
dora, mas sem ser destrutiva), e se êle encontra minoso.
uma mulher do mesmo tipo materno, se os dons Éste aspecto da mãe, o destrutivo, o engol-
e talentos especiais que êle tem lhe permitem fante, é o aspecto negativo da figura materna.
usar seu encanto e ser admirado (como muitas A mãe pode dar vida, e pode tirar a vida. Ela
vêzes ocorre com políticos de sucesso), o homem é a que revive, e a que aniquila ; pode produzir
está "bem ajustado" num sentido social, sem milagres de amor — e ninguém pode ferir mais
jamais alcançar um nível mais alto de maturi- do que ela. Em imagens religiosas (como a da
dade. Mas, sob condições menos favoráveis — deusa indu Kali) e no simbolismo dos sonhos,
e estas, naturalmente, são as mais freqüentes — os dois aspectos opostos da mãe podem ser mui-
sua vida amorosa, quando não sua vida social, tas vêzes encontrados.
será uma séria decepção; conflitos, ansiedade
Forma diferente da patologia neurótica
freqüentemente intensa e depressão surgem quan-
acha-se em casos em que a principal ligação é
do êsse tipo de personalidade é deixado entregue
para com o pai.
a si mesmo.
Numa forma ainda mais grave de patologia, Caso desses é o do homem cuja mãe seja
a fixação à mãe é mais profunda e mais irra- fria e negligente, ao passo que o pai (em parte
cional. Neste nível, o desejo não é, simbólica- como resultado da frieza da espôsa) concentra
mente falando, o de voltar aos braços protetores no filho todo o seu afeto e interêsse. É um
da mãe, nem a seu seio nutriente, mas a seu "bom pai", mas, ao mesmo tempo, autoritário.
ventre oni-receptivo — e oni-destrutivo. Se a Sempre que lhe agrada o comportamento do filho,
natureza da sanidade é crescer fora do ventre e louva-o, dá-lhe presentes, é afetuoso; sempre que
dentro do mundo, a natureza da severa enfermi- o filho lhe desagrada, retira-se, ou censura-o.
dade mental é ser atraido pelo ventre, ser sugado O filho, que tem como única afeição a do pai,
de volta para dentro dêle — e isto é ser arreba- torna-se ligado ao pai de maneira escravizada.
tado da vida. Tal espécie de fixação comumente Seu alvo principal na vida é agradar o pai —
ocorre em referência a mãe que se relacionam e, quando o consegue, sente-se feliz, seguro e
com seus filhos dêste modo engolidor e destruidor. satisfeito. Quando, porém, comete um engano,
Às vêzes em nome do amor, ás vêzes em nome do uma falta, ou não consegue agradar ao pai, sen-
dever, querem elas guardar dentro de si o filho, te-se deprimido, desamado, repelido. Na vida

128 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 129


posterior, tal homem procurará encontrar uma mite estreito contacto com o pai ou a mãe, dei-
figura paterna a que se prenda de maneira se- xando-a por isso intrigada e temerosa. Nunca
melhante. Tôda a sua vida se torna uma seqüên- está certa do que sentem ou pensam os pais;
cia de altos e baixos, dependendo de ter ou não existe sempre um elemento do desconhecido, do
conseguido ganhar o louvor do pai. Homens misterioso, no ambiente. Em conseqüência, a
assim muitas vêzes têm sucesso em sua carreira menina refugia-se num mundo próprio, sonha
social. São conscienciosos, dignos de confiança, acordada, permanece distante e conserva a mesma
prestativos — contanto que a imagem de pai que atitude, mais tarde, em suas relações de amor.
escolheram compreenda como tratar com eles. Além do mais, essa fuga resulta no desen-
Mas, em suas relações com as mulheres, man- volvimento de veemente ansiedade, do sentimento
têm-se retraidos e afastados. A mulher não tem de não pisar com firmeza no mundo, e leva mui-
significação central para eles; costumeiramente tas vêzes a tendências masoquistas, como o único
sentem leve desprêzo por ela, muitas vêzes mas- meio de experimentar intensa excitação. Mulhe-
carado de preocupação paternal para com uma res assim, muitas vêzes, prefeririam que o ma-
mocinha. Podem impressionar inicialmente uma rido fizesse uma cena e lhes gritasse, a vê-lo
mulher por sua qualidade masculina, mas tor- manter conduta mais normal e sensata, porque
nam-se crescentemente decepcionantes, quando a isso, pelo menos, retiraria delas a carga de ten-
mulher que desposam descobre que está desti- são e medo; e não é raro que inconscientemente
nada a desempenhar papel secundário, em face provoquem tal comportamento, a fim de pôr têr-
da primordial afeição à figura do pai, que é mo à culminância atormentadora da neutralidade
saliente na vida do marido, a qualquer tempo; afetiva.
isto é, a menos que aconteça ter a mulher per- Outras formas freqüentes de amor irracio-
manecido ligada ao pai — sendo assim feliz com nal são descritas nos parágrafos que se seguem,
um marido que se relaciona com ela como uma sem entrar na análise dos fatôres específicos do
criança caprichosa. desenvolvimento infantil que se acham em suas
Mais complicada é a espécie de perturbação raizes.
neurótica no amor que se baseia num tipo dife-
ma forma depseuclo-amor não incomum,
rente de situação dos pais, que ocorre quando
muitas vêzes experimentada (e mais vêzes ainda
os pais não se amam mutuamente, mas são por
descrita em filmes e romances comoventes) como
demais fechados para brigar ou para mostrar
"o grande amor", é o amor idólatra. Se alguém
externamente qualquer sinal de insatisfação. Ao
não alcançou o nível em que tenha um sentido
mesmo tempo, seu distanciamento os torna tam-
de identidade, de seu Eu, enraizado no desdo-
bém sem espontaneidade nas relações com os fi-
bramento produtivo de suas próprias fôrças,
lhos. O que uma menina experimenta é uma
tende a "idolizar" a pessoa amada. Aliena-se
atmosfera de "correção", mas que nunca per-

130 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 131


de suas próprias fôrças e projeta-as no ente infeliz história de amor do casal na tela. Para
amado, que é adorado como o summum bonum, muitos casais, ver tais histórias na tela é a Unica
o portador de todo amor, tôda luz, tôda ventura. ocasião em que experimentam amor — não entre
Neste processo, a pessoa se priva de qualquer si, mas juntos, como espectadores do "amor"
sentido de vigor, perde-se no ser amado em vez alheio. Enquanto o amor é um sonho acordado,
de encontrar-se. Como normalmente ninguém podem ter parte nele; logo que voltam à reali-
pode, a longo prazo, corresponder às expectativas dade das relações entre duas pessoas reais — en-
de seu adorador idólatra, a decepção tende a regelam-se.
ocorrer e, como remédio, novo ídolo é procurado, Outro aspecto do amor sentimental é a abs-
ás vêzes num círculo infindável. Característica tratificação do amor em termos de tempo. Um
dêsse tipo de amor idólatra é, no início, a inten, casal pode comover-se profundamente com as re-
sidn de e spbitaneidade da experiência amorosa. cordações de seu amor passado, embora, quando
Ëste amor idólatra é muitas vêzes descrito como êsse passado era presente, nenhum amor se ex-
o grande, verdadeiro amor; mas, embora preten- perimentasse — e com as fantasias de seu amor
da retratar a intensidade e a profundidade do futuro. Quantos noivos, ou recem-casados, não
amor, apenas mostra a fome e o desespêro do sonham com sua felicidade amorosa, a verificar-se
idólatra. Desnecessário é dizer que não é raro no futuro, ao passo que, no momento que estão
acharem-se duas pessoas em idolatria mútua, o vivendo, já começam a enfastiar-se um do outro?
que, às vezes, em casos extremos, representa o Esta tendência coincide com uma atitude geral
quadro da folie à deux. característica do homem moderno. ele vive no
Outra forma de pseudo-amor é a que pode passado ou no futuro, mas não no presente. Re-
ser chamada "amor sentimental". Sua essência corda sentimentalmente sua infância e sua mãe
reside no fato de que o amor só é experimentado — ou faz planos felizes para o porvir. Quer
em fantasia e não nas relações concretas com seja o amor experimentado substitutivamente
outra pessoa, que é real. A mais difundida for- pela participação nas experiências ficticias de
ma dêsse tipo de amor encontra-se na substi- outrens, quer se transfira do presente para o
tutiva satisfação amorosa experimentada pelo passado ou o futuro, essa forma abstratificada
consumidor_ de filmes de cinema, contos amorosos e alienada de amor serve como um ópio que alivia
de revistas e canções de amor. Todos os dese- a dor da realidade, a solidão e a separação do
jos não cumpridos de amor, união e proximidade indivíduo.
encontram satisfação no consumo de tais pro- Ainda outra forma de amor neurótico está
dutos. Um homem e uma mulher que, em rela- Tio uso de mecanismos de projeção, para o fim
ção a seus esposos, sejam incapazes de chegar de evitar os próprios problemas e preocupar-se,
a penetrar a parede da separação, comovem-se em vez disso, com os defeitos e fragilidades da
até às lágrimas quando participam da feliz ou pessoa "amada". Os indivíduos se comportam,

132 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 133


a este respeito, muito semelhantemente às nações, a fim de não privar os filhos das bênçãos de
grupos ou religiões. Têm excelente avaliação até Zum lar unificado. Qualquer estudo pormenori-
mesmo das menores deficiências da outra pessoa, zado, entretanto, mostraria que a atmosfera de
e vão bemaventuradamente a ignorar as próprias tensão e infelicidade dentro da "família unifi-
— tentando sempre acusar ou reformar o outro. cada" é mais prejudicial aos filhos do que o seria
Se duas pessoas fazem o mesmo — como muitas um rompimento claro — o qual pelo menos lhes
vêzes acontece — a relação de amor transfor- ensinaria que o homem é capaz de pôr têrmo a
ma-se numa de mútua projeção. Se sou domi- uma situação intolerável por meio de uma deci-
nador, ou indeciso, ou avaro, acuso meu compa- são corajosa.
nheiro disso e, dependendo de meu caráter, quero Outro êrro freqüente deve ser mencionado
curá-lo ou puni-lo. A outra pessoa faz o mesmo _
aqui. Isto é, a ilusão de que amor significa
— e ambas assim conseguem ignorar seus pró- necessàriamente ausência de conflito. Assim como
prios problemas, deixando portanto de dar qual- é costumeiro acreditar que dores e tristezas, em
quer passo que as possa auxiliar em seu próprio quaisquer circunstâncias, poderiam ser evitadas,
desenvolvimento. também se acredita que o amor significa a au-
sência de qualquer conflito. E boas razões se
Outra forma de projeção é a dos problemas
próprios de alguém sôbre os Antes de encontram para essa idéia, no fato de que as
tudo, essa projeção se verifica, de modo não lutas em tôrno só parecem ser intercâmbios des-
incomum, no desejo de ter filhos. Neste caso, trutivos, que não trazem bem a qualquer dos
tal desejo primordialmente se determina proje- envolvidos. Mas a razão disto está em que os
tando-se os problemas próprios da existência de "conflitos" da maioria das pessoas efetivamente
alguém na dos filhos. Quando uma pessoa sente são tentativas para evitar conflitos reais. São
que não foi capaz de dar sentido à sua vida, desacordos sôbre questões menores ou superficiais,
tenta dar-lhe sentido em têrmos da vida de seus que, por sua própria natureza, não se prestam
filhos. Mas é-se susceptível de falhar, em si a esclarecimento ou solução. Os conflitos reais
entre duas pessoas, aquêles queiiá6 -aerVen para
mesmo e para os filhos. No primeiro caso, por-
encobrir ou para projetar, mas são experimen-
que o problema da existência só pode ser resol-
tados no nível profundo da realidade interior a
vido por cada qual para si mesmo, e não por
que pertencem, não são destrutivos. Levam ao
procuração; no último caso, por faltarem à pessoa
esclarecimento, produzem uma catarse de que
aquelas qualidades necessárias a guiar os filhos
ambas as pessoas emergem com mais conheci-
em sua própria procura de uma resposta) Os
mento e mais vigor. Isto nos conduz a acentuar
filhos servem para fins de projeção, também,
quando surge a questão de dissolver um casa- de novo algo dito acima.
mento infeliz. O argumento comum dos pais em O amor só é possível se duas pessoas se co-
tal situação é a de que não se podem separar municam mütuamente a partir do centro de suas

134 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 135


existências e, portanto, se cada uma se experi- venha em seu auxílio quando ajuda fôr necessá-
menta a partir do centro de- sua própria exis- ria.
tência. Só nesta "experiência central" existe Em verdade, em culturas religiosas como a
realidade humana, só aí há, vivacidade, só aí da Idade Média, o homem comum também en-
está a base do amor. Assim experimentado, o carava Deus como o pai e a mãe auxiliadores.
amor é um desafio constante; não é um lugar Mas, ao mesmo tempo, também considerava Deus
de repouso, mas é mover-se, crescer, trabalhar sèriamente, no sentido de que o alvo culminante
juntamente; haja harmonia ou conflito, alegria de sua vida era viver de acôrdo com os princí-
ou tristeza, isso é secundário em relação ao fato pios de Deus, fazer da "salvação" a preocupação
fundamental de que duas pessoas se experimen- suprema, a que se subordinavam tôdas as demais
tam mutuamente a partir da essência de sua atividades. Hoje, nada de tal esfôrço se apre-
existência, que são uma com a outra por serem senta. A vida diária–é_ estritamente separada de
uma consigo mesmas, em vez de fugir de si mes- quaisquer valores religiosos. É devotada à luta
mas. Só há uma prova da presença do amor : pèlós -confortos materiais, pelo sucesso no mer-
a profundidade da relação e a vivacidade e o cado da personalidade. Os princípios sôbre que
vigor em cada pessoa envolvida ; êste é o fruto se edificam nossos esforços seculares são os da
pelo qual o amor é reconhecido. indiferença e do egoismo (êste último, muitas
vêzes, rotulado como "individualismo" ou "ini-
Os autômatos, assim como não podem amar-se
ciativa individual"). O homem de culturas ver-
mutuamente, também não podem amar a Deus.
dadeiramente religiosas pode ser comparado a
A desintegração do amor de Deus alcançou
crianças de oito anos de idade, que necessitam
mesmas proporções da desintegração do amor do'
da ajuda do pai, mas começam a adotar em suas
homem] Éste fato está emgritante contradição vidas os ensinamento .e os princípios dele. O
com a idéia de que testemunhamos um renasci- homem contemporâneo é antes como uma criança
mento religioso em nossa época. Nada poderia de três anos, que grita pelo pai quando precisa
estar mais afastado da verdade. O que teste- dêle e, fora disso, é inteiramente auto-suficiente
munhamos (ainda que haja exceções) é uma re- quando pode brincar.
gressão a um conceito idólatra de Deus, e uma
A êste respeito, na dependência infantil de
transformação do amor de Deus numa relação um retrato antropomórfico de Deus sem a trans-
conveniente a uma estrutura de caráter alienada. formação da vida de acôrdo com os princípios
A regressão a um conceito idólatra de Deus é de Deus, estamos mais próximos de uma tribo
fácil de ver_i As pessoas são ansiosas, sem prin- idólatra primitiva do que da cultura religiosa
cípios ou fé, acham-se sem alvo a não ser o de da Idade Média. A outro respeito, nossa situa-
seguir para diante; portanto, continuam a per- ção religiosa mostra feições que são novas, ca-
manecer crianças, esperando que o pai, ou a mãe, racterísticas apenas da sociedade capitalista oci-

136 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 137


dental contemporânea. Posso referir-me a afir-
Neste livro religioso, nem mesmo se discute se
mativas feitas em parte anterior dêste livro. O a nossa preocupação predominante com o sucesso
homem moderno transformou-se num artigo; ex- está, em si mesma, de acôrdo com o espírito
perimenta sua energia vital como um investi- da religião monoteísta. Ao contrário, êste alvo
mento com que pode alcançar o mais alto lucro, supremo nunca é pôsto em dúvida, mas a crença
considerando sua posição e a situação do mer- em Deus e a oração são recomendadas como meios
cado de personalidade. Alienou-se de si, de seus de aumentar a capacidade de alguém para ter
semelhantes e da natureza. Seu objeto principal sucesso. Assim como os psiquiatras modernos
é a troca proveitosa de suas capacidades, conhe- recomendam a felicidade do empregado, a fim de
cimentos e de si mesmo, de seu "fardo de per- que seja mais atraente para os fregueses, certos
sonalidade", com outros que pretendam igual- ministros recomendam o amor de Deus a fim de
mente uma troca justa e proveitosa. A vida obter mais sucesso. `!Fazer de Deus um com-
não tem meta exceto a de movimentar-se, ,nem panheiro" significa fazer de Deus um parceiro
princípio a não ser o da boa troca, nem satisfa- de negócios, um sócio, em vez de tornar-se al-
ção que não seja a de consumir. guém um com Ele, no amor, na justiça, na ver-
Que pode, sob tais circunstâncias, significar dade. Assim como o amor fraterno foi substi-
o conceito de Deus? Transformou-se êle, de sua tuido pela correção impessoal, Deus, foi trans-
significação religiosa original, num que se adapta formado num distante Diretor Geral da Com-
à cultura alienada do sucesso. No renascimento panhia Universo S.A.; êle está lá, realiza o
religioso dos tempos recentes, a crença em Deus espetáculo embora este também provàvelmente
mudou-se mim instrumento psicológico para tor- se realizasse sem êle), nunca o vemos, mas lhe
nar alguém mais, adaptado à luta competitiva. reconhecemos a liderança enquanto vamos "fa-
A religião alia-se à auto-sugestão e à psi- zendo a nossa parte".
coterapia, para ajudar o homem em suas ativi-
dades de negócios. Na década de 1920, ainda
não se havia apelado a Deus para os fins de
"aprimorar a personalidade". O best-seller do
ano de 1938, o livro de Dale Carnegie Como
fazer Amigos e influenciar Pessoas, permanecia
num nível estritamente secular. A função do
livro de Carnegie naquele tempo é a função de
nosso maior best-seller de hoje, O Poder do Pen-
samento Positivo', de autoria do Rev. N. V. Peale.
(1) publicado no Brasil.

138 ERICH FROMM A ARTE DE. AMAR 139


IV

A Prática do Amor

Pós tratarmos dos aspectos teóricos da


arte de amar, vemo-nos agora em face
de um problema muito mais difícil, o
da prática da arte de amar. Pode-se aprender
algo sôbre a prática de uma arte, a não ser
praticando-a?
A dificuldade do problema é acentuada pelo
fato de que a maioria das pessoas de hoje, e
portanto muitos leitores dêste livro, espera re-
Ceber. prescrições sôbre "como fazê-lo" e isso, em
nosso caso, significa ser ensinado a amar. Re-
ceio que quem quer que chegue a êste último
capítulo com tal espírito fique gravemente de-
cepcionado. Amar é uma experiência pessoal
que cada qual só pode ter por si e para si; de
fato, quase não há quem não tenha tido tal ex-
periência, de modo rudimentar pelo menos, como
criança, adolescente, ou adulto. O que a dis-
cussão da prática do amor pode fazer é discutir
as premissas da arte de amar, o meio de rumar
para ela, por assim dizer, e a prática dessas

A ARTE DE AMAR 141


premissas e marchas. Os passos para a meta ,.("_J do trabalho, o homem se rebela e sua rebelião
podem ser praticados por quem os vai dar e a toma a forma de uma auto-complacência infantil.
discussão termina antes que se dê o passo de- Em acréscimo, na batalha contra o autoritaris-
cisivo. Contudo, acredito que a discussão dos mo, ele se tornou desconfiado de qualquer dis-
meios de chegar à arte podem ser úteis para o ciplina, da imposta pela autoridade irracional
seu domínio — pelo menos para aqueles que se assim como da disciplina racional imposta por
libertaram de esperar "prescrições". êle mesmo. Sem tal disciplina, contudo, a vida
A prática de qualquer arte tem certos re- se torna estilhaçada, caótica e falha de concen-
quisitos gerais, inteiramente independentes de tração;
lidarmos com arte da carpintaria, da medicina Dificilmente seria necessário provar que a
ou a arte de amar. Antes de tudo, a prática concentração é condição necessária para o domí-
de uma arte exige disciplina. Nunca serei bom nio de uma arte. Quem quer que já tenha ten-
em coisa alguma, se não a fizer de modo disci- tado aprender uma arte sabe disso. Todavia,
plinado; tudo que eu só puder fazer quando mais ainda do que a auto-disciplina, a concentra-
"estiver disposto" pode ser uma diversão bonita ção é rara em nossa cultura. Pelo contrário,
ou aprazível, mas nunca me tornarei mestre nossa cultura leva a um modo de vida descon-
nessa arte. O problema, porém, não é só o da centrado e difuso, que em qualquer outra parte
disciplina na prática da arte particular (diga- mal tem paralelo. Fazem-se muitas coisas ao
mos, praticando-a certo número de horas todos mesmo tempo: lê-se, ouve-se rádio, fala-se,
os dias), mas é o da disciplina na vida inteira fuma-se, bebe-se, come-se. Somos o consumidor
da pessoa. Pode-se pensar que nada é mais de bôca aberta, ávido, pronto a tragar tudo:
fácil, para o homem moderno, do que aprender filmes, bebidas, conhecimentos. Esta falta de
disciplina. Não passa ele oito horas por dia, da concentração fàcilmente se mostra em nossa di-
maneira mais disciplinada, num trabalho que é ficuldade de ficar sós conosco mesmos. Sentar-se
estritamente rotinizado Q O fato, entretanto, é quieto, sem falar, fumar, ler, beber, é impossível
que o homem moderno tem excessivamente pouca para a maioria das pessoas. Ficam nervosas e
auto-disciplina fora da esfera do trabalho. Quan- inquietas, precisam de fazer alguma coisa com
do não trabalha, quer ficar ocioso, espreguiçar-se a bôca ou as mãos. (Fumar é um dos sintomas
ou, para usar uma palavra mais bonita, "repou- dessa falta de concentração; ocupa as mãos, a
sar". Êste próprio desejo de ociosidade é, em bôca, os olhos e o nariz).
grande parte, uma reação contra a rotinização Terceiro fator é a paciência. Mais uma vez,
da vida. Precisamente por ser forçado, durante quem quer que já tenha tentado dominar uma
oito horas diárias, a gastar energia para fins arte sabe que a paciência é necessária, se se
que não são os seus próprios, de maneiras que quer alcançar alguma coisa. Quem anda atrás
não são as suas, mas lhe são prescritas pelo ritmo de resultados rápidos nunca aprende uma arte.

142 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 143


Contudo, para o homem moderno, a paciência Deve-se aprender grande número de outras coi-
é prática tão difícil quanto a disciplina e a sas — às vêzes aparentemente desconexas —
concentração. Todo o nosso sistema industrial antes de começar com a arte propriamente dita.
incentiva exatamente o oposto: a rapidez. Tô- Um aprendiz de carpintaria começa aprendendo
das as nossas máquinas são planejadas para a aplainar madeira; um aprendiz da arte de tocar
rapidez : o automóvel e o aeroplano levam-nos piano começa praticando escalas ; um aprendiz
ràpidamerite a nosso destino — quanto mais de- da arte de atirar com arco e flecha , 'começa fa-
pressa, melhor. A máquina que pode produzir zendo exercícios respiratórios. (Zen in the Art
a mesma quantidade na metade do tempo é duas of Archery, E. Herrigel, Londres, Routledge,
vêzes melhor que a mais antiga e mais vagarosa. 1954). Se alguém quer tornar-se mestre em
Sem dúvida, há para isso importantes razões alguma arte, deve ter a vida inteira devotada a
econômicas. Mas, como em muitos outros as- ela, ou pelo menos relacionada com ela. A pró-
pectos, os valores humanos tornaram-se determi- pria pessoa se torna um instrumento para a prá-
nados por Valores econômicos. O que é bom para tica da arte e deve ser conservada em condições
as máquinas deve ser bom para os homens — adequadas, de acordo com as funções específicas
assim diz a lógica. O homem moderno pensa que tem a desempenhar. Com relação à arte de
que perde alguma coisa — o tempo — quando amar, isto significa que quem aspire a tornar-se
não faz as coisas ràpidamente ; todavia, êle não mestre nessa arte deve começar por praticar a
sabe o que fazer com o tempo que ganha — a disciplina, a concentração e a paciência, em tôdas
não ser matá-lo. as. fases de sua vida.
Afinal, condição do aprendizado de qualquer Como se pratica a disciplina? Nossos avós
arte é uma preocupação suprema com o domínio estariam muito melhor preparados para respon-
dela. Se a arte não fôr coisa de suprema im- der a esta pergunta. Sua recomendação era le-
portância, o aprendiz nunca a aprenderá. Fi- vantar-se cedo pela manhã, não se comprazer
cará, no máximo, como um bom amador, mas em prodigalidades desnecessárias, trabalhar duro.
nunca se tornará um mestre. Esta condição é Éste tipo de disciplina tinha deficiências evi-
tão necessária para a arte de amar como para dentes. Era rígido e autoritário, centralizado em
qualquer outra arte. Parece, entretanto, que a torno das virtudes da frugalidade e da poupança,
proporção entre mestres e amadores pesa mais e de muitos modos hostil à vida. Mas, em rea-
fortemente em favor dos amadores da arte de ção a essa espécie de disciplina, tem havido uma
amar do que no caso das outras artes. tendência crescente a suspeitar de qualquer dis-
Ainda um ponto deve ser tratado com rela- ciplina, a fazer da complacência indisciplinada
ção às condições gerais de aprendizado de uma e ociosa pelo resto da vida o contrapeso e o
arte. Não se deve começar a aprender uma arte equilíbrio do modo rotinizado de vida que nos é
diretamente, mas, por assim dizer, indiretamente. imposto durante as oito horas de trabalho. Le-

A ARTE DE AMAR 145


144 ERICH FROMM
vantar-se a hora regular, dedicar razoável parte ficar só é a condição da capacidade de amar.
do tempo, durante o dia, a atividade como me- Quem quer que tente ficar só consigo mesmo
ditar, ler, ouvir música, passear; não ceder, pelo descobrirá quão difícil isso é. Começará a sentir-
menos não além de certo mínimo, a atividades se inquieto, nervoso, ou mesmo a experimentar
escapistas como histórias de mistério e fitas de considerável ansiedade. Estará disposto a racio-
cinema, não comer nem beber demais — são nalizar sua má vontade em continuar com essa
algumas regras evidentes e rudimentares. É prática pensando que ela não tem valor, é sim-
essencial, contudo, que a disciplina não seja pra- plesmente tôla, toma muito tempo, e assim por
ticada como regra imposta do exterior, e sim diante. Observará também que lhe vêm à mente
que seja a expressão da vontade própria de tôdas as espécies de pensamento, que tomam
alguém; que seja sentida como agradável, e que conta dele. Ver-se-á a pensar em seus planos
a pessoa vagarosamente se acostume a uma es- para o resto do dia, ou numa dificuldade no
pécie de comportamento que acabaria por esque- trabalho que tem a fazer, ou aonde ir à noite,
cer se parasse de praticá-lo. Um dos aspectos ou em qualquer número de coisas que lhe enche-
infelizes de nosso conceito ocidental de disciplina rão a mente — em lugar de permitir que ela
(como das outras virtudes) é o de supor-se sua se esvazie. Seria útil praticar ims poucos e
prática algo dolorosa, só podendo ser "boa" se muito simples exercícios como, por exemplo,
fôr dolorosa. O oriente reconheceu há muito sentar-se em posição repousada (nem espregui-
tempo que aquilo que é bom para o homem — çada, nem rígida), fechar os olhos e tentar ver
para seu corpo e sua alma — deve também ser em frente deles uma tela branca, tentar remover
agradável, ainda que no princípio se torne neces- todos os pensamentos e imagens que interferem,
sário superar certas resistências. tentar acompanhar q. própria respiração; não
A concentração é bem mais difícil de praticar pensar a respeito dela, nem forçá-la, mas sim-
em nossa cultura, em que tudo parece agir contra plesmente acompanhá-la — e, ao fazê-lo, senti-la;
a capacidade de concentrar-se. O passo mais tentar, além do mais, ter o senso do seu "Eu";
importante no aprendizado da concentração é eu mim mesmo, como o centro de minhas
aprender a ficar só consigo mesmo, sem ler, sem f Orças, como o criador de meu mundo. Dever-
ouvir rádio, sem fumar, sem beber. Na verdade, se-ia, pelo menos, fazer êsse exercício de concen-
ser capaz de concentrar-se significa ser capaz de tração tôdas as manhãs durante vinte minutos
ficar só consigo mesmo — e esta capacidade é (se possível, mais) e tôdas as noites antes de
precisamente uma condição da capacidade de deitar-se. (Embora haja considerável volume de
amar. Se me ligo a outra pessoa porque não teoria e. prática a êste respeito nas culturas
posso suster-me por meus próprios pés,. êle ou orientais, especialmente na indiana, alvos seme-
ela podem ser um salva-vidas, mas a relação não lhantes têm sido objetivados em anos recentes,
é a de amor. Paradoxalmente, a capacidade de também no Ocidente. A escola de maior signifi-

146 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 147


cação, a meu ver, é a de Gindler, cujo objetivo é também da companhia dos zumbis, da gente que
sentir o próprio corpo. Para compreensão do tem a alma morta, embora seu corpo esteja vivo ;
método de Gindler, veja-se também a obra de daqueles cujos pensamentos e conversas são tri-
Charlotte Selver, em suas conferências e cursos viais; que tagarelam em vez de falar e que emitem
na "New School", em Nova York.) opiniões estereotipadas em vez de pensar. Nem
Além de tais exercícios, deve-se aprender a sempre, entretanto, é possível evitar a companhia
ficar concentrado em tudo o que se faz, em ouvir de tal gente, e nem mesmo isso é necessário. Se
música, em ler um livro, em falar com uma pes- não se reage de modo esperado — isto é, por
soa, em ver uma paisagem. A atividade do 'meio de lugares-comuns e trivialidades —, mas
momento presente deve ser a única coisa que direta e humanamente, muitas vezes se verá que
importa, a que merece plena entrega. Se se que tais pessoas mudam seu comportamento, aju-
está concentrado, pouco importa aquilo que se dadas pela surpresa que o choque do inesperado
esteja fazendo; as coisas importantes, assim como causou.
as sem importância, assumem nova dimensão de Ficar concentrado em relação aos outros
realidade, porque detêm a integral atenção da significa, antes de tudo, ser capaz de ouvir.
pessoa. Aprender concentração exige que se Muitas pessoas ouvem as outras, e até dão con-
evite, tanto quanto possível, a conversação trivial, selhos, sem ouvir realmente. Não levam a sério
isto é, a conversação que não é genuina. Se duas o que a outra pessoa fala, nem também levam a
pessoas falam a respeito do crescimento de uma sério suas próprias respostas. Em conseqüência,
árvore que ambas conhecem, ou do gôsto do pão a conversação deixa-as cansadas. Têm a ilusão
que acabam de comer juntas, ou acerca de uma de que ficariam ainda mais fatigadas se ouvissem
experiência comum em seu serviço, tal conversa com concentração. A verdade, porém, é o oposto.
pode ser importante, desde que elas experimentem Qualquer atividade, se feita de maneira concen-
aquilo de que falam e não tratem disso de ma- trada, torna-nos mais despertos (embora depois
neira abstraida; por outro lado, uma conversação sobrevenha um cansaço natural e benéfico), ao
pode tratar de assuntos de política ou religião e, passo que qualquer atividade não concentrada
contudo, ser trivial; isto acontece quando as nos deixa sonolentos — e ao mesmo tempo torna
duas pessoas falam usando lugares-comuns, quan- difícil adormecer ao fim do dia.
do seus corações -não estão naquilo que dizem. Ficar concentrado significa viver plenamente
Poderia acrescentar aqui que tão importante no presente, agora, aqui, e não pensar na coisa
quanto evitar a conversação trivial é evitar as seguinte a ser feita enquanto estou fazendo outra
más companhias. Por más companhias não me coisa neste instante. Desnecessário é dizer que
refiro apenas a pessoas que sejam viciadas e a concentração deve ser praticada, acima de
destruidoras; deve-se evitar a companhia destas tudo, por pessoas que mutuamente se amam.
porque sua órbita é venenosa e deprimente. Falo Devem aprender a estar próximas uma da outra,

148 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 149


sem fugir pelos muitos modos por que isso é Se encararmos a situação de ser sensível a
costumeiramente feito. O comêço da prática da outro ente humano, encontramos o exemplo mais
concentração será difícil; parecerá que nunca se evidente na sensibilidade e na correspondência
alcançará o alvo. Nem é mister dizer que isso da mãe para com o seu filhinho. Ela nota certas
implica a necessidade de ter paciência. Se não mudanças corporais, exigências, ansiedades, antes
se sabe que tudo tem seu tempo, se se quer que se expressem claramente. Desperta por
forçar as coisas, então, na verdade, nunca se causa do chôro do filho, quando outro som, muito
conseguirá sucesso em ficar concentrado — nem mais alto, não a acordaria. Tudo isto significa
na arte de amar. Para ter uma idéia do que é que ela é sensível às manifestações da vida do
a paciência, basta que se observe uma criança filho; não está ansiosa nem preocupada, mas em
estado de alertado equilíbrio, receptiva a qual-
aprendendo a andar. Ela cai, torna a cair, cai
quer comunicação significativa que provenha da
outra vez, e, no entanto, continua tentando, me-
criança. Do mesmo modo, pode-se ser sensível
lhorando, até que um dia anda sem cair. Que
para consigo mesmo. Tem-se consciência, por
não poderia o adulto realizar se tivesse a paciên-
exemplo, de uma sensação de cansaço e depres-
cia da criança e sua concentração nos objetivos
são e, em vez de ceder a ela e sustentá-la por
que lhe são de importância! sentimentos deprimentes, que sempre estão à
Ninguém pode aprender a concentrar-se sem mão, indaga-se de si mesmo: "que aconteceu?"
tornar-se sensível a si mesmo. Que significa Por que estou deprimido? O mesmo se faz
isso? Deve alguém pensar acêrca de si mesmo notando-se quando se está irritado ou encoleri-
todo o tempo, "analisar-se", ou o quê? Se fôs- zado, ou com tendência a sonhar acordado, ou a
semos falar em ser sensível a uma máquina, outras atividades de evasão. Em cada uma des-
haveria pouca dificuldade em explicar o que sas situações, o importante é estar cônscio delas,
isso significa. Qualquer pessoa que guie um e não racionalizá-las pelos mil e um modos por
automóvel, por exemplo, é sensível a êle. Mesmo que isso pode ser feito; além do mais, estar
um ruído pequeno, inabitual, é notado, como o é aberto à nossa própria voz interior, que nos dirá
uma pequena alteração no arranque do motor. — muitas vezes quase de imediato — porque
Do mesmo modo, o motorista é sensível às mu- estamos ansiosos, deprimidos, irritados.
danças na superfície da estrada, aos movimentos A pessoa comum tem sensibilidade com rela-
dos carros atrás e à frente do seu. Contudo, êle ção a seus processos corporais; nota mudanças,
não está pensando em todos êsses fatôres; sua ou mesmo pequenas manifestações de dor; esta
mente está em estado de repouso alertado, aberta espécie de sensibilidade corporal é relativamente
a tôdas as coisas de relêvo na situação em que fácil de experimentar, porque a maioria das pes-
êle se concentra: a de guiar seu carro com segu- soas tem uma imagem do que é sentir-se bem.
rança. A mesma sensibilidade para com os próprios

150 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 151


processos mentais é muito mais difícil, porque ao homem comum o sucedâneo de um sentimento
muitos nunca conheceram uma pessoa que fun- de satisfação. Estrêlas de cinema, animadores de
cionasse ôtimamente. Tomam como a norma o rádio, colunistas, figuras importantes do govêrno
funcionamento psíquico de seus pais e parentes, ou dos negócios — êsses são os modelos a imitar.
ou do grupo social em que nasceram, e, enquanto Sua principal qualificação para essa função está,
não diferem deles, sentem-se normais e sem in- muitas vezes, em terem conseguido tornar-se no-
teresse em observar qualquer coisa. Muitas pes- tícia. Contudo, a situação não parece ser inteira-
soas há, por exemplo, que nunca viram uma mente desesperada. Se se considera o fato de
pessoa amorosa, ou uma pessoa de integridade, que um homem como Albert Schweitzer pôde
coragem ou concentração. É de todo evidente tornar-se famoso nos Estados Unidos, se se têm
que, a fim de ser sensível a si mesmo, tem-se de em vista as muitas possibilidades de familiarizar
possuir uma imagem de funcionamento humano a juventude com personalidades vivas e histó-
completo, saudável — e como se adquire tal ricas que mostram o que os seres humanos podem
experiência, quando não foi ela tida na própria realizar como seres humanos e não como entre-
infância, ou mais tarde na vida ? Por certo, tenedores (no amplo sentido da palavra), se se
não há resposta simples para esta pergunta ; mas pensa nas grandes obras de literatura e arte de
ela indica um dos mais críticos fatôres de nosso tôdas as épocas, parece haver uma oportunidade
sistema educacional. de criar uma visão de bom funcionamento humano
Enquanto ensinamos conhecimentos, estamos e, portanto, a sensibilidade ao mau funcionamento.
perdendo aquele ensinamento que é o mais im- Caso não consigamos manter viva uma visão de
portante para o desenvolvimento humano: o ensi- vida amadurecida, então, na verdade, confrontar-
namento que só pode ser dado pela simples nos-á a probabilidade de ver ruir tôda a nossa
presença de uma pessoa amadurecida e amorosa. tradição cultural. Esta tradição não se baseia
Em épocas anteriores de nossa própria cultura, primordialmente na transmissão de certos tipos
ou na China e na índia, o homem mais altamente de conhecimento, nas na de certas espécies de
apreciado era a pessoa de eminentes qualidades traços humanos. Se as gerações vindouras não
espirituais. Mesmo o professor não era só, nem mais virem êsses traços, desmoronar-se-á uma
sequer primàriamente, uma fonte de informação, cultura velha de cinco mil anos, mesmo que seus
mas sua função era transmitir certas atitudes conhecimentos se transmitam e ainda mais se
humanas. Na sociedade capitalista contemporâ- desenvolvam.
nea — e o mesmo é exato quanto à Rússia Comu- Até aqui discuti o que é necessário para a
nista — os homens sugeridos à admiração e prática de qualquer arte. Agora discutirei as
emulação podem ser tudo, menos portadores de qualidades que são de significação específica para
qualidades espirituais significativas. Ficam es- a capacidade de amar. De acôrdo com o que já
sencialmente às vistas do público aqueles que dão disse sôbre a natureza do amor, a principal con-
152 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 153
dição para realização do amor é a superação do mulher, por exemplo, telefona a um médico, di-
narcisismo. A orientação narcisista é aquela em zendo que quer ir ao seu consultório nessa mesma
que só se experimenta como real o que existe tarde. O médico responde que não tem tempo
dentro da pessoa, ao passo que os fenômenos do livre nessa tarde, mas poderá vê-la no dia
mundo exterior não têm realidade em si mesmos,
seguinte. A resposta dela é : "Mas, doutor, eu
mas são experimentados ~ente do ponto de
moro só a cinco minutos de seu consultório..."
vista de serem úteis ou perigosos. O polo oposto
Ela não pode compreender a explicação do mé-
ao narcisismo é a objetividade; é a faculdade
dico de que o fato de ser a distância tão curta
de ver pessoas e coisas tais como são, objetiva-
mente, e' a capacidade de separar esta imagem para ela não economizará o tempo dêle. Experi-
objetiva de uma imagem formada pelos desejos menta ela a situação narcisistamente: uma vez
e temores que se tenham. Tôdas as formas de que ela poupa tempo, êle poupará tempo; a
psicose mostram a incapacidade de ser objetivo, única realidade, para ela, é ela mesma.
em extremo grau. Para a pessoa insana, a única Menos extremas — ou talvez apenas menos
realidade que existe está, dentro dela, é a de seus evidentes — são as distorções que constituem
temores e desejos. Vê o mundo externo como lugares-comuns nas relações interpessoais. Quan-
símbolo de seu mundo interno, como criação sua. tos pais não experimentam as reações do filho
Todos fazemos a mesma coisa, quando sonhamos. em têrmos de ser-lhes obediente, de dar-lhes
No sonho, produzimos acontecimentos, encenamos prazer, de sentirem orgulho dêle, e assim por
dramas, que são a expressão de nossos desejos diante, em vez de perceber, ou mesmo interessar-
e temores (embora às vêzes também de nossas lhes, aquilo que o filho sente, por si e para si
penetrações e julgamentos) e, enquanto dormi- mesmo? Quantos maridos não formam uma ima-
mos, estamos convencidos de que o produto de gem de suas espôsas como sendo dominadoras,
nossos sonhos é tão real como a realidade que porque seu próprio apêgo à mãe os leva a
percebemos estando acordados. interpretar qualquer solicitação como uma res-
A pessoa insana, ou o sonhador, falha com- trição à sua liberdade? Quantas espôsas não
pletamente em ter uma visão objetiva do mundo acham seus maridos ineficientes ou estúpidos,
exterior; mas todos nós somos mais ou menos porque não correspondem à imagem fantasiosa
insanos, ou mais ou menos adormecidos; todos de um brilhante cavaleiro que elas podem ter
nós temos uma visão não objetiva do mundo, formado quando crianças?
falseada pela nossa orientação narcisista. Ne- A falta de objetividade, no que se refere às
cessito dar exemplos? Qualquer um pode en- nações estrangeiras, é notória. De um dia para
contrá-los fãcilmente, observando-se, observando outro, uma nação se transforma em extrema-
os vizinhos, lendo os jornais. Variam no grau mente depravada e diabólica, ao passo que a
de adulteração narcisista da realidade. Uma nação do julgador se ergue como modêlo de tudo

154 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 155


quanto é bom e nobre. Cada ação do inimigo é meus interêsses, necessidades e temores. Adqui-
julgada por um padrão, — cada uma das pró- rir a capacidade de objetividade e de razão é
prias, por outro. Mesmo os atos bons praticados meio caminho andado para assenhorear-se da
pelo inimigo são considerados um sinal de par- arte de amar, mas isso deve ser adquirido com
ticular satanismo, com o intúito de enganar-nos relação a todos aquêles com quem se entra em
e ao mundo, ao passo que nossas más ações são contacto. Se alguém quer reservar sua objetivi-
necessárias e justificadas pelos nobres alvos a dade para a pessoa amada, pensando poder
que servem. Na verdade, quando se examinam dispensá-la em suas relações com o resto do
as relações entre nações, assim como entre indiví- mundo, lago descobrirá que falhou tanto numa
duos, chega-se à conclusão de que a objetividade somo noutra coisa.
é exceção e um grau maior ou menor de distorção
A capacidade de amar depende da capaci-
narcisista é a regra.
dade de emergir do narcisismo e da fixação
A faculdade de pensar objetivamente é a incestuosa à mãe e ao clã; depende de nossa capa-
razão; a atitude emocional por trás da razão é a cidade de crescer, de desenvolver uma orientação
da humildade. Ser objetivo, usar a razão, só é produtiva em nossas relações para com o mundo
possível quando se consegue uma atitude de e para conosco mesmos. Êsse processo de
humildade, quando se emerge dos sonhos de onis- emersão, de nascimento, de despertar requer,
ciência e onipotência que se tem quando criança.
como condição necessária, uma qualidade: a fé.
Em têrmos desta discussão da prática da A prática da arte de amar exige a prática da fé.
arte de amar, isto significa ; o amor, por ser Que é fé? Será a fé, necessàriamente, uma
dependente da relativa ausência de narcisismo, qüestão de crença em Deus ou em doutrinas
requer o desenvolvimento da humildade, da obje- religiosas? Estará a fé, por fôrça, em contraste
tividade e da razão. A vida inteira deve ser
com a razão e o pensamento racional, ou divor-
devotada a esta finalidade. Humildade e objeti-
ciada dêles? Mesmo para começar a entender
vidade são indivisíveis, como o é o amor. Não
o problema da fé, deve-se diferenciar entre a
posso ser verdadeiramente objetivo a respeito de
minha família, se não posso ser objetivo com
fé racional e a irracional. Por fé irracional
compreendo a crença (numa pessoa ou numa
relação ao estranho, e vice-versa. Se quero apren-
idéia) baseada na submissão à autoridade irra-
der a arte de amar, devo esforçar-me pela
cional. Em contraposição, a fé racional é uma
objetividade em tôdas as situações e tornar-me
convicção enraizada na própria experiência que
sensível às situações em que não sou objetivo.
se tem de pensamento ou sentimento. A fé
Devo tentar ver a diferença entre o retrato que
eu faço de uma pessoa e de seu comportamento, racional não é primordialmente a crença em algo,
quando narcisistamente distorcido, e a realidade mas a qualidade de certeza e firmeza que nossas
da pessoa, tal como existe, independentemente de convicções possuem. Fé é uni traço de caráter

156 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 157


que embebe tôda a personalidade, em vez de uma de uma teoria, a fé é necessária: fé na visão,
crença específica. como alvo racionalmente válido a alcançar; fé na
A fé racional tem raízes na atividade produ- hipótese, como proposição igualmente provável;
tiva intelectual e emocional. No pensamento e fé na teoria final, pelo menos até que se
racional, em que para a fé se supõe não haver atinja um consenso geral sôbre sua validez. Esta
lugar, a fé racional é componente importante. fé se enraiza na experiência própria, na confi-
Como, por exemplo, chega o cientista a uma nova ança depositada no próprio poder de pensamento,
descoberta? Começa fazendo experiência após de observação e de julgamento. Enquanto a fé
experiência, reunindo fato após fato, sem ter irracional é a aceitação de alguma coisa como
uma visão do que espera encontrar? Raras verdade apenas porque uma autoridade ou a
vêzes uma descoberta verdadeiramente importan- maioria o afirmam, a fé racional tem raizes
te, em qualquer campo, foi efetuada dessa ma- numa convicção independente baseada na própria
neira. Nem se chega a conclusões importantes observação produtiva e no pensamento, apesar
quando simplesmente se anda a perseguir uma da opinião da maioria.
fantasia. O processo do pensamento criador, em Pensamento e julgamento não são o único
qualquer setor do esfôrço humano, muitas vêzes reino da experiência em que a fé racional se ma-
começa com o que se pode chamar "visão racional", nifesta. Na esfera das relações humanas, a fé é
e que em si é resultado de considerável estudo qualidade indispensável a qualquer amizade ou
prévio; de pensamento refletido e de observação. amor significativos. "Ter fé" em outra pessoa
Quando o cientista consegue reunir bastantes significa estar certo de que ela merece confiança,
dados, ou elaborar uma formulação matemática da imutabilidade de suas atitudes fundamentais,
para tornar sua visão original altamente plausí- do núcleo de sua personalidade, de seu amor. Não
vel, pode-se dizer que êle chegou a uma hipótese quero dizer com isto que uma pessoa não possa
experimentativa. Cuidadosa análise da hipótese, mudar de opinião, e sim que suas motivações
a fim de discernir o que ela implica, e a coleção básicas permanecem as mesmas; que, por exem-
de dados que a sustentem, levam a uma hipótese plo, seu respeito à vida e à dignidade humana
mais adequada e talvez, finalmente, à sua inclusão é parte dela própria, não sujeita a mudanças.
numa teoria de amplo alcance. No mesmo sentido temos fé em nós mesmos.
A história da ciência está repleta de exem- Somos conscientes da existência de um ser, de
plos de fé na razão e de visões de verdade. um núcleo era nossa personalidade que é imutá-
Copérnico, Kepler, Galileu e Newton estavam vel e que persiste através de tôda a nossa vida.
todos imbuidos de inabalável fé na razão. Por apesar das circunstâncias variáveis e independen-
isso Bruno foi queimado na fogueira e Spinoza temente de certas alterações em opiniões e senti-
sofreu excomunhão. A cada passo dado da con- mentos. Êsse núcleo é que constitui a realidade
cepção de uma visão racional até à formulação por trás da palavra "Eu", e sôbre êle se baseia

158 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 159


a nossa convicção de nossa própria identidade é potencialidades. A presença dessa fé estabelece
ameaçado e tornamo-nos dependentes de outras a diferença entre a educação e a manipulação.
pessoas, cuja aprovação se torna, então, a base A educação identifica-se com o auxílio à criança
de nosso sentimento de identidade. Só quem tem para que realize suas potencialidades. (A raiz
fé em si mesmo é capaz de ser fiel aos outros, da palavra educação é e-ducere, literalmente,
porque só assim pode estar certo de que será levar adiante, ou fazer brotar algo que se acha
num tempo futuro o mesmo que é hoje e, portanto, potencialmente presente.) O contrário da edu-
de que agirá e sentirá como agora se espera que cação é a manipulação, que se baseia na ausência
o faça. A fé em si mesmo é unia condição de da fé no crescimento das potencialidades e na
nossa capacidade de prometer, e se o homem, convicção de que uma criança só se sairá bem se
como disse Nietzsche, pode ser definido por sua os adultos introduzirem nela o que é desejável e
capacidade de prometer, então a fé é uma das suprimirem o que pareça ser indesejável. Não
condições da existência humana. O que importa há necessidade de ter fé num "robot", porque nêle
em relação ao amor é a fé no amor que se tem, também não há vida.
em sua capacidade de produzir amor em outros A fé nos outros tem sua culminação na fé na
e em seu merecimento de confiança. humanidade. No mundo ocidental, essa fé expres-
Outro significado de ter fé numa pessoa sou-se, em têrmos religiosos, na religião judaico-
refere-se á fé que temos nas potencialidades cristã e, em linguagem secular, encontrou a ex-
alheias. A mais rudimentar forma em que esta pressão mais forte nas idéias humanísticas polí-
fé existe é a fé que a mãe tem para com o filho ticas e sociais dos últimos cento e cinqüenta
recém-nascido : êle viverá, crescerá, andará, fala- anos. Como a fé na criança, baseia-se ela na
rá. Contudo, o desenvolvimento da criança a tal idéia de que as potencialidades do homem são
respeito ocorre com tal regularidade que a tais que, dadas as condições adequadas, êle será
expectativa disso parece não requerer fé. O capaz de edificar uma ordem social governada
caso é diferente quando se trata das potenciali- pelos princípios da igualdade, da justiça e do
dades que podem deixar de desenvolver-se: as amor. O homem ainda não conseguiu a cons-
potencialidades da criança para amar, ser feliz, trução de tal ordem, e, portanto, a convicção de
utilizar sua razão, além das mais específicas, que êle o possa fazer exige fé. Mas, como tôda
como os dons artísticos. Suas sementes crescem fé racional, esta também não é um pensamento
e se tornam manifestas se forem dadas condições só desejável, mas se baseia na evidência das
adequadas a seu desenvolvimento, e secam-se, se realizações passadas da raça humana e na expe-
estas condições estiverem ausentes. riência interior de cada indivíduo, em sua própria
Uma das mais importantes entre essas con- experiência de razão e amor.
dições é a de que a pessoa que tem significação Se a fé irracional se enraiza na submissão
para a vida de uma criança tenha fé nessas a uma fôrça que se sente ser esmagadoramente

160 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 161


vigorosa, onisciente e onipotente, e na abdicação a dor e a decepção. Quem quer que insista na
da fôrça e do vigor que se tenham, a fé racional incolumidade e na segurança como condições
se baseia na experiência oposta. Temos essa fé primárias de vida não pode ter fé; quem quer
num pensamento porque êste é o resultado do que se feche num sistema de defesa, em que a
que nós mesmos observamos e pensamos. Temos distância e a possessividade sejam seus principais
fé nas potencialidades alheias, nas nossas, nas meios de segurança, faz de si um prisioneiro.
da humanidade, porque, e só até o grau em que, Ser amado e amar requerem coragem, a coragem
experimentamos o crescimento de nossas próprias de julgar certos valores como sendo de extrema
potencialidades, a realidade do crescimento em preocupação, de saltar á frente e apostar tudo
nós, a fôrça de nosso próprio poder de razão e nesses valores.
de amor. A base da fé racional é a produtivi- Esta coragem é muito diferente daquela de
dade: viver por nossa fé significa 'viver produti- que falava o famoso fanfarrão Mussolini, ao
vamente. Daí se segue que a crença no poder usar o lema: "viver perigosamente". Sua espé-
(no sentido de dominação) e o uso do poder são cie de coragem é a coragem do niilismo. En-
o reverso da fé. Acreditar no poder que existe raiza-se numa atitude destrutiva para com a vida,
é o mesmo que descrer do crescimento das poten- na predisposição a lançar fora a vida por se ser
cialidades que ainda não foram realizadas. É incapaz de amá-la. A coragem do desespero é
uma predição do futuro exclusivamente baseada o contrário da coragem do amor, assim como a
no presente manifesto; mas isso se demonstra fé no poder é o contrário da fé na vida.
um grave equívoco, profundamente irracional em
Existe algo que se possa praticar acêrca de
sua consideração das potencialidades humanas e
fé e coragem? Na verdade, a fé pode ser prati-
do crescimento humano. Não há fé racional no cada a cada momento. Criar um filho exige fé;
poder. Há submissão a êle, ou, da parte dos que adormecer exige fé; começar qualquer trabalho
o têm, o desejo de conservá-lo. Se para muitos exige fé. Mas todos estamos acostumados a ter
o poder parece ser a mais real de tôdas as coisas, esta espécie de fé. Quem não a tem sofre de
a história do homem tem provado que êle é a excesso de ansiedade por seu filho, ou de insônia,
mais instável de tôdas as realizações humanas. ou da incapacidade de fazer qualquer espécie de
Em vista do fato de se excluírem mutuamente a trabalho produtivo; ou é suspeitoso, refreando-
fé e o poder, tôdas as religiões e todos os siste- se de aproximar-se de qualquer pessoa, ou
mas políticos originalmente construidos sôbre a hipocondríaco, ou incapaz de fazer quaisquer
fé racional se tornam corruptos e acabam por planos de longo alcance. Apegar-se ao julga-
perder o vigor que têm, quando confiam no poder mento que se tem a respeito de uma pessoa, ainda
ou a êle se aliam. que a opinião pública ou certos fatos imprevistos
Ter fé requer coragem, a capacidade de pareçam invalidá-lo, aferrar-se às próprias con-
correr um risco, a disposição de aceitar mesmo vicções, ainda que sejam impopulares — tudo

162 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 163


isso requer fé e coragem. Tomar as dificuldades, entendia "fazer alguma coisa", e sim uma ativi-
obstáculos e tristezas da vida como um desafio dade interna, o uso produtivo dos próprios po-
que devemos superar para tornar-nos mais fortes, deres. O amor é uma atividade; se amo, estou
em vez de como uma punição injusta que não em constante estado de .ativa preocupação pela
nos devia sobrevir, requer fé e coragem. pessoa amada, mas não só por ela ou êle. De
A prática da fé e da coragem começa com fato, eu seria incapaz de relacionar-me ativamente
os pequenos detalhes da vida diária. O primeiro com a pessoa amada se fôsse preguiçoso, se não
passo é verificar onde e quando se perde a fé, estivesse em permanente estado de alerta, de
olhar através das racionalizações que se usam conhecimento, de atividade. O sono é a única
para encobrir essa perda de fé, reconhecer onde situação adequada à inatividade; o estado des-
se age de modo covarde, e, de novo, como se
perto não deve ter lugar para a preguiça. A
procura justificar isso. Reconhecer como cada
situação paradoxal de vasto número de pessoas,
traição à fé nos enfraquece e como a fraqueza
hoje, é estarem semi-adormecidas quando acor-
aumentada leva a nova traição, e assim por
diante, num círculo vicioso. Então, também se dadas e semi-acordadas quando a dormir, ou
reconhecerá que quando se tem conscientemente quando querem dormir. Estar plenamente acor-
mêdo de não ser amado, o mêdo real, embora dado é a condição para não aborrecer nem ficar
habitualmente inconsciente, é o de amar. Amar aborrecido — e, na verdade, não aborrecer nem
significa entregar-se sem garantia, dar-se com- ficar aborrecido é uma das principais condições
pletamente na esperança de que nosso amor para amar. Ser ativo em pensamento, senti-
produzirá amor na pessoa amada. Amar é um mento, olhos e ouvidos, o dia inteiro; evitar a
ato de fé, e quem tiver mesquinha fé terá tam- ociosidade interior, a forma de ser receptivo,
bém mesquinho amor. Poder-se-á dizer mais amealhador, o mero desperdício do tempo — isto
acêrca da prática da fé! Poder-se-ia; se eu é condição indispensável para a prática da arte
fôsse um poeta, ou um prègador, tenta-lo-ia. de amar. É uma ilusão crer que se possa dividir
Mas, como não sou nenhum dos dois, nem mesmo a vida de modo tal que se seja produtivo na
posso tentar dizer mais acêrca da prática da esfera do amor e improdutivo em tôdas as outras
fé, senão que estou seguro de que quem estiver esferas. A produtividade não permite essa divi-
realmente interessado pode aprender a ter fé são de trabalho. A capacidade de amor reclama
como uma criança aprende a caminhar. um estado de intensidade, de alerta, , de vitalidade
Uma atitude indispensável à prática da arte acentuada, que só pode ser o resultado de uma
de amar e que até aqui só tem sido mencionada produtiva em muitas outras
orientação ativa e produtiv
de modo implícito deve ser discutida explicita- esferas da vida. não se é produtivo em
mente, pois é básica para a prática do amor ; é outras esferas, também não se é produtivo no
a atividade. Disse antes que por atividade não amor.

164 ERICH FROMM A ARTE DE, AMAR 165


A discussão da arte de amar não se pode Quer tratemos do mercado de artigos, do mer-
restringir ao reino pessoal de adquirir e desen- cado de trabalho, ou do mercado de serviços,
volver as características e atitudes descritas cada pessoa troca aquilo que tem para vender
neste capítulo. Liga-se ela inseparàvelmente ao por aquilo que deseja adquirir, sob as condições
reino social. Se amar significa ter urna atitude do mercado, sem uso da fôrça ou da fraude.
amorosa para com todos, se o amor é um traço A ética da probidade presta-se à confusão
do caráter, deve êle necessàriamente existir nas com a ética da Regra Áurea. A máxima "faze
relações que se tenham, não só com a própria aos outros como queres que te façam" pode ser
família e amigos, mas também com aquêles com interpretada como significando "sê probo em tuas
os quais se tem contacto, através do trabalho, trocas com os outros". Mas, de fato, ela foi
dos negócios, da profissão. Não há "divisão de formulada como uma versão mais popular do
trabalho" entre o amor pelos nossos e o amor Bíblico "ama a teu próximo como a ti mesmo".
pelos estranhos. Ao contrário: a condição para Na verdade, a norma judaico-cristã do amor
a existência do primeiro é a existência do último. fraterno é inteiramente diferente da ética da
Levar bem a sério esta concepção representa, probidade. Significa amar ao próximo, isto é,
deveras, mudança bastante drástica do que é sentir-se responsável por êle, um com êle, ao
costumeiro nas relações sociais. Ao mesmo tem- passo que a ética da probidade significa não se
po que muito se fala de bôca para fora sôbre o sentir responsável, nem um, mas distante, sepa-
ideal religioso do amor ao próximo, nossas rela- rado; significa respeitar os direitos do próximo,
ções são efetivamente determinadas, no melhor mas não amá-lo. Não é por acaso que a Regra
dos casos, pelo princípio da probidade. Probi- Áurea se tornou, hoje em dia, a mais popular
dade significa não usar fraude e enganos na máxima religiosa; por poder ser interpretada em
troca de artigos e serviços, bem como na troca de termos da ética da probidade, é a máxima reli-
sentimentos. "Dou-te tanto quanto me dás", em giosa que todos podem compreender e desejam
bens materiais assim como em amor, eis a máxi- praticar. Mas a prática do amor deve começar
ma ética predominante na sociedade capitalista. pelo reconhecimento da diferença entre probidade
Pode-se mesmo dizer que o desenvolvimento da e amor.
ética da probidade é a peculiar contribuição ética Aqui, porém, surge uma questão importante.
da sociedade capitalista. Se têda a nossa organização social e econômica
As razões dêste fato estão na própria natu- se baseia em procurar cada qual sua própria
reza da sociedade capitalista. Nas sociedades vantagem, se é governada pelo princípio do
pre-capitalistas, a troca de bens era determinada egoismo temperado apenas pelo princípio ético
pela fôrça direta, ou pela tradição, ou por laços da probidade, como se poderá fazer negócios,
pessoais de amor e amizade. No capitalismo, o como se poderá agir dentro da moldura da socie-
fator que tudo determina é a troca no mercado. dade existente e, ao mesmo tempo, praticar o

166 ERICH FROMM A ARTE DE AMAR 167


amor Q Não implica este último o abandono de fenômeno complexo. O vendedor de um artigo
tôdas as preocupações seculares, para comparti- inútil, por exemplo, não pode funcionar econo-
lhar da vida dos mais pobres g Esta questão foi micamente sem mentir; um trabalhador capaci-
suscitada e respondida de maneira radical pelos tado, um químico, um físico, podem. Do mesmo
monges cristãos e por pessoas como Tolstoi, modo, um fazendeiro, um operário, um professor,
Albert Schweitzer e Simone Weil. Outros há e muitos tipos de homens de negócios podem
(cf. o artigo de Herbert Marcuse sôbre "As tentar praticar o amor sem deixar de funcionar
implicações sociais do revisionismo psicanalítico" economicamente. Mesmo que se reconheça ser
em Dissent, Nova York, verão de 1955) que o princípio do capitalismo incompatível com o
compartilham da opinião de haver básica incom- princípio do amor, deve-se admitir que o "capita-
patibilidade entre o amor e a vida secular normal lismo" é, em si, uma estrutura complexa e cons-
em nossa sociedade. Chegam ao resultado de que tantemente mutável, que ainda permite boa
falar de amor, hoje, apenas significa participar porção de não-conformismo e de latitude pessoal.
da fraude geral; proclamam que só um mártir Ao dizer isto, porém, não quero implicar
ou um louco pode amar no mundo de hoje e,
que possamos esperar continui indefinidamente
portanto, que tôda discussão a respeito do amor
o presente sistema social, esperando ao mesmo
não passa de sermão. Éste ponto de vista muito
tempo a realização do ideal do amor pelo nosso
respeitável presta-se dôeilmente a uma racionali-
irmão. Pessoas capazes de amar, sob o presente
zação de cinismo. Na realidade, é implicitamente
partilhado pela pessoa comum que sente: "Eu sistema, são necessàriamente exceções. O amor
gostaria de ser um bom cristão... mas teria de é, por necessidade, um fenômeno marginal nos
morrer de fome se levasse isso a sério." Êste dias atuais da sociedade ocidental. Não tanto
"radicalismo" resulta em niilismo moral. Tanto porque muitas ocupações não permitiriam uma
os "pensadores radicais" como a pessoa comum atitude amorosa, mas porque o espírito de uma
são autômatos sem amor e a única diferença sociedade centralizada na produção, ávida de
entre êles está em que a última não tem cons- artigos, é tal que só o não-conformista pode
ciência disso, ao passo que os primeiros sabem defender-se com sucesso contra êle. Aquêles que
disso mas reconhecem esse fato como uma "ne- se preocupam sèriamente com o amor como a
cessidade histórica". única resposta racional ao problema da existência
Estou convencido de que a resposta da abso- humana devem, então, chegar à conclusão de
luta incompatibilidade entre o amor e a vida que importantes e radicais mudanças em nossa
"normal" só é correta num sentido abstrato. estrutura social são necessárias, para que o amor
O princípio que alicerça a sociedade capitalista se torne um fenômeno social, e não um fenômeno
e o princípio do amor são incompatíveis. Mas a altamente individualista e marginal. Dentro do
sociedade moderna, concretamente vista, é um alcance dêste livro, o rumo de tais mudanças

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apenas pode ser sugerido. (Em The Sane So- geral ausência hoje em dia e criticar as condições
ciety, Routledge, (Kegan Paul), Londres, tentei sociais responsáveis por essa ausência. Ter fé
tratar detalhadamente deste problema.) Nossa na possibilidade do amor como fenômeno social,
sociedade é dirigida por uma burocracia gerencial, e não apenas excepcional-individual, é uma fé
por políticos profissionais; o povo é motivado racional baseada em penetração na própria na-
pela sugestão da massa, seu alvo é produzir mais tureza do homem.
e consumir mais, como finalidades em si. Tôdas
as atividades se subordinam a metas econômicas;
os meios tornaram-se fins; o homem é um autô- F IM
mato, — bem alimentado, bem vestido, mas sem
qualquer preocupação última pelo que constitui
sua qualidade e função peculiarmente humanas.
Para que o homem seja capaz de amar, deve
êle ser colocado em seu lugar supremo. A má-
quina econômica deve servi-lo, em vez de servir-
se dêle. Deve êle ficar capacitado a compartilhar
da experiência, a compartilhar do trabalho, em
vez de, no melhor dos casos, compartilhar dos
lucros. A sociedade deve ser organizada de modo
tal que a natureza social e amorosa do homem
não se separe de sua existência social, mas se
unifique com ela. Se é verdade, como venho
tentando mostrar, que o amor é a única resposta
sadia e satisfatória ao problema da existência
humana, então qualquer sociedade que exclua,
relativamente, o desenvolvimento do amor deve,
no fim de contas, perecer vitimada por sua pró-
pria contradição com as necessidade básicas da
natureza humana. Na verdade, falar de amor
não é "prègar sermão", pela simples razão de
que significa falar da última e real necessidade
de todo ser humano. O obscurecimento dessa
necessidade não significa que ela não exista.
Analisar a natureza do amor é descobrir sua

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