Judith Butler é a pensadora que trouxe para o campo da sexualidade uma teoria da
subjetivação que não se compromete com a noção moderna de sujeito, substancialista
e, por isso mesmo, pouco afeita dar conta de uma prática que, ao menos em nossos
tempos, parece não poder se explicar a não ser pelas teorias da contingência, do
mutável e do fluído.
1.
Quanto ao complexo de Édipo (a história grega do filho que buscou amar a mãe na
disputa com o pai), a narrativa é de que a criança nasce e direciona seu desejo afetivo
para ambos os pais (tomados como função simbólica, e não necessariamente o
progenitor e a progenitora), mas logo acaba preferindo um em detrimento do outro. A
preferência cria, então, uma disputa triangular. Por exemplo, o menino quer a mãe, e
entre em guerra com o pai. Todavia, percebe a força do pai sobre a mãe, que o deseja
e, então, esta lança mão do tabu do incesto para afastar o filho da afetividade sexual.
Não é difícil isso ocorrer, pois o pai lhe parece como aquele que pode castrar. A criança
aceita esse poder, se afasta da mãe e, então, dirige sua sexualidade para outros objetos,
se identificando com o comportamento do pai.
Do mesmo modo que o tabu do incesto é possível de ser encontrado em vários povos,
também o esquema do complexo de Édipo, uma vez formulado, é reconhecido como
algo que efetivamente ocorre no seio familiar. Quaisquer pais atentos podem notar, em
graus variados, esse processo.
Grosso modo é este o esquema psicanalítico freudiano. O esquema de Lacan difere, mas
não na sua conclusão sobre a homossexualidade como um desvio de rota. A utilidade da
teorização de Judith Butler é que ela abre para uma visão que não se qualifica como
“desvio”. Trata-se de uma conclusão ética importante. Mas sua teoria não tem somente
serviço ético, ela também é alguma coisa que faz o próprio conhecimento avançar para
campos novos, pois questiona as bases dos pressupostos psicanalíticos e, em certo
sentido, as redescreve.
2.
Butler dá mais dois passos para completar seu quadro. Fala da “melancolia” e da
“corporalização”.
Para Freud, luto e melancolia são reações a uma perda. No caso do luto, trata-se da
reação a uma perda efetiva de alguém. No caso da melancolia, trata-se de um
sentimento vago de perda. Esse último caso é, então, pode ter encaminhamento
patológico, uma vez que está ligado ao que Freud chamou de “depressão”. O
melancólico não aceita a perda, ou seja, não faz o luto, e se identifica com o que perdeu
(ou acha que perdeu). Essa identificação se dá por meio da introjeção de
comportamentos ou aspectos ou práticas etc., do objeto perdido (de perda real ou não).
Compõe seu ego melancólico dessa maneira. Todavia, lembra Butler, Freud também
pensa na melancolia como uma forma (única) de elaboração de perdas, e, portanto,
como uma necessidade civilizacional não patológica e corriqueira.
Butler lembra que a perda realizada pelo tabu do incesto, numa cultura normatizada de
maneira heterossexual, pode ganhar um processo de luto. A perda é aceita. Numa
cultura heterossexual pode-se aceitar não possuir a mãe e as irmãs, trocando-as, enfim,
por outras mulheres. Mas se o tabu da homossexualidade é anterior ao tabu do incesto,
tudo é diferente. Se o tabu da homossexualidade funda a própria cultura como cultura
“normal”, não há aí chance para o luto, e só resta um caminho: melancolia.
3.
O resultado disso é que somos, então, nossos corpos, e estes se fazem como resultado
do que inicialmente desejamos. Nossos desejos primitivos valeram na construção do
gênero, do sexo, tomados como o que é corporal e bem mostrado, e que assim é feito
para denotar uma estabilidade do eu e do corpo. Cada um carrega a melancolia na
superfície do corpo enquanto seu gênero e seu sexo, e a melancolia se acentua quanto
mais essa fixidez do corpo se fortalece.
Butler reitera, com Foucault, que são os discursos que fazem gênero e sexo. Reitera com
Althusser que a “interpelação” da norma nos faz sujeitos e, portanto, portadores de
identidades que, por sua vez, são gênero e sexo. Diz, com Derrida, que podemos
“ressignificar” nosso corpo, na busca do jogo de normatividade para nossas identidades.
Esses estudos de Butler são para que gênero e sexo se mostrem como não naturais. Mas,
o aspecto naturalizante com que eles nos aparecem, é que, para além disso tudo que
pode ser estudado – como Butler faz – há essa corporalização, essa incorporação do
gênero e do sexo. Na superfície do corpo ficam os traços do que se fez melancólico, do
que criou um corpo que tem vestígios da perda não aceita.
Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Bacharel
em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutor em Medicina Social na
UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em sua área,
com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Professor ativo no exterior e no Brasil.