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Rudolf Steiner

Reencarnação e Carma
à luz das modernas concepções da Ciência Natural

Tradução de Lélio Candiota de Campos

1
Por ter afirmado que os animais, mesmo os mais inferiores, nascem mediante
reprodução, o naturalista italiano Francesco Redi, do século XVII, foi considerado pela
sabedoria da época um herege de grande periculosidade e por pouco escapou do mesmo
destino de mártir de um Giordano Bruno ou de um Galileu Galilei. Os ortodoxos sábios de
então acreditavam que os vermes, os insetos e os próprios peixes nasciam da lama
inanimada. Outra coisa não disse Redi senão aquilo que hoje é universalmente aceito, ou
seja, que todo ser vivo provém de outro ser vivo. Cometeu ele, no entanto, o pecado de
reconhecer uma importante verdade dois séculos antes de a Ciência ter encontrado a
correspondente ‘prova irrefutável’. Depois das investigações levadas a efeito por Pasteur,
tornou-se impossível negar tratar-se simplesmente de uma ilusão quando outrora as
pessoas acreditavam que certos seres vivos podiam nascer de substâncias sem vida,
mediante ‘geração espontânea’. Os germes vitais que penetram nessas substâncias
escapavam-lhes à observação. Valendo-se de meios seguros, Pasteur impediu o ingresso
desses germes em substâncias onde habitualmente surgiam seres vivos diminutos, e não
mais apareceu qualquer vestígio de vida. O vivo, pois, só pode provir de um germe vital.
Redi tinha toda a razão.
É em situação semelhante à do pensador italiano que se encontra hoje o antropósofo.
Pelo conhecimento que possui, este dirá do anímico o mesmo que Redi disse do vivo.
Sustentará que todo anímico só pode provir do anímico. E dirá que se a Ciência Natural
ainda se encontra na mesma linha de pensamento que segue desde o século XVII, tempo
virá em que ela mesma, por seus próprios meios, adotará esta convicção, já que — e urge
acentuar sempre isto — hoje a concepção antroposófica se baseia exatamente no mesmo
modo de pensar em que se baseia a Ciência Natural para afirmar que os insetos, os vermes
e os peixes não nascem da lama, e sim de germes vitais. A afirmação antroposófica de que
“todo anímico provém do anímico” tem o mesmo sentido e possui a mesma transcendência
da lei científico-natural segundo a qual “todo vivo provém do vivo”.(1)
Os costumes de hoje são diferentes dos do século XVII. Porém os sentimentos que
norteiam os costumes não mudaram muito. No século XVII, as concepções heréticas eram
combatidas com meios atualmente considerados desumanos. Hoje os antropósofos não são
ameaçados com a morte na fogueira: para torná-los inofensivos, basta qualificá-los como
confusos e fanáticos. Os suplicios da antiga Inquisição foram substituídos por um novo tipo
de tortura: a jornalística. Assim, os antropósofos continuam vivendo: consola-os a certeza
de que chegará o momento em que um Virchow qualquer1 dirá mais ou menos isto: “Houve
época — felizmente já ultrapassada — em que se acreditava que a alma nasce por si
mesma, quando certos complicados processos físico-químicos ocorrem no interior do
crânio. Hoje em dia, porém, essas idéias ingênuas foram totalmente eliminadas de
qualquer pesquisa séria, e eis que todo anímico provém do anímico.” E o coro dos
jornalista ‘esclarecidos’ das mais variadas orientações sectárias, excluído o jornalismo
ingênuo, dirá: “O genial cientista ‘X’ desfraldou corajosamente a bandeira da psicologia
esclarecida, dela banindo a concepção mecanicista da natureza, superstição que ainda em
1903, numa reunião de cientistas naturais, fora triunfalmente proclamada pelo químico
Ladenburg, de Breslau”
Não cometamos, no entanto, a insensatez de pretender que a Ciência Espiritual
comprove suas verdades partindo unicamente da Ciência Natural. O que importa é
ressaltar a circunstância de a Ciência Espiritual possuir o mesmo caráter da Ciência
Natural. O antropósofo apenas completa, na esfera da alma, o que o cientista natural
procura obter com o auxílio do que pode ver com os olhos e ouvir com os ouvidos. Entre a
legítima investigação natural e a Ciência Espiritual não há nem pode haver contradição
alguma. O antropósofo mostra que as leis adotadas por ele em relação à vida anímica
guardam correspondência com as leis que regem os fenômenos da natureza exterior; e
assim pode proceder por saber que o sentimento cognitivo do ser humano só se dá por
satisfeito ao constatar que existe harmonia, e não contradição, entre os diversos domínios
de manifestação da existência. Hoje, muitos dos que revelam um esforço pelo
conhecimento e pela verdade são conhecidos como partidários de determinadas opiniões.
Tais verdades chegam até as demais pessoas, por assim dizer, rolando pelas ruas. Os
suplementos literários dos jornais levam às pessoas cultas, e também às incultas, as leis

1
Rudolf Virchow (1821—1902). patologista alemão. (N.E.)

2
segundo as quais os animais superiores evoluem a partir dos inferiores, bem como o total
parentesco que existe entre o homem e os animais superiores. E os apressados escritores
dos semanários não se cansam de inculcar nos leitores o que estes devem pensar a
respeito do ‘espírito’ na era do ‘grande Darwin’. Só muito raramente acrescentam que na
obra principal de Darwin se encontra também este trecho: “Julgo que todos os seres
orgânicos que existem ou existiram sobre a Terra descendem de um arquétipo cuja vida
foi soprada pelo Criador.”
Numa época destas, torna-se cada vez mais necessário mostrar que, embora a
Antroposofia não lide assim tão facilmente com o ‘sopro da vida’ ou ‘da alma’, como
fazem Darwin e muitos darwinistas, suas verdades em nada se opõem aos legítimos
resultados da Ciência Natural. A Antroposofia não pretende entrar nos segredos da vida
espiritual apoiada nas muletas da Ciência Natural contemporânea, mas quer tão-somente
dizer: — Conhecendo as leis da vida espiritual, ao desceres para a região onde podes ver
com os olhos e ouvir com os ouvidos, encontrarás a correspondente confirmação daquelas
leis superiores. — A Ciência Natural, em seu atual estágio, não está em contradição com a
Ciência Espiritual, senão que ela própria é uma ciência espiritual elementar. Haeckel só
obteve tão belos resultados no domínio da vida animal porque aplicou no estudo da
evolução dos animais as mesmas leis que o psicólogo há tanto tempo aplica à alma. Não
importa que ele não se tenha convencido disto, por desconhecer as leis da alma e ignorar
completamente as pesquisas possíveis nesse campo. Isto em nada diminuí a importância
dos resultados a que chegou em seu campo. Os grandes homens têm os defeitos de suas
virtudes. É nosso dever mostrar que nos domínios onde se sente em casa, Haeckel não é
outra coisa senão antropósofo.
Esta correlação com o conhecimento científico atual oferece ao cientista espiritual
ainda um outro recurso. Os objetos da natureza exterior, de certo modo podemos tê-los
na mão. Por isso é fácil explicar suas leis. Não há qualquer dificuldade para termos
presente em nossa mente que as plantas se modificam quando transportadas de uma
região para outra. A demonstração do fenômeno pelo qual certos animais perdem a
faculdade de ver ao permanecerem por muito tempo em cavernas escuras não requer
grande capacidade de representação. Mas quando as leis que regem esses fenômenos se
tornam evidentes, podemos então, partindo delas, chegar com mais facilidade às leis
menos visualizáveis e menos compreensíveis que nos confundem no terreno psíquico.
Ao socorrer-se da Ciência Natural, outra coisa não colima o antropósofo senão
ilustrar. Ele deve mostrar que as verdades antroposóficas são reencontráveis nesses
domínios, e que a Ciência Natural outra coisa não poderá ser senão uma ciência espiritual
rudimentar; e terá de servir-se das concepções científico-naturais para poder chegar às
suas concepções, mais elevadas, assernelhada s àquelas.
É possível objetar que, neste terreno, qualquer inclinação para as concepções
científico-naturais hoje vigentes poderia levar a Ciência Espiritual a uma situação
equívoca, já que essas concepções não possuem qualquer embasamento seguro. Está
certo: alguns investigadores da natureza consideram certos princípios do darwinismo como
verdades irrefutáveis, ao passo que outros já estão falando na ‘crise do darwinismo’. Uns
encontram na ‘onipotência da seleção natural’ e na ‘luta pela existência’ as bases firmes
de uma explicação completa da evolução dos seres vivos, mas outros acham que essa ‘luta
pela existência’ é a doença infantil da nova Ciência Natural, e passam a discorrer sobre a
‘impotência da seleção natural’.
Enquanto a discussão gira somente em torno desses pontos específicos, o melhor que
o antropósofo teria a fazer seria não se preocupar com isto, aguardan do momento mais
oportuno para a Antroposofia e a Ciência Natural entrarem em acordo. Mas o importante
não é exatamente isto, e sim uma determinada mentalidade, um modo de pensar dos
cientistas naturais de nosso tempo, determinadas grandes linhas diretivas respeitadas em
toda a parte, ainda que exista uma profunda divergência entre pesquisadores e pensadores
a respeito de algumas questões específicas. É verdade: as concepções de Ernst Haeckel e
de Virchow sobre a ‘origem do homem’ diferem enormemente entre si. Mas quem
propende para a Antroposofia só pode alegrar-se ao ver personalidades reconhecidas como
autoridades raciocinar, quanto a determinados enfoques sobre a vida anímica, de maneira
tão clara como estes antagonistas o fazem a respeito do que sempre defenderam como
algo absolutamente seguro. Nem os seguidores de Haeckel nem os de Virchow buscam hoje

3
a origem dos vermes na lama inanimada, e nem os primeiros ou os segundo duvidam do
princípio de que “tudo o que é vivo provém do vivo”, no sentido acima indicado. Na
Psicologia, no entanto, ainda não fomos tão longe. Seus enfoques, por absoluta falta de
clareza, não podem ser comparados aos persuasivos fundamentos da Ciência Natural.
Quem deseja explicar a forma e o modo de vida de um verme sabe que terá de chegar ao
embrião do verme e seus antepassados. Conhece, portanto, o rumo de sua investigação,
embora sobre tudo o mais reinem variadas opiniões, ou até se diga que os tempos ainda
não estão maduros para a formação de um juízo relativo a certos pontos.
Onde semelhante clareza na psicologia? A circunstância de a alma(2) possuir
qualidades espirituais e o verme atributos físicos impede que se chegue a uma dessas
realidades com o mesmo modo de pensar utilizado para atingir a outra. Nossa época,
entretanto, encontra-se sob o influxo de hábitos de pensar que fazem com que inúmeras
pessoas, dentre as que se ocupam destas coisas, não concordem com essa exigência de
tratamento diferenciado. Aceita-se, é verdade, como algo necessário que as qualidades
anímicas do homem devam provir de algum lugar, tal como as físicas. A este respeito,
teceram-se considerações sobre como explicar o fato de serem tão diferentes as almas de
crianças crescidas em circunstâncias semelhantes, e de até mesmo gêmeos se
diferenciarem tanto um do outro em suas características essenciais, embora sempre ti-
vessem estado sob os cuidados de uma mesma ama, num mesmo lugar. Ocasionalmente é
referido também que os últimos anos de vida dos irmãos siameses teriam sido muito
desgastantes, em conseqüência de suas simpatias opostas quanto à guerra civil norte-
americana.2 Aliás, não seria de modo algum correto afirmar que não tenham sido
realizadas cuidadosas observações e reflexões sobre tais fenômenos, e que não existam
trabalhos notáveis a este respeito. Mas, quanto ao anímico, esses trabalhos habitualmente
se comportam do mesmo modo como o cientista natural se comportava com relação ao
vivo ao afirmar simplesmente que o vivo descende da lama inanimada. É de todo justificá-
vel que, para explicar as qualidades anímicas inferiores, suba-se até aos antepassados e se
fale de transmissão hereditária, tal como se faz quanto às peculiaridades corporais.
Porém, quando se segue esta mesma orientação para explicar as qualidades superiores da
alma, ou seja, aquilo que o homem possui de verdadeiramente espiritual, então é porque
se quer fechar os olhos diante do que de mais essencial existe. As pessoas já se
habituaram a considerar as qualidades anímicas superiores como um aprimoramento ou um
grau mais elevado das inferiores. E por isto acham que lhes basta uma explicação
orientada no mesmo sentido da que é destinada às qualidades anímicas dos animais.
É inegável que a observação do desempenho de certas funções anímicas dos animais
superiores pode facilmente conduzir a esse modo de ver. Para tanto, é suficiente referir
os cães, que dão provas notáveis de possuírem uma memória fiel; ou os cavalos que, sen-
tindo a falta de uma ferradura, dirigem-se por si ao ferreiro onde costumam ser ferrados;
basta pensar nos animais que abrem a tranqueta do compartimento onde foram
encarcerados, e tantas outras coisas semelhantes que nos espantam. Certamente,
tampouco o antropósofo deixará de reconhecer todos esses aprimoramentos da capacidade
animal. Dever-se-á, porém, em razão disto, deixar de distinguir a diferença existente
entre as características animais inferiores, que o homem tem em comum com os animais,
e as qualidades espirituais superiores, que somente ele possui? Só podem pensar assim
aqueles a quem os dogmas preconceituosos da ‘ciência’ tenham deixado inteiramente
cegos, aqueles que queiram permanecer presos ao que é sensorial e tosco. Consideremos
apenas o fato aceito e indubitável de que os animais, mesmo os mais evoluídos, não
conseguem contar e, assim, não aprendem a calcular. Nos antigos centros de sabedoria,
emprestava-se a maior importância ao fato de os homens serem capazes de contar, porque
isto os distinguia dos animais.
Poder contar é a mais simples e trivial capacidade anímica. Justamente por isto é
trazida aqui como o ponto-limítrofe onde o anímico-animal chega à fronteira do anímico-
espiritual, do humano-superior. Também aqui se torna, obviamente, facílimo apresentar
objeções. Primeiramente, é possível alegar que a última palavra ainda não foi dada,

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Chang e Eng, gêmeos nascidos na Tailândia em 1811 e falecidos em Nova Iorque em 1874. Eram ligados por
uma membrana na altura do tórax, tendo dado origem à denominação ‘gêmeos siameses’ (xifópagos). (N.E.)

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podendo muito bem ser que um dia se consiga o que até hoje não aconteceu: ensinar
certos animais inteligentes a contar. Em segundo lugar, pode-se acenar para o fato de o
cérebro do homem ser muito mais perfeito que o dos animais, o que é explicável em razão
das funções anímicas superiores do ser humano. É de aplaudir — não uma, mas cem vezes
— o autor dessas objeções. Contudo, diante delas fica-se na mesma situação de quem,
ante o fato de que todo vivo provém do vivo, segue explicando: “Mas as leis físicas e
químicas que imperam no verme são as mesmas que atuam na lama, sendo apenas mais
complexas.” É deveras difícil ajudar quem julga possível desvendar os segredos da nature-
za com o auxílio de trivialidades e obviedades. Certas pessoas acham que o grau de
conhecimento alcançado por elas é o mais alto imaginável, e por isto não lhe ocorre que
outra pessoa poderia ter formulado essas mesmas objeções triviais mas não o fez
simplesmente por ter constatado sua nenhuma valia.
Nada há a objetar quanto à afirmação de que todas as funções superiores no mundo
são apenas um aperfeiçoamento das inferiores, e de que as leis vigentes no verme são um
aperfeiçoamento das que se apresentam na lama. Todavia, assim como hoje nenhuma
pessoa bem informada dirá que o verme se origina da lama, do mesmo modo nenhum
pensador lúcido poderá pretender explicar o anímico-espiritual com o mesmo conceito-
padrão próprio do anímico-espiritual. Assim como se fica com uma sucessão de seres vivos
para explicar a origem do vivo, ter-se-á de permanecer no domínio do anímico-espiritual
para entender de onde ele provém.
Existem fatos, observáveis em toda parte, presenciados por inúmeras pessoas sem
que lhes ocorra qualquer pensamento especial a respeito deles. No entanto, um dia chega
alguém que enxerga nesse fato, acessível a todos, uma verdade importante. Ao observar
uma lâmpada que oscilava pendurada ao teto de uma igreja, Galileu constatou a magna lei
da oscilação do pêndulo. Anteriormente, inúmeras pessoas haviam visto lâmpadas de
igreja a balançar, mas não foram capazes de fazer esta profunda observação, O que
importa é ligar pensamentos corretos às coisas que se vêem. Há um fato, inteiramente
acessível a qualquer pessoa, o qual se corretamente observado projeta luz sobre o caráter
do anímico-espiritual. Referimo-nos à simples verdade de que toda pessoa possui uma
biografia, mas o animal não. Certamente muitos hão de retrucar: não será acaso possível
descrever a história da vida de um gato ou de um cão? Deve-se responder que sim, sem
dúvida, mas que também existem deveres escolares pelos quais se exige da criança a
narração das vicissitudes de uma caneta. “Todavia, o que cumpre ressaltar é que a
biografia tem, para cada ser humano considerado individualmente, o mesmo interesse
fundamental que, para o animal, tem a descrição de sua espécie. No mesmo sentido em
que no caso do leão interessame a descrição da espécie leão, no caso de determinada
pessoa o que me interessa é sua biografia. Descrevendo a espécie humana, à qual
pertencem Schiller, Göethe e Heine, não esgotamos o conhecimento sobre estas
personalidades no mesmo sentido em que esgotamos o conhecimento sobre o leão ao
conhecê-lo como exemplar de uma espécie. O homem singular é mais do que um exemplar
do gênero humano. Possui em comum com seus antepassados físicos as características de
sua espécie, e isto no mesmo sentido em que os animais. Mas onde termina a
conformidade à espécie começa, para o homem, o que determina a singularidade de sua
atuação é sua missão no mundo. E onde isto começa, cessa qualquer possibilidade de
explicação segundo os padrões da hereditariedade físico-animal. Posso atribuir o nariz, os
cabelos de Schiller e talvez mesmo certas qualidades de seu temperamento a seus
antepassados, mas não posso fazer o mesmo com seu gênio. E obviamente isto não é válido
unicamente para Schiller. Vale também para a dona Maria da província. Também nela
encontramos — é só querer — o anímico-espiritual, que nunca será o mesmo encontrável
em seus pais e avós como o serão seu nariz e seus olhos azuis. Göethe efetivamente disse
que do pai tinha a estatura e também a seriedade diante da vida, enquanto que da
mãezinha herdara a natureza alegre e o gosto de fabular, razão pela qual nada de original
havia a mencionar quanto à sua insignificante pessoa. Apesar disto, ninguém pretenderá
explicar os dons de Göethe como herança paterna ou materna, dizendo-se satisfeito com
isto, tal como se contenta ao explicar a forma e o modo de vida do leão em função de seus
ascendentes. Eis o rumo que a psicologia terá de tomar se quiser unir estes dois princípios:
“Todo vivo provém do vivo” e “Todo anímico só é explicável pelo anímico”. Adiante,
prosseguindo sempre nesta mesma direção, mostraremos que as leis da reencarnação e do

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carma, quando assim vistas, tornam-se uma necessidade científico-espiritual.
É deveras estranho que tantas pessoas deixem de lado o problema da origem da alma
humana unicamente por medo de estarem entrando numa região insegura do saber. E
preciso que saibam o que Carl Gegenbaur, o grande pesquisador da natureza, disse do
darwinismo. Ainda que as afirmações imediatas de Darwin não sejam corretas, conduziram
a descobertas que de outro modo não teriam sido feitas. Darwin mostrou,
esclarecedoramente, como as formas vitais evoluem umas das outras, e isto estimulou o
conhecimento das correlações entre essas formas. Mesmo os que combatem os erros do
darwinismo deveriam ter sempre presente que este mesmo darwinismo trouxe clareza e
segurança à investigação da evolução dos animais e das plantas, conseguindo assim trazer
luz à obscura região da atuação natural. Seus erros, ele próprio os sobrepujará. Se não
existisse o darwinismo, não poderíamos dispor dos resultados por ele obtidos. E quanto às
concepções antroposóficas sobre a vida espiritual, idêntica aceitação deveriam manifestar
mesmos aqueles que se sentem inseguros diante de tais ensinamentos. Ainda que estas
convicções não fossem totalmente corretas, elas são, por si sós, capazes de projetar luz
sobre os enigmas da alma. Também a elas muito devem a clareza e a segurança. E como
isto está relacionado com nosso destino espiritual, com a finalidade de nossa condição
humana e com nossa verdadeira missão, a consecução dessa clareza e desta segurança
deveria ser a preocupação maior de nossa vida. Neste domínio, todo esforço para
obtenção de conhecimentos é, simultaneamente, uma necessidade moral e um
compromisso ético irrenunciável.
Com sua obra intitulada Der alte and neue Glaube [A crença antiga e a crença
moderna], surgida em 1872, David Friedrich Strauss quis oferecer uma espécie de bíblia do
homem moderno ‘esclarecido’. A ‘crença moderna’ apóia-se nas revelações da Ciência
Natural e não, como querem os chamados apóstolos do iluminismo, já ultrapassados, nas
revelações da ‘crença antiga’. A nova bíblia foi escrita sob a influência das idéias
darwinistas e provém de uma individualidade que assim se expressa a seu próprio respeito:
“Quem, como eu, se considera destituído de preconceitos, há muito, mesmo antes de
Darwin, não acredita na ‘revelação sobrenatural’ e seus milagres.” Strauss foi claro: as
leis que governam a natureza são necessárias e imutáveis, e o que a Bíblia nos relata como
milagre seria uma perturbação ou quebra dessas leis, o que não pode ocorrer. Sabemos,
pelas leis naturais, que nenhum morto retorna à vida. Portanto, nem mesmo Jesus poderia
ter ressuscitado Lázaro. Havia, no entanto — prossegue nosso despreconcebido pensador —
uma lacuna em nossa explicação da natureza. Pelas leis imutáveis da natureza, podíamos
explicar os fenômenos somente onde não existe vida; mas quanto ao surgimento das
múltiplas espécies de plantas e animais, bem corno do próprio homem, não podíamos
formar qualquer representação compatível com leis naturais. Acreditávamos que, também
aí, as leis a serem consideradas seriam leis naturais necessárias; mas quais seriam elas e
como atuariam, a tal respeito nada sabíamos. Apesar dos esforços feitos, nada era possivel
opor razoavelmente ao que Lineu, o grande naturalista do século XVI1I, afirmou: “As
espécies existentes no reino animal e vegetal são tantas quantas no princípio foram
originalmente criadas.” Não estávamos, aí, diante de tantos milagres da Criação quantas
eram as espécies de plantas e de animais? De que nos servia nossa convicção de que Deus
não podia ter ressuscitado Lázaro por uma intromissão sobrenatural na ordem natural, por
um milagre, se éramos obrigados a aceitar todos esses incontáveis acontecimentos sobre-
naturais? Veio então Darwin e nos mostrou que, por leis naturais imutáveis — a da
adaptação e a da luta pela existência — as espécies vegetais e animais surgem à
semelhança dos fenômenos da natureza inanimada. Ficou, assim, preenchida a lacuna que
havia em nossa explicação da natureza.
Coerente com o posicionamento desta convicção, David Friedrich Strauss escreveu em
seu livro já mencionado estas palavras:
Nós, filósofos e teólogos críticos, fizemos bem em eliminar o milagre, mas nossa
autoridade resultou inútil por julgarmos dispensável demonstrar a existência de uma força
natural capaz de substituir o que até então era tido como de todo indispensável. Darwin
comprovou a existência desta força natural, destes processos naturais; abriu a porta pela
qual uma posteridade mais feliz jogará fora para sempre o milagre. Qualquer pessoa que
saiba o que está implícito no milagre irá louvá-lo, com razão, como um dos maiores
benfeitores do gênero humano.

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Há um clima de vitória nestas palavras. E todos quantos experimentam o mesmo
sentimento de Strauss darão início a uma ‘nova crença’ baseada nesta visão: um dia,
outrora, pequenas partículas sem vida, por virtude de forças inatas, aglomeraram-se de
modo a produzir matéria viva; esta evoluiu segundo leis necessárias e formou o ser vivo
mais simples e imperfeito, o qual, seguindo leis igualmente necessárias, transformou-se
em verme, em peixe, em serpente, em marsupial e, por fim, em macaco. E visto que
Huxley, o grande naturalista inglês3, demonstrou que a constituição do ser humano é
muito mais semelhante à dos símios inferiores, qual a objeção possível à crença de que o
próprio homem haja evoluído dos símios superiores, segundo estas mesmas leis naturais? E
mais: acaso não encontramos nos animais, em estado imperfeito, o que chamamos de
atividade espiritual superior do homem, ou moral? Cabe-nos duvidar que os animais,
quando sua constituição se aperfeiçoar e evoluir no sentido da forma humana, com base
em leis meramente físicas, possam atingir o pináculo humano, inclusive quanto à atividade
racional e moral, que já se encontra neles?
Tudo aqui parece efetivamente harmonizar-se da melhor maneira. É verdade que
somos todos obrigados a concordar que nosso conhecimento da natureza será por muito
tempo ainda insuficiente para compreender em detalhes o modo como isto ocorrerá por si.
Todavia, novos fatos e novas leis serão continuamente descobertos e tornarão cada vez
mais sólidos os fundamentos da ‘nova crença’.
Embora na verdade os estudos e as pesquisas mais modernas não amparem esta
crença e, ao contrário, contribuam para enfraquecê-la, prossegue ela alastrando-se por
círculos cada vez maiores e representa um sério obstáculo para quaisquer outras
reflexões.
Não há dúvida de que, se a razão está com David Friedrich Strauss e seus
companheiros de credo, todo e qualquer pronunciamento a respeito de leis espirituais
superiores da existência torna-se um disparate: a ‘nova crença’ teria de ser erigida com
base exclusivamente nos fundamentos que essas personalidades afirmam serem derivados
do conhecimento da natureza.
No entanto, para quem encara sem preconceitos as explicações desses ‘crentes’,
existe um fato singular. E este fato se mostra inatacável, especialmente quando
consideramos os pensamentos daqueles que, diante das afirmações feitas com tanta
segurança pelos iluministas ortodoxos, guardaram uma certa imparcialidade. Há certos
ângulos obscuros escondidos na confissão dos neocrentes. Quando se descobre o que neles
se oculta, resplandecem os verdadeiros frutos da nova Ciência Natural com um brilho
refulgente, e as opiniões dos neocrentes a respeito do ser humano começam a
esmaecer.(3)
Aclaremos alguns desses ângulos. Detenhamo-nos primeiramente na figura daquele
que é o mais notável e venerável entre todos esses neocrentes. Na página 804 da nova
edição de Natürlicher Schopfungsgeschichte [História da criação natural], de Haeckel, lê-
se:
O resultado final [da comparação entre os animais e os homens] é que entre as almas
animais mais desenvolvidas e as almas humanas de mais baixo nível existe apenas uma
diminuta diferença quantitativa, mas nenhuma diferença qualitativa; esta diferença é
muito menor do que a existente entre as almas humanas mais elevadas e as mais
inferiores, ou do que a diferença entre as almas animais mais elevadas e as mais inferiores.

Como se comporta o neocrente diante deste fato? Proclama que a diferença entre as
almas animais mais e menos elevadas são explicáveis em razão de leis naturais necessárias
e imutáveis. Estudando estas leis, perguntamo-nos: como teria sido possível aos animais
de alma superior evoluir a partir dos que têm alma inferior? Procuramos na natureza as
condições pelas quais o que é inferior pode tornar-se superior. Verificamos então, por
exemplo, que animais provenientes de outros lugares tornaram-se cegos ao derivar para as
cavernas do Kentucky. Constatamos que a permanência no escuro suprime a atividade dos
olhos. Neles não mais se cumpre aquela atividade físico-química que ocorre no ato de ver.
3
Thomas Henry Huxley (1825—1895), naturalista darwinista. Foi avô do escritor inglês Aldous Huxley (1894—
1963). (N.E.)

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A corrente nutritiva, que antes era aplicada nessa atividade, doravante flui para outros
órgãos. Os animais mudam sua forma. Desse modo podem surgir novas espécies animais
das antigas, caso a natureza produza nessas espécies mudanças suficientemente grandes e
variadas. O que acontece aí? A natureza efetua modificações em certos seres; e estas mo-
dificações aparecem também em seus descendentes. Diz-se que elas são herdadas. Fica
assim esclarecido o surgimento de novas espécies de animais e plantas.(4)
E a explicação dos neocrentes prossegue animada. A diferença entre as almas
humanas inferiores e as almas animais superiores não é assim tão grande. Portanto,
determinadas condições de vida a que foram submetidas almas animais superiores
produziram-lhes modificações mediante as quais elas se tomaram almas humanas
inferiores. O milagre da evolução da alma humana — para usar palavras de Strauss — foi,
assim, definitivamente expulso do templo da nova crença, ficando o homem, segundo leis
‘eternas e necessárias’, situado no mesmo nível do mundo animal. Satisfeito com isto,
volta o neocrente a cochilar tranqüilo e, doravante, não quer avançar mais.
Um pensar honesto necessariamente perturbará sua sonolência, pois manterá
fantasmas vivos junto ao leito onde dormita. Examinemos mais de perto a afirmação de
Haeckel acima referida — a de que “a diferença [entre os animais superiores e o homem] é
muito menor do que a diferença entre as almas humanas superiores e as inferiores”. Deve
o neocrente, ao concordar com isto, cochilar em paz, julgando ter explicado como o
homem evoluiu do animal superior?
Não, não deve, pois se o fizer estará negando o próprio fundamento sobre o qual
construiu sua convicção. Como reagiria um neocrente diante de outro que dele se apro-
ximasse e dissesse: “Já demonstrei como os peixes procedem dos seres vivos inferiores e
dou-me por satisfeito com isto. Demonstrei que tudo evolui — logo, também as espécies
que se situam acima dos peixes evoluíram como eles.” Responderia, sem dúvida, o
neocrente: “Não tem fundamento esta tua idéia de uma evolução geral, pois te falta
compreender como surgem os mamíferos, já que a diferença entre eles e os peixes é
maior do que a existente entre os peixes e os animais que lhes são imediatamente
inferiores.” E o que sucederia caso o neocrente fosse realmente fiel a seu credo? Teria de
dizer: “A diferença entre as almas humanas superiores e inferiores é maior do que a
existente entre estas últimas e as almas animais situadas logo abaixo delas; devo, pois,
reconhecer que existem no Universo causas que produzem modificações nas almas
humanas inferiores, transformando-as tal como as causas por mim constatadas
transformam os animais inferiores em superiores. Se não pensar assim, então também o
surgimento das espécies de almas humanas continuará a ser para mim um milagre, tal
como, para os que não acreditam na modificação do ser vivo segundo leis naturais,
constituem milagre as diferentes espécies de animais.”
E isto é absolutamente certo: os neocrentes, que se julgam tão esclarecidos por achar
que ‘expulsaram’ o milagre do mundo vivo, são milagreiros, sim, pois rendem culto ao
milagre no domínio do inundo anímico. E só não são iguais aos milagreiros que tanto
desprezam porque estes admitem honestamente sua crença; aqueles, porém, sequer
suspeitam que foram acometidos da mais sombria superstição.
Aclaremos agora um outro ângulo obscuro da ‘nova crença’. O dr. Paul Topinard
coordenou admiravelmente bem, em sua obra Anthropologie [Antropologia], os resultados
da moderna doutrina da origem humana. Na parte final do livro, recapitula resumidamen-
te o modo como, segundo Haeckel, as formas animais superiores se desenvolveram nas
diversas etapas da Terra:

No início do período terrestre que os geólogos chamam de laurenciano, sucedeu que, sob
condições ocorridas provavelmente apenas nessa época, do encontro casual de alguns
elementos — carbono, oxigênio, hidrogênio e azoto — formaram-se as primeiras parcelas de
albumina. Delas resultaram, por geração espontânea, as moneras — os mais ínfimos e
imperfeitos seres vivos. A seguir, estas se dividiram e se multiplicaram, ordenaram-se em
órgãos e, por fim, após sofrer uma série de transformações que Haeckel fixou em nove,
deram vida a alguns vertebrados da espécie amphioxus lanceolatus (pequenos peixes
lanceolados).

Deixando de lado o modo como se processaram as subseqüentes espécies animais,

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passemos logo à parte final da exposição de Topinard:

No vigésimo grau [de transformações] surge o antropóide [macaco semelhante ao homem],


aproximadamente durante o período mesozóico; no vigésimo-primeiro surge o homem-
macaco, que ainda não possui a fala e um cérebro correspondente a esta. No vigésimo-
segundo, finalmente, aparece o homem assim como o conhecemos, ao menos em sua forma
menos perfeita.

Neste ponto, após expor os ‘fundamentos científicos da nova crença’, Topinard faz
em poucas palavras uma importante confissão. Eis o que diz:

A enumeração é aqui interrompida. Esqueceu-se Haeckel do vigésimo-terceiro grau, onde


fulguram um Lamarck e um Newton.

Há, assim, na confissão do neocrente um ângulo de onde ele, tão claramente quanto
possível, acena para fatos que contradizem sua própria confissão. Sucede, no entanto, que
o neocrente não quer, valendo-se dos mesmos conceitos que utiliza para compreender o
restante da natureza, ascender à região do anímico-humano. Se fizesse isto estaria, com
seu modo de pensar adquirido na natureza exterior, entrando no campo que Topinard
chama de vigésimo terceiro grau, e então teria de dizer a si mesmo: “Se pela evolução
posso fazer a espécie animal superior derivar da inferior, também posso, por meio dela,
fazer a espécie anímica superior derivar da inferior. Não me é possível compreender a
alma de Newton se não a considero como proveniente de um ser anímico predecessor. E
este ser anímico jamais poderá ser buscado nos antepassados físicos — pois quem quisesse
procurá-lo aí teria de inverter completamente o espírito da Ciência Natural. Com efeito,
como poderia um investigador da natureza pretender que uma espécie animal evoluísse de
outra, se esta última fosse fisicamente tão diferente da primeira quanto Newton o é
animicamente de seus antepassados? É concebível que uma espécie animal evoluísse de
outra, se esta última fosse fisicamente tão diferente da primeira quanto Newton o é
animicarnente de seus antepassados? É concebível que uma espécie animal derive de outra
que lhe seja semelhante, situada apenas um grau abaixo dela. Logo, a alma de Newton
deve provir de outra que lhe seja semelhante, animicamente situada apenas um grau
abaixo. O que é anímico em Newton deve integrar sua biografia. Conheço Newton através
dessa sua biografia, assim como conheço um leão pela descrição de sua espécie. E conheço
a espécie leão quando imagino que provém de outra inferior, a ela relacionada. Portanto,
só entendo aquilo que incluo na biografia de Newton se considero isto como evolução da
biografia de uma alma que lhe é semelhante, que lhe é afim como alma. Por conseguinte,
a alma de Newton já existiu sob outra forma.
Um pensar claro não foge a esta conclusão. Os neocrentes não chegam a ela porque
não têm coragem de levar seus pensamentos efetivamente até às últimas conseqüências.
Estes pensamentos, no entanto, atestam o ressurgimento da entidade que incluímos na
biografia. Ou deixamos ruir toda a doutrina evolucionista da Ciência Natural, ou a
estendemos à evolução anímica. Não há outra alternativa: ou toda alma é criada por mi-
lagre, como também milagrosamente teriam sido criadas as espécies animais, ou a alma
evolui e já existiu sob outra forma, tal como as espécies animais.
Alguns pensadores contemporâneos, que conservaram uma certa clareza e coragem
para manter coerentes suas idéias, são uma prova viva desta realidade — tal como os
neocrentes acima caracterizados não são capazes de chegar à compreensão da idéia da
evolução da alma, tão insólita na época de hoje. Mas tiveram ao menos a coragem de
declarar-se partidários da única outra opinião possível: o milagre da criação da alma. As-
sim é que no livro de Johannes Remke, professor de Greifswald e um dos melhores
pensadores da atualidade, lê-se:

A idéia da Criação [...] parece-nos ser [...] a única capaz de favorecer alguma
compreensão a respeito do mistério do surgimento das almas.

Remke chega a reconhecer a existência de um ser universal consciente que, segundo


afirma, “teria, [...] como condição indispensável para o surgimento das almas, de ser

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chamado de ‘Criador das Almas’”. Quem assim nos fala é um pensador que não deseja ser
suavemente embalado em sonolência espiritual, após haver compreendido os processos
vitais físicos. Falta-lhe, porém, a capacidade de aceitar a idéia de que a alma evolui de
uma forma existencial precedente. Johannes Remke possui justamente a coragem de ir
até o milagre, já que não pode chegar ao enfoque antroposófico do ressurgimento da alma
ou reencarnação. A este enfoque, no entanto, necessariamente chegam os pensadores que
se esforçam por uma Ciência Natural coerente. Assim, na obra de Julius Baumann
(professor de Filosofia de Göttingen) intitulada Neuchristentum und reale Religion
[Neocristianismo e religião objetiva], entre as 39 proposições contidas num ‘Projeto de
breve resumo de uma religião objetiva’, encontramos esta, a vigésima-segunda:

Assim como [...] na natureza inorgânica os elementos e forças físico-quimicos não


perecem, mas apenas se combinam de modo diferente, o mesmo é de se admitir, segundo
o método científico-objetivo, relativamente às forças orgânicas e orgânico-espirituais. A
alma humana, como unidade formal, como um eu aprisionado, retorna num novo corpo
humano, modo pelo qual consegue atravessar todos os graus da evolução da humanidade.

Este deverá ser o enfoque de quem se voltar com toda a coragem à crença da Ciência
Natural de hoje. Não se quer, com isto, dizer de modo algum que os eminentes neocrentes
sejam pessoas desanimadas, na acepção comum da palavra. Foi preciso coragem imensa e
muita luta para que o enfoque científico-natural vencesse as forças contrárias do século
XIX. Mas esta coragem é diferente daquela outra maior, exigida para a coerência do
pensar. E um pensar coerente é o que falta aos cientistas naturais, que querem construir
uma concepção do mundo a partir dos conhecimentos limitados à sua área de observação.
Não é, pois, desalentador que, numa conferência pronunciada na última reunião de
cientistas, tenha Albert Ladenberg, químico de Breslau, assim se manifestado: “Acaso
conhecemos realmente algum substrato da alma? Eu não conheço nenhum.” E que, após
tal ‘confissão’, este mesmo homem tenha podido dizer: “E como havereis de considerar a
imortalidade? Penso que nesta questão, mais do que em qualquer outra, predomina o
desejo do autor do pensamento, pois não conheço qualquer fato cientificamente
comprovado sobre o qual nos possamos basear para crer na imortalidade.” O que diria este
ilustre senhor diante de um orador que afirmasse: “Nada sei a respeito dos fatos químicos.
Por tal motivo, nego as leis químicas, pois não conheço um só fato cientificamente
comprovado capaz de apoiá-las”? Ora, o professor diria: “Não nos interessa tua ignorância
a respeito da ciência química; ocupa-te primeiramente com a química, para depois falares
dela.” Não conhece o Professor Ladenberg qualquer substrato da alma; não deveria, pois,
importunar os outros com o resultado de sua ignorância.
Tal como o cientista natural busca formas animais das quais outras se desenvolveram
a fim de entender estas, assim também o psicólogo que se situa no terreno da pesquisa
natural deve buscar as formas anímicas das quais outras evoluíram, para que possa
compreendê-las. Os naturalistas sempre explicam a forma do crânio animal superior pela
transformação do crânio animal inferior. Devem eles, portanto, explicar tudo o que com-
põe a biografia de uma alma pela biografia da alma da qual provém a que têm em vista.
Todo estado posterior é efeito de um estado anterior. Certo — os estados físicos
posteriores são efeito de estados físicos anteriores; mas também os estados anímicos
posteriores são efeitos de estados anímicos anteriores. Este é o conteúdo da lei do carma,
que assim se expressa: tudo quanto me é possível fazer e faço em minha vida presente não
acontece por si, isoladamente, como que por milagre, mas está, como efeito, relacionado
com as existências anteriores de minha alma e, como causa, com as posteriores.
Quem observa a vida humana com olhos espirituais abertos, mas não conhece ou não
quer conhecer esta lei abrangente, permanece continuamente postado diante do enigma
da vida. Demos um exemplo, entre muitos. Begrabene Teinpel [Templo soterrado], de
Maurice Maeterlink, é um livro que fala de tais enigmas, tal como se apresentam aos
pensadores contemporâneos, ou seja, de um modo distorcido, já que eles não acreditam
na magnitude das leis de causa e efeito da vida espiritual, nas leis do carma. Os que se
entregaram aos dogmas extremamente limitados dos neocrentes não vêem sentido algum
em formular questões a respeito desses enigmas. Mas Maeterlink propõe um deles:

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Se, apesar do frio intenso, atiro-me na água para salvar meu próximo, ou se caio nela ao
tentar jogá-lo no lago, serão as mesmas as conseqüências de meu resfriado, em ambos os
casos, e nenhum poder no Céu ou na Terra, afora eu mesmo e a outra pessoa (se lhe for
possível), fará com que meus sofrimentos aumentem em razão do crime que cometi ou
diminuam em função da boa ação que pratiquei.

É certo que, para uma observação restrita aos acontecimentos meramente físicos, as
conseqüências relatadas parecem ser as mesmas nos dois casos. Deverá, porém, esta
observação ser considerada completa desde logo? Quem responder a isto afirmativamente
estará, como pensador, utilizando-se aproximadamente do mesmo enfoque daquele que,
ao observar dois meninos ensinados por dois professores diferentes, não atenta senão para
o fato de que em ambos os casos os professores dedicam o mesmo número de horas a cada
menino e se desempenham de maneira diferente. Observasse ele os fatos mais a fundo,
poderia talvez perceber uma grande diferença entre os dois casos, dando-se conta então
de que um dos meninos virá a ser um incapaz, enquanto o outro se tornará um homem
primoroso.
Portanto, quem deseja chegar às correlações anímico-espirituais dirá a si mesmo, ao
observar as supramencionadas conseqüências para as almas das pessoas em questão: “O
que aconteceu aqui não pode ser considerado unicamente em si mesmo. As conseqüências
do resfriado são experiências da alma e, para que não sejam tidas como milagre, devo
tomá-las como causas e efeitos da vida anímica. Ou as conseqüências produzidas em quem
salvou uma vida e no criminoso decorrem de causas diversas, ou produzem efeitos diferen-
tes num e noutro caso. E se não consigo encontrar essas causas e efeitos na vida presente
dessas pessoas, se nesta vida tudo lhes corre igual, devo então buscar o equilíbrio no
passado ou no futuro. Deste modo, procedo exatamente como o naturalista se comporta
no campo dos acontecimentos exteriores: também ele explica a cegueira dos animais nas
cavernas escuras em função de vivências anteriores; e pressupõe que as vivências
presentes produzirão efeitos futuros nas formações das raças e das espécies.”
Só tem o direito de dissertar sobre a evolução no domínio da natureza exterior quem,
simultaneamente, aceita a evolução no domínio do anímico-espiritual. É claro que esta
aceitação, esta ampliação do conhecimento da natureza para além da própria natureza
émais que simples conhecimento. Ela transmuda o conhecimento em vida: não apenas
enriquece o saber humano, como fornece ao homem a força de que este necessita para
mudar o rumo de sua vida. Mostra-lhe de onde ele vem e para onde vai. E se persiste no
rumo que o conhecimento lhe indica, descobrirá o de onde e o para onde bem além do
nascimento e da morte. Saberá que tudo o que ele faz entrosa-se num curso que flui de
eternidade em eternidade. Alarga-se e eleva-se cada vez mais a perspectiva da qual ele
pode reger sua vida. Antes de adquirir este modo de pensar, o homem está envolto num
nevoeiro espesso, pois sequer suspeita de sua verdadeira natureza, de sua origem e de
seus alvos. Ele segue os impulsos naturais, sem poder compreendê-los. É indispensável o
homem dar-se conta de que outros talvez fossem seus impulsos caso ele iluminasse seu ca-
minho com a luz do conhecimento. O sentimento de responsabilidade perante a vida
cresce cada vez mais sob o influxo desta maneira de pensar. Sozinho, o homem não
desenvolve em si este sentimento de responsabilidade e nega o sentido superior de sua
condição humana. Conhecimento que não tenha por alvo o enobrecimento do ser humano
não passa de satisfação de curiosidades válidas. Elevar o conhecimento à compreensão do
espiritual, a fim de que ele seja a força propulsora de toda a nossa vida, constitui um
dever na mais alta acepção da palavra. Eis por que é dever de todo ser humano procurar
compreender o de onde e o para onde da alma.
O modo como atuam as leis espirituais — a reencarnação e o carma — será objeto da
próxima dissertação.4

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V. Rudolf Steiner, Como atua o carma, trad. de Gerda Hupfeld (3ª ed. São Paulo, Antroposófica, 1996). (N.E.)

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Notas do Autor
1. Isto precisa ser dito expressamente, pois hoje são inúmeros os leitores supeficiais, sempre
prontos a encontrar um possível absurdo na exposição que faz um pensador qualquer, ainda que
este se tenha esforçado por expressar-se com toda a precisão. Por esta razão, seja aqui ainda
especialmente acrescentado que de modo algum me ocorre combater os que, com base em
pressupostos científico-naturais, ocupam-se com o problema da ‘geração espontânea’. Todavia,
embora possa ser verídico que meras substâncias sem vida’ se conjuguem de algum modo com
proteína viva, disto não se segue que, bem compreendida, a concepção de Redi seja falsa.

2. Os devotos da escola de Wundt 5 devem ter ficado terrivelmente chocados por eu falar em ‘alma’
de um modo tão antiquado, já que eles confiam cegamente na palavra de seu mestre, que
proclama não ser correto falar em ‘alma’ porque desta substância ‘supra-real’, depois que a
“mitificação das aparências evaporou-se no transcendente”, nada mais resta senão um ‘fato
coerente’. Pois bem, a sabedoria de Wundt equivale à afirmação de que ninguém deveria falar
em ‘lírio’, porque aí só lidamos com cores, formas, processos de crescimento, etc. (Veja Wundt,
Naturwissenschaft und Psychologie [Ciência Natural e Psicologia]. Leipzig, 1903.)

3. Existem hoje pessoas que gostariam de ser rapidamente instruídas sobre os ensinamentos da
Ciência Espiritual. Tais pessoas ficariam totalmente frustradas quando os fatos científico-naturais
começassem a ser-lhes minuciosamente expostos, de modo a poderem servir de fundamento para
uma construção antroposófica. Eles diriam: “Queremos ouvir algo sobre a Ciência Espiritual e o
senhor nos está relatando coisas da Ciência Natural, do conhecimento de qualquer pessoa
instruída.” Esta objeção mostra claramente como nossos contemporâneos não querem, em
absoluto, pensar seriamente. Os que assim falam nada sabem, na verdade, sobre a
transcendência de seus conhecimentos: o astrônomo ignora inteiramente as conseqüências da
astronomia, o químico as da química e assim por diante. E para eles não há salvação, a não ser
que eles se tornem modestos e capazes de realmente ouvir quando lhes for explicado que, em
razão da superficialidade de seu pensar, eles nada sabem do que, em sua petulância, julgavam
conhecer inteiramente. E também os antropósofos julgam muitas vezes desnecessário valerem-se
da Ciência Natural para fundamentar suas convicções acerca do carma e da reencarnação. Eles
ignoram que esta é a missão das sub-raças6 a que pertencem os habitantes da Europa e da
América, e que sem este fundamento os membros desta raça não teriam condições de realmente
chegar a um conhecimento científico-espiritual. Quem deseja apenas discorrer sobre o que ouve
dos grandes mestres do Oriente não poderá ser antropósofo na civilização euro-americana.

4. Contra estas explicações, muitos objetarão que em sua feição atual a Ciência Natural está em
contradição com os ensinamentos antroposóficos; e que, por exemplo, na Doutrina Secreta de H.
P. Blavatsky se encontra uma teoria genealógica diversa daquela representada por Haeckel. O
modo como esta se comporta relativamente a isto será explicado mais tarde. Aqui não será
mostrado, de modo algum, como a ‘nova crença’ se comporta diante da ‘doutrina secreta, mas
sim e tão-somente como deveria portar-se com relação a si mesma, caso compreendesse seus
próprios pressupostos.

5
Wilhelm Wundt (1832-1920), psicólogo alemão. Fundou em Leipzig o primeiro instituto de psicologia
experimental. (N.E.)
6
No sentido de raças derivadas das raças-raízes, segundo consta nos textos de Steiner sobre a evolução
primordial da humanidade. (N.E.)

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