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DIREITO E TECNOLOGIA

O que são os neurodireitos?1


Brainjacking, neurotecnologias diretas ao consumidor, neuropredição eleitoral: novos desafios trazem
novos direitos

PEDRO DALESE

05/12/2021 05:20

Crédito Pixabay

Na parte final da década de 1980, estimava-se que 50 milhões de americanos


eram afetados por deficiências e distúrbios relacionados ao cérebro. Os elevados
custos aos cofres públicos para o desenvolvimento de tratamentos com doenças
neurológicas e o baixo nível de conscientização da sociedade americana sobre o
estágio das pesquisas em neurociência desencadearam o florescimento de um
debate nos Estados Unidos sobre as pesquisas científicas relacionadas à
compreensão, organização e funcionamento do sistema nervoso central.

1
Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/neurodireitos-o-que-sao-05122021>
Cientistas, especialistas em saúde, médicos, sociedade civil e Congresso
debruçaram-se sobre os avanços, oportunidades e desafios proporcionados pelas
ciências neurológicas no tratamento de distúrbios e deficiências neurais. As
descobertas fundamentais nos níveis molecular e celular da estruturação do
cérebro trouxeram luz ao papel do sistema neural na tradução de eventos
neurofisiológicos como pensamentos, emoções e ações, impulsionando o debate
no país. Como marco significativo desse processo, em 25 de julho de 1989, o
presidente George H.W. Bush assinou a Lei Pública 101-58,[1] oportunidade na
qual declarou a década de 1990 como a “Década do Cérebro”.

Passados quase 24 anos, em abril de 2013, o presidente Barack Obama


anunciou o lançamento da iniciativa BRAIN,[2] uma parceria público-privada
voltada ao desenvolvimento de tecnologias inovadoras destinadas a
compreender as dinâmicas e funções cerebrais e ao fomento de estudos e
pesquisas em neurociência. Desde então, projetos e pesquisas científicas em
todo o mundo, de âmbito público e privado, direcionados ao estudo do cérebro e
dos processos neurais experimentaram um vertiginoso crescimento tanto no
recebimento de incentivos financeiros como na qualificação dos profissionais
envolvidos em tais estudos.

Junto com a evolução neurocientífica surgiram desafios éticos, jurídicos e sociais.


Com as neurotecnologias tornando-se mais economicamente acessíveis,
escaláveis e de fácil manuseio, processo similar ao que se deu com os
computadores pessoais e portáteis a partir da década de 1970, o debate sobre os
avanços da neurociência e o desenvolvimento das neurotecnologias adquiriu
novos contornos.

Recentemente, tem havido um interesse crescente no estudo dos correlatos


neurais e fisiológicos contidos nas escolhas políticas. Estudos de imagem por
ressonância magnética funcional (fMRI) e eletroencefalografia (EEG) já são
capazes de apontar fortes indícios quanto à existência de diferenças nas
estruturas e funções cerebrais de acordo com o pensamento político.

Em estudo realizado nas cinco semanas que antecederam as eleições europeias


de 2019, 69 cidadãos participaram de uma pesquisa neurocientífica voltada à
análise de atitudes políticas e à predição de comportamentos eleitorais realizada
pelo laboratório do Departamento de Psicologia da Universidade Sapienza de
Roma.[3]

Enquanto os participantes respondiam perguntas de cunho econômico e social, os


pesquisadores utilizavam imagens de EEG para analisar suas atividades neurais.
Ao final do estudo, constatou-se que as predições realizadas pelos pesquisadores
obtiveram maior índice de acerto do que os meios tradicionais de pesquisa pré-
eleitoral, sugerindo que as medições da atividade cerebral têm o potencial de
refinar ainda mais a avaliação de futuras atitudes sociopolíticas.

Em estudo realizado pelo departamento de políticas da Universidade de Exeter


abordou-se as diferenças no funcionamento do cérebro de democratas e
republicanos americanos.[4] O estudo indica que democratas e republicanos
ativam diferentes partes do cérebro nas tomadas de decisão de risco,
demonstrando que a orientação política também pode ser identificada a partir da
análise da estrutura cerebral.

No âmbito laboral, novas abordagens para a seleção de empregos já passam a


contar com atividades e avaliações de gamificação baseadas em estudos
neurocientíficos. Em cenários de monitoramento de tráfego de veículos aéreos
não tripulados (VANT), onde operadores humanos são responsáveis pelo
gerenciamento de drones, começam a surgir modelos de supervisão laboral que
objetivam avaliar a carga de trabalho mental dos controladores. Um procedimento
de classificação da carga de trabalho cognitiva realizado a partir de sinais de
EEG, que, em princípio, volta-se à prevenção de acidentes quando verificadas
condições mentais consideradas como críticas.[5]

A análise de sinais de EEG aliada ao uso de sistemas algoritmos de classificação


também vêm sendo aplicada para reconhecer, compreender e perfilar com maior
refinamento os estados mentais e padrões de preferência dos consumidores.

O mercado de neurotecnologias diretas ao consumidor (direct-to-consumer


neurotechnologies)[6] está crescendo rapidamente. Um novo mercado de
consumo que inclui interfaces cérebro-computador, dispositivos de
neuroestimulação, sistemas de realidade virtual, aplicativos de smartphone e
vestíveis. Vestíveis que processam e compilam dados biométricos de frequência
cardíaca e de movimentos corporais em conjunto com dados neurais oriundos de
EEG já são capazes de fornecer uma representação unificada do comportamento
do sono do consumidor por meio de inferências neurológicas.

Frequentemente, os dados de uma infinidade de dispositivos e plataformas são


coletados e integrados para gerar um perfil completo e multifacetado do
consumidor. Segundo Kreitmair, ao integrar informações de GPS de um aplicativo
de mapas de smartphone com dados da atividade eletrodérmica de uma resposta
galvânica da pele (GSR) oriunda de um vestível, como uma pulseira fisiológica,
torna- se possível realizar inferências das variações de estados emocionais,
neurológicos ou psicológicos do consumidor de acordo com a sua localização.
Dada a íntima relação dessas tecnologias com o cérebro, a autora assinala o
surgimento de questões éticas, de segurança, transparência e privacidade ainda
pouco exploradas. Causa igualmente preocupação o agravamento da
vulnerabilidade informacional do consumidor num cenário em que grande parte
das neurotecnologias diretas, por não abrangerem tratamentos médicos, não
estão sujeitas à regulamentação específica.

Num contexto de aplicações não clínicas de tecnologias como neuroimagem,


neuroestimuladores e interfaces cérebro-computador, de que forma ou em quais
hipóteses tornam-se legítimas as atividades de tratamento realizadas com dados
neurais? Como compatibilizar os avanços tecnológicos em neurociência com o
pleno desenvolvimento do ser humano sem comprometer suas capacidades
neurocognitivas e existenciais?

Pensando nesses desafios, parcela da doutrina passou a analisar a estrutura


jurídica dos direitos humanos frente aos atuais desenvolvimentos
neurotecnológicos e suas aplicações em variados campos da sociedade. Como
uma das possíveis respostas, tem-se os neurodireitos, um novo ramo da ciência
jurídica composto pela releitura de direitos da personalidade humana à luz de
tecnologias emergentes aplicadas às atividades do cérebro e pelo surgimento de
direitos neuroespecíficos destinados à proteção do cérebro, dos dados neurais e
dos estados cognitivos humanos.

Quanto às espécies de neurodireitos, Ienca e Andorno (2017)[7] propõem 4 quatro


neurodireitos[8] por meio da reconceitualização do direito à integridade mental,
previsto no artigo 3º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
(CDFUE), e do reconhecimento do direito negativo à liberdade cognitiva e dos
direitos à privacidade mental e à continuidade psicológica. Uma abordagem
neuroespecífica que parte da constatação de que os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos existentes não fazem referência expressa à
neurociência. A proposta doutrinária destina maior atenção às neurotecnologias
por serem detentoras de maior eficácia e confiabilidade no acesso e manipulação
de processos neurais, diferentemente do que ocorre com substâncias
farmacológicas e técnicas de indução hipnótica e de detecção de mentiras.

O direito à integridade mental, complementar ao direito à integridade física, fornece


proteção específica contra intervenções habilitadas por neurotecnologias que
envolvam alterações não autorizadas da computação neural do indivíduo e
estejam aptas a causar danos psíquicos e mentais. Para os autores, a integridade
mental, em sentido amplo, além de garantir o direito de acesso a serviços de
assistência médica e tratamento psiquiátrico, também garante proteção à dimensão
mental quanto a possíveis danos. Danos esses que podem estar materializados
em práticas ainda pouco difundidas como o sequestro cerebral (Brainjacking),[9]
que se dá por meio do acesso e controle não autorizado de implante cerebral
eletrônico de terceiro, bem como a partir da coleta, processamento e modificação
de informações neurais advindas de neurodispositivos da ordem de estimuladores
cerebrais profundos (DBS) e de interfaces-cérebro computador (ICC).

No sentido de proteger os indivíduos contra o uso coercitivo de neurotecnologias,


os autores desenvolvem o direito negativo à liberdade cognitiva. Um direito que, ao
garantir a soberania do indivíduo sobre o que está sobre e dentro de sua
mente,[10] destina-se a contemporaneizar a noção de liberdade de pensamento
em ordens jurídicas fundadas na autodeterminação individual e no livre arbítrio
frente às crescentes possibilidades de intervenção no monitoramento e
manipulação das funções cognitivas.[11] Sendo o substrato das demais liberdades
ligadas à mente, a liberdade cognitiva manifesta-se como um valor comum a todos
os neurodireitos.[12]

No que tange ao direito à privacidade mental,[13] argumenta-se que os direitos de


privacidade e proteção de dados existentes são insuficientes para conferir
proteção às atividades de tratamento realizadas com dados neurais num cenário
de neurotecnologias emergentes. Nesse contexto, violações à privacidade mental
podem ser realizadas a partir de dados e informações que estão além do
conhecimento do indivíduo, abaixo do limiar da experiência consciente humana.

Desse modo, a privacidade mental busca assegurar proteção aos dados e


informações neurais antes mesmo de qualquer manifestação extracraniana, e.g.,
em formato verbal, impresso ou digital.

Por fim, tem-se o direito à continuidade psicológica. Segundo os autores, tal


direito visa a proteger o indivíduo de alterações induzidas em seu funcionamento
neuronal, independentemente da existência de dano, conferindo proteção à
continuidade dos pensamentos, preferências e escolhas habituais. A partir dele,
tutela-se elementos centrais da identidade humana em momento antecedente à
transição dos estados mentais para a ação. Desse modo, tal direito pode ser
compreendido como uma tutela específica do direito à identidade num cenário de
ameaças à autodeterminação mental.

No mesmo sentido, Yuste,[14] Genser e Herrmann (2021) defendem a inserção


dos neurodireitos em tratados internacionais de direitos humanos. A proposta
dos pesquisadores da The NeuroRights Foundation, que abarca a criação de
uma Agência Global de Neurodireitos e de uma Comissão Internacional de
Especialistas em Ciência e Direito, trabalhou na formulação de cinco direitos de
neuroproteção:[15] (i) o direito à identidade, que tutela a capacidade do indivíduo
de exercer controle sobre sua integridade física e mental; (ii) o direito de agência,
voltado à proteção da liberdade de pensamento e do livre arbítrio na tomada de
decisão; (iii) o direito à privacidade mental que, partindo do pressuposto de que
na era das neurotecnologias a privacidade e o sigilo do conteúdo das
informações mentais não podem mais ser presumidos, objetiva proteger os
pensamentos de intervenções de terceiros; (iv) o direito de igualdade de acesso
ao aprimoramento cognitivo, no intuito de garantir que os benefícios resultantes
do uso das neurotecnologias sejam distribuídos de forma equitativa por todas as
classes da sociedade e, por fim, (v) o direito à proteção contra vieses
algorítmicos, que enfatiza a necessidade da adoção de normas e padrões
técnicos capazes de garantir que as neurotecnologias não sejam utilizadas para
fins discriminatórios.

A proposta de expansão da estrutura dos direitos humanos para a dimensão da


neurociência e da neurotecnologia segue o mesmo trilhar da lógica protetiva
implementada na formulação de instrumentos voltados à salvaguarda dos
direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade da pessoa
humana como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a
Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos (1997), a
Convenção sobre os direitos do homem e da Biomedicina, Convenção de Oviedo
(1997), a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (2003) e a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 introduziu no ordenamento jurídico


pátrio preceitos fundamentais que asseguram o respeito à dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III), às manifestações livres de pensamento e de expressão (art.
5º, IV), bem como à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X).[16]

Constituição que tem entre seus objetivos fundamentais a promoção do bem de


todos numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I e IV) e, que, de forma
pedagógica, destina ao Congresso a missão de implementar mandados de
criminalização para refrear qualquer discriminação atentatória aos direitos e
liberdades fundamentais (art. 5º, XLI). [17] No plano infraconstitucional, o país
possui um sólido sistema de princípios, garantias, direitos e deveres voltados à
proteção da privacidade, dos dados pessoais e para o uso da internet. Mesmo
assim, ressalta-se que desenvolvimentos neurotecnológicos que começam a
ilustrar que a mente não é mais a fortaleza impenetrável dos recintos sagrados
da privacidade[18] e da identidade humana fazem jus a um debate específico
sobre o assunto.

Nesse sentido, sob uma ótica típica de Estados Democráticos de Direito, os


neurodireitos possibilitam identificar, antecipar e minimizar o impacto de certas
neurotecnologias na sociedade, além de fornecerem novas respostas às
demandas éticas e humanistas que surgem com a inovação e o progresso.

[1] ESTADOS UNIDOS. Congresso Nacional. PUBLIC LAW 101-58 – JULY 25, 1989. Disponível
em: https://www.congress.gov/bill/101st-congress/house-joint-resolution/174/text/pl?
overview=closed. Acesso em: 13 nov. 2021.

[2] The BRAIN Initiative. https://braininitiative.nih.gov/


[3] GALLI, Giulia et al. Early EEG responses to pre-electoral survey items reflect political
attitudes and predict voting behavior. Scientific Reports 11, n. 18692, 2021.

[4] SCHREIBER, Darren et al. Red brain, blue brain: Evaluative processes differ in democrats
and republicans. PLoS ONE 8, e52970, 2013.
[5] BAZZANO, Federica et al. Mental Workload Assessment for UAV Traffic Control Using
Consumer-Grade BCI Equipment. In: Intelligent Human Computer Interaction: p. 60-72,
2017.

[6] KREITMAIR, Karola V. Dimensions of Ethical Direct-to-Consumer Neurotechnologies.


AJOB Neuroscience, 10:4, 152-166, 2019.

[7] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of
neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, 13:5, 2017.

[8] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. A new category of human rights:


neurorights. Biomedcentral, 2017. Disponível em:
https://blogs.biomedcentral.com/bmcblog/2017/04/26/new-category-human-rights- neurorights/.
Acesso em: 15 nov. 2021.

[9] PUGH, Jonathan et al. Brainjacking in deep brain stimulation and autonomy. Ethics
and Information Technology. 20(3), p. 219-232, 2018.

[10] BUBLITZ, Jan-Christoph. My mind is mine!? Cognitive liberty as a legal concept. In:
Cognitive Enhancement. Trends in Augmentation of Human Performance. Springer, Dordrecht,
v. 1, p. 233- 264, 2013.

[11] SENTENTIA, Wrye. Neuroethical considerations: cognitive liberty and converging


technologies for improving human cognition. Annals of the New York Academy of Sciences
1013, p. 222-223, 2004.

[12] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new…, op. cit., p. 24.

[13] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new…, op. cit., p. 17-20.

[14] Em 25 de outubro de 2021, o Chile publicou a Lei nº 21.383 que modificou a Constituição
para estabelecer que o desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas
e será realizado com respeito à vida, à integridade física e mental, deixando a cargo do Poder
Legislativo a criação de normas destinadas à tutela da atividade cerebral. O projeto de lei
que deu origem ao texto legal, Boletín 13827-19, foi influenciado pelos estudos de Rafael
Yuste e Sara Goering sobre os Neurodireitos.
[15] YUSTE, Rafael; GENSER, Jared; HERRMANN, Stephanie. It’s Time for Neuro-Rights.
Horizons. Journal of International Relations and Sustainable Development. Center for
International Relations and Sustainable Development. Ed. 18, p. 160-161, 2021.

[16] Em 20 de outubro de 2021, o Senado Federal aprovou a proposta de emenda à


constituição nº 17 de 2019 que altera a Constituição Federal para incluir a proteção de dados
pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência da União para
organizar e
fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, bem como para legislar privativamente
sobre o assunto.

[17] Desde 06 de abril de 2021, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.229/21 que
objetiva modificar a Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018 (LGPD) para conceituar dado
neural e regulamentar a sua proteção.

[18] WARREN, Samuel Dennis; BRANDEIS, Louis Dembitz. The right to privacy. Harvard
LawReview, v. 4, n. 5, p. 195, 1890.

PEDRO DALESE – Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), advogado do Escritório Luciano
Tolla Advogados e especializado em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Superior de Advocacia da OAB-RJ

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