Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 452

Metamorfoses

Ovídio
tradução de Paulo Farmhouse Alberto

As Metamorfoses são urna das obras-primas da Antiguidade Clássica.


E, ao longo dos séculos, poucos textos exerceram tão singular
fascínio e tanta influência, sobretudo nos campos da literatura
e das artes plásticas, desde o Renascimento até aos nossos dias.
Com a sua mestria de 'contador de histórias' e 'pintor de cenários',
Ovídio legou-nos episódios e figuras imortais, depois recriados
vezes sem conta. Faetonte, Midas (o do toque de ouro e das orelhas
de burro), a tec.edeira Aracne, Dafne, Polifemo e Galateia, Narciso,
Filomela, Actéon, Dédalo e Ícaro, Orfeu e Eurídice, Pigmalião,
entre tantos outros, passaram a pertencer à galeria das personagens
eternas da Cultura Ocidental.

Paulo Farmhouse Alberto é professor da Faculdade de Letras de


Lisboa. Licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e doutorado
em Literatura Latina, tem dedicado a sua investigação à crítica
textual, edição e história dos textos. Além disso, tem traduzido
autores clássicos como Tito Lívio, Propércio, Orósio, Aristóteles.

«A tradução de As Metamorfoses de Ovídio, da autoria de Paulo


Farmhouse Alberto, trabalho que, pelo saber e pela qualidade
literária, emparelha bem com as traduções de Homero, de Frederico
Lourenço, vem colmatar uma lacuna tanto mais grave quanto é certo
que o sulmonense Ovídio, como dizia Camões, está "por detrás"
de grande parte da literatura ocidental.»
Vasco Graça Moura

ISBN: 978-972-795-338-7

111111111111111111111111111111
9 789727 953387

Bolso Cotovia Clássicos www.llvroscotovla.pt


Princi

R.Pó

Cumas •Nápoles
Pitecusa~Cá.preas
O.
Pesto

M A R

Cirene

MARMÁRJOAS

NASAMONES
Lf BI
mentos geográficos citados nas Metamorfoses de Ovídio

MAR NEGRO
M.CM

CÓLQUI
R.Fd

M.Cltoro

ARMÉNIA

CAPADÓCIA

s
J
ERRÂNEO
M E TA M O RF O S E S
Ovídio

Metamorfoses

tradução de
PAULO FARMHOUSE ALBERTO

Livros Cotovia
Título: Metamorphoses
©Livros Cotovia e Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa, 2007

Edição seguida: P. Ovidius Naso, Metamorphoses, R. J. Tarrant (ed.) ,


Oxford Classical Texts, 2004.

Capa: Silva ! designers

ISBN 978-972-795-338-7
Índice

Introdução p. 11

LIVRO I
Prólogo vv. 1-4 35
A criação 5-88 35
As Quatro Idades 89-150 37
A Gigantomaquia 151-162 39
A assembleia dos deuses 163-252 39
Licáon 211-243 41
O dilúvio 253-312 42
Deucalião e Pirra 313-415 44
O renascer da vida 416-433 47
Apolo e a serpente Píton 434-451 47
Apolo e Dafne 452-567 48
Júpiter e lo 568-746 51
Argo e lo 625-723 53
Pã e Siringe 689-712 54
Faetonte 747-779 56

LIVRO II
Faetonte (cont.) 1-339 58
As Helíades 340-366 67
Cicno 367-380 68
A dor do Sol 381-400 68
Júpiter e Calisto 401-530 69
O corvo e a gralha 541-632 73
Apolo e Corónis 542-632 73
Córnix 552-595 74
Ocírroe 633-675 76
Mercúrio e Bato 676-707 77
Mercúrio, Aglauro; a mansão da Inveja 708-832 78
Júpiter e Europa 833-875 82
6 ÍNDICE

LIVRO III
Cadmo e Tebas 1-137 84
Actéon 138-252 88
Sémele 253-315 91
Tirésias 316-338 93
Narciso e Eco 339-510 94
Penteu e Baco 511-733 98
Acetes e os marinheiros tirrenos 577-691 100

LIVRoIV
As Míniades e as suas histórias 1-415 105
Píramo e Tisbe 55-166 106
Os amores do Sol: Vénus e Marte; Leucótoe e Clície 167-273 110
Sálmacis e Hermafrodito 288-388 113
Ino e Melicertes 416-542 117
As companheiras de Ino 543-562 120
O fim de Cadmo e Harmonia 563-603 121
As aventuras de Perseu 604-803 122
Perseu e Atlas 604-662 122
Perseu e Andrómeda 663-764 124
Medusa 765-803 127

LIVRO V
O combate de Perseu com Fineu 1-235 129
Perseu, Preto e Polidectes 236-249 136
Minerva no Hélicon 250-678 136
Pégaso 256-263 136
Pireneu 276-293 137
As Musas e as Piérides 294-678 137
A canção da Piéride: Tifeu 318-331 138
As canções de Calíope: O rapto de Prosérpina 341-571 139
Cíane 409-437 141
Ascálabo 446-461 142
As sereias 551-563 145
Aretusa 572-641 146
Triptólemo e Linco 642-661 148

LIVRO VI
Aracne e Minerva 1-145 149
ÍNDICE 7

Níobe e Latona 146-312 153


Os camponeses da Lícia 313-381 158
Mársias 382-400 160
Pélops 401-411 160
Tereu, Procne e Filomela 412-674 161
Bóreas e Oritia 675-721 168

LIVRO VII
Jasão e Medeia 1-158 170
O rejuvenescimento de Esón 159-296 174
O castigo de Pélias 297-349 178
A fuga de Medeia 350-403 180
Cicno 371-381 180
Egeu e Teseu 404-452 182
Céfalo e Éaco 453-865 183
Os Mirmidões 523-660 185
Céfalo e Prócris 661-795 189
Lélaps 759-793 192
A morte de Prócris 796-862 193

Livro VIII
Céfalo (cont.) 1-5 196
Cila, filha de Niso, e Minos 6-151 196
O Minotauro; Ariadne 152-182 200
Dédalo e Ícaro 183-235 201
Perdiz 236-259 202
Meleagro e o javali de Cálidon 260-444 203
Alteia e a morte de Meleagro 445-525 209
As irmãs de Meleagro 526-546 211
O banquete de Aqueloo oferecido a Teseu 547-884 212
As Equínades 577-589 213
Perúnele 590-610 213
Báucis e Filémon 611-724 214
Erisícton e Mestra (a Fome) 725-878 217

LIVRO IX
O banquete de Aqueloo (cont.) 1-97 222
Hércules e Aqueloo 4-88 222
8 ÍNDICE

Hércules, Nesso e Dejanira 98-133 225


Morte de Hércules 134-272 226
Alcmena e Galântis 273-323 230
Dríope 324-393 231
Iolau e os filhos de Calírroe 394-417 233
Mileto 418-449 234
Bíblis 450-665 235
Ífis 666-797 241

LIVRoX
Orfeu e Eurídice 1-85 245
Ciparisso 86-142 247
As canções de Orfeu 143-739 249
Proémio 148-154 249
Ganimedes 155-161 249
Jacinto 162-219 249
Os Cerastas e as Propétides 220-242 251
Pigmalião 243-297 252
Mirra 298-502 253
Vénus e Adónis 503-739 259
Atalanta e Hipómenes 560-707 261

LIVRO XI
A morte de Orfeu 1-84 267
Midas: o toque de ouro e as orelhas de burro 85-193 269
Febo e Pã 150-171 271
Laomedonte e a fundação de Tróia 194-220 272
Peleu e Tétis 221-265 273
Peleu na corte de Céix 266-409 274
Dedálion e Quíone 291-345 275
O lobo de Peleu 346-409 277
Céix e Alcíone 410-748 279
(O palácio do Sono) 592-649 284
Ésaco, irmão de Céix 749-795 288

LIVRoXll
Os Gregos em Áulide: Ifigénia 1-38 290
O Rumor 39-63 291
ÍNDICE 9

Cicno e Aquiles 64-167 292


Ceneu 168-535 295
A batalha dos Lápitas e Centauros 210-458 296
Periclímeno 536-579 305
A morte de Aquiles 580-628 306

LNRoXIII
As armas de Aquiles e a morte de Ájax 1-398 309
Hécuba, Políxena e Polidoro 399-575 321
Aurora e Mémnon 576-622 326
As viagens de Eneias 623-968 327
Partida de Eneias de Tróia 623-642 327
As filhas de Ânio 643-674 328
As filhas de Oríon 675-704 329
Viagem de Eneias à Sicília 705-729 330
Cila e Glauco 730-968 331
Galateia e Polifemo 740-897 331

LNRoXIV
Cila e Glauco (cont.); Circe 1-74 338
As viagens de Eneias (cont.) 75-90 340
Os Cercopes 85-100 340
A Sibila 101-153 341
Aqueménides 154-222 342
Macareu 223-415 344
As aventuras de Ulisses 223-307 344
Pico, Circe e Canente 308-440 347
Eneias no Lácio 441-453 351
Diomedes 454-511 351
O pastor da Messápia 512-526 353
As naus dos Troianos 527-565 353
Árdea 566-580 355
Apoteose de Eneias 581-608 355
Os reis latinos 609-621 356
Verturnno e Pomona 622-771 356
Ífis e Anaxárete 698-764 359
Apoteose de Rómulo e Hersília 772-851 361
10 ÍNDICE

LIVRoXV
Numa 1-11 364
Míscelo, fundador de Crotona 12-59 364
O discurso de Pitágoras 60-478 366
A morte de Numa 479-546 377
Hipólito e Egéria 497-551 378
Tages e a lança de Rómulo 552-564 380
Cipo 565-621 380
Esculápio em Roma 622-744 382
Júlio César e Augusto 745-870 385

Epílogo 871-879 389

Glossário e Índice 391


Introdução

Ü AUTOR

Públio Ovídio Nasão nasceu em Sulmo, a actual Sulmona, a 20


de Março de 43 a.C.1• Foi um ano fulcral na história de Roma. No
ano anterior, dera-se o assassínio de Júlio César, acontecimento que
precipitou o final agonizante do regime republicano. Seguir-se-á um
período de convulsões políticas, com guerras civis e acordos, até à
vitória do sobrinho neto de César, Octávio (mais tarde, designado
Augusto) sobre Marco António (o cônsul do ano 44 e destacado
partidário de César), nascendo então uma nova ordem política.
A família de Ovídio detinha um certo estatuto social. O pai per­
tencia à ordem equestre e possuiria uma situação abastada. Por volta
de 31, envia os dois filhos (Ovídio tinha um irmão um ano mais ve­
lho) para Roma a fim de prosseguirem os estudos.
Roma era então um local efervescente, tanto do ponto de vista
social e político, como cultural. Respirava-se uma nova era, um novo
mundo, uma nova forma de entender a sociedade e a realidade envol­
vente. Foi justamente em Setembro deste ano de 31 que se deu a em­
blemática batalha de Accio, que, aniquilando as ambições de Marco
António, abriu caminho a Octávio para se tornar senhor único de
Roma, de um império unido sob o poder paternalista (e discreta­
mente ditatorial) do princeps. É uma nova sociedade a que sai de
Accio, cantada em tons épicos por Vergílio e em certas odes de Ho­
rácio, eufórica de uma nova dinâmica, em que mesmo os que tinham
combatido Octávio (como é o caso de Horácio), ou os que tinham
sofrido com a sua vitória (Vergílio, Propércio e Tibulo, embora possa

1 Para o leitor português, recomendo a biografia de Ovídio, numa versão mais desenvol­

vida do que o presente texto, e com elementos analíticos das obras e bibliografia pertinente,
que escrevi há alguns anos atrás: Ovídio, Mem Martins, Ed. Inquérito, 1997.
12 INTRODUÇÃO

haver algo de tópico), se integram e dão o seu contributo. É o início


da chamada Pax Augusta.
No plano cultural, poucos foram os períodos da cultura antiga
tão fascinantes quanto a década 30-20 a.C.. E o campo da poesia foi
um dos de maior relevo. Poetas participavam em círculos literários
organizados em torno de políticos influentes. Entre eles, os mais cé­
lebres eram o de Mecenas, em tomo do qual gravitavam Vergílio, Ho­
rácio e Propércio, e o de Marco Valério Messala Corvino, um insigne
general e político, chegado não há muito a Roma, vindo de Áccio
coberto de prestígio, que acolhia muitos intelectuais e poetas, entre
os quais Tibulo e Ovídio. É neste período que Horácio publica as
Sátiras e os três primeiros livros das Odes; Vergílio publica as Geór­
gicas (em 29) e compõe a Eneida, que desde as primeiras leituras des­
perta o maior entusiasmo; na década de 20, Propércio publica os
três primeiros livros de elegias, e Tibulo os seus poemas. E se consi­
derarmos todos os poetas que ficaram na sombra destes vultos, de
quem pouco mais conhecemos que os nomes e fragmentos, é fácil
imaginar a espantosa riqueza e criatividade literária deste período.
E à poesia teremos de somar as restantes disciplinas da criação literá­
ria: basta evocar a figura de Tito Lívio, que ia compondo laboriosa­
mente a sua monumental obra historiográfica.
Em 23 a.C., Ovídio faz a tradicional viagem a Atenas e cidades
da Ásia Menor (tal como tinham feito Catulo, Horácio e muitos jo­
vens romanos), na companhia do poeta Emílio Macro. Quando re­
gressa a Roma, inicia uma carreira pública em cargos administrati­
vos menores. A partir daqui, seguir-se-ia um percurso político. Mas
aos 23 anos de idade, contra a vontade do pai, abandona uma car­
reira promissora e dedica-se por exclusivo à poesia.
Os primeiros anos da sua produção são dedicados à elegia amo­
rosa, muito em voga nesta época. Comélio Galo, o 'fundador' do gé­
nero em Roma na opinião de Ovídio e contemporâneos, e que,
pouco antes, em 26 a.C., caíra em desgraça perante Augusto e se su­
icidara, gozava de enorme prestígio. No círculo de Messala Cor­
vino, onde Ovídio diz ter sido acolhido, pontificava Tibulo, que tra­
balhava então no seu segundo livro. Propércio era também de uma
enorme popularidade: o livro 1 fora publicado antes de 28 a. C.; entre
26 e 23, publica os livros 2 e 3. Nesta fase da sua carreira literária,
INTRODUÇÃO 13

Ovídio compõe os Amores (publicados, primeiro, em cinco livros,


depois, numa versão em três livros) e as Herózdes, epístolas imaginá­
rias de heroínas a seus amados. Ao mesmo tempo, compõe poesia
didáctica baseada em modelos helenísticos, como a Arte de Amar,
uma espécie de manual de sedução, e os Cosméticos para a face femi­
nina. Também deste período (provavelmente entre 15 e 8 a.C.) da­
tará a tragédia Medeia, hoje perdida, a que os autores antigos, como
Tácito e Quintiliano, se referem com a maior admiração.
Por volta dos quarenta e cinco anos, no auge da sua reputação
como poeta elegíaco, Ovídio deixa de publicar poesia erótica, e de­
dica-se a dois projectos de envergadura incomparavelmente superior.
Um deles é as Metamorfoses, de que falaremos a seguir. O outro
é os Fastos. Trata-se de um calendário poético do ano romano, em
que cada livro corresponde a um mês. Nele, enquadrando-se as da­
tas por parâmetros astronómicos, discorre-se sobre ritos, festivais,
mitos, lendas e tradições ligadas a certos dias e locais, explicando-se
as suas origens. Apenas os seis primeiros livros (cobrindo de Janeiro
a Junho) chegaram até nós, pois a obra não estava terminada quando
Ovídio foi expulso de Roma.
De facto, no ano 8 d.C., por razões nunca definitivamente escla­
recidas, Ovídio é banido por decreto de Augusto. Aos cinquenta
anos, era de longe o poeta mais prestigiado, sem rival desde que a
extraordinária geração de Vergílio e Horácio desaparecera. A acusa­
ção era a de maiestas (ou seja, atentado contra a pessoa, a política ou
autoridade do princeps); o local decretado para a relegatio (modali­
dade de exílio em que o condenado podia conservar os bens e direi­
tos cívicos) era Tomos, nas margens do Mar Negro, a actual Cons­
tanza, na Roménia. Nessa época, era uma longínqua cidade no
extremo do mundo civilizado, para lá do Danúbio, vagamente sob a
autoridade do reino da Trácia (um estado satélite de Roma), muito
superficialmente helenizada, e onde ninguém, segundo o poeta, per­
ceberia uma palavra de latim. Cenário insuportável para um requin­
tado cidadão romano como Ovídio, que classifica a um amigo o seu
exílio justamente de metamorfose (Tristia 1, 1, 1 17 -120). É deste pe­
ríodo que datam os Tristia (em cinco livros) e as Epístolas do Ponto
(em quatro livros), obras cruciais, de uma qualidade literária suprema,
espaços de desespero, de saudade, de rememoração da infância feliz,
de revolta, de denúncia do poder autocrático de Augusto, de (in)con-
14 INTRODUÇÃO

formismo. Mas estes poemas são mais do que mero percurso interio­
rizado de uma viagem de exílio e do declínio do fim da vida: são
uma arma de revolta e resistência ao desespero do abandono da pá­
tria e da cultura; e sobretudo um hino à identidade do poeta, contra
a qual poder terreno algum tem autoridade, e que só a posteridade
julgará (Tristia 3, 7, 43 -52).
Apesar de todos os esforços, os seus e os dos seus amigos em
Roma, Ovídio nunca regressou à pátria, mesmo após a morte de
Augusto em 14 d. C. E no desterro faleceu no ano 17.

As METAMORFOSES

Se há obra da Antiguidade que merece o rótulo de 'sem igual',


ela é certamente as Metamorfoses. Figura, a par da Eneida de Vergí­
lio, como das maiores criações literárias da cultura romana. Mas, ao
contrário desta, que se inscreve em género literário convencional e
consolidado, as Metamorfoses são um livro verdadeiramente único.
E nenhuma outra obra da Antiguidade dássica exerceu maior influên­
cia na cultura europeia, em particular na arte, literatura e música.
A natureza invulgar das Metamorfoses e a sua deslumbrante
complexidade são claramente perceptíveis logo no prólogo.

ln noua fert animus mutatas dicere formas


Corpora; di, coeptis (nam uos mutasti et ilia)
Aspirate meis primaque ah origine mundi
Ad mea perpetuum deducite tempora carmen.

De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho


a falar; ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós
a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até aos meus dias.

A invocação aos deuses, a escolha do metro heróico, a dimen­


são do poema, convidavam o público a ter presente o paralelo com
as grandes épicas matriciais do tempo de Ovídio: a da Odisseia ('Fala­
-me, Musa, do homem astuto .. .'), a da Ilíada ('Canta, ó deusa, a cólera
de Aquiles . . . ') , a da Enezda ('Canto as armas e o herói . . . Musa, re-
INTRODUÇÃO 15

corda-me as causas . . . '). Em todos estes poemas cantam-se feitos gran­


diosos, aventuras de heróis ou de um povo, praticados num passado
mais ou menos distante, assumidos como históricos ou proto-histó­
ricos, e merecedores de registo épico de forma a perpetuar paradig­
mas e consolidar tradições. A estes, poderíamos somar a rica tradição
épica romana desde Énio e seus sucessores, que, mantendo as conven­
ções do género, recaía sobre acontecimentos históricos verídicos con­
temporâneos ou do passado próximo. E, já no tempo de Ovídio, havia
quem considerasse existir, nos propósitos subjacentes à composição
das Metamorfoses, uma intenção de aemulatio da Eneida; poema tido,
já na altura, como a obra-prima suprema.
No caso das Metamorfoses, o poeta vai cantar 'formas muda­
das', expressão que Ovídio empregará para se referir à sua obra
(Tristia 1 , 1 , 1 17 ; 1 , 7, 13 ; 3 , 14, 19), e que equivalerá à palavra grega
'metamorfose' . Ovídio opta, assim, por terreno bem diverso, mas
não menos grandioso: o de uma sucessão de histórias mitológicas,
de dimensões majestosas, em que o elo unificador é o fenómeno da
'transfiguração'. Se havia uma longa tradição de compor sobre fenó­
menos de metamorfose desde Homero e Hesíodo, jamais obra de
tão largo fôlego, em verso heróico, tinha sido composta exclusiva­
mente sobre esta temática.
Por outro lado, nos poemas épicos citados, e em geral em todos
os outros de ascendência homérica, o autor coloca o tema, de acordo
com as convenções do género, num 'patamar de verdade' (ou seja, ele
não vai cantar 'coisas inventadas', as proezas cometidas pelos heróis
'aconteceram mesmo', e por isso merecem ser registadas para pro­
veito dos vindouros), e invoca algo exterior à pura racionalidade hu­
mana (a musa, a deusa), para lhe trazer a 'inspiração' (algo que tam­
bém poderíamos considerar, de forma grosseira, para lá das fronteiras
do raciocínio puro). Ora, Ovídio propõe como tema um universo cla­
ramente ficcional, em que corpos mudam de natureza e de forma, e se
transformam em pedras, fontes, rios, estrelas e muitas outras coisas.
Paradoxalmente, para tema bem mais próprio do universo onírico, re­
clama que é o seu animus, ou seja, a razão, a inteligência racional, e
não algo que nos escapa ao controle (como a inspiração concedida pe­
los deuses), que o impele lfert) a fazê-lo. Há, pois, um jogo com o lei­
tor, como se ironicamente recolocasse tema tão claramente perten­
cente ao imaginário no patamar de verosimilhança.
16 INTRODUÇÃO

No último verso do prólogo, surgem duas expressões chave


para a compreensão do poema: perpetuum .. . carmen e deducite. Per­
petuum, em latim, significa algo como 'contínuo', 'sem interrupção',
'sem fim', 'perpétuo', e, nesse sentido, aplica-se bem à obra que Oví­
dio se propõe fazer: uma narrativa contínua desde os primórdios do
mundo (ab prima origine mundi) até aos seus dias (ad mea tempora).
Porém, para o público romano, o termo tinha um valor programá­
tico. Remetia para o famoso prólogo das Origens de Calímaco (fr. 1.
Pfeiffer; leia-se a tradução de Frederico Lourenço em Grécia Revisi­
tada), um poeta e crítico literário que viveu no século III em Alexan­
dria, e que constituía uma das referências incontornáveis no pano­
rama cultural até ao tempo de Ovídio e mais além. Ora, Calímaco
emprega o termo de forma depreciativa, parecendo referir-se a poe­
mas de longas dimensões à maneira 'cíclica', ou seja, uma narrativa
linear e contínua, uniforme e monótona, por meio da qual certos po­
etastros se limitavam a encadear lendas e acontecimentos, uns atrás
dos outros, relativos a determinada cidade ou região. Insurge-se Ca­
límaco contra este tipo de poemas de má qualidade que, a seu ver, se
afastavam dos princípios estéticos que preconizava: obras altamente
elaboradas, de menores dimensões, como o seu poema Hécale.
Mesmo no tempo de Ovídio, Horácio (Odes 1, 7, 5-6) utilizou o
termo para se referir a certo poema helenístico que versava sobre
factos relacionados com Atenas (porventura, a Mopsópia de Eufó­
rion, ou outras obras do mesmo calibre). Ora, como veremos, de
forma alguma Ovídio se procura inscrever fora do programa poético
proposto por Calímaco. Bem pelo contrário. O material temático
que utiliza é helenístico, e todo o poema está embebido de pressu­
postos literários alexandrinos, evidentes desde a forma de trata­
mento dos temas à concatenação das histórias e a um vincado gosto
pela erudição (muitas vezes, o nome das personagens não é explici­
tado, criando um jogo de cumplicidades com o leitor) . Assim,
mesmo reinventando Ovídio um novo sentido para perpetuum, o
seu emprego não deixaria de 'provocar' e fazer reflectir o leitor.
O outro termo citado, deducite, tinha também uma longa tradi­
ção em contextos programáticos sobre criação poética. O verbo de­
ducere (que significa em sentido lato algo como 'conduzir, conduzir
para baixo'), referia-se ao trabalho poético, como no famoso passo
de Vergílio (Éclogas 6, 5), em que o poeta o emprega com o sentido
INTRODUÇÃO 17

de poesia refinadamente tecida, elaborada, elegante, polida, subtil


(algo oposto ao conceito das grandes massas dos poemas cíclicos).
No termo, somam-se duas metáforas. Por um lado, o verbo remetia
para o campo semântico da tecelagem e tinha o sentido de 'fiar a lã':
a construção literária era, assim, um processo de puxar de uma
massa de lã um fio, retorcendo-o, trabalhando-o com os dedos, por
forma a transformá-la nos mais belos tecidos. Por outro lado, tam­
bém poderia subentender-se nele uma imagem náutica: é o termo
usado para fazer descer para a água o barco posto a seco, para dar
início à navegação, ou seja, para iniciar a narração do poema, qual
viagem sobre o mar. A esta acepção liga-se aspirate, no verso acima
(que significa basicamente 'soprar para a frente'), metáfora náutica
para ventos favoráveis, que gozava de uma longa tradição nestes
contextos (veja-se Vergílio, Eneida 9, 525). Ovídio solicita, pois, aos
deuses que 'soprem a seu favor' os seus coeptis, que significa em latim
algo como os 'começos', as 'coisas iniciadas', incluindo os planos, os
projectos (termo também usado em ambiente programático: veja-se
Vergílio, Geórgicas 1, 40, Ovídio, Arte de Amar 1, 30), pois estes mes­
mos deuses foram responsáveis pela 'mudança de rumo' do poeta,
pela sua 'metamorfose' (a aceitarmos a emenda de E. J. Kenney, Pro­
ceedings of the Cambridge Philological Society 202, 1976), quando
abandonou a produção de temática amorosa e o dístico elegíaco, e
'embarcou numa viagem', bem distinta, em metro heróico.
As Metamorfoses escapam, pois, a todas as categorizações. Em­
bora tenha elementos comuns (dimensão, metro, a presença de he­
róis e deuses, certos tópicos e imagética), o poema não pode ser ins­
crito dentro do género épico tradicional, tal como foi estabelecido
por Homero. Pelo carácter de 'poema colectivo' e pela parte inicial,
em que proporciona uma 'explicação' do mundo por meio de um
quadro mitológico desde o caos e o dilúvio, remete para a tradição
hesiódica (o que representava um contraponto ao facto de a Eneida
se filiar na tradição homérica). E pelos modelos e conteúdos mais di­
rectos, é uma obra de marcada feição helenística. Deste modo, res­
salta toda a complexa teia de referenciais evocados pelas Metamorfo­
ses e, sobretudo, o seu valor mais marcante: a originalidade. Como o
poeta reconhece e anuncia nas primeiras palavras do poema, num
intencional jogo de leitura, in noua animus fert ('o engenho leva-me
para coisas novas').
18 INTRODUÇÃO

Em suma, este brevíssimo prólogo de tão monumental obra dá


bem a medida da complexidade de leituras e matizes do poema.
O 'raciocínio' do poeta, tendo sofrido uma 'metamorfose' no seu
percurso literário causada pelos deuses, vai levá-lo a compor um
carmen deductum, ou seja, refinado, elaborado, burilado, dentro dos
princípios estéticos helenísticos, sobretudo calimaquianos, mas, ao
mesmo tempo, um carmen perpetuum (termo que Calimaco refere
para descrever algo fora do seu programa poético, mas ao qual Oví­
dio vai somar um novo sentido) , ininterrupto, desde as origens do
mundo até aos seus dias - no fundo, desde a 'metamorfose' da
massa informe e primordial de átomos em seres e vida, até à 'meta­
morfose' de César e de Roma como capital do mundo. A matéria
temática, a 'transfiguração', algo que pertence ao mundo do sonho e
do imaginário, é tratada com ênfase mais na forma do que no corpo
transformado ou a transformar, ou no próprio processo de mutação:
o foco do poeta é nas 'formas mudadas em corpos', como se a essên­
cia residisse na instabilidade da forma. O propósito é contar histó­
rias de forma contínua, sem grandes reflexões teóricas sobre o sen­
tido de metamorfose, em que os episódios se sucedem uns aos
outros, como se o próprio texto se fosse metamorfoseando.

FONTES E MODELOS

Já nos poemas homéricos surgiam metamorfoses. Além das mu­


tações dos deuses na Ilíada, basta lembrar o episódio da transfigura­
ção dos companheiros de Ulisses em porcos por Circe no Canto XI
da Odisseia. Porém, as Metamorfoses aproximam-se mais da tradi­
ção hesiódica e alexandrina. Tanto em Hesíodo, como no poema de
Ovídio, há uma estrutura cronológica evolutiva, a partir do caos e
dilúvio, e as Origens de Calímaco tratavam episódios etiológicos com
um modelo de concatenação semelhante ao que se nos depara nas
Metamorfoses. Os modelos mais directos, porém, poderão ter sido
colecções de metamorfoses constituídas por autores helenísticos.
Entre as fontes que Ovídio utilizou, contam-se o poema de Beo (sé­
culo III), sobre metamorfoses em pássaros, e os Catasterismos de
Eratóstenes (século III), sobre transformações em astros. De grande
aceitação em Roma deveriam ser os Heteroeumena de Nicandro (sé-
INTRODUÇÃO 19

culo II) , uma colecção que abrangia todo o tipo de metamorfoses,


explicando os acontecimentos que tinham levado à transformação.
Parténio de Niceia (amigo de Cornélio Nepos e, segundo a tradição,
de Vergílio) escreveu também sobre metamorfoses, de onde Ovídio
recolhe muitas histórias. Emílio Macro, um amigo de longa data de
Ovídio, escreveu ou traduziu uma obra sobre transfigurações em
pássaros. E muitas outras obras poderão ter servido de modelo.

0 ENCADEAMENTO DAS HISTÓRIAS

As Metamorfoses são um longo poema de quinze livros, que co­


lige mais de duzentos e cinquenta episódios, uns mitológicos, outros
nem tanto, gregos (a maior parte) e romanos. Há desde simples alu­
sões até largos episódios de várias centenas de versos. Desde há
muito que os especialistas debatem as questões relativas à arquitec­
tura estrutural das Metamorfoses. É uma questão de grande comple­
xidade, e muitas têm sido as propostas. Mas creio que, mais do que
resumir as diversas perspectivas e razões subjacentes, será útil para o
leitor chamar a atenção para alguns aspectos básicos que ajudem (e
provoquem) a leitura.
Tal como se diz no prólogo, a matéria segue uma vaga progres­
são cronológica. Os extremos são fáceis. O início é o caos primordial
e a metamorfose que sofre até se tornar no mundo que conhecemos;
os últimos livros incidem em período considerado pelo público ro­
mano como histórico, em particular os livros 14 e 15, em que se dis­
corre sobre os reis de Roma, até terminar na apoteose e divinização
de César. Note-se que, para muitos contemporâneos de Ovídio, esta
apoteose não pertencia totalmente ao mundo da fantasia: durante os
Ludi Victoriae Caesaris em Agosto de 44, promovidos por Octávio,
jogos dedicados a Vénus Genetrix e a Vénus Victrix, que César cos­
tumava realizar todos os anos, teria surgido um cometa, visível du­
rante sete dias, que teria sido interpretado como sinal da divinização
de César, e isto foi motivo ideológico de que o seu sucessor Octávio
abundantemente se serviu como propaganda política. Entre os dois
extremos, o encadeamento temporal é, naturalmente, algo fluido e
artificial: difícil é situar no tempo coisas que pertencem ao imaginá­
rio. Por vezes é propositadamente impreciso, mesmo numa continui-
20 INTRODUÇÃO

dade meramente lógica: a história de Ino, por exemplo, vem depois


da do seu sobrinho Penteu.
Mas o mais importante neste aspecto é justamente a sensação
de um fluir. As histórias sucedem-se ininterruptamente, por vezes
sobrepondo-se umas às outras, sem quebras, articulando-se em con­
juntos que, por sua vez, vão formando novos grupos. O poema vai­
-se 'transformando', nuns casos, por analogia temática, noutros, por
contraste. Por exemplo, no livro 6, após um dos mais belos episó­
dios de transfiguração, o de Níobe, surge 'Como sempre sucede, da
história recente passa-se às antigas. Um deles contou: "Também ou­
trora. . . " '. No caso da história de Mémnon, no livro 13, é o oposto:
'a Hécuba aconteceu aquilo, ora Aurora não tem vagar para a carpir,
pois aconteceu o seguinte'. No livro 7, a ligação de Medeia e Egeu
(que sucede à de Medeia e Jasão) dá lugar às aventuras de Teseu,
que aparece na corte do pai e quase é morto por Medeia, aventuras
essas que se prolongarão, interrompidas aqui e ali, até ao livro 9.
As formas de articulação entre episódios e grupos de episódios
são variadas, e contribuem em muito para manter o interesse do lei­
tor. Os narradores vão-se sucedendo dentro das próprias histórias,
por vezes, num processo de 'histórias encaixadas'. No livro 4, dentro
de um extenso conjunto de episódios relacionados com Dioniso, que
se prolongava já desde o livro 4, as filhas de Mínias decidem entreter­
-se enquanto trabalham: assim surge o encantador conto babilónio
de Píramo e Tisbe (um autêntico Romeu e Julieta da Antiguidade), os
(des)amores do Sol, estranhas histórias como a de Sálmacis e a de
Hermafrodito. No livro 5, uma Musa conta a Minerva uma competi­
ção, reproduzindo diversas canções. Uma delas, cantada por Ca­
líope, é a de Prosérpina; e dentro desta história, temos outras encai­
xadas, como a da fonte de Cíane e a das Sereias, e bem assim a de
Aretusa, que conta a louca paixão do rio Alfeu por si. No livro 8, o
rio Aqueloo entretém Teseu, seu hóspede, com diversas narrativas
(no que lembra a Hécale de Calímaco), como o belíssimo episódio
dos velhinhos Báucis e Filémon, e a grotesca (e calimaquiana) fome
desvairada de Erisícton. A espera de Teseu na corte de Éaco (livro 7)
dá azo a que o hóspede Céfalo conte uma das mais belas histórias e
mais belamente contadas de todas as Metamorfoses, a da trágica
morte de sua esposa Prócris.
INTRODUÇÃO 21

Por vezes, o s episódios encaixam-se uns dentro dos outros. No


livro 10, Orfeu, desgostoso pela (segunda) morte de Eurídice, vai
cantar uma sequência de canções, entre as quais o espantoso caso de
Pigmalião e a belíssima história de Mirra. Entre elas, surge a de Vé­
nus e Adónis. Ora, no meio desta, Vénus vai contar a Adónis uma
outra história, a de Atalanta e Hipómenes e da funesta corrida só
vencida pelo rapaz graças às maçãs de ouro facultadas por Vénus.
Há, pois, um fluir constante de histórias encaixadas umas nas ou­
tras, que cria uma ilusão que leva o leitor a perder-se, a já não saber
quem conta o quê e em que história estamos.

REALIDADE E IMAGINÁRIO

Ovídio estabelece com o leitor um permanente jogo entre fic­


ção e realidade. As personagens podem pertencer ao universo do
imaginário, serem deuses, ninfas, sátiros, seres monstruosos, objec­
tos resultantes dos mais assombrosos e inverosímeis processos de
metamorfose, mas elas são situadas no mundo real, no de todos os
dias, que o público ovidiano podia reconhecer a cada verso.
Por um lado, é evidente um gosto pelos pormenores do dia a
dia e pela linguagem técnica, pela terminologia precisa. Lembre-se,
por exemplo, a descrição meticulosa, com recurso aos termos pró­
prios da tecelagem, no episódio de Aracne, ou como o sangue a jor­
rar do pobre e equivocado Píramo (o Romeu da Antiguidade) dá
azo a um símile sobre canalização defeituosa de chumbo.
Por outro lado, é com a precisão de um cartógrafo que o poeta
situa as histórias e personagens. Os lugares são reais, de todos os
dias, que os leitores conheciam ao menos de ouvir falar, e criam um
ambiente estranho entre imaginação e realidade. No livro 1, os deu­
ses vão reunir-se no palácio de Júpiter; os deuses mais ilustres e ricos
vivem no 'Palatino do céu', os deuses da plebe em quarteirões mais
marginais, algo que o leitor romano bem entenderia (e lembre-se
que no centro do Palatino real vivia Augusto, o princeps que será de­
nunciado impiedosamente por Ovídio nos textos do exílio, sendo
sempre alusivamente designado por . . . Júpiter !). As viagens dos
deuses pelos ares são descritas com rigor, assinalando-se os pon­
tos de referência principais vistos do ar, como ilhas ou montanhas, o
22 INTRODUÇÃO

que nos permite ainda hoje seguir os trajectos olhando para um


mapa ou imagens de satélite.
Além disso, por mais que as personagens pertençam à fantasia e
a ambientes longínquos e exóticos, o poeta não se inibe de empregar
os termos políticos do dia a dia romano (por toda a parte há senados
e plebes), os mesmos tipos de ocupação e de ofícios, de construções,
as preocupações quotidianas que todos sentiam, os tipos de vestuá­
rio familiares.
A isto não é alheio o constante recurso a uma autoridade, como
a de quem conta a história. Frequentemente, encontramos 'eu pró­
prio vi com os meus olhos. . . ', ou 'foi um indivíduo de lá que me
disse, e ele pareceu-me credível. .. ', numa ironia subtil (como se o
testemunho de heróis e ninfas tranquilizassem o leitor). E grande
número de episódios, consumada a metamorfose, terminam com
um habitual 'e ainda hoje lá está na cidade de tal. . . ', ou 'e ainda se
conserva aquela pedra. . . '

NARRAR E DESCREVER

Para a variedade multifacetada deste fluir ininterrupto, muito


contribui a invulgar diversidade de géneros e registos que Ovídio
emprega. Estão quase todos presentes, da comédia à elegia erótica,
da oratória à tragédia, do hino à epopeia. Depara-se-nos, assim,
desde o género épico, como no combate entre Fineu e Perseu (livro 5)
e no episódio da caçada ao javali de Cálidon (livro 8), aos quais não
falta o convencional catálogo dos heróis, no combate entre Lápitas e
Centauros (livro 12), ou no tópico da tempestade em que Céix nau­
fraga (livro 1 1), até à paródia do género bucólico, presente no episó­
dio de Polifemo, com a sua desajeitada declaração de amor por Ga­
lateia (livro 13), e à oratória de Ájax e Ulisses, quando disputaram as
armas de Aquiles (livro 13 ); e desde o grotesco da história do esfai­
mado Erisícton (livro 8), ao lindíssimo tom elegíaco de Bíblis (livro
9) e ao hímnico (por exemplo, a Baco no livro 4). Para mais, recriam­
-se 'cores', imitando-se, por exemplo, o estilo de Énio, de Á cio, de
Lucrécio (veja-se o fabuloso discurso de Pitágoras no livro 15). E não
faltam mesmo paródias a certos registos específicos, como o pastiche
épico da 'caçada' a Actéon, com o seu catálogo de heróis (neste caso,
INTRODUÇÃO 23

os cães da matilha) (livro 3 ), ou a linguagem legal do bem-humorado


julgamento de Tirésias, no litígio que opôs Júpiter a Juno (livro 3 ).
Ovídio é reconhecidamente um mestre na arte de descrever.
Por vezes, os episódios são contados por intermédio da descrição de
objectos de arte: veja-se as telas tecidas por Minerva e Aracne, no
que recorda Catulo (livro 6), ou a taça cinzelada oferecida por Ânio
a Eneias (livro 13 ), na linha de Teócrito, Idílio 1 . Passos inesquecíveis
são, por exemplo, a descrição de alegorias como a Inveja e da sua
casa (livro 2), o palácio do Sono (livro 11) ou o da Fome (Livro 8).
O poeta faz-nos ver os cenários, e, sobretudo, faz-nos ver como as
personagens vêem. Exemplo claro está no comovente episódio do li­
vro 1 1 , em que Alcíone observa o mar, primeiro quando a nau parte
(e o leitor já pressente que nunca voltará), depois, quando o cadáver
se vai abeirando, pouco a pouco, da costa.

METAMORFOSE OU UMA BELA HISTÓRIA PARA CONTAR

Mais que docere ('ensinar') e mouere ('comover', 'impressionar'),


as Metamorfoses pretendem sobretudo delectare ('deleitar'). Os epi­
sódios mitológicos são tratados não numa perspectiva alegórica ou
de interpretação de algo, tal como acontecera na tragédia grega, ou
na Eneida, em que o mito de Eneias ganha uma dimensão metafísica
e universal, justificando e exaltando a 'missão' de Roma. Em Ovídio,
este material é visto, acima de tudo, na sua dimensão literária: são
belas histórias para o seu ingenium de narrador. É certo que o fenó­
meno da metamorfose é susceptível das mais diversas análises psico­
lógicas. No episódio de Eco e de Narciso (livro 3), podemos reflec­
tir sobre o sentido da fragilidade e da identidade do ser, sobre o
sentido do eco e do reflexo. Mas não é esta a intenção primordial de
Ovídio: o que lhe importa é sobretudo contar uma história.
Para mais, há uma procura evidente de as narrar de ângulo di­
verso do dos modelos, tal como o Ulisses da sua Arte de Amar (2, 128),
que 'costumava contar muitas vezes a mesma história' (a da queda
de Tróia) a Calipso, mas sempre 'de modo diverso'. Basta pensar
na figura de Polifemo, na sua paixão por Galateia, bem divergente
da de Teócrito (Idílios 11), ou na de Erisícton, que em Calímaco
(Hino a Deméter) não passava de um jovem esfomeado no seio de
24 INTRODUÇÃO

uma família burguesa, e que em Ovídio é um ser angustiantemente


monstruoso.
Não é, pois, a substância nem o 'significado' do mito ou o da
transfiguração que importa a Ovídio, mas sim a forma como é con­
tado. Os episódios, que poderão descrever os mais arrepiantes por­
menores (como a sorte de Mársias na sua disputa com Apolo, ou a
maldade abjecta de Tereu para com Filomela) são como que objec­
tos para uma abordagem artística.

Um dos aspectos dos mais fascinantes para o leitor é o universo


recriado nas Metamorfoses. É um mundo autónomo, imaginário, de
evasão. Muitos dos lugares, rios, terras, lagos, montanhas e cidades
existem e correspondem à geografia física, imediatamente reconhe­
cível para o público de Ovídio. Mas, na verdade, é um outro mundo,
de uma outra dimensão, exterior e inacessível à experiência hu­
mana, um mundo idealizado e de fantasia. Porém, nada tem de
'anormal': é apenas de uma outra dimensão, que escapa à percepção
humana. Além disso, é um espaço imaculado e imperturbável, como
tão bem ilustram as inúmeras descrições de locais encantados, como
a famosa fonte de Narciso (livro 3), ou a praia de Tétis, cujas areias
jamais foram pisadas (livro 1 1), ou o vale de Gargáfia, na Beócia,
onde Actéon surpreende Diana (livro 3 ) .

Habitam-no deuses, seres humanos e heróis, numa indistinção


feérica. Os elementos dominantes são as paixões, entre as quais a
mais importante de todas: o amor. As personagens são retratadas
com profunda compreensão da natureza humana. Em certos casos,
como em Pigmalião, a comparação com as fontes revela a que ponto
em Ovídio elas são 'humanizadas' e ganham sentimentos, em con­
traste com as versões anteriores. Por outro lado, os seres humanos
são vistos com enorme simpatia, especialmente quando vítimas da
crueldade e violência dos deuses. Quanto aos deuses, estes são com­
pletamente dominados pelas suas paixões e pelos seus caprichos.
O mais significativo neles é o carácter irracionalmente amoral que
revelam. E isto de forma alguma se coadunava com as concepções
idealistas da geração de Augusto, que intentavam uma reconstrução
moral da sociedade romana. Para mais, exceptuando alguns poucos
casos (por exemplo, Báucis e Filémon no livro 8, paradigma de reve­
rência religiosa, ou o de amor conjugal de Céix e Alcíone, no livro
INTRODUÇÃO 25

11), não há muitos valores éticos a extrair. O mundo das Metamorfoses


é sobretudo um espaço de dramas, de incertezas e arbitrariedades,
onde a metamorfose se processa sem que haja uma lógica moral.

Tem sido debatido se nesta progressão do caos e do dilúvio até


à actualidade do poeta não haverá uma intenção de exaltar a nova
ordem augustana. Ora, apesar de se nos deparar, no final do poema,
em tom artificialmente hiperbólico, a exaltação da geração de Au­
gusto, com o elogio do princeps, uma intencionalidade política não
parece ser elemento determinante na estrutura do poema. O final
afigura-se antes um clímax cronológico e tópico apropriado para con­
cluir. Na verdade, as Metamorfoses revelam uma sintomática indife­
rença perante as preocupações augustanas, nos seus propósitos de
exaltação dos valores de um passado idealizado e de restauração mo­
ral do povo Romano. O tom geral é exterior ao ideário augustano; os
deuses (em particular Júpiter e Apolo) são tratados com manifesta
irreverência; a própria lenda de Eneias não tem um tratamento com
a dignidade que mereceria e que encontramos, para citar o exemplo
mais notável, na Eneida. De resto, Ovídio passa muito brevemente
sobre passos que tenham sido tratados por Homero e Vergílio, limi­
tando-se a uma breve referência. Isto, porém, não permite entender
subliminarmente uma consciência política anti-augustana (como
poderemos depois inferir na sua poesia do exílio); as Metamorfoses
são simplesmente exteriores ao ideário de Augusto, atitude que, de
alguma forma, se pode já vislumbrar em obras ovidianas anteriores.
No fundo, ao contrário de Vergílio, Horácio ou Propércio, que ti­
nham sofrido os horrores das convulsões políticas dos finais da repú­
blica e da guerra civil, Ovídio era muito novo quando isso ocorreu, e
desde jovem adulto que sempre se conhecera na mais tranquila Pax
Augusta. Para ele, os valores exaltados por aqueles não tinham o
mesmo significado nem eram sentidos com a mesma intensidade.

U MA OBRA PERENE

Poucas obras terão reunido maior consenso sobre o seu aspecto


mais importante: in noua fert animus. Aqui reside o dado de maior
alcance das Metamorfoses: criatividade e profunda originalidade.
26 INTRODUÇÃO

Fundindo tradições literárias helenísticas com formas romanas con­


temporâneas, Ovídio ampliou, pelo seu espantoso talento criativo,
os limites das convenções.
De todos os poetas da geração de Augusto, é o mais novo, e,
por isso mesmo, o mais desangustiado e alheio a um ideário 'augus­
tano'. Assim, pôde dedicar-se por inteiro a ser um poeta no seu sen­
tido etimológico. Por todos é reconhecido como um extraordinário
'contador de histórias'; algumas delas tornaram-se versões imortais.
A par disso, é também um extraordinário 'pintor de cenários', e as
descrições dos palcos onde as personagens evoluem tornaram-se
modelares e inspiraram profusamente as artes plásticas.
Mas talvez o seu encanto mais especial resida na profunda capa­
cidade de compreensão do homem. Ovídio sempre conseguiu trans­
mitir o lado humano das coisas, com as suas limitações e paixões,
num universo por vezes divertido, por vezes arbitrário, mas sempre
visto de forma humana e com uma sábia (e imprescindível) dose de
ironia. E talvez seja aqui, aliada a uma espantosa lição de vitalidade
criativa, que radica a sua faceta mais deslumbrante para as incontá­
veis gerações de leitores de quase dois mil anos.

As Metamorfoses foram, desde sempre, dos poemas romanos


mais lidos e imitados. Na Antiguidade, foi modelo e fonte de inspira­
ção, utilizado pelos gramáticos para extrair exempla. A partir de finais
do século XI e inícios do século XII, a sua fama torna-se verdadeira­
mente surpreendente. 'Alegorizado' e 'moralizado', como enciclopé­
dia de mitologia ou de ensinamentos, modelo literário ou simples­
mente pelo prazer estético, foi autor de referência nos século XII,
XIII e XIV, de Chrétien de Troyes a John of Garland, de Vincent de
Beauvais a Richard de Fournival, de Dante a Chaucer. Afonso X cha­
mava-lhe a 'Bíblia dos pagãos'. A partir do Renascimento, torna-se
um dos modelos primordiais. Na pintura e escultura, a lista de auto­
res que tomaram as Metamorfoses como modelo é infinda: Miche­
langelo, Rafael, Tiziano, Correggio, Veronese, Goltzius, Caravaggio,
Rubens, Jordaens, Bernini, Velázquez, Poussin, Claude Lorrain,
Rembrant, Tiepolo, Boucher, Delacroix, Corot, entre tantos outros.
Na ópera, são bem conhecidas as de Haendel (Ácis e Galateia),
Monteverdi (Orfeu), Strauss (Da/ne).
INTRODUÇÃO 27

Em suma, o que sobressai no conjunto desta obra tão singular e


fecundante é a evidente intenção de 'entreter' e 'encantar' o leitor. E
neste aspecto, as Metamorfoses revelam o talento de Ovídio no seu
melhor. Com poucas palavras, com um ritmo, com uma pincelada
de cor, Ovídio descreve todo um ambiente e os sentimentos e emo­
ções que dominam as personagens. De resto, como é reconhecido
por todos, as Metamorfoses revelam uma sensibilidade quase plás­
tica, e as descrições dos espaços são dos elementos mais deslum­
brantes do poema. Prova disso é que poucas obras da Antiguidade
inspiraram mais a pintura europeia desde o século XVI até aos nos­
sos dias. E nesta faceta de 'contador de histórias' e de 'pintor de ce­
nários', Ovídio com as Metamorfoses atingiu o esplendor máximo da
literatura da Antiguidade.

A PRESENTE TRADUÇÃO

Para um dos textos mais importantes da cultura ocidental, é sur­


preendente como tão poucas traduções em português foram elabora­
das ao longo dos tempos. Alguns trechos encontram-se na encantadora
versão de Bocage (Poesias, Lisboa, 1853 ). Da tradução de António Fe­
liciano de Castilho dispomos do primeiro tomo (Publio Ovídio Nasão,
As metamorphoses: poema em quinze livros, Lisboa, 1841). Presente­
mente, devemos também uma tradução a Domingos Lucas Dias, de
que já saiu o primeiro volume (Editorial Nova Vega, 2006), sinal da
vitalidade e do interesse que os textos clássicos têm despertado nos úl­
timos anos. Um elenco de excertos traduzidos pode ver-se em M. H.
Ureiía Prieto, Dicionário de Literatura Latina, Lisboa, 2006.
A presente tradução destina-se ao leitor que não tem o privilé­
gio de ler Ovídio no original (ou, pelo menos, com a desenvoltura
necessária), mas que tem gosto poético e aprecia uma boa história
bem contada. Procura, em linguagem simples e directa, seguir fiel­
mente o texto latino, na sua forma científicamente mais consolidada,
de modo a que se possam apreciar as imagens, os jogos de sentido, as
metáforas, o registo apropriado, por vezes mesmo o ritmo do texto
ovidiano (veja-se, por exemplo, o episódio de Eco e Narciso). Mesmo
28 INTRODUÇÃO

no caso de certas repetições de palavras, características do estilo ovi­


diano, que em português nem sempre são de bom gosto (por exem­
plo, ' . . . não parou de nadar. E, ao nadar, . . . ', ou 'voa lá no alto pelas
ténues aragens, e, ao voar, . . . ', ou a repetição da mesma palavra em
versos consecutivos ou muito próximos), preferi mantê-las, justa­
mente por uma questão de fidelidade ao estilo ovidiano.
O texto latino adoptado é o da edição crítica mais recente, a de
R. J. Tarrant, Oxford, 2004. Segui-o rigorosamente, sem quaisquer
intervenções da minha parte. Isto faz com que a presente tradução
tenha dois elementos menos comuns.
Por um lado, alguns versos surgem entre parênteses rectos
( [ . ]) . Trata-se de versos suspeitos, mas que a tradição manuscrita
. .

legou. Em alguns casos, derivam de adições posteriores ao texto du­


rante o longo processo de transmissão manuscrita, noutros casos,
porventura de variantes de autor ou de versões diversas que circula­
ram ainda em vida do poeta, quando foi banido para o Mar Negro
(num poema do exílio, Tristia l, 7, 24, dirá que o texto começou a
circular na sua ausência). Basta confrontar 1, 544-545, entre outros
exemplos, para se comprovar a razão da suspeita do editor.
Por outro lado, há passos gramatical e estilísticamente inaceitá­
veis. Nestes casos, mantive o sinal próprio da crítica textual, a crux
(t), tentando, mesmo assim, dar sentido ao verso.
Não creio que em caso algum tal opção pela fidelidade à edição
escolhida prejudique a legibilidade do poema e impeça o leitor de
fruir do texto. Para mais, este rigor filológico tem a vantagem de dar
a ideia, ao divulgar junto do grande público textos clássicos, de que
aquilo de que dispomos é sempre dependente de manuscritos (ou pa­
piros) e fragmentos de manuscritos sobreviventes, e que o que se uti­
liza, no dia a dia, como texto latino ou grego é sempre um trabalho de
reconstrução a partir desses testemunhos, por vezes tão contraditó­
rios. No caso das Metamorfoses, temos a sorte de nos ter chegado um
conjunto muito significativo, e relativamente coerente, de testemu­
nhos manuscritos com alguma antiguidade (fragmentos do século IX,
passos extensos a partir do século X e completos desde o século XI) e
elementos indirectos desde a Antiguidade, que nos permitem chegar
a um texto aproximado ao que o autor escreveu (embora ele próprio
no exílio afirme que nunca chegou a dar o último toque: Tristia 1, 7,
14). Para uma súmula da transmissão do texto, ver R. J. Tarrant,
INTRODUÇÃO 29

in Texts and Transmission, editado por L.D. Reynolds, Oxford, 1983,


pp. 276-282. Escamotear as dificuldades da fixação do próprio texto
clássico, latino ou grego, significa iludir o leitor contemporâneo.

Uma vez que a intenção da presente tradução é dar a conhecer


o texto ovidiano pelo seu valor intrinsecamente literário, procurei
evitar a proliferação de notas explicativas, que a riqueza e o jogo de
erudição do texto inevitavelmente suscitam em número colossal, de
forma a não interromper constantemente a leitura. Para tal, reco­
mendo a consulta de traduções comentadas e dos comentários dis­
poníveis, alguns dos quais estão abaixo indicados. De uma maneira
geral, o leitor encontrará a explicação dos nomes e de outros ele­
mentos no Glossário no final do volume. As poucas notas de rodapé
são as absolutamente indispensáveis para o leitor compreender o
sentido, geralmente em casos em que não há referente óbvio para re­
meter para a consulta do Glossário, ou quando se trata de dados do
quotidiano romano, indispensáveis para o sentido do texto.

Um poema destas dimensões, estruturado em torno de um eixo


de histórias que podem ser lidas autonomamente, suscita a questão
de se proporcionar ao leitor uma segmentação do texto e a identifi­
cação de cada passo. Geralmente, tal corresponde a dar um título no
início de cada episódio, e isto é o que encontramos em diversos ca­
sos. Optámos por não o fazer por duas razões: em primeiro lugar,
porque o autor nunca o fez, e não vimos vantagem evidente em inse­
rir na leitura elementos que lhe são estranhos; em segundo lugar,
porque isso seria falsear justamente o sentido do carmen perpetuum
que Ovídio constrói, interrompendo esse fluir em que histórias se
vão encadeando em novas histórias, numa metamorfose do próprio
texto. Por conseguinte, o leitor encontrará a identificação do episó­
dio na margem superior da página; o seu início e fim estão assinala­
dos pela diferença de corpo de letra; além disso, no início do pre­
sente volume, um índice proporciona a identificação e localização
dos principais episódios; o Glossário final também poderá servir de
complemento. Os mapas ilustram os lugares citados no texto, e pre­
tendem justamente provocar o leitor para o jogo entre imaginário e
realidade que o poeta idealizou.
30 INTRODUÇÃO

Existem inúmeras traduções modernas de excelente nível. Linúto­


-me a referir apenas algumas. Em inglês, recomendo vivamente a exce­
lente e fidelíssima tradução de D. E. Hill, Ovid. Metamorphoses, Lon­
don, Aris & Phillips, 1985-2000 (4 vols.), com texto (o de Tarrant, em
versão anterior à da edição, e, por isso, com algumas pequenas diferen­
ças), tradução e notas exaustivas de enorme simplicidade e clareza, e
cito, honons causa, a de A.D. Melville, Oxford Univ. Press, 1986, com
notas de E. J. Kenney, e a de F. J. Miller, revista por G. P Goold (Loeb
Classical Library, 1984); em espanhol, a óptima tradução de A. Rarní­
rez de Verger e F. Navarro Antolín (Madrid, Alianza Editorial, 1998),
com notas aclaratórias, após a de A. Ruiz de Elvira, Ovidio. Metamor­
foses, Madrid, Alma Mater, 1990, 4ª ed.); em italiano, a belíssima tradu­
ção, com texto latino, de B. Marzolla, com ensaio introdutório de ltalo
Calvino, e a edição (baseada na de Tarrant) e tradução promovida pela
Fondazione Lorenzo Valia e Mondadori Editori, com magnífico co­
mentário pelos maiores especialistas da actualidade, de que saiu até
agora apenas o primeiro volume (livros 1-2) de A. Barchiesi, com tra­
dução de L. Koche e ensaio introdutório de C. Segal. Em francês, a de
G. Lafaye, Paris, "Les Belles Lettres", 1955-1957 (3 vols.), na 8." edi­
ção, corrigida por J. Fabre e H. Le Bonniec, 2002.
Quanto a comentários, além do monumental F. Bõmer, P Ovi­
dius Naso, Metamorphosen, Heidelberg, 1969-1986, 7 vols., dispo­
mos de instrumentos parcelares. De W. S. Anderson, o autor da edi­
ção crítica da Teubner, Suttgart-Leipzig, 1993 , 5ª edição, temos o
comentário aos dez primeiros livros (University of Oklahoma Press
- Norman, 1997 (livros 1 -5) e 1972 (livros 6-10). Para o livro 8, te­
mos o belo comentário de A. S. Hollis, Ovid. Metamorphoses Book
VIII, Oxford, Clarendon Press, 1970, para o livro 1 , o de A. G. Lee
(Ovid. Metamorphoses I, Cambridge Univ. Press, 1953 , disponível
em Bristol Classical Press, 1992) , para o livro 1 1 , o de G. M.
Murphy (Ovid. Metamorphoses XI, Oxford Univ. Press, 1972, dis­
ponível em Bristol Classical Press, 1994), para o livro XIII, o de N.
Hopkinson (Ovid. Metamorphoses. Book XIII, Cambridge Univ.
Press, 2000).
A bibliografia sobre as Metamorfoses de Ovídio, nos seus mais
variados aspectos, desde a crítica textual e história do texto até às
questões de pervivência e recepção, é imensa. O leitor interessado
INTRODUÇÃO 31

poderá encontrá-la nos volumes d e estudo que mais acima indico.


Para uma iniciação bastará indicar o clássico K. Galinsky, Ovid's
Metamorphoses. An Introduction to the Basic Aspects, Oxford, 1975.
Para os mais interessados na questão da influência das Metamorfoses
na arte europeia, um bom ponto de partida, bem acessível nos tem­
pos que correm, será consultar o notável sítio na intemet Ovid Illus­
trated: The Renaissance Reception of Ovid in Image and Text, que in­
clui imagens digitalizadas das principais edições ilustradas desde
finais do século XV e inícios do século XVI em diante, e que servi­
ram de modelos privilegiados para a pintura da época, juntamente
com textos e bibliografia; também Ovidian influence on literature
and art /rom the Middle Ages to the twentieth century, editado por
C. Martindale, Cambridge, 1988, será um instrumento útil.

Devo uma palavra de gratidão ao meu querido amigo e colega


Frederico Lourenço, um entusiasta irreprimível deste projecto, que
logrou cometer a proeza de me afastar largos meses dos meus estu­
dos habituais (o meu obstinado integros accedere Jontis, para utilizar
as palavras de Lucrécio) para me dedicar a este trabalho, e ao André
Jorge, das Edições Cotovia, pelo carinho inteligente com que me
acolheu e pela confiança que em mim depositou. Agradeço ao Co­
mandante Ferdinando Simões, especialista em terminologia náutica,
e ao Professor Fernando Catarina, pelas lições sobre flora mediter­
rânea. Também uma palavra de estima para o meu colega e amigo
Abel Pena, o exemplo romano do homem probus e de dedicação à
res publica, que muito me incentivou, com a sua paixão pela mitolo­
gia, neste trabalho.
Uma última palavra para amigos e colegas que já não estão entre
nós, mas é como se estivessem. O Fernando Lemos foi a primeira pes­
soa que, há muitos anos, me obrigou a traduzir um excerto do livro 1 1
para um trabalho didáctico que, na altura, tinha em curso. A Marina
Azevedo teria sido, sem sombra de dúvidas, uma grande entusiasta
deste projecto, e muito gostaria de o ter visto concluído. Enfim, o Vic­
tor Jabouille teria sido o padrinho. O Victor. Amigo querido e mestre,
meu e do Frederico, os seus estudos académicos levaram-no para os
32 INTRODUÇÃO

caminhos do mito. A essa temática dedicou o seu doutoramento,


muito da sua leccionação e muitos dos seus trabalhos, incluindo uma
Iniciação à Ciência dos Mitos, Lisboa, 1994. Com ele aprendi a gostar
de mitos e, mais do que tudo, de histórias, e quanto mais inverosímeis,
melhor. Nenhum deles está entre nós, para nossa pobreza. Mas, para­
fraseando Ovídio, 'a melhor parte deles vive connosco.'
Met amorfo s e s
LIVRO I

DE FORMAS mudadas em novos corpos leva-me o engenho


a falar. Ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós
a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até aos meus dias.

ANTES do mar e das terras e do céu, que tudo cobre,


um só era o aspecto da natureza no orbe inteiro:
Caos lhe chamaram. Era uma massa informe e confusa,
nada a não ser um peso inerte, nela amontoando-se
as sementes discordantes de coisas desconexas.
10 Não havia ainda qualquer Titã a oferecer luz ao mundo,
nem a Febe nova, crescendo, restaurava os seus cornos,
nem a Terra estava então suspensa no ar que a envolvia,
em equilíbrio pelo próprio peso, nem Anfitrite estendera
os seus braços a toda a volta da longa margem das terras. [IJ

15 Mas ainda que houvesse ali terra, e mar, e atmosfera,


a terra era então instável, as ondas não navegáveis,
e a atmosfera sem luz. Nada conservava a sua forma,
cada coisa opunha-se à outra, pois num mesmo corpo
o frio guerreava o quente, o húmido lutava com o seco,
20 o mole com o duro, o peso com a ausência de peso.

Um deus, ou a natureza já mais benigna, pôs fim à disputa.


De facto, as terras separou do céu, das terras as ondas,
e dividiu o céu puríssimo da atmosfera espessa.
Após os ter desembaraçado e extraído da escura massa,
25 uniu cada um ao seu lugar, em harmoniosa paz.

1 Alusão ao sol, à lua, à terra e ao mar.


36 L I V R O l A criação

O fogo, a energia imponderável do céu convexo, pôs-se


a brilhar e fez para si um lugar no ponto mais alto.
O que lhe é mais próximo, pelo lugar e em leveza, é o ar.
A terra, mais densa que eles, arrastou partículas maiores,
30 e o seu peso puxou-a para baixo. A água, fluindo à volta,
tomou posse do último espaço e confinou o disco sólido.

Quando aquele deus, quem quer que ele fosse, assim dispôs
aquela massa e a dividiu, e, dividida, organizou em partes,
primeiro, aglomerou a terra, para que fosse uniforme
35 em toda a parte com o formato de um grande círculo.
Depois, ordenou que os mares se expandissem, inchassem
pelos impetuosos ventos, e rodeassem as costas da terra.
Juntou também as fontes e lagoas imensas e os lagos,
e também os rios em declive cingiu com sinuosas margens.
40 Destes, nos variados sítios, uns são absorvidos pela terra,
outros chegam ao mar e, acolhidos pela imensidão
de água mais livre, golpeiam a costa em vez de as margens.
Ordenou aos campos que se dilatassem, vales se cavassem,
folhas cobrissem bosques, se erguessem pedregosos montes.
45 E tal como há duas zonas no lado direito e outras tantas
no esquerdo a dividir o céu (uma quinta é a mais ardente),
assim o zelo divino dividiu em igual número a massa
que o céu envolvia, e outras tantas regiões traçou na terra.
Destas, a do meio não pode ser habitada devido ao calor,
50 neve funda duas cobre. Entre aquela e estas pôs outras duas,
dando um clima temperado, com chamas à mistura com frio.
Por cima delas situa-se o ar, que é mais pesado que o fogo,
tanto quanto o peso da água é mais leve que o peso da terra.

Ordenou que ali as névoas se assentassem, ali as nuvens


55 e os trovões, que perturbarão as mentes dos humanos,
e os ventos, que produzem coriscos junto com relâmpagos.
A estes, o construtor do mundo não permitiu que tivessem
o ar indistintamente. (Ainda hoje, embora cada um dirija
o sopro a partir de regiões diversas, a custo são travados
60 de estraçalharem o mundo: tal a discórdia entre os irmãos.)
O Euro recolheu-se junto à Aurora, ao reino dos Nabateus
A criação - As Quatro Idades L I V R O I 37

e à Pérsia, e às montanhas expostas aos raios da manhã;


o Héspero e os litorais amornados pelo sol do entardecer
situam-se vizinhos do Zéfiro; a Cítia e os sete Triões
65 foram invadidos pelo gélido Bóreas; a região oposta a esta
é encharcada por nuvens constantes e o pluvioso Austro.
Sobre tudo isto colocou o éter puríssimo, desprovido
de peso, livre de quaisquer resíduos impuros da terra.
Mal tudo assim compartimentara com limites precisos,
10 quando as estrelas, há muito oprimidas por uma névoa
impenetrável, desataram a fervilhar por todo o céu.
E para que região alguma ficasse sem os seus seres vivos,
os astros e as formas de deuses ocupam o solo celeste,
as ondas couberam aos reluzentes peixes para lá viverem,
15 a terra acolheu os animais silvestres, o móvel ar as aves.

Faltava ainda um ser mais sublime que estes, mais capaz


de conter uma alta inteligência, que pudesse reger os outros.
Nasceu então o homem. Este, ou o fez de semente divina
aquele artífice do universo, a origem do mundo melhor;
80 ou então a terra recente, separada há pouco do alto éter,
talvez ainda contivesse sementes do céu, seu parente, terra
que o filho de Jápeto, misturando com água da chuva, �i

moldou à imagem dos deuses que governam tudo.


E se os outros animais, dobrados para baixo, olham o chão,
85 conferiu ao homem uma cara virada para cima, e instruiu-o
a olhar para o céu e a erguer o rosto erecto para os astros.
Deste modo, o que há pouco era terra em bruto e sem forma
transformou-se e assumiu formas de homens jamais vistas.

A PRIMEIRA idade a surgir foi a de ouro. Sem justiceiro algum,


90 sem leis e de livre vontade, cultivava a lealdade e a rectidão.
Não havia castigos nem medo, nem palavras de ameaça
gravadas no bronze afixado, nem turba de suplicantes temia
o rosto do seu juiz, mas viviam seguros, sem justiceiros.
Ainda o pinheiro não fora cortado das suas serranias

2 Prometeu.
38 L I V R O I As Quatro Idades

95 e descera às límpidas ondas a visitar mundo estrangeiro,


e os mortais não sabiam de outras costas senão das suas.
Ainda não cingiam os povoados de fundos fossos a pique,
e não havia trombeta direita, nem trompa curva de bronze,
nem capacetes, nem espadas. Sem precisão de soldados,
loo as gentes viviam numa ociosidade doce, livres de cuidados.
A própria terra, isenta de deveres, intocada pela enxada,
ferida por nenhum arado, tudo dava espontaneamente.
E, contentes com o alimento criado sem ninguém o forçar,
eles colhiam medronhos e morangos dos montes,
105 e bagas de corniso e amoras presas em espinhosas silvas,
e bolotas, que tinham tombado da larga árvore de Júpiter.
A Primavera era eterna, e com tépidas brisas os plácidos
Zéfiros acariciavam as flores nascidas sem semente.
Depois, até já a terra sem ser arada produzia cereais,
1 10 e o campo sem lavra empalidecia de carregadas espigas.
E então, corriam rios de leite, então, rios de néctar,
e loiro mel pingava do cimo da verdejante azinheira.

Depois de Saturno ser enviado para a negridão do Tártaro


e o mundo ficar sob Júpiter, sucedeu a geração de prata,
1 15 inferior ao ouro, mas mais valiosa que o fulvo bronze.
Então, Júpiter encurtou a duração da antiga Primavera,
e, através de Invernos, Verões, inconstantes Outonos
e uma Primavera breve, dividiu o ano em quatro estações.
Então, pela primeira vez, o ar, queimado por calor seco, ficou
120 incandescente, e o gelo pendeu, congelado pelos ventos;
então, pela primeira vez, entraram em casas (as casas eram
cavernas, densas moitas, ramos entrançados com cortiça);
então, pela primeira vez, enterraram as sementes de Ceres
em longos sulcos e os bezerros gemeram sob o peso do jugo.

125 Após esta geração, seguiu-se-lhe a terceira, a de bronze,


de índole mais feroz, mais pronta para as horrendas armas,
mas ainda não criminosa. E a última é a do duro ferro.
De súbito, todo acto nefando irrompe nesta idade de metal
menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a lealdade,
no e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro, e a traição,
e as insídias, e a violência, e a criminosa paixão por possuir.
As Quatro Idades - Gigantomaquia - A assembleia dos deuses L I V R O 1 39

Velas desfraldava aos ventos (ainda nem os conhecia bem)


o marinheiro, e as quilhas, que por tanto tempo estiveram
nos altos montes, saltitavam em ondas desconhecidas.
m O prudente agrimensor marcou a terra, antes comum
a todos como a luz do sol e os ares, com longos limites.
E já nem apenas as searas e os alimentos devidos se exigiam
ao rico solo, mas descem pelas entranhas da terra abaixo,
desatam a escavar riquezas que aquela ocultara e movera
140 para junto das sombras do Estígio, estímulos para o mal.
Já o pernicioso ferro de lá surgira, e o ouro, mais pernicioso
que o ferro. E surge a guerra, que luta recorrendo a ambos,
e, com mão ensanguentada, brande as estrepitosas armas.
Vive-se da rapina. O hóspede não está a salvo do hospedeiro,
145 nem o sogro do genro: até a afeição entre irmãos é rara.
O homem maquina a morte da esposa, esta a do marido.
As aterradoras madrastas misturam amarelentos venenos.
O filho, antes do tempo, inquire sobre a idade do pai. D1

O respeito jaz vencido, e a virgem Astreia foi a última


150 dos seres celestes a deixar as terras encharcadas de sangue. '4 1

PARA QUE o alto éter não estivesse mais seguro que as terras,
conta-se que os Gigantes aspiraram ao reino dos céus,
construindo uma pilha de montanhas até aos altos astros.
Então, o pai omnipotente lançou o seu raio e estilhaçou
155 o Olimpo, e derrubou o Pélion de cima do Ossa sob ele.
E jazendo os monstruosos corpos sob a própria construção
soterrados, a Terra, diz-se, encharcada de tanto sangue
dos filhos, ensopou-se e deu vida ao sangue ainda quente.
E, para que restasse alguma lembrança da sua estirpe,
160 fê-los tomar o aspecto de humanos. Mas esta raça também
ficou a desprezar os deuses, tão sôfrega de atroz matança
e violenta era: bem se percebia que ela nascera do sangue.

QUANDO do alto da cidadela o pai, o filho de Saturno, tal


viu, soltou um gemido. Recordando o medonho banquete

3 Ou seja, inquire astrólogos, com sentimentos hostis aos anos de vida do pai, para saber
quanto ainda falta para receber a herança.
4 Filha da deusa da justiça, Témis.
40 L I V R O I A assembleia dos deuses

165 à mesa de Licáon, ainda não conhecido por ser caso recente,
inflamou-se no coração de cólera imensa, digna de Júpiter,
e convoca uma assembleia; nada fez atrasar os convocados.
Há uma via lá nas alturas, bem visível no céu sereno.
Láctea é o seu nome e é notabilíssima pela sua brancura.
110 Por ela vão os deuses até à mansão do magno Tonante,
o palácio real. A direita e à esquerda, com as portas abertas
de par em par, vêem-se os átrios apinhados dos deuses nobres;
a plebe vive dispersa noutras zonas. Aqui, os seres celestes,
os ilustres e os poderosos, estabeleceram os seus Penates.
115 Esta é a zona que, se me for permitido falar com ousadia,
eu não recearia designar como Palatino do magno céu.
Ora, sentados os deuses num salão interior de mármore,
ele, no lugar mais alto, apoiado no seu ceptro de marfim,
por três ou quatro vezes abanou a cabeça e a terrífica
180 cabeleira, e com ela sacudiu a terra, o mar e as estrelas.
Depois, abriu a boca indignada e falou nestes termos:

'Eu não me inquietei mais pelo governo do mundo


naquele tempo em que cada um se aprestava a lançar
os seus cem braços de serpente e a aprisionar o céu. 1>1

185 Pois, embora o inimigo fosse feroz, aquela guerra,


porém, dependia de um só grupo e de uma só origem.
Agora, no mundo inteiro à volta do qual Nereu ressoa,
tenho de destruir a raça dos mortais. Pelos rios infernais
que deslizam sob as terras na floresta do Estígio, juro:
190 Tudo temos de tentar antes, mas a carne incurável deve
ser cortada com a lâmina para não infectar a parte sã.
Tenho semideuses, tenho divindades dos campos, ninfas
e faunos e sátiras, e os silvanos que vivem nos montes.
Já que ainda não os achamos dignos das honras do céu,
195 permitamos, ao menos, que habitem as terras que demos.
Ou julgais, ó deuses, que eles estarão a salvo o bastante,
depois de contra mim, que tenho o raio, que vos governo,
Licáon, famoso pela ferocidade, ter maquinado insídias? '

' Referência que funde o ataque dos Gigantes e o dos Titãs.


A assembleia dos deuses - Licáon L I V R O 1 41

Todos desatam a murmurar; e com inflamado ardor exigem


200 o castigo de quem tal ousou. Assim, quando o ímpio bando
se encarniçou em extinguir o nome de Roma com o sangue
de César, a raça humana ficou aturdida de terror pela súbita
calamidade, e o mundo inteiro arrepiou-se de horror.
Nem a devota afeição dos teus te é menos grata, Augusto,
205 do que aquela foi a Júpiter. Após acalmar os murmúrios
com a mão e com a voz, todos permaneceram em silêncio.
Quando o clamor parou, calado pela autoridade do regente,
então Júpiter quebrou de novo o silêncio com tais dizeres:
'Ele, é certo, já foi castigado: deixai de vos afligir com isso.
210 Porém, eu vou-vos contar qual foi a ofensa e qual o castigo.

'A MÁ reputação desta época chegara-me aos ouvidos.


Desejando que fosse falsa, deslizo do píncaro do Olimpo,
e percorro as terras, deus sob uma aparência humana.
Longo seria enumerar quantas malfeitorias eu descobri
2 15 por toda a parte: a verdade era pior que a má reputação.
Passara já o Ménalo, arrepiante pelos covis das feras,
e os pinhais do frio Liceu, junto com o Cilene; a seguir,
entro na sede e inospitaleira mansão do tirano da Arcádia,
quando o final do crepúsculo arrastava atrás de si a noite.
220 Dei sinal de que era um deus que chegara e o povo desatou
a rezar. A princípio, Licáon riu-se das suas devotas preces.
Depois, disse: "Vou averiguar com um teste simples se este
é deus ou mortal; o resultado será a verdade e indubitável. "
De noite, estava eu num sono profundo, planeia matar-me
225 sem eu o esperar: este era o teste da verdade que planeara !
E não ficou satisfeito com isto: com a ponta da espada
degolou um certo refém enviado do povo dos Molossos,
e dos membros ainda semi-vivos, parte deles cozinhou
em água a ferver em cachão, parte deles assou sobre o fogo.
230 Mal isto serviu à mesa, eu, com uma chama justiceira,
desmoronei a casa sobre os Penates, dignos de tal senhor.
Ele foge espavorido. Achando-se no silêncio dos campos,
põe-se a uivar e em vão tenta falar. Dele próprio o focinho
colhe a raiva, e, com a habitual sofreguidão de carnificina,
n5 volta-se contra os rebanhos; ainda hoje rejubila com sangue.
42 L I V RO I A assembleia dos deuses (cont.) - 0 dilúvio

As suas vestes dão lugar aos pêlos, os braços às patas.


Torna-se lobo, mas conserva traços do seu antigo aspecto:
o pêlo grisalho é o mesmo, a mesma violência na face,
o mesmo brilho nos olhos, a mesma imagem de ferocidade.
240 Uma casa derruiu, mas não era só esta a casa que merecia
perecer; por onde a terra se espraia, reina, feroz, a Erínia.
Julgá-los-ias conjurados para o crime: todos devem sofrer,
quanto antes, o castigo que merecem. É a minha sentença. '

UNS aprovam as palavras de Júpiter a alta voz e acicatam


245 a cólera dele, outros cumprem a sua parte com aplausos.
Porém, o aniquilamento do género humano causa muita dor
a todos, e questionam qual viria a ser o aspecto da terra
despojada de mortais, quem iria levar incenso aos altares,
se se aprestava a entregar as terras à devastação das feras.
250 Questionado sobre isto, o rei dos deuses diz para não terem
medo (ele ocupar-se-á do restante), e promete uma raça
distinta do povo anterior e com uma origem assombrosa.

]Á SE aprontava para fazer chover raios sobre a terra inteira,


mas receou que porventura o sacro éter, com tantos fogos,
m se incendiasse, e o longo eixo fosse consumido nas chamas.
E lembra-se que no destino se dizia que chegaria um tempo
em que mar, terra e o palácio dos céus, apanhados pelo fogo,
arderiam, que a trabalhosa mole do mundo ficaria em perigo.
Pousando os raios fabricados pelas mãos dos Ciclopes,
260 decide então um castigo diverso: destruir o género humano
sob as águas, lançando do céu todo uma terrível intempérie.
De imediato, encerra nas cavernas de Éolo o Aquilão
e todos os ventos que põem em fuga as nuvens amontoadas,
e solta o Noto. De asas ensopadas, o Noto de lá sai a voar,
265 de rosto medonho, coberto de uma névoa negra como o pez.
Pesada de nuvens negras é a barba, torrentes jorram das cãs,
na testa residem névoas, e asas e roupas vêem-se a pingar.
Mal com a mão espreme as nuvens suspensas até lá longe,
dá-se um estrondo, e densas nuvens derramam-se do céu.
210 Í ris, a mensageira de Juno, com vestes de variegadas cores,
vai recolhendo humidade e fornecendo alimento às nuvens.
O dilúvio L I V R O 1 43

Searas são arrasadas, os lavradores choram as esperanças


que jazem no chão, o labor de um longo ano perece, inútil.

Nem a cólera de Júpiter se satisfaz com o seu céu: a ele


215 vem o azulado irmão trazer ajuda com ondas auxiliares. 1,i

Este convoca os rios. Depois de eles entrarem no palácio


do seu rei, diz: 'Não temos tempo a perder com longas
exortações. Derramai as vossas forças (assim é preciso),
abri as vossas mansões e, removidas todas as represas,
280 lançai à rédea solta as vossas torrentes cá para fora. '
Tal ordenara. Eles retornam, às nascentes libertam
as bocas, e, com os cursos sem freios, lançam-se no mar.
Ele próprio percutiu a terra com o tridente; e esta
estremeceu e, com o abalo, abriu caminho às águas.
285 Os rios transbordam e desabam nas planícies abertas,
e arrastam colheitas e árvores, e animais, e gentes,
e casas, e os santuários com os seus objectos sagrados.
Se alguma casa ficou de pé e pôde resistir a tal desastre
sem desabar, uma onda mais alta cobriu-lhe o telhado,
290 os torreões ficam ocultos, esmagados sob a enxurrada.

Já o mar e a terra não ofereciam qualquer distinção:


tudo não era mais que mar, mar a que faltavam costas.
Um sobe a um monte, outro senta-se na curva barca
e maneja os remos no sítio onde há pouco lavrara.
295 Aquele navega sobre as searas e os telhados da quinta
submersa, este pesca um peixe no cimo de um ulmeiro.
Segundo a sorte, a âncora fixa-se num verde prado,
as encurvadas quilhas raspam os vinhedos debaixo.
E onde antes as esbeltas cabrinhas pastavam a erva,
ioo agora aí mesmo disformes focas estendem os corpos.
Sob as águas, as Nereides vêem pasmadas bosques,
cidades, casas; golfinhos ocupam florestas e chocam
contra altas ramagens, embatem e abanam os carvalhos.
Nada o lobo entre ovelhas, a onda leva fulvos leões,

6 Neptuno.
44 LIVRO l O dilúvio - Deucalião e Pirra

305 tigres leva a onda; de nada vale a força das fulminantes


presas ao javali, ou velozes pernas ao cervo arrastado.
E, após longamente procurar terra onde pudesse pousar,
a ave vagueante cai no mar com as asas exaustas.
O desatino desmesurado do mar sepultara montanhas,
310 e vagas inéditas embatiam nos píncaros das serranias.
A maioria dos seres a água arrasta; quem a água poupa,
subjuga-os uma longa fome devido à falta de alimentos.

A FóCIDE separa a região da Aónia dos campos do Eta,


terra fértil, enquanto foi terra. Mas naquele tempo era
315 parte do mar, uma vasta planura de súbitas águas.
Aí uma alta montanha com dois picos sobe para os astros,
de seu nome Parnaso, e o seu cume ultrapassa as nuvens.
Quando Deucalião (pois todo o resto as águas cobriam)
levado na pequena barca, aqui desembarca com a esposa,
320 veneram as ninfas da Corícia, divindades dos montes,
e a profética Témis, que então era a senhora dos oráculos.
Homem algum houve melhor que ele, nem mais amante
da justiça, nem outra houve mais temente aos deuses.

Vendo o mundo imerso na transparente água estagnada,


325 e que de tantos milhares de homens restava só um,
e que de tantos milhares de mulheres só uma restava,
ambos inocentes, ambos devotados crentes nos deuses,
Júpiter dispersou o manto de nuvens, afastando as chuvas
com o Aquilão, e mostra as terras ao céu, o éter às terras.
330 A fúria do mar cessa. O senhor dos mares, pondo de lado
o tridente, acalma as águas e chama o azulado Tritão,
que emerge à superfície do abismo, os ombros cobertos
de conchas neles nascidas, e ordena-lhe que assopre
no sonoro búzio, e dê, deste modo, o sinal de retirada
335 às ondas do mar e aos rios. Ele pega na oca buzina,
que desde a ponta da sua espiral se retorce e se alarga,
buzina que, quando é assoprada no meio dos mares,
enche de som as costas que jazem sob cada um dos Febos.
Também agora, quando tocou a boca molhada do deus,
340 de barba a pingar, e, soprada, ela soou, como ordenado,
Deucalião e Pirra L I V R O 1 45

a retirar, ouviram-na todas as águas da terra e do mar;


e todas as águas pelas quais foi escutada ela travou.
Agora o mar tem litoral, o leito acolhe o rio, mesmo cheio,
[as torrentes descem e vêem-se despontar os montes,]
345 emerge a terra, crescem os montes, decrescendo as águas.
E após um longo período, as árvores exibem os cimos
desnudados, carregando o lodo deixado nas ramagens.

O mundo fora devolvido. Quando Deucalião o viu, vazio,


as terras desertas, imersas num silêncio profundo,
350 rebentaram-lhe as lágrimas. E assim se dirigiu a Pirra:
' Ó minha prima, ó esposa, ó mulher, a única sobrevivente,
a quem me liga a mesma estirpe, a origem de nossos pais, [71

que depois o leito a mim uniu e agora unem os perigos,


das terras, de todas quantas o nascente e o ocaso vêem,
355 nós dois somos a população; o resto os mares possuem.
E ainda não podemos estar com toda a certeza confiantes
na nossa vida: as nuvens ainda me aterrorizam o coração.
Qual seria agora o teu estado de espírito, se sem mim
à morte tivesses escapado, ó pobrezinha? Como sozinha
360 poderias suportar o medo? Quem te confortaria na dor?
Pois eu, acredita, se o mar também te tivesse tragado,
ter-te-ia seguido, ó mulher, e o mar ter-me-ia também.
Oh ! se eu pudesse, com as artes de meu pai, restaurar
os povos e moldar as terras, e nelas instilar vida !
365 Agora, o género humano sobrevive em nós dois apenas
(tal decidiram os deuses) : restamos modelos de homens.'

Assim dissera; e eles choravam. Decidiram então ir orar


ao poder celeste e buscar ajuda nos sagrados oráculos.
Sem mais demora, chegaram juntos à corrente do Cefiso,
370 ainda não límpida, mas que já sulcava o leito familiar.
Depois de nela irem buscar água e borrifarem as vestes
e a cabeça, voltam o caminho na direcção do santuário
da sagrada deusa. Os seus frontões viam-se amarelentos

7 Na realidade, são primos, filhos de Prometeu e Epitemeu, que eram irmãos.


46 LIVRO l Deucalião e Pirra

de musgo imundo, os altares estavam de pé, apagados.


375 Ao chegarem à escadaria do templo, ambos se prostram
de cara no chão, e, temerosos, beijam as frias pedras.
Assim falaram: 'Se com preces justas se deixam vencer
e enternecer os deuses, se a cólera dos deuses se aplaca,
diz, Témis, de que modo a perdição da nossa raça pode ser
330 reparada e traz auxílio, gentilíssima, ao mundo submerso.'
A deusa comoveu-se e proferiu este oráculo: 'Saí do templo
e cobri a cabeça, desapertai as vossas cingidas vestes,
e lançai para trás das costas os ossos da grande mãe.'

Quedaram-se largo tempo estupefactos. Pirra é a primeira


385 a romper o silêncio e recusa obedecer às ordens da deusa;
de voz trémula de medo, roga que lhe perdoe: é que receia
magoar a sombra da mãe ao andar a atirar os seus ossos.
Mas cada um vai remoendo e relembrando um ao outro
as palavras do oráculo, obscuras, de significado oculto.
390 Até que o filho de Prometeu tranquiliza a filha de Epimeteu,
e tais palavras diz: 'Ou a minha perspicácia me engana,
ou o oráculo não é ímpio nem exorta a sacrilégio algum.
A grande mãe é a terra; no corpo da terra, as pedras, julgo,
são os ossos; estas é que ela ordena lançar atrás das costas.'
395 A interpretação do marido impressionou a neta do Titã;
mas ela hesita no que esperar: a tal ponto não confiavam
ambos no conselho celeste. Mas haveria mal em tentar?
Afastam-se, cobrem a cabeça e desapertam as túnicas,
e arremessam as pedras, como ordenado, para trás de si.
400 As pedras (quem creria se não o atestasse a antiguidade?)
começaram a largar a dureza e a rigidez, e, com o tempo,
a amolecer, e, uma vez amolecidas, a assumir uma forma.
Depois, quando cresceram e uma natureza mais branda
lhes tocou, certa forma humana, ainda não muito clara,
405 podia perceber-se, mas como se esboçada em mármore,
ainda não acabada e parecidíssima com uma estátua a meio.
Porém, a parte deles de terra, impregnada de uma certa
humidade, transformou-se e passou a servir de carne;
o que era sólido e não podia dobrar-se torna-se ossos;
410 o que antes era veio, permanece com o nome de veia.
O renascer da vida - Apolo e Píton L I V R O I 47

Em breve, pela vontade dos deuses, as pedras lançadas


pela mão do homem assumem o aspecto de homens,
e o que foi atirado pela mulher, reformata-se em mulher.
Por isso somos uma raça dura que se mata a trabalhar,
415 e fornecemos provas da origem da qual nós nascemos.

Os OUTROS animais, das mais diversas formas, a terra gerou


espontaneamente, mal os raios do sol secaram a humidade
remanescente. A lama e os ensopados pântanos incharam
com o calor, e as férteis sementes das coisas, no fecundante
420 solo nutridas, como se no útero da mãe, desenvolveram-se.
E, com o passar do tempo, adquiriram determinada forma.
É assim quando o septêmfluo Nilo se retira dos campos
encharcados e a sua corrente retorna ao leito original,
e a lama, ainda fresca, seca pelo astro solar lá do éter,
425 e os lavradores, ao revolverem a terra, encontram animais,
muitíssimos. Entre eles, vêem alguns completos, mesmo
no instante do seu nascimento, outros apenas começados,
de membros incompletos, e muitas vezes no mesmo corpo
uma parte está viva, a outra é ainda terra em bruto.
430 Pois quando a humidade e o calor atingem certo equiHbrio,
eles concebem, e da união dos dois nascem todas as coisas.
E embora o fogo combata a água, uma humidade quente
tudo gera, e a concórdia discordante favorece a procriação.

ORA BEM, quando a terra, lamacenta pelo recente dilúvio,


435 reaqueceu pelos raios do sol do éter, pelo calor lá do alto
gerou espécies sem conta, em parte reproduzindo antigas
formas, em parte criando assombrosos seres jamais vistos.
Ela, é certo, não teria querido, mas também então te gerou,
ó gigantesco Píton, serpente desconhecida, tu, o terror
440 dos novos povos, tanto espaço da montanha ocupavas tu.
Este, o deus senhor do arco, que suas armas mortíferas rs1

nunca antes usara a não ser em gamos e corças em fuga,


carregou-o de mil setas, esgotando quase a aljava toda,

' Apolo.
48 L I V R O I Píton - Apolo e Dafne

e matou-o, o veneno derramando-se das negras feridas.


445 Para o tempo não poder apagar a memória deste feito,
instituiu jogos sagrados com uma grandiosa competição,
chamados Píticos, do nome da serpente que ele subjugara.
Neles, todo o jovem que vencesse por mão, ou pé, ou carro,
ganhava a título honorífico um ramo de folhas de carvalho.
450 O loureiro não existia ainda e Febo cingia ainda as frontes
graciosas e o longo cabelo com folhas de qualquer árvore.

O PRIMEIRO amor de Febo foi Dafne, filha de Peneu. Não foi


o acaso ignaro a induzir-lho, mas a cólera cruel de Cupido.
Um dia, o deus de Delos, impante por há pouco ter vencido
455 a serpente, vira-o encurvando o arco e retesando a corda.
'Que fazes tu, rapaz maroto, com essas armas tão potentes?'
dissera. 'Esse armamento convém mas é aos meus ombros,
eu que consigo ferir certeiro as feras, ferir certeiro o inimigo,
que há pouco derrubei com inúmeras setas o inchado Píton,
460 cujo pestífero ventre esmagava o solo por tantas jeiras.
Tu, contenta-te em provocar com a tua tocha esses não sei
que amores, e não reclames para ti honras que são minhas. '
O filho d e Vénus retorquiu: 'Que o teu arco trespasse tudo,
Febo, que o meu te trespasse a ti. E tal como os seres vivos
465 são inferiores a um deus, a tua glória é inferior à minha.'
Assim disse, e, expedito, sulcou os ares batendo as asas,
indo alojar-se lá nos píncaros umbrosos do Parnaso.
Da aljava que traz as flechas, tirou para fora duas setas
de efeitos contrários: uma escorraça, a outra induz o amor.
470 (A que induz é de ouro, e a ponta refulge bem aguçada;
romba é a que escorraça, e tem chumbo sob a cana.)
O deus cravou esta na ninfa, filha de Peneu, trespassou
com a outra os ossos de Apolo, ferindo-o até à medula.

Logo este se enamora, a outra foge à ideia de um amante:


475 rejubila ela com esconderijos nas florestas, com os troféus
dos animais que caça, rivalizando assim com a inupta Febe.
[Uma fita prende-lhe os cabelos que caem em desalinho.]
Muitos a desejaram, mas ela rechaçava os pretendentes.
Não suportando marido, sozinha, corre bosques remotos,
Apolo e Dafne L I V R O l 49

480 e não quer saber que coisa seja Himeneu, o amor, as bodas.
Muitas vezes o pai dizia: 'Deves-me um genro, minha filha';
muitas vezes dizia o seu pai: 'Deves-me netos, filha minha.'
Ela, como se delito fosse, odiava os archotes nupciais,
e na formosa face espalhava-se um rubor pudibundo.
485 Agarrando-se ao pescoço do pai com os mimosos braços,
'Concede-me fruir, pai queridíssimo, de uma virgindade
perpétua', disse, 'em tempos, a Diana seu pai lha concedeu.'
Ele, de facto, lá consentiu - mas o teu encanto não permite
o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos.

490 Febo está apaixonado. Ao ver Dafne, deseja desposá-la,


e tem esperança no que deseja: os seus oráculos iludem-no.
Tal como arde o leve restolho, após ceifarem as espigas,
tal como ardem as sebes com o archote que o viandante
ou chegara perto de mais ou abandonara já à luz do dia,
495 assim o deus se consome em labaredas, assim se inflama
pelo peito todo, e nutre de esperanças um amor estéril.
Observa os cabelos dela a cair em desalinho pelo pescoço,
e diz: 'E se os penteássemos? ' Vê os olhos com um brilho
de fogo, semelhantes aos astros; vê os lábios, que ter visto
500 não é para ele bastante; gaba-lhe os dedos, e as mãos,
e os antebraços, e os braços, mais de metade desnudos.
O que não vê, imagina ainda mais belo. Ela foge mais veloz
que a leve brisa, nem pára quando ele a chama de volta:

'Ninfa do Peneu, suplico, pára ! Não te persegue o inimigo !


505 Pára, ninfa ! Assim foge o cordeiro ao lobo, assim a cerva
ao leão, assim fogem à águia as pombas de trémulas asas,
cada um ao seu inimigo. O amor é a razão de te perseguir.
Ai de mim ! Temo que caias de cara ao chão, que as sebes
arranhem as inocentes pernas, te magoes por minha culpa !
510 Os locais por onde vais são acidentados. Corre mais devagar,
suplico, abranda a tua corrida. Eu seguir-te-ei mais devagar.
Mas pergunta a quem seduziste. Eu não vivo nos montes,
eu não sou um pastor, eu não vigio, abrutalhado, manadas
e rebanhos. Não sabes, temerária, tu não sabes, não,
515 de quem tu foges, e por isso foges. Eu sou o senhor da terra
50 L I V R O I Apolo e Dafne

de Delfos, e de Claro, e de Ténedos, e do palácio de Pátaros.


Júpiter é meu pai. Eu sou quem revela o que será, o que foi
e o que é; eu sou quem harmoniza o canto com a cítara.
A minha flecha é, de facto, certeira, mas há uma flecha
520 mais certeira, aquela flecha que feriu meu coração vazio.
A medicina é uma invenção minha, e pelo mundo fora
chamam-me Auxiliador, e sou dono do poder das ervas.
Ai de mim ! Não há erva alguma para curar o meu amor,
nem minhas artes úteis aos outros são úteis ao seu senhor! '

525 Ia a dizer mais coisas quando a filha de Peneu se afasta,


assustada, em corrida, deixando-o com as palavras a meio.
Até então lhe parecia linda ! O vento desnudava o corpo,
as brisas, vindo ao seu encontro, faziam vibrar as vestes
à sua frente, a leve aragem soprava os cabelos para trás.
530 A fuga tornava-a mais bela! Mas o jovem deus não tolerou
mais desperdiçar palavras de sedução e, assim o instigava
o próprio Amor, lança-se no encalço dela a toda a pressa.
Assim é o cão da Gália, quando avista a lebre no campo
aberto. Ele corre em busca da presa, aquela da salvação;
535 ele parece já agarrá-la, convence-se de que está a ponto
de a apanhar, já toca nas patas com o focinho esticado,
ela não sabe ainda bem se está já apanhada, e escapa-se
por entre os dentes e distancia-se da boca que já lhe toca.
Tal o deus e a jovem: ele veloz de esperança, ela de medo.
540 Ajudado pela asas do Amor, o perseguidor é mais veloz,
não lhe dá descanso, está já sobre as costas da fugiúva,
já lhe sopra sobre os cabelos derramados pela nuca.

Por fim, perdendo as forças, ela empalideceu e da rápida


544 [fuga, esgotada pelo cansaço, 'Terra', disse, 'esta figura,
545 que faz com que me firam, destrói-a, transformando-a.] [•J

544• a fuga, vencida pelo cansaço, fitando as ondas do Peneu,


'Ajuda, pai', gritou, 'se vós, os rios, tendes poder divino !
Extingue e transforma esta figura, demasiado atraente! '

9 Certos editores sugerem que se trata de wna variante de autor.


Apolo e Dafne - Júpiter e lo L I V R O I 51

Mal terminara a prece, um pesado torpor invade o corpo.


O macio peito da jovem é envolto por uma fina casca,
550 os cabelos alongam-se em folhas, os braços em ramos,
os pés, há pouco tão lestos, fixam-se em indolentes raízes;
o rosto faz-se copa: só o seu esplendor permanece nela.
Ainda assim Febo a ama. E apoiando a mão no tronco,
sente o peito ainda a palpitar debaixo da casca recente.
555 Abraça nos braços os ramos, como se membros fossem,
cobre de beijos o lenho; mas o lenho aos beijos se esquiva.
Então o deus disse: 'Já que minha esposa não podes ser,
serás ao menos a minha árvore. Os meus cabelos sempre
te terão, e a minha cítara, ó loureiro, e a minha aljava.
560 Tu estarás com os chefes do Lácio, quando a voz cantar
alegre o Triunfo, e o Capitólio assistir aos longos cortejos.
Tu, fidelíssima guardiã, estarás no umbral de Augusto,
diante da porta, de guarda às folhas de carvalho ao meio.
E tal como a minha cabeça é jovem e os cabelos intonsos,
565 também tu usarás sempre as honras perpétuas de folhas. '
O deus d o Péan terminara. O loureiro anuiu com o s ramos
recentes e pareceu abanar a copa, como se cabeça fosse.

HÃ UM BOSQUE num vale na Hemónia, que uma floresta


cortada a pique fecha de todos os lados: chama-se Tempe.
510 Por ele irrompe, de espumosas ondas, o Peneu, que brota
do sopé do Findo. Pelo peso da sua queda, projecta névoas
de vapores ténues e em borrifos chuvisca sobre os cimos
do arvoredo, e o fragor molesta bem para lá da vizinhança.
Esta é casa, esta é a sede, este é o santuário do grande rio.
575 Residindo aqui, em gruta talhada nas fragas, estabelecia
as leis para as ondas e às ninfas que nas ondas habitam.
A este local chegaram primeiro os rios daquela região,
sem saber se deviam vir felicitar o pai ou confortá-lo:
Esperqueu, carregado de choupos, o irrequieto Enipeu,
580 o velho Apídano, e o tranquilo Anfriso, e o Eante;
depois, outros rios, que, por onde o ímpeto os empurra,
levam lá abaixo ao mar as águas, exaustas das errâncias.
Só Ínaco está ausente. Recolhido no fundo da sua gruta,
engrossa as águas com o pranto: digno de dó, chora lo,
52 L I V R O I Júpiter e lo

585 a sua filha, como se perdida. Não sabe se ainda está viva,
se está entre os Manes. Não a achando em parte alguma,
julga que já não vive mais, e receia o pior no seu coração.

Um dia, Júpiter avistara-a a regressar da corrente do pai,


e exclamara: ' Ó rapariga digna de Júpiter, que farias feliz
590 quem quer que seja no leito nupcial, anda para a sombra
do fundo do bosque' (e aponta para a sombra do bosque) ,
'enquanto está calor e o sol está bem alto, a meio da órbita.
E se receias entrar sozinha ali onde se acoitam as feras,
estarás segura em entrar no coração da floresta, protegida
595 por um deus. E não é um deus qualquer: sou eu quem tem
na poderosa mão o ceptro do céu e lança os raios errantes.
Não me fujas ! ' (de facto, ela fugia) . E já deixara os pastos
do Lema e os campos do Lirceu plantados de árvores,
quando o deus, ocultando as terras até longe, cobrindo-as
600 de escura bruma, lhe travou a fuga e lhe roubou a honra.

Entretanto, Juno olhava do alto para o centro da Argólide.


Admirada por as nuvens esvoaçantes fazerem parecer ser
noite em plena luz do dia, percebeu que não eram de um rio,
nem que tinham sido emanadas pela humidade dos solos.
605 Olha à sua volta a ver onde parava o esposo, pois já sabia
das escapadelas do marido, tantas vezes ela o apanhara.
Não o achando no céu, 'Ou eu me engano muito, ou anda
a trair-me' , disse para consigo. Deslizando do cimo do éter,
aterrou nas terras e ordenou às névoas que se dissipassem.
610 Ora ele, pressentindo a chegada da esposa, transformara
já em esplendorosa vitela a figura da filha de Ínaco.
Até como vaca era formosa ! Embora a contra-gosto, a filha
de Saturno elogia o aspecto da vaca e inquire de quem é,
donde vem, de que manada (como se ignorasse a verdade).
615 Júpiter inventa que nascera da terra para que a origem
deixe de indagar; a filha de Saturno pede que lha ofereça.
Que haveria de fazer? Entregar o seu amor parecia cruel,
não dar seria suspeito; a vergonha persuade-o a fazê-lo,
disso dissuade-o o amor. O amor teria vencido a vergonha,
620 mas negar a ela, com quem partilha estirpe e leito, presente
Argo e lo L I V R O I 53

tão trivial - uma vaca -, levaria a suspeitar não ser vaca.


A rival foi-lhe dada; mas a deusa não pôs de parte o medo
todo. Continua a temer, angustiada, as traições de Júpiter,
até que a confia a Argo, o filho de Arestor, para a guardar.

625 ARGo tinha a cabeça inteiramente rodeada por cem olhos.


Estes tais olhos repousavam por turnos, dois de cada vez,
enquanto os restantes vigiavam e permaneciam de sentinela.
De qualquer modo que se pusesse, olhava sempre para lo,
e, mesmo de costas voltadas, tinha lo diante dos olhos.
6>o De dia, deixa-a pastar; com o sol afundado atrás da terra,
fecha-a e ata-lhe uma corda ao pescoço que tal não merecia.
Ela pasta a erva amargosa e as folhagens das árvores,
e, por leito, deita-se, a infeliz, na terra, que nem sempre
estava coberta de erva, e bebe água de rios lamacentos.
6>5 Ela bem queria estender, suplicante, os braços para Argo,
mas não tinha braços que pudesse para Argo estender;
quando tentava lamentar-se, da boca só saíam mugidos.
[Assustou-se com o som, aterrada com a própria voz.]

Viera, um dia, até às margens onde tanta vez costumara


640 folgar, as margens do Ínaco, quando vislumbrou na água
os insólitos chifres. Com o susto desata a fugir, espavorida.
As Náiades não sabiam, nem sequer sabia o próprio Ínaco,
quem era ela. Mas ela vai atrás do pai, vai atrás das irmãs,
e deixa que lhe toquem, e oferece-se para que a admirem.
645 O velho Ínaco colheu um punhado de erva e ofereceu-lho;
ela lambe as mãos e dá beijos às palmas das mãos do pai,
e não contém as lágrimas, e, tão-só saíssem as palavras,
imploraria ajuda, e diria o nome, e contaria a desventura.
Não palavras, mas letras, que traçou no pó com o casco,
650 fazem a triste revelação da transformação do seu corpo.
'Ai de mim ! ' exclama Ínaco, seu pai, abraçando os chifres
e o pescoço branco como a neve da bezerra, que gemia.
'Ai de mim ! ' repetia; 'Porventura, és tu a filha que eu
procurei pelo mundo inteiro? Menor seria a minha dor
65 5 não sendo achada que achada. Calas-te e não respondes
às minhas palavras; só dás suspiros lá do fundo do peito,
54 L I V RO I Argo e Io - Pã e Siringe

e tudo o que consegues quando falo é mugir em resposta.


E eu, sem nada saber, preparava-te tálamo e tochas nupciais,
esperando ter primeiro que tudo um genro, depois, netos.
660 Agora marido tê-lo-ás da manada, da manada teus filhos.
Nem me é permitido pôr termo ao sofrimento com a morte.
É bem nocivo ser deus: a porta da morte está trancada
para mim e prolonga o meu sofrer por toda a eternidade. '
Assim chorava, quando Argo, estrelado d e olhos, o afasta,
665 arrebata a filha ao pai, e leva-a para pastagens distantes.
Longe dali, instala-se no cimo altíssimo de um monte;
de lá, sentado, perscruta com a vista tudo à sua roda.

Ora, o regente dos deuses não consegue suportar mais


o atroz sofrimento da irmã de Foroneu. Convoca o filho,
670 que a cintilante Plêiade dera à luz, e ordena que mate Argo. [ J OJ

Rapidamente, ele coloca as asas nos pés, segura na mão


poderosa a vara sonífera e cobre com o chapéu o cabelo.
Quando tudo está pronto, o filho de Júpiter dá um salto
da cidadela do pai para as terras. Aqui, ele tira o chapéu,
675 põe de lado as asas e conserva apenas a vara. Usou-a
como um pastor, levando por campos ermos cabrinhas
que roubara no caminho, e toca a flauta feita de canas.
Fascinado pela insólita melodia, 'Tu aí, quem quer que sejas,
podes sentar-te nesta fraga comigo' , disse Argo, o vigilante
680 de Juno. 'Em nenhum outro local há erva mais nutritiva
para o gado, e vês que a sombra é ideal para os pastores. '
O neto d e Atlas sentou-se. Ocupou a s horas d o dia, que ia
passando, a cavaquear sobre muita coisa, e tenta vencer
os olhos que vigiavam lo tocando a flauta de canas unidas.
685 Aquele, todavia, debate-se e tenta derrotar o macio sono;
e embora a sonolência tome já parte dos olhos, outra parte
continua em vigília. A certa altura, pergunta como fora
a flauta inventada (pois a flauta fora inventada há pouco) .

ENTÃO o deus contou: 'Nas frias montanhas da Arcádia,


690 entre as Hamadríades do Nonácris, havia uma Náiade

10 Mercúrio, filho de Maia, uma das sete Plêiades.


Pã e Siringe - Argo e lo (cont.) L I V R O I 55

de fama imensa, a quem as ninfas chamavam Siringe.


Mais de uma vez escapara ela à perseguição dos sátiros
e à de todos os deuses que habitam na floresta sombria
e nos férteis campos. Venerava ela a deusa de Ortígia,
695 na devoção e na virgindade. Trajada à maneira de Diana,
a todos iludia; e podia passar pela filha de Latona, não fora
o arco desta ser de corno, não fora ser de ouro o daquela.
Mesmo assim, a todos iludia. Um dia, Pã, de cabeça cingida
de agulhas de pinheiro, avista-a a retornar do monte Liceu,
100 e disse tais palavras: " . . . " - Faltava agora relatar as palavras,
e contar como a ninfa, desprezando as preces, se pôs a fugir
por locais remotos até chegar ao curso tranquilo do arenoso
Ládon; e aqui, impedida pelas águas de prosseguir a fuga,
que implorou às suas irmãs do rio que a transfigurassem;
105 e como Pã, julgando que já tinha Siringe bem agarrada,
em vez do corpo da ninfa abraçou um canavial à beira-rio;
e que, enquanto aí suspira, o sopro vibrou dentro das canas
e produziu um ténue som, semelhante a um queixume;
e, encantado com a doçura dos sons e com esta nova arte,
110 que dissera: "Esta conversa contigo ficará sempre comigo" .
E assim, nas canas d e tamanhos diferentes, unidas entre si
por uma junção de cera, ele preservara o nome da menina.'

POIS IA o deus do Cilene contar estas coisas, quando notou


que todos os olhos tinham sucumbido e o sono os cobrira.
115 De imediato, pára de falar e reforça o torpor, tocando,
ao de leve, nos olhos adormecidos com a sua vara mágica.
Logo golpeia com a curva espada a cabeça cambaleante,
justamente onde ela se une ao pescoço, e atira-a a sangrar
da fraga abaixo, manchando de sangue o penhasco a pique.
no Jazes por terra, Argo. A luz que tinhas em tantos luminosos
olhos extinguiu-se, e uma só noite os teus cem olhos invade.
A filha de Saturno tira-lhos e coloca-os nas penas da sua ave, 11 1 i

enchendo-lhe a cauda de jóias, cintilantes como estrelas.

11 O pavão é a ave de Juno.


56 LIVRO 1 Júpiter e lo (cont.l - Faetonte

LOGO se inflamou de ira, e não perdeu tempo a descarregá-la:


m fez aparecer a horrífica Erínia diante do olhar e da mente
da rival da Argólide, e enterrou-lhe aguilhões invisíveis
no coração, e fê-la fugir sem descanso pelo mundo inteiro.
Tu ficaste para último nas suas imensas provações, ó Nilo.
Logo que ali chegou, ajoelhou-se na borda da margem;
130 dobrando o pescoço para trás, levantou a cabeça e ergueu
o rosto para os astros (mais do que isto não podia fazer),
e com gemidos e lágrimas e mugidos lancinantes, parecia
queixar-se a Júpiter e suplicar o fim dos seus tormentos.
Este abraçou o pescoço da esposa e pede-lhe que ponha
735 finalmente termo ao castigo. 'Não receies pelo futuro',
tranquilizou-a. 'Jamais ela será para ti motivo de dor. '
E ordena aos pântanos do Estígio que oiçam tais palavras.
Quando a deusa se acalmou, ela retoma o antigo aspecto
e torna-se no que antes fora: a pelagem vai-se do corpo,
140 os cornos encolhem, o globo ocular faz-se mais estreito,
o focinho reduz-se, regressam os ombros e as mãos,
os cascos somem-se, esvaindo-se cada um em cinco unhas.
Já não restam vestígios de vaca, senão a alvura do corpo.
Encantada por poder usar só dois pés, a ninfa levanta-se.
745 Receia falar, com medo de soltar mugidos qual bezerra,
e, timidamente, tenta de novo o uso interrompido da fala.

AGORA é deusa famosa, venerada pelo povo de linho vestido; "'1

agora, enfim, nasceu o seu filho Épafo, assim se crê, do sémen


do magno Júpiter, ele que pelas cidades fora possui templos
150 junto com sua mãe. Ora, da mesma idade e temperamento era
Faetonte, filho do Sol. Um dia, estava este com gabarolices,
dizendo-se superior àquele, soberbo por Febo ser seu pai.
O neto de Ínaco não tolerou mais. 'Louco ! ', diz, 'crês em tudo
o que diz tua mãe, estás inchado com a ideia de um pai falso ! '
755 Faetonte corou, e, cheio de vergonha, conteve a cólera.
Os insultos de Épafo levou-os ele até junto da mãe, Clímene.

12 Ísis.
Faetonte L I V R O I 57

'Para maior mágoa tua', disse então, 'eu, aquele insubmisso,


aquele fogoso, fiquei mudo. Estas injúrias enxovalham-nos
por poderem ter sido ditas e não poderem ter sido refutadas.
160 Quanto a ti, se é certo que nasci de estirpe celeste, dá-me
um sinal de tão grande origem, reclama para mim o céu.'

Assim diz, e lançou os braços em torno do pescoço da mãe,


e pela sua vida e a de Mérops, e pelas bodas de suas irmãs, l1 3 1

suplicou que lbe desse uma prova do seu verdadeiro pai.


765 Levada não se sabe bem se mais pelas preces de Faetonte,
se pela fúria pela acusação contra ela, Clímene estendeu
os braços ambos para o céu. Contemplando a luz do sol,
diz: 'Pelo extraordinário brilho daqueles raios faiscantes,
que nos escuta e nos observa, meu filho, eu te juro
no que és filbo deste Sol que contemplas, deste que regula
o mundo. Se o que digo é falso, que ele me negue voltar
a vê-lo, que seja esta a derradeira luz para os meus olhos.
Nem será para ti grande feito conhecer a casa de teu pai:
o local de onde ele nasce confina com esta nossa terra.
m Se a tua mente te leva a isso, vai e pergunta a ele próprio. '

Após tais palavras d a mãe, Faetonte põe-se d e imediato


a saltar de alegria, imaginando já no seu espírito o céu.
Passa os seus Etíopes e os Indianos situados sob os fogos
siderais, e chega rapidamente ao local do nascer de seu pai.

13 As Helíades.
LIVRO II

O palácio do Sol erguia-se bem alto, de gigantescas colunas,


radioso pelo cintilante ouro e o piropo que imitava o fogo. rn

O seu frontão estava todo revestido de rebrilhante marfim,


e a sua enorme porta dupla irradiava uma luz de prata.
Mas a arte superava o material. Pois nessa porta Múlciber
cinzelara os mares que circundam as terras lá no meio deles,
e o disco terrestre, e o céu, que sobre o disco está suspenso.
As águas têm seus deuses azulados: o melodioso Tritão,
o mutável Proteu, Egéon, que com os próprios braços
10 apertava os dorsos monstruosos das baleias,
e Dóris com suas filhas, das quais umas se vêem a nadar,
outras sentadas nas rochas a secar os cabelos verdes,
uma a cavalgar um peixe. Não têm todas as mesmas feições,
mas não são totalmente diferentes, como é próprio de irmãs.
15 A terra tem homens e cidades, e bosques e animais bravios,
e rios e ninfas, e todas as demais divindades dos campos.
Sobre tudo isto, foi posta a imagem de um céu rebrilhante:
seis constelações na metade da direita e seis na da esquerda.

Logo que o filho de Clímene, subindo pela íngreme vereda,


20 chegou à mansão do pai, ainda duvidoso para si, e entrou,
de imediato se encaminha para a presença paterna
e pára ao longe - é que não suporta a luz de mais perto.
Envolto num manto de púrpura, estava Febo sentado
num trono resplandecente de rebrilhantes esmeraldas.
25 À direita e à esquerda, postavam-se o Dia e o Mês e o Ano,
e os Séculos, e as Horas dispostas a distância sempre igual.
A Primavera ali estava, cingida de uma coroa de flores;
estava o Verão, desnudo, trazendo grinaldas de espigas;

1 O piropo era uma liga de bronze e ouro; a palavra está relacionada com o termo grego pyr,

que significa fogo.


Faetonte L I V R O I I 59

estavam também o Outono, todo sujo de uvas pisadas,


30 e o gélido Inverno, desgrenhado, os cabelos brancos.
Do meio do aposento, com os olhos que tudo observam,
o Sol viu o jovem aterrado pela estranheza das coisas, e diz:
'Qual a razão da tua vinda? Que buscas tu nesta cidadela,
ó Faetonte, filho que jamais o teu pai poderá repudiar?'
35 Aquele respondeu: ' Ó luz comum do mundo imenso,
Febo, meu pai, se me concedes o uso deste nome
e se Clímene não oculta a sua culpa sob uma história falsa,
dá provas da minha origem, pelas quais se saiba que sou,
de verdade, teu filho. Arranca-me esta dúvida do espírito. '
40 Tal dissera. Então, o pai põe d e lado o s raios que faiscavam
a toda a volta da cabeça, e diz-lhe que se chegue mais perto.
Abraçando-o, assim disse: 'Tu não mereces que eu negue
seres meu filho; Climene falou verdade sobre a tua origem.
E para não teres dúvidas, pede o que quiseres e tê-lo-ás:
45 eu to darei. Que o pântano pelo qual devem os deuses jurar,
desconhecido de meus olhos, testemunhe esta promessa.'

Ainda mal acabara de falar, eis que ele pede o carro paterno
e o direito de conduzir por um dia os cavalos de pés alados.
Arrepende-se o pai da jura feita ! Três e quatro vezes abanou
50 a resplandecente cabeça e disse: 'As tuas palavras revelaram
quão temerárias as minhas foram. Prouvera que eu pudesse
não cumprir o prometido ! Só isto te recusaria, filho, confesso.
Mas posso, ao menos, dissuadir-te. O que queres é perigoso.
Grandes coisas pedes tu, Faetonte, coisas que não convêm
55 nem a estas tuas forças, nem a essa tua idade de jovenzito.
És de condição mortal: não é de um mortal o que desejas.
Sem saber, aspiras a algo superior ao que é lícito conceder
até aos próprios deuses. Mesmo que cada um possa fazer
o que lhe apraz, nenhum deles é capaz de tomar o lugar
60 no carro de fogo, senão eu. Nem o senhor do vasto Olimpo,
que dispara desapiedados raios com a terrível mão direita,
conduz tal carro; e que coisa temos maior que Júpiter?

' Íngreme é o início do caminho: por ele a custo logram trepar


os cavalos frescos, logo pela manhã. A parte mais alta está
65 a meio do céu, donde, amiúde, olhar para o mar e as terras
60 L I V R O II Faetonte

até a mim faz medo, e o coração palpita de terror e pânico.


A última parte é uma descida a pique e precisa de mão firme.
Nesse ponto, até a própria Tétis, que me acolhe nas ondas
lá debaixo ao final, teme sempre que me despenhe de cabeça.
10 Ainda para mais, o céu é tomado por uma rotação constante,
arrasta as altas estrelas e fá-las girar em estonteante rodopio.
Eu luto contra ele, cujo ímpeto a todos vence menos a mim,
e corro em sentido contrário ao rápido movimento giratório.
Imagina que te dei o carro: que farás? Lograrias avançar
15 contra a rotação dos pólos, sem que a velocidade do seu eixo
te lance fora? Talvez no teu espírito imagines acolá bosques
sagrados e cidades de deuses e santuários ricos de oferendas.
Ora, o caminho é através de emboscadas e imagens de feras,
e ainda que mantenhas o curso e nenhum engano te desvie,
80 passarás por entre os chifres do Touro, que te enfrentará,
pelo meio do arco do Hemónio e as fauces do selvático Leão,
através do Escorpião, dobrando cruéis pinças em longo arco,
e do Caranguejo, que as pinças dobra de modo distinto.
Nem é para ti fácil controlar os quadrúpedes, fogosos
85 pelas chamas que trazem no peito e que sopram da boca
e das narinas; a custo me obedecem, quando o seu espírito
indómito se abrasa e o pescoço se revolta contra as rédeas.

Mas para que eu não seja o autor de presente tão funesto,


tem cuidado, filho, enquanto podes, corrige o teu pedido.
90 Pois é certo que pedes provas seguras para acreditares
que nasceste do meu sangue? O meu receio é a prova segura
que te dou, a aflição de pai prova que sou teu pai. Olha, olha
para o meu rosto ! Quem dera que pudesses enfiar os olhos
no meu peito e surpreender lá dentro as angústias paternais !
95 Enfim, olha à tua volta, para tudo o que o rico mundo possui,
e de entre tantos e tão grandes bens do céu, da terra, do mar,
pede um, um qualquer: recusa alguma terás de suportar.
Só isto suplico que não peças, pois, a bem dizer, é um castigo,
não uma honra: pedes um castigo, Faetonte, como presente.
100 Porque me rodeias o pescoço com ternos braços, ó insensato?
Não tenhas dúvidas, tu terás (jurei pelas ondas do Estígio)
o que quer que escolheres, mas faz uma escolha mais sábia. '
Faetonte L I V RO I I 61

Terminara as advertências. Ele, porém, contra tais palavras


se revolta e teima no seu propósito: arde de desejo do carro.
105 Ora, o progenitor foi protelando enquanto pôde, mas acaba
por levar o jovem junto do alto carro, presente de Vulcano.
O seu eixo era todo de ouro, de ouro o varal, de ouro o aro
do rebordo das rodas, de prata a fileira dos seus raios.
Ao longo do jugo, topázios e jóias em filas alinhadas
1 10 reflectiam os raios de Febo, devolvendo uma luz cintilante.
E enquanto o audacioso Faetonte tudo admira, e examina
a obra de arte, eis que a que vigia do nascente luminoso,
a Aurora, abriu as purpúreas portas e o átrio cheio de rosas.
As estrelas fogem dali e Lúcifer fecha a retaguarda delas,
m pois é ele o último a abandonar o seu posto no céu.
Quando o vê a demandar as terras, o mundo a tingir-se
de carmim, desaparecerem os cornos da lua minguante,
o Titã ordena às Horas velozes que atrelem os cavalos.
As deusas cumprem prontamente as instruções: trazem
120 dos altos estábulos os corcéis cuspindo fogo, saciados
do suco de ambrósia, e colocam-lhes os tilintantes arreios.
Então, o pai untou o rosto de seu filho com um unguento
divino para o tornar capaz de resistir às vorazes chamas,
e sobre os cabelos pôs-lhe os raios. De novo, com suspiros
125 do seu coração em ânsia que pressagiavam desgraça, disse:

'Se és capaz, ao menos, de seguir os conselhos de teu pai,


poupa o aguilhão, rapaz, maneja antes com vigor as rédeas.
Eles já galopam por si só; o trabalhoso é conter o seu ímpeto.
Procura não atalhar a direito através das cinco zonas do céu.
130 Há um caminho que corta obliquamente, numa larga curva,
confinado entre os limites de três zonas, caminho que foge
ao pólo Austral, bem como ao Arcto junto com os Aquilões.
Vai por aqui: verás claramente os sulcos das minhas rodas.
E para que a terra e o céu suportem um calor idêntico,
135 não conduzas o carro para baixo nem o lances nas alturas
do éter. Se fores muito alto, queimarás as moradas celestes,
se muito baixo, as terras; mais seguro é ires a meia altura.
Que as rodas não virem à direita, para a enroscada Serpente,
nem te levem à esquerda, na direcção do Altar, abaixo dela:
62 L I V R O I I .faetonte

140 mantém o teu rumo entre as duas. O resto confio à Fortuna,


que espero que te ajude e olhe por ti melhor que tu próprio.
Enquanto falo, a húmida noite já tocou a meta colocada
no litoral da Hespéria. Não nos é permitido adiar mais.
É a nossa vez: as trevas estão em fuga, refulge a Aurora.
145 Agarra bem nas rédeas, ou, se o teu coração pode mudar
ainda, serve-te dos meus conselhos, não do meu carro;
[enquanto podes e ainda estás em terreno sólido,]
e enquanto ainda não pisas, louco, o carro, desejo insensato,
deixa-me dar a luz às terras e, em segurança, contempla-a. '

150 Faetonte salta para o leve carro com o seu corpo juvenil.
Nele fica de pé, rejubilando por poder agarrar as rédeas
que lhe são dadas; e lá de cima agradece ao pai contrariado.
Entretanto, os cavalos alados do Sol, Pírois e Eoo e Éton
e o quarto, Flégon, enchem os ares com um relinchar
155 flamejante e golpeiam com os cascos as cancelas.
Quando Tétis, que ignorava o destino do neto, as abriu
e aos corcéis deu acesso ao imenso céu, estes lançam-se
cá fora. Movendo as patas pelos ares, retalham as nuvens
que lhes obstruem a passagem e, subindo pelas asas,
160 ultrapassam os Euros, que nascem na mesma região.
Mas a carga era leve, não aquela que os cavalos do Sol
pudessem reconhecer, e o jugo não tinha o peso habitual.
Tal como baloiçam as curvas naus sem o devido lastro
e o mar as arrasta, instáveis, devido à leveza excessiva,
165 assim o carro, esvaziado do peso do costume, dá saltos
no ar e é sacudido violentamente, como se estivesse vazio.
Mal disto se aperceberam, os quatro cavalos precipitam-se
a deixar a pista sempre trilhada e já não correm como antes.
Ele assusta-se. Já não sabe como guiar as rédeas confiadas,
110 nem onde está o caminho, nem, se sabia, lograva controlá-los.

Então, pela primeira vez, os raios aqueceram os gélidos Triões, [21

que, em vão, tentaram mergulhar no mar para eles proibido,

2 Ursa Maior.
Faetonte L I V R O I I 63

e escaldaram a Serpente, que está próxima do pólo glacial,


antes entorpecida pelo frio, incapaz de meter medo a alguém,
115 e que, com aquela fervura, foi tomada de uma cólera inédita.
Dizem que também tu fugiste em polvorosa, Bootes,
embora avançasses vagaroso e o teu carro te estorvasse.
Quando lá dos píncaros do céu o pobre Faetonte contemplou
as terras que se estendiam ao longe, cada vez bem mais longe,
180 ficou lívido. De súbito, os joelhos desatam a tremer de medo,
e, no meio de tanta luz, trevas surgiram-lhe diante dos olhos.
E agora, já preferia jamais ter tocado nos cavalos de seu pai,
já se arrepende de saber a sua origem e ter vencido insistindo.
Já desejando ser dito filho de Mérops, é arrastado como a nau
185 empurrada pelo precipitoso Bóreas, a quem o piloto entregou
os comandos vencidos, abandonando-a aos deuses e às preces.
Que faria? Imensa extensão de céu já deixara atrás das costas,
e diante dos olhos faltava ainda mais. Mede mentalmente
ambos os espaços, e ora olha à frente o poente, que não era
190 seu destino alcançar, ora olha para trás, para o nascente.
Sem saber que fazer, fica paralisado, e nem afrouxa os freios,
nem é capaz de os puxar, nem sabe já os nomes dos cavalos.
No céu pintalgado, vê, aterrado, espalhadas por toda a parte,
estranhíssimas coisas e imagens de animais monstruosos.
195 Ora, há um local onde o Escorpião encurva as suas pinças
em arcos gémeos, e da cauda até aos braços, flectidos ambos,
estende o seu corpo ao longo do espaço de duas constelações.
Quando o menino o viu, todo suado de um veneno negro,
ameaçando infligir ferimentos com o seu recurvo ferrão,
200 deixou cair as rédeas, de cabeça perdida, gelado de terror.

Quando, tombadas, tocaram ao de leve a garupa dos cavalos,


estes saem do seu trajecto, e, sem ninguém a travá-los, correm
à toa pelos ares de regiões ignoras. Por onde o ímpeto os leva,
por aí se atiram descontrolados, chocando contra estrelas fixas
205 na abóbada celeste, arrastando o carro por locais sem estrada.
E ora se precipitam para o alto, ora se lançam por declives
e caminhos a pique para sítios demasiado perto das terras.
A Lua fica pasmada por os cavalos do seu irmão galoparem
por debaixo dos seus, e as nuvens fumegam, calcinadas.
64 L I V R O I I Faetonte

210 A terra, nos seus pontos mais altos, é tomada pelo fogo,
e, perdendo a humidade, seca e fende-se, abrindo gretas.
Os prados embranquecem, a árvore arde com suas ramas,
searas ressequidas oferecem matéria para a própria ruína.

Isto são queixumes ínfimos. Sucumbem grandes cidades


215 com suas muralhas e os incêndios reduzem a cinzas regiões
inteiras com suas gentes. Ardem bosques com os montes,
arde o Atos e o Tauro na Cilícia, e o Tmolo e o Eta,
e o Ida, ao tempo ressequido, antes riquíssimo em nascentes,
e o Hélicon das Virgens, e o Hemo antes de Eagro aí reinar.
220 Arde imensamente o Etna, com o seu fogo assim duplicado,
e o Pamaso de duplo cume, e o Érix, e o Cinto e o Ótris;
arde o Ródope, finalmente despido de neve, e o Mimas,
e o Díndimo, e o Mícale, e o Citéron, nascido para o culto.
À Cítia nem o seu frio de algo lhe serve; arde o Cáucaso
225 e o Ossa junto com o Pindo, e o Olimpo, maior que ambos,
[e os aéreos Alpes, e o Apenino coberto de nuvens] .

Então, na verdade, por toda a parte vê Faetonte o mundo


inteiro num mar de fogo. Já não aguenta tamanho calor.
Inala umas baforadas de ar a ferver, como se provindo
230 do fundo de uma fornalha, e sente o carro incandescente.
Já nem cinzas é capaz de aguentar ou jactos de fagulhas,
e de todos os lados fica envolto por um fumo abrasador.
Imerso em névoas da cor da pez, onde está ou por onde ir
não sabe, e é arrastado ao capricho dos cavalos voadores.
235 Foi então que se crê que os povos da Etiópia assumiram
a cor negra, puxado o sangue para a superfície dos corpos;
também então a Líbia se fez árida, o calor evaporando
a humidade. Então as ninfas, soltando os cabelos,
choraram as fontes e os lagos: a Beócia indaga por Dirce,
240 Argos procura Amimone, Éfira busca as águas de Pirene.
Nem os rios a quem coube em sorte margens bem afastadas
ficam a salvo: o Tánais fumega no meio da sua corrente,
tal como o velho Peneu, e o Caíco no reino de Teutrante,
e o veloz Ismeno, mais o Erimanto nas terras de Fegeu,
245 o Xanto, que viria a arder segunda vez, e o loiro Licormas,
Faetonte L I V R O I I 65

e o Meandro, que se diverte lá nas suas sinuosas águas,


e o Melas da Migdónia, e o Eurotas junto ao cabo Ténaro.
Ardeu também o Eufrates da Babilónia, ardeu o Orontes,
e o rápido Termodonte, e o Ganges, o Fásis e o Ístro.
250 Ferve o Alfeu, inflamam-se as margens do Esperqueu,
e o ouro que a corrente do Tejo transporta flui liquefeito
pelas chamas. As aves aquáticas, que nas costas da Meónia
se apinhavam com seu canto, assaram no meio do Caístro.
O Nilo foge aterrado para os confins do mundo e ocultou
255 a sua cabeça (que ainda hoje está escondida) ; os sete braços
da embocadura ficam secos, poeirentos, sete vales sem água.
Igual destino faz secar os do Ísmaro, o Hebro e o Estrímon,
e os rios da Hespéria: o Reno, o Ródano, e bem assim o Pó
e o Tibre, a quem o poder sobre o mundo fora prometido.

260 Por todo o lado o solo se racha, e pelas fendas penetra a luz
até ao Tártaro, apavorando o rei lá debaixo e a sua esposa.
O mar encolhe, e o que em tempos foram extensões de água,
agora é uma planície de areia seca; os montes, que o fundo
mar cobria, emergem e acrescentam-se às Cíclades dispersas.
265 Os peixes buscam o fundo, os golfinhos já não ousam saltar
fora de água e curvar os corpos no ar como era seu hábito.
Corpos de focas flutuam sem vida, viradas de costas,
sobre a superfície do fundo. Consta que até Nereu e Dóris
com as filhas buscaram refúgio nas grutas, agora quentes.
210 Três vezes Neptuno se atreveu a tirar fora de água os braços
e a carrancuda face, três vezes não aguentou o ar em chamas.

A alma Terra, por seu turno, rodeada como estava pelo mar,
entre as águas oceânicas e as fontes que, por toda a parte,
encolhidas, buscam refúgio nas escuras entranhas da mãe,
215 ergueu a custo, árida, até ao pescoço, o rosto sufocado;
e pondo a mão à frente da testa, com um enorme safanão
tudo fez estremecer. Instalando-se um pouco mais baixo
do que é costume, com voz alquebrada, assim falou:
'Se isto é que queres e mereci, que aguardam os teus raios,
2so ó deus supremo? Se vou perecer pela violência do fogo,
dá-me perecer pelo teu fogo para a desgraça ser mais leve,
66 L I V R O II Faetonte

sendo tu o autor. A custo abro a boca para estas palavras. '


(Uma baforada d e calor sufocara-a.) 'Vê o cabelo chamuscado,
olha para tanta cinza sobre meus olhos, tanta sobre o rosto !
2a5 Esta é a paga que me dás, esta a recompensa pela fertilidade
e os meus serviços, por eu suportar as feridas do arado
adunco e das enxadas, e por me afadigar o ano inteiro
por prover o gado de folhagens e a raça humana de cereais,
alimento pacífico, e até por vos prover, a vós, de incenso?
290 Mas supõe que mereci este fim: que mal fizeram as ondas,
que mal teu irmão? Porque é que os mares que lhe couberam oi

em sorte mirraram, afastando-se para mais longe do céu?


Pois se consideração nem por teu irmão nem por mim te toca,
ao menos condói-te do teu próprio céu ! Olha à tua volta:
295 ambos os pólos fumegam ! E se o fogo os danificar seriamente,
o teu palácio desmoronar-se-á. Olha, até Atlas está bem aflito,
e a custo sustém nos ombros o eixo incandescente do céu.
Se os mares, se as terras, se o palácio celeste perecerem,
voltamos à amálgama do Caos primordial. Salva das chamas
300 o que ainda restar, se ainda restar algo, e olha pelo universo.'
Assim falara a Terra (já não conseguia mais aguentar
o calor, nem dizer nada mais). E enfiou de volta a cabeça
em si mesma e nos antros mais próximos dos defuntos.

Então, o pai omnipotente chama os deuses para testemunhar


305 (mesmo aquele que dera o carro) que tudo pereceria num fim
atroz se não levasse ajuda. Depois, sobe à cidadela lá no alto,
de onde costuma estender as nuvens sobre as vastas terras,
de onde faz avançar os trovões, e brande e dispara os raios.
Mas, nessa ocasião, nem teve nuvens que pudesse estender
3JO sobre as terras, nem chuvas que fizesse lá do céu precipitar.
Traveja; e, balançando um raio junto à orelha direita,
dispara-o contra o cocheiro, cuspindo-o, a um tempo, da vida
e do carro. E, assim, com o seu cruel fogo extinguiu o fogo.
Os cavalos ficam atarantados. Saltando em sentido contrário,
3J5 arrancam o pescoço ao jugo, rebentam as rédeas e fogem.

' Neptuno.
Faetonte - As Helíades L I V R O I I 67

Aqui jazem os freios, ali o eixo arrancado ao varal, deste lado


os raios das rodas espatifadas, e por uma extensão enorme
ficam por ali espalhados os restos do carro estilhaçado.

Então, Faetonte, devorando-lhe as chamas os cabelos


320 avermelhados, cai rodopiando a pique, e deixa pelos ares
um longo rasto, tal como por vezes uma estrela pode
parecer estar a cair lá do céu limpo, embora não caia.
Recebe-o o enormíssimo Erídano noutra parte do mundo,
bem longe de sua pátria, e banha-lhe o rosto em labaredas.
325 As Náiades da Hespéria sepultam o corpo, ainda fumegante
da chama de três pontas, e inscrevem na lápide estes versos:
AQUI•JAZ• FAETONTE,•COCHEIRO•OO•CARRO•DE•SEU•PAI;
SE•NÃO•GUIOU•BEM,•CAIU,•PORÉM,•EM•GRANDIOSA•EMPRESA.

Ora o pai, lastimoso de dor e sofrimento, cobrira e ocultara


no o rosto, e, se podemos acreditar, todo aquele dia, diz-se,
passou sem sol: a luz foi proporcionada pelos incêndios
- de alguma utilidade foi, ao menos, tão grande catástrofe.
Por seu turno, Clímene, após dizer tudo o que se deve dizer
perante uma tão grande desgraça, desvairada de desgosto,
m dilacerando o peito, pesquisou pelo mundo inteiro,
em busca, primeiro, do corpo sem vida, depois, dos ossos.
Por fim, achou as ossadas, sepultadas numa costa longínqua.
Prostrando-se sobre o túmulo, alagou de lágrimas o nome
que lera no mármore e amornou-o com o peito descoberto.

340 As IIEÚADES não o choraram menos. Ofertam suas lágrimas,


tributo vão para o defunto; fustigando o peito com as mãos,
dia e noite chamam por Faetonte, que nunca mais ouviria
as pungentes lamúrias, e jazem prostradas diante do túmulo.
Quatro vezes enchera a lua o seu globo, unindo os cornos.
345 Elas, como era seu hábito (pois a prática tornara-se um hábito) ,
entregavam-se a o pranto. U m dia, uma delas, Fetusa, a irmã
mais velha, ao pretender prostrar-se sobre a terra, queixou-se
de que os pés estavam rígidos. Procurando abeirar-se dela,
a radiosa Lampécia ficou presa ao chão por uma súbita raiz.
350 Uma terceira, intentando arrancar os cabelos às mãos-cheias,
68 L 1 VRO I 1 As Helíades - Cicno - A dor do Sol

arrancou folhas. Esta lamenta-se de um tronco lhe envolver


as pernas, aquela de que os braços se tornaram longos ramos.
E enquanto se pasmam, uma casca rodeia-lhes as virilhas;
gradualmente, ela cobre o ventre, e o peito, e os ombros,
355 e as mãos, e de fora ficam só as bocas a gritar pela mãe.
Mas que faria a mãe, senão correr de um lado para o outro,
aonde o impulso a arrasta, trocando beijos enquanto pôde?
Não é tudo: ao tentar puxar os corpos de dentro dos troncos,
com suas mãos arranca tenros ramos. E dali, por seu turno,
360 começam a jorrar gotas de sangue, como se de um ferimento.
'Poupa-me, mãe, imploro ! ', berram todas as que ficam feridas,
'Poupa-me, imploro ! É o meu corpo que dilaceras na árvore !
E agora, adeus ! ' E a casca cobriu as derradeiras palavras.
Depois, deslizam lágrimas; e ao pingarem dos novos ramos,
365 endurecem com o sol: é o âmbar, que o cristalino rio recolhe
e transporta para as jovens esposas do Lácio admirarem.

ESTE prodígio presenciou Cicno, um filho de Esténelo.


A ti estava unido por parentesco, Faetonte, do lado da mãe,
mas mais ainda pela afeição. Abandonando o poder régio
310 (pois reinara sobre o povo e as grandes cidades da Ligúria) ,
enchia ele de lamentos as verdejantes margens, a correnteza
do Erídano e a floresta aumentada com aquelas irmãs,
quando, um dia, a voz do homem fica estridente, os cabelos
alvas plumas dissimulam, o pescoço estica-se para longe
375 do peito, uma membrana une os dedos, avermelhados,
asas tapam os flancos, a boca passa a ter um bico rombo.
[•J
Cicno torna-se ave nova; e não se fia no céu ou em Júpiter,
pois estava lembrado do fogo que ele lançara injustamente.
Demanda os charcos e os amplos lagos, e, odiando o fogo,
3so escolhe os rios para habitar, que são o oposto das chamas.

ENTRETANTO, o pai de Faetonte, esquálido, despojado


do seu próprio resplendor, tal como se costuma mostrar
quando se eclipsa, abomina a luz, e a si mesmo, e o dia,

4 O cisne.
A dor do Sol - Júpiter e Calisto L I V R O I I 69

[e abandona-se à mágoa, e à mágoa acrescenta a cólera] ,


385 e recusa servir o mundo. 'Desde o princípio dos tempos,
a minha sina tem sido não ter descanso. Basta ! Estou farto
de trabalhar sem parar, de canseiras sem recompensa.
Que outro qualquer conduza o carro que transporta a luz.
Se não há alguém, se os deuses assumirem todos não serem
390 capazes, que o guie ele: assim, experimentando as rédeas,
por uma vez deporá os raios que despojam os pais de filhos.
Logo saberá, comprovada a força dos corcéis de pés de fogo,
que ele não merecia morrer por não lograr dirigi-los bem.'
Tais palavras dizia o Sol. À sua volta, os deuses imploram
395 todos, de voz suplicante, que não quisesse lançar o mundo
nas trevas. Até Júpiter se justifica por ter disparado o raio,
e às preces junta mesmo ameaças, à boa maneira de um rei.
Febo reagrupa os cavalos fora de si, ainda apavorados,
em pânico, e na sua dor aguilhoa e chicoteia-os cruelmente.
400 [Enfurece-se e repreende-os, imputando-lhes a morte do filho.]

O PAI omnipotente percorre as enormes muralhas do céu


e examina-as, não vá alguma parte, danificada pela violência
do fogo, vir a ruir. Vendo tudo firme, com a solidez habitual,
inspecciona as terras e os penosos trabalhos dos homens.
405 Preocupou-se, porém, mais que tudo, com a sua Arcádia.
Restabelece nascentes e os rios, que ainda não se atreviam
a correr, devolve vegetação ao solo, folhagens às árvores,
dá instruções às florestas devastadas para reverdecerem.

Ao ir e vir com frequência, fica fascinado com uma jovem


410 do Nonácris: uma chama inflama-se e abrasa-lhe os ossos. BJ

Ela não era das que passam o dia a cardar e a amaciar a lã,
nem a pentear o cabelo de modos vários. Mal uma fíbula
segurava a veste e uma alva fita os cabelos em desalinho,
e ora tomava na mão o dardo polido, ora agarrava no arco,
4 15 era um soldado de Febe; e jamais outra entrou no Ménalo
mais querida à Trivia. Mas boas graças é coisa efémera.

' Calisto.
70 L I V RO I I Júpiter e Calisto

O sol, lá no alto, estava a mais de metade do seu trajecto,


quando ela entra num bosque que jamais geração alguma
havia cortado. Aqui tira do ombro a aljava, afrouxa a corda
420 do flexível arco, e estende-se num prado que a erva cobria,
carregando a aljava pintada com a cabeça nela apoiada.
Quando Júpiter a viu assim, cansada e indefesa, exclamou:
'Desta escapadela, ao menos, a minha esposa nada saberá.
E se souber, vale a pena, oh ! pois vale ! , ouvir impropérios ! '
425 De imediato, disfarça-se com a aparência e o trajar de Diana,
e diz: ' Ó menina, das minhas companheiras a mais querida,
em que montes foste caçar? ' A jovem levanta-se do relvado,
'Salve, deusa, tu que, no meu pensar, mesmo se ele próprio
me escuta, és superior a Júpiter', respondeu. Ele ouve e ri-se,
430 e diverte-se por ser preferido a si próprio; e trocam beijos
de forma imoderada, não como uma virgem deve beijar.
Preparava-se ela para contar em que floresta fora à caça,
já ele a imobiliza abraçando-a, e, em pleno crime, se revela.
Ela, é certo, resiste, ao menos tanto quanto pode uma mulher
435 (queria que a visses, filha de Saturno: serias mais tolerante),
ela, é certo, luta; mas a quem poderia uma menina vencer,
quem venceria Júpiter? Triunfante, Júpiter regressa às alturas
do céu; quanto à jovem, passa a odiar o bosque, estas árvores
que sabem do sucedido. Ao partir, quase se olvida de pegar
440 na aljava com as flechas e no arco, que pendurara num ramo.

Eis que um dia Dictina, acompanhada do séquito, marchava t•1

pelo alto Ménalo, impante da matança de animais, quando


a avista, e, ao vê-la, chama por ela. Ao ouvir chamar, ela foge:
é que, a princípio, receia que seja Júpiter que nela se disfarça.
445 Mas depois, quando viu aproximarem-se também as ninfas,
percebeu que não era um logro e juntou-se ao grupo delas.
Oh ! como é tão difícil não denunciar no rosto a culpa !
A custo ergue os olhos do chão. Nem, como fora seu hábito,
se põe ao lado da deusa, nem vai à cabeça do cortejo todo:
450 avança em silêncio, e corando dá sinal da injúria à sua honra.

6 Ou seja, Diana.
Júpiter e Calisto LIVRO II 71

E não fosse ser virgem, Diana poderia ter-se apercebido


por mil indícios do delito (as ninfas, diz-se, aperceberam-se) .

Cresciam os cornos da lua, fechando o disco pela nona vez,


quando a deusa, exausta pela caça e pelas chamas do irmão, 171

455 deparou com um arvoredo fresquíssimo, de onde um regato


corria, deslizando sussurrante, revolvendo e polindo a areia.
Logo louvou o local, e com o pé tocou a superfície das águas.
Louvando-as também, diz: 'Não há ninguém por perto a ver;
banhemo-nos, mergulhando o corpo desnudado na água. '
460 A jovem da Parrásia corou. Todas despem os vestidos,
só ela intenta protelar. Como hesitasse, tiram-lhe a roupa;
e, ao tirá-la, expõem o delito juntamente com o corpo nu.
Aturdida e sem. fala, tenta esconder o ventre com as mãos;
gritou-lhe a Cíntia: 'Vai-te embora, para longe, não poluas
465 esta fonte sagrada ! ', e ordena que abandone o seu séquito.

Já há muito que a esposa do magno Tonante de tudo sabia;


adiara, porém, a atroz punição para uma ocasião oportuna.
Agora não havia razão para esperar mais: o menino, Árcade
(e foi isto que mais magoou Juno) , já a rival dera à luz.
410 Logo que voltou para aqui os seus olhos e a cruel atenção,
'Só faltava mais esta, ó adúltera,' exclamou, 'que ficasses
grávida e, ao dares à luz, tal ultraje se tornasse conhecido,
dando assim provas da conduta desonrosa do meu Júpiter.
Mas não ficarás sem castigo ! Não ! Eu roubar-te-ei a beleza
475 que te encanta e que seduziu o meu marido, ó metediça ! '
Assim falou; e encarando-a, puxou-a pelos cabelos da testa,
atirou-a ao chão, de bruços. Ela estendia os braços em súplica;
porém, pelos braços começam a eriçarem-se negros pêlos,
as mãos a encurvarem-se, alongarem-se em garras recurvas
4so e a servirem de patas, e a boca, em tempos tão elogiada
por Júpiter, a transfigurar-se em disforme e largo focinho.
E para que com preces e súplicas a ninguém comovesse,
rouba-lhe a faculdade de falar: só uma voz enraivecida

7 Apolo, ou seja, o sol.


72 L I V R O I I Júpiter e Calisto

e ameaçadora, que inspira terror, sai da garganta rouca.


485 Embora tornada ursa, conserva a antiga mente humana,
e dá provas do seu sofrer com incessantes urros; e ergue
as mãos, o que quer que sejam, para os céus e as estrelas,
sentindo, embora não consiga dizer, que Júpiter era ingrato.
Ah ! tanta vez, não ousando repousar na solidão da floresta,
490 não vagueou ela diante da casa e nos campos outrora seus !
Ah ! tanta vez, perseguida entre fragas pelo ladrar dos cães,
a caçadora não fugiu espavorida com medo dos caçadores !
Muitas vezes se escondeu ao ver feras, esquecida do que era,
e a ursa se arrepiou de horror ao avistar nos montes ursos,
495 e se apavorou com os lobos, embora seu pai fosse um deles. rs1

E eis que um dia chega o filho, Árcade, sem sab.er da sorte


da mãe, a filha de Licáon, já com quase quinze anos de idade.
Perseguia animais selvagens, escolhia as clareiras propícias,
e rodeava a floresta do Erimanto com redes entrançadas,
500 quando esbarra com a sua mãe. Ao ver Á rcade, ela pára,
como se o reconhecesse. Ele, por seu turno, recua e foge.
Na sua ignorância, apavora-se com o olhar dela, imóvel,
fixado nele sem cessar; e quando ela fez sinal de se abeirar,
apronta-se a trespassar-lhe o peito com mortífero dardo.
505 Mas o Omnipotente não deixou, tirando dali, a um tempo,
o delito e eles: levados pelo vazio dos ares no vento alado,
dispô-los no firmamento e fê-los duas constelações vizinhas. 191

Juno inchou de cólera quando a rival começou a cintilar


entre as estrelas. Desceu aos mares, até junto da alva Tétis
510 e do Oceano idoso, que amiúde tanto respeito inspiravam
aos deuses. Ao indagarem a razão da vinda, assim começou:
'Perguntais por que razão eu, a rainha dos deuses, até aqui
da casa celeste vim? Porque outra está no céu no meu lugar!
Minto se, quando a noite mergulhar na escuridão o mundo,
515 não virdes as estrelas que receberam há pouco as honras
do cimo do céu, golpe para mim , ali, onde o último círculo,

8 Licáon, que se transformara em lobo.


9 Trata-se da Ursa Maior e da Ursa Menor.
Calisto - O corvo - Apolo e Corónis LIVRO II 73

o mais curto em extensão, rodeia a extremidade do eixo polar.


E, de facto, haverá alguém que não queira magoar Juno,
tenha medo dela ofendida, eu que faço o bem ao fazer mal?
520 [Oh ! grande coisa eu fiz ! Que gigantesco poder é o meu . . ] .

Não a deixei ser humana: tornou-se uma deusa! É assim


que castigo os culpados, assim é grande a minha autoridade . . .
Que lhe restitua o antigo aspecto e tire o focinho d e animal,
como fez em tempos à parente de Foroneu, a da Argólide. [IQJ

525 Por que razão não escorraça ele Juno e casa com ela, a leva
para o nosso quarto conjugal e toma Licáon por sogro?
E vós, se vos choca a ofensa e o desprezo pela vossa pupila,
proibi os Sete Triões de descerem aos vossos abismos azuis, [l l J

rechaçai as estrelas acolhidas no céu por paga do adultério,


530 de forma a que essa meretriz jamais mergulhe na água pura.

Os DEUSES do mar anuíram; a filha de Saturno viajou de novo


pelo límpido céu no manejável carro de coloridos pavões,
pavões coloridos há pouco pela morte de Argo, tal como tu,
ó corvo tagarela, que, embora tivesses sido outrora branco,
535 de repente, há pouco, te tornaste um pássaro de asas negras.
De facto, em tempos esta ave fora argêntea, com penas da cor
da neve, a ponto de rivalizar com a mais imaculada pomba
e de não ceder a primazia nem aos gansos que o Capitólio
salvariam com vigilante grasnar, nem ao cisne que ama rios.
540 A sua desgraça foi a língua: por causa da língua tagarela,
a sua cor, que era o branco, é agora a cor oposta ao branco.

MAIS BELA do que Corónis de Larissa não houve na Hemónia


inteira. A ti, certamente, ela bem te seduziu, ó deus de Delfos,
pelo menos enquanto se manteve casta - ou sem ser espiada.
545 Mas a ave de Febo surpreendeu o adultério. E para revelar
o crime secreto, apressou-se a voar - delatora implacável -
até junto do seu senhor. A tagarela gralha foi atrás dela
batendo as asas, procurando em ânsia saber tudo, e acabou
por ouvir a razão da viagem: 'Tomas um caminho prejudicial

1 0 10.
1 1 Ursa Maior (ver o episódio de Calisto).
74 L I V R O II Apolo e Corónis - Cómix

550 para ti,' disse. 'Não desdenhes as predições da minha língua.


Vê o que fui e o que sou, e pergunta o que fiz para o merecer:
ficarás a saber que o meu mal foi a lealdade.
'Pms, um dia,
Palas enclausurara Erictónio, filho concebido sem mãe,
numa cesta feita de vime entrelaçado da região de Acte,
555 e confiou-a às três donzelas nascidas do híbrido Cécrops,
com ordens para jamais verem o conteúdo escondido.
Oculta na leve folhagem, eu espiava de um ulmeiro cerrado
que coisas faziam. Duas, Pândroso e Herse, guardavam-na
sem dolo; uma delas, Aglauro, chama medrosas às irmãs,
560 e com os dedos desfaz os nós. E lá dentro vislumbram
um recém-nascido e uma serpente estendida junto dele.
Relato tais factos à deusa. Por tal, a recompensa que ganho
é Minerva declarar-me expulsa da sua protecção e pôr-me
atrás da ave da noite. O meu castigo podia servir de aviso r12 1

565 a outras aves, para que não busquem o perigo com a voz.
Mas, se bem creio, não foi ela que me procurou, quando eu
nada disso pedia? Pergunta isto mesmo à própria Palas:
embora furiosa comigo, ela, mesmo furiosa, não o negará.

'De facto, sou filha do ilustre Coroneu, da região da Fócide:


510 conto coisas bem conhecidas. Eu era, pois, uma princesa,
e por mim suspiravam ricos pretendentes (não te rias ! ) .
A beleza foi a minha desgraça. Pois, um dia, a o passear
na areia da praia a passo vagaroso, como é meu hábito,
o deus do mar viu-me e inflamou-se. E depois de gastar
575 tempo, inutilmente, a suplicar-me e com palavras doces,
decide tomar-me à força e persegue-me. Fujo, deixando
a margem dura, e em vão me esgoto na areia macia.
Então, chamo por deuses e por homens: mortal algum
a minha voz alcança. Pela minha virgindade comoveu-se
5Bo a Virgem, que me ajuda. Eu estendia os braços para o céu: 'm

os braços começaram então a enegrecer com leves penas.


Debatia-me por arrancar o vestido dos ombros; mas ele

12 A coruja.
13 Minerva.
Córnix - Apolo e Corónis (cont.) L I V R O I I 75

era já plumagem que lançara na pele raízes profundas.


Esforçava-me por fustigar o peito desnudo com as mãos:
5s5 mas já nem tinha mãos, já nem tinha um peito desnudo.
Eu corria: os pés já não se afundavam na areia como antes,
mas pairava acima do chão; depois, sou levada bem alto
pelos ares e, ilibada, sou dada a Minerva como seguidora.
Mas de que me vale tudo isto, se o meu lugar foi ocupado
590 por Nictímene, feita ave por causa de um terrível crime?
Pois então tu não ouviste falar deste caso tão conhecido
por toda a Lesbos, que foi Nictímene ter profanado o leito
de seu pai? Ela é agora pássaro, mas ciente da sua culpa:
foge aos olhares e à luz, escondendo a sua vergonha
595 no seio da escuridão, e todos a escorraçam de todo o céu.'

AssIM dizia. 'Espero que tais evocações te sejam funestas ! '


interrompeu o corvo. 'Rio-me dos teus vaticínios falsos. '
E continuou o seu caminho. Foi então contar a o seu senhor
ter visto Corónis estiraçada com um rapaz da Hemónia. [i4 1

600 Ao ouvir o relato do delito, o louro tombou da cabeça


do deus enamorado; a um tempo, desfalece a expressão,
o plectro e a cor. De coração a ferver, inchado de cólera,
agarra nas armas habituais e retesa o arco, encurvando-o
nas pontas. Aquele peito, que tanta vez unira ao peito seu,
605 ele o trespassa com uma flecha impossível de evitar.
Ferida, ela deu um gemido e, arrancando o ferro do corpo,
inundou os alvos membros com sangue de cor escarlate,
e disse: 'Eu podia sofrer o castigo, Febo, que me infligiste,
mas ter dado à luz antes. Agora morremos os dois juntos ! '
610 Não pôde mais, e derramou a vida junto com o sangue.
[E um frio mortal invadiu o corpo esvaziado de vida.]

Arrepende-se o amante, oh ! tarde de mais, do cruel castigo !


Odeia-se a si próprio por ter escutado, por se ter inflamado
de cólera. Odeia a ave que o forçou a ouvir contar o crime,
61 5 a causadora da sua dor, odeia também o arco e a sua mão,
e, juntamente com a mão, as flechas, armas irreflectidas.

'" Chamava-se Ísquis.


76 L I V R O I I Apolo e Corónis (cont.) - Odrroe

Tenta aquecer a jovem tombada e vencer com ajuda tardia


o destino funesto, e em vão lança mão da arte da medicina.
Ao ver que os seus intentos eram inúteis, que se aprontava
620 a pira, o corpo prestes a ser cremado nas derradeiras chamas,
então sim, aí soltou gemidos arrancados ao fundo do peito
(pois não é lícito aos deuses banhar o rosto com lágrimas),
tal como quando a vaca vê a marreta, balanceada à altura
da orelha direita, esmigalhar com golpe retumbante
625 as côncavas têmporas do seu vitelo ainda de leite.
E quando lhe versou no peito fragrâncias que a deliciariam
jamais, a abraçou e cumpriu os ritos indevidamente devidos,
Febo não suportou que o seu rebento se desfizesse em cinzas.
Então, arrebatou às chamas, e ao ventre da mãe, o seu filho,
6Jo e transportou-o para a caverna do biforme Quíron.
Quanto ao corvo, proibiu-o de residir entre as aves brancas,
ele que aguardava uma recompensa por ter dito a verdade.

ENTRETANTO, o biforme ser estava encantado com o pupilo [I>]

de divina estirpe, feliz com o oneroso, mas honroso, encargo.


6J5 Eis que chega a filha do Centauro, com os ombros cobertos
de ruivos cabelos. Outrora, dera-a à luz uma ninfa, Cariclo,
nas margens de um veloz rio; e por isso lhe chamara
Ocírroe. Não se contentara ela em aprender as artes
do pai, mas cantava também os segredos do destino.
64 0 Ora, quando viu a criança, sentiu o arrebatamento profético
na mente e inflamou-se com o deus que tinha enclausurado
no peito. Disse então: 'Cresce, menino, portador da saúde
ao mundo inteiro ! Muitas vezes os mortais te serão da vida
devedores. A ti será lícito devolver as almas já roubadas;
645 mas tal ousando uma vez, perante a indignação dos deuses,
o raio de teu avô interdir-te-á de o fazer segunda vez.
De deus, serás corpo sem sangue, e de novo serás deus,
tu que eras corpo, e duas vezes mudarás o teu destino.
Também tu, querido pai, agora imortal, gerado e nascido
650 com a condição de existires para todo o sempre,

" O centauro Quíron e o seu pupilo Esculápio.


Ocírroe - Mercúrio e Bato L 1 V R O I I 77

ansiarás um dia poder morrer, quando fores martirizado


pelo sangue da terrível serpente, absorvido pelas feridas
do teu corpo. E de imortal, os deuses far-te-ão sujeito
à morte, e as três Irmãs cortarão os fios do teu destino.'
655 Faltava ainda dizer algo sobre o destino dele: suspirando
do fundo do peito, rebentam lágrimas que lhe inundam
a face, e diz assim: 'Os fados antecipam-se e proíbem-me
de falar mais; fecha-se-me a faculdade de usar a voz.
De nada valem estas artes que sobre mim concitam
660 a cólera do deus - quem me dera desconhecer o futuro !
Já sinto a minha aparência humana ser-me subtraída,
já me encanta comer erva, já o meu impulso é correr
pelas vastas pradarias: faço-me égua, corpo de parente.
Mas porquê toda eu? É que o meu pai tem dupla forma ! '
665 Dizendo tais coisas, a parte final dos seus queixumes
já mal se percebeu: as palavras tornaram-se confusas.
Em breve, nem são palavras, nem a voz parece de égua,
mas antes uma imitação de égua; pouco depois, relincha
claramente e move os braços para o solo herboso.
610 Então, os dedos fundem-se, e leve casco as cinco unhas
liga em contínuo córneo; a face e o pescoço alongam-se,
a maior parte da longa capa transforma-se em cauda,
os cabelos, que caíam soltos sobre o pescoço, tornam-se
crinas no lado direito, a voz e aparência transfiguram-se
675 juntas; e este prodígio deu-lhe também um novo nome. [••i

CHORAVA aquele herói, o filho de Fílira, e em vão te rogava mi

ajuda, ó deus de Delfos. Na verdade, não podias ter anulado


as ordens do magno Júpiter, e, mesmo se as pudesses anular,
não estavas lá: vivias então na Élide e na região da Messénia.
680 Foi no tempo em que andavas coberto com a pele de pastor,
e que um cajado feito na floresta te pesava na mão esquerda,
e na outra mão trazias a flauta feita de sete canas desiguais. [l8J

16 Hipe, ou seja égua, ou Mdanipe, isto é 'égua negra'.


17 Quíron; o deus de Delfos é Apolo.
18 Apolo serviu como boieiro no palácio de Admeto e apaixonou-se pelo rei ou pelo neto des­
te, Himeneu.
78 L I V R O I I Bato - Mercúrio, Aglauro e a Inveja

Inquietavas-te de amor e consolava-te a tua flauta, quando


se diz que as tuas vacas sem vigilância entraram nos pastos
685 de Pilos. Viu-as o filho de Maia, a filha de Atlas; com a arte (1 91

habitual, desvia-as do caminho e esconde-as num bosque.


Ninguém se apercebeu do furto, menos um certo velho, bem
conhecido na região: toda a vizinhança lhe chamava Bato.
Era um guardião, que vigiava as matas e pastos herbosos
690 do rico Neleu, e as suas renomadas manadas de éguas.
O deus deteve-o, chamou-o à parte gentilmente, e disse-lhe:
'Quem quer que sejas, meu bom homem, se alguém perguntar
por esta manada, diz que não a viste e a tua acção não ficará
sem recompensa. Toma como paga uma vaca deslumbrante. '
695 E deu-lhe uma. O homem aceitou-a e retorquiu nestes termos:
'Podes ir tranquilo; antes de mim dirá esta pedra do teu furto.'
E aponta para uma pedra. Ora, o filho de Júpiter fingiu partir.
Logo retorna, tanto com a aparência como com a voz mudadas.
' Ó aldeão', perguntou, 'viste acaso se algumas vacas passaram
100 por este caminho? Ajuda-me, e não fiques calado sobre o furto.
Dar-te-ei como paga uma vaca juntamente com o seu touro.'
Então o velho, vendo a recompensa duplicada: 'Estão no sopé
daqueles montes' (e estavam mesmo no sopé dos tais montes) ,
O neto de Atlas riu-se; 'Então tu denuncias-me a mim, pérfido?
105 Denuncias-me a mim mesmo?', exclamou; e transformou-lhe
o coração perjuro em dura pedra: ainda hoje se chama 'delatora.' [20J

E na pedra ficou a velha marca de infâmia, sem o ter merecido.

DAQUI levantou voo o deus do caduceu nas asas simétricas.


Sobrevoando os campos da Muníquia, ia vendo lá do alto
110 a terra tão grata a Minerva e as árvores do erudito Liceu.
Ora, aconteceu que era o dia em que, segundo a tradição,
castas donzelas levavam à cabeça sagrados e puros objectos
em canastras engrinaldadas até à cidadela de Palas em festa. (211

1 9 Mercúrio.
20 Os comentadores sugerem que se trate da lidite, um mineral de cor escura, usado para de­
nunciar ligas de metal pobres que se procurariam fazer passar por ouro; daí o poeta chamar à pedra
em que se metamorfoseia Bato (em grego, o 'tagarela', o 'falador') a 'informadora', a 'denunciadora'.
2 1 As Panateneias eram a principal festa anual em Atenas.
Mercúrio, Aglauro e a Inveja L I V RO I I 79

O deus alado viu-as no seu regresso. E, em vez de seguir


115 em frente, pôs-se a descrever largos círculos em redor delas.
Tal como o milhafre, ave velocíssima, ao avistar vísceras,
tendo receio enquanto os sacerdotes se apinham de roda
do sacrifício, gira em círculos, sem ousar afastar-se para longe,
e voa em redor dali batendo as àsas, sôfrego e esperançoso:
120 do mesmo modo o lesto deus do Cilene flecte o seu rumo
sobre a cidadela de Acte e traça círculos sobre o mesmo ar.
E tal como Lúcifer refulge mais radioso que as outras estrelas,
e refulge a dourada Febe mais resplandecente do que Lúcifer,
assim vinha Herse, a mais deslumbrante das jovens todas.
725 Era a jóia daquela procissão e das suas companheiras.
O filho de Júpiter fica sem fala, extasiado com a beleza dela.
Pairando no céu, inflamou-se tal como o chumbo disparado
pela funda das Baleares: ele voa, e no trajecto fica em brasa,
encontrando sob as nuvens o calor que antes não tinha.
130 Flectindo o seu curso, abandona o céu em direcção à terra
e nem se disfarça: tal a confiança que tinha na sua beleza.
E embora a confiança fosse justificada, cuida em retocá-la,
alisando o cabelo e arranjando a clâmide, para que caia
bonita e para que se veja bem a sua franja toda de ouro,
7J5 que a vara, com que induz o sonho e o repele, esteja polida
na mão direita e as sandálias rebrilhem nos pés lustrosos.

No mais recôndito da casa havia três quartos, decorados


de marfim e de tartaruga. O da direita era teu, Pândroso,
de Aglauro o da esquerda, Herse era dona do do meio.
140 A do quarto à esquerda foi a primeira a reparar na chegada
de Mercúrio. Atrevendo-se a perguntar o nome do deus
e a razão da vinda, este respondeu assim: 'Eu sou o neto
de Atlas e de Plêione, aquele que transporta as ordens
de meu pai através dos ares; o meu pai é o próprio Júpiter.
745 Não forjarei razões para vir aqui; só desejo que queiras ser
leal à tua irmã e consintas ser chamada tia dos meus filhos:
Herse é a razão da vinda; ajuda, peço, um apaixonado.'
Aglauro fita-o com o mesmo olhar com que contemplara
há pouco os segredos misteriosos da loura Minerva,
80 L I V R O I I Mercúrio, Aglauro e a Inveja

150 e pelo seu serviço exige-lhe uma enorme quantidade


de ouro; e por agora, força-o a abandonar a mansão.

A deusa guerreira voltou para ela um olhar ameaçador,


e arrancou um suspiro tão profundo e violento, que fez
estremecer juntos o peito e a égide sob o possante peito.
755 Ocorre-lhe que fora esta jovem que, com mão sacrílega,
desvendara o segredo quando, quebrando o compromisso,
vira o filho que o deus de Lemnos gerara sem mãe.
Ela agora ganharia o favor do deus, o favor de sua irmã,
para mais, rica, recebendo ouro que, gananciosa, exigira.

1w De imediato, a deusa vai à mansão da Inveja, imunda


de negro pus. A casa dela estava escondida no fundo
de um vale, sempre sem sol, que jamais o vento tocara,
uma casa triste, toda a abarrotar de um frio entorpecedor,
onde o lume falta sempre e sempre abunda a escuridão.
765 Quando a virgem viril, temível na guerra, ali chegou,
parou diante da casa (nem lhe era permitido na morada
entrar) , e bate à porta com a ponta da lança.
Ao bater, as portas escancaram-se. Lá dentro vê a Inveja,
banqueteando-se com carne de víbora, com que alimenta
no a sua maldade; ao vê-la, desvia o olhar. Esta, por seu lado,
levanta-se da terra infértil, deixando pelo chão bocados
de viboras meio-comidas, e avança com passo indolente.
Ao ver a deusa, deslumbrante pela beleza e as armas,
lançou um gemido e contraiu a face, soltando suspiros.
m A lividez cobre-lhe o rosto, todo o corpo é escanzelado;
o olhar nunca é frontal, os dentes amarelados de sarro,
o peito esverdeado de fel, a língua encharcada em veneno.
Jamais um riso, a não ser quando vê alguém sofrendo,
jamais dorme, agitada por angústias que a fazem desperta.
1so Com desagrado vê os sucessos dos homens, e, ao vê-los,
definha; e rói os outros e também a si própria se rói,
e este é o seu tormento. Embora muito a odiasse, a deusa
do Tritónis dirigiu-lhe, apesar disso, estas breves palavras:
'Infecta com a tua peçonha uma das filhas de Cécrops.
Mercúrio, Aglauro e a Inveja L 1 V RO I I 81

185 Tal é necessário: trata-se de Aglauro. ' Sem mais palavras,


fincou a lança no chão, empurrou a terra e fugiu dali.

Ela fica a ver a deusa a fugir, olhando-a de esguelha.


Resmungou qualquer coisa, doendo-lhe que Minerva
fosse triunfar. Depois, agarra na bengala, todo envolta
190 em cordões de espinhos, e, coberta de escura névoa,
por onde quer que vá, espezinha os campos floridos,
e queima as plantas, e arranca as copas das árvores,
e com o seu bafo empesta povos e casas e cidades.
Finalmente, lá avista a cidadela da deusa do Tritónis,
195 florescente de inteligência, de riqueza, de festiva paz.
A custo contém as lágrimas, pois nada vê que cause
lágrimas. Mal entrou no quarto da filha de Cécrops,
executa as ordens: com a mão tinta de infecções, toca
o peito e enche o coração de curvos espinhos de silvas.
8 00 Insufla um terrível vírus, e espalha este veneno, negro
como o pez, pelos ossos dela e derrama-o nos pulmões.
Para as razões do mal não se perderem no vasto espaço,
põe-lhe diante dos olhos a imagem da irmã, da boda
venturosa da irmã, do deus com a sua bela aparência,
805 e amplia tudo. Tudo isto aguilhoa a filha de Cécrops:
ela é roída por uma dor oculta, e, angustiada de noite,
angustiada de dia, vive gemendo, e esvai-se, coitadinha ! ,
lentamente, consumida qual gelo ferido pelo sol incerto.
Arde com a felicidade de Herse, com brandura
s10 como quando se ateia fogo às ervas e às silvas,
que não produzem chama e se consomem num calor lento.
Muitas vezes quis morrer, para não ter de ver nada disto,
muitas vezes quis dizer ao pai severo, como se crime fosse.
Por fim, senta-se em frente à porta para não deixar o deus
s1 5 entrar quando voltasse. Ele bem lhe vai lançando lisonjas,
preces, palavras das mais gentis; 'Basta ! ', berrou ela,
'não me moverei daqui antes de te ter expulsado de vez ! '
'Fiquemos com tal acordo', disse o veloz deus do Cilene;
e com a divina vara abre as portas. Ela tenta levantar-se,
s20 mas as partes que flectimos quando nos sentamos
não consegue mover, tomadas por um peso dormente.
82 L I V R O II Àglauro - Júpiter e Europa

Então, debate-se por se levantar com o tronco direito,


mas a articulação dos joelhos está rígida, um frio escorre
até às unhas, e as veias, perdendo o sangue, empalidecem.
825 E tal como o cancro, mal incurável, costuma alastrar
serpenteando, e soma partes sãs às partes já infectadas,
assim, a pouco e pouco, um frio mortal entra no peito
e obstruiu-lhe as vias vitais e os canais da respiração.
Ela já nem tenta mais falar; e mesmo se tivesse tentado,
830 não teria saída para a voz: já a garganta se petrificara,
a boca endurecera. Era uma estátua exangue, sentada.
Nem a pedra era branca: a sua mente tingira-a de escuro.

APós ter castigado tais palavras e a sacrílega mente,


o neto de Atlas deixou as terras que de Palas tomaram
835 o nome e internou-se nos céus agitando as asas. O pai
chama-o à parte; sem revelar que o motivo era paixão,
disse: 'Meu filho, fiel executor das minhas ordens,
não percas tempo. Desliza caminho abaixo, tão célere
como é teu costume, até àquela terra que vê a tua mãe
840 do lado esquerdo no céu (os nativos chamam-lhe Sídon) ;
e a manada d e bois d o rei que vires a pastar lá a o longe,
num herboso monte, trata de a conduzir até ao areal.'
Assim disse. E logo os bezerros são enxotados do monte,
e, como ordenado, vão à praia onde a filha do magno rei rui

845 costumava recrear-se com amigas, todas donzelas de Tiro.


Ora, majestade e amor não ficam bem juntos, nem moram
num mesmo lugar. Pondo de parte o solene ceptro, o pai
e soberano dos deus, ele que tem a mão direita armada
com o raio de três pontas, que com um aceno da cabeça
850 abala o mundo, veste a aparência de touro. Põe-se a mugir
no meio dos bezerros, a deambular, belo, no prado viçoso.
A sua cor era a da neve que jamais a planta do duro pé
calcou, nem que o chuvoso Austro alguma vez derreteu.
O pescoço incha de músculo, do nível das omoplatas pende
855 a barbela. Os chifres são pequenos, tão belos que teimarias

22 Europa.
Júpiter e Europa LIVRO II 83

serem feitos à mão, cintilando mais que uma gema pura.


Nada de ameaçador na fronte, os olhos não causam medo:
a expressão é de paz. A filha de Agenor olha maravilhada,
pois ele é tão belo, ele nada tem de ameaçador ou agressivo.
860 Mas embora tão dócil, a princípio tem receio de lhe tocar;
depois, aproxima-se e estende flores para a alva boca.
O apaixonado fica feliz, e até chegar o ansiado prazer
beija-lhe as mãos. A custo, a muito custo adia o resto !
E ora brinca e corre aos pinotes pelos verdejantes prados,
865 ora se deita, estendendo o flanco níveo na fulva areia.
Dissipando, pouco a pouco, o medo, ora oferece o peito
para a mão virginal acarinhar, os chifres para ela entrelaçar
com grinaldas há pouco feitas. A princesa aventura-se até
a sentar-se no dorso do touro, sem saber quem ela montava.
810 Então, o deus afasta-se lentamente da terra e da areia seca,
e começa a pisar com os falsos cascos a borda das ondas.
Depois, avança ainda mais e leva a sua presa pelas águas
no meio do mar. Ao ser levada, olha para trás, para o litoral
ao longe, assustada. A direita agarra-se a um chifre, a outra
875 apoia-se no dorso; a roupa, ondulante pela brisa, tremula.
LIVRO III

JÁ o DEUS pusera de lado a enganadora aparência de touro


e revelara quem era, e se encontrava nos campos do Dicte,
quando o pai, sem nada saber, ordena a Cadmo que procure
a jovem raptada. Se não a encontrar, ameaça que o punirá
com o exílio, a um tempo cumpridor do seu dever e criminoso.
Errando em vão pelo mundo inteiro (quem poderia descobrir
as aventuras furtivas de Júpiter? ) , o filho de Agenor torna-se
um fugitivo, evitando a pátria e a ira do pai. Como suplicante,
consulta o oráculo de Febo, indagando onde deve ir habitar.
lo 'Uma vaca', diz Febo, 'virá ao pé de ti num campo solitário,
uma vaca que jamais suportou o jugo, isenta do curvo arado.
Toma o caminho por onde te guie, e no prado onde descansar
trata de fundar umas muralhas, denominando-as Beócias. ' 01

Mal Cadmo descera da gruta de Castália, eis que avista


15 uma vitela sem guardador. Deambulava pachorrentamente,
e no seu cachaço não trazia qualquer vestígio de servidão.
Vai então atrás dela. Com passo firme, segue as pegadas
e agradece em silêncio a Febo por lhe indicar o caminho.
Cruzara já os vaus do Cefiso e os campos de Pânope,
20 quando a vaca se deteve. Erguendo para os céus a fronte,
vistosa pelos altos cornos, agitou as brisas com mugidos.
Depois, olhou para trás, para o grupo que a ia seguindo,
deitou-se no chão e estendeu o flanco na relva macia.
Cadmo exprime a gratidão: beija aquela terra estrangeira
25 e saúda as serranias e os campos para ele desconhecidos.
Tencionando fazer sacrifícios a Júpiter, ordena aos lacaios
que vão buscar água a uma nascente viva para as libações.

1 Em grego significaria algo como 'a terra da vitela'.


Cadmo L I V R O I I I 85

Havia ali um bosque antigo, que machado algum violara.


No meio, uma gruta, tapada por densa folhagem e moitas,
30 que formava um pequeno arco com pedras bem encaixadas,
prenhe de abundante água. Aí vivia, escondida no antro,
a serpente de Marte, bem reconhecível pela crista de ouro:
os olhos flamejam, todo o seu corpo está inchado de veneno,
as três línguas vibram, os dentes alinham-se em fileira tripla.
35 Mal os homens da raça dos Tírios chegam com passo infausto
a este recanto do bosque, e as bilhas mergulham nas águas
largando um som, a serpente azul-esverdeada tira para fora
a cabeça lá do fundo da caverna, emitindo silvos terríficos.
As bilhas caíram das mãos, o sangue abandonou os corpos,
40 súbita tremura invadiu os corpos, paralisados de estupor.
Ela retorce-se em roscas escamosas, e enrola-se em espirais,
e serpenteia, e encurva-se aos saltos em arcos imensos.
Depois, ergueu mais de metade do corpo no ar incorpóreo,
e contemplou lá do alto todo o bosque, tão corpulenta,
45 se a visses toda, quanto aquele que separa as duas Arctos. [lJ

Logo se lança sobre os Fenícios, quer porque aprontassem


as armas ou tentassem fugir, quer porque o terror lhes tolhia
uma coisa e outra. Uns mata à dentada, outros com abraços
enormes, aqueloutros com pestilento bafo de mortal veneno.

50 No ponto mais alto, já o sol reduzira as sombras ao mínimo.


Admirado com a demora dos camaradas, o filho de Agenor
segue a pista dos homens. O seu escudo era a pele arrancada
a um leão, as armas eram a lança de ponta de reluzente ferro,
o dardo, e, mais importante que qualquer arma, a coragem.
55 Quando entrou na floresta, logo avista os corpos sem vida
e, por cima deles, o gigantesco inimigo, vitorioso, a lamber
as funestas feridas com a língua ensopada em sangue.
'Ou serei o vingador da vossa morte, fidelíssimos amigos,
ou companheiro ! ', exclamou. Com a mão direita ergueu
60 uma pedra enorme e com enorme esforço a arremessou.
Sob o embate dela, íngremes muralhas com altas torres

2 A constdação Dragão.
86 L I V R O I I I Cadmo

teriam estremecido. A serpente, no entanto, fica incólume,


protegida pelas escamas, como se uma couraça fossem,
e pela dureza da cobertura repeliu da pele o potente golpe.
65 Mas esta mesma dureza já não é capaz de vencer o dardo:
este cravou-se no meio do arco da flexível espinha dorsal,
e a ponta de ferro penetrou totalmente até às entranhas.
O monstruoso ser, enlouquecido de dor, revirou a cabeça
para o próprio dorso, olhou a ferida e mordeu o dardo
10 cravado. Abanando-o violentamente para todos os lados,
a custo o arrancou do dorso: a ponta ficou presa nos ossos.

Agora, na verdade, nova razão soma-se à fúria habitual.


As goelas incharam com as veias dilatadas, uma baba
esbranquiçada jorra em torno das mandfbulas pestíferas;
15 o chão ressoa raspado pelas escamas, e saindo da boca
o bafo negro, como se do Estíngio, infecta e polui o ar.
Ora ela se enovela em espirais que formam um círculo
imenso, ora se perfila mais erecta do que um longo poste,
ora se arrasta com enorme ímpeto, qual rio engrossado
ao pelas chuvas, e com o peito arrasa os bosques à sua frente.
O filho de Agenor recua um pouco e sustém os ataques
com a pele do leão, e vai travando as investidas da boca
com a lança em riste. A serpente enfurece-se. Em vão
morde o duro ferro e crava os dentes na aguçada ponta.
s5 Já o sangue começara a escorrer da boca venenífera
e manchava com salpicos as verdejantes ervas:
mas era ferida ligeira, pois ela esquivava-se à estocada,
atirando para trás o pescoço ferido, e, recuando, impedia
o golpe de acertar em cheio, nem deixava que fosse fundo.
90 Por fim, o filho de Agenor, acossando-a, atira a lança
à garganta e empurra-a, até que, ao recuar, um carvalho
a trava: e junto com o carvalho o pescoço é trespassado.
Sob o peso da serpente, a árvore encurva-se e geme
com as chicotadas da ponta da cauda contra o tronco.

95 Observava o vencedor a dimensão do inimigo vencido,


quando eis que, de súbito, se ouve uma voz (não era fácil
saber donde, mas ouviu-se) : 'Por que razão, filho de Agenor,
Cadmo L I V R O I I I 87

observas a serpente que mataste? Também serpente te verão ! '


Muito tempo ficou ele apavorado, perdendo a cor, e a razão
100 também, com os cabelos todos em pé, gelado de terror.
Eis que chega Palas, a protectora do jovem, deslizando
pelas brisas do céu. Ordena-lhe que lavre aquela terra
e plante os dentes da vfbora, sementes de futuro povo.
Ele obedece. Abrindo sulcos premindo com o arado, lança
105 no solo os dentes, tal como instruído, sementes de homens.
Depois disto (coisa incrível ! ) , a terra começa a remexer-se.
Dos sulcos, emerge, a princípio, a ponta de uma lança,
depois, um capacete com plumas coloridas ondulando,
de seguida, saem ombros, um peito, braços carregados
110 de armas, e cresce uma seara de guerreiros com escudos.
Assim é quando em dias festivos desce o pano do teatro
e costumam surgir as figuras: primeiro exibem os rostos,
depois, o resto, pouco a pouco; enfim, descida suavemente,
tudo fica à vista, com os pés postos na borda do palco. [>J

rn Aterrado com insólito inimigo, Cadmo salta a tomar armas;


'Não tomes as armas ! ' , grita um de entre o povo gerado
pela terra, 'nem te intrometas nesta nossa guerra civil.'
E logo golpeia um dos irmãos nascidos da terra ali perto
com a dura espada, e cai com um dardo disparado de longe.
120 Aquele que lhe causara a morte também não lhe sobreviveu
muito mais tempo, e expira o sopro que há pouco recebera.
Toda a turba é tomada por desvario idêntico, e os repentinas
irmãos tombam com golpes mútuos na sua guerra entre eles.
E agora os jovens, a quem coubera espaço tão breve de vida,
125 fustigavam com o peito tépido a mãe ensopada de sangue.
Sobreviveram apenas cinco: um deles foi justamente Equíon.
A conselho da deusa do Tritónis, as armas lançou por terra,
e solicitou, e concedeu, um pacto de paz aos seus irmãos.
O forasteiro de Sídon tomou-os por camaradas de trabalho, l41

no quando, por ordem do oráculo de Febo, fundou a cidade.

3 No teatro romano, o pano descia no início do espectáculo e subia no final.


4 Ou seja, Cadmo.
88 L I V R O I I I Cadmo - Actéon

Já Tebas estava de pé. Agora já poderias ser visto, ó Cadmo,


como venturoso, até no desterro: coubera-te Marte e Vénus
como sogros; soma a isto a descendência de tão nobre esposa,
tantas filhas e tantos filhos, penhores do vosso amor, .e netos,
m agora já jovens crescidos. Mas é bem certo que o último dia
de um homem deve sempre ser aguardado, e ninguém
deve ser dito feliz antes da morte e das derradeiras exéquias.

A PRIMEIRA causa de dor, Cadmo, no meio de tanta felicidade,


foi o teu neto, a cuja fronte se somaram estranhos cornos,
140 e vós, cadelas, que vos saciastes com o sangue do vosso dono.
Mas se indagares bem, descobrirás que a culpa foi da Fortuna,
não de um crime dele. Pois desde quando um erro é um crime?

O monte estava tingido pela matança da mais diversa caça,


e já o meio-dia reduzira ao mínimo as sombras das coisas
145 e o sol se encontrava a igual distância de ambas as metas,
quando o jovem dos Biantes, em tom tranquilo, chama e diz
aos colegas de caça que vagueavam por barrancos afastados:
'As redes e as armas, amigos, estão tintas do sangue das feras,
e o dia concedeu-nos sorte bastante. Mal a próxima Aurora
150 conduzir de volta o dia, montada no carro da cor do açafrão,
retomaremos a tarefa planeada. Febo dista agora o mesmo
das duas metas, e com calor escaldante abre gretas na terra.
Parai as presentes tarefas e desarmadilhai as nodosas redes. '
O s homens cumprem a s ordens e interrompem o trabalho.

155 Havia ali um vale, coberto de pinheiros e esguios ciprestes;


Sagrado a Diana, a de veste arregaçada, chamava-se Gargáfia.
Na parte mais recôndita, no meio do bosque, fica uma gruta
por arte humana alguma trabalhada. Com a sua criatividade,
a natureza imitara a arte, pois ela própria construíra
160 um arco natural em pedra-pomes viva e em leve tufo.
À direita, murmura uma cristalina nascente de água límpida,
formando uma laguna larga, cingida por margens herbosas.
Era ali que a deusa dos bosques, quando cansada da caça,
costumava banhar o corpo virginal em transparentes águas.
165 Nessa ocasião, ao chegar ao local, confiou a uma das ninfas,
Actéon L I V R O I I I 89

que era a sua escudeira, a lança de caça, a aljava e o arco


desapertado; outra segurou nos braços as vestes que ela
despira; duas outras descalçaram-lhe as sandálias dos pés.
Crócale, a do Ismeno, a mais sábia, ata-lhe com um nó
110 o cabelo solto caído pelos ombros, embora ela o traga solto.
Acartam água Néfele, Híale, Rânis, e Psécade, e Fíale,
e derramam-na em enormes vasilhas.

Enquanto a neta do Titã aí se banha nas águas habituais,


eis que o neto de Cadmo, adiada a jornada de trabalho,
115 deambulando ao acaso pela floresta que não conhecia,
chega a este arvoredo sagrado: assim o levava o destino.
Logo que ele entrou na gruta orvalhada pela nascente,
as ninfas, à vista do homem, desnudadas como estavam,
puseram-se a bater no peito e encheram o bosque inteiro
180 de gritos de surpresa. Rodearam então Diana, cobrindo-a
com os seus próprios corpos. Mas a deusa era mais alta
que elas, e do pescoço para cima ultrapassava a todas.
E aquela cor que costumam ter as nuvens quando tingidas
pelos golpes do sol defronte, ou a da purpúrea Aurora,
135 essa foi a cor no rosto de Diana ao ser vista sem roupas.
E apesar de rodeada pelo seu grupo de companheiras,
virou-se de lado e voltou o seu olhar para trás.
Embora o que ela quisesse fosse ter as flechas prontas,
pegou em água (era o que tinha à mão) e atirou-a à cara
190 do rapaz. Salpicando os cabelos com a água vingadora,
lançou tais dizeres, prenunciadores da iminente desgraça:
'Agora, poderás contar que me viste despojada de roupas
- se conseguires falar. . . ' Sem mais ameaças, faz surgir
na cabeça que molhara as hastes de um veado já velho,
195 alonga-lhe o pescoço e aguça-lhe as pontas das orelhas;
muda-lhe as mãos em pés e os braços em longas patas,
e reveste-lhe o corpo todo de uma pelagem malhada;
por último, instila-lhe o medo. O herói filho de Autónoe
desata a fugir, e, ao correr, pasma-se por se ver tão veloz.
200 [Mas quando vislumbrou na água o focinho e as hastes,]
'Ai de mim ! ', queria ele gritar: mas voz alguma saiu.
Soltou foi um bramido: era a sua voz ! ; e as lágrimas caíram
90 LIVRO III Actéon

pelas faces que não eram as suas. Só restou a antiga mente.


Que haveria de fazer? Voltar para casa, ao palácio do rei?
205 Ocultar-se no bosque? Isto impede o medo, aquilo o pudor.

Hesitava ele, quando os seus cães o avistam. Melampo


e o sagaz Icnóbates, os primeiros, dão o sinal a ladrar: (51

Icnóbates é de Cnosso, Melampo, de estirpe espartana.


Depois lançam-se outros, mais lestos que o rápido vento:
210 Pânfago e Dorceu e Oríbaso, todos eles da Arcádia;
o pujante Nebrófono e o feroz Téron, junto com Lélape;
Ptérelas, útil pela veloz corrida, e Agre, útil pelo seu faro;
Hileu, que há pouco fora ferido por um feroz javali;
Nape, filha de lobo; Pémenis, guardadora de rebanhos,
215 e Harpia, acompanhada pelos seus dois cachorros;
Ládon de Sicíon, que tinha os flancos bem estreitos;
e Dromas e Cánaque, Esticte e Tigre e Alce,
e Lêucon, de pêlo alvo como neve, e Asbolo, de pêlo negro;
e o possantíssimo Lácon, e Aelo, infatigável na corrida;
220 e Tóos e a veloz Licisca junto com seu irmão Cíprio;
e Hárpalo, inconfundível pela sua mancha branca
no meio da negra fronte, e Melaneu, e a peluda Lacne;
Labro e Argíodo, filhos de pai do Dicte e de mãe lacónia,
e Hilactor, com o seu ladrar estridente; e muitos outros
225 que seria demorado referir. Na ânsia de o caçar, a matilha
persegue-o por escarpas e penhas e inacessíveis rochedos,
por onde o caminho é difícil, onde não há caminho algum.
Ele foge por onde tantas vezes perseguira as suas presas,
oh ! , ele foge aos seus próprios servidores ! Queria gritar,
230 ['Sou eu, Actéon ! Não me reconheceis, o vosso dono?']
mas faltam palavras ao seu querer; o céu ecoa com latidos.
A primeira a atingi-lo foi Melanquetes, ferindo-o nas costas;
depois foi Terodamante; Oresítrofo pendura-se do ombro:
tinham saído atrasados, mas lá chegaram primeiro
235 por uns atalhos da serra. Enquanto seguram o dono,

' Todos os nomes dos cães da matilha têm um significado (tal como ainda hoje em português
damos a cães nomes como Farrusco, Malhadinha, etc.). O significado dos nomes encontra-se no
Glossário.
Actéon - Sémele LIVRO III 91

o resto da matilha cai sobre ele e ferra os dentes na carne.


Já falta espaço para as feridas. Ele geme, soltando um som
que, embora não sendo humano, cervo algum pode lançar,
e enche os cimos tão familiares de lamentosos queixumes.
240 De joelhos, implorante, como se numa prece, lança
à volta o olhar silencioso, como se estendesse os braços.
Ora, os camaradas, sem saber, açulam a matilha impetuosa
com os usuais gritos de incitamento. Com o olhar buscam
Actéon, e à compita Actéon chamam como se fosse ausente
245 (e ele vira a cabeça ao ouvir o nome ! ) . Lamentam a ausência,
perder por preguiça o espectáculo da presa que lhes surgira.
Bem queria ele não estar ali, mas está. E ele bem gostaria
de ver, mas não sentir, a ferocidade dos seus próprios cães.
De todo o lado o cercam e mergulham os focinhos na carne,
250 dilacerando o dono sob a enganadora aparência de veado.
E a ira de Diana, a portadora da aljava, não se saciou, dizem,
antes de se pôr termo à vida dele com incontáveis feridas.

As OPINIÕES dividiram-se. Para uns, a deusa pareceu feroz,


mais do que seria justo; outros elogiam-na e dizem-na digna
255 da austera castidade; e ambas as partes acham as suas razões.
Apenas a esposa de Júpiter nada diz, se aprova ou desaprova;
mas regozija-se com a desgraça que se abateu sobre a casa
que descendia de Agenor, e transfere o seu ódio da rival tíria [•J

para os familiares.
Mas eis que novo motivo de sofrimento
260 se acrescenta ao anterior: ela sofre por Sémele estar grávida
do sémen do magno Júpiter. Soltando a língua para injuriar:
'Pois, de facto, o que logrei com tantas injúrias? ' exclamou.
' É ela que devo atacar. Se é justo que me chamo suprema Juno,
se me cabe segurar o ceptro cintilante de pedras preciosas
265 com a minha mão direita, se sou rainha e esposa de Júpiter
e irmã (irmã, sem dúvida) , destrui-la-ei. Ora, ela satisfez-se,
julgo, com tal aventura: a ofensa ao meu tálamo é passageira.
Porém, está grávida ! Era só o que faltava ! Ela ostenta o crime

6 Europa.
92 L I V R O I I I Sémele

no ventre inchado, aspira a ser mãe (o que quase não me coube)


270 apenas de Júpiter. Tão grande é a confiança na sua beleza!
Farei com que ele a engane. Eu não seja filha de Saturno, se ela
não mergulhar na água do Estígio, afogada pelo seu Júpiter! '

Dito isto, levanta-se do trono. Escondida numa névoa fulva,


chega ao umbral de Sémele. Mas antes de remover a névoa,
m disfarçou-se de velha, pondo cãs nas têmporas, sulcando
a pele de rugas. Põe-se a caminhar, com o corpo encurvado
e passo trémulo. Faz ainda voz de velha, chegando ao ponto
de se transformar em Béroe, do Epidauro, a ama de Sémele.
Logo desatam a falar. Quando ao fim de uma longa conversa
280 chegam ao nome de Júpiter, suspira e diz: 'Ah ! Quem dera
que fosse mesmo Júpiter. Mas tenho muitos receios. Muitos
entraram em castos tálamos a coberto do nome dos deuses.
Mas não basta ser Júpiter: que dê um testemunho de amor,
se, de facto, é realmente ele. Tão grandioso e esplendoroso
285 ele é quando a excelsa Juno o recebe, pede-lhe que te abrace
com tal grandiosidade e esplendor, e que traga as insignias. '
Com tais palavras instruiu Juno a ingénua filha d e Cadmo.
Esta roga então a Júpiter um presente, mas sem o nomear.
Responde-lhe o deus: 'Escolhe. Coisa alguma te recusarei.
290 Para que faças mais fé nisto, seja até testemunha a divindade
da torrente do Estígio, causa de temor e deus para os deuses. '
Feliz com o seu mal, com poder excessivo, Sémele, prestes
a perecer pela complacência do amante, diz: 'Como costuma
abraçar-te a filha de Saturno, ao iniciardes o pacto de Vénus,
295 oferece-te a mim . ' Enquanto tal dizia, o deus bem lhe tentou
tapar a boca, mas já as palavras saíam apressadas para o ar.
Soltou um gemido. Na verdade, nem ela pode retirar o desejo,
nem ele a jura. Assim subiu o deus, cheio de tristeza, ao cimo
dos céus, e com o olhar arrastou as nuvenzitas que o seguiam,
ioo às quais juntou nuvens negras e raios à mistura com ventos,
e trovões, e o relâmpago a que ninguém consegue escapar.
Tanto quanto consegue, tenta diminuir a sua própria força,
e nem se arma, desta vez, com o raio com que derrubara
Tifeu, o dos cem braços: nele reside demasiada ferocidade.
io5 Há um outro raio mais leve, ao qual as mãos dos Ciclopes
Sémele - Tirésias L I V RO I I I 93

adicionaram menos brutalidade e chamas, e menos fúria.


Os deuses chamam-lhes 'segundas armas' . Agarra nelas e entra
na casa do neto de Agenor. O corpo mortal não aguentou m

a turbulência celeste, e ardeu devido ao presente nupcial.


310 A criança, ainda não formada, é extraída do ventre da mãe, [•1

e o ser frágil é cosido (se se pode acreditar) à coxa do pai;


e assim completa o tempo que é devido de gestação.
Nos primeiros tempos, Ino, a tia materna, cria-o no berço
às ocultas; mais tarde, é confiado às ninfas de Nisa,
315 que o esconderam nas suas grutas e alimentaram com leite.

ENQUANTO isto se passava nas terras pela lei do destino,


e o berço de Baco, duas vezes nascido, estava em segurança,
sucedeu que, um dia, Júpiter, diz-se, relaxado pelo néctar,
pusera de lado os seus graves cuidados e brincava, brejeiro,
320 com Juno, também ela ociosa: 'O prazer sexual é para vós,
sem dúvida, muito superior ao que cabe aos homens' , dissera.
Ela recusa tal ideia. Acordam então averiguar qual a opinião
do douto Tirésias. É que este conhecia os dois lados do amor.
De facto, em certa ocasião sovara duas enormes serpentes,
325 que acasalavam na erva verdejante, a golpes do seu bastão.
De homem convertera-se em mulher (espantoso ! ) , e passara
sete Outonos assim. Ao oitavo, viu de novo aquelas serpentes.
'Se tão grande é o poder da pancada com que vos feri' , disse,
'a ponto de mudar no contrário o sexo de quem vos golpeou,
330 bater-vos-ei também agora. ' Golpeando as mesmas serpentes,
retornou à forma primitiva e a figura com que nascera voltou.
Ele é, pois, o mediador nomeado para este litígio brincalhão.
Dá razão às palavras de Júpiter. A filha de Saturno, diz-se,
ficou magoada, mais do que seria justo e o assunto merecia,
m e condenou os olhos do seu juiz à noite eterna.
Mas o pai omnipotente (pois não é lícito a um deus anular
actos de outro deus ) , em compensação pela perda da visão,
outorgou saber o futuro, e com tal privilégio aliviou a pena.

7 Cadmo.
8 Baco.
94 L I V R O I I I Narciso e Eco

FAMOSÍSSIMO por todas as cidades da Aónia, este Tirésias


340 dava irrepreensíveis respostas à gente que o vinha consultar.
A primeira a pôr à prova a sua credibilidade e a veracidade
das suas palavras foi a azulada Liríope, que outrora Cefiso
apanhara no seu sinuoso curso, e que, tendo-a aprisionado
nas suas águas, violara. Finda a gravidez, a lindíssima ninfa
345 dera à luz uma criança, que já na sua tenra idade era adorável.
Deu-lhe o nome de Narciso. Ora, consultado sobre o menino,
se chegaria a ver os longos anos de uma velhice avançada,
o profético vare respondeu: 'Se não se conhecer a si próprio. '
Durante anos, a profecia d o vidente pareceu vã; mas o desfecho
350 do caso, o tipo de morte e a insólita loucura comprovaram-nas.

De facto, quando fez dezasseis anos, o filho do Cefiso


tanto podia parecer um menino como um jovem adolescente.
Muitos foram os rapazes, muitas as raparigas que o desejaram.
Mas (tão insensível era a soberba naquela beleza tão terna)
355 jamais rapazes alguns, raparigas algumas o tocaram jamais.

Um dia, acossava veados em pânico em direcção às redes,


quando foi avistado pela ninfa da voz. Era a ressoante Eco,
que não sabia calar-se quando lhe falavam, nem falar primeiro.
Naquele tempo, Eco era ainda um corpo, não apenas uma voz.
360 Mas embora faladora, não usava a fala de modo diferente
do que agora: devolver, de entre muitas, as últimas palavras.
Isto fora causado por Juno. É que estando, tanta vez, prestes
a surpreender ninfas deitadas nos montes com o seu Júpiter,
Eco, sagaz, costumava entreter a deusa com longas conversas,
365 até as ninfas se escapulirem. Mal a filha de Saturno percebeu,
' Sobre a tua própria língua, com a qual me enganavas' , disse,
'ser-te-á outorgado diminuto poder e brevíssimo uso da voz . '
E confirma a ameaça com actos. E c o passou tão-só a duplicar
as palavras do fim das frases e a devolver os termos que ouve.

310 Ora bem, quando viu Narciso a vaguear pelos campos ermos,
inflamou-se de amor. Sorrateiramente, vai seguindo atrás dele;
e, quanto mais o segue, mais de perto é a chama que a inflama,
Narciso e Eco L I V R O I I I 95

tal como quando o enxofre vivificante, que embebe as pontas


dos archotes, arrebata as chamas que se lhe chegam perto.
375 Oh ! quantas vezes quis chegar à sua beira com doces palavras
e lançar-lhe ternas súplicas ! A sua natureza, porém , opõe-se,
e impede-a mesmo de começar. Permite sim é estar a postos
para aguardar sons, aos quais possa reenviar suas palavras.

Num certo dia, separado do seu grupo de fiéis companheiros,


380 o moço gritara: 'Quem está aqui?' 'Está aqui ! ' , respondera Eco.
Ele fica estupefacto. Dirigindo o olhar para todos os lados,
berra em altos brados: 'Vem ! ' E ela chama quem a chama.
Olhando para trás e, de novo ninguém vindo, 'Porque foges
de mim ? ' , grita. E quantas palavras diz, tantas recebe de volta.
385 Ele insiste, e, enganado pela ilusão da voz que responde, diz:
'Anda para aqui, vamos ! ' , e Eco, que jamais haveria de ecoar
qualquer outro som com mais prazer, 'Vamos ! ' retorquiu. [91

Para apoiar em pessoa as próprias palavras, saiu do bosque


e avançou com o fito de lançar os braços ao ansiado pescoço.
390 Ele, porém, foge. E, ao fugir, exclama: 'Tira as tuas mãos
de cima de mim ! Antes morrer do que entregar-me a ti ! '
Nada consegue ela retorquir a não ser 'entregar-me a ti ! '
Repudiada, esconde-se nos bosques, e, com vergonha, oculta
o rosto na folhagem. E desde então vive em grutas solitárias.
J95 Todavia, o amor permanece e cresce com a dor da repulsa.
Os cuidados das insónias emagrecem o lastimável corpo,
a magreza engelha-lhe a pele, e toda a humidade do corpo
evola-se para os ares. Somente restam a voz e os ossos:
a voz ficou; os ossos, dizem, tomaram o aspecto de pedra.
400 [Desde aí oculta-se em bosques e em monte algum é vista,
e, porém, todos a ouvem: é tão-só som o que vive nela.]

Assim escarnecera desta, assim de outras ninfas, nos montes


ou nas águas nascidas, assim, já antes, do convívio com moços.
Por fim, algum deles, despeitado, ergueu as mãos para o céu,

9Jogo de palavras de difícil reprodução em português. O verbo tanto quer dizer 'encontrar-se'
como 'fazer amor': a intenção de Narciso é propor um simples encontro entre ambos, Eco interpreta
as palavras de Narciso como uma proposta de encontro sexual.
96 L I V R O I I I Narciso

405 'Que lhe seja concedido amar e nunca possuir o ser que ama ! '
terá pedido; e a deusa de Ramnunte aprovou a justa prece. u01

Havia uma fonte límpida, argêntea de reluzentes remoinhos,


que nem pastores nem cabritas pastando no monte, ou outro
gado, tinham, alguma vez, tocado, que jamais pássaro algum
•10 tinha turvado, ou animal bravio, ou ramo caído de árvore.
A toda a volta brotava erva, que a água vizinha alimentava,
e um bosque que jamais deixaria o local aquecer com o sol.
Ali se estendeu o rapaz, exausto do ardor da caça e do calor,
seduzido tanto pela beleza do local como pela nascente.
415 [Enquanto procura acalmar a sede, uma outra sede cresce;]
E enquanto bebe, arrebata-o a imagem da figura que vê.
[Ama uma esperança sem corpo; julga ser corpo o que é água.]
Extasiado consigo mesmo, fica imóvel, incapaz de se mexer,
o olhar fixo, qual estátua esculpida em mármore de Paros.
420 Estendido no chão, contempla os seus olhos, astros gémeos,
e os cabelos dignos de Baco, dignos até do próprio Apolo,
as faces impúberes e o pescoço de marfim, e o esplendor
dos lábios, e o rubor misturado com a alvura da neve.
Olha maravilhado para tudo o que o torna maravilhoso.
425 Sem saber, deseja-se a si próprio, e o elogiado é quem elogia;
e, ao desejar, é o desejado, e junto incendeia e arde de amor.
Quantas vezes beijos vãos não deu àquela fonte enganadora !
Quantas vezes não mergulhou os braços no meio das águas
para abraçar o pescoço que vê, e não se abraçou a si mesmo !
430 O que está a ver, não sabe; mas abrasa-se com aquilo que vê,
e a mesma ilusão que engana os olhos enche-o de desejo.
Crédulo, porque tentas agarrar em vão a fugidia imagem?
O que desejas não existe ! Sai daí e o que amas perderás !
A forma que tu vês não passa de uma imagem reflectida:
435 ela não tem substância. Contigo vem, contigo permanece,
contigo parte - oh ! se tu pudesses partir !

Cuidado algum por Ceres , cuidado algum pelo repouso


conseguem arrancá-lo dali. Estendido na vegetação à sombra,

10 Némesis.
Narciso L I V R O I I I 97

contempla a mentirosa forma com um olhar insaciável,


440 e através dos olhos consome-se. Soerguendo-se um pouco,
estendeu os braços para os bosques à sua volta, e assim diz:
'Quem jamais sofreu, oh ! , bosques, mais atrozmente de amor?
Decerto o sabeis, pois fostes esconderijo oportuno para muitos.
Quem porventura recordareis, na vossa tão longa existência,
445 (pois há tantos séculos viveis) que se tenha assim consumido?
Aquele encanta-me e vejo-o; mas o que vejo e me encanta
não logro encontrar: tanta confusão se apodera de quem ama !
E para que eu sofra mais, nem é o mar imenso que nos separa,
nem longo caminho, montes, muralhas de portas trancadas:
450 separa-nos um ténue fio de água ! E ele anseia ser abraçado:
é que quantas vezes estendi os lábios para as límpidas águas,
tantas vezes voltou para mim a boca e se esforçou por beijar.
Poderia tocar-lhe, dirias: é mínimo o que obsta ao nosso amor.
Quem quer que sejas, sai cá para fora ! Porque me iludes, rapaz
455 sem igual, aonde vais, desejando-te eu tanto? Decerto não foges
da minha figura nem da minha idade. Até ninfas me amaram !
Não sei que esperança me prometes com o teu olhar amigo.
Pois sempre que abri os braços para ti, tu abriste-los para mim;
sempre que ri, tu riste-te; e amiúde reparei nas tuas lágrimas,
460 quando eu chorava. Os meus sinais devolves com um aceno;
e do movimento dos teus formosos lábios, tenho a suspeita
de que respondes com frases que não me chegam aos ouvidos.
Oh ! Mas ele sou eu ! Percebi ! O meu reflexo já não me engana!
É por mim que me abraso de amor ! Inflijo e sofro estas chamas !
465 Que farei? Ser rogado, ou rogarei eu ? Que hei-de rogar, afinal?
O que desejo já eu tenho: é a abundância que me faz pobre.
Oh ! E se eu pudesse separar-me do meu próprio corpo !
(Desejo estranho num amante: querer ausente o ser amado ) .
E já a d o r m e subtrai a s forças. Não m e resta muito tempo
410 para viver, desapareço em plena floração da juventude.
A morte não me é coisa cruel, pois na morte deixarei a dor:
mas ele, a quem eu amo, prouvera que vivesse mais tempo !
Agora morreremos os dois juntos, num só último sopro . '

Assim dizendo, e m delírio, volta-se para aquela mesma face,


475 e com lágrimas turvou a superfície da água: estremecendo,
98 L 1 V R O I I 1 Narciso e Eco - Penteu e Baco

a lagoa devolveu a imagem desfocada. Ao vê-la desaparecer,


'Aonde foges ? Fica, cruel ! Não me deixes, a mim que te amo ! ' ,
gritou. 'Ao menos que eu possa ver o que eu não posso tocar,
e assim oferecer alimento à minha pobre e desvairada paixão ! '
480 Enquanto se entrega à dor, arranca a orla superior da túllica
e fustiga o peito desnudo com as mãos da cor do mármore.
O peito fustigado cobre-se de uma vermelhidão rósea, tal
como costumam as maçãs, quando em parte estão brancas,
noutra se avermelham, ou como cachos de variegadas cores,
485 onde a uva ainda não madura vai ganhando a cor púrpura.
Mal contemplou isto nas águas de novo tornadas limpidas,
não aguentou mais ! Tal como a loira cera sempre se derrete
com uma chama suave, e como o orvalho matinal se dissipa
com o calor do sol, do mesmo modo, esgotado pelo amor,
490 dissolve-se e, pouco a pouco, por fogo oculto é consumido.
Já nem tinha mais aquela cor, o branco à mistura com o rosa,
nem o vigor, as forças e tudo o que antes lhe encantava ver,
nem tão-pouco o corpo era já o que em tempos Eco amara.
E quando esta viu isto, embora ainda ressentida e lembrada,
495 entrega-se à dor. E quantas vezes o pobre rapaz dizia 'ai ! ai ! ' ,
outras tantas vezes ecoando as palavras 'ai ! ai ! ' repetia Eco;
e sempre que lacerava desesperado os braços com as mãos,
também ela devolvia o mesmo som dos golpes de desespero.
Fitando as águas familiares, estas foram a últimas palavras:
500 'Oh ! rapaz amado em vão ! ' , e outras tantas palavras o local
devolveu; e mal disse 'Adeus ! ' , 'Adeus ! ' também disse Eco.
Reclina então a cabeça cansada nas verdejantes ervas,
e a morte cerrou os olhos, admirando a beleza do dono.
(Até depois, ao ser recebido na morada infernal, continuou
505 a mirar-se na água do Estígio) . Suas irmãs Náiades lançam-se
no pranto, cortam madeixas de cabelo e oferecem-nas ao irmão;
no pranto se lançam as Dríades, e no seu pranto ecoou-as Eco.
Já preparavam uma pira e o brandir de tochas e um féretro:
em parte alguma estava o corpo ! No lugar do corpo, acham
510 uma flor de centro cor de açafrão, cingido de pétalas brancas.

ESTE CASO foi conhecido, e granjeara ao vate merecida fama


pelas cidades da Acaia. O renome do áugure era imenso.
Porém, um deles , Penteu, o filho de Equíon, que os deuses
Penteu e Baco L I V R O I I I 99

desdenhava, escarnece dele e ri-se das palavras proféticas


m do ancião, atirando-lhe à cara a desgraça de ter perdido
a vista e de viver nas trevas. Abanando a fronte encanecida,
'Quão afortunado serias ' , disse ele, 'se também desta luz
fosses privado, para que não visses os rituais de Baco !
É que chegará o dia, que eu não prevejo muito distante,
520 em que aqui virá um novo deus, Líber, filho de Sémele.
E se tu não o achares digno de ser honrado em templos,
serás destroçado e espalhado por mil lugares, manchando
do teu sangue os bosques , tua mãe e as irmãs de tua mãe.
Assim sucederá. Pois tu recusarás venerar o novo deus
525 e lamentarás eu ter visto, nestas trevas, demasiado bem . '
E enquanto assim ia falando, expulsa-o o filho d e Equíon.

Os factos confirmam as palavras e cumpre-se este vaticínio.


Chega Líber e os campos retumbam com o festivo alarido.
O povo precipita-se, velhas e moças à mistura com homens,
5Jo pobres e ricos, todos acorrem aos rituais nunca antes vistos.
'Que insano desvario, ó filhos da serpente, ó prole de Marte,
fulminou vossa mente?', exclamou Penteu. 'Acaso o bronze
dos címbalos percutidos com bronze, e a flauta de curvo tubo,
e engodos mágicos tanto podem, que quem espada de guerra,
m trombeta e formações de arma em punho não amedrontaram,
se deixe vencer por guinchos de mulheres, pelo desatino
instilado pelo vinho, por cortejos obscenos e ocos pandeiros?
Não me hei-de pasmar convosco, anciãos, vós que, viajando
sobre o vasto mar, aqui fixastes Tiro, aqui os exilados Penares,
540 e que agora vos deixais vencer sem luta? Ou convosco, jovens,
idade fogosa mais perto da minha, a quem empunhar armas
competia, e não tirsos, envergar capacetes, e não grinaldas?
Recordai-vos, imploro, de que estirpe descendeis vós,
e retomai a bravura daquela serpente, que tantos homens
545 matou sozinha. Ela pereceu lutando pela fonte e pela lagoa;
quanto a vós, vencei combatendo pela vossa própria glória.
Ela deu à morte bravos homens, vós, expulsai os efeminados,
mantende salva a honra ancestral. Se o fado ordena que Tebas
não viva mais, prouvera fossem máquinas bélicas e soldados
550 a derrubar os muros, que retumbassem o ferro e as chamas !
Desgraçados seríamos, mas sem culpa; a nossa sorte seria
100 L I V R O I I I Penteu e Baco - Acetes e o marinheiros tirrenos

para chorar, não esconder, as lágrimas isentas de vergonha.


Mas agora Tebas será conquistada por um rapaz desarmado,
a quem não apraz a guerra, ou dardos, ou o uso de cavalos,
555 mas sim o cabelo ensopado em mirra e efeminadas grinaldas,
e a púrpura e o ouro bordado nas suas coloridas vestes.
Pois eu o forçarei de imediato (afastai-vos só da frente ! )
a admitir que o pai é uma invenção e os rituais um a fraude.
Ora então se Acrísio teve coragem bastante para desprezar
560 este falso deus e fechar-lhe as portas de Argos na cara,
tal forasteiro aterrorizará agora Penteu e Tebas inteira?
Ide, rápido' (assim ordena aos servidores) , 'ide, e o cabecilha
arrastai até aqui agrilhoado ! Obedecei sem demora, rápido ! '

Censura-o o avô, censura-o Atamante, censuram-no todos


565 os outros seus familiares, e em vão se esforçam por o conter.
Os conselhos enfurecem-no; ao ser contida, a cólera irrita-se
ainda mais e cresce, e os esforços para o reter fazem pior.
(Assim eu vi um rio, que, onde nada lhe obstruía o caminho,
deslizava tranquilamente e com um suave burburinho;
570 mas onde era travado, obstruído por troncos ou por pedras,
corria espumante, a fervilhar, mais feroz pela obstrução).
Eis que os servidores regressam ensopados em sangue.
Ao perguntar o senhor onde está Baco, negam Baco ter visto.
'Porém, apanhámos este seu seguidor e servidor do seu culto',
575 disseram. E entregam-no, de mãos atadas atrás das costas
[da raça dos Tirrenos, há muito seguidor dos rituais do deus] .

PENTEU observa o homem, com o olhar que a cólera tornara


assustadora. E embora a custo adie o momento do castigo,
'Tu que vais morrer e que com a tua morte darás exemplo
580 aos outros' , disse, ' diz-me o teu nome e o nome de teus pais
e da tua pátria, e por que razão participas neste novo culto. '
Sem qualquer receio, ele respondeu: 'O meu nome é Acetes ,
a pátria é a Meónia, os meus pais provêm do povo humilde.
Meu pai não deixou campos para possantes bezerros ararem,
585 nem lanzudos rebanhos, nem quaisquer manadas de gado.
Ele próprio era pobre e costumava pescar com anzol e linha,
e puxar com a cana os peixes estrebuchando aos saltos.
Este mister era a sua riqueza; e, quando me passou a arte,
Acetes L I V R O I I I 101

"Toma a riqueza que possuo, meu sucessor e herdeiro


590 de ofício" , disse. Quando ele faleceu, nada mais me deixou
que as águas. Apenas a isto posso chamar minha herança.
Mais tarde, para não estar sempre nas mesmas falésias,
aprendi a conduzir ao leme os barcos, governando-o
com a mão. Aprendi a reconhecer à vista a estrela chuvosa
595 da Capela de Óleno, a Taígete, as Híades e também o Arcto,
e a morada dos ventos e os portos melhores para os barcos.

'Ora, um dia, sucedeu que, dirigindo-me a Delos, chego


às costas de Quios . Com os destros remos acosto à praia.
Dou um ágil salto e atiro-me para a areia molhada.
600 Aí passámos a noite. Mal a Aurora começa a avermelhar-se,
levanto-me e ordeno aos homens que tragam água fresca,
e indico-lhes o caminho que conduzia à nascente.
De uma colina alta, eu observava ao longe o que a brisa
me prometia. Chamo os companheiros e regresso à nau.
605 "Aqui estamos ! " , diz Ofeltes, o primeiro dos camaradas;
e pela praia traz uma presa, julga ele, achada no campo
deserto: um rapaz com a aparência de uma linda menina.

'O menino parece cambalear, como se tonto de sono e vinho,


e a muito custo o seguia. Admiro as roupas, o rosto, o andar.
610 Nada do que eu via nele se poderia considerar humano.
Mal me apercebi disto, digo aos homens: " Não sei que deus
habita neste corpo, mas neste corpo algum deus habita.
Quem quer que sejas, sê propício, assiste aos meus labores.
E perdoa também a estes homens " . " Não peças por nós ! "
615 cortou Díctis, mais rápido que ninguém a trepar ao cimo
dos mastros e a escorregar de volta, abraçado a um cabo.
Isto aprovam Líbis e o loiro Melanto, o vigia da proa,
e Alcimedonte, e aquele que pautava o descanso e o ritmo
dos remos com a voz, Epopeu, incitando a genica deles,
620 e todos os outros. Tão cega era a sua cupidez pelo saque !
" Não deixarei profanar esta nau com esta carga divina.
A minha autoridade neste ponto é soberana" , exclamei;
e tento barrar na prancha a entrada. Lícabas enfurece-se,
o mais audacioso da tripulação toda, ele que fora banido
625 de cidade Tusca e cumpria pena de exílio por homicídio atroz.
1 02 L I V R O I I I Acetes

Enquanto tento barrar-lhe a entrada, agarra-me o pescoço


com a pujante mão, e ter-me-ia atirado ao mar, não fora ficar
preso a um cabo e, meio desmaiado embora, agarrar-me a ele.
A ímpia turba aplaude o que ele fizera. Então, por fim, Baco
6Jo (pois era Baco), como se acordasse do sono pelos berros
e os sentidos retomassem ao peito depois da embriaguez,
" Que fazeis? Que clamor é este? " diz. " Como cheguei aqui,
marinheiros, dizei? Para onde vos preparais para me levar? "
" Não tenhas medo " , disse Proreu, " diz qual o porto
635 para onde desejas ir e ficarás na terra que demandas. "
"Apontai o vosso rumo para Naxos " , disse então Líber;
" Essa é a minha morada e ser-vos-á terra hospitaleira. "
Pelo mar e pelos deuses todos juram, traiçoeiros, que será
assim, e ordenam-me que desfralde as velas da colorida nau.

640 'Naxos ficava a estibordo. Mal para estibordo dirigi as velas,


" Que fazes, ó louco? Que desvario te ataca? " , disse Ofeltes,
"Ruma a bombordo " . A maioria deles, com acenos de cabeça,
indicam-me o que significa, alguns sussurram-me ao ouvido.
Fico mudo de espanto. " Que outro tome o leme ! " , disse eu,
645 e renunciei à responsabilidade do meu ofício e do crime.
Por todos sou insultado, e a turba fica toda a resmungar.
Um deles, Etálion, diz: " Fica sabendo: a salvação de todos
não te cabe só a ti. " Então avança e ocupa a minha função;
e, deixando para trás Naxos, ruma em direcção contrária.
650 Então o deus, zombando, como se apenas do embuste
se apercebesse agora, da popa recurva perscruta o mar.
Fingindo chorar, " Estas não são as costas, ó marinheiros,
que prometestes, " disse, " esta não é a terra que vos pedi.
Que fiz para merecer tal castigo? Que glória alcançareis
655 em homens enganar um menino, muitos enganar um só? "
Há muito que eu chorava: ri-se das minhas lágrimas
a ímpia turba e impele as águas com apressados remos.
E agora pelo próprio deus te juro (pois não há deus
mais presente que ele), que tão verdadeiras são as coisas
660 que conto, quanto elas são inacreditáveis. Imobiliza-se
a nau no mar, como se um estaleiro a retivesse a seco.
Estupefactos, eles insistem nos golpes dos remos,
Acetes - Penteu e Baco (cont.) LIVRO III 1 03

desfraldam as velas, tentam avançar com duplo recurso.


Mas heras estorvam os remos e serpenteiam em espirais
665 retorcidas, e adornam as velas com corimbos carregados.
O próprio deus, de fronte cingida com cachos de uvas,
brande uma vara toda coberta de folhas de videira.
À sua volta, deitam-se tigres e imagens incorpóreas
de linces e corpos ferozes de leopardos malhados.
610 Os homens atiraram-se borda fora, ou por loucura,
ou por terror. Médon, o primeiro, por todo o corpo
enegrece e encurva-se com o arqueamento da espinha.
Perguntou-lhe Lícabas: " Em que criatura assombrosa
te transformas? " Enquanto fala, os queixos alargam-se
675 o nariz arredonda-se, a pele endurece e ganha escamas.
Ora, Líbis, ao tentar manobrar os remos bloqueados,
vê as suas mãos encolherem-se num tamanho bem pequeno,
e já nem se podiam chamar mãos, mas sim barbatanas.
Um outro, intentando lançar os braços aos retorcidos
680 cabos, já não tem braços, e, tomando balanço, mergulha
o mutilado corpo nas ondas; em forma de foice é a ponta
da cauda, tal como se encurvam os cornos da meia-lua.
De todos os lados, saltam e atiram grandes repuxos,
e emergem de novo, e de novo mergulham no mar,
685 e bailam como as dançarinas, e atiram, brincalhões,
os corpos, e sopram pelas largas narinas a água aspirada.
Dos vinte homens de antes (tantos transportava a nau ) ,
apenas restava e u . Enquanto tremia, gelado d e pavor,
quase inconsciente, o deus tranquiliza-me, dizendo:
690 " Não tenhas medo; ruma para Dia. " Desembarcando ali,
iniciei-me no culto, e desde aí celebro os rituais de Baco . '

'DEMOS ouvidos a o teu arrazoado', disse Penteu, ' confuso


e longo, para que com a demora a nossa ira esmorecesse.
Levai-o lá para fora, servidores, retalhai-lhe o corpo
695 com cruéis torturas e lançai-o na negridão do Estígio ! '
De imediato, arrastam o tirreno Acetes e enclausuram-no
em sólido cárcere; e enquanto preparam, como ordenado,
os cruéis instrumentos para o matar, e o ferro e o fogo,
diz-se que por si só as portas se abriram, e dos braços
100 deslizaram por si só os grilhões, sem ninguém os soltar.
104 L I V R O I I I Penteu

O filho de Equíon não desiste. Já nem diz a outros para irem:


vai ele em pessoa onde o Citéron, eleito para celebrar os ritos,
ressoava com cânticos e as vozes estridentes das Sacantes.
Como o cavalo fogoso resfolega e reganha paixão pela guerra
105 mal o corneteiro com sonoro bronze dá sinal para o ataque,
assim o ar abalado pelos longos uivos transtorna Penteu,
e o clamor que ele vai escutando reincendeia-lhe a cólera.

Quase a meio do monte, há um campo bordejado de bosques,


sem qualquer árvore, que de todo o lado se podia observar.
110 Aqui assistia Penteu às cerimónias com seus olhos sacrílegos.
Eis que a mãe é a primeira a vê-lo, a primeira a ser possuída
em tresloucada correria, a primeira a golpear o seu Penteu,
arrojando-lhe o tirso. 'Vinde, irmãs, vinde as duas ! ' gritou.
'Aquele javali gigantesco, que vagueia pelos nossos campos,
115 esse javali, eu tenho de o matar ! ' Toda a turba, enlouquecida,
desaba sobre ele. De todo o lado acorrem e perseguem-no
aos uivos, agora apavorado, agora mais cordato nas palavras,
agora culpando-se a si próprio, agora admitindo que pecara.
Ferido, ele, porém, ainda implora: 'Acode-me, minha tia !
120 Possa a sombra de Actéon fazer Autónoe compadecer-se ! '
Esta j á nem sabe quem é Actéon, e arranca a mão direita
a quem lhe suplicava; Ino amputa e desfaz a outra mão.
O desgraçado já nem braços tem para estender para a mãe.
Exibindo as chagas rasgadas pelo arrancar dos membros,
125 'Olha, mãe ! ' grita. À vista disto, Agave põe-se aos urros,
sacode o pescoço e, agitando o cabelo pelo ar, arranca-lhe
a cabeça. Apertando-a com os ensanguentados dedos,
exclama: 'Eh ! camaradas, este feito é uma vitória nossa ! '
Tão depressa arrebata o vento as folhas tocadas pelo frio
130 outonal, já fragilmente presas na ramagem da alta árvore,
como as abomináveis mãos estraçalham o corpo do homem.

Advertidas por estes exemplos, as Isménides celebram


o novo culto, ofertam incenso e veneram os sacros altares.
LIVRO IV

MAs ALcíroE, a filha de Mínias, julga que não se deve aceitar


os ritos mistéricos do deus, e continua a dizer, a temerária,
que Baco não é filho de Júpiter. E as suas irmãs partilham
desta impiedade. Ora, o sacerdote ordenara que um festival
fosse celebrado, e que as servas e as matronas, dispensadas
dos seus afazeres, cobrissem o peito com peles de animais,
soltassem do cabelo as fitas, e, de grinaldas na cabeça, tirsos
frondosos empunhassem. Vaticinara ainda que a ira do deus,
se ofendido, seria terrível. Obedecem matronas e jovens.
10 Pousam os teares e os cestos e os novelos deixados a meio,
queimam incenso, invocam Baco: chamam-lhe Brómio, Lieu,
Filho do fogo, Nascido duas vezes, Único a ter duas mães.
A estes somam o nome Niseu, o de Tioneu de cabelo intonso,
E, com o de Leneu, o de Plantador da videira festiva,
15 e o de Nictélio e o de seu pai, Eleleu, e de Iaco e de Évan,
e todos os outros títulos sem conta que os povos da Grécia
te conferem, ó Líber. Tu tens uma juventude inesgotável,
tu és o menino eterno, tu és admirado nas alturas dos céus
como o mais belo; tu, quando estás presente sem cornos,
20 tens um rosto virginal. Tu conquistaste o Oriente até onde
a Índia de tez morena é banhada pelo remotíssimo Ganges.
Tu, ó venerável, aniquilaste os sacrílegos Penteu e Licurgo,
este armado do machado de dois gumes, e lançaste ao mar
os Tirrenos. O teu jugo pesa na cerviz da parelha de linces,
25 vistosos de coloridos arreios. Seguem-te Bacantes e sátiros,
e o velho ébrio que sustém o corpo cambaleante com o bastão
e nem se aguenta bem sobre a garupa encurvada do burrico. 01

' Sileno.
106 L I V R O I V As Miníades - Píramo e Tisbe

Por onde quer que vás , ressoam, com o clamor das jovens,
os gritos das mulheres, e os pandeiros percutidos pela palma
io das mãos, os côncavos bronzes e as longas flautas de buxo.

' Que venhas gentil e benévolo ! ' , imploram as Isménides;


e participam, obedientes, na cerimónia. Só as filhas de Mínias
estragam a festa, ficando em casa com inoportunos lavores
de Minerva: fiam a lã e vão torcendo com o polegar os fios,
J5 debruçam-se sobre o tear, fazem as servas trabalhar sem fim.
Uma delas, puxando um fio com o hábil polegar, assim diz:
'Enquanto elas folgam e participam nesses rituais inventados,
nós, da nossa parte, devotadas a Palas, uma deusa superior,
aligeiremos com conversa diversa o útil trabalho das mãos,
40 contemos à vez umas às outras, estando as orelhas ociosas,
alguma coisa que permita as horas parecerem menos longas. '
A s irmãs aprovam e pedem que conte, a primeira, uma história.
Qual contará de entre muitas (pois conhecia inúmeras)
ela reflecte. Hesita se falará sobre ti, Dércetis da Babilónia,
45 que, como crêem os Palestinos, coberto o corpo de escamas,
mudaste de forma e foste habitar nas águas dos lagos;
ou antes aquela sobre a filha desta, que, ganhando asas, 121

passou os últimos anos da sua vida em torres brancas;


ou como com canto e potentíssimas ervas uma Náiade
50 transformava os corpos de mancebos em mudos peixes,
até sofrer sorte igual; ou como a árvore que dava alvos frutos
agora os dá de cor escura, por ter sido tocada pelo sangue.
Decide-se por esta, visto que não é uma história conhecida;
e assim começou ela, enquanto a sua lã seguia atrás dos fios:

55 'ERA UMA VEZ Píramo e Tisbe. Ele era o mais belo dos jovens,
ela a mais deslumbrante de todas as moças que o Oriente teve.
Moravam em casas contíguas, naquela cidade altíssima
que se diz Semíramis ter rodeado de muralhas de tijolo. "1

A vizinhança fê-los conhecerem-se e iniciarem uma amizade.


60 Com o tempo veio o amor, e ter-se-iam unido em legítima boda,

2 Semíramis.
' Babilónia.
Píramo e Tisbe L I V R O 1 V 1 07

não fora os pais o terem proibido. Mas algo proibir não puderam:
de corações apaixonados, ambos ardiam de chama igual.
Não tinham qualquer confidente; falavam por sinais e gestos,
e quanto mais se encobria o fogo, mais ele encoberto ardia.
65 A parede comum às duas casas tinha uma pequenita fenda,
que se abrira há muito, na época em que ela fora construída.
Este defeito, despercebido de todos ao longo de tantos anos,
fostes vós, ó enamorados, os primeiros a ver (o que não vê
a paixão? ) e dela fizestes caminho para falar; por ele, seguras,
10 costumavam passar as doces palavras em grandes sussurros.
Muitas vezes, Tisbe postada daqui, Píramo postado dali,
apanhavam à vez o hálito da boca do outro, e diziam:
"Malvada parede, por que razão és obstáculo ao nosso amor?
Quanto custaria permitires unirmo-nos de corpo inteiro?
15 Ou se isto é de mais, abrires-te ao menos para nos beijarmos?
Não somos ingratos. Admitimos que te somos devedores,
pois dás passagem às palavras até aos ouvidos do amado. "

'Dizendo em vão coisas deste tipo de lugares separados,


despediram-se ao cair da noite; e cada um deu ao seu lado
80 da parede os beijos que não chegaram ao outro lado.
Na manhã seguinte, afastara já a Aurora os fogos nocturnos
e secara o sol com os raios os prados molhados de orvalho,
reúnem-se no sítio habitual. Então, depois de se lamentarem
longamente, em grande sussurro, decidem tentar iludir
85 os guardas e sair das casas no meio do silêncio da noite,
e, uma vez fora de casa, abandonar também a cidade,
e, para não se perderem vagueando pelos vastos campos,
reunir-se junto ao túmulo de Nino e esconder-se na sombra
de uma árvore. Havia ali uma árvore carregada de frutos
90 da cor da neve, uma alta amoreira, à borda de tão fresca fonte.
Aprovam o plano. Finalmente, o dia, que parecera afastar-se
devagar de mais, cai no mar, e daquelas ondas a noite emerge.

'No meio das trevas, Tisbe faz girar, hábil, o gonzo da porta
e sai de casa, passando despercebida aos seus; cobrindo a face,
95 chega ao sepulcro e senta-se debaixo da árvore combinada:
a paixão fazia-a ousada. Eis que se aproxima uma leoa,
108 L I V R O IV Píramo e Tisbe

de mandfüulas espumantes, ensopada do sangue de matança


recente de bois, para beber nos torvelinhos da fonte vizinha.
Quando a babilónia Tisbe a viu ao longe à claridade da lua,
100 desata a fugir em corrida assustada para uma escura caverna;
na fuga, cai-lhe das costas o xaile e deixa-o ficar ali tombado.
Quando a feroz leoa acabou de saciar a sede, bebendo imenso,
encontrou, por acaso, ao regressar à floresta, a delicada veste
sem a sua dona e estraçalhou-a com as fauces ensanguentadas.

105 'Saindo mais tarde, Píramo vislumbra na funda poeira


as pegadas indesmentíveis de uma fera, e o rosto fica todo
lívido. Mas quando deparou com a veste manchada
de sangue, gritou: " Uma só noite perderá dois enamorados !
De nós dois, ela era a mais merecedora de uma vida longa.
1 10 A minha alma é culpada. Fui eu, coitadinha ! , quem te matou,
que te disse para vires de noite a estes locais assustadores,
sem eu para aqui ter vindo primeiro. Estraçalhai o meu corpo
e comei as minhas malditas entranhas com ferozes dentadas,
ó leões, quaisquer que sejais que habitais sob este penhasco !
115 Mas é próprio do cobarde desejar a morte. " Recolhe o xaile
de Tisbe, leva-o para debaixo da sombra da árvore acordada.
Depois de ter vertido lágrimas, de ter beijado a veste familiar,
"Recebe agora também uma golfada do meu sangue " , disse,
e enterra no ventre a espada que costumava trazer à cintura.
120 De imediato, a morrer, arranca-a da ferida que borbotava,
e tomba de costas por terra. O sangue esguicha bem alto,
tal como quando uma canalização de chumbo deteriorada
se fende, e do orifício jorra silvando um fino jacto de água
para bem longe, rasgando os ares com o seu golpe.
125 Borrifados de sangue, os frutos da árvore tomam-se
escuros, e a raiz, de sangue encharcada, continua a tingir
os cachos pendentes de amoras com a cor da púrpura. r41

'Ainda não recuperada do susto, para não faltar ao amante,


eis que ela volta e busca o jovem com os olhos e o coração,
130 ansiosa por lhe contar os grandes perigos a que escapara.

4 Trata-se da amoreira-negra.
Píramo e Tisbe L I V R O 1V 109

E embora reconheça o sítio e a forma da árvore que já vira,


a cor dos frutos fá-la na dúvida: hesita se será esta a mesma.
Enquanto hesita, vê no chão, numa poça de sangue, o corpo
agonizante, em convulsões. Recua, com o rosto mais pálido
m que a madeira de buxo, e arrepia-se de horror como o mar
que estremece quando uma brisa suave lhe roça a superfície.
Mas quando, pouco tempo depois, reconheceu o seu amor,
bate com sonoros golpes nos braços, que não o mereciam;
e, arrancando os cabelos e abraçando o corpo amado,
140 encheu as feridas de lágrimas. O pranto com o sangue
misturou, e, cravando muitos beijos no rosto gelado,
"Píramo ! " , gritou. " Que infortúnio te arrebatou de mim?
Píramo, responde ! Sou a tua Tisbe, meu querido, sou eu
quem te chama. Escuta ! Abre os teus olhos prostrados ! "
145 Quando ouviu o nome Tisbe, Píramo abriu os olhos,
que a morte já carregava, e, mal a vê, volta a fechá-los.

'Mal ela reconheceu o seu xaile e viu a bainha de marfim


sem espada, diz: " Foi tua mão e o amor que te perderam,
infeliz. Também eu tenho mão firme, ao menos para isto,
150 e o mesmo amor. Será este a dar-me forças para o golpe.
Seguir-te-ei na morte, e todos dirão que fui, pobrezinha,
causa e companheira do teu fim. E tu, que só a morte podia
roubar-te a mim , oh ! , nem a morte a mim te poderá roubar.
Para vós, porém, nós ambos vos dirigimos esta súplica,
155 ó desgraçadíssimos pais, os meus e os dele: que àqueles
que um amor sincero uniu, que uniu o instante final,
não lhes recuseis serem sepultados no mesmo túmulo.
Quanto a ti, ó árvore que cobres agora com teus ramos
o pobre corpo de um , e em breve cobrirás os de dois,
1 60 guarda as marcas destas mortes e dá sempre frutos de cor
escura, próprios do luto, recordação do sangue de nós dois. "
Assim disse; e , apontando a espada à base do peito,
deixou-se cair sobre a lâmina, ainda morna do sangue dele.
Mas os seus desejos tocaram os deuses , tocaram os pais:
165 pois quando está maduro, a cor do fruto é vermelho escuro,
e o que restou da pira funerária repousa numa só urna . '
llO L I V R O I V O s amores d o Sol (Vénus e Marte) - Leucótoe e Clície

TERMINARA. Após uma breve pausa, começou então a falar


Leucónoe; e as suas irmãs interromperam as conversas.

'ATÉ AQUELE, que todas as coisas governa com sua luz astral,
110 o Sol, o amor conquistou. Vou contar-vos os amores do Sol.
Foi este o primeiro deus, julga-se, a dar-se conta do adultério
de Vénus com Marte: de resto, é o primeiro deus a tudo ver.
Escandalizado com o caso, revelou ao marido, o filho de Juno,
o amor secreto e o local dos furtivos encontros. A este caiu
175 a alma aos pés, tal como a peça que as suas mãos de artífice
seguravam. Logo fabrica com raro esmero finíssimas correntes
de bronze, uma rede e laços capazes de passar despercebidos
à vista. Nem os mais finos fios de lã superariam aquela obra,
nem mesmo a teia de aranha que pende da trave do tecto.
180 Fê-la de forma a que o mais leve toque, o mínimo contacto,
a accionasse, e dispô-la de modo apropriado de roda da cama.
Quando a esposa e o adúltero vieram encontrar-se no leito,
na armadilha fabricada pela arte e a original técnica do marido
são ambos apanhados, e ficam presos nos braços um do outro.
185 De imediato, o deus de Lemnos escancarou as portas de marfim
e fez entrar os deuses . Eles jaziam vergonhosamente enredados !
E um dos deuses, divertido, diz que quem lhe dera ficar assim
envergonhado. Os deuses desatam a rir, e por muito tempo
esta foi de longe a história mais badalada em todo o céu.

190 'A DEUSA de Citeros dá ao delator um castigo exemplar,


e, pela sua parte, fere com paixão similar quem tinha ferido
a sua paixão secreta. De que te vale agora, ó filho de Hiperíon,
a tua formosura, e o teu brilho, e a tua radiosa luminescência?
De facto, tu que abrasas as terras todas com as tuas chamas,
195 és abrasado por chama para ti nova; e tu que deves tudo ver,
contemplas apenas Leucótoe, fixas na jovem, numa só, o olhar
a que o mundo todo tem direito. Ora surges no céu do Oriente
demasiado cedo, ora demasiado tarde mergulhas no mar,
ora, atrasado a contemplá-la, prolongas as horas do Inverno.
200 Por vezes esmoreces, e o desânimo transfere-se para a tua luz,
e, obscurecendo-te, aterrorizas os corações dos seres mortais.
Leucótoe e Clície L I V RO I V 111

Se estás pálido, não é por a imagem da lua, mais perto d a terra,


se colocar à tua frente: é a paixão que te provoca tal cor.
Apenas a ela tu amas. Esqueceste-te de Clímene e de Rodo,
205 e da lindíssima jovem que de ti foi mãe da Circe de Eeia, "'
e de Clície que, mesmo desprezada, ansiava fazer amor
contigo e que naquele tempo sofria atrozmente de paixão
por ti. Muitas foram aquelas que Leucótoe te fez esquecer.
Sua mãe fora Eurínome, a mais formosa daquele povo
210 das terras dos perfumes. Mas quando a filha cresceu, tal
como a mãe superava todas, assim a filha superava a mãe.
O seu pai era Órcamo, rei das cidades dos Aqueménidas, 1 61

o sétimo se contarmos a sequência desde o antigo Belo.

'Sob os céus da Hespéria ficam os pastos dos cavalos do Sol.


215 Aqui, em vez de erva, tomam ambrósia: alimenta os corpos
cansados da labuta diurna e recupera forças para o trabalho.
Enquanto aí os cavalos se vão nutrindo do pasto celestial
e a noite assumira a sua vez, o deus toma a aparência da mãe,
Eurínome, e penetra no quarto da amada. Aqui vislumbra
220 Leucótoe entre doze servas, ocupada a fazer girar o fuso
e a fiar os delicados fios de lã à luminosidade das candeias.
Ora, quando a beijou como uma mãe a uma querida filha,
"Tenho de lhe dizer um segredo " , disse. " Saí, servas;
não tireis a uma mãe o direito de lhe fazer confidências. "
225 Elas obedeceram. Quando já não há testemunhas no quarto,
diz o deus: " Eu sou aquele que dá a medida ao longo ano,
o que tudo vê, graças ao qual a terra vê todas as coisas,
o olho do mundo. Desejo-te, acredita ! " Ela fica aterrada;
com o medo, a roca e o fuso caíram dos dedos desfalecidos.
2io O medo tornou-a até mais bela. Ele não perdeu mais tempo,
e retornou à sua verdadeira forma e ao habitual fulgor.
Quanto à jovem, embora assustada com a inesperada visão,
é vencida pelo brilho do deus e, sem se queixar, é violada.

'Clície enche-se de ciúmes (pois o arroubo amoroso do Sol


235 com a jovem fora demasiado intenso) e num acesso de raiva

5 Perse.
6A Pérsia.
112 L I V R O I V Leucótoe e Clicie

divulga o adultério, difama a rival e denuncia-a ao pai.


Este, feroz e desapiedado, implorando e estendendo ela
as mãos para a luz do Sol, dizendo " Ele violou-me contra
a minha vontade ! " , enterra-a, brutal, em cova bem funda
240 e despeja-lhe por cima um pesadíssimo montão de terra.
Com os raios, o filho de Hiperíon despedaça-o, e abre-te
um caminho por onde possas fazer sair o rosto soterrado.
Mas tu, ó ninfa, já não eras agora capaz de erguer a cabeça
esmagada pelo peso da terra e ali jazias, um corpo sem vida.
245 Diz-se que, desde os fogos de Faetonte, jamais o condutor
dos corcéis alados vira nada de mais doloroso do que aquilo.
Ele, na verdade, com o poder dos seus raios, bem tenta
a ver se consegue chamar o corpo frio ao calor da vida.
Mas visto que o destino se opõe a tão grandes esforços,
250 borrifa o corpo e o local com um néctar aromático.
Após lamentos sem conta, disse: "Mas tu tocarás os céus ! "
De imediato, o corpo, embebido num néctar celestial,
dissolve-se e encharca a terra de um líquido aromático.
Então, a pouco e pouco, ergueu-se um rebento de incenso,
255 as raízes entranham-se na terra, a ponta irrompeu do túmulo.

'Quanto a Clície, embora a paixão pudesse justificar o ciúme,


e o ciúme a denúncia, nunca mais aquele que nos dá a luz
foi ao encontro dela, nunca mais fez com ela amor. A partir
dali, ela, que amara de forma demencial, começa a definhar.
260 Suportando a chuva e o céu aberto quer de dia quer de noite,
sentou-se na terra nua, os cabelos sem enfeites, desarranjados.
Durante nove dias inteiros, sem tocar em água ou alimento,
nada mais ingeriu a não ser orvalho puro e as suas lágrimas,
e não mais se moveu do chão. Somente observava o rosto
265 do deus que passava, e ia voltando a sua face para ele.
Diz-se que, por fim, o corpo se prendeu ao solo; a palidez
amarelenta transformou-a numa planta lívida em parte,
outra parte é avermelhada, e uma flor quase igual à violeta
cobre-lhe os lábios. E embora as raízes a prendam, volta-se
270 sempre para o seu Sol e na nova forma guarda a sua paixão.' m

7 Heliotrópio.
As Miníades (cont.) - Sálmacis e Hermafrodito L I V R O I V 1 13

Assim dissera. A todas encantou ouvir o assombroso caso.


Umas dizem ser impossível ter acontecido, outras recordam
que deuses verídicos tudo podem: mas Baco não era destes .

QUANDO as irmãs se calaram, reclamam ouvir Alcítoe.


215 Fazendo correr a lançadeira entre os fios da urdidura de pé,
assim contou: 'Calo os amores bem conhecidos de Dáfnis,
o pastor do Ida, que a ninfa, com o fito de se vingar da rival, csi

transformou em pedra: tal a dor que abrasa os apaixonados !


Nem direi como em tempos idos, revolucionando as leis
2so da natureza, o ambíguo Síton ora foi homem, ora mulher.
Nada direi de ti, Celmis, hoje duro metal, outrora fidelíssimo
ao jovem Júpiter, e dos Curetes, nascidos de chuvada enorme,
e de Croco e Esmílax, transformados em pequeninas flores .
Prender-vos-ei a atenção com uma história inédita e deliciosa.
2s5 Ouvi a razão da má fama da fonte de Sálmacis, como debilita
e efemina os corpos que tocam nas suas pusilânimes águas.
A causa disto é obscura, o seu poder, porém, conhecidíssimo.

'HouvE um menino, filho de Mercúrio e da deusa de Citeros,


que fora criado pelas Náiades nas grutas do monte Ida;
290 No seu aspecto, tanto a mãe como o pai se podiam nele
reconhecer; e também o seu nome derivou dos dois. c•i

Logo que chegou aos quinze anos, deixou as serranias


Nativas, abandonando o Ida, onde fora criado.
Encantava-o vaguear por locais ignotos, ignotos rios
295 contemplar, com o entusiasmo mitigando-lhe as fadigas.

'Visitou também as cidades da Lícia e até as da Cária,


vizinhas da Lícia. E aqui vê uma lagoa de água cristalina,
límpida até ao fundo. Nela não havia canaviais palustres,
nem estéreis limos, nem juncos de aguçadas pontas:
300 a água é transparente. As bordas do lago são cingidas,
porém, por viçosa relva e plantas sempre verdej antes.
Ali morava uma ninfa. Não era ela propensa a caçadas,

8 Ninfa chamava-se Nómia.


9 Hermafrodito resulta da fusão de Hermes e Afrodite.
1 14 LIVRO 1V Sálmacis e Hermafrodito

ou habituada a retesar o arco ou a competir em corrida:


era a única das Náiades que a veloz Diana desconhecia.
305 Consta que, muitas vezes, suas irmãs lhe tinham dito:
" Ó Sálmacis, pega num dardo ou na colorida aljava,
e alterna as tuas horas de lazer com fatigantes caçadas . "
Mas ela não pega num dardo, nem e m colorida aljava,
nem alterna o seu lazer com as fatigantes caçadas.
3 10 Em vez disso, ora banha o formoso corpo na sua fonte,
ora, tanta vez, penteia o cabelo com um pente do Citoro,
e vê o seu reflexo nas águas, a ver o que lhe fica melhor.
Por vezes, cobrindo o corpo com uma veste diáfana,
estende-se sobre macias folhas ou sobre um prado macio,
315 muitas vezes colhe flores. Sucedeu por acaso que, nesse dia,
colhia flores quando vê o moço e, ao vê-lo, desejou possuí-lo.
Porém, não se abeirou dele, ainda que ansiosa de se abeirar,
antes de se arranjar um pouco, antes de ajeitar o vestido,
de ensaiar a expressão, de estar segura de parecer bela.

320 'Então assim começou ela: " Ó rapaz, digno como ninguém
de seres tomado por um deus: se és um deus, serás Cupido,
se és um mortal, afortunados são os que te geraram,
venturoso o teu irmão, abençoada, sem dúvida, a irmã,
se acaso tens alguma, e a ama que te deu de mamar.
325 Mas, muito mais, infinitamente mais feliz que todos estes,
é a noiva que tiveres, se a alguma deres a honra de desposar.
Se tiveres noiva, que o nosso encontro amoroso seja furtivo;
se não tens, que seja eu ! Vamos para o mesmo leito conjugal ! "
Aqui calou-se a Náiade. O rubor marcou as faces do rapaz
330 (não sabia ainda o que era o amor) , mas até corado era belo !
A sua cor era a das maçãs que pendem da árvore soalheira,
a do marfim de púrpura coberto, a da lua que sob o fulgor
se avermelha quando soam em vão os bronzes para a ajudar. [••1

Suplicando a ninfa, vezes sem conta, ao menos beijos de irmã,


335 estava a ponto de lançar os braços ao pescoço ebúrneo dele,
" Ou paras já ou fujo e abandono-te e a estes locais ! " , disse ele.

1 0 Referência a uma tradição em que procurava afugentar' o eclipse, batendo em objectos de


1

bronzes.
Sálmacis e Hermafrodito L I V R O I V 1 15

Sálmacis assustou-se e respondeu: "Deixo-te este local livre,


forasteiro ! " ; e, voltando-lhe as costas, simulou afastar-se.
Porém, olhando sempre para trás, embrenhou-se na mata,
340 e foi esconder-se de joelhos sob umas moitas. Ora o rapaz,
como se estivesse só no prado, como se ninguém o espiasse,
põe-se a andar daqui para ali, de lá para cá, e banha os pés
na corrente saltitante, da ponta dos dedos até ao tornozelo.
Em breve, seduzido pela doce temperatura da mimosa água,
345 desembaraça o seu corpo gracioso das macias roupas.

'Foi então, na verdade, que ele fascinou Sálmacis: ela ardia


de desejo da sua beleza nua. Os olhos da ninfa até dardejam,
tal como quando o refulgente e límpido disco de Febo
é reflectido por um espelho à sua frente colocado.
350 A custo aguenta esperar, já a custo protela o gozo do desejo,
já anseia por abraçá-lo, já não se contém, de cabeça perdida.
Entretanto, ele bate no corpo com as mãos em concha e salta
ágil para a lagoa; e, movendo os braços alternadamente,
rebrilha através das límpidas águas, tal como se se cobrisse
355 de translúcido vidro uma estatueta de marfim ou alvos lírios.
"Venci ! Ele é meu ! '' , exclama a Náiade; e arremessando
para longe as vestes todas, mergulha no meio das águas.
Agarra o moço que lhe resiste, rouba-lhe beijos à força,
põe as mãos debaixo dele e acaricia o peito à sua revelia.
360 E ora deste lado, ora daquele, enrola-se toda no rapaz.
Por fim, enquanto ele resiste e se esforça por escapar,
ela enrosca-se nele, tal como a serpente que a águia real
agarra e arrebata para os céus (dependurada, aquela ata
a cabeça e as patas, e com a cauda envolve as asas abertas) ,
365 ou como costumam as heras entrelaçar-se nos altos troncos,
ou como o polvo, que, debaixo de água, captura o inimigo
e o agarra firme, estendendo os tentáculos por toda a parte.

'O bisneto de Atlas teima em negar à ninfa o prazer ansiado.


Ela agarra-o e aperta-o com todo o seu corpo, colada a ele
310 como estava, e exclama: "Por mais que lutes , malvado,
não me escaparás ! Ó deuses, estipulai que jamais chegue
o dia que o venha separar de mim, nem eu dele . "
1 16 L I V R O IV Sálmacis e Hermafrodito - As Miníades (cont.)

A prece encontra deuses a seu favor. Pois os corpos dos dois


misturam-se e soldam-se, fundindo-se numa só figura.
375 Tal como se alguém une ramos com a casca de um tronco,
quando crescem , se vê unirem-se e desenvolverem juntos,
assim, quando pelo sólido abraço os corpos se uniram,
já não são dois, mas uma figura dupla; nem se pode dizer
se é homem ou mulher: não parece nenhum, mas os dois.
380 Então, ao ver que as límpidas águas, onde entrara homem,
o tinham tornado semi-homem, e nelas o corpo se tornara
mais débil, estendendo as mãos e com voz já não viril,
Hermafrodito exclamou: "Dai um presente ao vosso filho,
ó meu pai e minha mãe, que traz o nome de vós ambos:
385 homem que entre nesta fonte saia daqui semi-homem,
e que, ao vir banhar-se, fique de imediato mais débil . "
O s pais ambos, tocados pelas palavras d o biforme filho,
ratificaram-nas, infectando a fonte com uma droga poluente. '

ACABARA a história. Afadigavam-se ainda a s filhas d e Minías


390 no trabalho, desdenhando o deus e profanando o festivo dia,
quando eis que, de súbito, lá retumbam pandeiros invisíveis
com roucos estrépitos, e silvam flautas de tubo recurvo,
tilintam címbalos de bronze, rescende o ar a mirra e açafrão.
Então (nem dava para crer ! ) as telas põem-se a enverdecer,
395 os tecidos pendurados a cobrirem-se de folhas, quais heras;
parte transforma-se em videiras, e aquilo que antes eram fios
converte-se em sarmentos; da urdidura saem as parras,
a púrpura passa o seu fulgor aos coloridos cachos de uvas.
E agora o dia atingia o seu termo, e chegara aquela hora
400 que tu não sabes dizer se são trevas ou luz diurna, aquela
que confina com a noite incerta, restando ainda alguma luz.
De súbito, a casa parece tremer, as gordurentas lamparinas
acenderem-se, o palácio iluminar-se com labaredas rubras
e falsas imagens de animais selvagens parecem uivar.
405 E já então as irmãs se escondiam nas salas cheias de fumo,
e cada uma para seu lado fugia às chamas e ao clarão da luz.
Enquanto buscam obscuridade, entre os membros mirrados
estende-se uma membrana que encerra os braços em fina asa.
De que forma perderam elas a sua aparência primitiva,
lno e Melicertes L I V R O I V 1 17

410 as trevas não permitem saber. Não se elevaram com penas,


mas sustiveram-se nos ares com as suas asas translúcidas.
Sempre que intentam falar, emitem um som finíssimo,
na proporção do corpo, lamentam-se com um agudo chiar.
Habitam em casas, não em bosques; e odiando a luz do dia,
415 esvoaçam de noite, e o nome deriva do final do entardecer. [JIJ

ENTÃO é que Baco se tornou famosíssimo em toda a cidade


de Tebas; e, por toda a parte, relatava a sua tia os poderes D21

tremendos do novo deus. De tantas irmãs, ela fora a única


isenta de dor - a não ser a que lhe causaram as irmãs. [J3J

420 Vendo-a cheia de orgulho dos filhos, do seu matrimónio


com Atamante e do divino enteado, Juno não tolerou mais
e disse para consigo: 'Pôde o bastardo, filho da minha rival,
transformar os nautas da Meónia e fazê-los saltar ao mar,
dar as entranhas do filho para a própria mãe as esventrar,
425 e revestir as três filhas de Mínias de estranhíssimas asas,
e Juno nada pode, senão chorar e sofrer sem vingança?
E eu contento-me com isto? É este todo o meu poder?
Ele mostra o que fazer: não é ilícito aprender do inimigo.
com a morte de Penteu mostrou à saciedade os efeitos
430 da loucura; porque não hei-de instilar em lno os aguilhões
do desvario, fazendo-a seguir os exemplos da sua família? '

Há um caminho que desce à sombra densa de fúnebres teixos:


através de mudos silêncios, ele conduz às mansões infernais.
Sobre ele o inerte Estígio exala névoas, e por ele descem
435 as sombras novas, espectros dos que gozaram de sepultura.
A palidez e o frio dominam totalmente tais lugares agrestes,
e os mortos, ao chegar, ignoram qual o caminho para a cidade
do Estígio, onde é que fica o selvagem palácio do negro Dite.
Imensa, mil entradas tem a cidade, e portas escancaradas
440 de todos os lados. Como o mar acolhe os rios de toda a terra,

11 Transformam-se em morcegos. Em latim, vespertilio ('morcego') tem a ver com a palavra ues­
per, ou seja crespúsculo, fim de tarde (em português dá <<Vespertino»).
1 2 Ino, irmã de Sémele.
13 As irmãs são Autónoe, mãe de Actéon, Agave, mãe de Penteu, e Sémele, mãe de Baco.
118 L I V R O I V !n o e Melicertes

assim este local recebe todas as almas, e para povo algum


é pequeno, nem sente qualquer multidão a juntar-se-lhe.
Vagueiam sombras sem sangue, sem corpo e sem ossos:
umas apinham o fórum, outras o palácio do rei do abismo,
445 outras dedicam-se a ofícios, à imitação da vida de outrora,
< . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . >

[outra parte ainda é forçada a cumprir a sua pena.]


Deixando a morada celeste, não hesitou em descer até ali
Juno, filha de Saturno: a tal ponto se entrega ao ódio e à raiva.
Mal lá entrou e a soleira da porta, pisada pelo divino corpo,
450 soltou um rangido, Cérbero tirou para fora as três cabeças
e lançou três latidos de uma só vez. Ela chama pelas Irmãs,
as filhas da Noite, terríveis e implacáveis divindades. [l4J

Sentadas à porta do cárcere, fechada com trancas de aço,


penteavam víboras letais que saíam por detrás dos cabelos.
455 Logo que a reconheceram através das sombrias brumas,
as deusas levantaram-se. Chamam-lhe a 'Casa Maldita'.
Tício oferecia as entranhas para as retalharem, e por nove
jeiras jazia esparramado no chão; tu, Tântalo, água alguma
logras apanhar, e os frutos, que sobre ti pendem, fogem-te;
460 ora buscas ora empurras, Sísifo, a pedra que rolará de volta;
rebola Ixíon, perseguindo-se e também fugindo a si mesmo;
e aquelas que ousaram maquinar a morte de seus primos,
as netas de Belo, buscam sem parar a água que irão perder.

A filha de Saturno a todos lançou um olhar ameaçador,


465 especialmente a lxíon. Depois, voltando dele os olhos
para Sísifo, exclamou: 'Por que razão um dos irmãos
sofre uma pena perpétua e Aramante, esse soberbo, mora
em sumptuoso palácio, ele que, junto com a esposa, sempre
me desprezou? ' E expõe as razões do ódio e da vinda,
410 e que pretendia. O que pretendia era que a casa de Cadmo
não mais existisse e que o delírio levasse Aramante ao crime.
Ordens, promessas, preces, tudo mistura para um só fim,
e insiste junto das deusas . Após Juno assim ter discursado,
vem Tisífone, desgrenhada como estava. Sacudiu os cabelos

14 As Fúrias.
Ino e Melicertes L I V R O I V 1 19

475 grisalhos, puxou para trás as serpentes caídas sobre o rosto,


e assim retorquiu: ' Não precisamos de tantas explicações;
considera feito tudo o que pedes. Vai-te embora deste reino,
que jamais se pode amar, e volta aos ares melhores do céu.'
Juno regressa contente; e estando prestes a entrar no céu,
480
Íris, filha de Taumante, purificou-a com salpicos de chuva.

Sem demora, a inapelável Tisífone pega na tocha em sangue


ensopada, enverga o manto, todo rubro a pingar de sangue,
enrola em redor da cintura uma serpente como cinto,
e sai da sua mansão. Ao partir, acompanham-na o Luto,
485 o Pavor e o Terror e a Insânia com sua expressão frenética.
Pararam à entrada do palácio. O umbral, dizem, estremeceu,
a palidez tingiu as portas de bordo da morada de É olo,
e o sol escapuliu-se dali. Ao vê-los, esposa fica aterrada,
estarrecido fica Atamante, e ambos tentam fugir da casa.
490 A medonha Erínia barra-lhes o caminho e bloqueia a saída,
abrindo os braços enredados por viôoras enroscadas,
e sacode a cabeleira; as cobras, sacudidas, soltaram silvos,
umas rastejam sobre os ombros, outras deslizam em torno
dos peitos, sibilando, vomitando pus, dardejando as línguas.
495 Depois, de entre os seus cabelos arranca duas serpentes
e contra eles as arremessa com mão mortífera. Elas põem-se
a rastejar pelo colo de Ino e também pelo de Atamante,
insuflando-lhes um bafo fétido. Feridas algumas infligem
aos corpos deles: é a mente que sente os terríveis golpes.
500 Trouxera consigo, ainda por cima, uma monstruosa poção:
baba das mandiôulas de Cérbero, veneno da Equidna,
alucinações errantes e olvido de uma mente nas trevas,
e malvadez e lágrimas e sanha e paixão pela matança,
tudo triturado junto; misturando sangue fresco, fervera
505 no caldeiro de bronze, mexendo com ramo verde de cicuta.
Apavoravam-se eles, quando verte o veneno enlouquecedor
no peito de ambos, e o faz chegar ao fundo das entranhas.
Então, anda à roda muitas vezes com o archote em círculo,
e obtém chamas das próprias chamas velozmente movidas.
510 Triunfante, cumpridas assim as ordens, regressa ao reino
insubstancial do magno Dite e desaperta da cintura a cobra.
120 L I V R O IV !no e Melicertes - As companheiras de !no

De imediato, o filho de Éolo, em delírio, no meio do palácio [15]

exclama: 'Eh ! camaradas, estendei as redes nestes bosques !


Eu vi neste lugar há pouco uma leoa com as suas duas crias. '
515 Fora d e si, segue a s pegadas d a esposa como a s d e um a fera.
Do colo de sua mãe, risonho e estendendo-lhe os bracitos,
arranca ele Learco, e, duas e três vezes, rodopia-o no ar
qual funda, e desfaz barbaramente a cabeça do menino
contra uma dura rocha. Então, por fim, a mãe desvairou,
520 ou por causa da dor, ou porque o veneno se difundira:
desata aos uivos, a correr em delírio, cabelos desgrenhados,
levando-te, pequenito Melicertes, nos seus braços desnudos.
'Evoé, Baco ! ' , vai gritando. Ao ouvir o nome de Baco, Juno
ri-se e diz: 'Que o teu afilhado te seja sempre desta utilidade. '

525 H á u m rochedo que sobreleva as águas. A base está escavada


pelas vagas e protege das chuvas as ondas que nele se abrigam,
O cume ergue-se sólido e projecta a frente sobre o mar aberto.
Ino ocupa o rochedo (tais as forças que a demência lhe dera ! )
e , sem demora, sem qualquer receio, despenha-se no mar
530 com seu fardo; com o choque, a água fica branca de espuma.
Vénus, porém, condoída dos sofrimentos imerecidos da neta,
assim disse a seu tio com voz insinuante: ' Ó deus das águas,
a quem coube o poder logo a seguir ao do céu, Neptuno,
suplico, na verdade, algo de monta; mas tu, compadece-te
535 dos meus, que vês despenharem-se no mar Jónio imenso,
e junta-os a teus deuses. Algum crédito tenho junto do mar,
se é certo que outrora, no meio das suas profundezas, já fui
aglomerado de espuma, da qual deriva meu nome em grego . '
Neptuno acedeu, então, a o seu pedido, e deles retirou
540 o que era mortal. Conferiu-lhes uma majestade venerável,
e deu uma nova forma, a um tempo, ao aspecto e ao nome,
chamando Leucótoe à mãe e Palémon ao novo deus.

SUAS AMIGAS de Sídon, que a seguiram enquanto puderam, {16]

descortinam as derradeiras pegadas na borda do rochedo.

1' Atamante.
16 Isto é, Tebas.
As companheiras de lno - Cadmo e Hannonia L I V R O IV 121

545 Convencidas de que morrera, carpiram a casa de Cadmo,


flagelando-se com as mãos, arrancando cabelos e as vestes
rasgando, e indignam-se contra a deusa, acusando-a de ser
injusta e demasiado cruel com a rival. Juno não tolerou
as censuras e retorquiu: 'De vós mesmas farei o exemplo
550 máximo da minha crueldade.' Mal o disse, assim o fez.
Pois aquela que lhe fora mais dedicada, 'Acompanharei
a rainha nos mares' disse, e ia saltar: mas já não conseguiu
mais mover-se, e ficou presa ao rochedo, a ele soldada.
Outra, ao tentar massacrar o peito na flagelação tradicional,
555 sentiu os braços ficarem rígidos durante as suas tentativas.
Aquela por acaso estendia as mãos para as ondas do mar:
feita pedra, para as mesmas ondas fica de mãos estendidas.
Outra agarrava cabelos à mão-cheia e arrancava-os da cabeça:
verias os dedos de súbito petrificarem-se entre os cabelos.
560 No gesto em que cada uma é surpreendida, nele fica paralisada.
Algumas tomaram-se aves; e, ainda hoje, naquela zona do mar,
elas rasam as águas com a ponta das asas: são as Isménides.

ORA, o filho de Agenor não sabe que a filha e o seu netinho


são agora divindades do mar. Arrasado pelo desgosto, a série
565 de infortúnios, e por tantos prodígios que vira, abandona
a cidade que fundara, como se fosse a fortuna do local,
e não a sua, que o esmagasse. Ao cabo de longas errâncias,
chega com sua esposa, exilada como ele, à região da Ilíria.
Já prostrados pelos anos e desgraças, recordam em conversa
510 as vicissitudes iniciais de sua casa e lembram as desventuras.
'Acaso foi uma serpente sagrada que trespassei com a lança'
perguntava-se Cadmo, 'ao tempo em que, vindo de Sídon,
semeei no solo os seus dentes viperinos, inéditas sementes?
Se os deuses cuidam em vingá-la com cólera tão infalível,
m possa estender-me, peço, feito serpente, sobre longo ventre.'
Ao dizer isto, já se alonga em comprido ventre, qual serpente,
e sente crescerem escamas na pele endurecida e que o corpo,
escurecido, é polvilhado de pintas de tom azul-esverdeado.
Tomba no chão de bruços, as pernas soldam-se numa só,
'so adelgaçam-se, pouco a pouco, terminando em polida ponta.
122 L I V R O IV Cadmo e Harmonia - Perseu e Atlas

Já só restam os braços . E estende os braços que ainda restam,


e, com as lágrimas deslizando pelo rosto ainda humano,
'Vem aqui ' , suplica ele, 'vem aqui, minha pobre esposa !
Enquanto algo sobra de mim, toca-me, agarra-me a mão,
585 enquanto ainda há mão e a serpente não me tomou todo.'
Ele bem quer continuar a falar, mas, de repente, a língua
fende-se em duas partes: embora queira falar, faltam-lhe
as palavras, e sempre que tenta emitir qualquer lamento,
saem silvos: é esta a voz que a natureza lhe deixou.
590 Dilacerando com as mãos o peito nu, exclama a esposa:
'Cadmo, fica ! Sai já de dentro desse monstro, ó infeliz !
Que é isto, Cadmo? Onde estão os pés, e os ombros e mãos,
e a tez e a face e, enquanto falo, tudo o resto? Por que razão,
deuses do céu, não me converteis também em serpente igual ? '
595 Assim dissera. Ele pôs-se a lamber da sua esposa o rosto,
e a deslizar sobre o colo amado, como se o reconhecesse,
e a abraçá-la, buscando o pescoço que tão familiar lhe era.
Todos os presentes (estavam ali servidores) ficam aterrados.
Mas ela acaricia o pescoço viscoso da serpente de crista.
600 Eis que, de súbito, são duas, rastejando em roscas conjuntas,
até que se refugiam nas profundezas de um bosque fronteiro.
Ainda hoje não fogem aos homens, nem atacam para os ferir:
pacíficas cobras, jamais olvidaram o que em tempos foram.

PARA AMBOS, grande motivo de consolo pela sua mutação


605 foi seu neto, a quem a Índia, conquistada, prestava culto, (17]

e a quem a Acaia inteira honrava e dedicara templos.


Só Acrísio, filho de Abante, de um outro ramo da mesma
família, era o único a mantê-lo fora dos muros da cidade
de Argos, e a levantar armas contra o deus. Não admitia
610 que fosse filho de Júpiter, tal como não admitia que Perseu,
que Dánae concebera da chuva de ouro, de Júpiter fosse filho.
Mais tarde, Acrísio arrependeu-se (tal é o poder da verdade ! ) ,
tanto de ter ofendido o deus, como d e não ter reconhecido
o neto. Um já tomara assento nos céus ; o outro, trazendo

17 Baco.
Perseu e Atlas L I V R O I V 123

615 os memoráveis despojos do monstro de cabelos de vfbora, 11 81

viajava pelos brandos ares com as asas a zumbir.


Ora quando, triunfante, pairava sobre as areias da Lfbia,
caíram gotas de sangue da cabeça da Górgone.
A terra absorveu-as e deu vida a cobras de vários tipos,
620 e é por isso que esta terra está toda infestada de cobras.

Dali, conduzido por ventos discordantes pelo céu sem fim,


é levado ora para aqui, ora para ali, qual nuvem carregada
de chuva. Até bem longe contempla lá do alto as terras
separadas do mar profundo e sobrevoa o mundo inteiro.
625 Três vezes viu os gélidos Arctos, três as pinças do Caranguejo,
muitas vezes vai para poente, muitas outras para nascente.
O sol já se punha. Tendo receio de confiar-se à noite,
aterra nos confins da Hespéria, nos domínios de Atlas,
para ali buscar um curto repouso, até que Lúcifer chame
630 para fora os clarões da Aurora, e a Aurora o carro do dia.

Ali vivia o filho de Jápeto, Atlas, superior a qualquer homem


pela sua colossal corpulência. Era ele o rei desta extremidade
da terra e também do mar, que dispõe as suas águas debaixo
dos corcéis resfolegantes do Sol e acolhe o carro esgotado .
. 635 Mil rebanhos, e manadas outras tantas, tinha ele vagueando
pelos prados, e vizinho algum confinava com a sua terra.
As folhagens das árvores irradiavam ouro, e rebrilhavam
de ouro os ramos, e de ouro as maçãs se recobriam.
' Ó da casa ! ' , chamou Perseu. 'Se à glória de uma magna
640 linhagem dás valor, o autor da minha linhagem foi Júpiter. 1191

E se tens admiração por altos feitos, admirarás então os meus.


Peço-te hospitalidade e dormida.' Mas este estava lembrado
do antigo oráculo (Témis do Pamaso este oráculo proferira) :
'Virá o dia, ó Atlas, e m que d o ouro tuas árvores despojadas
645 serão, e quem obterá a glória de tal saque será filho de Júpiter.'
Com receio disto, fechara Atlas o seu pomar dentro de maciças
muralhas, e dera o encargo de o vigiar a um gigantesco dragão;

1 8 A Górgone Medusa.
1 9 Júpiter é, aliás, pai de Perseu.
124 L I V R O IV P�rseu e Atlas - Perseu e Andrómeda

e impedia todos os estrangeiros de entrar nas suas fronteiras.


A este também diz: 'Vai-te embora, não vá a glória das proezas
650 que inventaste de nada te servir, de nada te servir o teu Júpiter.'
Às ameaças soma a violência: tenta expulsar com as mãos o herói,
que hesita em partir e mistura palavras cordatas com exaltadas.
Dotado de força inferior (quem poderia igualar em força Atlas?)
'Mas já que tu tens tão pouca consideração por mim, então
655 aceita este presente' , diz ele; e, voltando-se para trás, tira
para fora, do seu lado esquerdo, a cabeça imunda de Medusa.
Atlas torna-se uma montanha, grande como era. Pois a barba
e os cabelos ficam bosques, os ombros e as mãos são encostas;
o que antes fora cabeça é agora o mais alto pico do monte,
660 os ossos tornam-se pedras. Depois, incha de todos os lados
e cresce até altura monstruosa (assim, ó deuses, o decidistes) ,
e o céu inteiro com todas a s suas estrelas repousou sobre ele.

O FILHO de Hípotes fechara os ventos na masmorra do Etna, [ioJ

e Lúcifer ressurgira brilhantíssimo lá bem no cimo dos céus,


665 chamando-nos para o trabalho. Aquele pega nas asas e ata-as [2IJ

aos pés, de um lado e do outro, cinge a espada curva à cintura,


e, pondo em movimento as sandálias, sulca os límpidos ares.
Povos sem conta, lá em baixo e em redor, deixa para trás,
até que avista as gentes da Etiópia e os campos de Cefeu.
610 Aqui o injusto Ámon estipulara que Andrómeda pagasse
um castigo imerecido por causa das palavras de sua mãe. ['2J

Logo que o bisneto de Abante a viu, de braços acorrentados


a um duro rochedo (não fosse a leve brisa mover os cabelos
e dos olhos deslizarem tépidas lágrimas, julgaria tratar-se
675 de estátua de mármore) , ele, sem saber, inflama-se de paixão
e fica siderado. Deslumbrado com a imagem da beleza
que via, quase se esqueceu de bater as asas nos ares.
Pousou diante dela e disse: 'Oh ! tu não mereces estes grilhões,
mas sim os que acorrentam um ao outro os sôfregos amantes.
680 Diz-me, eu quero saber, diz o nome da tua terra e o teu nome,

20 Éolo.
21 Perseu.
22 A mãe é Cassíope.
Perseu e Andrómeda L I V R O I V 125

e porque estás acorrentada. ' De início, ela fica em silêncio,


não ousando, uma donzela, dirigir-se a um homem; não fosse
estar amarrada, teria coberto a face por modéstia com as mãos;
Brotam, porém, lágrimas que inundam os olhos: isso ela pôde.
685 Tanta vez ele insistiu; até que, para não parecer querer ocultar
crimes realmente seus, ela revela o nome da sua terra e o seu,
e quão grande fora a confiança da mãe na sua própria beleza.
Não evocara ainda tudo, quando das ondas enorme estrondo
se ouve e surge um monstro. Erguendo-se sobre o vasto mar,
690 avança, abarcando sob o peito uma enorme extensão de água.

A jovem desata aos gritos. O pai, de luto, e também a mãe


estão presentes, ambos desolados, mas ela com mais razão,
e não trazem ajuda; trazem tão-só o pranto apropriado
às circunstâncias e flagelação, e agarram-se ao corpo atado.
695 Então, diz assim o forasteiro: 'Podereis ficar muito tempo
a chorar, mas para a socorrermos temos um breve instante.
Se pedisse a sua mão, eu, Perseu, filho de Júpiter e daquela
que, aprisionada, Júpiter engravidou com fecundo ouro,
eu, Perseu, que venci a Górgone de cabelos de víbora,
100 que, com asas vibrando, ouso viajar pelas brisas dos céus,
decerto me prefeririam por genro a qualquer um. Tentarei
a tais dotes somar o mérito: assim os deuses me ajudem.
Façamos um acordo: se a salvar com bravura, seja minha.'
Os pais aceitam estas condições (quem teria hesitado ? )
105 e imploram, e prometem, além disso, o reino como dote.

Eis que, tal como a nau veloz, de esporão em riste, sulca


as ondas, impelida pelos braços suados dos remadores,
assim o monstro corta as ondas com o embate do peito.
Já só distava dos penhascos quanto a funda das Baleares,
110 girando, consegue o chumbo lançar através dos ares,
quando de súbito o jovem, tomando impulso com os pés, salta
lá para cima entre nuvens. Mal na superfície do mar surge
a sombra dele, a fera encarniça-se contra a sombra que vê.
Tal como a ave de Júpiter, quando avista em campo aberto
1 15 uma serpente expondo a Febo o dorso lívido, pelas costas
investe contra ela, e, para que não vire para trás a cruel boca,
126 L I V R O IV Perseu e Andrómeda

crava-lhe as garras ávidas no pescoço coberto de escamas,


assim o descendente de Ín aco mergulha a pique no vazio
em veloz voo, atira-se ao dorso, crava o ferro até ao curvo
120 gancho na omoplata direita da fera, que soltava rugidos.
Atingida pela grave ferida, ora se ergue altíssima nos ares,
ora mergulha nas águas, ora rodopia como o javali feroz
que a matilha de cães aterroriza ladrando à sua volta.
Usando as velozes asas , ele escapa-se às dentadas ávidas,
125 e, onde encontra descoberto, ora o dorso coberto de lapas,
ora os flancos, ora onde a cauda afiladíssima termina
em peixe, golpeia sem parar com a espada encurvada.
O monstro vomita água do mar à mistura com rubro sangue.
Com os salpicos do mar, as asas molham-se e ficam pesadas.
130 Já não ousando confiar mais nas sandálias ensopadas, Perseu
vislumbrou um rochedo cujo cimo sobreleva o nível das águas
quando estão calmas, e fica submerso quando o mar se agita.
Pousou nele e, agarrado com a esquerda à primeira saliência,
repetidamente, três , quatro vezes, enterrou o ferro no ventre.

135 Um clamor de alegria e aplauso inundou o litoral e as casas


celestes dos deuses. Rejubilam, pois, Cassíope e Cefeu,
o pai, saúdam-no como genro e declaram-no assistência
e salvador da sua casa. Libertada das suas correntes,
a jovem avança a passo, prémio e razão daquele feito.
140 Quanto a ele, toma água para lavar as mãos triunfantes,
e, não vá estragar na dura areia a cabeça de cabeleira
de vfbora, faz o chão macio com folhas, cobre-o com algas
nascidas no mar e pousa a cabeça de Medusa, filha de Forco.
A alga fresca e ainda viva absorve no seu interior poroso
145 o poder mágico do monstro, e, com o contacto, endurece
e assume nos ramos e na folhagem uma rigidez inédita.
Ora as ninfas do mar experimentam este facto assombroso
em muitas outras algas e divertem-se por suceder o mesmo,
e fazem-no multiplicar-se, lançando sementes delas à água.
150 E ainda hoje esta propriedade permanece nos corais,
pois com o contacto do ar tomam-se rígidos, e o que era
um ramito flexível dentro de água, fora de água fica pedra.
Perseu e Andrómeda - Medusa L lV RO l V 127

A três deuses erige Perseu outros tantos altares de turfa,


o da esquerda a Mercúrio, o da direita a ti, virgem da guerra,
755 o altar do meio é de Júpiter. A Minerva sacrifica uma vaca,
ao dos pés alados um vitelo, um touro a ti, deus supremo.
De imediato, toma Andrómeda como prémio de tal proeza,
mas abdica do dote. Himeneu e Amor vão à frente brandindo
as tochas nupciais, as chamas saciam-se de fartos aromas,
760 grinaldas pendem dos tectos, por toda a parte ressoam
as liras e as flautas e as canções, demonstrações de alegria
de espírito feliz. Abertas as portas de par em par, o átrio
de ouro fica todo escancarado, e os dignitários dos Cefenes
acorrem ao banquete do rei, sumptuosamente preparado.

765 TERMINADO o jantar, com belíssimo vinho, dádiva de Baco,


relaxam o espírito. O descendente de Linceu indaga do tipo [23]

767 de vida e da região, dos costumes e do carácter do povo.


769 Logo que disto o informou, 'Agora, ó grande herói' , disse
770 Cefeu, 'conta-nos, peço, com que bravura e por que meios
lograste decepar essa cabeça aí de cabelos de víboras . '
O parente d e Agenor conta então que n o sopé d o frio Atlas
fica um local defendido pela protecção de uma sólida mole.
À entrada dele habitavam irmãs gémeas, filhas de Forco,
775 que dividiam entre si o uso de um único olho;
No instante em que uma o passava à outra, com ardilosa
astúcia ele tinha-o furtado da mão estendida, e por paragens
recônditas e inacessíveis, ásperas fragas e florestas ravinosas ,
chegara à morada da Górgone. Por toda a parte, pelos campos
780 e pelos caminhos, ele vira estátuas de homens e de animais,
mudados de seres vivos em pedra por olharem para Medusa.
Ele, porém, apenas vira a imagem da arrepiante Medusa
reflectida no escudo de bronze que trazia no braço esquerdo,
e quando um pesado sono dominou as víboras e ela própria,
785 cortou-lhe a cabeça do pescoço; e do sangue de sua mãe
nasceram Pégaso, o veloz corcel alado, e o seu irmão. (24 ]

Juntou ainda os perigos, todos verídicos, da longa viagem,

23 Perseu.
24 Crisaor.
128 L I V R O I V Medusa

quais os mares, quais as terras que lá do alto contemplara


debaixo de si, e as estrelas que tocara com o bater das asas . '

190 Inesperadamente, porém, cala-se. Um de entre os nobres


interrompe-o, pois quer saber porque só uma das irmãs
possuía serpentes à mistura alternadamente com cabelos.

O estrangeiro respondeu: 'Já que queres saber algo digno


de ser contado, ouve a razão. Medusa fora de beleza radiosa,
795 esperança e motivo de disputa para pretendentes sem conta,
mas nada nela era mais admirável do que os seus cabelos.
Eu cheguei a conhecer alguém que me dizia tê-la visto.
Um dia, dizem, o senhor dos mares desflorou-a no templo
de Minerva: a filha de Júpiter voltou-se para trás e tapou
soo o casto olhar com a égide. E para que tal não ficasse impune,
transformou os cabelos da Górgone em asquerosas cobras.
Ainda hoje, para apavorar inimigos e paralisá-los de medo,
tem à frente, sobre o peito, as cobras que ela própria criou.
LIVRO V

ENQUANTO o herói, filho de Dánae, estes acontecimentos narra


no meio dos Cefenes, eis que uma multidão em alvoroço
inunda os salões do palácio; e o clamor não era o que canta
a festiva boda, mas antes o que anuncia a feroz batalha.
De repente, o banquete transforma-se em tumulto enorme:
podias comparar ao mar, quando a fúria selvagem dos ventos
encrespa a tranquilidade das águas e levanta enormes vagas.

O primeiro entre eles, Fineu, irreflectido instigador da refrega,


brandindo uma lança de freixo e ponta de bronze, exclamou:
10 'Eis-me ! Eis-me para me vingar por me teres roubado a esposa!
Nem as tuas asas, nem Júpiter transformado em falso ouro
te furtarão a mim ! ' Aprontava-se a lançá-la, quando Cefeu
lhe grita: 'Mas o que é que fazes? Mas que ideia, meu irmão,
te atira, tresloucado, para tal crime? É assim que agradeces
15 os tremendos serviços? É assim que pagas ter-lhe salvo a vida?
Não foi Perseu quem ta roubou, se queres saber a verdade,
mas sim as molestas Nereides divinas, sim o cornígero Ámon,
sim o monstrengo dos mares que vinha para se empanturrar
com as entranhas do meu sangue. Ela foi-te roubada no instante
20 em que foi condenada a morrer: a não ser, cruel, que queiras
isso, a morte dela, e procures consolar-te com a minha dor !
Decerto, não basta que ela estivesse acorrentada à tua vista,
e que tu, seu tio e seu noivo, não tenhas levado auxílio algum.
Ainda para mais, enfadas-te por ter sido salva por um outro
25 e queres tirar-lhe a recompensa? Se esta te parece excessiva,
devias tê-la ido buscar ao rochedo onde estava acorrentada.
Deixa agora que leve o que acordou pela palavra e mereceu,
ele que a foi buscar, ele que me livrou de uma velhice solitária,
e entende que não o preferimos a ti, mas a uma morte certa. '
130 L I V R O V Perseu e Fineu

io Ele nada responde; mas olhando ora para este, ora para Perseu
alternadamente, não sabe se deve alvejar este ou aquele.
Após curta hesitação, com todas as forças que a raiva lhe dava,
desfechou a lança a girar contra Perseu. Mas em vão: crava-se
no leito do triclínio. Então, por fim, Perseu saltou das colchas.
35 Ferozmente, atira de volta a lança; e ela teria rebentado o peito
do inimigo, não fosse Fineu refugiar-se detrás de um altar,
e o próprio altar - coisa vergonhosa ! - ter ajudado o celerado.
Mas a ponta não falhou totalmente: espeta-se na testa de Reto,
que cai por terra; e quando lhe extraem o ferro do crânio,
40 põe-se a escoicear e a espirrar sangue sobre as mesas postas.
Foi então que a turba se incendiou em descontrolada fúria.
Os dardos voam, e há quem grite que se devia matar Cefeu
junto com o seu genro; mas Cefeu já se escapulira do palácio,
invocando a justiça, a lealdade, os deuses da hospitalidade,
45 para testemunharem como proibira o que acontecia.

A belicosa Palas está presente. Protege o irmão com a égide


e insufla-lhe coragem. Estava ali um jovem da Índia, Átis,
que a filha do rio Ganges , Limnêe, se crê ter dado à luz
sob cristalinas águas . De deslumbrante beleza, ampliada
50 por ricas vestes, ainda no viço dos seus dezasseis anos,
trajava uma capa de púrpura de Tiro, que franja de ouro
bordejava. O pescoço estava adornado com fios de ouro,
e um diadema curvo prendia o cabelo molhado de mirra.
Ele era, na verdade, hábil a acertar com o dardo num alvo
55 por mais distante, mas mais hábil ainda a disparar o arco.
Dobrava ele o flexível arco com as mãos, quando Perseu
o golpeia com uma acha que fumegava no meio do altar,
e espatifa-lhe a cara, esmagando-lhe os ossos todos.
Ao vê-lo por terra, rosto tão gabado desfeito em sangue,
60 Lícabas da Assíria, o seu mais chegado companheiro
e que nunca dissimulara o seu amor sincero por ele,
chorou Átis aos berros, ele que soltava o último suspiro
sucumbindo à brutal ferida. Então agarrou no arco que ele
armara e exclamou: 'Agora o teu combate é comigo.
65 Pouco tempo rejubilarás com a morte do moço, que te
traz mais aversão do que glória. ' Ainda nem tudo isto
Perseu e Fineu L I V R O V 131

dissera, eis que a aguçada seta sai disparada do arco:


ela falha, porém, o alvo e fica presa nas dobras da roupa.
O neto de Acrísio volta para ele a espada curva, famosa '''
10 pela morte de Medusa, e enterra-lha no peito. A morrer,
com os olhos que já flutuavam na noite negra, buscou
à sua volta Átis e foi deixar-se cair junto ao seu corpo,
e levou para as sombras o consolo de morrerem juntos.

Eis então que Forbas, natural de Siene, filho de Metíon,


15 e o hbio Anfimedonte, ávidos de se lançarem no combate,
escorregam no sangue que ensopava e amornava o chão todo,
e caem. Ao levantarem-se, a espada à sua frente impediu-os:
a Forbas, espetou-o na garganta, ao outro, entre as costelas.
Quanto a Perseu, não foi com a curva espada que atacou Érito '''
80 filho de Actor, cuja arma era largo machado de dois gumes:
erguendo com as mãos uma enorme taça de misturar vinho,
extraordinária pelos relevos fundos, pesadíssima e maciça,
esmaga-a contra o homem. Este cospe sangue rubro e cai
de costas, batendo com o cimo da cabeça moribunda no solo.
85 Depois, Polidégmon, nascido da linhagem de Semíramis,
e Ábaris, natural do Cáucaso, e Liceto, filho de Esperqueu,
e Hélice, de cabeleira intonsa, e Clito e Flégias ele abate,
amontoando pilhas de homens moribundos e pisando-os.

Fineu não ousa travar combate corpo a corpo com o inimigo,


90 e alveja-o com o dardo, que a má pontaria desvia contra Idas,
ele que em vão se abstivera de lutar e que não tomara partido.
Este, fitando com olhar carrancudo o brutal Fineu, disse:
'Já que sou arrastado para uma das partes, aceita, ó Fineu,
o inimigo que fizeste e paga a minha ferida com esta ferida.'
95 E estava já a ponto de atirar de volta o dardo que arrancara
do corpo, quando tomba sobre si mesmo, esvaído em sangue.

Então Hodites, o primeiro entre os Cefenes depois do rei,


jaz no chão pela espada de Clímeno; Hipseu fere Protenor,

1 Perseu. Sobre a espada, ver p. 134, nota 4 .


2 Ver nota 4.
132 L I V R O V Perseu e Fineu

o Lincida fere Hipseu. Entre eles havia um ancião bem idoso, ui

100 Emátion, que cultivava a justiça e era temente aos deuses.


Já que a sua provecta idade o impede de combater, luta
e investe com palavras, amaldiçoando a criminosa refrega.
A ele, abraçado ao altar com trémulas mãos, com a espada
Crómis cortou a cabeça, que logo rebolou sobre a ara;
rn5 aí, com a língua semi-viva, soltou palavras de maldição,
e para o meio das chamas do altar assoprou a alma.

Depois, sucumbiram às mãos de Fineu dois irmãos gémeos,


Bróteas e Am on, invencíveis com as luvas de pugilista
- como se luvas vencessem espadas ! -, e também Âmpico,
uo o sacerdote de Ceres, de têmporas cingidas de uma alva fita.
Tu, filho de Lâmpeto, não devias ser empregue nestas tarefas,
mas sim na de cantar tangendo a lira, ocupação de paz;
foras incumbido de alegrar com canções o banquete e a festa.
Ele estava de pé, ao longe, segurando o plectro inofensivo.
rn Rindo-se dele, Pétalo diz: 'Canta o resto da canção às sombras
do Estígio,' e crava-lhe a ponta da espada na fronte esquerda.
Aquele cai; e os dedos moribundos voltaram a testar as cordas
da lira, e na queda acaba por tocar uma melodia pungente.
O feroz Licormas não permite que ele tombe sem vingança.
120 Arranca do poste direito da ombreira uma tranca de carvalho
e bateu-lhe em cheio nos ossos da nuca; por seu lado, este
tomba por terra, tal como cai o bezerro quando é sacrificado.
Pélates, nascido junto ao Cínips, tentava tirar a outra tranca
do poste esquerdo. Estava a tentar, quando a lança de Córito
125 dos Mannáridas lhe trespassa a direita e a prega à madeira.
Assim pregado, Abante espetou-lhe o flanco; e ele não caiu,
mas morreu pendurado do poste que lhe prendia a mão.

Jaz também Melaneu, que alinhara na tropa de Perseu,


e Dórilas, o homem mais rico da região dos N asamones,
no Dórilas, rico em terras, tantas terras como nenhum outro
possuía, nem ninguém amontoava tantos fardos de trigo.

3 Perseu, descendente de Linceu.


Perseu e Fíneu L I V R O V 133

O ferro arremessado de viés crava-se-lhe na virilha:


este sítio é fatal. Quando o causador desta ferida,
Halcioneu de Bactros, o vislumbrou, soluçando a alma
m e revirando os olhos, 'De todas as terras do mundo' , disse,
'fica com a que agora carregas' ; e deixou o corpo sem vida.
Para o vingar, o bisneto de Abante arranca da ferida a lança
ainda quente e dispara-a na sua direcção: atingindo o meio
do nariz, atravessa a nuca e sai por fora de ambos os lados.
140 Ajudando a Fortuna a sua mão, aniquila Clítio e Clânis,
filhos da mesma mãe, cada um com um ferimento distinto:
pois, brandindo a lança de freixo com o forte braço, a Clítio
fura as duas coxas; Clânis mordeu com a boca um dardo.
Morreu também Celadonte de Mendes, morreu Astreu,
145 nascido de mãe natural da Palestina e de pai desconhecido,
e Étion, em tempos cheio de sagacidade a ver o futuro,
desta vez enganado por um falso auspício, e Toactes ,
o escudeiro do rei, e Agirtes, famigerado por matar o pai.

Mas ainda falta mais do que o já feito: é que todos só pensam


150 em esmagar um só. Em chusmas, conjurados, de todo o lado
atacam, por causa que atenta contra o mérito e a palavra dada.
Do seu lado, apoiam-no o sogro, em vão leal, e a recente
esposa e a mãe desta, que enchem os átrios de gritos de dor.
Mas abafa-os o fragor das armas e os gemidos dos que caem,
155 enquanto Belona alaga os deuses da casa com abundante
sangue e os polui, e reacende o combate e provoca a refrega.
Sozinho, cercam-no Fineu e mil outros que Fineu seguiam.
Voam dardos, mais cerrados que granizo no Inverno,
rasando-o à esquerda e à direita, rasando olhos e ouvidos.
t60 Ele cola as costas a uma gigantesca coluna de pedra:
de costas protegidas, vira-se para os magotes de inimigos
e sustém os ataques deles. Do lado esquerdo, atacava-o
Molpeu da Caónia, do direito, Equémon de Nabateia.
Tal como o tigre, quando, aguilhoado pela fome, ouve
165 mugir duas manadas em vales distintos e não sabe sobre
qual se lançará primeiro e arde por se lançar sobre ambas,
assim Perseu hesitava se se arrojar à direita ou à esquerda.
Afasta Molpeu, trespassando-lhe a perna com um golpe,
134 L I V R O V Pers�u e Fineu

e contenta-se que fuja; mas Equémon não lhe dá tréguas,


110 e, enfurecido, procura desferir-lhe um golpe no pescoço.
Não calculando, porém, as forças, despedaça a espada
ao bater com ela na superfície da enorme coluna
e a lâmina ressalta e crava-se na garganta do seu dono.
Contudo, a ferida não foi causa suficiente para ele morrer:
115 apavorado, estendendo os braços em vão desarmados,
Perseu enterra-lhe a espada curva, oferta do deus do Cilene. (4 1

Mas quando vê a sua bravura a sucumbir perante o número,


Perseu assim exclamou: 'Visto que vós me forçais a tal coisa,
buscarei ajuda de uma inimiga. Afastai daqui o vosso olhar,
180 se está aqui algum amigo ! ' , e tira fora a cabeça da Górgone.
'Procura outro a quem assustar com os teus prodígios ! ,' diz
Téscelo. E quando se aprontava a disparar o dardo mortífero,
nesse mesmo gesto ficou paralisado, qual estátua de mármore.
A seu lado, Âmpix tenta atingir o peito do trineto de Linceu, (5 1
185 que transbordava de coragem; mas no golpe a mão fica rígida
e ele não consegue movê-la nem para a frente nem para trás.
Por seu lado, Nileu, que falsamente dizia ser filho do Nilo
da embocadura de sete braços, e que no escudo fizera até
cinzelar sete canais, parte em prata, outra parte em ouro,
190 'Observa, Perseu' , gritou ele, 'a origem da minha linhagem.
Levarás grande consolo para as silenciosas sombras da morte,
ao caíres às mãos de tão grande herói ! ' As últimas palavras
são abafadas no meio da fala, e julgarias que a boca aberta
intentava falar, mas que não dava mais acesso às palavras.
195
Érix invectiva-os: ' É por falta de coragem e não pelo poder
da Górgone que estais paralisados. Investi contra ele comigo,
e deitai por terra esse jovem que brande armas mágicas. '
I a investir contra ele: mas o chão reteve o s seus passos,
e ele ficou ali, uma pedra imóvel, uma estátua em armas.

4 A harpe é wna espada que Mercúrio (o deus do monte Cilene) ofereceu a Perseu; é de ponta
curva, com uma rebarba junto à ponta em forma de gancho dobrado no sentido do punho. Já apare·
cera no Livro 1 7 17, IV 666, 727, V 69.
5 Perseu, descendente de Linceu.
Perseu e Fineu L I V R O V 135

200 Estes sofreram o castigo merecido. Mas também a Aconteu,


um soldado de Perseu que a seu lado lutava, sucedeu olhar
para a Górgone: então endureceu, convertendo-se em pedra.
Todavia, Astíages, pensando-o ainda vivo, golpeou-o
com a longa espada: e a espada tilintou agudamente.
205 Estava Astíages perplexo, quando se faz na mesma matéria,
e no rosto de mármore permaneceu o seu olhar de espanto.
Longo seria enunciar os nomes dos combatentes do povo
comum. Restavam para a luta dois centos de homens:
ao olhar a Górgone, dois centos de homens se petrificaram.

210 Então, por fim, Fineu arrepende-se da sua injusta guerra.


Mas que fazer? Contempla as estátuas de formas diversas,
reconhece os seus homens e chama cada um pelo nome,
grita por ajuda e, incrédulo, toca nos corpos à sua beira.
Eram todos de mármore ! Desvia o olhar, e, qual suplicante,
215 esticando os braços abertos, as mãos confessando a derrota,
'Venceste, Perseu ! ' , disse, 'Afasta daqui essa tua aberração,
afasta o rosto petrificante da tua Medusa, quem quer que seja.
Tira-a daqui, imploro. Não foi ódio nem cupidez pelo poder
que me empurrou para esta guerra: lutei pela minha esposa.
220 Tua causa era superior pelo mérito, a minha por precedência.
Arrependo-me de não ter cedido. Nada me dês, ó mais bravo
dos homens, a não ser a minha vida: tudo o resto fica para ti. '

Enquanto tal dizia, sem ousar erguer o s olhos para aquele


a quem implorava, ' Ó mais poltrão dos homens' diz Perseu,
225 'dar-te-ei o que posso dar, e que é uma grande benesse
para um cobarde. Não tenhas medo, lâmina alguma te ferirá.
Pelo contrário: farei de ti monumento que ficará para sempre,
e na casa de meu sogro todos poderão sempre contemplar-te
para consolar a minha esposa com a imagem do seu noivo. '
230 Assim disse ele, e carregou a cabeça da filha de Forco ''1

até ao sítio para onde Fineu voltara o olhar apavorado.


Então, ainda que bem tentasse afastar dela o olhar,

6 Ou seja, a cabeça de Medusa.


136 L I V R O V Preto e Polidectes - Minetva no Hélicon: Pégaso

o pescoço enrijeceu e a humidade dos olhos petrificou-se.


Mas no mármore permaneceu o rosto temeroso, o olhar
235 suplicante, as mãos vencidas e a expressão submissa.

TRIUNFANTE, o bisneto de Abante regressa à cidade natal


com a esposa. Para defender e vingar o avô, Acrísio,
que não o merecia, ataca Preto: é que Preto apoderara-se
da fortaleza daquele, escorraçando pelas armas o irmão.
240 Mas nem com armas ou com a fortaleza injustamente tomada
pôde vencer o olhar torvo do monstro do cabelo de vfboras.

Mas também a ti, ó Polidectes, senhor da pequena Serifo,


nem a bravura do jovem, demonstrado em tantas façanhas,
nem as suas provações puderam aplacar-te, mas, insensível,
245 nutres um ódio implacável, e tua iníqua cólera não tem fim.
Deprecias até a sua gloriosa fama e declaras que é falso
ele ter matado Medusa. 'Dar-te-ei provas de que é verdade;
protegei os olhos, ' disse Perseu. E com o rosto de Medusa
metamorfoseou o rosto do rei numa pedra sem sangue.

250 ATÉ AGORA, a do Tritónis acompanhara o irmão, da chuva 171

de ouro nascido; depois, envolta numa nuvem oca, partiu


de Serifo, deixou para trás Citno e Gíaros à sua direita,
e, tomando o trajecto sobre o mar que parecia mais curto,
ruma a Tebas e ao Hélicon das Virgens . Quando alcançou
255 esta montanha, aqui se deteve e assim falou à doutas irmãs:

'Chegou aos meus ouvidos a notícia de uma nova fonte,


que o duro casco do cavalo alado de Medusa fez brotar. 1s1

Ela é a razão da minha vinda: quis ver este assombroso


caso. É que eu vi nascer o cavalo do sangue de sua mãe.'
260 Retorquiu Urânia: 'Qualquer que seja a razão para visitares
esta morada, deusa, és muito bem-vinda aos nossos corações.
De facto, a notícia é verdadeira: foi Pégaso que deu origem
a esta fonte'; e levou Palas à sagrada nascente lá em baixo.

7 Minerva e Perseu.
8 A fonte de Hipocrene.
Pégaso - Pireneu - As Musas e as Piérides L I V R O V 137

ADMIRA longamente o córrego surgido pelo golpe do casco,


265 e contempla à sua volta os recantos da floresta ancestral,
e as grutas, e a vegetação embelezada por flores sem conta,
e chama afortunadas quer pelas actividades, quer pelo local,
às filhas de Mnemósine. A ela assim falou uma das irmãs:

'Oh ! se o teu valor não te tivesse destinado a maiores feitos,


210 ó deusa do Tritónis, terias vindo fazer parte do nosso grupo.
Falas verdade, e com razão aprovas as nossas artes e o local:
Somos afortunadas, conquanto possamos estar em segurança.
Mas (hoje já nada há vedado à maldade ! ) tudo causa terror
às nossas almas virginais, e diante dos nossos olhos rodopia
215 sempre o cruel Pireneu. E ainda não me refiz completamente !

'APOSSARA-SE ferozmente de Dáulis e dos campos da Fócide


com um exército de Trácios, e aí reinava ele injustamente.
Um dia, vínhamos para o templo no Parnaso. Ele vê-nos a vir
e, fingindo venerar a nossa divindade, assim se nos dirigiu:
280 "Filhas de Mnemósine" (pois ele reconhecera-nos ) , "parai.
Não hesiteis, peço , . em abrigar-vos do mau tempo e da chuva"
(de facto, chovia) " em minha morada; muitas vezes entraram
deuses em humildes casebres . " Convencidas pelas palavras
e pelo temporal, anuímos e entrámos no átrio de sua casa.

285 'A chuva parara. O Austro fora derrotado pelos Aquilões,


e as escuras nuvens fugiam, deixando o céu de novo limpo.
Tencionávamos partir, quando Pireneu tranca as portas
e se apresta a violar-nos. Recorremos às asas e escapámos.
Como se pudesse seguir-nos, sobe à cidadela e pára na borda,
290 "Por onde quer que fordes " , berrou, "por aí irei eu também ! "
E, de cabeça perdida, despenha-se do cimo da mais alta torre.
Cai de cara no chão e, ao embater no solo, espatifa o crânio
e morre, ensopando a terra com seu criminoso sangue. '

A MUSA falava, quando n o a r s e ouviu um restolhar d e asas,


295 e do alto das ramagens chegavam palavras de saudação.
A filha de Júpiter olha para cima e indaga de onde vem o som
de línguas falando tão claramente: crê ser um humano a falar.
138 L I V R O V A canção da Piéride: Tifeu

Era um pássaro. De facto, eram nove, lamentando a sua sorte,


empoleirados nos ramos, nove pegas que tudo sempre imitam.
300 Perante o espanto da deusa, diz a outra deusa: 'Foi há pouco
que, vencidas em competição, engrossaram o bando das aves.
Píero foi o pai delas, um homem abastado da região de Péla;
sua mãe foi Evipe, natural da Peónia. Nove vezes invocou
a poderosa Lucina, quando nove vezes estava para dar à luz.
305 Inchadas de orgulho pelo número, este bando de tolas irmãs
viajou por muitas cidades da Hemónia, e muitas da Acaia.
Um dia, aqui chegando, com tais palavras nos desafiaram:
"Deixai de iludir o povo ignaro com a vossa inútil doçura.
Competi connosco, ó deusas de Téspias, se tendes confiança
310 em vós. Nem pela voz nem pela arte seremos derrotadas,
e nós temos o mesmo número. Se fordes vencidas, deixareis
a fonte do filho da Medusa e a de Aganipe dos Biantes;
se formos nós, sairemos das planícies de Emátia e iremos
para a nevada Péonia. Sejam ninfas juízes desta contenda. "
3 15 Na verdade, vergonhoso era lutar, mas mais vergonhoso
nos pareceu recusar. As ninfas escolhidas juram pelos rios
e tomam o seu lugar nos assentos talhados na pedra viva.

'ENTÃO, sem sorteio, a primeira que se declarou pronta a lutar


canta a guerra dos deuses do céu, exaltando os Gigantes
320 com falsidade, amesquinhando os feitos dos magnos deuses.
Canta como Tifeu, saindo das profundezas da terra, meteu
tal medo aos deuses celestes, que todos viraram as costas
e fugiram, até que, exaustos, os acolheu a região do Egipto
e também o Nilo, o que se ramifica em sete embocaduras.
i25 Narra também como Tifeu, o filho da Terra, aqui chegou,
e como os deuses celestes se esconderam sob falsas formas.
"Assim, Júpiter" , disse, "foi chefe de um rebanho, e daqui
ainda hoje o Hbio Ám on é representado de recurvos chifres;
o de Delos disfarçou-se de corvo, de bode o filho de Sémele,
JJo a irmã de Febo de gata, de vaca da cor da neve a filha
de Saturno, Vénus de peixe, de íbis alado o deus do Cilene. " 191

9 Apolo, Dioniso, Diana, Juno, Vénus, Mercúrio, respectivamente.


As canções de Calíope: Prosérpina L I V R O V 139

'ATÉ AGORA cantara ela, acompanhada ao som da cítara.


Era a nossa vez, a das deusas da Aónia - mas porventura tens
que fazer e não tens vagar para escutar as nossas canções. '
m 'De forma alguma ! Cantai a vossa canção do princípio ao fun',
disse Palas; e fo i sentar-se n a sombra amena d e umas árvores.

A Musa continuou: 'Confiámos a tarefa de competir a uma só.


Calíope levanta-se. Apanha os cabelos soltos com um ramo
de hera, ensaia com o polegar as cordas de lamentoso som,
340 e, tangendo as cordas da sua lira, cantou a seguinte canção:

"'Fm CERES a primeira a fender a terra com adunco arado,


a primeira que deu o cereal e os alimentos pacíficos às terras,
a primeira que deu leis: tudo é dádiva de Ceres.
É ela que devo cantar. Possam somente ser dignos da deusa
345 as canções que entoar ! Decerto a deusa é digna de ser cantada.

"'Há uma vasta ilha amontoada sobre o corpo de um Gigante.


É Trinácria, que, com a sua enorme massa, mantém esmagado uo1
debaixo de si Tifeu, o que ousou aspirar à mansão do céu.
Ele bem se esforça, e frequentemente luta por se levantar;
350 mas a sua mão direita jaz sob o Peloro, vizinho à Ausónia,
a esquerda debaixo de ti, Paquino; Lilibeu pisa-lhe as pernas.
A cabeça, carrega-a o peso do Etna, sob o qual o feroz Tifeu,
deitado de costas, cospe cinzas e vomita chamas pela boca.
Muitas vezes se debate por sacudir de cima o peso da terra,
355 e fazer rebolar do seu corpo as cidades e grandes montanhas.
Então, a terra treme, e até o rei dos seres silenciosos receia
que o solo se fenda e que um largo abismo tudo exponha,
que a luz do dia irrompa e assuste as trémulas sombras .
Receando tal calamidade, da tenebrosa morada saíra
360 o monarca no carro por negros cavalos puxado; e uma volta
deu à terra da Sicília, por precaução, a examinar os alicerces.

' º Sicília.
140 L I V R O V Prosérpina

' " Quando já se tinha certificado de que nenhum local cedera,


e já pusera de lado o receio, eis que, sentada no seu monte,
a deusa de É rix o vê vagueando. Abraçada ao filho alado,
365 'Filho meu, tu que és as minhas armas e mãos, e meu poder,'
disse, 'agarra nas setas com as quais todos vences, Cupido,
e dispara as céleres flechas contra o coração daquele deus
a quem coube em sorte a última parte do triplo reino.
Tu subjugas os deuses do céu e o próprio Júpiter, tu vences
310 os deuses do mar e aquele que reina sobre os deuses do mar.
Porque a tal se furta o Tártaro? Porque não estendes até ali
teu império e o de tua mãe? Trata-se de um terço do mundo.
E, todavia, no céu - que paciência eu tenho tido até agora ! -
sou desprezada, e junto comigo esmorece o poder do Amor.
375 Porventura não vês que Palas e Diana, a que lança o dardo,
deixaram de me apoiar? Até a filha de Ceres ficará sempre
virgem, se o permitirmos, pois ela aspira ao mesmo que elas.
Mas tu, pelo nosso poder comum, se tens apreço por ele,
faz a jovem deusa unir-se ao tio.' Tal disse Vénus . Ele abriu
3so a aljava e, seguindo o desejo da mãe, de entre mil flechas
tirou fora uma: e nenhuma outra seta havia mais afiada,
nem mais certeira, nem mesmo mais obediente ao arco.
Apoiando-o no joelho, encurvou o flexível arco de comiso
e atingiu o coração de Dite com a seta de ponta de rebarba.

385 "' Não longe das muralhas de Hena, encontra-se um lago


de águas profundas chamado Pergo; e nem o Caístro ouve
mais cisnes a cantar nas suas deslizantes águas do que ele.
O lago é rodeado por um bosque, cingindo-o a toda a volta,
que com a folhagem afasta, qual toldo, os golpes de. Febo.
390 Os ramos dão frescura, e a terra húmida flores variadas:
é uma Primavera eterna. Era neste bosque que Prosérpina
costumava folgar. Uma dia, colhia violetas e brancos lírios,
e ia enchendo, com entusiasmo juvenil, cestas e o regaço,
à compita com as amigas a ver quem colhia mais, quando
395 Dite a viu e, quase em simultâneo, se enamora e rapta-a:
tão precipitado era o seu amor. Aterrada, desata a deusa
a chamar, com voz desolada, pela mãe e as companheiras,
sobretudo pela mãe. Rasgando a parte de cima do vestido,
Prosérpina - Cíane L IV R O V 141

a túnica soltou-se e as flores colhidas caíram por terra.


400 E tal era a candura que presidia aos seus anos de menina,
que até também a perda das flores consternou a rapariga.
O raptor põe o carro em marcha e incita os cavalos,
chamando cada um pelo nome, e nos pescoços e crinas
sacode as rédeas tingidas pela cor da escura ferrugem.
405 Passou sobre lagos profundos e os pântanos dos Palicos,
que refervem, exalando enxofre vindo das fendas da terra,
e o sítio onde os Baquíades, gente originária de Corinto
de duplo mar, fundaram uma cidade entre portos desiguais. u 11

"'ENTRE a fonte de Cíane e a de Aretusa, a que vem de Pisa,


410 há um ponto onde a água do mar se aglomera, fechada
entre duas estreitas línguas de terra. Aqui vivia a que dá
o nome à lagoa, Cíane, a mais famosa das ninfas da Sicília.
Assomou ela no meio da lagoa, com água até ao peito,
quando reconhece a deusa e grita: 'Não passareis daqui !
415 Não podes ser genro de Ceres à revelia dela. Tens de pedir
a filha, não raptar. Pois se me é permitido comparar coisas
humildes com grandes, também eu fui amada por Anapis;
mas casei com ele quando me pediu, não aterrada como ela. '
Disse, e abrindo os braços bem estendidos, bloqueou-lhe
420 o caminho. O filho de Saturno não conteve mais a cólera:
espicaçando os terríveis cavalos, lançou com potente braço
o ceptro real a girar contra o fundo do lago. Com a pancada,
a terra fendeu-se e abriu uma passagem para o Tártaro,
e recebeu no meio da cratera o carro, que desceu a pique.
425 Quanto a Cíane, chorosa pelo rapto da deusa e o desdém
pelos direitos de sua fonte, fica no coração com uma ferida
inconsolável. Em silêncio, consome-se toda em lágrimas,
e dissolve-se nas águas das quais ainda há pouco
era a grande divindade. Verias o corpo dela amolecer,
4Jo os ossos ficarem flexíveis, as unhas a perderem dureza.
As primeiras partes a liquefazerem-se são as mais finas:
os cabelos azulados, os dedos, as pernas e os pés

11 Siracusa.
142 LIVRO V Cíarie - Ascálabo

(pois, para membros delgados, a passagem a frescas


águas é mais curta) ; depois, é a vez dos ombros, costas,
435 flancos e o peito, que se desfazem em finos fios de água.
Por fim, no lugar do sangue vivo, entra água nas veias
que se dissolviam, e nada resta que pudesses agarrar.

"' ENTRETANTO, era em vão que a mãe aflita procurava


a filha por todas as terras, pelo mar profundo todo.
440 Nem a Aurora, ao chegar com os cabelos molhados,
nem o Héspero a vêem fazer qualquer pausa; ela acende
para as mãos ambas flamíferas ramas de pinheiro no Etna
e, sem descanso, vagueia na escuridão coberta de geada.
De novo, quando a alma luz do dia apagava as estrelas, ia
445 em busca da filha, desde onde o sol se põe até onde nasce.

"' ESGOTADA de cansaço, estava um dia sedenta, sem os lábios


molhar em fonte alguma, quando avista por acaso uma cabana
de telhado de colmo. Batendo à pequena porta, sai uma velha
que olhou para a deusa. Quando lhe pediu água, a anciã
450 deu-lhe uma bebida doce, que preparara com cevada torrada.
Estava ela a beber, quando um rapaz atrevido e insolente ( l2J

pára à frente da deusa, desata a rir e a chamar-lhe sôfrega.


A deusa ficou ofendida; sem acabar de beber, atira ao rapaz,
ainda a falar, o resto do líquido com a mistura de cevada.
455 Quando o rosto o absorveu, cobriu-se de malhas, e o que eram
braços, agora são patas. Ao corpo mudado soma-se uma cauda,
e encolhe muitíssimo, para o poder de fazer mal ser mínimo:
o seu tamanho é mais pequeno que o de um pequeno lagarto.
Espantada, a velha chora e está prestes a tocar no prodígio,
460 mas ele foge e busca um esconderijo. O nome é apropriado
ao opróbrio, e ele tem o corpo estrelado de variegados pontos. (!JJ

"' LONGO seria dizer quais as terras, quais os mares, por onde
vagueou a deusa: já não havia mais mundo para esquadrinhar.

12 Ascálabo. A velha chama-se Misme.


13 Lagartixa. Em latim, o termo stellio (relacionado com estrela), aplicava-se a pessoas craioço­
eiras e mentirosas; Ascálabo, em grego, significa lagartixa.
Prosérpina L I V R O V 143

Regressa à Sicânia e, calcorreando e perscrutando tudo, chega,


465 enfim, até junto de Cíane. Se esta não se tivesse transformado,
ter-lhe-ia contado tudo. Mas, se bem que quisesse dizer-lho,
já não tem boca nem língua, nem coisa alguma com que falar.
Porém, deu-lhe um sinal claro, mostrando na superfície
das águas o cinto de Perséfone, bem conhecido da mãe,
410 que naquele local, por acaso, lhe caíra no lago sagrado.
Quando o reconheceu, como se só então se desse conta
de que fora raptada, a deusa põe-se a arrancar os cabelos
desadomados e flagela vezes sem conta o peito com as mãos.
Ainda não sabe onde ela está; mas injuria todas as terras,
475 e chama-lhes ingratas e indignas da dádiva dos cereais,
sobretudo Trinácria, onde descobrira vestígios da sua perda.
Assim, com mão implacável, despedaça acolá os arados
que revolvem a terra, entrega furiosa à morte os lavradores
e bois que aram a terra, ordena aos campos que não paguem
480 o depósito que nelas foi feito, e faz apodrecer as sementes.
A fertilidade desta terra, bem conhecida pelo mundo inteiro,
é desmentida e jaz por terra; as searas morrem ao despontar,
tudo destroem ora o sol em demasia, ora demasiada chuva;
as estrelas e os ventos são-lhes nocivos, as sôfregas aves
485 colhem as sementes mal elas são plantadas; o joio e as silvas
e ervas daninhas abafam, indestrutíveis, as searas de trigo.

' " Então, a amada de Alfeu alçou a cabeça fora da corrente [141

da Élide, tirou o cabelo a pingar da testa para trás das orelhas


e disse: ' Ó mãe da jovem procurada pelo mundo inteiro,
490 ó mãe dos cereais, põe termo aos teus labores imensos,
não te encolerizes nem agridas mais esta terra que te é fiel.
A terra não tem culpa: contrariada se abriu para o rapto.
E não é pela minha pátria que suplico: chego aqui
como estrangeira: a minha pátria é Pisa, nasci na Élide.
495 Moro na Sicânia como forasteira, mas esta região é-me
mais grata que qualquer outra. Aqui tenho eu, Aretusa,
a minha casa, aqui o meu lar. Salva-a, ó elementíssima !

14 Aretusa.
144 L I V R O V Prosérpina

A razão porque mudei de sítio e vim sob as ondas de mar


tão grande até Ortígia, virá a hora oportuna para te contar,
500 quando estiveres já aliviada das tuas angústias e de rosto
mais tranquilo. Para me deixar passar, a terra ofereceu-me
um caminho, e trazida por profundas cavernas, aqui ergo
a cabeça e contemplo as estrelas a que já me desabituara.
Ora, quando deslizava sob as terras pelo abissal Estígio,
505 vi lá em baixo, com os meus olhos, a tua Prosérpina.
Na verdade, estava triste, o rosto ainda amedrontado;
porém, era rainha e senhora do mundo das trevas,
e poderosa consorte do soberano do reino inferior. '

"'Ao ouvir tais palavras, a mãe ficou hirta, como uma pedra,
510 e muito tempo pareceu fulminada. Mal o tremendo desvario
deu lugar à tremenda dor, subiu para o seu carro e partiu
para as brisas do céu. Aí, de olhar enevoado, deteve-se
diante de Júpiter, os cabelos desgrenhados, louca de ódio.
'Venho suplicar-te pelo meu sangue, ó Júpiter' , gritou ela,
515 'e também pelo teu; e se eu como mãe de nada te importo,
ao menos a filha comova o pai; e suplico que o teu cuidado
por ela não seja menor, só porque nasceu de mim.
Eis que, ap ós tanto tempo de busca, descobri a minha filha,
por fim, se chamas descobrir tê-la perdida com toda a certeza,
520 se chamas descobrir saber onde está. Tê-la raptada, tolerarei,
se ele ma restituir; de resto, a tua filha - caso ela já não sej a
filha minha - não é digna de ter por marido um salteador. '
Retorquiu Júpiter: 'A nossa filha é penhor e responsabilidade
comum, minha e tua. E se te apraz atribuir o nome correcto
525 às coisas, não foi por maldade o sucedido, mas por paixão.
Nem como genro será ele uma desonra para nós, ó deusa,
tão-só o queiras. Se não fosse mais nada, quão grande é ser
irmão de Júpiter ! E quanto ao facto de nada mais lhe faltar,
e de eu só lhe ser superior por sorteio? Mas se tens tal afinco
530 em separá-los, Prosérpina voltará ao céu, com uma condição
bem clara: se ela lá em baixo não tiver tocado com os lábios
em qualquer alimento; pois assim foi decretado pelas Parcas . '

"'Assim falara. Ceres estava decidida a tirar d e l á a sua filha;


os fados é que não permitem: é que a jovem quebrara o jejum.
Prosérpina - As sereias L I V R O V 145

535 Na sua inocência, enquanto errava pelo jardim bem cultivado,


colhera de um ramo pendente uma romã de cor escarlate,
e da casca amarelada tirara sete grãos que metera na boca
e trincara. Apenas um de entre todos eles a viu fazê-lo,
Ascálafo, que em tempos se dizia Orfne, bem conhecida
540 de entre as ninfas do Averno, grávida do seu Aqueronte
querido, ter dado à luz no coração de uma escura floresta.
Viu-a e, denunciando-a, impediu-a, cruel, de regressar.
A rainha do Érebo pôs-se a gemer e transformou o delator
em ave impura: salpicou-lhe a cabeça com água do Flegetonte,
545 e converteu-o numa criatura com bico, penas e enormes olhos.
Arrebatado à sua forma, ele enverga por manto asas fulvas,
cresce-lhe a cabeça, as unhas recurvam-se bem compridas,
e a custo move as penas nascidas nos vagarosos braços.
Torna-se na ave pavorosa, mensageira da desgraça vindoura,
550 a indolente coruja, presságio medonho para os mortais.

"'ESTE, porém, até parece ter merecido o castigo pela língua


e pela delação; mas vós, filhas do Aqueloo, qual a causa
das penas e patas de ave, embora com um rosto de meninas?
Foi acaso porque, quando Prosérpina colhia flores primaveris,
555 vós estáveis entre as suas companheiras, ó doutas Sereias?
Quando em vão andastes pelo mundo inteiro em busca dela,
de imediato, para que os mares sentissem a vossa angústia,
vós desejastes poder pousar nas ondas com os remos de asas ;
e deparastes com deuses favoráveis à prece, e observastes
560 o vosso corpo a cobrir-se subitamente de aloiradas penas.
E para que o vosso canto, nascido para deleitar os ouvidos,
e que tão grande dote da vossa voz não perdesse o seu uso,
permaneceram o vosso rosto virginal e a voz humana.

"' QUANTO a Júpiter, vendo-se entre o irmão e a chorosa irmã,


565 resolve dividir cada rotação do ano em duas metades iguais.
E assim agora a deusa, divindade aos dois reinos comum,
está com a mãe tantos meses quantos com o esposo mora.
De imediato, altera-se o aspecto, o do espírito e o do rosto.
Pois aquele que há pouco pareceria tristonho até a Dite
570 é o rosto alegre da deusa, tal como o sol, que antes estava
encoberto por chuvosas nuvens, das nuvens sai vitorioso.
146 L I V R O V Aretusa

"' TRANQUILA pelo regresso da filha, a alma Ceres quer saber


a razão da tua fuga, Aretusa, e porque és uma fonte sagrada.
As águas silenciam-se, e das profundezas da fonte a deusa
515 tira fora a cabeça. Secando com as mãos os verdes cabelos,
foi narrando a história da antiga paixão do rio da Élide.

""Eu era uma das ninfas que vivem na Acaia', contou ela,
'e nenhuma corria os desfiladeiros com mais afinco que eu,
nem com mais afinco que eu estendia as redes de caça.
580 Mas embora nunca tivesse aspirado a ter fama de ser bela,
e embora fosse até robusta, eu tinha a reputação de formosa.
Ora bem, a minha beleza, tão elogiada, não me comprazia,
e com o que costuma encantar as outras, os dotes físicos,
eu, uma simples, corava, crendo que ser atraente era crime.

585 ""Um dia, voltava cansada, lembro-me, do bosque do Estinfalo.


Estava muito calor, e o trabalho duplicara este ardente calor.
Deparo com um regato sem remoinhos, deslizando sem rumor,
transparente até ao fundo, onde poderias contar cada seixinho
bem lá em baixo, e que tu até julgarias que mal se movia.
590 Prateados salgueiros e choupos pela água bem regados
davam uma sombra natural às margens escarpadas.
Cheguei à sua beira, e, primeiro, molhei as solas dos pés,
depois, até aos joelhos. Não satisfeita com isto, desaperto
o vestido macio e penduro-o no curvo ramo de um salgueiro.
595 Mergulho nua nas águas. Enquanto as firo e as puxo, e deslizo
de mil modos, atirando os braços lá para dentro e para fora,
senti, vindo do fundo das águas, uma espécie de murmúrio.
Assustada, apresso-me para a margem mais perto da lagoa.
"Aonde vais apressada, Aretusa? " , perguntava das suas águas
600 Alfeu; e, de novo, com voz rouca: "Aonde vais tão apressada? "
Fujo tal como estava, sem a veste, pois a minha roupa ficara
na outra margem: tanto mais ele me persegue e se abrasa,
e, por estar nua, lhe parecia estar mais a jeito para si.
Assim corria eu, assim me perseguia aquele selvagem, tal
605 como as pombas de asas trémulas de medo fogem ao gavião,
como o gavião sempre persegue as pombas a tremer de medo.
Continuei a correr até junto do Orcómeno e Psófis e o Cilene,
Aretusa L I V R O V 147

dos desfiladeiros do Ménalo e do gélido Erimanto, e até Élide,


e ele não lograva correr mais velozmente do que eu.
610 Mas eu não conseguia aguentar muito mais esta corrida
de forças desiguais, e ele podia suportar um longo esforço.
No entanto, eu bem corri por campos, por serranias de matas
cobertas, e fragas e penhascos e sítios sem caminho algum.
O sol estava nas minhas costas. Então, eu vi uma sombra
615 alongar-se à minha frente, caso não fosse o medo que a visse.
Mas certo é que ouvia o som aterrador de seus pés, e o pesado
sopro da sua boca arfante assoprava as fitas dos meus cabelos.
Esgotada de cansaço por tanto correr, grito: "Vai apanhar-me !
Acode, Diana, à tua escudeira, a quem tantas vezes confiaste
620 segurar o teu arco e as setas guardadas na tua aljava ! "
A deusa condoeu-se; e, pegando numa das espessas nuvens,
lançou-a sobre mim . Encoberta pelas névoas, o rio corre
à minha volta. Sem perceber, busca em redor da nuvem oca,
e, ignaro, duas vezes rodeia o sítio onde a deusa me ocultara.
625 E duas vezes, " Ó Aretusa ! Ó Aretusa ! " por mim chamou.
Qual o meu estado de espírito, coitadinha? Acaso o mesmo
do borrego, ao ouvir o lobo rosnando, rondando o alto redil,
ou o da lebre, escondida sob uma moita, ao ver os focinhos
inimigos dos cães, sem ousar fazer o mais leve movimento?
630 Porém, ele não arreda pé, pois não vê as minhas pegadas
irem mais adiante; e põe-se a vigiar a névoa e o local.
Um suor gelado invade-me os membros assim cercados,
e do meu corpo todo caem gotas de cor azul-esverdeada.
E por onde quer que andasse faz-se uma poça e dos cabelos
635 escorre um orvalho, e mais depressa do que agora conto isto
transformo-me em água. Mas, na verdade, o rio reconheceu
nas águas a amada e, depondo o rosto humano que assumira,
volta a ser as águas que antes era para se misturar comigo.
A de Delos rasgou o chão e eu afundo-me em negras cavernas, [ 15 1
640 até chegar a Ortígia, a mim tão querida, pois deve o nome
à minha deusa, e a primeira a trazer-me para o ar cá em cima.'

15 Diana.
148 L I V R O V Triptólemo e Linco - A Musas e as Piérides (cont.)

"'ARETUSA terminara. Então, a deusa da fertilidade atrelou


a junta de serpentes ao carro, arreou-lhes as bocas com freios,
e viajou pelos ares, entre o céu e a terra, até aterrar na cidade
645 da deusa do Tritónis. Aí confiou o leve carro a Triptólemo,
deu-lhe sementes e disse-lhe para plantar parte na terra
jamais semeada, parte, após muito tempo, nessa já semeada.
E"já o rapaz viajava pelos ares, voando sobre a Europa
e as regiões da Ásia, quando chega às costas da Cítia.
650 O rei do país era Linco. O jovem entra na régia morada.
Ao perguntarem de onde vinha, a razão da viagem, o nome
e a pátria, respondeu: 'A minha pátria é a famosa Atenas,
Triptólemo o meu nome. Não vim de barco sobre as ondas,
nem a pé pelas terras: o céu abriu um caminho para mim.
655 Trago os dons de Ceres, que, semeados pelos campos vastos,
darão searas carregadas de espigas e alimentos pacíficos. '
O bárbaro encheu-se d e inveja; e para ser ele próprio
o dador de tamanha benesse, recebe-o hospitaleiramente.
Mas quando dormia profundamente, ataca-o com a espada,
660 tenta espetar-lhe o peito. Ceres converte-o em lince, e ordena
ao jovem Mopsópio que conduza a divina junta pelos ares . "

'TERMINARA o douto cantar a mais ilustre d e todas nós.


Ora então, as ninfas, unânimes, declararam vencedoras
as deusas que moram no Hélicon. Mas as jovens vencidas
665 iam lançando insultos. "Já não bastava merecerem castigo
por nos terem desafiado, ainda somais injúrias à ofensa, "
disse Calíope. "A nossa paciência não é ilimitada: vamos
castigar-vos, indo até ao ponto onde a cólera nos levar. "
As da Emátia desatam a rir, escarnecendo das ameaças;
610 Mas, ao tentarem falar e, com grande clamor, levantar
as mãos atrevidas contra nós, eis que reparam em penas
a saírem pelas unhas e os braços a cobrirem-se de plumagem;
cada uma vê o rosto da outra endurecer em rijo bico,
e juntarem-se, feitos novos pássaros, à floresta.
675 Ao quererem fustigar-se, pelo mover dos braços as pegas
sobem no ar e pairam, maçadora algazarra dos bosques.
E ainda hoje a antiga loquacidade permanece nestas aves,
e a rouca tagarelice e uma tremenda obsessão por falar. '
LIVRO VI

A ESTAS HISTÓRIAS tinha dado ouvidos a deusa do Tritónis,


e aprovara os cantos das deusas da Aónia e sua justa cólera.
Então disse para si: 'Elogiar é pouco: também quero elogios;
nem consentirei que desprezem impunes a minha divindade . '
E volta a sua atenção para o destino d e Aracne d a Meónia,
que ela ouvira dizer não lhe ficar atrás em elogios no ofício
de trabalhar a lã. Aracne não era famosa pela terra nativa
nem pela origem da família, mas sim pela arte. O pai, Í dmon
de Cólofon, de púrpura da Foceia tingia as absorventes lãs.
10 A mãe já morrera, mas também ela fora oriunda da plebe,
como o marido. Apesar disso, pelas cidades da Lídia, ela
alcançara, pela sua aplicação, memorável renome, embora
nascida em casa humilde e habitando na humilde Hipepes.
Quantas vezes para contemplar os seus admiráveis lavores
15 não abandonaram as ninfas os arvoredos do seu Timolo,
não abandonaram as suas águas as ninfas do Pactolo.
E não era só um prazer contemplar as vestes por ela tecidas,
mas também vê-la trabalhar (tal encanto presidia à sua arte ! ) ,
ora a formar primeiramente em estrigas a l ã em bruto,
20 ora a trabalhá-las com os dedos e a amaciar a lã, semelhante
a nuvenzitas, e a puxá-la, vez após vez, formando longos fios,
ora a fazer girar o polido fuso com o seu ágil polegar,
ora, enfim, a bordar com a agulha: dirias ensinada por Palas !

Ela nega-o. Ofendida com a ideia de uma mestra tão grande,


25 'Que compita comigo ! 'disse, 'Se me vencer, nada recusarei ! '
Palas disfarça-se, então, de velha: falsas cãs às têmporas
aplica, com uma bengala sustém os debilitados membros.
Depois, assim começou a falar: ' Nem tudo na idade avançada
é para ser repudiado: a experiência provém da maturidade.
150 L I V R O VI Aracne e Minerva

30 Não desprezes o meu conselho: busca-te o máximo renome


possível entre os seres mortais na arte de trabalhar a lã.
Mas dá a primazia à deusa, ó temerária. Por tais palavras
roga-lhe perdão de voz suplicante. Ela perdoará, se pedires. '
Esta, porém, fita-a d e olhar feroz. Deixa cair o s fios iniciados,
35 e denunciando a cólera no rosto, a muito custo contém a mão.
Vai atrás de Palas, ainda disfarçada, e tais palavras lhe disse:
'Vens até nós gasta pelos longos anos, desprovida de senso;
e ter vivido de mais foi para ti coisa má. Se tens alguma nora,
se alguma filha tens tu, que ela oiça essas tuas palavras.
40 Bom senso tenho eu bastante. E para não julgares que útil
me foste pelos teus conselhos, mantenho a mesma opinião.
Por que razão não vem aqui? Por que razão foge à contenda?'
Então, a deusa: 'Ela veio ! ' , e removendo a aparência de anciã,
revela-se Palas. Ninfas e as jovens esposas da Migdónia caem
45 em veneração da divindade. Só a rapariga não se atemorizou.
Apesar disso, corou. À sua revelia, um súbito rubor marcou
as suas faces, e de novo desapareceu, tal como a atmosfera
se costuma colorir de carmim, logo que a Aurora surge,
e, pouco tempo depois, empalidece pelo nascer do sol.
50 Ela teima no seu intento, e, com insensata ânsia de glória,
precipita-se no seu destino: pois a filha de Júpiter não recusa,
já nem mais advertências lhe faz, nem a competição protela.

Sem mais delongas, montam ambas em lugares separados


teares gémeos, e esticam a urdidura de delicados fios.
55 A urdidura é presa ao cilindro, o pente de cana separa os fios.
Entre eles, com pontiagudas lançadeiras, é inserida a trama,
que os dedos desembaraçam; os dentes talhados do pente
comprimem com um golpe a trama passada entre os fios.
Lançam-se à tarefa ambas, e, veste atada ao peito, movem
60 os talentosos braços com um afinco que engana o cansaço.
Ali entretecem a púrpura, que sentiu o caldeiro de bronze
tírio, e matizes delicados, imperceptivelmente mais suaves,
tal como, quando a chuva colide com os raios solares,
o arco-íris costuma tingir o largo céu com enorme curva,
65 e ainda que nele rebrilhem mil cores distintas, a mudança
de uma para outra ilude o olhar que as contempla, tanto
Aracne e Mineiva L I V R O V I 151

se parecem as adjacentes, porém as das pontas são distintas.


Ali também elas entretecem flexível ouro entre os fios,
e vão desenrolando na tela uma história antiga.

10 Palas retrata o rochedo de Mavórcio na cidadela de Cécrops 01

e o antigo litígio acerca do nome a dar àquela terra.


Com venerável majestade, sentam-se os doze deuses
nos seus altos tronos, tendo ao centro Júpiter. Cada cara
identifica o respectivo deus. A figura de rei é a de Júpiter.
15 Faz o deus dos mares de pé, ferindo o escarpado rochedo
com o seu longo tridente, e da ferida da rocha irrompe
um jorro de água salgada, penhor para reivindicar a cidade.
A si própria dá um escudo, dá uma lança de afiada ponta,
à cabeça dá um capacete, com a égide o peito é protegido.
80 Retrata a terra, golpeada pela sua lança, a fazer brotar
um rebento da verde-cinza oliveira, carregada de azeitona,
e os deuses cheios de pasmo. Uma Vitória conclui a obra.
Mas para que a rival em elogios perceba com exemplos
o prémio que poderá esperar de ousadia tão tresloucada,
85 nos quatros cantos acrescenta quatro cenas de contendas,
luminosas pelas cores, decoradas com pequeninas figuras.
Um dos cantos oferece o Ródope da Trácia e o Hemo,
agora, montanhas geladas, outrora, corpos de humanos
que usurparam os nomes dos mais excelsos deuses.
90 Noutro canto, a pungente sorte da Pigmeia, há pouco mãe: [2J

vencendo-a numa contenda, Juno ordenara que em grou


se transformasse e declarasse guerra ao seu próprio povo.
Retratou também Antígone, que um dia ousou competir
com a esposa do grande Júpiter, e que pela rainha Juno
•5 foi transformada em pássaro. De nada lhe valeu Ílion,
nem o pai, Laomedonte, impediu que, coberta de penas,
ela, alva cegonha, se aplauda a si própria crepitando o bico.
O canto que falta apresenta Cíniras, que perdeu as filhas:
abraçado aos degraus do templo, outrora os corpos delas,
100 e prostrado de rojo sobre a pedra, parece verter lágrimas.

1 O Areópago em Atenas.
2 Éroe.
152 L I V R O VI Aracne e Minerva

Bordeja os limites da tela com ramos da oliveira, a da paz.


Este é o final. E assim conclui a obra com a sua árvore.

A da Meónia representa Europa, ludibriada pela aparência


de um touro: dirias ser um touro real, um mar de verdade.
105 Ela parece contemplar as terras que se quedaram atrás
e chamar para ali as companheiras, a ter receio de tocar
nas águas que saltitam, a tirar para trás o pé temeroso.
Teceu também Astéria, sendo à força apanhada pela águia,
e teceu Leda, reclinada para trás sob as asas de um cisne.
110 Adicionou ainda de que forma Júpiter, disfarçado de sátiro,
engravidou de dois gémeos a bela filha de Nicteu; llJ
como em Anfitrião se tornou quando te possuiu, ó Tiríntia, t<1

e feito ouro enganou Dánae, e a filha de Asopo feito chama, [5J


feito pastor Mnemósine, a filha de Deo feito malhada cobra. l•J
rn Também a ti, Neptuno, transformado em bezerro feroz, ela
te pôs sobre a filha virgem de Éolo, sob a figura de Enipeu t71

geras os Aloídas, como carneiro ludibrias a filha de Bisaltes; ts1

e a gentilíssima mãe das searas, de loiros cabelos, sentiu-te t91

como cavalo; e como pássaro viu-te a mãe do cavalo alado, l101


120 a de cabelos de serpente; e Melanto como golfinho te viu.
A todos conferiu o seu aspecto próprio e o aspecto dos locais.
Ali estava também Febo na figura de um camponês,
e mostra como envergou ora asas de gavião, ora pele de leão,
como disfarçado de pastor enganou a filha de Macareu, Isse;
125 e como Líber ludibriou Erígone com um falso cacho de uvas;
e como Saturno, na forma de cavalo, gerou o biforme Quíron.
Os limites da sua tela, circundada com uma fina bordadura,
apresentam flores entretecidas por entre retorcidas heras.

' Antíope.
' Alcmena, da qual nasce Hércules.
' De Dánae nasce Perseu; a filha de Asopo é Egina.
6 A filha de Deo (outra nome de Ceres) é Prosérpina.
7 "Ela te pôs . . . " refere-se a Aracne; a filha de Éolo é Cânace.
8 Tiro é a ninfa violada por Neptuno disfarçado de rio Enipeu (na versão mais comum, os filhos
são Pélias e Neleu); a filha de Bisaltes é Teófane.
9 Ceres.
10 Medusa; o cavalo voador é Pégaso.
Aracne e Minerva - Níobe e Latona L I V R O VI 153

Nem Palas, nem a Inveja conseguem achar defeito na obra.


no A loira deusa guerreira ficou furiosa com tal sucesso.
Rasgou a colorida tela com as malfeitorias dos seres celestes,
e, com a lançadeira de madeira do Citoro que na mão tinha,
três, quatro vezes bateu na testa de Aracne, filha de Í dmon.
A pobrezinha não o suportou e, por orgulho, atou ao pescoço
m um laço. Ao vê-la pendurada, Palas condoeu-se e ergueu-a
dizendo: 'Vive então, malvada, mas sempre pendurada.
E para não ficares sem cuidados futuros, que a mesma pena
seja declarada à tua estirpe e aos mais remotos descendentes. '
Depois d e tal dizer, borrifou-a, a o partir, com sucos d e ervas
140 de Hécate. De imediato, tocados pela terrível poção,
os cabelos caíram, e com eles o nariz e também as orelhas;
a cabeça torna-se mínima, e minúsculo fica o corpo todo;
dos flancos pendem finos dedos no lugar das pernas,
e todo o resto é um ventre, do qual lança fora um fio,
145 e, como aranha, continua a fabricar tecidos como outrora.

TODA a Lídia freme. A notícia do sucedido corre as cidades


da Frígia, e o mundo inteiro é invadido por conversas .
Já antes de se casar, no tempo em que, ainda donzela,
habitava no Sípilo, na Meónia, Níobe conhecera Aracne.
150 E nem com o castigo da conterrânea se convencera ela
a não competir com os deuses e a usar palavras humildes.
Muitas coisas a envaideciam, mas nem as artes do esposo, t1 11
nem a linhagem de ambos ou o poderio do grandioso reino
tanta alegria lhe causavam (embora tudo isto a deleitasse) ,
155 quanto os seus filhos. E Níobe a mais afortunada das mães
seria dita, não fora ver-se como tal a seus próprios olhos.

Pois a filha de Tirésias, Manto, a que antevê o futuro,


impelida por divino impulso, andava pelos caminhos
vaticinando: ' Ó Isménides, ide em grande número
160 oferecer incenso e piedosas preces a Latona e aos filhos
ambos de Latona, e cingi o cabelo de folhas de louro.

11 O marido era Anfíon, filho de Júpiter, que, atraindo as pedras com o som da sua lira,
construíra as muralhas de Tebas.
154 L I V R O V I Níobe .

Latona pela minha boca assim ordena. ' As Tebanas todas


obedecem. Adornam as frontes com as folhas prescritas,
ofertam incenso nas sagradas chamas e entoam preces.
165 Eis que chega Níobe com uma multidão de seguidoras,
deslumbrante pelas vestes frígias de ouro entretecido,
e, tanto quanto lhe consente a ira, formosa. Movendo
os belos cabelos longos caídos sobre os ombros ambos,
detém-se, altiva. Lançando o olhar arrogante em redor,
110 'Que loucura', diz, 'preferir deuses de que se ouviu falar
aos que se vêem ! Por que razão nas aras se cultua Latona
e a minha divindade está sem incenso? Meu pai é Tântalo,
o único a quem foi permitido tocar nas mesas dos deuses;
minha mãe é irmã das Pléiades; o poderosíssimo Atlas,
115 que suporta na nuca o eixo celeste, é o meu avô.
O outro avô é Júpiter e ufano-me de o ter também por sogro.
Os povos da Frígia são temerosos de mim . Eu sou senhora
do palácio de Cadmo; e as muralhas construídas pela lira
do meu marido, e o seu povo, são governadas por mim
180 e meu esposo. Aonde quer que no palácio eu lance os olhos,
contemplo riquezas imensas. Além disso, tenho uma beleza
digna de uma deusa. E acrescenta-lhe também sete filhas
e outros tantos filhos, e, mais tarde, os genros e as noras.
Perguntai agora qual o renome que o meu orgulho detém,
185 e ousai preferir a mim Latona, prole de um Titã, de um
não sei que Ceo, ela, a quem outrora a gigantesca terra
negou um simples e minúsculo recanto para dar à luz !
Nem no céu, na terra ou no mar foi a vossa deusa recebida.
Era proscrita do mundo, até que um dia Delos se condoeu
19-0 da vagabunda e disse: 'Tu vagueias estrangeira pelas terras,
eu pelas ondas. ' E ofereceu-lhe um local nunca fixo. Ela deu
à luz dois rebentos, que é a sétima parte da minha prole.
Sou afortunada: quem o negará? E afortunada serei sempre:
quem o duvidará? A fartura de filhos trouxe-me segurança.
195 Sou demasiado grande para a Fortuna me poder fazer mal,
e por muito que ela me tire, muito mais para mim deixará.
Os meus bens passaram além de qualquer receio. Imaginai
que parte desta multidão de filhos até me possa ser tirada:
mesmo que tirem algo, jamais serei reduzida à soma de dois,
Níobe L I V R O VI 155

200 a chusma de Latona: quanto dista ela de uma sem filhos?


Saí, depressa, com as cerimónias inacabadas ! Tirai esse louro
dos cabelos ! ' Elas tiram e deixam inacabadas as cerimónias;
e (isso podem fazer) passam a venerar a deusa em sussurro.

A deusa ficou indignada. E lá dos píncaros do Cinto


205 dirigiu-se aos seus dois filhos com as seguintes palavras:
'Pois bem ! Eu, vossa mãe, orgulhosa de vos ter dado à luz,
eu, que a deusa alguma cedo a primazia, a não ser a Juno,
vejo a minha divindade posta em causa, e para sempre
estou afastada do culto nas aras, filhos, se não acudirdes.
210 E não é só esta a minha dor. Ao pavoroso comportamento
a filha de Tântalo juntou insultos: ousou preferir os filhos
a vós e chamou-me estéril - que tal recaia sobre ela ! -,
e na sua malvadeza revelou a mesma língua de seu pai . '
A o que contara, Latona ia ainda somar palavras d e prece.
215 'Basta ! ', disse Febo, 'Lamentar não é que retardar o castigo.'
Febe concordou. Os dois deslizaram velozmente pelo ar,
ocultos por uma bruma, e chegaram à cidadela de Cadmo.

Havia junto às muralhas uma planície aberta e vasta,


calcada sem cessar pelos cavalos, onde multidões de rodas
220 e os duros cascos tinham amaciado os torrões de terra.
É aí que alguns dos sete filhos de Anfíon montam
os possantes cavalos, carregam os dorsos enrubescidos
do suco de Tiro e manejam as rédeas pesadas de ouro.
Quando um deles, lsmeno, que outrora fora o fardo
225 primeiro para a sua mãe, levava o cavalo a percorrer
um círculo perfeito e refreava a sua boca espumante,
'Ai de mim ! ', grita; e uma seta crava-se a meio do peito.
Largando as rédeas das moribundas mãos, desliza
lentamente até ao chão pela omoplata direita do cavalo.
230 O próximo, que era Sípilo, ouvindo o zunido da flecha
pelo ar, parte à rédea solta, tal como quando o capitão
ao ver as nuvens, previdente, foge à borrasca e desfralda
as velas todas pendentes, não vá escapar a mais leve brisa;
mas embora fugisse à rédea solta, o inescapável projéctil
235 apanha-o: e a flecha lá se espeta a vibrar na nuca,
156 L I V R O V I Níobe ·

enquanto a ponta de ferro sai para fora pela garganta.


Inclinado para a frente como estava, rebola pelas crinas
e as patas em corrida, e mancha a terra de sangue morno.
O desafortunado Fédimo e o herdeiro do nome do avô,
240 Tântalo, tinham terminado os seus habituais exercícios
e passado aos desportos juvenis da reluzente palestra.
E já lutavam, peito contra peito, fortemente abraçados,
quando a flecha disparada pela corda em tensão
a ambos trespassou unidos, assim tal como estavam.
245 Juntos soltaram um gemido, os corpos curvados de dor
caíram por terra juntos, juntos jazendo pela última vez
reviraram os olhos, juntos exalaram o derradeiro sopro.
Alfenor vê-os . Dilacerando e batendo no peito,
voou a erguer nos seus braços os corpos gelados
250 e cai neste piedoso dever: pois o de Delos rasgou-lhe
o peito com a flecha mortífera. Quando foi retirada,
a rebarba da ponta arrancou parte do pulmão,
e, junto com a vida, o sangue espalhou-se pelos ares .
Não é um só golpe que atinge Damasícton de cabelos
255 intonsos: o primeiro tiro foi no início da coxa, ali onde
os tendões do joelho formam a parte mole da articulação.
Enquanto intenta extrair o letal projéctil com as mãos,
uma segunda seta trespassa-lhe a garganta até às penas.
O sangue expulsa a seta, e, espirrando para o alto,
260 esguicha para bem longe, perfurando o ar num jacto.
O último foi Ilioneu. Estendendo os braços abertos
para uma prece vã, exclamara: ' Ó deuses, todos vós,
poupai-me ! ' , ignorando que não devia rogar a todos.
O deus do arco condoeu-se, mas já a flecha não podia
265 ser chamada de volta: aquele morre de ferida mínima,
pois a seta penetrou no coração, mas não bem fundo.

A notícia da chacina, a consternação do povo e as lágrimas


dos amigos informaram a mãe de tão repentino desastre.
Pasmada por ter podido acontecer, fica furiosa por a tanto
270 terem ousado os deuses, por terem eles tamanhos poderes.
Pois o pai deles, Anfíon, logo cravara a espada no peito
e morrera, pondo um fim, a um tempo, à dor e à vida.
Níobe L I V R O VI 157

Oh ! que diferença entre esta Níobe agora e aquela Níobe


que, em tempos, afastara o povo dos altares de Latona
215 e caminhara, altiva e arrogante, pelas ruas da cidade,
odiosa aos seus, agora digna até da compaixão do inimigo !
Lança-se sobre os corpos gelados, e, ao acaso,
vai distribuindo pelos filhos todos os derradeiros beijos.
Depois, erguendo deles os braços lívidos para o céu,
280 'Farta-te, ó cruel Latona, farta-te com a minha dor ! '
exclama ela, 'e sacia o teu coração com o meu luto !
[Sacia o teu coração cruel ! ' , disse. 'Em sete funerais]
eu sou levada. Exulta e celebra o triunfo, inimiga vitoriosa !
Mas porquê vitoriosa? No infortúnio, ainda me resta mais
285 que a ti, afortunada: mesmo após tanta morte ainda venço. '

Assim dissera; e eis que d o arco armado ressoou a corda.


O zunido a todos aterroriza, a todos menos a uma, Níobe:
a desgraça fá-la audaciosa. Diante dos leitos dos irmãos,
de negras vestes e cabelos desgrenhados, estavam as irmãs.
290 Uma delas arrancava a seta presa às entranhas de um deles,
quando desfalece, moribunda, o rosto caindo sobre o irmão.
Uma outra, que intentava consolar a desgraçada mãe,
de súbito, cala-se e dobra-se em duas com ferida invisível.
[Ficou de lábios cerrados, até o último sopro estar a sair.]
295 Esta, quando em vão fugia, cai por terra, aquela morre
sobre a irmã. Esta esconde-se, aquela vê-la-ias a tremer.
Seis são entregues à morte, atingidas por golpes diferentes.
Já só resta a última. Cobrindo-a com todo o seu corpo,
com a sua veste toda, 'Deixa-me só uma, a mesma pequena !
300 De tantos, imploro-te a mais pequena, só uma ! ' , berrou ela.
E, enquanto implora, por quem implora morre. Queda-se só,
entre os cadáveres dos filhos, e os das filhas, e o do marido.
Pela desgraça fica hirta. A brisa já nem um só cabelo move,
o rosto empalidece, sem pinga de sangue, os olhos param,
305 imóveis, na desolada face: nada está vivo na sua figura.
Até a própria língua se congela no interior do palato
endurecido, e as veias desistem de poder palpitar.
E já nem o pescoço se flecte, nem os braços se movem,
nem os pés logram andar: até o interior das vísceras é pedra.
158 L I V R O VI Níobe - Os camponeses da Lícia

Jlo Porém ela chora. E, apanhada pelo turbilhão de um vendaval,


é levada para a sua terra. Ali, fixada no cimo de um monte,
desfaz-se a chorar, e ainda hoje do mármore jorram lágrimas.

ENTÃO, todos eles, homens e mulheres, temem a ira da deusa


assim manifestada, e todos, com mais fervor ainda no culto,
m veneram o grande poder divino da deusa, a mãe dos gémeos. 1121
Como sempre sucede, da história recente passa-se às antigas.
Um deles contou: 'Também outrora, nos campos da fértil Lícia,
uns aldeões escarneceram da deusa, e não ficaram impunes.
O caso é pouco conhecido pela baixa condição dessas gentes,
320 porém, é espantosa. Eu estive lá e vi o lago e o local famoso
pelo prodígio. Pois o meu pai, já então de idade avançada,
a quem viajar muito custava, encarregara-me um dia de ir
buscar ali uns bois escolhidos. Ao partir, dera-me um guia
de entre aquele povo. Quando com ele percorria os pastos,
325 eis que no meio de um lago se nos depara um velho altar,
negro da cinza dos sacrifícios, rodeado de trémulas canas.
O guia pára e, num sussurro temeroso: ' Sê-me propício ! ' ,
disse; e, num sussurro igual, ' Sê-me propício ! ' , repeti eu.
Perguntava-lhe se o altar seria às Náiades ou a Fauno,
Ho ou a um algum deus local, quando o nativo assim contou:

' " Não, rapaz, não é um deus dos montes que está neste altar.
Reclama-o como seu aquela a quem outrora a mulher do rei
interditou o mundo e que a errática Delos a custo recebeu
pela sua prece, no tempo em que era uma leve ilha a flutuar.
335 Foi ali, apoiada numa palmeira e na árvore de Palas,
que Latona deu à luz dois gémeos, à revelia da madrasta.
E foi também dali, dizem, que a recente mãe fugiu a Juno,
levando no colo os seus dois filhos, ambos divinos.

"'Na região da Lícia, a terra da Quimera, à hora a que o sol


340 abrasador torrava os campos, a deusa, esgotada, um dia,
pelas longas provações, era morta de sede pelo calor solar;

12 Ou seja, Latona.
Os camponeses da Lícia L I V R O V I 159

as crianças, sôfregas, tinham-lhe secado os peitos de leite.


Aconteceu então descortinar no fundo de um vale um lago
não muito grande. Ali, alguns camponeses apanhavam
345 molhos de vime, juncos e limos, os dilectos dos charcos.
A filha de um Titã abeirou-se e ajoelhou-se na margem,
para beber o refrescante líquido. Um bando de campónios
impede-a de o fazer; e aos que a impediam disse a deusa:

' " 'Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos.


350 Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar,
nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho.
Porém, rogo-vos, suplicante, que ma deixeis beber. Eu não
me aprestava a lavar aqui os membros ou o corpo exausto,
mas a aliviar a sede. Ao falar-vos, a minha boca está seca,
355 a garganta ressequida, e por ela a custo a voz consegue sair.
Um golo de água será para mim néctar, e para sempre direi
que recebi com ele a vida: na água ter-me-eis dado a vida.
E condoei-vos também destes, que do nosso colo estendem
os bracinhos' (e, por acaso, as crianças estendiam os braços) .
360 Quem não se comoveria com as doces palavras da deusa?
Eles, porém, teimam em proibi-la, mesmo com as súplicas,
e juntam ameaças se não partir e, ainda por cima, injúrias.
E isto não lhes bastou. Agitaram o lago com os pés e as mãos,
e, saltando de um lado para o outro por maldade,
365 desataram a remexer o lodo mole do fundo do lago.
A cólera dela adiou a sua sede. De facto, já a filha de Ceo
não suplica mais àqueles seres indignos, nem suporta falar
abaixo da condição de deusa. Erguendo as mãos aos astros,
'Que vivais neste lago para todo o sempre ! ' , exclamou.

310 ' " Os votos da deusa realizaram-se. Pois apraz-lhes viver


sob as águas, ora mergulhar o corpo todo na bacia do lago,
ora pôr a cabeça de fora, ora nadar à superfície das águas.
Muitas vezes postam-se à beira do charco, muitas vezes
saltam de volta à fria lagoa. Mas ainda hoje eles manejam
375 as línguas vis em discussões, desprovidas de pudor,
e até mesmo sob as águas, sob as águas intentam injuriar.
E também já a voz enrouqueceu, os pescoços entumecidos
160 L I V R O V I Mársia� - Pélops

incharam, os próprios insultos dilataram os largos queixos.


As costas tocam a cabeça, os pescoços parecem amputados,
380 o dorso é verde, o ventre, que é a maior parte do corpo,
é branco. E saltitam no lodoso charco, as recentes rãs. " '

QUANDO este tal indivíduo acabou de contar a aniquilação


dos camponeses da Lícia, um outro recorda um certo sátiro
que o filho de Latona castigara após o vencer com a flauta
3s5 da Tritónia. 'Porque me arrancas de mim próprio ? ' , gritava;
' Ai ! Arrependo-me ! Ai ! ' , urrava, 'uma flauta não vale tanto ! '
Enquanto berrava, da superfície do corpo arrancou-lhe a pele.
Não era mais que uma só ferida. De todo o lado jorra sangue.
Os tendões, a descoberto, estão à vista; as veias, trementes,
390 latejam sem pele a cobri-las. Podias contar as entranhas
palpitantes e os órgãos que vão rebrilhando no seu peito.
Os faunos campestres, divindades das florestas,
e os sátiros, seus irmãos, choraram-no, e Olimpo, que ora
lhe era caro, e as ninfas e todos os que, naqueles montes,
395 rebanhos lanígeros e manadas de bois apascentavam.
O fértil solo encharca-se das lágrimas que iam caindo,
e, encharcado, acolhe-as e sorve até ao fundo de suas veias.
Mal em água as transformou, lançou-as para o vazio do ar.
Daqui toma o nome aquele que corre para o mar t impetuoso t,
400 de íngremes margens, o mais límpido rio da Frígia, o Mársias.

DE IMEDIATO, o povo volta-se destas histórias para os factos


presentes e choram Anfíon, falecido junto com a sua prole.
O ódio recai sobre a mãe. Conta-se que, nessa ocasião,
só Pélops a chorara, e que, removendo a veste do peito,
405 pusera à mostra a peça de marfim no seu ombro esquerdo.
Quando nascera, este ombro fora de cor igual ao direito
e de carne. Mais tarde, o corpo foi esquartejado, diz-se,
pelas mãos do p ai, e os deuses o recompuseram. Acharam cm

todos os pedaços menos um , entre a garganta e o cimo

" O pai era Tântalo.


Tereu, Procne e Filomela L I V R O V I 161

410 do braço. No lugar da parte jamais encontrada foi colocada


uma peça de marfim. E, feito isto, ficou Pélops completo.

ACORREM os nobres das vizinhanças, e as cidades em redor


urgem os próprios reis a irem pessoalmente levar consolo:
Argos, e também Esparta, e até a Micenas do Peloponeso,
415 e Cálidon, que não era ainda odiosa à carrancuda Diana,
e a fértil Orcómeno, e Corinto, pelos bronzes renomada,
e a selvagem Messene, e Patras, e a rasa Cleonas,
e a Filos de Neleu, e a Trezena ainda não de Piteu,
e as demais cidades que o Istmo dos dois mares encerra,
420 e as situadas fora que do Istmo dos dois mares se avistam.
Quem poderia acreditar? Apenas tu, Atenas, te abstiveste.
Foi a guerra que obstou a este dever: hordas estrangeiras
trazidas por mar aterrorizavam as muralhas da Mopsópia.

Estas, desbaratara-as Tereu da Trácia, vindo com tropas


425 em auxílio, e, ao vencê-las, alcançara um renome ilustre.
Poderoso pela riqueza e população, descendia a sua estirpe,
por acaso, do magno Gradiva. Pandíon uniu-o à sua casa,
matrimoniando-o com Procne. Mas à boda não assistiram
Juno como madrinha, nem Himeneu, nem as Graças:
430 as Euménides levaram as tochas, roubadas a um funeral,
as Euménides fizeram o leito; e uma coruja impura veio
ali pousar e empoleirar-se no telhado do quarto nupcial.
Com estes auspícios se uniram Procne e Tereu, com estes
auspícios se tomaram pais. É certo que a Trácia os felicitou,
435 e que eles próprios agradeceram aos deuses por aquele dia.
E tanto o dia em que a filha de Pandíon é dada ao ilustre rei,
como o dia em que Í tis nasceu, foram declarados festivos.
A tal ponto se oculta o proveito das coisas !
Já o Titã
conduzira o volver dos anos através de cinco Outonas,
440 quando Procne, enchendo o marido de carícias, lhe disse:
'Se algum encanto me vês, envia-me a visitar minha irmã,
ou então que minha irmã venha cá. Prometerás a teu sogro
que ela regressará depressa. Uma grande prenda me darás
1 62 L I V R O V I Tereu, Procne e Filomela

se eu puder ver a minha innã.' Ordena, então, que lancem


445 o barco à água. E recorrendo à vela e aos remos, chega
ele à orla do Pireu e desembarca no porto de Cécrops.

Logo que é levado à presença do sogro, apertam as mãos


e, com este sinal propício, trocam palavras cordiais.
Começara a expor as razões da vinda, o encargo da esposa
450 e a prometer que a jovem, se fosse, retornaria depressa,
quando eis que chega Filomela, rica pelo sumptuoso traje,
mas ainda mais rica de beleza. Assim costumamos ouvir
dizer as Náiades e as Dríades vaguearem pelos recantos
dos bosques, apenas lhes déssemos trajes e adornos iguais.
455 À vista da jovem, Tereu inflamou-se de paixão amorosa,
tal como quando alguém lança fogo às espigas brancas,
ou quando queima folhas e ervas empilhadas num palheiro.
A sua beleza era merecedora; mas é mais um desejo inato
que o aguilhoa, pois o povo daquelas regiões é propenso
460 à lascívia: inflama-se por vício do seu povo e dele próprio.
O primeiro impulso é subornar as zelosas companheiras
e a ama fiel, e aliciar a própria jovem com presentes
riquíssimos, mesmo que a preço do seu reino inteiro,
ou raptá-la e defendê-la, uma vez raptada, em feroz guerra.
465 Nada há que não ousasse, tomado pela desenfreada paixão,
e já nem o peito consegue conter as chamas lá dentro dele.
A custo aguenta a demora. Com palavras sôfregas, reitera
o pedido de Procne e perora a sua causa como se dela fosse.
A paixão tornara-o eloquente, e sempre que se excedia
470 nos pedidos, afirmava que era Procne que assim o queria.
Até juntou lágrimas, como se até isto tivesse sido ordenado.
Ó deuses, que negridão tão escura governa o coração
dos mortais ! E enquanto urde o seu crime, Tereu é tido
como um homem piedoso, e o crime granjeia-lhe elogios.
475 Não é que Filomela deseja o mesmo? Agarrada aos braços
e ao colo do pai, implora-lhe ternamente, pela sua saúde,
e contra a dela também , que a deixe ir visitar a sua irmã.
Tereu contempla-a. Ao mirá-la, antevê-se a acariciá-la;
ao vê-la aos beijos, abraçada ao pescoço, tudo recebe
4so como aguilhões, e achas, e alimento para a sua paixão.
Tereu, Procne e Filomela L I V R O VI 163

E quantas vezes ela abraça o pai, tantas vezes deseja


ser o pai - e isto, de resto, não seria menos ímpio !
O pai acede por fim às preces das jovens. Ela rejubila
e agradece ao pai, e julga, a infeliz, que foi uma vitória
485 para as duas o que para as duas resultaria desastroso.

Já pouco era o trabalho que restava a Febo, e os cavalos


já desciam, calcando a encosta inclinada do Olimpo.
Põem nas mesas um banquete real e vertem o Baco
em taças de ouro; depois, vem o tempo do plácido sono.
490 Mas o rei dos Odrísios, embora pernoitasse afastado, ferve
de paixão por ela: rememora o olhar, os gestos, as mãos,
imagina da forma que quer o que ainda não viu, alimenta
as próprias chamas com uma inquietação que afasta o sono.
Alvorecera. Ao partirem, Pandíon aperta a mão ao genro,
495 e, lágrimas nos olhos, confia-lhe a jovem, recomendando:
'Já que uma razão piedosa assim me forçou, querido genro,
que ambas assim o quiseram (e tu também quiseste, Tereu),
entrego-ta. Pela lealdade, pelos nossos corações de parentes
te suplico, pelos deuses imploro: protege-a com amor de pai,
500 e devolve este doce alívio para a minha atormentada velhice
quanto antes: toda a demora é demasiado longa para mim.
E tu, Filomela, retorna a casa (já basta a tua irmã estar longe)
se tens algum carinho filial por mim, quanto antes . '
Enquanto isto lhe recomendava, i a beijando a filha,
505 e entre as recomendações escorriam-lhe doces lágrimas.
Exige as mãos direitas dos dois como penhor de boa-fé:
eles oferecem e ele aperta-as entre si, e pede que saúdem
a filha e o neto ausentes em seu nome com lembranças suas;
e, a muito custo, a boca cheia de soluços, disse o derradeiro
510 'Adeus ! ' , angustiado com os pressentimentos do seu espírito.

Logo que Filomela embarcou no navio pintado às cores,


e os remos impeliram o mar, empurrando para trás a terra,
'Venci ! ' , exclama o bárbaro, 'Levo comigo o que desejava. '
[Exultante, a custo afasta d o seu espírito o s prazeres.]
515 E não mais desviou o seu olhar de cima da jovem,
tal como quando a ave de rapina de Júpiter, predadora,
1 64 L I V R O V I Tereu, Procne e Filomela

com as garras recurvas deposita a lebre no alto ninho: esta,


apanhada, não tem forma de fugir, o captor observa a presa.
Já a viagem terminara. Desembarcando dos barcos exaustos,
520 pisam a praia dele, quando o rei arrasta a filha de Pandíon
para um curral enorme, oculto no fundo de ancestral bosque.
Aí enclausura a pobre, pálida, assustada, receando tudo,
perguntando, lavada em lágrimas, onde estava a irmã.
Confessando o seu ímpio desejo à jovem ali sozinha,
525 viola-a, enquanto ela, em vão, chamava sem parar pelo pai,
sem parar pela irmã, e acima de tudo pelos magnos deuses.
Ela treme como o cordeiro apavorado, que, arrancando-se
à boca de um lobo cinzento, ferido, não se crê ainda a salvo,
ou como a pomba com as penas encharcadas do seu sangue
530 se arrepia e ainda receia as ávidas garras que a agarraram.

Mais tarde, quando retorna a si, arranca os cabelos soltos,


[e retalhando os braços, como se a carpir num funeral,]
estende as mãos e diz: ' Ó bárbaro de terríveis acções,
ó cruel, nem as recomendações e as piedosas lágrimas
535 de um pai te tocaram, nem os cuidados por minha irmã,
nem a minha virgindade, nem as leis do matrimónio?
[Tudo misturaste: agora sou a amante rival de minha irmã,
tu, esposo bígamo; é justo que ela me puna como inimiga] .
Porque não me tiras a vida, pérfido, para que crime algum
540 te falte? Quem dera que o tivesses feito antes desta união
tão criminosa: eu teria a minha sombra isenta deste crime.
Mas se os deuses do céu observam tudo isto, se o poder
das dívindades de alguma coisa vale, se tudo não pereceu
comigo, pagar-me-ás algum dia. Lançando fora o pudor,
545 contarei o que fizeste. Se me for dada a oportunidade,
irei contar aos povos; se ficar prisioneira nestes bosques,
gritá-lo-ei às florestas e comoverei as pedras ao saberem.
Isto ouvirão os céus e os deuses, se algum neles vive. '

Com tais palavras, a cólera d o cruel tirano incendeia-se,


550 e não menos o receio. Aguilhoado pelos dois sentimentos,
puxa da bainha a espada com que estava armado,
e, agarrando-a pelos cabelos, torce-lhe à força os braços
Tereu, Procne e Filomda L I V R O V I 1 65

atrás das costas e ata as mãos. Filomela oferecia a garganta,


pois, à vista da espada, esperançara-se de que iria morrer.
555 Enquanto a língua protestava e invocava o nome do pai,
e se debatia para falar, ele agarra-lha com uma tenaz
e corta-a com cruel espada. A base da língua lateja ao fundo.
A língua, essa jaz, trémula, a murmurar na terra negra,
tal como costuma saltitar a cauda cortada da cobra,
560 e, a palpitar, ao morrer, busca o rasto da sua senhora.
Depois deste crime, diz-se que o rei (quase não ouso crer ! )
buscou vezes sem conta o mutilado corpo na sua lascívia.

Após tais actos, tem a coragem de voltar ao pé de Procne,


que, à vista do esposo, pergunta pela irmã. Ele, porém,
565 solta gemidos fingidos e inventa uma história de morte;
e as lágrimas deram credibilidade. Procne arranca
dos ombros o vestido fulgente de larga banda de ouro
e enverga negras vestes; manda erigir um túmulo vazio,
e leva oferendas expiatórias aos falsos espíritos, e chora
510 o destino da irmã, que não devia ser chorado assim.

O deus percorrera os doze signos, perfazendo um ano.


O que podia Filomela fazer? Um guarda impede a fuga;
os muros do estábulo eram construídos em sólida pedra;
a boca muda não consegue denunciar o caso. Mas grande
575 é o talento do sofrimento, e na desgraça surge o engenho.
Prende uma urdidura num tear do povo bárbaro e tece
astuciosamente letras de púrpura entre os fios brancos,
revelando o crime. Ao terminar, confia-a à única serva,
instando com gestos que a leve à senhora. Esta, instada,
580 levou o tecido a Procne, sem ter ideia do que ali levava.
A consorte do malvado tirano desenrolou o tecido
e leu a pungente inscrição da irmã. Fica então sem fala.
(Incrível como pôde ! ) . A dor comprime-lhe os lábios,
palavras de indignação apropriadas faltam à língua
585 quando as procura. Sem uma lágrima, lança-se pronta
a confundir lícito e ilícito, e urde, absorta, a vingança.
166 L I V R O V I Tereu, Procne e Filomela

Chegara a época em que as jovens da Sitónia costumavam


celebrar a festa bienal de Baco. A noite testemunha os ritos,
na noite ecoa o Ródope com o tilintar agudo do bronze,
590 de noite saíra a rainha do seu palácio. Apetrechando-se
como para os ritos do deus, empunha as armas do delírio:
a cabeça coberta de folhas de videira, uma pele de veado
a cair do flanco esquerdo, a lança leve apoiada no ombro.
Procne desata a correr por bosques, medonha, com a turba
595 de companheiras, aguilhoada pelas fúrias da sua dor,
fingindo que são tuas , Baco. Por fim, chega ao curral ermo.
Aos urros, aos gritos de 'Evoé ! ' , estilhaça as portas,
rapta a irmã, e à irmã raptada enverga-lhe as insígnias
de Baco, e oculta-lhe o rosto com folhagens de hera;
600 arrasta-a atónita e condu-la para dentro dos seus muros.

Quando Filomela percebeu que chegara à nefanda casa,


estremeceu de horror a coitada, e a palidez inunda o rosto.
Achando um local, Procne despe-lhe os símbolos dos ritos
sagrados, destapa o rosto envergonhado da pobre irmã
605 e abraça-a. Mas esta não ousa erguer os olhos para os dela,
sentindo-se adúltera em relação à irmã. De olhar no chão,
quer fazer juras e invocar os deuses por testemunhas
de que aquela desonra sua lhe fora imposta pela força.
Fá-lo com as mãos em vez da voz. Procne fica em brasa
610 e não consegue conter a sua cólera. Censurando à irmã
o pranto desta, 'Não é com lágrimas que temos de agir,
mas com o ferro' , disse, 'ou coisa mais forte que o ferro,
se tens alguma. Estou pronta a qualquer impiedade, irmã:
ou atearei o fogo ao palácio real com uns archotes
615 e lançarei Tereu, o responsável, no meio das chamas,
ou lhe arrancarei com a espada a língua e os olhos
e o membro que te roubou a honra, ou por mil feridas
extirparei a alma culpada. Estou pronta para algo grande:
o que seja, ainda não sei bem . ' Enquanto Procne tal dizia,
620 eis que chega Ítis ao pé da mãe. O que pudesse ser o acto,
ele deu-lhe uma sugestão. Fitando-o de olhar temível,
'Ah ! como és parecido com teu pai', disse. Sem mais dizer,
urde um terrível crime, ardendo de uma silenciosa raiva.
Tereu, Procne e Filomela L I V R O VI 1 67

Quando, porém, ele chegou ao pé dela e saudou a mãe


625 e lhe lançou os pequeninos braços ao redor do pescoço,
e juntou beijos misturados com mimalhices infantis,
a mãe comoveu-se, a sua cólera foi forçada a esmorecer,
os olhos enchem-se à revelia de lágrimas que saem à força.
Mas logo que sentiu que, por excessivo respeito maternal,
630 a sua vontade vacilava, virou-se dele de novo para o rosto
da irmã, e, fitando cada um à vez, disse: 'Porque pode
ele dizer doçuras, mas ela, com a lingua arrancada, se cala?
Este chama-me mãe, por que razão não me chama ela irmã?
Olha, ó filha de Pandíon, com que marido te foste casar:
635 caíste bem baixo. Amor de mãe na esposa de Tereu é crime. '

Sem mais tardar, arrastou Ítis, tal como o tigre d o Ganges


arrasta a cria de leite da cerva pelas tenebrosas florestas.
E quando chegaram a uma parte remota do alto palácio,
enquanto ele estendia as mãos, vendo já o seu destino,
640 e gritava 'Mãe ! Mãe ! ' e tentava abraçar-se ao pescoço dela,
Procne golpeia-o com uma espada entre o peito e o flanco,
sem sequer desviar o olhar. Para o matar, um só golpe
bastou. Com a lâmina, Filomela degola-o, e despedaçam
ambas o corpo ainda vivo, ainda com um sopro de vida.
645 Parte saltita em caldeirões de bronzes, outra parte chia
em espetos; o aposento fica todo encharcado de sangue.

A Tereu, sem saber, a esposa convida-o para o banquete.


Inventando que era uma tradição da sua pátria e que só
os esposos podiam assistir, manda sair amigos e criados.
650 Sentando-se o próprio rei no alto do trono ancestral,
Tereu come e atafulha o estômago da sua própria carne.
Tal era a escuridão do seu espírito que diz: 'Mandai vir Ítis'.
Procne já não consegue dissimular a desapiedada alegria
e, ansiando ser a mensageira da sua própria desgraça,
655 disse: 'Quem procuras tens aí dentro'. Ele olha em redor
e pergunta onde está; e enquanto busca e de novo chama,
salta Filomela, tal como estava, com os cabelos salpicados
da tresloucada matança, e atira a ensanguentada cabeça
de Ítis à cara do pai. Em instante algum quis mais poder
168 L I V R O VI Tereu, Procne e Filomda - Bóreas e Oritia

660 falar e testemunhar a alegria com as palavras que merecia.


Com gigantesco clamor, o Trácio derruba as mesas,
e do vale do Estígio convoca as Irmãs de cabelos de v!Ôora.
Ora ansiava em desespero abrir, se pudesse, o peito
e extrair o horrendo manjar e as carnes semi-comidas,
665 ora chora e chama-se sepulcro lastimoso de seu filho,
ora persegue as filhas de Pandíon de espada em punho.
Julgarias que os corpos das Cecrópides pairam com asas.
Mas pairam mesmo com asas ! Uma demanda os bosques,
a outra sobe ao telhado (do peito ainda não desapareceram
610 os sinais da matança: as penas ficam marcadas de sangue) .
Ele, correndo bem veloz pela dor e ânsia de vingança,
transforma-se em pássaro que tem uma crista na cabeça,
e é um imenso bico que se espeta em vez da longa lança.
[É a poupa, cuja cabeça parece armada para a guerra] . [l4J

675 ESTA foi a dor que lançou Pandíon nas sombras do Tártaro
antes de tempo, antes do derradeiro dia da longa velhice.
O ceptro e o governo do reino detém Erecteu, não se sabe
se mais forte pelo sentido de justiça, se pela força das armas.
Ele, na verdade, tivera quatro jovens filhos e outras tantas
6so de condição feminina; duas delas eram de beleza igual.
Destas, Céfalo, neto de Éolo, foi feliz em ter-te por esposa,
ó Prócris. Mas a Bóreas prejudicaram Tereu e os Trácios,
e por muito tempo o deus foi privado da sua amada Oritia,
enquanto lhe foi suplicando e preferia as preces à força.
685 Mas quando palavras doces nada obtêm, medonho de cólera
como é costume naquele vento (e até demasiado habitual) ,
'Bem feito ! ', disse, 'Porque pus de lado as minhas armas,
a crueldade e a violência, a cólera e os modos ameaçadores,
e recorri às preces, cujo uso não me convém de todo?
690 Minha arma é a força. Pela força empurro sombrias nuvens,
pela força sacudo os mares e vergo os nodosos carvalhos,
endureço a neve e martelo as terras com bátegas de granizo.

1 4 Tereu metamorfoseia-se em poupa, Procne em andorinha, Filomela em rouxinol.


Bóreas e Oritia L I V R O V I 169

Pois sempre que encontro os meus irmãos no céu aberto


(pois este é o meu campo de batalha) , combato com tal vigor,
695 que os ares entre nós ribombam com os nossos choques
e ressaltam e esguicham chamas das ocas nuvens.
Quando desço às abobadadas grutas da terra e com as costas
empurro ferozmente os tectos dos mais profundos antros,
importuno os mortos e o mundo inteiro com estremeções.
100 É com recurso a esta força que eu devia pedir a mão dela,
e devia tomar Erecteu por meu sogro, não implorar-lhe.'

Dizendo tais palavras ou outras não inferiores a estas,


Bóreas sacudiu as asas, que, com os batimentos, lançou
o sopro sobre a terra toda e fez o imenso mar estremecer.
105 Arrastando o manto de pó sobre os altos cumes dos montes,
varre a terra e, coberto pela obscuridade, apaixonado,
abraça Oritia, tomada de pavor, com as suas asas fulvas.
Enquanto voa, as chamas atiçadas ardem com mais força,
e o raptor não travou com as rédeas a corrida pelos ares,
110 antes de chegar ao território e às muralhas dos Cícones.
Ali a rapariga da região de Acte tornou-se esposa
do gélido tirano, e também mãe; e deu à luz gémeos,
que tinham as asas do pai e o resto do corpo da mãe.
Diz-se, porém, que as asas não nasceram com o corpo.
115 Enquanto a barba lhes não despontava sob os cabelos
ruivos, os meninos Cálais e Zetes estiveram implumes.
Em breve, duas asas começam a cingir ambos os flancos
à maneira dos pássaros, e a ambos os queixos a aloirar-se.
E quando o tempo da meninice deu lugar ao da juventude,
no partiram por um mar desconhecido na primeira das naus,
com os Mínias, em busca do velo radioso de pêlo fulgente.
LIVRO VII

JÁ os Mínias sulcavam o mar na nau construída em Págasas. u1

Tinham já visto Fineu arrastando uma velhice desvalida


numa noite perpétua, tinham os jovens, filhos de Aquilão,
afugentado as aves femininas do rosto do pobre velho. r21
E após muitas atribulações sob o comando do ilustre Jasão,
atingem, por fim, as águas torrentosas do lamacento Fásis.

Ao chegarem à presença do rei e pedirem o velo de Frixo, r>1


aos Mínias são impostos, por condição, trabalhos medonhos.
Entretanto, a filha de Eetes inflama-se de poderosa chama.

10 Longamente a combateu. E quando vê que não consegue


vencer a loucura com a razão, diz: 'Em vão, Medeia, resistes.
Um deus qualquer se te opõe, e será espantoso se não for isto,
ou pelo menos algo semelhante a isto, a que chamam amor.
Pois porque me parecem tão cruéis as ordens de meu pai?
15 (E são demasiado cruéis ! ) Porque temo pela vida de quem
só há pouco vi pela primeira vez? Qual a causa de tanto medo?
Expulsa do teu coração virginal as chamas que se acenderam,
desgraçada, se puderes. Se pudesse, ficaria de mente mais sã.
Mas uma força inédita arrasta-me à revelia: o desejo aconselha
20 uma coisa, a razão outra. Vejo o que é melhor e aprovo-o,
mas sigo o que é pior ! Tu, ó filha de um rei, porque te abrasas
por um estrangeiro e sonhas com matrimónio em solo alheio?
Também esta terra te pode dar homem para amares. Que ele
viva ou morra, depende dos deuses. Que viva, pois ! Isto posso

1 É a nau Argo, o primeiro barco, utilizado na expedição dos Argonautas, ou seja os Mínias, co­
mandados por Jasão.
2 As Harpias.
' Eetes, rei da Cólquida.
Jasão e Medeia L I V R O V I I 171

25 pedir, mesmo sem ser por paixão. De resto, que mal fez J asão?
A quem não tocará a juventude de Jasão, a nobreza, a valentia,
a não ser uma criatura cruel? A quem não encantará o seu rosto,
se tudo isto lhe faltasse? Sem dúvida encantou o meu coração.
Mas se não o ajudar, sofrerá o sopro das narinas dos touros,
'º terá de enfrentar a sementeira que fizer de inimigos nascidos
da terra, será selvaticamente presa daquele dragão voraz.
Se eu tal permitir, então terei de dizer ser filha de um tigre,
ou então que trago ferro ou pedras dentro do meu coração.

'Mas porque não assisto à sua morte, e deixo poluir os olhos


35 assistindo a ela? Porque não espicaço os touros contra ele
e os brutais filhos da terra, e o dragão que jamais dorme?
Os deuses queiram o melhor ! Embora o que devo fazer não é
suplicar, mas actuar. Pois hei-de atraiçoar o reino de meu pai,
e com a minha ajuda será salvo um forasteiro qualquer,
40 para que, salvo por mim, sem mim solte as velas aos ventos
e seja marido de outra, e eu, Medeia, fique para o castigo?
Se tiver a coragem de o fazer, se preferir a mim outra mulher,
que morra, o ingrato ! - Mas não. Ele tem uma tal expressão
no rosto, uma tal nobreza de alma, uma figura tão graciosa,
45 que não receio traição ou o esquecimento dos meus serviços.
Dará a palavra antes e invocarei os deuses como testemunhas
do nosso pacto. Que temes tu, estando segura? Apronta-te,
sem mais demoras. J asão terá uma dívida eterna para contigo,
contigo casará em solene boda, e pelas cidades dos Pelasgos
50 serás aclamada por multidões de mães como sua salvadora.
- Pois então irei eu abandonar a minha irmã e o meu irmão,
e o meu pai, e os deuses e o solo pátrio, levada pelos ventos?
Decerto, meu pai é cruel, decerto, a minha terra é bárbara,
meu irmão ainda criança. As preces de minha irmã estão comigo,
55 o deus mais poderoso está em mim. Não deixarei grande coisa,
e grandes coisas alcançarei: glória de salvar os jovens Aqueus,
conhecer uma terra melhor e cidades cuja fama floresce
até aqui, e a cultura e as artes de outros povos, e o filho
de Éson, que eu não trocaria nem por toda a riqueza
60 do mundo inteiro ! E, tendo-o como esposo, serei chamada
venturosa e cara aos deuses, e com a cabeça tocarei os astros.
E quanto àqueles não sei que montes que chocam um no outro,
172 L I V R O V I I Jasão · e Medeia

dizem, no meio das ondas, e essa Canbdis, inimiga dos navios,


ora sugando água do estreito, ora vomitando, e a rapace Cila,
65 cingida de ferozes cães, latindo sobre o fundo mar da Sicília?
Pois, agarrada ao meu amor, aninhando-me no colo de Jasão,
navegarei pelos mares imensos. Nada recearei abraçada a ele,
ou, se algo houver a temer, temerei apenas pelo meu esposo.
- Julgas que isto é um matrimónio e encobres a tua culpa
10 com belas palavras, Medeia? Vê antes quão abominável
acto te propões cometer e foge ao crime, enquanto podes ! '
Assim disse. E diante dos seus olhos postam-se a Rectidão,
o Dever e o Pudor; e já Cupido lhe virava as costas, vencido.

Ia a caminho dos antigos altares de Hécate, a filha de Perses,


75 que o sombrio arvoredo de um bosque afastado ocultava.
Ela já se sentia forte, e a paixão, banida, se ia desvanecendo,
quando vê o filho de Éson e a chama apagada volta a brilhar.
O rubor invade-lhe as faces e o rosto todo se afogueou.
E tal como a pequenina fagulha, ocultada sob a camada
ao das cinzas, costuma colher o seu alimento da aragem,
e crescer, e, assim avivada, ressurgir com as antigas forças,
assim o amor já mais brando, que já julgarias esmorecido,
mal viu o jovem, se reacende à vista da sua linda presença.
E por acaso, naquele dia, o filho de Éson estava mais belo
85 que de costume: até lhe perdoarias por estar apaixonada.
Ela contempla-o e mantém o olhar fixo no rosto dele,
como se só agora finalmente o visse: fora de si, julga ver
o rosto de um imortal e não é mais capaz de afastar-se dele.
Mas quando o estrangeiro se põe a falar, lhe agarra a mão,
90 e, de voz humilde, implora auxílio e compromete-se
a com ela vir a casar, ela irrompe em pranto e assim diz:
'Vejo o que vou fazer. E não é a ignorância da verdade
que me iludirá, mas o amor. Serás salvo com a minha ajuda;
estando salvo, cumpre o prometido ! ' Ele jura pelos rituais
95 da deusa triforme, a divindade que se pensa presidir
àquele bosque, e pelo pai do futuro sogro, o que tudo vê, "1

4 Hécate e o Sol, respectivamente.


Jasão e Medeia L I V R O V I I 173

e pelo bom sucesso da sua tremenda e perigosa empresa.


Ela acredita. De imediato, ele recebeu umas ervas mágicas
e aprendeu o seu uso; e regressou contente à sua morada.

loo A Aurora seguinte tinha já expulsado as cintilantes estrelas.


Acorrem, então, multidões ao sagrado campo de Mavórcio
e instalam-se nos cimos à volta. No meio da escolta senta-se
o rei em pessoa, de púrpura, vistoso pelo ceptro de marfim.
Eis que vêm os touros de pés de bronze. Das narinas de aço
105 sopram o ígneo Vulcano, e as ervas, tocadas pelo abrasador
sopro, ardem tal como restrugem sempre as fornalhas cheias,
ou como quando, no forno na terra, a pedra de cal se derrete
e começa então a fervilhar com borrifos de água límpida;
assim ressoam os peitos deles, dentro dos quais rodopiam
uo chamas, assim as abrasadas gargantas. O filho de Éson,
porém, vai ao seu encontro. Quando ao pé deles chegou,
voltam para ele ferozmente o terrível olhar e os cornos
de ponta de ferro, calcam o pó do chão com os bifurcados
cascos e enchem o local com mugidos que lançam fumo.
m Os Mínias ficam hirtos de medo. Ele avança e não sente
os sopros de fogo - tal o poder da poção mágica !
Com mão audaz, acaricia-lhes as barbelas pendentes,
impõe-lhes a canga, força-os a puxar o enorme peso
do arado e a rasgar sulcos na terra não habituada ao ferro.
120 Os Colcos enchem-se de pasmo; com um clamor os Mínias
incitam-no e encorajam. Então, do capacete de bronze tira
os dentes de dragão e põe-se a semeá-los no campo lavrado.
A terra amolece as sementes, embebidas em potente veneno,
e os dentes já plantados crescem e tomam-se novos corpos.
125 E tal como a criança toma forma humana no útero materno,
e lá dentro ela se vai compondo, unidade a unidade,
e não sai para o ar a todos comum antes de estar pronta,
assim, mal as formas humanas ficaram totalmente formadas
nas entranhas da terra prenhe, brotam do fecundado campo,
no e, o que é mais espantoso, brandem armas com eles nascidas.
Quando os Pelasgos os viram, aprestando-se a atirar lanças
de aguçada ponta contra a cabeça do jovem, filho de Éson,
baixam os rostos de medo e esmorece-se-lhes a coragem.
174 L I V R O V I I Jasão e Medeia - O rejuvenescimento de Éson

Também aquela que o fizera invulnerável se assustou:


135 quando viu o jovem, sozinho, atacado por tantos inimigos,
empalideceu e logo se sentou, gelada, sem pinga de sangue.
E não fosse a erva que lhe dera não ter poder bastante, entoa
um feitiço auxiliar, recorrendo às artes secretas da magia.
Quanto a ele, atira para o meio dos inimigos um pedregulho
140 e afasta de si a violência de Marte e fá-la recair neles próprios.
Os irmãos, filhos da terra, sucumbem, ferindo-se mutuamente,
e tombam em guerra civil. Os Aqueus desatam a felicitá-lo,
agarram o vencedor e apertam-no em sôfregos abraços.
144 Também tu terias querido abraçar o vencedor, ó bárbara.
146 [Mas o pudor opôs-se à intenção. Por ti, tê-lo-ias abraçado,
145 mas o respeito pela tua reputação impediu-te de o fazer.]
Mas (isto tu podes fazer) alegras-te com emoção silenciosa,
e agradeces às feitiçarias e aos deuses que as conceberam.

Resta adormecer com as ervas mágicas o dragão insone,


"º inconfundível pela crista, tripla língua e recurvos dentes,
que era o horrendo guardião da árvore de ouro.
Quando o borrifou com o suco de Letes de uma certa erva,
e três vezes pronunciou palavras que induzem plácido sono
e que amansam o mar revolto e os torrentosos rios,
m t mal chega t o sono a olhos que o desconheciam, o herói,
filho de Éson, do ouro se apodera. E orgulhoso do espólio,
trazendo consigo quem lho proporcionara - outro espólio -,
chegou triunfante com ela, já sua esposa, ao porto de Iolco.

NA HEMÓNIA, as mães e os pais idosos levam aos deuses


160 oferendas pelo regresso dos filhos: incenso, aos montões,
derrete-se sobre as chamas, tombam as vítimas prometidas,
de cornos recobertos de ouro. Mas na multidão que o felicita
falta Éson, esgotado pela provecta idade, já à beira da morte.
Então, assim diz o filho de Éson: 'Esposa, a quem reconheço
165 eu dever a salvação, apesar de tudo me teres outorgado
e de a soma dos teus serviços ser tal que nem dá para crer,
se, porém, for possível (o que não é possível para a magia?) ,
retira anos à minha vida e transfere-os para a d e meu pai.'
Medeia e Éson L I V R O V I I 175

E não conteve as lágrimas. Comoveu-a o amor filial do pedido


170 [e Eetes, abandonado, veio-lhe ao espírito, bem distinto] .
Sem admitir tais emoções, diz: 'Que crime, meu esposo,
saiu agora dos teus lábios? Então tu achas que eu poderia
transferir uma porção da tua vida para um outro qualquer?
Nem Hécate permitiria tal coisa, nem o que pedes é justo.
175 Mas tentarei, Jasão, dar-te prenda maior do que a que pedes.
Com minha arte tentarei remoçar a longa vida de meu sogro,
mas sem ser à custa dos teus anos, caso a deusa triforme [5J

me ajude e em pessoa for favorável a esta enorme ousadia. '

Três noites faltavam para o s cornos s e unirem totalmente


130 e perfazerem um círculo. Mal a lua refulgiu toda cheia,
e contemplou as terras com a sua forma completa,
ela sai do palácio, coberta de vestes desapertadas,
pés descalços, os cabelos descobertos, soltos pelos ombros.
Caminha sozinha, a passo errante, nos silêncios mudos
185 do meio da noite. Homens, aves e animais estão relaxados
186 num sono profundo; nem um só murmúrio nos arbustos,
186• [como se dormisse, a serpente não solta um só murmúrio,]
as folhas, imóveis, em silêncio, em silêncio está o ar húmido.
Apenas as estrelas cintilam. Para estas estendeu os braços.
Rodopiou três vezes, três vezes o cabelo aspergiu com água
190 colhida num regato, abriu a boca e gritou três vezes.
E ajoelhando-se sobre a dura terra, deste modo rezou:

' Ó Noite, fidelíssima para os nossos mistérios, e vós,


estrelas douradas, que com a lua sucedeis aos fogos do dia,
e tu, Hécate, das três cabeças, que conheces os meus intentos
195 e vens ajudar as fórmulas mágicas e as artes t dos feiticeiros t,
e tu, ó Terra, que forneces aos feiticeiros poderosas ervas
e vós, brisas e ventos, e montanhas e rios e lagoas,
e todos vós, deuses dos bosques e deuses da noite, vinde !
Com a vossa ajuda, sempre que quis, fiz retornar à nascente
200 o curso dos rios para pasmo das margens; imobilizo o mar

5 Hécate, a deusa do inferno, associada à feitiçaria.


176 L I V R O V I I Medeia e Éson

agitado com encantamentos e agito-o quando está imóvel;


disperso as nuvens e as nuvens reúno, escorraço os ventos
e convoco-os, rebento os queixos das víboras com cantares;
pedras e carvalhos e bosques, arranco-os do chão onde estão
205 e mudo-os de sítio, e ordeno que as montanhas estremeçam
e o solo retumbe, e que os fantasmas saiam dos sepulturas.
A ti também, Lua, puxo lá de cima, embora o bronze de Témese
reduza a tua provação; também o carro de meu avô empalidece "1
com o meu cantar, empalidece a Aurora com as minhas poções.
no Para mim esmorecestes as chamas dos touros e carregastes-lhes
o cachaço, que nunca antes suportara peso, com o curvo arado;
fizestes os filhos do dragão se guerrearem brutalmente entre si,
e adormecestes o guardião que nunca dormira; e ludibriando
o vigilante, deixastes partir o ouro para as cidades da Grécia.
215 Agora, preciso de sucos com que remoçar a vida de um velho,
e fazê-lo regressar à flor da idade e recuperar os anos de jovem.
Vós dar-mos-eis. Pois não foi em vão que as estrelas cintilaram,
nem em vão está aqui o carro puxado pelo cachaço de dragões
alados. ' (0 carro, de facto, descera do céu e ali estava parado.)

220 Logo que subiu para ele e afagou os pescoços embridados


dos dragões, e sacudiu as rédeas ligeiras com as mãos,
é levada pelos ares. Vai observando lá em baixo Tempe,
ali na Tessália, e dirige as serpentes para certas regiões.
Todas as plantas que produz o Ossa, que produz o alto Pélion
225 e o Ótris e o Pindo e o Olimpo, mais elevado que o Pindo,
ela examina e, às que lhe agradam, umas arranca com raiz,
outras corta-as com a lâmina recurva da foice de bronze.
Também lhe agradam muitas ervas das margens do Apídano,
muitas também das do Anfriso, e nem tu ficaste livre, Enipeu;
2io e até as águas do Peneu, e até mesmo as do Esperqueu,
deram algo, e as margens do lago de Bebe, cobertas de juncos;
Colhe também em Antédon, frente à Eubeia, a erva vivificante,
naquele tempo ainda não famosa pela metamorfose de Glauco.
E já o nono dia e a nona noite a tinham observado a percorrer

6 O Sol; quanto ao bronze de Témese, ver p. 1 14, nota 10.


Medeia e Éson L I V R O V I I 177

235 as terras todas, levada no seu carro de dragões alados,


quando retomou. Nada tocara nas serpentes senão os aromas,
mas ainda assim eles fizeram a muda da pele de longos anos.

No regresso, deteve-se defronte dos portões do palácio.


Coberta apenas pelo céu, furtou-se aos encontros
240 com homens, e erigiu dois altares feitos de turfa,
o do lado direito a Hécate, o do esquerdo à Juventude.
Envolveu-os com ramos de plantas e folhagens silvestres.
Não muito longe dali escavou dois buracos no chão
e fez um sacrifício: na garganta de uma ovelha negra
245 crava a faca, e as largas cavidades inunda de sangue.
Depois, por cima derrama taças de límpido mel,
e outras taças de leite morno derrama, e entoa
uma fórmula mágica, evocando os deuses subterrâneos.
Roga ao rei das sombras e à jovem raptada, sua esposa,
250 que não se apressem a surripiar a alma ao corpo idoso.
Quando logrou aplacá-los murmurando longas preces,
ordenou que trouxessem o corpo gasto de Éson para fora,
e, relaxando-o num sono profundo com um canto mágico,
estendeu-o numa cama de folhas como se um cadáver.
255 Ordena que o filho de Éson se afaste, se afastem os criados,
e recomenda que desviem o olhar profano do ritual secreto.
Eles obedecem e dispersam-se. Medeia, de cabelos soltos
qual Sacante, anda à roda dos altares em chamas,
mergulha archotes multífidos na escura fossa de sangue,
260 e, embebidos, acende-os nos dois altares. Purifica o idoso
três vezes com a chama, três com água, três com enxofre.

Entretanto, potente droga fervilha no caldeirão de bronze


posto ao lume: ferve em cachão, esbranquiçada de espuma.
Na panela, cozinha as raízes colhidas no vale da Hemónia,
265 juntamente com sementes e flores e negros sucos.
Adiciona seixos buscados no mais longínquo Oriente
e areias que os refluxos das marés do mar do Oceano lavam.
Junta ali também geada colhida numa noite de luar,
e de um vampiro de má fama as asas com a própria carne,
270 e vísceras de um lobisomem, afeito a mudar o aspecto
17 8 L I V R O V I I Med�ia e Éson - O castigo de Pélias

de animal em figura humana. Nem faltou ali a pele


escamosa e delgada da serpente marinha do Cínips,
e o fígado de um veado muito idoso, ao que junta o bico
e cabeça de uma gralha velha de nove gerações humanas.
215 Mal a mulher bárbara acabou de preparar com tais coisas
e outras mil sem nome o maior projecto para um mortal,
mexeu tudo com um ramo de tranquila oliveira, já seco
há muito, misturando a parte de baixo com a de cima.
Eis então que o velho pau, girando no caldeirão a ferver,
280 primeiro, reverdece, pouco depois, cobre-se de folhas,
e, subitamente, fica carregado de gordas azeitonas.
E para onde quer que o lume cuspia espuma do bojudo
caldeiro, e as gotas escaldantes vão no chão tombando,
a terra reverdece e brotam flores e pastos viçosos.

285 Logo que isto viu, Medeia agarra numa espada


e corta a garganta ao ancião; deixando o sangue velho
escorrer, enche as veias da poção. Éson, ao absorvê-la
ou bebendo pela boca ou pela ferida, a barba e o cabelo
perdem a brancura e depressa recuperam a cor escura;
290 a magreza é expulsa e foge, vão-se a palidez e o aspecto
decrépito, as vincadas rugas são preenchidas com carne,
o corpo reganha o vigor de jovem. Éson fica pasmado,
e recorda que este era ele em tempos, há quarenta anos.

Lá do alto observara Liber este prodígio tão espantoso.


295 Ficando a saber que podia devolver às suas amas os anos
de juventude, obtém este presente da jovem da Cólquida.

PARA NÃO parar com os logros, um dia, esta do Fásis simula


uma falsa aversão ao marido. Ao fugir, suplica asilo na casa
de Pélias. E, visto que este vivia alquebrado pela longa idade,
300 as filhas acolheram-na. Em pouco tempo, a ardilosa rapariga
da Cólquida conquistou-as, simulando uma falsa amizade,
e relata, entre as suas maiores proezas, ter retirado a Éson
a sua decrepitude. Neste ponto demora-se particularmente,
insinuando nas jovens, as filhas de Pélias, a esperança
305 de que o pai, com artifício semelhante, pudesse rejuvenescer.
Pélias L I V R O V I I 179

É o que lhe pedem, e dizem que fixe o preço, sem limites.


Ela fica um pouco calada e parece hesitar; fingindo um ar
grave, mantém expectante o espírito delas, que suplicavam.
Prometendo que o faria, diz: 'Para que mais confiança tenhais
310 neste presente, o carneiro mais velho entre as ovelhas, o chefe
do rebanho, ficará um borrego com a minha poção mágica.'
Logo trazem um lanzudo carneiro, pelos numerosos anos
esgotado, de retorcidos chifres sobre as côncavas têmporas.
Quando furou o flácido pescoço com a faca da Hemónia
3 15 e manchou a lâmina de ferro de poucas gotas de sangue,
a feiticeira mergulhou no bojudo caldeiro o corpo do bicho
com potentes sucos. A poção encolhe o corpo e pela fervura
os chifres desaparecem, e, com os chifres, os próprios anos;
e do interior do caldeirão acaba por se ouvir um doce balir.
320 Estavam espantados com o balido, quando o cordeiro salta
para fora e corre aos saltos, buscando uma teta para mamar.
As filhas de Pélias ficam pasmadas, e agora que a promessa
se provava credível, insistem com ela com ainda mais ardor.

Três vezes desatrelara Febo os cavalos ao mergulhar no rio


325 da Ibéria, e pela quarta noite cintilavam as radiosas estrelas,
quando a pérfida filha de Eetes põe água pura a ferver
no impetuoso lume, mais ervas sem quaisquer poderes.
E já um sono semelhante à morte se apossara do rei,
relaxando-lhe o corpo, e, com o do rei, os dos seus guardas,
Ho sono esse incutido pelo canto e poder de palavras mágicas.
Instruídas pela Colca, as filhas entraram com ela no quarto
e rodearam o leito. 'Por que razão hesitais agora, cobardes? '
disse, 'Pegai e m espadas e fazei esvair-se o sangue velho,
para eu poder encher as veias vazias com sangue jovem.
m Está nas vossas mãos a vida e a juventude de vosso pai.
Se tendes algum amor filial e vossas esperanças são reais,
prestai este serviço a vosso pai, e escorraçai com a espada
a velhice: espetai-lhe o ferro e fazei sair o sangue podre.'
Assim incitadas, quanto mais boa filha é, mais depressa
340 como má filha age, e para não ser criminosa, comete o crime.
Mas nenhuma ousa ver os golpes: voltam para trás o olhar
e ferem-no de costas, às cegas, com as implacáveis mãos.
180 L I V R O V I I Pélias - A fuga de Medeia - Cicno

Quanto a ele, soergue-se a escorrer sangue, sobre o cotovelo,


e, terrivelmente ferido, tenta levantar-se da cama. No meio
345 de tantas espadas, estendendo os braços lívidos, exclamou:
'Que fazeis, minhas filhas? Quem vos arma contra a vida
de vosso pai?' Os braços e a coragem delas esmoreceram.
Ia dizer mais, quando a da Cólquida lhe cortou a garganta
e a fala, e mergulhou o corpo retalhado na água a ferver.

350 SE NÃO tivesse sido levada pelos céus pelas serpentes aladas,
não teria escapado à punição. Foge pelos ares, passando
sobre o Pélion umbroso, morada do filho de Fílira, e o Ótris, [7 )

e os locais famosos pelo antigo episódio de Cerambo.


Este, com a ajuda das ninfas, ergueu-se nos ares com ases,
355 quando a terra sólida foi submersa pela inundação do mar,
e, sem se afogar, escapou às cheias do tempo de Deucalião.
Do lado esquerdo, deixa para trás Pítane na Eólia,
junto com a figura de uma enorme serpente feita de pedra, [si

e a floresta do Ida, onde Líber ocultou, sob a falsa aparência


360 de um veado, o bezerro furtado pelo filho, e o local
onde o pai de Córito está sepultado sob um pouco de areia, [•J

e os campos que Mera aterrorizou com um insólito ladrar, [IOJ

e a cidade de Eurípilo, em Cós, onde as mulheres traziam


chifres, ao tempo em que o bando de Hércules se retirou,
365 e Rodes, tão cara a Febo, e os Telquines de láliso, de olhos
que tudo poluem com uma só mirada, a quem Júpiter,
odiando-os, afogou debaixo das ondas de seu irmão.
Cruzou também as muralhas da Carteia, na antiga Ceos,
onde Alcidamante, o pai, se haveria de espantar por,
310 do cadáver da filha, poder nascer uma pacífica pomba. [l!J

LOGO avista a lagoa de Híria e o vale de Cicno, qual Tempe,


que súbito cisne celebrizou. Fora ali que Filio domesticara,

7 Quíron.
8 Em Lesbos.
9 Páris.
' º Porventura, Hécuba.
1 1 Ctesila.
Cicno - A fuga de Medeia (cont.) L I V RO V I I 181

às ordens de um rapaz, aves e um leão feroz, e lhos levara. D21


Com ordens também para vencer um touro, bem o venceu;
315 mas, furioso por tantas vezes o seu amor ser desdenhado,
nega o touro ao rapaz, embora lho pedisse como prenda
última. Este, indignado, disse: 'Desejarás ter-mo oferecido ! '
E atira-se do alto de um rochedo. Todos julgaram que caíra:
mas convertido em cisne, pairava no ar com níveas asas.
3so Mas Híria, sua mãe, sem saber que se salvara, desfez-se
em lágrimas e transformou-se na lagoa do mesmo nome.

PERTO destas regiões está Plêuron, onde, com asas trémulas,


Combe, filha de Ófio, escapou aos golpes dos seus filhos.
Depois, avista as terras de Caláuria consagradas a Latona,
3s5 que tinham visto o rei e a rainha transformarem-se em aves.
À direita, encontra-se o Cilene, no qual Ménefron haveria
de dormir com a própria mãe, tal como as feras selvagens.
Voltando-se para trás, vê lá ao longe o Cefiso, chorando
o destino de seu neto, convertido em gorda foca por Apolo,
390 e a casa de Eumelo, que carpia o filho que morava nos ares.
Por fim, pelas asas das serpentes chegou a Pirene, em Éfira. [ IJ J
Aqui, nos primórdios dos tempos, disseram os antigos, corpos
humanos surgiram de cogumelos que brotaram das chuvas.

Mas mal a nova esposa ardeu com venenos da Cólquida,


395 e ambos os mares viram o palácio do rei em chamas,
ela encharca a ímpia espada com o sangue dos filhos.
Após tão atroz vingança, a mãe escapa às armas de J asão.
Saindo dali, levada pelos dragões, animais do Titã, [ 1' ]
ela entra na cidadela de Palas, que te viu, justíssima Fene,
400 e a ti, idoso Perifante, voando um ao lado do outro,
e a neta de Polipémon, sustentando-se nas novas asas. [l 5J
Acolhe-a Egeu, que só por este facto pode ser censurado.
Nem a hospitalidade lhe basta: une-a a si em matrimónio.

12 O rapaz chamava-se Cicno.


n Corinto.
14 Sol.
1 5 Alcíone.
1 82 LIVRO VII Egeti e Teseu

Eis QUE chega Teseu, um filho desconhecido para seu pai,


405 após, com bravura, ter pacificado o Istmo entre dois mares.
Para o matar, põe-se Medeia a preparar veneno de acónito,
que, em tempos idos, trouxera consigo das costas da Cítia.
O veneno, dizem, provinha dos dentes do cão nascido l"l

da Equidna. Há uma caverna negra, de tenebrosa entrada.


41· Nela desce a vereda empinada, por onde o herói de Tirinto
arrastou Cérbero, agrilhoado com correntes de duro metal,
ele que resistia e desviava os olhos da luz do dia
e do brilho dos raios solares. Açulado por raivosa fúria,
encheu a atmosfera com os seus três latidos simultâneos,
415 e salpicou os verdejantes campos de esbranquiçada baba.
Pensa-se que esta solidificou, e, encontrando alimento
no fértil e fecundo solo, ganhou propriedades nocivas.
E porque nasce e sobrevive em duras rochas, acónito l!7J

chamam-lhe os aldeões. Por uma artimanha da esposa,


420 o pai, Egeu, ofereceu-o ao filho como se a um inimigo.
E já Teseu agarrara sem saber a taça que lhe estendiam
quando o pai reconheceu no punho de marfim da espada
a marca da sua casa e lhe arrancou dos lábios a vil bebida.
Ela escapa à morte em névoa convocada por prece mágica.

425 Quanto ao pai, embora feliz por o filho estar são e salvo,
fica, porém, sem fala ao ver como, por pouco, não cometeu
tão tremendo crime. Acende chamas nos altares,
enche os deuses de oferendas, os machados golpeiam
musculosos cachaços dos bois, de cornos cingidos de fitas.
430 Diz-se que jamais dia algum amanheceu em maior festa
para os filhos de Erecteu do que aquele. Entre os nobres
e o povo fervilham banquetes, e sob inspiração do vinho
cantam estas canções: 'Por ti, ó excelso Teseu, Maratona
se encheu de admiração pelo sangue do touro de Creta,
435 e se em Crómion o camponês lavra sem receio do javali,
é dádiva tua e tua obra. Graças a ti, a terra do Epidauro

16 Cérbero.
17 Planta venenosa. Associava-se o nome grego acone ('pedra de amolar') ao termo equivalente
latino cos, e este, por sua vez, a cautes ('rocha').
Egeu e Teseu - Céfalo e Éaco L I V RO V I I 1 83

viu sucumbir o filho de Vulcano, armado de clava; [lSJ

viram as margens do Cefiso tombar o cruel Procrustes;


a morte de Cércion observou Elêusis, tão cara a Ceres.
440 Morreu aquele Sínis, que mau uso dava à enorme força,
ele que conseguia dobrar troncos e vergava até ao chão
os cimos dos pinheiros para espalhar corpos bem longe.
Segura se abre a estrada para Alcátoe, bastião dos Léleges,
quando dominaste Círon: a terra recusa acolher os ossos
445 dispersos do salteador, acolhê-los recusa o mar; atirados
longamente de um lado para o outro, dizem que o tempo
os endureceu em rochas, rochas que têm o nome de Círon.
Se quiséssemos contabilizar os títulos e os teus anos,
os feitos ultrapassariam os anos ! Por ti, ó grande herói,
450 fazemos votos públicos, à tua saúde bebemos tragos de Baco.'
O palácio ressoa pelo aplauso do povo e preces de apoiantes,
e por toda a cidade não há um só recanto onde haja tristeza.

EGEU, porém (a tal ponto não existe felicidade perfeita e algo


inquietante sempre surge no meio da alegria) , não se entregou
455 ao júbilo pelo regresso do filho, nem estava livre de angústias.
Minos prepara a guerra. Este, ainda que poderoso pelas tropas,
poderoso pela armada, é sobretudo fortíssimo pela ira de pai:
busca vingar a morte do seu Andrógeo com justiceiras armas.
Antes, porém, procura aliciar forças aliadas para a guerra,
460 e corre os mares em veloz frota, pela qual o diziam superior.
Assim, une à sua causa Ânafe e o reino de Astipaleia:
com promessas, Ânafe, Astipaleia, com ameaças de guerra;
depois, a plana Míconos, e Cimolos, de argilosos campos,
e Siros, coberta de tomilho em flor, e a rasa Serifos,
465 a marmórea Paros, e Sífnos, que a ímpia Ame atraiçoou
e, aceitando o ouro que, na sua ganância, reclamara,
se transformou no pássaro que ainda hoje adora o ouro,
a gralha, de negras patas, recoberta de penas negras.
Também Olíaros e Dídime e Tenos e Andros

18 Perifetes.
1 84 L I V R O V I I C éfalo e Éaco

410 e Gíaros e Peparetos, fértil em oliveiras luzidias,


ajudaram as naus de Cnosso. Dali, Minos ruma à Enópia,
no lado esquerdo, o reino dos descendentes de Éaco.
(Os antigos chamavam-lhe Enópia, mas o próprio Éaco
designou-a como Egina, que era o nome de sua mãe. )

415 A multidão acorre em rebuliço, sôfrega por conhecer


um homem tão famoso; ao seu encontro vêm T élamon,
Peleu, mais novo que Télamon, e Foco, o terceiro em idade.
O próprio Éaco também veio cá fora, solene e vagaroso
pelo peso dos anos, e pergunta-lhe a razão da sua vinda.
480 Lembrado do seu sofrimento de pai, o chefe de cem povos
solta um suspiro e tais palavras diz: 'Peço-te que venhas
em auxílio das armas que empunhei por meu filho,
e participes em justa milícia. É consolo para um túmulo
o que te peço.' Respondeu o neto de Asopo: 'É inútil pedires
485 o que a minha cidade não pode fazer. De facto, não há terra
mais unida à de Cécrops do que esta. Tal é a nossa aliança. '
Ele parte pesaroso. 'Essa tua aliança custar-te-á caro,' disse.
E julga que é de maior proveito ameaçar com a guerra
do que fazê-la, e consumir prematuramente as suas forças.

490 Ainda a armada de Licto se podia avistar das muralhas


da Enópia, eis que chega uma nave da Ática, velozmente,
de velas desfraldadas, e entra no porto aliado. Ela trazia
Céfalo, juntamente com uma incumbência da sua cidade.
Os filhos de Éaco, embora não o vissem há muito tempo, [! 9]
495 reconheceram, de imediato, Céfalo, apertaram as mãos,
e conduziram-no a casa do pai. O herói era admirável.
Conservava ainda então traços da sua antiga beleza,
e caminhava segurando um ramo da oliveira da sua terra.
Sendo ele o mais velho, traz à sua direita e à sua esquerda
500 dois mais jovens, Clito e Butes, os filhos de Falante.

Depois de trocarem os cumprimentos do início do encontro,


Céfalo comunica a mensagem que do neto de Cécrops trazia:

19 Os filhos são Pdeu, Télamon e Foco.


Céfalo e Éaco - Os Mirmidões L I V R O V I I 1 85

pede ajuda e lembra o tratado e as obrigações de seus pais.


Acrescenta que em causa estava o domínio sobre toda a Acaia.
505 Mal a sua eloquência tinha ajudado o assunto a ele confiado,
Éaco, com a mão esquerda apoiada no punho do seu ceptro,
respondeu: 'Não estejais aí a pedir auxílio, Atenas. Tomai-o.
[Não hesiteis em dizer que as forças desta ilha são vossas,
e tudo o que o presente estado do meu reino possui.]
510 Meios não me faltam. Tropas tenho em abundância, a ocasião
(graças aos deuses ! ) é propícia e não me permite desculpas. '
'Assim seja ! ', replicou Céfalo, 'Possa a tua cidade prosperar
em cidadãos. De facto, há pouco, ao chegar, muito me alegrei
quando vi vir ao meu encontro juventude tão bela, toda
515 da mesma idade. Porém, não encontro entre eles muitos
dos que um dia vi, quando outrora esta cidade me acolheu.'
Éaco soltou um gemido e, com amargura na voz, assim diz:
'Uma sorte melhor seguiu-se a um doloroso início.
Quem me dera poder recordar aquela sem referir este !
520 Contarei agora por ordem. Para não vos demorar com longos
rodeios: jazem em ossos e cinzas os que recordas e buscas.
[E que grande parte do meu reino pereceu com eles ! ]

'ABATERA-SE sobre o povo uma epidemia terrível devido à ira


da iníqua Juno: ela execrava a terra que tem o nome da rival. 12°1

525 [Enquanto o mal pareceu humano e se nos escapava a causa


nociva de tamanha mortandade, lutámos com a medicina;
as mortes superaram os meios, que sucumbiram, vencidos.]
De início, o céu carregou as terras com espessas neblinas
e encerrou num manto de nuvens um calor entorpecedor.
530 Enquanto a lua uniu os cornos e encheu o disco quatro vezes,
e quatro vezes minguou, desfazendo o disco cheio,
os Austros abrasadores sopraram um vento quente letal.
Consta que a infecção alastrou até a nascentes e a lagoas,
e serpentes, aos milhares, deambulavam pelos campos
535 abandonados, contaminando os rios com os seus venenos.
Mas foi com a mortandade de cães e aves, e ovelhas e bois,

20 Egin a, mãe de Éaco, amada por Júpiter.


186 L I V R O V I I Os Mirmidões

e animais bravios, que se revelou a força da inopinada peste.


O desafortunado lavrador pasma-se por os possantes touros
sucumbirem em plena lavra e jazerem no meio dos sulcos.
540 Nos lanígeros rebanhos, que iam gemendo débeis balidos,
a pelagem cai por si só, e de chagas cobrem-se os corpos.
O cavalo, outrora fogoso e de grande renome nas pistas,
envergonha os galardões, e esquecido das antigas glórias
geme no estábulo, disposto a perecer numa morte sem luta.
545 Já o javali se olvida da sua raiva, já a cerva não confia
na veloz corrida, nem os ursos atacam as pujantes manadas.
A letargia apossa-se de todos. Bosques, campos e estradas
juncam-se de cadáveres repugnantes, um fedor polui os ares.
E algo espantoso: nem lhes tocavam cães ou vorazes abutres,
550 nem os lobos cinzentos; os corpos apodrecem e desfazem-se,
infectam com suas exalações, tudo contagiam até bem longe.

'Causando maior mortandade, aos pobres habitantes alastra


a epidemia, e ela grassa dentro dos muros da grande cidade.
Primeiro, os intestinos inflamam-se: sintoma das chamas
555 ocultas no corpo são a vermelhidão e a respiração ofegante.
A língua fica rugosa e incha, a boca, seca pelo vento quente,
fica aberta, e, assim escancarada, inspira o ar pesado.
Não conseguem suportar o leito, suportar nenhuma roupa,
e estendem os peitos nus sobre a terra: o corpo não arrefece
560 com o chão, mas a terra é que ferve com o contacto do corpo.
Não há quem a domine: a feroz peste até sobre os médicos
estoira, e a própria ciência é nociva aos que a praticam.
Quanto mais próximo alguém está de um doente, e mais
devotamente cuida dele, mais depressa a morte o atinge.
565 Quando a esperança de cura os deixa, vêem o fim da doença
só na morte, cedem aos desejos e nem cuidam do que é útil
- útil, na verdade, nada é! Por todo o lado, olvidando
a decência, agarram-se às fontes e rios e poços enormes.
[Nem a beber matam a sede, antes de a vida se extinguir.]
510 Muitos deles, demasiado pesados, não logram mais erguer-se
e morrem no meio da água; mas até há quem esta água beba!
Alguns desgraçados têm tamanha aversão à odiosa cama
que saltam dela, ou, se não têm forças para estarem de pé,
Os Mirmidões L I V R O V I I 187

rebolam os corpos para o chão e cada um foge de sua casa:


575 pois a todos eles a própria morada se afigura mortífera.
[É que, ignorando-se a causa, culpa-se local tão pequeno.]
Verias moribundos a vaguearem pelas ruas, enquanto logram
manter-se de pé, outros prostrados por terra, chorando
e revirando os olhos, esgotados, num derradeiro movimento.
580 [Estendem os braços às estrelas do céu suspenso sobre eles,
soltando o último suspiro aqui e ali, onde a morte os apanha.]

'Qual era então o meu estado de espírito? Qual deveria ser,


senão odiar a vida e ansiar por partilhar a sorte dos meus?
Para onde quer que voltasse os olhos, aí havia uma multidão
585 por terra, tal como maçãs podres que caem quando os ramos
são sacudidos, ou as bolotas quando a azinheira é abanada.
Em frente vês um templo, altíssimo, com uma longa escadaria:
é Júpiter quem mora nele. Quem não terá ofertado inutilmente
incenso naqueles altares? Quanta vez não morreu um cônjuge
590 quando pronunciava preces de súplica pelo outro cônjuge
diante dos inexoráveis altares, ou um pai pelo filho,
e se via na sua mão um punhado de incenso por consumir!
Quantas vezes, trazidos aos templos, enquanto o sacerdote
entoava fórmulas e derramava vinho puro entre os chifres,
595 não tombaram os touros sem aguardarem pelo golpe !
Celebrava eu um sacrifício a Júpiter por mim, pela pátria
e os três filhos, quando a vítima soltou terríficos mugidos
e, subitamente, desfalece e tomba sem qualquer golpe meu:
e as facas espetadas nele mal ficam molhadas de sangue.
600 Até as vísceras, infectadas, perderam os sinais da verdade
e os avisos dos deuses: nas vísceras penetra a funesta doença.
Vi cadáveres atirados ao chão diante das portas do templo,
diante até dos altares, para a sua morte ser ainda mais odiosa.
Uns enforcam-se, fogem ao medo da morte por meio da morte
605 e convocam, de livre vontade, o destino que está a chegar.
Os corpos dos falecidos não são levados nos cortejos fúnebres
da tradição (nos portões da cidade tanto funeral não cabia ! ) :
ora carregam insepultos o chão, ora são lançados à s altas
piras funerárias, sem ofertas. E já por nada há respeito:
610 alguns lutam pelas piras, e são cremados em fogo alheio.
1 88 L I V R O V I I Os Mirmidões

Já não resta quem chore por eles, e as almas das criancinhas


e maridos, e de jovens e velhos, vagueiam sem as chorarem.
Já não há espaço para túmulos, nem chega lenha para os fogos.

'Siderado pelo turbilhão de uma desgraça tão tremenda,


615 "Oh ! Júpiter! " exclamei, " Se não é falso o que se afirma,
que te aninhaste no colo de Egina, a filha de Asopo,
e se não te envergonhas de ser meu pai, ó magno pai,
devolve o meu povo ou enterra-me também num túmulo."
Ele enviou um sinal: um relâmpago e um trovão de anuência.
620 "Reconheço. Que estes sinais da tua vontade sejam propícios
é o que peço, e tomo por penhor o presságio que me envias " .
Por acaso, havia ali perto um carvalho consagrado a Júpiter,
ramos largos, singularíssimo, nascido de semente de Dodona.
Nele vi formigas acartando grãos, formando longo carreiro,
625 carregando nas suas minúsculas bocas uma carga enorme,
e talhando o seu caminho na rugosa casca da árvore.
Espantado com o número delas, " Ó pai excelso, " disse eu,
"dá igual número de cidadãos e enche as muralhas vazias. "
O alto carvalho estremeceu e rumorejou sem que a brisa
630 movesse as ramagens. Fico aterrado. O corpo arrepia-se
de medo, os cabelos ficam em pé. Porém, beijo o chão
e o carvalho, não ousando dizer ter esperanças. Mas tinha,
no fundo, esperanças e acalentava tais desejos no coração.
Chega a noite, e o sono invade os corpos atormentados
635 pelas angústias. O. carvalho pareceu surgir diante dos olhos,
com igual número de ramos, e nos ramos sustentando igual
número de animais; balançava e movia-se de modo idêntico,
e espalhava pelo chão por baixo a coluna de carregadores,
que, de súbito, pareciam ir aumentando, cada vez maiores,
640 e erguer-se do solo e pôr-se de pé com o tronco direito,
e abandonar a magreza, a profusão de pés e a cor negra,
e revestir o seu corpo com a forma dos seres humanos.

'O sono partiu. Acordado, censuro o meu sonho e queixo-me


de os deuses nenhum auxílio trazerem. Mas no palácio havia
645 um enorme alvoroço. Parecia-me ouvir vozes humanas,
algo a que já não estava habituado. Suspeitava que era sonho
Os Mirmidões - Céfalo e Prócris L I V R O V I I 189

ainda, quando chega Télamon a correr e, abrindo as portas,


"Vai ver coisa maior do que esperavas e acreditavas" , diz ele.
"Vai até lá fora ! " Eu saio, e avisto, e reconheço um por um,
650 homens iguais aos que me parecia ter visto no meu sonho.
Avançam até mim e saúdam-me como rei. Então, cumpro
o meu voto a Júpiter, reparto entre a nova população
a cidade e os campos despojados dos antigos lavradores,
e chamo-lhes Mirmidões: com o nome não iludo a origem. r21 1

655 Vós vistes o seu aspecto físico. O carácter que antes tinham,
ainda agora o têm. É raça poupada, infatigável no trabalho,
gente tenaz no amealhar e que guarda o que amealharam.
De idêntica idade e coragem, acompanhar-te-ão na guerra
logo que o Euro, que aqui te trouxe sem sobressaltos'
660 (e fora o Euro quem o levara) 'tiver mudado para Austros. '

CoM ESTAS e outras conversas preencheram o longo dia;


a última parte da tarde consagraram-na a um banquete,
a noite ao repouso. Já o sol dourado fizera sair a claridade,
e ainda o Euro soprava, retendo as naus prontas para partir.
665 Os filhos de Falante reúnem-se a Céfalo, mais velho que eles,
e todos juntos, Céfalo e os filhos de Falante, dirigem-se
até junto do rei; o rei, porém, dormia ainda profundamente.
A entrada do palácio, são recebidos por Foco, filho de Éaco,
pois Télamon e o irmão recrutavam tropas para a guerra.
610 Foco conduz os da terra de Cécrops para o interior da casa,
para um aposento muito belo, onde todos se sentam.
Repara, então, no dardo que o neto de Éolo trazia na mão,
feito de uma madeira desconhecida, com ponta em ouro.
Depois de falarem um pouco, diz ele no meio da conversa:

675 'Sou um apaixonado pelos bosques e pela caça de feras.


Já há muito que me pergunto em que bosque foi cortada
a haste do dardo que tens. Decerto, se fosse freixo, seria
de cor fulva; se fosse de madeira de corniso, teria nós.
A madeira de que ele é feito desconheço, mas jamais

21 Myrmex em grego, de onde vem o termo Minnidões, significa formiga.


190 L I V R O V I I Céf.;_io e Pró eris

680 olhos meus viram dardo de arremesso mais belo que esse.'
Um dos irmãos das terras de Acte interrompe e diz:
'E o seu uso espantar-te-á ainda mais que o belo aspecto.
Atinge qualquer alvo a que apontes; o disparo não é a sorte
que o controla, e voa de retorno, ensanguentado, por si só. '
685 Então, o jovem filho de uma Nereide tudo indaga,
porquê e donde provém, quem foi o autor de tal presente.
687 [Ao que lhe pergunta responde, o resto só o seu pudor sabe.
687• Quanto o pudor permite, ele responde e conta outras coisas.
687b Ao que lhe pergunta ele responde, mas tem pudor de dizer
688 o preço que lhe custou; fica em silêncio, tocado pela dor.]
688• Por largo tempo, Céfalo fica em silêncio. Tocado pela dor
da perda da esposa, as lágrimas irrompem e assim contou:
690 'Este dardo, ó filho de deusa, faz-me chorar (quem poderia
crer em tal?) e fá-lo-á por muito tempo, se o destino fizer
que por muito tempo eu viva. Foi ele que me destruiu
e à querida esposa. Pudesse eu jamais ter tido tal prenda !

'CHAMAVA-SE Prócris (era irmã de Oritia, se acaso Oritia,


695 a que foi raptada, te chegou mais facilmente aos ouvidos) .
S e quisesses comparar a beleza e o carácter das duas,
era ela a mais digna de ser raptada. Uniu-ma seu p-ai Erecteu,
uniu-ma o Amor. Todos me chamavam feliz, e era-o mesmo.
Tal não aprouve aos deuses, senão talvez ainda agora o fosse.
100 Era o segundo mês depois da cerimónia do casamento.
Uma manhã, estendia eu redes para os veados cornígeros
quando, do cimo do cume do Himeto sempre em flor,
ao escorraçar as trevas, Aurora, a da cor dourada, me vê
e rapta à minha revelia. Que me permitam falar verdade,
105 a deusa me perdoe. Até será deslumbrante pela rósea face,
vigiará ela a fronteira do dia, vigiará a fronteira da noite,
nutrir-se-á de água de néctar: quem eu amava era Prócris !
Trazia sempre Prócris no coração, sempre Prócris nos lábios.
Falava dos rituais do leito, do prazer amoroso de há pouco,
110 das recentes bodas, dos pactos, os primeiros, da cama deixada.
A deusa deixou-se comover: "Põe cobro às lamúrias, ingrato !
Toma lá Prócris ! " , diz. "Mas se a minha mente prevê o futuro,
desejarás não a ter tido." Furiosa, enviou-me de volta a ela.
Céfalo e Prócris L I V R O V I I 191

'No regresso, vim a remoer no espírito as palavras da deusa,


e começo a temer que minha esposa não conservasse bem
os deveres conjugais. A sua beleza e idade compeliam-me
a acreditar no adultério, o seu carácter impedia-me de o crer.
Mas eu estivera ausente; e também aquela de quem eu vinha
era exemplo de infidelidade: nós, apaixonados, tememos tudo.
720 Para meu tormento, decido investigar e testar com prendas
a casta fidelidade dela. A Aurora patrocina este meu temor
e transforma a minha aparência (pareceu-me ter sentido isto).
Assim, irreconhecível, entro em Atenas, a cidade de Palas,
e dirijo-me a casa. Na mansão não havia a mais leve culpa,
725 mas sim sinais de castidade e angústia pelo rapto do senhor.
A custo e com mil ardis chego à presença da filha de Erecteu.

'Quando a vi, fiquei sem fala e quase renunciei ao plano


de testar a fidelidade. A custo me contive para não contar
a verdade, a custo me contive para não a beijar como devia.
130 Ela estava triste (mas jamais mulher alguma poderá ser
mais linda que ela na sua tristeza ! ) , sofrendo com saudades
do marido que lhe fora raptado. Tu, Foco, imagina a beleza
que ela tinha, quando a própria dor lhe assentava tão bem !
Para quê contar quantas vezes o seu carácter casto repeliu
735 as minhas tentativas, quantas vezes disse: "Eu reservo-me
para um só. Onde quer que esteja, guardo o prazer para ele? "
A que homem sensato um tal teste à fidelidade não seria
bastante? Não contente com isto, luto por me ferir,
até que, apalavrando uma colossal fortuna por uma noite
140 e indo aumentando as ofertas, forço-a, por fim, a hesitar.
Vencedor desleal, grito: "Sou eu, um falso adúltero ! Sou
o marido verdadeiro; apanhei-te, pérfida, à minha frente. "
Ela nada diz. Assim vencida d e vergonha, em silêncio,
foge daquela casa insidiosa e do traiçoeiro marido;
745 e, ressentida contra mim, odiando a raça dos homens toda,
errava pelas serras, atarefada com as ocupações de Diana.

'Quando fiquei só, uma chama mais violenta penetrou-me


nos ossos. Eu rogava perdão, reconhecia que tinha errado,
que até eu, perante tais presentes, se tais presentes me
1 92 L I V R O V I I Céfalo e Prócris - Lélaps

150 tivessem oferecido, teria sucumbido a semelhante falta.


Reconhecendo eu isto, sentindo a honra ferida já vingada,
volta para mim, e passamos doces anos em total harmonia.
Oferece-me, além disso, como se dar-se a si própria fosse
prenda pequena, um cão, que lhe oferecera a sua Cíntia.
m Ao dar-lhe, ela dissera: "Na corrida, ele a todos vencerá. "
Deu-me também o dardo que, como vês, tenho nas mãos.
Queres saber qual foi a sorte do primeiro presente?
Ouve: ficarás pasmado com caso tão insólito e espantoso.

'O FILHO de Laio resolvera aquele enigma jamais decifrado


160 pelo raciocínio dos antigos, e, caindo de cabeça, a obscura
profetisa jazia no chão, olvidada de seus dizeres enigmáticos. [221

[Decerto a benfazeja Témis não deixa nada disto impune.]


Logo outro flagelo se abate sobre Tebas, a cidade da Áonia;
muita gente do campo é tomada de terror pela fera, temendo
165 pela sua vida e a dos rebanhos. Nós, jovens das redondezas, [2'J

acorremos a montar as redes à volta dos vastos campos.


A fera, lesta, passava por cima das redes com um salto ágil,
pulando sobre o cimo dos fios das armadilhas instaladas.
Soltamos os cães das trelas. Eles perseguem-na, mas ela
110 foge e escarnece da matilha, tão rápida como um pássaro.
Todos os homens, em conjunto, pedem-me o meu Lélaps
(era o nome do cão oferecido) . Já há muito que se debatia
por soltar-se da trela que o retinha, e puxava com o pescoço.
E mal foi solto, já não éramos capazes de saber onde estava;
m na poeira morna do chão só restavam as pegadas das patas,
pois ele já desaparecera da nossa vista. Não mais veloz
é a lança, ou o projéctil lançado pela rotação da funda,
ou a leve flecha disparada pelo arco dos Gortínios.

'A meio, o cimo de uma colina domina os campos debaixo.


1so Trepo lá para cima e dali assisto a uma corrida insólita,
na qual a fera ora parece ir ser apanhada, ora escapar
no instante de ser abocanhada; ladina, não foge para longe

22 A Esfinge.
23 A raposa de Teumesso.
Lélaps - A morte de Prócris L I V R O V I I 1 93

em linha recta, mas, ludibriando o focinho do perseguidor,


volta atrás rodando, fazendo vã a embalagem do inimigo.
785 Este está em cima dela, corre já a par, parece ir já apanhá-la,
mas não apanha e dá dentadas em vazio, mordendo o ar.
Recorro então ao dardo. Enquanto o balanceio com a direita,
enquanto tento meter os dedos no propulsor de couro,
desvio o olhar. Quando de novo ergo os meus olhos para lá,
190 vislumbro (espantoso ! ) duas estátuas de mármore no meio
do campo: uma dirias a fugir, a outra a apanhar a primeira.
Decerto algum deus, se acaso algum deus lhes assistiu, quis
que nenhum deles fosse vencido na competição de corrida. '

NESTE ponto, calou-se. 'Mas o dardo, que mal é que ele fez? '
195 perguntou Foco; ele, então, contou o dano que o dardo fizera.

'A MINHA alegria, ó Foco, foi o princípio do meu sofrimento.


Aquela contarei primeiro. Oh ! como é bom recordar tempos
afortunados, ó filho de Éaco, quando, nos primeiros anos,
como é costume, eu era feliz com a esposa, ela com o marido !
800 Dominavam-nos um cuidado recíproco e o amor conjugal,
nem ela haveria de preferir ao meu amor o leito de Júpiter,
nem havia mulher que me seduzisse, nem que viesse Vénus
até a mim em pessoa: nos nossos peitos ardiam chamas iguais.
Quando o sol golpeava os cimos com os seus primeiros raios,
805 tinha por hábito ir ao bosque à caça, como qualquer jovem.
Não costumava levar ajudantes comigo, nem cavalos,
nem cães de aguçado faro, nem as nodosas redes.
Com o dardo, estava seguro. Mas quando a minha mão
se saciava da matança da caça, eu retornava à frescura
810 de uma sombra e à brisa que saía dos frescos vales.
Eu buscava, então, no meio do calor, uma brisa suave,
e aguardava a brisa, descanso para as minhas fadigas.
"Vem, brisa ! " , costumava cantar (recordo-me bem ! ) ,
"Sê gentil comigo, vem até ao meu colo, minha querida,
815 e alivia, como sempre fazes, o calor que me abrasa.
Talvez eu tenha somado (assim os fados me arrastavam)
muitas palavras ternurentas: "Tu és o meu maior prazer" ,
costumava eu dizer, " tu reconfortas-me e acaricias-me,
1 94 L I V R O V I I A morte de Prócris

tu fazes-me amar os bosques, amar os locais solitários,


820 e os meus lábios não se cansam de captar o teu sopro. "
Estas palavras ambíguas não sei quem foi que as ouviu
e se enganou: crê que o nome "brisa" , tanta vez invocado,
é de uma ninfa e julga-me por esta ninfa apaixonado.
De imediato, o irreflectido delator vai até junto de Prócris
325 levando uma falsa acusação, e sussurra-lhe o que ouvira.
A paixão é sempre crédula: a dor súbita fá-la cair por terra,
inanimada (assim me contaram). Muito depois, vem a si.
Põe-se a dizer que era uma desgraçada, de destino iníquo,
queixa-se da minha infidelidade. E transtornada pela culpa
830 imaginária, receia o que nada é, receia um nome sem corpo.
[E sofre, a infeliz, como se houvesse uma rival verdadeira.]
Muitas vezes porém hesita e espera, a pobre, estar enganada,
nega credibilidade ao delator, e que, a menos que ela visse
com os seus olhos, não condenaria o marido por tal delito.

835 'Ao outro dia, a claridade da Aurora escorraçara já a noite;


saio de casa e vou até à floresta. Vitorioso na caça, no meio
do matagal, digo: "Vem, brisa, traz-me alívio às canseiras ! "
Subitamente, enquanto eu falava, pareceu-me ouvir não sei
que gemidos. Apesar disso, "Vem, minha querida ! " chamei.
840 Nas folhas mortas do chão soou de novo um leve restolhar.
Pensei que era um animal e atirei o dardo a voar pelos ares.
Era Prócris ! Tendo recebido um ferimento a meio do peito,
"Ai de mim ! " , gritou. Mal reconheci a voz da minha fiel
esposa, para a voz me precipitei a correr, de cabeça perdida.
845 Encontro-a agonizante, as vestes em desalinho manchadas
de sangue, tentando arrancar da ferida, ai, pobre de mim ! ,
a sua prenda. Com ternura, ergo nos braços o seu corpo,
para mim mais caro que o meu, rasgo um pedaço do vestido
do peito, ligo a medonha ferida e intento estancar o sangue,
850 suplicando que não me deixe, amaldiçoado pela sua morte.
As forças começam a faltar-lhe. E, já a morrer, esforça-se
por dizer estas poucas palavras: "Pelos vínculos do nosso leito,
pelos deuses do céu e os que serão os meus, por tudo o que fiz
por ti e pelo amor, causa da minha morte, que ainda te tenho
855 mesmo ao morrer, imploro e suplico-te que não permitas
A morte de Prócris L I V R O V I I 1 95

que essa tal Brisa entre como tua esposa no nosso quarto. "
Assim disse. S ó então, por fim, percebi o equívoco de nomes
e expliquei-lho. Mas que proveito haveria em explicar-lhe?
Desliza-me do colo, as poucas forças esvaem-se com o sangue.
860 E enquanto ainda consegue olhar para algo, olha para mim,
e sobre mim, nos meus lábios, sopra a sua desafortunada alma. '241
Mas parece morrer serena, com uma expressão mais feliz. '

ISTO aos presentes e m lágrimas contava o herói chorando,


quando eis que chega Éaco, junto com os seus dois filhos
865 e um novo exército, que Céfalo recebe com armas aliadas.

24 Verso de difícil tradução pela riqueza de sentidos. Anima (o termo latino que designa o que
Prócris exala) tanto significa 'sopro' (e, em contexto de morte, o último suspiro), como 'alma' e
'vida'. Assim Prócris, qual Brisa, exala o último suspiro (ou seja, a alma, a vida) no rosto e na boca de
Céfalo. Ao mesmo tempo, a frase suscitava ao leitor a tradição funerária romana de captar o último
sopro do moribundo; neste caso, Céfalo capta esse sopro porque está a beijá-la.
LIVRO VIII

Já Lúcifer afugentava as horas da noite e desencobria


o radioso dia, quando o Euro amaina e as húmidas nuvens
se erguem. Os calmos Austros oferecem o regresso a casa
a Céfalo e aos Eácidas; e levados por eles sem contratempos,
chegam ao porto a que rumavam mais cedo do que esperado.

ENTRETANTO, Minos vai saqueando as costas dos Léleges


e pondo à prova o seu poder militar na cidade de Alcátoo.
Nela reinava Niso, que tinha presa no cimo da cabeça,
entre honradas cãs, uma resplandecente madeixa de cabelo,
10 de cor purpúrea, garantia do seu enorme poder régio.
Medravam de novo pela sexta vez os cornos da lua crescente,
e ainda a sorte da guerra era incerta. E por muito tempo
a Vitória, de asas hesitantes, voa entre um lado e o outro.

Havia uma torre real, arrimada às melodiosas muralhas.


15 Nelas se diz o filho de Latona ter pousado sua lira de ouro,
e que o som da lira ali ficou para sempre naquelas pedras.
Para ali, em tempo de paz, costumava a filha de Niso
subir amiúde e fazer as pedras soar com pequenito seixo;
agora, em tempo de guerra, dali tinha também por hábito
20 observar amiúde os combates do inexorável Marte.
Já pelo longo tempo de guerra conhecia os nomes dos chefes,
e as armas e cavalos, e as fardas e as aljavas de Cidoneia.
Conhecia, acima de todos, a figura do chefe, filho de Europa,
mais ainda do que deveria ter conhecido. Na sua opinião,
25 se ele ocultara a cabeça no capacete de penacho de plumas,
Minas era formoso de capacete; se empunhara o escudo
refulgente de bronze, era belo empunhando o escudo.
Lançasse ele flexíveis dardos com o braço repuxado atrás,
que logo a jovem lhe louvava a técnica aliada à força.
Cila e Minos L I V R O V I I I 1 97

30 Encurvasse ele o longo arco de flecha posta, logo jurava ela


que era assim que se perfilava Febo ao apontar as setas.
Mas quando tirava o capacete de bronze e descobria o rosto,
e, coberto de púrpura, montava o dorso do cavalo branco,
notável pelo xairel bordado, guiando a sua boca espumante,
35 a custo, a filha de Niso era senhora de si, a custo mantinha
a mente sã! Afortunado chamava ao dardo que ele tocasse,
afortunadas às rédeas que ele nas mãos segurasse.
O impulso dela era, tão-só lhe fosse permitido, avançar
com o seu passo virginal pelo meio da hoste inimiga;
40 o seu impulso era atirar-se do cimo das torres nas tendas
dos Cnóssios, ou abrir ao inimigo os brônzeos portões,
ou tudo o que fosse o desejo de Minos.
Um dia, estava ela sentada,
contemplando as alvas tendas do rei do Dicte, quando diz:
'Devo alegrar-me ou sofrer com tão lamentável guerra?
45 Nem sei bem. Sofro porque Minos é meu inimigo e amo-o;
mas se a guerra não ocorresse, jamais o teria conhecido.
Se, todavia, me aceitasse refém, podia pôr cobro à guerra;
tivesse-me por companheira, ter-me-ia por penhor da paz.
Se aquela que te gerou, ó mais belo rapaz do mundo, era
50 tal como tu és, com razão o deus se abrasou de amor por ela.
Ó três vezes afortunada, se eu pudesse deslizar com asas
pelos ares e pousar no acampamento do rei de Cnosso !
Revelando quem sou e a minha paixão, perguntaria que dote
queria para o comprar. Só não pedisse a cidadela de meu pai !
55 Pois antes pereçam as esperanças de casar, do que eu as
obtenha pela traição ! (Embora já muitas vezes a clemência
do vencedor benévolo fez a derrota proveitosa aos vencidos) .
Decerto, fa z uma guerra justa, devido ao assassínio d o filho,
e é forte pela causa e pelos braços que essa causa defendem.
60 Ele vencerá, eu sei. E se tal é o desfecho que espera a cidade,
porque há-de ser o seu poderio a abrir-lhe estas muralhas
e não a minha paixão? Melhor será se vencer sem matança,
sem mais demora, sem dispêndio do seu próprio sangue.
Ao menos, não recearia, Minos, que algum imprudente fira
65 o teu peito - quem haverá, aliás, tão cruel que, sabendo
quem és, ouse dirigir na tua direcção a implacável lança?
198 L I V R O V I I I Cila e Minos

Aprovo o meu plano, está tomada a decisão: entregar-me


e à minha terra natal como dote e pôr um termo à guerra.
Porém, querer não basta. Os guardas vigiam as entradas,
10 as chaves dos portões tem-nas meu pai. Apenas dele
tenho medo, ai de mim ! , só ele retarda os meus desejos.
Os deuses fizessem eu não ter pai ! Mas, é claro, cada um
é seu próprio deus, e a Fortuna repele as preces cobardes.
Outra mulher, abrasada por paixão tamanha, já há muito
15 teria destruído com alegria qualquer entrave ao seu amor.
E porque outra será mais valente que eu? Eu ousaria andar
entre fogos e gládios. E, neste caso, nem são precisos fogos
ou gládios quaisquer: preciso sim da madeixa de meu pai.
Esta é para mim mais preciosa que ouro: ela, de púrpura,
80 há-de fazer-me feliz e far-me-á apoderar dos meus anseios. '

N o meio de tais palavras, interrompeu-a a noite, a ama


máxima dos cuidados; com as trevas, a audácia recrudesceu.
Chegara o início do repouso, quando o sono invade os peitos
cansados das preocupações do dia. Em silêncio, a filha entra
85 nos aposentos do pai. E (oh ! crime ! ) despoja o pai da fatídica
madeixa de cabelo, e do abominável saque se apodera
[e, levando consigo o espólio do crime, sai pelos portões] .
Pelo meio dos inimigos (tal a confiança no mérito do feito) ,
avança até junto d o rei. A ele, horrorizado, assim disse ela:
90 'Foi o amor que me levou a tal acto. Eu, Cila, filha do rei Niso,
entrego-te os Penates da minha casa e os da minha pátria.
Prémio algum peço, a não seres tu: toma o penhor da paixão,
a madeixa de púrpura, e acredita que o que agora entrego
não são cabelos, mas a cabeça de meu pai ! ' E na mão exibe
95 a criminosa oferta. Ao exibi-la, Minos dá um salto para trás.
Transtornado pela visão de algo sem precedente, exclamou:
'Ó infâmia do nosso tempo! Que os deuses te escorracem
do nosso mundo ! Que a terra e o mar te sejam negados !
Decerto, não tolerarei que tamanho monstro ponha os pés
roo em Creta, o berço de Júpiter, que é o meu mundo.'
Disse. E impondo condições com justíssima autoridade
aos inimigos capturados, ordenou que soltassem as amarras
às naus e os remadores impulsionassem as brônzeas popas.
Cila e Minos L I V R O V I I I 199

Mal Cila viu as naus lançadas à água a flutuar nas ondas


105 sem que o chefe lhe concedesse recompensa pelo crime,
esgotadas todas as preces, passa a violento acesso de cólera.
Estendendo as mãos, furibunda, os cabelos desgrenhados,
'Para onde foges,' gritou, 'deixando a autora do teu sucesso,
tu, que antepus à minha pátria, tu, que preferi a meu pai?
1 10 Para onde foges, desapiedado, cuja vitória é o meu crime,
e meu mérito também? Nem a prenda que te ofereci, nem
o meu amor te comovem, nem o facto de só em ti residir
toda a minha esperança? Aonde voltarei agora, abandonada?
À minha pátria? Esta jaz, vencida. Mas imagina, estava de pé:
1 15 por tê-la traído, ela está-me vedada. Para junto de meu pai?
Este, eu entreguei-to. Os cidadãos odeiam-me e com razão.
Os povos vizinhos temem o meu exemplo: fechei para mim
o mundo inteiro, para que só Creta para mim se abrisse.
Se também me barras esta, ingrato, e me deixas abandonada,
120 não é Europa que é a tua mãe, mas sim a inóspita Sirte,
e os tigres da Arménia, e Caríbdis, flagelada pelo Austro.
Nem és filho de Júpiter, nem por ele a tua mãe foi seduzida
sob a aparência de touro. É falsa a lenda sobre a tua origem:
[feroz e jamais tomado de paixão por bezerra alguma,]
125 foi um touro verdadeiro quem te gerou ! Castiga-me,
Niso, meu pai ! Rejubilai com a minha desgraça, ó muros
que há pouco traí ! Mereço, confesso, e sou indigna de viver.
Mas que me mate um deles, a quem na minha impiedade
fiz mal. Por que razão tu, que graças ao meu crime venceste,
no pretendes punir o crime? O delito foi contra a pátria e o pai:
que seja um serviço para ti. É digna de te ter por esposo,
de facto, a adúltera que iludiu o feroz touro com madeira
e gerou no útero um feto aberrante. Acaso as minhas frases
chegam aos teus ouvidos? Ou tais palavras levam-nas vãs
135 os ventos, ao mesmo tempo que os teus navios, ó ingrato?
[Não, já não é de espantar que Pasífae tenha preferido
um touro a ti: é que tu possuías maior ferocidade ! ]
Ai de mim ! Ele ordena que se apressem, as ondas ressoam,
rasgadas pelos remos; a minha terra fica para trás, comigo.
140 Mas de nada te servirá, em vão olvidado dos meus serviços !
Seguir-te-ei à tua revelia e, abraçando-me à recurva popa,
200 L I V R O V I II Cila e Minas - O Minotauro; Ariadne

serei arrastada pelo mar imenso ! ' Mal dissera isto, salta
para as ondas. A paixão dando forças, alcança os barcos,
e, odiosa companheira, prende-se à nau do rei de Cnosso.
145 Quando o pai dela a viu (pois ele já pairava nos ares,
transformado há pouco em águia marinha de fulvas asas),
avançou para a despedaçar, suspensa, com o bico adunco.
Apavorada, ela abandona a popa; e a brisa leve pareceu
sustê-la na queda, para que não tocasse a superfície do mar.
150 t Tinha penas ! t Transformada em ave, passa a chamar-se
Círis, e o nome provém de ter cortado a madeixa de cabelo. [IJ

MAL desembarca e toca na terra dos Curetes, Minos cumpriu


os votos prometidos, sacrificando um cento de touros a Júpiter,
e adornou o seu palácio pendurando os despojos como troféus.
155 Agora, o opróbrio da família crescera: estava à vista de todos,
pela estranheza do monstro biforme, o imundo adultério da mãe. [21

Minos decide expulsar esta vergonha para o seu matrimónio


e fechá-la numa casa complexíssima, de aposentos nas trevas.

Celebérrimo pelo seu talento na arte da arquitectura, Dédalo


160 encarrega-se da obra, baralha os sinais e faz o olhar enganar-se
em retorcidas curvas e contracurvas de corredores sem conta.
Tal como na Frígia o Meandro nas limpidas águas se diverte
fluindo e refluindo num deslizar que confunde, e, correndo
ao encontro de si próprio, contempla a água que há-de vir,
165 e, voltando-se ora para a nascente, ora para o mar aberto,
empurra a sua corrente sem rumo certo, assim enche Dédalo
os inumeráveis corredores de equívocos. A custo ele próprio
logrou voltar à entrada: de tal forma enganador era o edifício.

Quando aqui aprisionou a dúplice figura de touro e jovem,


170 por duas vezes o alimentou com sangue de Acte. A terceira
das levas (eram sorteadas cada nove anos) venceu o monstro. [>J

E quando, graças ao auxílio de uma jovem, a difícil porta,

1 O verbo grego keirein significa 'cortar'.


2 O monstro referido é o Minotauro, a mãe é Pasífae.
' Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas; Acte é antigo nome de Ática.
Ariadne - Dédalo e Ícaro L I V R O V l II 201

jamais por alguém trilhada, foi achada recolhendo um fio,


logo o filho de Egeu, raptando a filha de Minos, se fez à vela [<l

m rumo a Dia. E nesta praia abandonou, cruel, a companheira.

À jovem abandonada, que se lastimava sem cessar, Líber


trouxe carinho e auxilio. E para ela se tornar ilustre
por meio de um astro eterno, toma-lhe da cabeça a coroa
e atirou-a para o céu. Esta voa lá no alto pelas ténues aragens,
180 e, ao voar, as jóias transformaram-se em fogos cintilantes.
E conservando a forma de uma coroa, fixam-se ao centro,
entre Nixo ajoelhado e aquele que agarra a Serpente. l' l

ENTRETANTO, Dédalo odiava Creta, odiava o longo exílio,


morto de saudades da terra natal. O mar aprisionava-o.
1s5 'Embora ele barre o meu caminho com as terras e o mar',
disse, 'ao menos, o céu está sempre aberto. Iremos por aí!
Minos pode ser dono de tudo, mas não é dono dos ares. '
Assim dizendo, aplica o seu talento a artes desconhecidas
e revoluciona a natureza. De facto, dispõe penas em filas,
1 90 [começando pelas mais curtas, a curta seguindo a longa]
a ponto de se julgar crescerem num declive: assim cresce
gradualmente a flauta campestre com suas canas desiguais.
Depois, prende-as a meio com um fio e a base com cera,
e, tendo-as assim prendido, dobra-as em suave curvatura
195 para imitar as aves verídicas. Com ele estava o seu menino,
Ícaro. Sem saber que mexia em algo para si tão perigoso,
ora, de cara risonha, tentava apanhar as penas que a brisa
vagabunda movia, ora amolecia com o polegar a loira cera;
e com esta brincadeira atrapalhava o espantoso trabalho
200 do pai. Quando deu o toque final ao que tinha planeado,
o artífice aventurou-se a equilibrar o próprio corpo
no par de asas, e ficou suspenso no ar, assim agitado.

Equipando também o filho, disse: 'Voa a meia altura, Ícaro,


recomendo-te, para que, se fores demasiado baixo, o mar

4 Ariadne.
5 É a constelação Coroa Boreal, que o autor coloca entre as constelações Engónasis (Hércules)
e Ofiúco, mas que na verdade fica entre Hércules e Boates (Boieiro).
202 L I V R O V I I I Dédalo e Í caro - Perdiz

205 não pese nas penas, e, demasiado alto, não as queime o fogo.
Voa entre um e outro; não te ponhas, advirto, a contemplar
Bootes ou a Hélice ou a espada desembainhada de Oríon.
Vem atrás de mim: eu guiar-te-ei.' Ao mesmo tempo que dá
tais instruções de voo, ajeita-lhe as inéditas asas nos ombros.
210 No meio do labor e advertências, molham-se de lágrimas
as envelhecidas faces, tremem as mãos de pai. Beija o filho,
beijos que jamais repetiria; e, elevando-se graças às asas,
levanta voo à frente. Tal como a ave ao guiar as frágeis crias
para fora do alto ninho pelo ar, ele receia pelo companheiro;
215 exorta-o a que o siga, e ensina-lhe as ruinosas artes
[e, batendo as asas, vai olhando para trás para as do filho] .
Viu-os com espanto alguém que pescava com a trémula cana,
ou algum pastor arrimado ao cajado ou lavrador à rabiça
do arado, julgando que eram deuses aqueles que tinham
220 o poder de viajar pelos céus.
E já à sua esquerda ficava
a Samos de Juno (para trás haviam deixado Delos e Paros) ,
e , à sua direita, Lebinto, tal como Calimne, rica e m mel,
quando o rapaz começa a achar gozo no audacioso voo
e se afasta do guia. Arrastado pelo seu fascinio pelo céu,
225 rumou para as alturas. Ora, a vizinhança do sol voraz
amolece as odoríferas ceras que colavam as penas:
a cera derrete-se. Bem lá agita o rapaz os braços nus,
mas, sem asas para bater, não logra apanhar ar algum.
E a boca que gritava o nome do pai é acolhida pelas águas
230 azul-esverdeadas, que dele obtiveram o seu nome.
O pobre pai (que já nem pai era) , ' Í caro ! ' , chamava,
' Ícaro ! ' , berrava, 'Onde estás? Onde hei-de procurar-te?
Ícaro ! ' , gritava. Então avistou penas a boiar nas ondas.
E amaldiçoando as suas artes, sepultou o corpo do filho
235 num túmulo. E esta terra tomou o nome do sepultado. ['J

Ao DEPOR no túmulo Dédalo o corpo do malogrado filho,


observava-o de um lamacento rego uma perdiz pipilante.

6 A ilha Ícaro, hoje lkaria.


Perdiz - Meleagro e o javali de Cálidon L I V R O V I I I 203

Aplaudia com as asas e testemunhava a alegria cantando.


Era então ave sem igual, de um género nunca antes visto.
240 Tornara-se há pouco ave, acusação perene para ti, Dédalo !
Pois, desconhecendo o destino, a irmã deste confiara-lhe,
um dia, o filho para o instruir. Doze anos completara já
o rapaz, que era de uma inteligência imensa para aprender.
Foi ele que, reparando na espinha central do peixe, a tomou
245 como modelo e talhou ao longo de delgada lâmina de ferro
uma fileira de dentes, inventando assim a serra e o seu uso.
Foi também ele o primeiro a prender duas hastes de ferro
por um só eixo, de modo a que, mantendo uma distância
fixa, uma ficasse imóvel, a outra descrevesse um círculo.
250 Dédalo enche-se de inveja. E da sacra cidadela de Minerva
atira-o de cabeça, com a mentira de que aquele tinha caído.
Mas Palas, que protege os espíritos talentosos, apanhou-o
e transformou-o em ave, cobrindo-o de penas em pleno ar.
O vigor do veloz raciocínio de outrora passou para as asas
255 e as patas; e ficou com o mesmo o nome que antes tinha.
Esta ave, porém, não se eleva em voo muito acima do solo,
nem faz o ninho nos ramos ou em copas de altas árvores:
ela esvoaça antes rente ao chão e põe os ovos nas sebes,
pois, lembrada da antiga queda, tem receio das alturas.

260 E JÁ A REGIÃO do Etna acolhera o exausto Dédalo,


e, tomando as armas para defender este, suplicante,
Cócalo granjeara fama de rei gentil. Por mérito de Teseu,
já Atenas tinha deixado de pagar o deplorável tributo.
Engrinaldam os templos, invocam a belatriz Minerva
265 e Júpiter e outros deuses, a quem honram, derramando
o sangue prometido, e com oferendas e caixas de incenso.
A Fama errante espalhara já pelas cidades da Argólide
o nome de Teseu, e os povos que habitavam na rica Acaia,
em momentos de grande perigo, imploravam o seu auxílio.
210 Também Cálidon, embora tivesse Meleagro, implorou
com angustiadas preces a sua ajuda. A razão da súplica
era certo porco, servo e vingador da enfurecida Diana.

Com efeito, conta-se que Eneu, devido aos bons resultados


de um ano rico, consagrara as primícias das searas a Ceres,
204 LIVRO VIII Méleagro e o javali de Cálidon

215 a Lieu o seu vinho, à loira Minerva o azeite de Palas.


Começando pelos dos campos, a cobiçada homenagem
chegou a todos os deuses. Só os altares da filha de Latona,
diz-se, foram esquecidos e lá permaneceram sem incenso.
A cólera também toma os deuses. 'Isto não deixarei impune !
280 Dirão que fiquei sem ser honrada, mas não sem vingança.'
Assim disse; e para se vingar da afronta, enviou um javali
pelos campos de Eneu, grande como não são os touros
do herboso Epiro, maior que os das campinas sicilianas.
Os olhos faíscam de sangue e fogo, o cachaço, eriçado e rijo,
285 [as cerdas são espetadas, semelhantes a rígidas lanças,
as cerdas estão de pé, qual paliçada, quais altas lanças] .
Com um grunhido rouco, uma baba refervente escorre
pelos largos ombros; as presas são dentes de elefante da Índia;
do focinho salta um raio, o bafo incendeia as folhagens.
290 Primeiro, ele espezinha as searas que cresciam na verdura,
depois, ceifa as esperanças maduras do lavrador que chorará,
cortando fora a própria Ceres nas espigas. Em vão as eiras,
em vão os celeiros aguardam as prometidas colheitas.
Cachos prenhes com os longos sarmentos juncam o chão,
295 e a azeitona, com as ramas, da sempre frondosa oliveira.
Até contra o gado se assanha, e não houve pastor ou mastim
que lograsse defendê-lo, nem toiros ferozes as suas manadas.

O povo foge, julgando que só dentro dos muros da cidade


podia estar seguro. Até que um dia Meleagro e um grupo
Joo escolhido de jovens se reuniram por ambição de glória:
os gémeos filhos de Tíndaro (um deles, admirável pugilista,
o outro, cavaleiro notável) , J asão, o fazedor da primeira nau, 171

Teseu juntamente com Pirítoo, os dois numa harmonia feliz,


os dois filhos de T éstio e os rebentos de Afareu, Linceu 1•1

}05 e o veloz Idas, Ceneu, que já nesse tempo não era mulher,
o feroz Leucipo, Acasto, famoso a lançar os dardos,
Hipótoo e Driante e Fénix, nascido de seu pai Amintor,

7 Castor e Pólux.
8 Os filhos de Téstio são Toxeu e Plexipo; os de Afareu são Linceu e Idas.
Meleagro e o javali de Cálidon L I V R O V l I I 205

os gémeos filhos de Actor, e Fileu, enviado da Élide. "1

Nem ali faltava Télamon e o pai do grande Aquiles, ' 101


310 juntamente com o filho de Feres e Iolau dos Biantes, '1 11
o enérgico Eurícion e Equíon, invencível na corrida,
Lélex de Nárico, Panopeu e Hileu e o feroz Hípaso,
Nestor, nesse tempo ainda nos anos de juventude,
e aqueles que Hipocoonte enviou da antiga Amiclas,
315 o sogro de Penélope com Anceu de Parrásia, o sagaz ' 1 21
filho de Âmpix e o de Ecleu, ainda a salvo da esposa.
Enfim, a jovem de Tégea, o orgulho do bosque do Liceu. '"1
Uma fíbula polida trincava-lhe o cimo da veste,
o seu cabelo caía simples, apanhado num único nó.
320 Suspensa do ombro esquerdo, tilintava a aljava de marfim
com as flechas, e a sua mão esquerda empunhava um arco.
Tal o seu trajar. O rosto, bem poderias dizer que ele era
feminino num rapaz, ou masculino numa donzela.
Assim que a viu, logo o herói de Cálidon a desejou,
325 embora o deus se opusesse. E sorvendo as chamas ocultas,
exclamou: 'Ó ditoso homem, caso ela ache algum digno
de a desposar ! ' A ocasião e a timidez não lhe permitem
dizer mais: urgia empresa maior, a de um grande combate.

Uma mata cerrada, de troncos que geração alguma cortara,


330 começava na planura e via os campos que desciam a encosta.
Ao chegarem aqui os homens, uns estendem as redes,
outros tiram as trelas aos cães, outros seguem as pegadas
fundas das patas, na ânsia de encontrar o seu próprio perigo.
Havia ali um vale cavo, onde ribeiras de água das chuvas
335 costumavam lançar-se. O fundo da depressão era coberto
por flexíveis salgueiros, leves limos, juncos dos pântanos,
vimeiros, e pequenas canas sob outras canas mais altas.
Daqui foi o javali desalojado. Lança-se impetuoso no meio
dos inimigos, tal como das nuvens em colisão saltam os raios.

9 Os filhos de Actor são Êurito e Ctéato.


1º Peleu é o pai de Aquiles.
1 1 O filho de Feres é Admeto.
1 2 O sogro de Penélope é Laertes, pai de Ulisses.
13 Atalanta.
206 L I V R O V I I I Mdeagro e o javali de Cálidon

340 Na investida, arrasa o arvoredo, e o bosque, estraçalhado,


solta um fragor. Os jovens lançam gritos e, com mão firme,
agarram as lanças de largas pontas de ferro cintilantes.
Ele ataca e põe em debandada os cães que bloqueiam o passo
à sua fúria, e, com golpes de viés, dispersa-os, a ladrarem.

345 Logo de início, em vão o braço de Equíon disparou a lança:


esta acabou por arranhar ao de leve o tronco de um bordo.
A seguinte deu a ideia que se cravaria no almejado dorso,
não tivesse ele empregado força excessiva no lançamento:
foi demasiado longe. O autor do disparo foi J asão de Págasas.
350 'Febo', diz o filho de Âmpix, 'se eu sempre te honrei e honro,
concede-me atingir com um dardo certeiro o meu alvo. '
Até onde pode, o deus acedeu à súplica. O javali é atingido
por ele, mas não fica ferido: Diana, em pleno voo, retirara
a lâmina ao dardo, e só chega até ele uma haste sem ponta.
355 A sanha da fera recrudesce e arde mais violenta que o raio:
os olhos soltam chispas, chamas do peito resfolega.
Tal como a rocha disparada pela corda retesada da catapulta
voa na direcção de muralhas ou de torres repletas de soldados,
assim o mortífero porco cai sobre os jovens em ataque certeiro,
360 e derruba Hipalmo e Pélagon, defensores do flanco direito.
Prostrados por terra, os companheiros retiraram-nos dali.
Contudo, Enésimo, o filho de Hipocoonte, não escapou
a golpe letal. Aprestava-se a fugir, transido de medo,
quando o joelho lhe foi rasgado e os tendões cederam.
365 Acaso também o de Pilas teria morrido antes da época r141

de Tróia: mas tomando balanço com a lança fincada


no chão, saltou para os ramos de um árvore ali perto,
e de local seguro observava o inimigo a que escapara.
Este afiou ferozmente as presas no tronco do carvalho
310 e ameaça matá-lo. E confiante nas renovadas armas, fura
a perna do grande filho de Êurito com o focinho curvo.

Entretanto, os irmãos gémeos, ainda não estrelas no céu, rm


ambos deslumbrantes, ambos montando corcéis mais alvos

14 O rei Nestor.
1 5 Castor e Pólux.
Meleagro e o javali de Cálidon L I V R O V I I I 207

do que a neve, brandiam ambos entre as brisas lanças


315 cujas lâminas cintilavam com o mover vibrante das hastes.
Eles tê-lo-iam ferido, não fosse a cerdosa fera se ir acoitar
no coração do bosque, local inacessível a dardos e cavalos.
Télamon persegue-a. No ardor, sem atenção ao caminho,
tropeçou na raiz de uma árvore e estatelou-se de bruços.
380 Enquanto Peleu o levanta do chão, a jovem de Tégea põe
a célere flecha na corda e, encurvando o arco, dispara-a.
A cana roçou a pele e crava-se sob a orelha da fera,
avermelhando-lhe a pelagem com umas gotas de sangue.
Não estava ela mais feliz com o bom resultado do tiro
385 do que Meleagro. Foi este o primeiro a vislumbrar sangue,
é o que se julga, o primeiro a mostrá-lo aos companheiros.
'Merecidamente', diz, 'serás homenageada por tua bravura.'
Os homens coram. Incitando-se uns aos outros, espicaçam-se
a altos brados e lançam projécteis à toa; mas a aglomeração
390 prejudica os disparos feitos e impede-os de acertar no alvo.

Eis que o jovem da Arcádia, o do machado de dois gumes, 11•1

contra o seu destino, berrou, enfurecido: 'Vede como golpes


de homem superam os de mulheres, jovens ! Dai-me espaço !
Embora a própria filha de Latona o proteja com suas armas,
395 a minha direita, mesmo à revelia de Diana, aniquilá-lo-á. '
Proferindo tão grandiloquente discurso, inchado de bazófia,
ergueu com as mãos ambas o dúplice machado e quedou-se
em pontas dos pés, suspenso sobre a extremidade das pernas.
A fera antecipa-se ao temerário e enterrou as presas gémeas
400 no cimo da virilha, onde o caminho para a morte é mais curto.
Anceu caiu, e as entranhas, amassadas com sangue a jorros,
escorregam para fora; e de sangue seco fica empapada a terra.

Contra o inimigo à sua frente, avançava o filho de Ixíon,


Pirítoo, brandindo na poderosa mão direita a lança de caça.
405 'Afasta-te, oh ! a mim mais caro que a própria vida ! ', gritou
o filho de Egeu, 'Pára, parte da minha alma! Lutar de longe

16 An ceu.
208 L I V R O V l II Meleagro e o javali de Cálidon

é lícito ao valente; a coragem temerária foi funesta a Anceu.'


Com tais palavras, dispara a pesada lança de corniso
de ponta de bronze. Apontara-a bem e poderia ter atingido
410 o alvo, não fosse um ramo frondoso de um carvalho a travar.
Também o filho de Éson arroja um dardo. Mas o acaso fê-lo
desviar-se do javali para o destino fatal de um cão inocente:
atingindo-o no ventre, pelo ventre espetou-o ao chão.

Mas a mão do filho de Eneu tem sortes distintas: disparadas


415 duas lanças, a primeira crava-se no chão, a outra no dorso.
De imediato, louco de fúria, girando o corpo em círculos,
vomita baba aos guinchos, juntamente com sangue fresco.
O autor do golpe cai sobre ele. Provoca o inimigo até à loucura,
e enterra a cintilante lança entre as omoplatas à sua frente.

420 Os colegas mostram a sua alegria com um clamor de aplauso,


e correm a apertar na sua mão direita a direita do vencedor.
Quanto à gigantesca fera, jazendo por uma longa extensão,
observam-na espantados, e julgam que não era ainda seguro
tocar-lhe; porém, todos molham no sangue as suas armas.
425 Meleagro põe um pé sobre a mortífera cabeça e, calcando-a,
disse: 'Aceita, menina do Nonácris, o espólio que é meu
por direito; e que a minha glória seja partilhada contigo. '
D e seguida, oferece-lhe troféus: a pele eriçada d e cerdas
duríssimas e o focinho admirável pelas enormes presas.
430 Ela fica encantada com a prenda e o autor da prenda, os outros
enchem-se de inveja; e pela tropa toda corria um burburinho.
De entre deles, estendendo os braços, exclamam a altos brados
os filhos de Téstio: 'Vamos, mulher, larga isso, não nos roubes
os nossos galardões ! Não te iludas, fiada na tua beleza,
435 não vá o autor da prenda, por ti apaixonado, estar longe de ti. '
E a ela arrebatam a oferta, àquele o direito d e oferecer.
O filho de Marte não o suportou. Rangendo os dentes, inchado
de cólera, 'Aprendei, ladrões de honrarias alheias,' exclamou,
'quanto dista entre as ameaças e os actos. ' E com ímpia lâmina
440 trespassou o peito de Plexipo, que nada deste tipo temia.
A Toxeu, indeciso sobre que fazer, desejoso de vingar o irmão
mas receoso de um destino como o dele, não consentiu ele
Alteia e a morte de Meleagro L I V R O V I I I 209

que hesitasse por muito tempo. E com o sangue deste irmão


voltou a aquecer o dardo, ainda tépido da morte anterior.

445 LEVAVA Alteia ao templo dos deuses oferendas pela vitória


do filho, quando vê trazer de volta os cadáveres dos irmãos. [i71

Entregando-se ao pranto e à flagelação, inunda a cidade


de lancinantes gritos e troca as vestes de ouro por negras.
Mas mal soube quem fora o autor da matança, toda a dor
450 se desvaneceu, passando das lágrimas à paixão da vingança.

Havia um pauzito que, quando a filha de Téstio dera à luz,


prostrada pelo parto, as três Irmãs tinham posto no lume.
Enquanto fiavam os fios do destino com a pressão do polegar,
tinham proclamado: 'O mesmo tempo de vida concedemos
m tanto ao pauzito como a ti, ó recém-nascido. ' Proferida
a profecia, as deusas partiram. Logo a mãe retirou do lume
o pauzito, que já ardia, e sobre ele verteu água límpida.
Durante anos, ele permanecera escondido no aposento
mais recôndito; e, preservado, preservou a tua vida, jovem !

460 Foi isto que a mãe trouxe para fora. Ordena que amontoem
achas e gravetos e, feita uma pilha, ateia-lhes o fogo nocivo.
Então, quatro vezes tenta colocar o ramo sobre as chamas,
quatro vezes trava o seu intento. É uma luta entre mãe e irmã,
e os dois nomes puxam um só coração em sentidos opostos.
465 Muitas vezes, a face empalidece com pavor do crime iminente,
muitas vezes, a cólera férvida tinge os olhos com o seu rubro.
E ora o seu semblante se parecia ao de quem ameaça coisas
bem cruéis, ora ao de quem se poderia crer sentir compaixão.
E quando o feroz ardor da alma secava as suas lágrimas,
410 encontrava, porém, outras lágrimas. Tal como o navio,
que o vento e as vagas contrárias ao vento arrastam,
sente as duas forças e, indeciso, obedece a ambos, assim
vagueia a filha de Téstio com emoções contraditórias,
e, à vez, acalma a cólera e, acalmada, a cólera reacende.

17 O filho é Meleagro; os irmãos são os filhos de Téstio.


210 L I V R O V III AIteia e a morte de Meleagro

475 Todavia, a irmã começa a levar a melhor sobre a mãe.


E para aplacar as sombras consanguíneas com sangue,
age piedosa com impiedade. Pois quando o pestífero lume
ficou mais vivo, 'Que esta pira me queime as entranhas ! '
disse. E agarrando o madeiro fatídico com a cruel mão,
480 estacou, a infeliz, diante dos altares funerários, dizendo:

'Ó deusas da punição, Euménides, voltai as três o olhar,


para estes rituais dignos da vossa fúria. Vingo um crime
e cometo outro. A morte tem de ser expiada com a morte,
o crime dever somar-se ao crime, o funeral ao funeral.
485 Que esta ímpia mansão pereça pelo amontoar de lutos.
Acaso o ditoso Eneu se comprazerá com o filho vitorioso,
e Téstio ficará sem filhos? Será melhor chorardes ambos.
E vós, ó almas de meus irmãos, há pouco tornados sombras,
apreciai a minha homenagem e aceitai esta oferta fúnebre
490 dada com um custo tão alto: o malvado fruto do meu ventre !
- Ai de mim ! Que vou eu fazer? Irmãos, perdoai a uma mãe !
Falham-me as mãos para executar os planos. Merece morrer,
reconheço; mas repugna-me ser a causadora da sua morte. -
Mas então, ele ficará impune? E ficará vivo e vitorioso,
495 ufano dos sucessos obtidos, e será dele o reino de Cálidon,
enquanto vós jazereis feitos ténue cinza, gélidas sombras?
Não, não permitirei ! Morra esse criminoso, e arraste
com ele as esperanças do pai e o reino e a ruína da pátria !
- Mas onde está o teu coração de mãe? Onde estão os deveres
500 de afecto das mães? E as provações que nove meses suportei?
Oh ! se tu tivesses ardido ao nascer, nas primeiras chamas,
tivesse eu permitido ! Viveste graças à minha dádiva; agora,
morres por culpa tua ! Colhe o prémio do teu feito, devolve
a vida duas vezes dada, primeiro no parto, depois ao tirar
505 o pau do fogo; ou então junta-me à tumba de meus irmãos. -
Quero e não consigo. Que hei-de fazer? Ora tenho as feridas
dos irmãos diante dos olhos e a visão de tamanha matança,
ora o dever e a condição de mãe despedaçam-me o ânimo.
Ai de mim ! Vencereis desgraçadamente, mas vencei, irmãos,
510 conquanto eu vos siga, a vós e àquele que vos terei dado
para consolo.' Com tais palavras, volta-se de costas e lança
A morte de Meleagro - As suas irmãs L I V R O V I I I 211

para o meio d o lume, com mão trémula, o fatídico tição.


O pauzito soltou, ou, pelo menos, pareceu soltar, gemidos,
e, tomado pelas chamas relutantes, foi consumido pelo fogo.

515 Sem nada saber, bem longe dali, com esta chama Meleagro
se incendeia e sente as entranhas torrar com brasa invisível.
Todavia, supera as dores atrozes com a sua valentia.
Lamenta, porém, o facto de cair numa morte inglória
e sem sangue, e chama afortunadas às feridas de Anceu.
520 Invoca gemendo o idoso pai, os irmãos, as afectuosas irmãs,
e nas derradeiras palavras a sua companheira de leito,
e talvez até a própria mãe. O fogo e a dor recrudescem
e de novo esmorecem. Ambos se extinguiram juntos;
e, pouco a pouco, o sopro vital perde-se nas leves brisas
525 e o tição, pouco a pouco, vai-se cobrindo de branca cinza.

A ALTA Cálidon jaz prostrada. Choram novos e velhos,


geme o povo e os aristocratas. As mulheres de Cálidon,
junto ao Eveno, arrancam os cabelos e dilaceram os peitos.
O pai, jazendo por terra, conspurca na poeira o cabelo branco
530 e o envelhecido rosto, e invectiva contra a sua vida tão longa.
Quanto à mãe, a sua própria mão, consciente da atrocidade
do que fizera, a castigou, enterrando uma espada no ventre.
Nem se o deus me tivesse outorgado cem bocas ressoantes
com suas línguas e um imenso talento e o Hélicon inteiro
535 poderia eu relatar as amarguradas preces das pobres irmãs.
Esquecidas de todo o decoro, dilaceram os lívidos peitos.
Enquanto têm o corpo, o corpo acariciam e tornam a acariciar,
e beijam o cadáver, beijam o leito fúnebre quando lá foi posto.
Ao tornar-se cinzas, as cinzas apanham e apertam no peito.
540 Depois, sobre o túmulo, ali jazem prostradas; e abraçando
o nome gravado na pedra, sobre o nome vertem lágrimas.
Saciada finalmente com a destruição da casa de Portáon,
a filha de Latona levanta-as no ar (à excepção de Gorge
e da nora da ilustre Alcmena) , fazendo-lhes nascer penas [ l 8J

1 8 Dejanira.
212 L l V R O V I II O banquete de Aqueloo oferecido a Teseu

545 no corpo, esticando-lhes os braços em longas asas, a boca


tornada bico. E assim transformadas, envia-as pelos ares. l1"

ENTRETANTO, cumprindo a sua parte na expedição conjunta,


dirigia-se Teseu à cidadela de Erecteu e da deusa do Tritónis,
quando, a meio da viagem, Aqueloo, engrossado pelas chuvas,
550 lhe barrou o caminho e causou atraso. 'Entra na minha morada,
ínclito Cecrópida', diz, 'não te lances na avassaladora corrente.
Costuma levar troncos maciços e nas suas curvas rolar penedos
com grande estrondo. Vi estábulos enormes junto às margens
serem arrastados com os animais. De nada valeu às manadas
555 de bois serem possantes, nem aos cavalos serem velozes.
Com o degelo da neve nas serras, até muitos corpos de jovens
a minha torrente afogou no rodopio de fundos torvelinhos.
É mais seguro descansares até o rio correr dentro dos limites
habituais e até o leito familiar confinar águas mais calmas. '
560 O filho de Egeu anuiu. 'Farei uso da tua morada, Aqueloo,
e também do teu conselho', replicou; e de ambos fez uso.

Entra num átrio construído de pedra-pomes de mil poros


e rugoso tufo. O chão estava húmido e era de macio musgo,
os tectos cobertos de painéis de búzios alternados de conchas.
565 E já Hiperíon percorrera dois terços do dia, quando Teseu
e seus camaradas de aventuras se reclinaram no triclínio:
aqui o filho de Ixíon, acolá Lélex, o herói de Trezena, l201
já com as frontes salpicadas de raros cabelos brancos,
e todos os outros de que o rio dos Acarnanos julgou dignos
510 de distinção idêntica, felicíssimo por ter hóspede tão ilustre.
De imediato, ninfas de pés descalços puseram-lhes à frente
mesas fartas de iguarias. Após o repasto, serviram o vinho
em taças de pedras preciosas. Então o maior dos heróis,
contemplando o mar que se estendia a seus pés, 'Que local
575 é aquele?', disse, apontando com o dedo; 'diz-me o nome
que tem aquela ilha, embora ela não pareça uma só ilha.'

1 9 Ave do tipo da pintada ou galinha de Angola.


20 Pirítoo.
As Equfuades - Perímele L I V R O V I I 1 213

O RIO retorquiu: 'Não é uma única terra aquilo que avistas:


estão ali cinco terras. A distância é que disfarça a separação.
E para não te chocar tanto o acto da despeitada Diana, vou
580 contar-te: eram Náiades. Um dia, imolaram dez bezerros,
e, convocando para a cerimónia os deuses dos campos,
entregaram-se a festivas danças, esquecidas de mim.
Inchei de cólera. Inchei tanto quanto jamais me precipito
na minha maior enchente, tremendo de cólera e de águas.
585 Arranquei bosques aos bosques e campos aos campos,
e com o local fiz rebolar as ninfas para o mar, só então,
por fim, lembradas de mim. A minha corrente e a do mar
arrancaram um pedaço de terra firme e partiram-no
em tantas partes quantas Equínades divisas ao largo.

590 'MAs como bem vês lá ao longe, bem ao longe, há uma ilha
afastada, que me é tão cara; os nautas chamam-lhe Perímele.
Fui eu quem roubou a virgindade à jovem, que eu adorava.
Mas seu pai, Hipodamante, não tolerou tal situação: atirou
a filha de um penhasco no abismo para a matar. Apanhei-a,
595 e, enquanto nadava, acartei-a dizendo: 'Ó tridentífero, a quem
calhou em sorte o reino a seguir ao céu, o das ondas errantes,
[onde desaguamos todos nós, os rios sagrados que fluímos,
vem até mim, Neptuno, ouve benignamente a minha prece.
A esta, que agora carrego, eu causei a perdição. Se seu pai,
600 Hipodamante, fosse gentil e justo, ou se fosse menos ímpio,
600a deveria ter-se compadecido dela e ter-me perdoado.
600b Mas já que a terra lhe foi negada pela ferocidade do pai,]
601 ajuda-me, imploro, e a ela, afogada pela ferocidade do pai,
dá-lhe, Neptuno, um local, ou que ela própria seja um local.'
['Assim também a abraçarei. ' O rei do mar moveu a cabeça,
e, como sinal de assentimento, as ondas todas sacudiu.
605 Assustou-se a ninfa, mas não parou de nadar. E, ao nadar,
eu tocava-lhe no peito palpitante de uma trémula vibração.
E enquanto o acariciava, senti o seu corpo todo endurecer,
e o peito ser coberto por terra, e nela ele ficar sepultado.]
Dizendo isto, terra jamais vista envolveu o corpo que nadava
610 e uma pesada ilha cresceu sobre o corpo assim transformado. '
214 L I V R O V I I I Báucis e Filémon

APós tais palavras, o rio calou-se. Todos ficaram abalados


com este assombroso caso. Mas o filho de Ixíon riu-se deles
por acreditarem, ele, um insolente que desprezava os deuses.
'Dizes fantasias, Aqueloo, e julgas os deuses com demasiado
615 poder', disse, 'apenas porque outorgam e tiram as formas. '
Ficaram todos atónitos e desaprovaram aquelas palavras.
Lélex, de todos o mais amadurecido em espírito e em idade,
assim diz: 'Imensurável é o poder do céu, nem sequer tem fim,
e o que quer que os deuses tenham desejado cumpre-se.
620 E para não teres dúvidas, ouve isto:
'Há nos montes da Frígia
um carvalho junto a uma tília, rodeado de um muro à volta.
(Eu vi o local com os próprios olhos, pois Piteu enviara-me
à região que, em tempos, fora governada por seu pai, Pélops.)
Não longe dali, fica um lago. Outrora era terra habitável,
625 hoje são águas pejadas de mergansos e galeirões aquáticos.
Certa ocasião, aqui chegaram Júpiter sob aparência humana,
e, com o pai, o neto de Atlas, o deus do caduceu, sem as asas. r211
A mil casas se dirigiram, em busca de local para repousar;
mil casas de trancas cerradas ficaram. Porém, uma acolheu-os.
630 Era, é certo, humilde, com telhado de colmo e canas lacustres.
Nela, Báucis, piedosa velhinha, e Filémon, da mesma idade,
tinham juntos passado os anos de mocidade; naquele casebre
tinham juntos envelhecido. A pobreza, tinham-na tornado leve,
assumindo-a e suportando-a com serena tranquilidade.
635 E de nada vale procurares buscar ali servos ou senhores:
os dois são a família toda, ambos obedecem e dão ordens.

'Ora bem, mal os seres celestes chegaram ao humilde larzito


e, baixando a cabeça, entraram na pequenina ombreira,
o velho trouxe um banco, que Báucis, solícita, cobrira
640 com um pano grosseiro, e convidou-os a descansar o corpo.
De seguida, ela arreda na lareira as cinzas tépidas e reavive
o lume da véspera, alimentando-o de folhas e casca seca,
e com o seu sopro de velhinha espevita-o até pegar chama.

21 Mercúrio.
Báucis e Filémon L I V R O V l I I 215

Do tecto desce achas todas rachadas e ramos secos, parte-os


645 em pedaços e põe-nos debaixo de um potezito de bronze;
corta então folhas da couve que o esposo colhera na horta
bem regada. Este, com uma forquilha de dois dentes, tira
um coirato fumado de porco, que pendia da enegrecida trave;
do coirato há muito tempo conservado, corta um pedaço,
650 pequeníssimo, e amacia o pedaço na água que já fervia.
Entretanto, enganam o tempo de espera conversando,
impedindo assim de se sentir a demora. Havia ali uma selha
de madeira de faia, suspensa de um gancho pela sólida asa.
É cheia de água morna e recebe os pés deles para os aquecer.
655. Ao centro, havia um leito, de armação e pés de salgueiro;
656• sobre ele, um travesseiro cheio com macios limos do rio.
655 [Sacodem o travesseiro, cheio com macios limos do rio,
656 que está sobre um leito de armação e pés de salgueiro.]
Estendem sobre ele uma colcha com que só costumavam
cobri-lo em ocasiões festivas; mas até a colcha era velha
e de má qualidade, não destoando de um leito de salgueiro.
660 Os deuses reclinaram-se. De vestido arregaçado, a tremer,
a anciã põe a mesa. Um dos três pés da mesa é mais curto.
Um caco iguala-o aos outros: posto debaixo, a inclinação
emenda, e a mesa nivelada é limpa com verdejante hortelã.
Nela são postas as azeitonas bicolores da virginal Minerva
665 e bagas de corniso outonais em conserva de límpido mosto,
e endívias e rabanetes e um certo tipo de requeijão, e ovos
levemente mexidos em brasa pouco quente, tudo isto
em loiça de barro. Depois disto, fica na mesa uma larga taça
de vinho, cinzelada na mesma "prata" , e copos feitos
610 em madeira de faia com um banho no interior de loira cera.
Sem grande demora, vêm do lume os pratos bem quentes;
trazem o mesmo vinho (de facto, não de muita idade) ,
que é arredado por um instante, para dar lugar à sobremesa.
Vêm então as nozes, vêm figos secos com rugosas tâmaras,
675 vêm as ameixas e as maçãs perfumadas em largas cestas,
e os cachos de uvas colhidos em purpúreas videiras;
ao centro, é colocado o alvo mel. E a tudo isto juntam
rostos bondosos, e solicitude empenhada e generosa.
216 L I V R O V I I I Báucis e Filémon

'Entretanto, os anciãos vêem a cratera, tantas vezes esvaziada,


680 encher-se espontaneamente, e que o vinho crescia por si só.
Atónitos com algo tão insólito, Báucis e o medroso Filémon
apavoram-se e com as palmas das mãos para o céu entoam
preces e rogam perdão por tal refeição e tão mal preparada.
Eles tinham um único ganso, guardião da minúscula quinta.
685 Os donos aprestavam-se a imolá-lo para os divinos hóspedes:
agitando frenético as asas, foge e esgota-os, lentos pela idade.
Muito tempo os iludiu, até que, por fim, pareceu refugiar-se
junto dos próprios deuses. Estes proibiram que o matassem.
"Deuses somos " , dizem. " Que a ímpia vizinhança seja punida
690 como tão bem merece. A vós ser-vos-á concedido ficar livres
de tal calamidade. Abandonai tão-só a vossa morada
e segui nossos passos. E até ao cimo daquele íngreme monte
69) vinde connosco. ' Ambos obedecem; apoiando-se em bengalas,
693a ['vinde connosco. " Ambos obedecem; indo atrás dos deuses,
69Jb apoiando-se em bengalas e, vagarosos pela provecta idade,]
sobem a muito custo, passo a passo, a longa encosta.

695 'Estavam do cume já só à distância que um disparo de flecha


consegue alcançar, quando voltam para trás o olhar
e vêem tudo submerso por um lago: só a casa deles escapou !
Olhavam pasmados para tal, choravam a sorte dos vizinhos,
quando o velho casebre, pequenito até para os dois senhores,
700 se transforma num templo. Colunas substituíram as estacas,
o colmo aloirou-se, o telhado vê-se a rebrilhar de ouro,
as portas são cinzeladas, o chão revestido de mármore.
Então, o filho de Saturno, com uma voz afável, assim disse:
"Dizei, ancião justo e mulher digna de um esposo justo,
705 o que desejais. " Após trocar poucas palavras com Báucis,
Filémon revela aos deuses a decisão que os dois tomaram:
"Pedimos para sermos sacerdotes e velar pelo teu santuário.
E já que passámos uma vida juntos, que seja a mesma hora
a levar-nos aos dois, e que eu nunca chegue a ver a tumba
710 de minha esposa, nem por ela eu venha a ser sepultado. "

'Os desejos são cumpridos. Detiveram a custódia d o templo


enquanto lhes foi dado viver. Um dia, acabados pelos anos
Báucis e Filémon - Erisícton L 1 V R O V 1 II 217

e pela velhice, estando diante da escadaria sagrada a contar


o sucedido neste local, Báucis observa Filémon cobrir-se
115 de folhas, Báucis a cobrir-se de folhas vê o idoso Filémon.
E embora já lhes crescessem copas sobre os dois rostos,
iam trocando palavras enquanto puderam. "Adeus, amor ! " ,
disseram e m simultâneo; e em simultâneo a casca cobriu
e ocultou-lhes a boca. E ainda hoje os habitantes da Tínia
no mostram ali dois troncos vizinhos, nascidos dos dois corpos .
Isto foi-me contado por anciãos credíveis: nem havia razão
para quererem mentir. E, de facto, eu próprio vi as grinaldas
penduradas dos ramos e, pondo outras novas, disse: " Quem
cuidou de deuses seja deus, quem os venerou seja venerado. " ' m1

m TERMINARA. A história e o narrador impressionaram todos, c231

a Teseu sobremaneira. E a este, desejoso de ouvir mais acções


assombrosas dos deuses, o rio de Cálidon, apoiado no cotovelo,
tais palavras dirigiu: 'Há seres, ó supremo herói, cuja forma
sofreu uma vez uma mutação e permaneceu nesse novo estado.
130 Há, porém, seres a quem é permitido assumir muitas formas,
como é o teu caso, Proteu, que vives no mar que rodeia a terra.
Pois, de facto, ora te viram de jovem mancebo, ora de leão;
ora foste um javali feroz, ora uma serpente que todos
receariam tocar; por vezes, cornos fizeram-te um touro;
135 tanta vez podias parecer rocha, tanta vez também árvore,
e umas vezes, imitando o aspecto das límpidas águas,
foste um rio, outras vezes foste fogo, o oposto da água.

'Este poder, e não em menor grau, tinha a esposa de Autólico,


filha de Erisícton. O pai dela era homem capaz de desprezar c241

140 o poder dos deuses, de jamais queimar incenso nos altares.


Diz-se também que com um machado profanara um bosque
consagrado a Ceres, violando com o ferro a vetusta mata.
Ali erguia-se um carvalho imenso, o tronco carregado de anos,

22 A frase tem dois sentidos possíveis em latim: "aqueles que cuidaram dos deuses . . . " e "aque­
les por quem os deuses se interessam . . . ", "os que os deuses amam . . . "
.

2 3 Relembre-se que o narrador é Lélex.


24 Mestra.
218 L I V R O V I I I Erisícton

só ele, todo um bosque. Cingiam-no a meio fitas e tabuinhas


145 votivas e grinaldas, provas dos que obtiveram seus desejos.
Tantas vezes, fizeram as Dríades sob ele suas danças festivas,
tantas vezes, andaram à volta do tronco, fazendo uma roda
de mãos dadas, um tronco cuja largura enchia quinze braças.
E o restante bosque estava tão mais em baixo em relação a ele,
150 quanto tão mais abaixo do bosque inteiro estava a relva.
Mas nem sequer por tal razão o filho de Tríopas o poupou
ao ferro: diz aos servidores para cortarem o carvalho sacro.
Quando os viu hesitando em cumprir as ordens, a um deles
arrancou o machado, e o criminoso tais palavras pronunciou:
155 'E não é só ser cara à deusa ! Até podia ser a própria deusa !
Ele já vai embater no chão com a sua frondosa copa ! '
Assim disse. E enquanto balanceia a arma para um golpe
de viés, o carvalho de Deo estremece e solta um gemido.
Ao mesmo tempo, quer as folhas quer as bolotas começam
111J a empalidecer, e esta palidez espalha-se aos longos ramos.
E quando a únpia mão causou uma ferida naquele tronco,
do rasgão da casca jorrou sangue, tal como costuma
o sangue brotar da cerviz despedaçada, quando a vítima,
um touro, enorme, cai sacrificado diante dos altares.

765 Todos se quedaram estupefactos. Então, um deles ousa


impedir o sacrilégio e travar a cruel acha de dois gumes.
Fitando-o, 'Toma este prémio pelo coração devoto ! ', gritou
o da Tessália; e desviando o ferro da árvore para o homem,
degola-o. Golpeia depois o carvalho, golpe atrás de golpe,
110 até que, do meio do tronco, uma voz assim se fez ouvir:
"Sob esta madeira, eu sou uma ninfa, queridíssima a Ceres.
E, se morrer, vaticino que a punição pelos teus actos está
iminente, e que isto será consolo para a minha morte. "
Mas ele prossegue na acção criminosa. For fim, abalada
m pelos incontáveis golpes e puxada por cordas, a árvore
desabou, e com o peso arrasou grande parte do bosque.

'Todas as irmãs Dríades ficam aturdidas pela calamidade,


a sua e a do bosque. Em pranto, de negras vestes, vão elas
até junto de Ceres e rogam-lhe que Erisícton seja punido.
Erisícton (a Fome) L I V R O V I I I 219

1so Esta anuiu, e, lindíssima, com um movimento da cabeça


sacudiu os campos carregados com as searas prenhes.
Cogita um tipo de castigo digno de piedade, como se ele,
pelos seus actos, fosse digno da piedade de alguém:
torturá-lo com pestífera fome. Mas porque não podia
785 ir até junto da deusa (nem, de resto, o destino consente
que Ceres e a Fome se encontrem) , dirigiu a uma deusa
dos montes, uma das Oréades campestres, estas palavras:

"Há um local na margem mais longínqua da glacial Cítia,


um solo triste, estéril, terra sem cereais, terra sem árvores.
190 Aí habitam o inerte Frio, a Palidez e o Terror, a escanzelada
Fome. A esta última, ordena-lhe que se enfie nas entranhas
criminosas do sacrílego, e que a abundância de alimento
não a vença, mas que no combate ela vença as minhas forças.
E para não te assustar a distância da viagem, toma este carro,
195 toma estes dragões que do alto conduzirás com as rédeas ! "
E confiou-lhe o carro. Esta, levada pelos ares no carro
emprestado, aterra na Cítia, no cimo de gélida montanha
(chamam-lhe Cáucaso) , e alivia os pescoços das serpentes.
Procurando pela Fome, avistou-a num campo pedregoso,
800 arrancando com as unhas e os dentes as raras ervas.
Eriçado era o seu cabelo, os olhos encovados, o rosto lívido,
lábios esbranquiçados de bolor, a goela rugosa de sarna,
a pele ressequida, através da qual se podiam ver as tripas;
sob os quadris angulosos despontavam ossos ressequidos,
805 e em vez de ventre tinha o lugar do ventre; o peito dirias
dependurado, preso à coluna vertebral só pelas costelas.
A magreza fazia as articulações maiores: as rótulas dos joelhos
viam-se inchadas, os tornozelos espetados de imenso inchaço.
Ao avistá-la de longe (pois não se atreveu a chegar mais perto) ,
810 transmite as ordens da deusa, demorando-se pouco tempo.
E embora estivesse muito afastada, e embora tivesse chegado
ali há pouco, pareceu-lhe, porém, sentir fome. Então, agarrou
as rédeas e guiou lá bem alto os dragões de volta à Hemónia.

'Embora sempre se tivesse oposto à acção de Ceres, a Fome


81 5 cumpre as instruções. Através dos ares, o vento levou-a
220 L I V R O V I I I Erisícton (a Fome)

até à casa que lhe fora indicada. Penetra sem demora


no quarto do sacrílego, mergulhado num sono profundo
(era, com efeito, noite) . Abraça-o com os braços ambos
e insufla-se dentro do homem, assoprando na sua garganta
320 e puhnões e boca, e espalha-lhe a fome na veias vazias.
Cumprida a sua missão, deixa as terras férteis do mundo
e retorna à sua desprovida morada, aos campos familiares.

'Ainda o doce Sono nas suas plácidas asas reconfortava


Erisícton, quando em sonhos se põe a buscar comida.
825 Movendo a boca no vazio, rilha os dentes contra dentes,
afadiga a garganta, iludida com alimentos imaginários,
e, em vez de iguarias, engole, sem proveito, o ténue ar.
Mal acordou do sono, a ânsia de comer dá largas à sua fúria.
Ela reina sobre a sôfrega goela e as entranhas em chamas.
830 Sem demora, exige tudo o que o mar, a terra, o ar produzem;
e diante das mesas postas, queixa-se de ter fome e reclama
comida no meio de comida. O que era bastante para cidades,
bastante para um povo inteiro, não chega para um só homem.
Quanto mais empanturra o estômago, tanto mais deseja.
835 E tal como o mar recebe rios do mundo inteiro e jamais
se sacia de água, e sorve as correntes as mais distantes;
ou como o fogo, que tudo devasta, jamais recusa alimento,
e queima lenha sem conta, ele, quanto mais lhe é concedido,
mais reclama, e pela abundância torna-se ainda mais voraz;
340 assim a boca do sacrílego Erisícton engole todos os alimentos
e, ao mesmo tempo, exige mais. Nele toda a comida é motivo
para mais comida; comendo sempre, é um local sempre vazio.

'E já pela fome e a voragem sem fundo do ventre esgotara


o seu património. Mas ainda assim a atroz fome permanecia
845 inesgotável, e as labaredas da sua insaciada gula floresciam.
Por fim, quando toda a sua fortuna afundou nas entranhas,
restou-lhe apenas uma filha, que não merecia um tal pai.
Na miséria, até a vende. De índole nobre, ela recusa ter dono.
Estendendo as palmas das mãos sobre o mar à sua beira,
350 implorou: "Salva-me da servidão, tu que tens o prémio
de roubar-me a virgindade ! " (de facto, Neptuno possuía-o).
Erisícton - 0 banquete de Aqueloo (cont.) L I V R O V I I I 221

O deus não ignorou a prece. E embora o senhor dela


a seguisse e a tivesse há pouco visto, ele transforma-a,
dando-lhe feições de homem e trajando-a como pescador.
855 Vendo-a, o seu amo diz: "Tu, que ocultas o baloiçante anzol
de bronze no pequeno isco, tu que manejas a cana de pesca,
assim o mar fique sempre calmo, assim o peixe seja crédulo
lá nas ondas, e não se aperceba do anzol até estar apanhado.
Aquela com cabelos em desalinho, com um vestido pobre,
860 que estava há pouco nesta praia (pois eu via-a nesta praia),
diz-me, onde pára ela? É que as pegadas detêm-se aqui ! "
Ela percebeu que a dádiva d o deus resultara. E encantada
por este lhe perguntar por si própria, assim respondeu:
"Quem quer que sejas, perdoa-me. Não desviei o olhar
865 do mar para parte alguma, absorvido pelo meu trabalho.
E para não teres dúvidas, que o deus do mar me assista
nestas artes, em como há muito ninguém pisou esta praia,
à excepção de mim próprio, e muito menos uma mulher. "
O amo acreditou. Voltando para trás, caminhou pela areia,
810 partindo burlado. A ela, a sua forma foi-lhe devolvida.
Ora, quando percebeu que o corpo da filha era transformável,
muitas vezes o pai vendeu a neta de Tríopas a muitos donos;
e ela, ora égua ora ave, ou bezerra ou cerva, logo os deixava.
E deste modo fornecia comida, imerecida, ao sôfrego pai.
875 Mas, quando a violência do mal já gastara os recursos todos
e faltaram, por fim, alimentos novos para a atroz doença,
ele pôs-se a dilacerar os próprios membros, a estraçalhá-los
à dentada: o infeliz alimentava o próprio corpo mirrando-o !

'PORQUE perco tempo com outros? Também eu tenho o poder,


BSO ó jovem, de metamorfosear-me, embora em número limitado.
Pois ora pareço o que sou, ora me transformo-me em serpente,
ora sou chefe da manada e concentro toda a energia nos chifres
- chifres . . . ! Enquanto pude ! Agora falta-me metade das armas
da fronte, como tu bem vês. ' E gemidos seguiram as palavras.
LIVRO IX

O herói, filho de Neptuno, pergunta ao deus porque gemia ui

e a razão da mutilada fronte; e o rio de Cálidon, de cabelos


desgrenhados, cingidos por canas, assim se pôs a contar:

'PEDES-ME tarefa bem amarga. A quem apraz relembrar


os combates perdidos? Mas contarei como tudo aconteceu.
Nem foi vergonhoso ser vencido, mas até honrosa a peleja,
e enorme consolo nos dá a grandeza de quem nos venceu.
Dejanira - se o seu nome alguma vez em conversa chegou
aos teus ouvidos - foi em tempos uma jovem lindíssima,
10 esperança e motivo de cobiça para pretendentes sem conta.
Quando com outros entrei na casa do desejado para sogro,
"Aceita-me como genro'' , disse eu, "ó filho de Portáon. "
O mesmo disse Alcides; o s outros abdicaram para nós dois.
Ele põe-se a falar de Júpiter, de que seria sogro dela, da fama
15 dos seus trabalhos e das ordens da madrasta cumpridas.
Eu retorqui: "Desonroso é um deus ceder a um mortal"
(ele ainda não era divino) . " Vês que sou o senhor das águas
que deslizam pelo teu reino, serpenteando com o seu curso.
Se for teu genro, não serei um forasteiro vindo de terra
20 estrangeira, mas um do teu povo, uma parte do teu reino.
Que não me prejudique o facto de a rainha Juno não me odiar,
e de não me terem imposto quaisquer trabalhos por castigo.
Pois Júpiter, de quem te ufanas de ser filho, filho de Alcmena,
ou é um falso pai, ou verdadeiro em virtude de um crime.
25 Pelo adultério da mãe reclama-lo por pai: escolhe se preferes
que isso de Júpiter seja mentira, se seres nascido da infâmia."
Enquanto tal dizia, já há muito que me fitava de olhar torvo.
Incendiando-se de cólera, a custo dominando-a, respondeu

1 Teseu era realmente filho de Neptuno.


Hércules e Aqudoo L 1 V R O 1X 223

nestes termos: "A minha direita é melhor que a minha língua.


30 Tu podes vencer falando, conquanto eu te vença lutando. "
E avança feroz para mim. Com a minha bravata ainda fresca,
tive vergonha de ceder. Arranquei do corpo as vestes verdes,
pus à frente do peito os braços, em posição meio agachada,
e as mãos curvadas a postos, e preparei o corpo para a luta.

35 'Ele apanha uma mão-cheia de terra e lança-a contra mim;


por sua vez, fica amarelado com o contacto da areia loira.
Ora agarra-me o pescoço, ora agarra as pernas aos saltos
(ou julgarias que agarrou) , ora agride por todos os lados.
O meu peso protege-me, e era em vão que me atacava,
40 qual rochedo que as vagas atacam com enorme estrondo:
é que este resiste imperturbável pela sua própria massa.
Separamo-nos um pouco, e logo nos atiramos um ao outro
a lutar e aguentamos nas posições, decididos a não ceder.
Pé fincado contra pé, eu, dobrado em frente, empurrava-o
45 com o peito todo, dedos contra dedos, testa contra testa.
Assim vi possantes touros investirem um contra o outro,
buscando como prémio do combate a mais resplandecente
esposa de todo o vale; a manada observa-os assustada,
sem saber por quem a vitória e o poder supremo aguardam.
50 Três vezes sem o conseguir quis Alcides afastar de si
o meu peito, que lhe ia resistindo; à quarta vez, sacode
o meu abraço e solta-se dos braços que o apertavam.
Empurrou-me com a mão (decidi, pois, dizer a verdade)
e logo me rodou e se me alapou às costas com todo o peso.
55 Se crês em mim (pois não busco glória com falsidades) ,
sentia-me esmagado como por uma montanha sobre mim.
A muito custo, porém, enfiei os braços a escorrer suor,
e muito a custo consegui soltar o corpo do terrível aperto.
Eu arfava; ele não me larga e impede-me de recobrar forças
60 e apanha-me o pescoço. Então, por fim, os meus joelhos
carregam a terra, e mordi com os dentes o pó do chão.

'Inferior pela minha força, volto-me para as minhas artes:


transformando-me numa longa serpente, escapo-me
224 L I V R O IX Hér�es e Aqueloo - 0 banquete de Aqueloo (cont.l

ao homem, ziguezagueando o corpo em anéis recurvos,


65 vibrando a língua bilida e soltando terríficos silvados.
O herói de Tirinto riu-se e, zombando das minhas artes,
" Ora, derrotar serpentes era a minha ocupação no berço" ,
diz, " e mesmo que superes as outras serpentes, Aqueloo,
que mínima parte serás tu, uma cobra, da hidra de Lema?
70 Ela regenerava-se das próprias feridas, e nem uma cabeça
só, da profusão de companheiras, se cortava impunemente,
mas a nuca ficava mais forte com dois novos sucessores.
Tal monstro, que da matança se ramificava em novas cobras
e do mal crescia mais ainda, eu venci, e vencendo t liquidei t.
75 Que crês que te vai acontecer, tu que te fizeste falsa serpente,
manejas armas alheias, te camuflas com forma emprestada? "
Assim dissera, e lança-me as mãos ao pescoço, qual garrote.
Eu sufocava, como se uma tenaz me apertasse a garganta,
e lutava por resgatar o pescoço dos polegares dele.
80 Assim vencido, restava-me a terceira forma: a de um touro
feroz. E transformando o corpo em touro, retorno à luta.
Da esquerda lança-se-me ao pescoço, rodeia-o com os braços,
e, correndo eu, segue-me e arrasta-me; e, forçando para baixo
os chifres, espeta-mos no duro chão, prostra-me na areia funda.
85 E nem isto lhe bastou. Agarrando com a feroz direita o rijo
chifre, parte-o e arranca-mo, deixando-me a fronte mutilada.
As Náiades encheram-no com frutos e flores odoríferas
e consagram-no; e a gentil Abundância é rica graças ao corno. ' [2]

ASSIM dissera; e uma ninfa, uma das servidoras, de vestes


90 arregaçadas à maneira de Diana e cabelos soltos dos lados,
abeirou-se, trazendo no corno transbordante os bens
do Outono inteiro, ou seja, fruta viçosa para a sobremesa.
Chega a manhã. E mal o sol começa a colidir com os cimos,
os jovens partem. Na verdade, eles não ficam à espera
95 que o rio corra tranquilamente e que o nível das águas
baixe no leito. Então, Aqueloo ocultou entre as ondas
o campestre rosto e a cabeça, amputada de um chifre.

2 A cornucópia.
Hércules, Nesso e Dejanira L I V R O IX 225

APESAR de magoado por ter perdido o adorno arrancado,


quanto ao resto, fica incólume; e mesmo a cicatriz da cabeça
1 00 pode ocultá-la, cobrindo com ramos de salgueiro ou canas.
Mas a ti, feroz Nesso, foi a paixão pela mesma jovem
que te perdeu, com o dorso trespassado pela seta voadora.
Pois buscava o filho de Júpiter as muralhas da terra natal
com a nova esposa, quando chega à rápida torrente do Eveno.
105 Engrossado pelas chuvadas de Inverno, o rio ia mais cheio
que o normal, pejado de redemoinhos, impossível de passar.
Sem medo no que lhe diz respeito, preocupa-se pela esposa.
Eis que chega Nesso, robusto de corpo, conhecedor dos vaus.
'Com a minha ajuda', disse, 'ela passará para a outra margem,
110 ó Alcides; quanto a ti, usa as tuas forças e atravessa a nado.'
[Pálida de medo, e trémula de pavor dele e do rio,]
o da Aónia confia a Nessa a assustada jovem de Cálidon.
Depois, carregado como estava com a aljava e a pele de leão
(a clava e recurvo arco arremessara já para a outra margem),
m 'Visto que já comecei, vou vencer esta correnteza', disse.
Nem hesita, nem procura onde o rio seja mais calmo,
nem aceita ser transportado com o favor da corrente.
Estava já na margem, a apanhar o arco que antes lançara,
quando reconheceu os gritos da esposa: Nesso preparava-se
120 para quebrar o compromisso. 'Aonde te leva a confiança
vã nas pernas, ó selvagem? Falo contigo, biforme Nesso.
Ouve: não te atrevas a roubar-me coisas que são minhas !
Se não tens um mínimo de respeito por mim, talvez a roda
de teu pai te possa dissuadir de uma paixão proibida. u1

125 Mas não escaparás, fiado nos teus recursos equinos.


Apanhar-te-ei com uma seta, não com os pés. ' E confirma
as últimas palavras com os actos: dispara uma flecha
que fura o dorso do fugitivo; a recurva ponta sai pelo peito.
Mal é arrancada, o sangue jorrou de um e de outro orifício,
no misturado com o peçonhento veneno do monstro de Lema.
Nesso recolheu-o. 'Não morrerei sem vingança', diz para si.

3 Ixíon.
226 L I V R O IX A moite de Hércules

E à donzela que queria raptar dá-lhe a sua veste ensopada


no sangue ainda quente, como se um filtro amoroso fosse.

MUITOS ANOS passaram entretanto, e as façanhas do grande


135 Hércules encheram a terra e saciaram o ódio da madrasta.
Vinha vencedor da Ecália, e preparava-se para um sacrifício
de graças a Júpiter em Ceneu, eis que o linguarudo Rumor,
que rejubila em somar à verdade o falso, e de algo mínimo
cresce com suas mentiras, chega antes dele aos teus ouvidos,
140 Dejanira: diz que o filho de Anfitrião arde de amor por Íole.
Ela ama-o e acredita. Aterrada com a notícia do novo amor,
entrega-se de imediato ao pranto, e com as lágrimas desafoga
a sua dor, a pobrezinha. Passado algum tempo, diz para si:
'Porque choro? A amante dele rejubilará com o meu pranto.
145 E já que ela virá, temos que nos apressar a inventar algo,
enquanto é tempo e uma outra ainda não ocupa o nosso leito.
[Protestarei ou calo-me? Regresso a Cálidon ou fico aqui?
Deixo a casa ou, se melhor não houver, tranco-lhe a porta?]
E se eu, ó Meleagro, lembrada de que sou tua irmã,
150 acaso preparar um crime e degolar a rival, dando exemplo
de quanto é capaz uma mulher ultrajada e ressentida?'

O seu pensamento lança-se em direcções diversas. A isto


tudo, preferiu enviar a veste embebida no sangue de Nesso,
para que devolvesse as forças à paixão esmorecida dele.
155 A Licas, não sabendo o que era dado, ela confia sem saber
a sua perdição: com palavras doces ordena-lhe, a infeliz,
que dê ao esposo aquele presente. Nada sabendo, o herói
aceita e enverga nos ombros o veneno da hidra de Lema.

Ofertava incenso e entoava preces junto ao fogo agora aceso,


160 e de um cálice derramava vinho sobre o altar de mármore,
quando o potente veneno aquece e se derrete nas chamas,
e se derrama e espalha pelos membros todos de Hércules.
Enquanto pôde, conteve os gritos de dor com usual bravura.
Mas quando a dor venceu a resistência, derrubou os altares
165 e com os seus berros encheu o Eta, coberto de florestas.
Sem demora, tenta arrancar do corpo a veste mortífera.
A morte de Hércules L I V R O 1 X 227

Onde a arranca, esta arranca pele (história horripilante ! )


e ora fica colada aos membros e em vão tenta arrancá-la,
ora destapa os membros estraçalhados e os ossos enormes.
110 O próprio sangue chia, como, às vezes, a lâmina em brasa
mergulhada em água gélida, e é cozido pelo veneno a arder.
Não há limites: as chamas devoram-lhe, ávidas, as vísceras,
um suor de cor carregada e escura jorra do corpo todo,
os nervos estalam meio torrados, o tutano desfaz-se
115 com a oculta peçonha. Erguendo as mãos para os astros,
grita: "Ó filha de Saturno, alimenta-te da minha desgraça !
Alimenta-te e contempla esta tortura, cruel, do cimo do céu,
sacia o teu coração feroz. Se até um inimigo é digno de dó,
[ou seja, se tal sou para ti, por cruéis sofrimentos destruída]
180 tira-me a vida, odiosa para ti, nascida para as provações.
A morte será um favor: é uma prenda digna de madrasta.
Eu subjuguei Busíris, que poluía os templos com o sangue
dos forasteiros, e arrebatei ao cruel Anteu a fonte de energia
que vinha da mãe, e nem o triplo corpo do pastor da Ibéria, [<l

185 nem o teu tríplice corpo, Cérbero, me assustaram.


Acaso vós, mãos, não baixastes os cornos do pujante touro?
A Élide conhece vossos feitos, como as águas do Estinfalo,
e o bosque do Parténio, e o cinturão cravejado do ouro
do Termodonte, que trouxestes com a vossa valentia,
190 e as maçãs guardadas pelo dragão que jamais dormia.
A mim, nem os Centauros puderam resistir, a mim,
nem o javali destruidor da Arcádia, e de nada serviu
à hidra a cada corte recrescer e recobrar forças duplicadas.
E o que dizer quando vi os cavalos do da Trácia, cevados [51

195 a sangue humano, manjedouras cheias de pedaços de corpos,


as quais, ao ver isto, derrubei, matando os cavalos e o dono?
O mastodonte da Nemeia jaz esmagado pelos meus braços,
na nuca suportei o céu. A cruel esposa de Júpiter cansou-se
de me dar ordens, mas eu não me cansei de as executar.
200 Mas eis uma pestilência inédita, a que nem a bravura, dardos
ou arma alguma conseguem resistir. No fundo dos pulmões

4 Gérion.
5 Diomedes.
228 L I V R O I X A morte de Hércules

vagueia um fogo devorador, que se alimenta do corpo todo.


Mas Euristeu está de boa saúde ! E há ainda quem acredite
que há deuses? " Assim disse; e pelos cimos do Eta caminha
205 ferido, qual touro quando deambula com a lança de caça
cravada no corpo, e o autor do arremesso já se escapara.
Tantas vezes poderias vê-lo soltando gemidos, tantas vezes
berrando de dor, tantas vezes tentando e tentando a veste
inteira esfrangalhar, derrubando árvores, assanhando-se
210 contra os montes, esticando os braços para o céu de seu pai.

Eis que descobre Licas, escondido no buraco de uma rocha,


transido de medo. Com a raiva ampliada pela dor, exclama:
"Foste tu, Licas, foste tu me deste um presente mortal?
És tu o autor da minha morte ? " Este treme, apavorado,
215 pálido de terror, e a medo murmura pedidos de perdão.
Desculpava-se ele, e aprestava-se a abraçar-lhe os joelhos,
quando Alcides o agarra. Gira-o no ar três e quatro vezes
e lança-o no mar da Eubeia, com mais força que a catapulta.
Este, ao pairar pelas brisas dos ares, solidificou-se.
220 Tal como as chuvas, dizem, congelam com ventos gelados
e se tornam neve, e os flocos, rodopiando, se aglomeram
em massa mole, e depois se condensam em denso granizo,
assim foi ele lançado pelo vazio pelos poderosos braços.
Exangue de pavor e já sem gota de líquido no corpo,
225 a tradição transmite que se transformou em dura rocha.
E ainda hoje se ergue sobre as águas profundas da Eubeia
um pequeno rochedo, mantendo traços de forma humana.
Os marinheiros receiam pisá-lo - como se ele sentisse ! -,
e chamam-lhe Licas.
Quanto a ti, ínclita prole de Júpiter,
230 depois de abater árvores que o altíssimo Eta carrega sobre si
e de construíres uma pira, ordenas ao filho de Peante
que leve o arco e a enorme aljava e as flechas que verão
de novo o reino de Tróia; e ele, auxiliando-te, ateia lume
à pira. Quando as chamas ávidas tomam o monte de lenha,
235 estendes sobre o cimo da pilha de madeira a pele do leão
da Nemeia e deitas-te com a cabeça apoiada na tua clava,
A morte de Hércules L I V R O IX 229

com aquela expressão como se te reclinasses num banquete


entre taças cheias de vinho puro, coroado de grinaldas.

Já as labaredas crepitavam e, poderosas, se espalhavam


240 por todo o lado, e procuravam o corpo sereno de quem
as desprezava. Os deuses receiam pelo defensor da terra.
A estes (pois reparara) assim falou Júpiter, com voz alegre,
o filho de Saturno: "O vosso receio é uma alegria para mim,
ó deuses; com júbilo congratulo-me do fundo do coração
245 por ser chamado soberano e pai de um povo reconhecido,
e por a minha prole estar segura também com vosso favor.
Pois embora lho concedais pelos tremendos feitos, também
eu fico em dívida para convosco. Que vossos corações leais
não inquietem com temor vão, desprezai as chamas do Era !
250 Quem tudo venceu, vencerá as labaredas que vedes,
e não sentirá o poder de Vulcano senão na parte vinda
da mãe. O que descende de mim, desprovido e imune
à morte, é eterno, e jamais chama alguma o subjugará.
Esta parte, quando terminar na terra, nas regiões celestes
255 acolherei, e estou certo de que este acto será uma alegria
para os deuses todos. E se houver algum, se algum houver
que sofra por Hércules ser divino, e não queira que se lhe
dê o prémio, saberá que mereceu e aprovará contrariado . "
O s deuses concordaram. Pareceu até que a esposa real acolheu
260 o discurso de Júpiter com semblante brando, mas o fin al
já com o semblante carregado, magoada por se sentir visada.
Entretanto, o que era destrutível as chamas de Múlciber
consumiram. A figura de Hércules ficou irreconhecível,
e nada resta do que descendia do aspecto de sua mãe,
265 e somente conserva os vestígios do lado de Júpiter.
Como a serpente põe de parte a pele junto com a velhice,
e, rejuvenescida, cheia de genica, brilha com novas escamas,
deste modo o herói de Tirinto, despojado do corpo mortal,
refloresce na sua melhor parte, e começa a parecer maior
210 e a adquirir um aspecto venerável, de augusta solenidade.
A ele, o pai omnipotente arrebatou-o na sua quadriga,
e por entre as ocas nuvens levou-o até aos radiosos astros.
230 L I V R O IX Akmena e Galântis

ATLAS sentiu o peso dele. E nem agora o filho de Estéleno,


Euristeu, pôs cobro à sua cólera; e o ódio que tinha ao pai 1•1
215 derrama-o implacável sobre a prole deste. Ora, atormentada
por angústias constantes, Alcmena de Argos tem apenas Íole
a quem confiar suas queixas de velha, a quem contar do filho
os trabalhos, que o mundo todo testemunhara, e os males dela.
Por ordem de Hércules, Hilo acolhera Íole no leito e coração
280 e engravidara-a de ilustre estirpe. A ela assim se pôs a dizer
Alcmena: 'Que, ao menos, a ti os deuses sejam propícios
e abreviem a demora, quando, prestes a dar à luz, invocares
Ilitia, a que assiste às mulheres assustadas na hora do parto,
ela que, para comprazer a Juno, tão hostil foi para mim.
285 Pois quando chegou o dia do nascimento do meu Hércules,
que tantos trabalhos perfez, o sol já calcando o décimo signo,
o peso esticava-me o ventre. Eu trazia nele algo tão grande
que fácil era saber que o pai do fardo em mim encerrado
era Júpiter. Ora, eu já não conseguia suportar mais a dor,
290 e, ainda hoje, quando eu falo nisto, um calafrio de horror
toma-me o corpo - só de relembrar já sinto aqui uma dor!
Durante sete noites e outros tantos dias padeço sem cessar,
derreada pelas dores. Bem estendia os braços para o céu
e chamava aos gritos Lucina e os Nixos, seus companheiros.
295 Ela, na verdade, veio. Porém, subornada pela iníqua Juno,
veio com a intenção de oferecer a esta a minha cabeça.

'Ao ouvir os meus gemidos, sentou-se então naquele altar


diante da porta; cruzando o joelho direito sobre o esquerdo
e, com os dedos entrelaçados uns nos outros, qual pente,
300 retém o parto. Entoa também fórmulas mágicas em sussurro,
e estas fórmulas travaram o parto já começado.
Bem faço força ! Desvairada, lanço ao ingrato Júpiter injúrias
vãs, e desejo morrer; e solto lamentações que poderiam
comover as duras pedras. As mulheres da região de Cadmo
305 estão presentes, fazem votos e encorajam-me na minha dor.

6 Hércules.
Alcmena e Galântis - Dríope L I V R O IX 23 1

Estava também uma das aias, oriunda da plebe, Galântis,


de cabelo loiro, activa e enérgica cumpridora das ordens,
minha predilecta como serviçal. Ela apercebe-se de que algo
sucedia, causado pela iníqua Juno. Entrando e saindo
310 do quarto sem parar, surpreende a deusa sentada no altar
com os braços presos pelos dedos sobre os joelhos e exclama:
"Quem quer que sejas tu, felicita a minha senhora ! Alcmena
de Argos deu à luz ! O seu desejo cumpriu-se, ela é mãe ! "
A poderosa deusa dos partos dá um salto. Estarrecida, deslaça
315 as mãos que tinha entrelaçadas, e, ao soltar o nó, dou à luz.
Dizem que Galântís se pôs a rir da divindade assim enganada.
Enquanto se ria, a desapiedada deusa agarrou-a pelos cabelos
e arrastou-a de rojo. E embora ela se esforçasse por do chão
se levantar, impediu-a e transformou-lhe os braços em patas.
320 A antiga actividade enérgica ficou, e nem o dorso perdeu
a sua coloração; mas o aspecto é diferente do que tinha antes.
E por ter ajudado com mentirosa boca uma parturiente,
pela boca dá à luz e, tal como antes, habita a nossa casa. ' r71

ASSIM disse; e emocionada pelo exemplo da antiga serviçal,


325 pôs-se a gemer. Enquanto chorava, disse-lhe assim a nora:
'E, no entanto, ó mãe, é a transformação de alguém alheio
à nossa família que te emociona. E se eu te contar o destino
assombroso de minha irmã? E todavia as lágrimas e a dor
embargam-me a voz e impedem de falar.
'Filha única da sua mãe
330 (eu nasci da outra esposa de meu pai) , Dríope era na Ecália
a mais famosa pela sua beleza. Tendo perdido a virgindade
(pois sofrera a violência do deus que governa Delfos e Delos) ,
desposara-a Andrémon, e era tido por afortunado pela esposa.
Há um lago com uma margem íngreme, dando a aparência
ll5 de uma costa escarpada; uma mata de murta coroa o cimo.
Para aqui viera Dríope, sem nada saber do seu destino,
e, para tua maior indignação, para levar flores às ninfas.

7 A doninha.
232 L I V R O IX Drfope

Ao colo levava um doce fardo, o filhinho, que ainda


não tinha um ano, e deu-lhe de mamar o leite morno.
340 Perto do lago, florescia o aquático lódão, imitando a cor
da púrpura de Tiro, prometendo rebentar em bagas.
Daqui colhera Dríope flores para as oferecer ao filhinho
para brincar; eu própria estava a ponto de fazer o mesmo
(eu estava presente) , quando vi pingarem gotas de sangue
345 da flor, e os ramos estremecerem, arrepiados de horror.
Como agora, por fim, contam, tarde de mais, os aldeões,
nela se transformara a ninfa Lótis, ao fugir à obscena paixão
de Priapo, mudando o aspecto, mantendo porém o nome.
Ora, disto a minha irmã nada sabia. Quando, aterrada,
350 quis recuar e, após ter rezado às ninfas, afastar-se dali,
os pés fixam-se ao chão com uma raiz. Luta por arrancá-los,
mas nada move senão a parte de cima. A partir de baixo,
a flexível casca sobe e, pouco a pouco, cobre-lhe a cintura.
Ao vê-lo, esforça-se por arrancar com as mãos os cabelos,
355 e encheu as mãos de folhas: folhas cobriam a cabeça toda.

'O menino, Anfisso (pois fora este o nome que o avô,


Êurito, lhe dera) sente os peitos da mãe a ficarem rígidos,
e, enquanto ia sugando o leite, este deixa de afluir.
Eu assistia ao teu cruel destino e não lograva ajudar-te,
360 ó minha irmã. Abraçando-te com todas as forças minhas,
procurava retardar o crescimento do tronco e dos ramos,
e, confesso, desejei esconder-me sob a mesma casca.
Eis que chegam o esposo Andrémon e o desgraçado pai,
à procura de Dríope. Procurando por Dríope, apontei
365 t para o lódão t. Então, cobrem de beijos o lenho tépido,
e ajoelham-se abraçados às raízes da sua árvore querida.
E já nada tinha a não ser o rosto que não fosse árvore,
a minha querida irmã. Lágrimas pingam nas folhas
nascidas do infeliz corpo; e enquanto pode e a boca
370 dá acesso à voz, estes lamentos lançou para os ares:
" Se os infelizes merecem crédito, pelos deuses vos juro
que não mereci este horror. Sofro um castigo sem culpa.
Vivi sem fazer mal; e se minto, que eu seque e perca
as folhas minhas, me corte um machado e me queimem !
Dríope - Iolau e os filhos de Calírroe L I V R O IX 233

315 Retirai, porém, esta criança dos ramos de sua mãe


e confiai-o a uma ama; fazei com que muitas vezes beba
o leite sob a minha árvore e sob a minha árvore brinque.
E quando souber falar, fazei com que saúde a sua mãe,
e pesaroso diga: "' Sob este trono oculta-se minha mãe"' .
3so Que ele receie os lagos, que não colha flores das árvores,
e pense que todo o arbusto é o corpo de uma deusa.
Adeus, querido esposo, adeus, minha irmã e meu pai !
S e tendes afeição por mim, protegei as minhas ramagens
do golpe das afiadas podoas, das dentadas dos rebanhos.
385 E visto que não me é permitido abaixar-me até vós,
esticai os vossos corpos e vinde até aos meus beijos,
enquanto podeis tocar-me, levantai o meu menino . . .
- não consigo mais falar! Pois já pelo meu alvo pescoço
rasteja uma casca suave, e sou ocultada por uma copa.
390 Afastai as mãos dos meus olhos ! Que sem o piedoso gesto
a casca me cubra e cerre os meus moribundos olhos" .
A boca parara de falar, parara de viver. E por muito tempo,
após a mutação do corpo, os jovens ramos ficaram mornos.'

RELATAVA Íole a espantosa ocorrência, e enxugava


395 Akmena com o polegar as lágrimas da filha de urito
(e ela própria chorava) , quando eis que um caso inédito
travou a tristeza. Junto ao alto umbral assomou Iolau,
quase um menino, de penugem incerta a cobrir as faces,
de feições recuperadas como quando era jovenzinho.
400 Fora Hebe, a filha de Juno, que lhe outorgara este dom,
cedendo às preces do esposo. Ela estava a ponto de jurar 181

que, depois deste, a mais ninguém tais oferendas daria,


mas Témis não o tolerou. 'Pois agora Tebas lança-se
numa guerra civil', diz, 'Capaneu não poderá ser vencido
405 senão por Júpiter, dois irmãos serão iguais nos ferimentos, [•1

um profeta, ainda vivo, tragado pela terra, a sua própria r101

' Hércules.
9 Etéocles e Polinices, filhos de Édipo e que disputam o poder após a morte do pai.
10 Anfiarau.
234 L I V R O IX Iolau - Mileto

sombra verá, e o filho vingará o pai por meio da mãe, '1 1i


a um tempo devoto filho e criminoso pelo mesmo acto;
estarrecido perante os males, banido da razão e da casa,
410 será acossado pelo rosto das Euménides e o espectro da mãe,
até que esposa lhe reclamará o fatídico ouro, e a espada '"i
de Fegeu trespassará o flanco de um seu familiar. 'm

Então, por fim, Calírroe, filha de Aqueloo, pedirá suplicante


ao magno Júpiter que dê aos meninos a idade adulta [e não
415 permita que a morte do vencedor fique impune muito tempo] .
Comovido, Júpiter, acordando desde logo os dons da nora
e afilhada, fará depois homens os rapazes ainda impúberes. ' '"i

QUANDO Témis, a que conhece o futuro, tais palavras disse


com os seus lábios proféticos, os deuses alvoroçaram-se
420 em conversas várias, questionando em sussurro por que razão
não era lícito outorgar os mesmos dons a outros. A filha
de Falante lamenta a provecta idade do esposo; lamenta a doce '" 1
Ceres as cãs de Iásion; Múlciber reclama para o seu Erictónio '"l

a repetição da vida; até a Vénus o cuidado pelo futuro toca:


425 propõe que os anos de vida de Anquises comecem de novo.
Todos os deuses tinham a quem apoiar; com o apoio a cada um,
a insurreição cresce, tumultuosa. Até que Júpiter abriu a boca
e exclamou: 'Oh ! Se algum respeito tendes por mim ,
aonde quereis chegar? Acaso alguém se crê com tal poder
430 a ponto de vencer o destino? Foi o destino que fez Iolau
regressar aos anos que já vivera; foi pelo destino que os filhos
de Calírroe tiveram de ficar jovens, não por intriga ou armas.
Também a vós, e para que o suporteis com melhor ânimo,
até a mim, o destino governa. E se os pudesse transformar,
435 nem o meu Éaco estaria encurvado pela avançada idade,
e Radamanto viveria na flor da juventude para sempre,
tal como o meu Minos, que pelo peso amargo da velhice

1 1 Alcméon, filho de Anfiarau e Erífile; mata a mãe para vingar o pai.


1 2 Calírroe, a segunda mulher de Alcméon.
13 Fegeu é o pai da primeira mulher de Alcméon, Alfesibeia, e manda matar Alcméon.
1 4 A afilhada é Hebe.
1 5 Aurora e Titono.
1 6 Vulcano.
Mileto - Bíblis L I V RO IX 235

é agora desprezado e já não reina como outrora. '


A s palavras d e Júpiter impressionaram o s deuses. Ninguém
440 é já capaz de se lamentar, ao verem Radamanto e Éaco
derreados pelos anos, tal como Minas. Este, quando jovem,
fora o terror dos mais poderosos povos, e só pelo seu nome;
agora era um inválido, cheio de medo de Mileto,
o filho de Déjone, insolente pelo vigor da sua juventude
445 e por Febo ser seu pai. E embora certo de que ele atentaria
contra o seu poder, não ousou bani-lo da casa ancestral.
E foi por vontade própria que fugiste, Mileto, e sulcaste
as águas do Egeu na veloz nau, e que nas terras da Ásia
construíste a cidade que hoje tem o nome do seu fundador.

450 FOI AQUI que conheceste Ciânee, a filha do Meandro


que tantas vezes volta ao mesmo sítio, quando vagueava
pelas curvas da margem do pai. Deu à luz dois gémeos,
Bíblis e Cauno, dois jovens de uma beleza extraordinária.
Bíblis é aviso para as moças: não amem o que é interdito,
455 pois Bíblis foi tomada de desejo pelo irmão, neto de Apolo.
[A irmã não o ama como irmão, nem como é devido.]
De início, não se apercebe de quaisquer chamas de amor,
nem julga ser coisa errada beijá-lo vezes sem conta,
abraçar-se toda ao pescoço do irmão. Por muito tempo
460 vive iludida pela aparência enganadora de puro afecto.
Pouco a pouco, a afeição resvala. Já vem visitar o irmão
toda aperaltada e deseja parecer a seus olhos formosa,
e se outra mais bela está presente, enche-se de ciúmes.
Mas a coisa ainda não é clara para si, nem sente arroubos
465 debaixo deste fogo, embora o seu interior esteja em chamas.
Já lhe chama seu senhor, já odeia os nomes de parentesco,
já prefere que ele a trate por Bíblis em vez de irmã.
Quando acordada, não ousa ainda admitir no seu íntimo
esperanças obscenas. Mas, amiúde, relaxada num sono
410 tranquilo, vê o objecto da paixão: via-se a unir o corpo
ao do irmão, e corava, embora estivesse adormecida.
Quando acordava, ficava em silêncio longas horas,
a recordar as visões no sono, e, cheia de dúvidas, tal dizia:
'Ai de mim ! Que quer dizer este sonho na calada da noite?
236 L I V R O IX Bíblis

475 Nem sequer quero que ocorram ! Porque tive estes sonhos?
De facto, ele é belo, até para olhos malévolos, e para mim
encantador. Eu amá-lo-ia, se ele não fosse meu irmão,
e de mim seria digno. Mas o obstáculo é eu ser irmã dele.
Conquanto, estando acordada, nada disto procure cometer,
480 possa o sonho muitas vezes voltar com a mesma imagem !
Um sonho não tem testemunhas, mas o prazer é quase real.
Oh ! Vénus e alado Cupido, junto com tua amorosa mãe,
quanto prazer tive ! Como era real o desejo que me abalou !
Como me entreguei a ele, relaxada até ao fundo do meu ser!
485 Quanta alegria recordá-lo ! E contudo o prazer foi breve,
a noite demasiado rápida, invejosa do que iniciáramos.
E se fosse lícito trocar de nomes e nos matrimoniarmos,
que bela nora, Cauno, eu seria para o teu pai !
Que belo genro, Cauno, t u serias para meu pai !
490 Pudessem os deuses fazer que tivéssemos tudo em comum,
excepto os avós, e que fosses de estirpe mais nobre que eu.
Em vez disso, farás mãe uma qualquer, rapaz lindíssimo.
Quanto a mim, que infelizmente a sorte fez filha de teus pais,
não mais serás que irmão. O que temos é aquilo que nos separa.
495 Mas que revelam os meus sonhos? Que valor, porém, têm
os sonhos? Porventura os sonhos têm realmente valor?
Os deuses me livrem ! - Os deuses, é certo, possuíram irmãs.
Assim Saturno desposou Ops, que era do mesmo sangue,
Oceano casou com Tétis, Juno com o soberano do Olimpo.
500 Ora, os deuses têm as suas leis: porque procuro conformar
o costume humano às regras do céu, que são distintas?
Ou esta paixão proibida porei em fuga do meu coração,
ou, se não for capaz, que eu morra primeiro, rogo, e morta
me deitem no leito, e, aí estendida, meu irmão me dê beijos.
505 E todavia este assunto requer uma decisão dos dois.
Supõe que tal me agrada: a ele poderá parecerá um crime;
contudo, os filhos de Éolo não temeram os leitos das irmãs. -
Mas onde fui eu buscar isto? Porque arranjei tais exemplos?
Aonde vou? Ide daqui, labaredas obscenas, ide para longe,
510 e que o irmão seja amado apenas como é lícito a uma irmã.
- Mas se tivesse sido primeiro ele a enamorar-se de mim,
talvez eu pudesse condescender com sua desatinada paixão.
Bíblis L I V R O IX t 237

Logo, eu própria o procurarei, pois se ele me viesse procurar,


eu não o rejeitaria. Lograrás falar? Conseguirás confessar?
515 O amor obriga-me, lograrei. E se o pudor me fechar a boca,
uma missiva secreta confessará a minha paixão oculta.'

Assim decide, e a resolução venceu as hesitações do espírito.


Soergue-se de lado, e, apoiada no cotovelo esquerdo, diz:
'Que ele saiba ! Confessemos então este amor desvairado.
520 [Ai de mim ! Para onde resvalo? Que paixão a mente toma?] '
Medita nas palavras e, de mãos trémulas, põe-se a escrever.
Com a direita toma o estilete, com a esquerda a cera intacta.
Começa e hesita; escreve na tabuinha e julga isto errado.
E reescreve e apaga; e altera, rejeita, aprova.
m Pega nela e larga-a, e largando-a pega nela, vez após vez.
Não sabe o que quer. Desagrada-lhe tudo o que planeia
levar a cabo. No rosto, há audácia misturada com pudor.
Tinha escrito 'irmã', mas decide apagar a palavra 'irmã'
e inscrever na tabuinha, alisada a cera, as seguintes palavras:

530 'Que tenhas saúde deseja alguém que te ama, que não a tem
se não lha deres. Tenho pudor, sim, pudor de dizer o nome !
E se queres saber o que desejo, prouvera que a minha causa
pudesse ser defendida sem o meu nome e que não soubesses
que sou Bíblis, até a esperança dos meus votos estar segura.
535 Na verdade, tu poderias suspeitar da ferida do meu coração
pela palidez e a magreza e a expressão, e os olhos molhados
vezes sem conta, e os longos suspiros sem razão aparente,
e os constantes abraços e, se acaso reparaste, os beijos,
que poderias aperceber-te de que não eram de uma irmã.
540 Eu própria, porém, embora com terrível ferida no coração,
embora o louco fogo me consumisse dentro de mim, tudo
tentei (os deuses são testemunhas) para, enfim, me curar.
Muito tempo lutei, sem êxito, para fugir às terríveis armas
de Cupido, e suportei coisas tão duras que nem acreditas
545 que uma jovem possa suportar. Mas fui vencida. Sou forçada
a confessá-lo e a suplicar a tua ajuda com preces a medo.
Só tu podes salvar, só tu podes destruir quem te ama.
Escolhe qual delas fazer. Não é uma inimiga que te roga,
238 L I V R O I X BíbliS

mas quem, embora tão unida a ti, anseia estar mais unida
550 ainda e ligar-se por um vínculo ainda mais apertado.
Que os velhos conheçam as leis, averigúem o que é lícito,
o que é pio ou ímpio, e perservem a sua análise das normas.
A Vénus, a que é própria da nossa idade, é temerária.
Ainda não sabemos o que é lícito e acreditamos que tudo
555 é permitido, e seguimos os exemplos dos deuses magnos.
Não é um pai severo ou escrúpulos pela reputação
ou o medo que nos travam; mas caso haja razão para medo,
esconderemos as carícias furtivas sob o estatuto de irmãos.
Eu tenho toda a liberdade de falar contigo privadamente,
560 e publicamente podemo-nos abraçar e trocar beijos.
O que nos falta então? Tem piedade de quem te confessa
o seu amor: não falaria se não forçasse o extremo da paixão.
Não mereças ser inscrito no meu túmulo como sua causa.'

A tabuinha de cera, já cheia, abandonou a mão que em vão


565 lavrava tais dizeres; a última linha ficou escrita na margem.
De imediato, selou a sua incriminação premindo o sinete
molhado com lágrimas (pois a língua estava ressequida) .
Chamou, cheia de vergonha, um dos seus servidores,
e, bajulando-o um pouco: 'Leva isto, ó fidelíssimo, ao meu .. . '
510 - e, após longa pausa e m silêncio, acrescenta - ' . . . irmão'.
Ao dar-lhe as tabuinhas, elas escorregam das mãos e caem.
Inquietou-se com o presságio, porém enviou-as. O servo,
no momento oportuno, vai dar ao irmão a missiva secreta.
Estupefacto, tendo lido parte apenas, o neto de Meandro
m lança ao chão a tabuinha que recebera num acesso de cólera.
Contendo a custo as mãos longe da cara do apavorado servo,
'Foge enquanto podes, ó celerado promotor de uma paixão
proibida ! ' , exclama, 'tu, que, se a tua morte não arrastasse
consigo a minha honra, pagarias agora o castigo com a vida ! '

5Bo Este foge espavorido e vai contar à senhora as palavras


iradas de Cauno. Empalideces, Bíblis, ao ouvir a rejeição,
e o teu corpo fica em pânico, tomado por um frio glacial.
Quando a razão regressa juntamente com a louca paixão,
muito a custo a língua, percutindo o ar, tais palavras disse:
Bíblis L I V R O IX 239

585 'Bem merecido ! Pois por que razão denunciei, temerária,


a minha chaga? Porque confiei tão depressa às tabuinhas
apressadas palavras que deviam permanecer escondidas?
Devia primeiro ter sondado a disposição do seu espírito
com frases ambíguas. Para que não deixasse de me seguir,
590 devia ter observado com parte do velame qual o vento
e navegar apenas em mar seguro. Agora, enfunei as velas
com ventos não testados. Sou arrastada para escolhos,
e o Oceano em peso desaba sobre mim e me submerge;
as minhas velas não conseguem voltar o curso para trás.
595 Não tive eu uns presságios claríssimos que me proibiam
de condescender com a minha paixão, quando a tabuinha
tombou, mostrando que as minhas esperanças eram vãs?
Acaso deveria eu ter trocado o dia ou o propósito todo,
talvez melhor o dia? O deus em pessoa advertiu-me
600 e deu sinais claros, não estivesse eu fora de mim.
Em vez de confiar à cera, eu própria devia ter ido
falar com ele e, em pessoa, revelar a minha paixão.
Ele teria visto as lágrimas, visto o rosto de apaixonada.
Podia dizer mais coisas que as que coube nas tabuinhas;
605 Podia lançar os braços ao pescoço, mesmo contra-feito,
e, se me repelisse, podia mostrar-me pronta a morrer,
abraçar-me a seus pés e, de joelhos, implorar-lhe viver.
Tudo teria feito, e se cada coisa por si só não vergasse
o seu espírito obstinado, todas juntas lograriam vergá-lo.
610 Talvez o criado que enviei também tenha tido certa culpa:
não o abordou devidamente, não escolheu, creio, ocasião
oportuna, não buscou hora em que a mente estivesse livre.
Isto foi-me nocivo. De resto, ele não é uma cria de tigre,
nem carrega no peito duras pedras ou sólido ferro
615 ou inquebrantável metal, nem bebeu leite de leoa.
Eu vencê-lo-ei ! Voltarei a atacá-lo, e não me cansarei
dos meus intentos, enquanto um sopro de vida restar.
Pois, pudesse eu anular o que fiz, a primeira coisa seria
não ter começado; a segunda é vencer o que comecei.
620 E ainda que eu renunciasse agora aos meus desejos,
ele nunca deixaria de recordar aquilo que eu ousei fazer.
E se eu desistisse, pareceria mulher de vontade leviana,
240 L I V R O IX Bíblis

e que procurei pô-lo à prova e apanhá-lo numa cilada.


Decerto, pensariam todos que fora vencida pela lascívia
625 e não pelo deus que, poderoso, me ataca e abrasa o peito.
Enfim, já é impossível não ter cometido este acto nefando.
Escrevi-lhe e procurei-o: a minha intenção está manchada.
Mesmo que nada mais faça, não posso ser dita inocente.
Falta muito para cumprir os desejos, pouco para o crime. '

630 Assim disse; e (tão confusa e indecisa está a sua mente),


embora arrependida de ter tentado, quer tentar de novo.
Perde o senso, a pobre, e entrega-se a rejeições sem conta.
Depois, sem fim à vista, ele foge da pátria e ímpio crime,
e em território estrangeiro funda uma nova cidade.
635 Então sim, dizem que a desolada filha de Mileto perde
totalmente a razão; então sim, arranca as vestes do peito
e, fora de si de fúria, massacrou os próprios braços.
Está claramente louca, e confessa a todos a esperança
de um amor proibido. Deixa a pátria e a casa familiar
640 que lhe é odiosa, e segue no encalço do irmão fugido.
E tal como as Bacantes do Ísmaro, pelo teu tirso
aguilhoadas, ó filho de Sémele, celebram tua festa bienal,
assim viram Bíblis as mulheres de Búbaso, aos guinchos
pelos extensos campos. Tendo-as deixado para trás,
645 ela vagueia pelos Cários e os belicosos Léleges e a Lícia.
E já passara o Crago e o Límira e a corrente do Xanto,
e os cimos onde morava a Quimera com fogo no meio
do corpo, peito e a cabeça de leoa, de serpente a cauda.
Já não havia mais bosques, quando, exausta pela busca,
650 cais no chão, Bíblis, e ficas deitada, os cabelos espalhados
sobre o duro solo, o rosto premindo as folhas mortas.
Tanta vez vieram as ninfas dos Léleges procurar erguê-la
nos ternurentos braços, tanta vez aconselham como curar
a paixão, e dizem palavras de conforto à mente surda.

655 Bíblis jaz em silêncio. Nas unhas agarra em verdes ervas


e humedece as plantas com uma corrente de lágrimas.
Dizem que por baixo deste regato as Náiades colocaram
um canal para que jamais secasse. Que mais podiam fazer?
De imediato, tal como as gotas de resina do corte na casca,
Bíblis - Ífis L I V R O IX 241

660 ou como brota o pegajoso betume da terra prenhe,


ou como, com a doce chegada do sopro do Favónio,
amolece sob o sol a água que congelara com o frio,
assim Bíblis, a neta de Febo, se consome em lágrimas
e se transforma em fonte. E ainda hoje, naqueles vales,
66 5 tem o nome da sua dona e jorra sob uma azinheira negra.

A NOTÍCIA do novo prodígio teria talvez inundado de Creta


as cem cidades, se em Creta, um pouco antes, não tivesse
ocorrido um caso milagroso: fora a transformação de Ífis.
Pois, na região de Festo, vizinha do reino de Cnosso,
610 viveu em tempos um obscuro indivíduo de nome Ligdo.
Oriundo da plebe, era livre de nascimento. As suas posses
não eram superiores ao seu estatuto, mas era homem
de palavra e de vida imaculada. Estando a mulher grávida,
já muito perto de dar à luz, avisou-a nos seguintes termos:
675 'Faço votos por duas coisas: o mínimo de dores no parto
e dês à luz um rapaz. Outra sorte será fardo mais pesado,
pois a fortuna não nos dá outros meios. Por conseguinte,
se acaso deres à luz (rezo que não suceda) uma menina,
ordeno-te contrariado (Pietas, perdoa-me ! ) que ela morra'.
6so Assim dissera, e as lágrimas escorriam, banhando os rostos
tanto de quem ordenava, como de quem recebia a ordem.
Em vão Teletusa ainda atormenta o esposo com preces,
que não impusesse às suas esperanças limite tão estreito.
Mas a decisão de Ligdo era definitiva. E já a custo trazia
685 ela o ventre pesado, com a sua carga já bem madura,
quando a meio da noite, na visão de um sonho, se quedou
diante da cama, ou assim lhe pareceu, a filha de Ínaco 1 17 1
junto com o seu séquito sagrado. Na fronte erguiam-se
cornos em forma de lua e loiras espigas de reluzente ouro,
690 e um ornamento real. Com ela vinha Anúbis, o ladrador,
a sagrada Bubaste e Ápis, de variegadas cores, e aquele
que abafa a voz e com o dedo convida ao silêncio. '"1

Ali estavam sistros e Osíris, jamais buscado em demasia,

17 Ísis.
1 8 Hórus.
242 LIVRO IX Ífis

e a serpente estrangeira cheia de venenos soporíferos.


695 Então, vendo tudo com clareza como se acordada fosse,
assim disse a deusa: 'Teletusa, uma das minhas devotas,
deixa as aflições e não cumpras as ordens de teu esposo.
Quando Lucina te aliviar do parto, não hesites em criar
a criança, qualquer que seja. Sou uma deusa que auxilia,
700 e, mal me pedem, levo ajuda; não te queixarás de cultuar
uma deusa ingrata.' Com tal conselho, deixou o quarto.
A cretense levanta-se da cama, contente. As mãos puras
ergue aos astros em súplica, e pede que a visão se realize.
Quando a dor aumentou e, por fim, a criança sem esforço
705 saiu para os ares, e sem o pai saber, nasceu uma menina,
a mãe mentiu dizendo-o um rapaz, dá ordens para o criar.
Isto mereceu credibilidade e só a ama sabia do logro.
O pai pagou os votos aos deuses e dá-lhe o nome do avô:
o nome do avô era Ífis. Ora, a mãe alegrou-se com o nome:
710 era igual nos dois géneros, e assim não enganaria ninguém.
E sem ser descoberta a fraude, a piedosa mentira ficou oculta.
O seu trajar era o de um rapaz. O rosto, que podia ser tanto
de rapaz como de moça, fazia-o formoso em ambos os casos.

Chegara ele, entretanto, ao décimo terceiro ano de vida,


715 quando teu pai, Ífis, te promete em casamento à loira lante,
a donzela mais admirada entre os Féstios pelos dotes
da sua formosura, e que era a filha de Telestes do Dicte.
A idade é a mesma, a mesma beleza; os primeiros saberes,
rudimentos da infância, aprendem com os mesmos mestres.
720 Mais tarde, a paixão tocou o peito inexperiente de ambas,
chaga igual deu às duas. Mas as expectativas eram distintas.
lante ansiava pelo dia da boda e o matrimónio acordado,
e acredita que será seu homem quem ela julga ser homem.
Ífis ama-a sem esperança de a poder possuir; e isto mesmo
725 aumenta a sua paixão: inflama-se a jovem por outra jovem.
Contendo a custo as lágrimas, assim diz: 'Que fim me espera,
a mim, que um monstruoso desejo de uma paixão inaudita
me possui, desconhecido de todos? Se os deuses [me querem
poupar, deveriam poupar; se não, e] me querem destruir,
730 que me dessem ao menos um mal natural e mais corriqueiro.
Ífis L I V R O IX 243

As vacas não se enamoram de vacas, nem as éguas de éguas.


O carneiro deseja as ovelhas, a corça segue o veado.
Assim também acasalam as aves, e entre todos animais
fêmea alguma é arrebatada pelo cio de outra fêmea.
m Quem me dera não o ser! Porém, para que Creta produza
todo o tipo de aberrações, a filha do Sol amou um touro "'1

(mas a fêmea ama sempre o macho ! ) . A minha paixão é mais


desatinada, para falar verdade. Mas ela perseguiu um amor
com esperança, mas ela com um embuste, disfarçada de vaca,
140 foi montada pelo touro, havia um adúltero para ela enganar.
E mesmo que aqui se reúna o engenho do mundo inteiro,
e mesmo que voe para aqui de novo Dédalo com as asas
de cera, que faria ele? Porventura, de moça me faria rapaz
com suas doutas artes? Porventura, te mudaria a ti, lante?
145 Porque não ganhas tu coragem, Ífis, e recuperas a razão,
e expulsas as chamas de um amor sem sentido e estúpido?
Vê o que nasceste, se não queres iludir-te a ti também.
Almeja o que é lícito, e ama como deves, sendo mulher.
É a esperança que causa o amor, é a esperança que o alimenta.
150 A realidade tirou-te a esperança. Não é guarda que te afasta
do seu terno abraço, não é o zelo de um marido desconfiado,
não é um pai severo, não é ela que recusa os teus pedidos.
Mas não poderás possui-la, ainda que com tudo a teu favor,
não podes ser feliz, ainda que homens e deuses se esforcem.
155 [Até hoje nenhuma das minhas preces ficou sem resposta:
os deuses, benévolos, deram-me tudo o que puderam. ]
O que quero, quer meu pai, quer ela, quer o futuro sogro,
mas não quer a natureza, mais poderosa que todos nós,
a única coisa que se me opõe. Eis que chega o ansiado dia,
160 eis aqui o dia da boda, e, por fim, lante será minha . . .
tal não me caberá: morreremos d e sede n o meio d a água.
Porquê, Juno, minha madrinha, porquê, Himeneu, vindes
à cerimónia onde falta o noivo, onde somos ambas noivas? '

Neste ponto, calou-se. A outra jovem não se abrasa


765 menos, e suplica que tu venhas depressa, Himeneu.

19 Pasífae.
244 L I V R O IX Ífis .

Receosa do que esta pedia, Teletusa ora adia a ocasião,


ora arrasta os dias fingindo uma doença, muitas vezes
alegando presságios e sonhos. Mas já esgotara todo o tipo
de pretextos, e a data da boda, já tantas vezes adiada,
110 estava iminente. Faltava agora um só dia. Então a mãe
tirou a si e à sua filha as fitas que tinham na cabeça,
e, com os cabelos soltos, abraçada ao altar, assim rezou:
' Ísis, que em Paretónio e nas terras do Mareota e Faro
habitas, e no Nilo que se dispersa em sete braços,
m ajuda-me, suplico, e cura-me da minha angústia.
Em tempos vi-te a ti, deusa, a ti e às tuas insígnias
[tudo reconheci, o séquito, os archotes, a música]
t dos sistros t e gravei na memória as tuas instruções.
Se esta vislumbrou a luz t e não fui punida, eis que t
1so foi por conselho e oferta tua. Apieda-te de nós ambas
e ajuda-nos. ' E as lágrimas seguiram-se às palavras.
A deusa pareceu sacudir os seus altares (e sacudira ! ) ,
as portas do templo estremeceram, refulgiram
os cornos em forma de lua, tilintou o sonoro sistro.
185 Ainda angustiada, de facto, mas feliz com o presságio
favorável, a mãe saiu do templo. A seu lado caminha
Ífis, com passada maior que a habitual. Já desaparece
do rosto a alva tez, as forças aumentam, mais dura está
a própria expressão, o cabelo sem ornamentos mais curto.
190 O vigor é superior ao das mulheres. Pois tu, que há pouco
eras mulher, és agora rapaz ! Levai oferendas aos templos,
rejubilai, com fé sem temor! Oferendas levam aos templos,
põem uma inscrição. A inscrição era um breve epigrama:
COM•OFERENDA,·ÍfIS,•RAPAZ,•PAGA•VOTO•FEITO•QUANDO•MULHER.
195 O dia seguinte desvendara o vasto mundo com seus raios,
quando à cerimónia nupcial Vénus, e Juno, e Himeneu
e todos chegam, e Ífis, o rapaz, toma para si a sua lante.
LIVRO X

DESTAS TERRAS, envolto no seu manto da cor do açafrão,


afasta-se Himeneu pelo céu sem fim, rumando à região
dos Cícones. Mas é em vão que o chama a voz de Orfeu.
É certo que ele esteve presente; mas não trouxe com ele
palavras solenes, nem rostos alegres, nem augúrio feliz.
A tocha que empunhava chiou até ao fim, com um fumo
que fazia os olhos chorar, e nem até agitando-a se ateou.
O desfecho foi pior que o início. Pois quando a nova esposa
passeava num prado na companhia do grupo de Náiades,
10 morre com uma mordidela de serpente no calcanhar.
Depois de muito a ter chorado junto às brisas do céu,
para não deixar de tentar até nas sombras da morte, o vate
do Ródope ousou descer ao Estíngio pela porta de Ténaro.
Através de povos insubstanciais e fantasmas dos sepultados,
15 chegou ao pé de Perséfone e do senhor que governa
o desagradável reino das sombras. E dedilhando as cordas,
assim cantou: 'Ó deuses deste mundo situado sob as terras,
no qual voltamos a cair todos quantos nascemos mortais,
se é lícito e permitis falar verdade, e pôr de lado rodeios e
20 falsidades, não desci aqui para ver as trevas do Tártaro,
nem para acorrentar as três goelas desse vosso monstro,
o rebento de Medusa, cobertas de viô oras como pêlos.
A razão da vinda é a minha esposa, a quem uma serpente,
ao ser pisada, injectou veneno, roubando os anos juvenis.
25 Quis ser capaz de tal suportar, e não negarei que o tentei:
mas o Amor venceu. Famoso é o deus na região superior;
se o é também aqui, não sei. Mas calculo que o seja também:
se a fama do antigo rapto não é falsa, também vós fostes
pelo Amor unidos. Por estas paragens repletas de pavor,
Jo por este Caos ingente e o silêncio deste reino imenso, rogo:
246 LIVRO X Orfeu·e Eurídice

tornai a tecer o destino apressadamente cortado de Eurídice.


Todos nós vos somos devidos; após uma breve demora,
tarde ou cedo nos apressamos para esta morada apenas.
Todos vimos para aqui, pois esta é a nossa mansão final;
35 e vós tendes o mais duradouro poder sobre o género humano.
Também ela, quando, já madura, tiver completado os anos
justos, será vossa súbdita: peço que ma deis por empréstimo.
Mas se os destinos me negam este favor pela minha esposa,
estou decidido a não voltar: rejubilai com a morte dos dois.'

40 Enquanto tal dizia, acompanhando as palavras com o tanger


das cordas, as almas exangues choravam. Tântalo não buscou
apanhar a água fugidia, a roda de lxíon imobilizou-se de pasmo,
os aves pararam de debicar o fígado, as Bélides não cuidaram [ IJ

das vasilhas, e até tu, Sísifo, te sentaste sobre o teu pedregulho.


45 Conta-se que então, pela primeira vez, as faces das Eumérüdes
se molharam de lágrimas, conquistadas pelo cantar dele.
Já nem a esposa real nem o que governa o mundo inferior
logram tal recusar ao suplicante, e mandam chamar Eurídice.
Estava entre as sombras recentes, e veio vagarosa pela ferida.
50 O herói do Ródope recebe-a juntamente com uma condição:
não voltar o olhar para trás até ter saído dos vales do Averno,
ou então aquela benesse viria a ficar sem efeito.

Pelo meio de silêncios mudos tomam uma vereda a subir,


íngreme, escura, mergulhada em neblina opaca e densa.
55 Já pouco lhes faltava para a orla das regiões superiores,
quando ele, receoso de ela não vir atrás e ansioso por vê-la,
voltou o olhar, apaixonado. De súbito, ela desliza para trás.
Esticando os braços, lutando por agarrar-se e ser agarrada,
a desgraçada nada apanhou, a não ser o ar fugidio.
60 E agora, morrendo por segunda vez, de nada se queixou
do marido (de que se queixaria, a não ser de ser amada?).
Dizendo um derradeiro 'Adeus !', que já a muito custo
ele ainda ouviu, volveu de volta ao local de onde partira.

1 Tício tinha o fígado a ser eternamente debicado por abutres.


Orfeu e Eurídice - Ciparisso L I VR O X 247

A segunda morte da esposa paralisou Orfeu de estupor,


65 tal como quem vê o cão do Estígio, o dos três pescoços,
acorrentado pelo do meio, a quem o terror não abandona
antes da antiga forma o fazer, pois o corpo torna-se pedra;
ou como Óleno, aquele que imputou um crime a si mesmo
e quis parecer culpado, ou como tu, desventurada Leteia,
10 fiada na tua beleza: dois corações outrora tão unidos,
hoje em dia vós sois pedras que o húmido Ida carrega.
Em vão implorou e quis passar de novo, mas o barqueiro
impediu-lhe a travessia. Por sete dias se quedou sentado
ali na margem, andrajoso, sem tocar nos dons de Ceres:
75 o seu manjar eram a aflição e a dor da alma e as lágrimas.
Queixando-se da crueldade dos deuses do É rebo, retirou-se
para o alto Ródope e para o Hemo, açoitado pelos Aquilões.

Pela terceira vez encerrara o Titã o ano nos aquíferos Peixes.


Durante esse tempo, Orfeu fugira a todo o prazer sexual
80 com mulheres, quer porque aquele amor não resultara bem,
quer porque fizera uma jura. Mas muitas ardiam de desejo
de se unir ao vate, e muitas sofreram ao serem rejeitadas.
Foi até ele quem iniciou os povos da Trácia a transferir
o amor para os tenros rapazes e a colher antes da idade
85 juvenil as primeiras flores da breve Primavera da vida.

HAVIA ali uma colina, e sobre a colina uma extensão


muitíssima plana, que um herboso prado coloria de verde.
O local não tinha sombra. Foi só quando aquele vate,
filho de deuses, ali se sentou e tocou as sonoras cordas,
90 que o local ganhou sombra. Não faltou a árvore da Caónia "1

nem a mata das Helíades, ou o carvalho-alvar de altas ramas,


nem as flexíveis tílias, nem a faia e o inupto loureiro,
nem as delicadas aveleiras, ou o freixo útil para as lanças,
e o abeto-branco sem nós, e a azinheira encurvada de bolota,
95 e o plátano festivo, e o bordo ímpar pelas suas várias cores,
e os salgueiros que vivem nos rios, e o aquático lótus,

2 O carvalho. A árvore das Helíades é o álamo.


248 LIVRO X Ciparisso

e o buxo sempre verde, e as esbeltas tramagueiras,


e a murta bicolor e o folhado de bagas azul-escuro.
Também vós viestes, heras de pés retorcidos, com vinhas
100 as suas parras, e os ulmeiros por videiras cobertos,
e freixos do monte e abetos, e o medronheiro carregado de frutos
escarlates, e as flexíveis palmeiras, prémios do vencedor,
e o pinheiro, de hirsuta copa arregaçada no topo, tão caro
à Mãe dos deuses, se é certo que Átis, o devoto de Cíbele,
105 por ele despiu a forma humana e endureceu no alto tronco.

A multidão juntou-se o cipreste com a sua forma de cone.


Hoje é uma árvore; outrora, foi um rapaz, amado pelo deus
'
que domina a cítara com as cordas e com a corda o arco.
Ora, é que tinha havido um veado, um veado enorme,
1 10 sagrado para as ninfas que vivem nos campos de Carteia.
Tinha vastas hastes, bem abertas, que à própria cabeça
davam sombra profunda. Refulgiam de ouro tais hastes,
e do pescoço bem torneado pendiam uns colares de jóias,
caindo sobre o peito. Na fronte, presa nuns cordelinhos,
m baloiçava uma conta de prata, e das duas orelhas luziam,
ao nível das frontes cavas, brincos iguais de bronze.
Sem qualquer receio e desprovido da timidez natural,
ele costumava frequentar as casas e oferecer o pescoço
a mãos, mesmo que desconhecidas, para o acariciarem.
120 Mas mais que a qualquer outro, Ciparisso, ó mais belo
das gentes de Ceos, era a ti que era ele caro. Tu levavas
o cervo aos novos pastos, tu, às límpidas águas da fonte;
ora entrançavas coloridas grinaldas de flores nas hastes,
ora montavas o seu dorso alegremente por toda a parte,
125 e conduzias-lhe a boca macia com purpúreas rédeas.

Era meio-dia. Estava um calor sufocante e fervilhavam


as curvas pinças do Caranguejo costeiro do ardor do sol.
Fatigado, o veado estirou o corpo sobre a terra relvada,
colhendo a frescura das sombras das árvores.
1 Jo Eis que, sem querer, o jovem Ciparisso o trespassa
com afiado dardo. Ao vê-lo morrendo da cruel ferida,
resolveu morrer. Que palavras de consolo não lhe disse
As canções de Orfeu - Proémio - Ganimedes -Jacinto L I V R O X 249

Febo, aconselhando-o a entregar-se à dor com brandura,


na proporção do caso ! Mas ele desfaz-se em gemidos e roga
135 aos deuses do céu o dom supremo de o chorar eternamente.
Já pelo choro sem fim o sangue se esvaíra, quando o corpo
começa a esverdear-se, e os cabelos, que há pouco pendiam
da nívea fronte, se transfiguram em cabeleira encrespada.
Por fim, ficou toda rígido, a contemplar o céu estrelado
140 do seu delgado cimo. Então, desolado, o deus soltou
um gemido e disse: 'Por nós serás chorado. Tu chorarás
os outros e serás sempre presente aos tomados pela dor. '

TAL fora o bosque que o vate reunira, e ele sentava-se a meio


do bando de aves e da assembleia de animais silvestres.
145 Dedilhando com o polegar as cordas para as experimentar,
quando sentiu, embora cada uma desse um som diferente,
as várias notas em consonância, cantou a seguinte canção:

'CoM JúPITER (tudo se verga ao poder de Júpiter), Musa,


ó mãe, faz iniciar o meu cantar. Já muitas vezes de Júpiter
150 cantei o poder; já cantei os Gigantes com plectro mais solene
e os raios vitoriosos espalhados pelas planícies de Flegra.
Agora é preciso lira mais ligeira: pois cantamos os rapazes
pelos deuses amados, bem como as raparigas, fulminadas
por paixões proibidas, que foram castigadas pela sua lascívia.

155 'CERTO DIA, o rei dos deuses inflamou-se de amor pelo frígio
Ganimedes. Descobriu-se então o que Júpiter preferia ser
em vez daquilo que era: e ave alguma achou digna de nela
se transformar, senão a que consegue carregar os raios.
Sem mais demora, fustigando os ares com as falsas asas,
160 raptou o descendente de Ilo. E contra a vontade de Juno,
ainda hoje enche ele as taças a Júpiter e lhe serve o néctar.

'TAMBÉM a ti, filho de Amiclas, teria Febo colocado no céu,


se o teu funesto destino tivesse dado tempo para lá te pôr.
Porém és imortal: tal foi possível. E quantas vezes expulsa
165 a Primavera o Inverno e o Carneiro sucede aos aquosos Peixes,
tantas vezes tu renasces e nos verdejantes prados floresces.
250 L I V R O X Jacinto.

Foi a ti, mais que a outro qualquer, a quem o meu pai amou.
Delfos, ao centro das terras posta, ficou privada do guardião,
enquanto o deus frequentava o Eurotas e a sem-muralhas
110 Esparta. Já para nada lhe importavam cítaras ou flechas.
Esquecido de si próprio, nem recusava carregar com as redes,
nem levar os cães pela trela, nem acompanhar-te pelos cimos
de montanhas abruptas; e da longa convivência nutria o amor.

Certo dia, já o Titã ia quase a meio-caminho entre uma noite


115 finda e outra a chegar, e estava a igual distância das duas,
quando os jovens se despem e, resplandecentes do azeite
da gorda azeitona, dão início à competição do largo disco.
Dando-lhe equiHbrio, Febo, o primeiro, lança-o para os ares:
este, com seu peso, corta as nuvens no seu caminho.
1so Só passado muito tempo a massa cai de volta no solo firme,
mostrando assim quanto pode a perícia aliada à força.
De súbito, irreflectidamente, levado pelo ardor da compita,
o rapaz de Ténaro correu para o disco para o agarrar.
Mas eis que a terra dura, causando um ricochete, o lançou
1s5 contra o teu rosto, Jacinto ! O deus ficou lívido, tanto
quanto o rapaz, e ampara nos braços o corpo desfalecente.
E ora tenta reanimar-te, ora enxuga a horrível ferida,
ora aplica ervas, intentando reter a alma que vai fugindo.
De nada lhe valeu o seu saber: a ferida era incurável.
190 Tal como quando alguém num bem regado jardim esmaga
violetas e papoilas e lírios de eriçados estames fulvos,
de súbito eles elanguescem e reclinam a cabeça pesada,
já não se sustêm de pé e contemplam o solo com as corolas,
assim se abandona o rosto a morrer e, já sem força, vergado
195 pelo seu próprio peso, o pescoço recai sobre os ombros.
" Cais, rebento de Ébalo, defraudado da flor da juventude" ,
disse Febo. " E e u vejo a tua ferida, vejo a minha culpa.
Tu és a minha dor e o meu crime. A minha mão direita
é responsável por tua morte, fui eu da tua morte o causador.
200 [Contudo, de que sou culpado? A menos que ter brincado
se possa chamar culpa, se possa chamar culpa ter amado.]
Oh ! se eu pudesse morrer no teu lugar, ou então contigo !
Mas já que as leis do destino me impedem, estarás sempre
Jacinto - Os Cerastas e as Propétides L I V R O X 251

comigo e ficarás nos meus lábios que jamais te esquecerão.


205 [Cantar-te-á a lira ao tocar, cantar-te-ão as minhas canções.
Flor de nova espécie, imitarás os meus gemidos com letras.
E virá também o tempo em que o valorosíssimo herói DJ

se fará esta flor, e o seu nome será lido na mesma pétala".]

'E enquanto tal ia Apolo dizendo nos seus lábios verídicos,


210 eis que o sangue, que, derramado no chão, tingira as ervas,
deixa de ser sangue e desponta uma flor mais esplendorosa
que a púrpura de Tiro. Esta flor toma o aspecto dos Ürios,
caso não fosse da cor da púrpura e aqueles da cor da prata.
Tal não bastou a Febo (foi, de resto, ele desta honra o autor):
2 15 ele próprio inscreveu os seus lamentos nas pétalas. E 'AI AI'
passou a flor a ter inscrito, traçadas tais letras de lamentação.
E Esparta orgulha-se por Jacinto aí ter nascido, e ainda hoje
lhe presta honras: todos os anos lá regressam as Jacíntias,
e celebram-se, segundo antigo uso, começando pela procissão.

220 'MAs SE acaso perguntares a Amatunte, a rica em metais,


se lhe apraz ter sido o berço das Propétides, ela negá-lo-á,
bem como o daqueles que outrora tinham a fronte eriçada
de um par de chifres; e daqui tomaram o nome de Cerastas.
Diante do portão destes, havia um altar a Júpiter Hospes.
225 Se algum forasteiro, sem saber do crime, tinto de sangue
o tivesse visto, pensaria que nele teriam sido sacrificados
vitelos de leite ou cordeirinhos da região de Amatunte.
Ora, o imolado era o hóspede ! Ofendida pelo nefando ritual,
a própria alma Vénus estava a ponto de deixar as cidades
230 e campos da sua Ofiúsa. "Que mal fizeram locais tão gratos
para mim, que mal as minhas cidades? Que culpa têm eles?
Melhor seria que este povo ímpio fosse punido com exílio,
ou com a morte, ou algo de intermédio entre o exílio e a morte.
E que poderá ser isso senão o castigo de mudarem de forma?"
235 Hesitando sobre em que coisa os transformar, voltou o olhar

' Ájax.
252 L I V R O X Pigmalíão

para os cornos e eles sugeriram que podiam ser-lhes deixados.


Transforma então os corpulentos homens em bravios vitelos.

'Quanto às obscenas Propétides, estas ousaram afirmar


que Vénus não era deusa. Por isso, devido à cólera da deusa,
240 diz-se que foram as primeiras a prostituir o corpo e a beleza;
e quando perderam o pudor e o sangue do rosto endureceu,
com uma diferença mínima converteram-se em rígida pedra.'

'PIGMALIÃO sempre vira a vida dissoluta destas mulheres.


Por isso, revoltado com os vícios sem conta que a natureza
245 conferira à índole feminina, vivia solteiro, sem esposa;
e por muitos anos não teve com quem partilhar o leito.
Um dia, com arte espantosa e feliz, esculpiu uma peça
de marfim da cor da neve, com a beleza com que mulher
alguma consegue nascer; e enamorou-se da sua obra.
250 A face era a de uma jovem autêntica, a qual tu julgarias
estar viva e que queria, não obstasse a timidez, mover-se.
A tal ponto a arte não se vê na arte ! Pigmalião extasia-se
a olhá-la e sorve no peito chamas pelo corpo de imitação.
Muitas vezes toca com as mãos na sua obra para testar
255 se é corpo ou marfim, e nem admite que ainda é marfim,
[dá-lhe beijos e julga que são devolvidos; fala-lhe, abraça-a,]
crê que, ao tocar-lhe, os dedos se afundam no corpo e teme
que, ao pressionar, marcas lívidas acedam aos membros. ['1

Ora lhe faz carícias, ora lhe traz presentes que encantam
260 as donzelas: conchas e pedrinhas polidas,
e pequeninas aves e flores de mil cores,
e lírios, e bolinhas coloridas, e lágrimas das que deslizam
da árvore das Helíades. Enfeita ainda o corpo de vestidos,
nos dedos põe anéis com jóias, ao pescoço longos colares.
265 Pendem das orelhas leves pérolas, e fitas sobre o peito.
Tudo lhe fica tão bem ! E nem nua pareceria menos bela.
Deita-a então sobre colchas tingidas da concha de Sídon,

4 Ou seja, nódoas negras.


Pigmalião -Mirra L I V R O X 253

e chama-lhe companheira do leito, e recosta-lhe a cabeça


em almofadas de macias penas, como se ela pudesse sentir.

210 'Chegara o dia da festa de Vénus, aquela a que toda a Chipre


acorria a celebrar. Bezerras de encurvados cornos, de ouro
recobertos, caíam, golpeadas nos cachaços da cor da neve,
e o incenso evolava-se. Findo o ritual, quedou-se junto ao altar
e timidamente disse: "Deuses, se tendes o poder de outorgar
215 tudo, desejo que me concedais" (não ousando Pigmalião dizer
"a rapariga de marfim " ) " . . . esposa semelhante à de marfim . "
Presente à sua festa, a doirada Vénus percebeu o que queria
dizer a prece; e por três vezes o fogo se avivou e a ponta
da chama se ergueu pelos ares, sinal favorável da deusa.
280 Ao voltar a casa, logo se abeira da estatueta da sua menina.
Debruçando-se sobre o leito, beijou-a: pareceu-lhe tépida !
De novo aproxima os lábios e toca-lhe nos seios com as mãos.
Ao ser tacteado, o marfim torna-se mole ! A rigidez esvai-se,
e sob os dedos cede e molda-se, tal como a cera do Himeto
285 sob o sol amolece e, moldada pelos dedos, cede a mudar-se
em formas sem conta, tornando-se útil pelo próprio uso.
Enquanto se pasma, e se alegra na dúvida e receia enganar-se,
uma e outra vez o amante toca com as mãos nos seus desejos.
Era corpo humano ! As veias tacteadas pelo polegar latejam !
290 Então, o herói de Pafo pronuncia palavras solenes
de gratidão a Vénus. Comprime, por fim, com os lábios
os lábios que já não eram falsos. A donzela sentiu os beijos
que ele dava e corou. E erguendo o olhar tímido para o dele, BJ

vislumbra, ao mesmo tempo, o céu e quem a amava.


295 A deusa esteve presente ao casamento que fora obra sua.
Já nove vezes os cornos da lua se uniram em globo cheio,
quando ela deu à luz Pafo, de quem a ilha tomou o nome.'

'CÍNIRAS era filho de Pafo. Este poderia ter sido contado


entre os afortunados se tivesse permanecido sem filhos.

' Em latim, lumina, neste contexto, tanto significa 'luzes' como 'olhos'. Assím, para um leitor
romano resultaria uma ambiguidade: ela abre os olhos e vê a luz/ vê os olhos de Pigmalião.
254 L I V R O X Mirra .

300 Coisas terríveis cantarei agora ! Ide daqui, filhas ! Ide, pais !
Ou então, se vosso espírito achar deleite nos meus cantos,
não deis crédito a esta parte, e crede que nunca aconteceu.
Mas se acreditardes, fazei fé também no castigo da acção.
Se, porém, a natureza permite que tal coisa se revele,
305 congratulo-me com as gentes do Ísmaro e o nosso mundo,
congratulo-me com esta terra que está longe dessas regiões
que tão ímpio crime produziram. Que a terra da Pancaia
seja rica em amorno e produza canela e o costo e o incenso
suado das árvores, e flores de toda a espécie, se produzir
310 também mirra; a nova árvore não tinha então tanto valor.

'O próprio Cupido nega que as suas setas te tenham ferido,


ó Mirra, e iliba os seus archotes de uma tal acusação.
Foi antes uma das três Irmãs, com um tição do Estígio, r•1

e as inchadas vi'boras que to inspiraram. Odiar o pai é crime;


315 mas a tua paixão é crime maior que odiar. De toda a parte
a nata dos príncipes te deseja; do Oriente inteiro acorrem
jovens a disputar o teu leito nupcial. Escolhe um deles, Mirra,
de entre todos, desde que certo homem não esteja entre eles !
De facto, ela apercebe-se disto e repele a monstruosa paixão.
320 Diz para si: " Onde me leva o meu espírito? O que congemino?
Deuses, imploro, e vós, Pietas e sagrados juramentos dos pais,
interditai-me este acto ímpio e oponde-vos ao meu crime,
caso, porém, isto seja um acto ímpio. É que a Pietas recusa-se
a condenar tal tipo de amor e todos os outros animais se unem
325 sem qualquer distinção. Não é considerado infame a bezerra
ser coberta pelo pai; a filha do cavalo torna-se sua esposa,
o bode copula as cabrinhas que ele gerou, e a própria ave
dá à luz daquele de cujo sémen foi concebida.
Felizes a quem isto é permitido ! Foi o escrúpulo humano
330 que estabeleceu estas leis malignas, e, o que leis invejosas
negam, a natureza concede. Porém, diz-se que houve povos
entre os quais a mãe casava com o filho e a filha com o pai,
que o afecto familiar aumentava com a duplicação do amor.

6 As Fúrias.
Mirra L I V R O X 255

"Pobre de mim, a quem não coube a sorte de ter nascido ali !


m Sou destruída pelo acaso do local. Mas porque remoo isto?
Ide embora, esperanças proibidas ! Ele é digno de ser amado,
mas como pai que ele é. É que se eu não fosse a filha
do ilustre Cíniras, com o próprio Cíniras poderia deitar-me.
Agora, porque já é meu, não é meu; e a própria proximidade
340 é a minha desgraça: se eu fosse uma estranha, estaria melhor.
Bem queria afastar-me para longe, deixar os termos da pátria,
se fugisse ao crime. A malvada paixão retém-me, apaixonada,
para que contemple, cara a cara, Cíniras, e lhe toque e fale,
e o cubra de beijos, se nada mais além me é concedido.
345 Mas que mais do que isto podes esperar, rapariga únpia?
Percebes quantos laços familiares e nomes tu confundes?
Acaso virás a ser rival da tua mãe e amante do teu pai?
Acaso virás a ser dita irmã de teu filho e mãe de teu irmão?
Nem terás medo das irmãs de cabelos de negras serpentes
350 que os peitos culpados vêem em busca de seus olhos e. bocas
com archotes cruéis? Mas tu, enquanto ainda não sofreste
a infâmia no corpo, não a concebas na mente, nem poluas
a lei da poderosa natureza com uma união interdita.
Imagina que o quiseres: a realidade proíbe-o. Ele é virtuoso
355 e consciente da moral - oh ! , se ele tivesse igual desatino ! "

'Assim dissera. A multidão de dignos pretendentes fazia


Cíniras hesitar sobre que fazer. Procura saber da boca dela,
quem é que deseja para marido, citando os nomes um a um.
A princípio, ela cala-se. De olhar absorto no rosto do pai,
360 inflama-se de desejo, e um orvalho tépido inunda os olhos.
Ora, Cíniras, crendo que se tratava de um receio virginal,
proíbe-a de chorar, enxuga-lhe as faces e beija-a nos lábios.
Mirra, por seu turno, alegra-se muitíssimo com isto,
e à pergunta de quem quer para marido, disse: "igual a ti" .
365 Ele regozija-se com a resposta, sem a entender, e retorquiu:
"Que tenhas sempre tal amor filial . " Ao ouvir " amor filial" ,
a jovem baixou o s olhos, consciente da sua culpa.

'A noite ia a meio, e o sono relaxara os corpos t'; dissipara


os cuidados. Mas a filha de Cíniras não consegue dormir.
256 LIVRO X Mirra

310 Está tomada por fogo indomável e retoma os loucos desejos.


Ora desespera, ora deseja tentar. E enche-se de vergonha
e de desejos, e não sabe que fazer. Tal como o tronco enorme
ferido pelo machado, quando já só resta o derradeiro golpe,
hesita para que lado há-de cair e causa pânico a toda a volta,
315 assim o seu espírito, ferido por múltiplos golpes, cambaleia
instável para aqui e ali, e volta-se de um lado para o outro.
Não acha termo nem descanso para a paixão, senão a morte.
Decide-se pela morte. Ergue-se pois, com a firme resolução
de se enforcar, e ao cimo de uma trave ata o seu cinto.
380 "Adeus, querido Cíniras, entende as razões da minha morte" ,
disse. E põe-se a apertar o laço em torno do pescoço pálido.

'O murmurar destas palavras, dizem, chegou aos ouvidos


fiéis da sua ama, que velava junto à soleira da sua pupila.
A velha ergue-se e escancara as portas. Ao ver os preparativos
385 para a morte, põe-se a um tempo aos gritos e a esgatanhar-se
e lacerar o peito; tira o laço do pescoço da jovem e rasga-o.
Só então, por fim, teve vagar para o pranto, teve vagar então
para a abraçar e perguntar-lhe as razões daquela forca.

'A jovem fica em silêncio, imóvel, com os olhos fixos no chão,


390 desolada por a tentativa de morte tão lenta ser surpreendida.
A anciã insiste. Descobrindo os alvos cabelos e os peitos secos,
implora, em nome do berço e do primeiro leite, que lhe confie
o que a faz sofrer. Ela vira as costas à idosa suplicante
e põe-se a gemer. Mas a ama está determinada a descobrir
395 e promete-lhe mais que a sua lealdade. "Diz-me" , pediu,
"e deixa-me ajudar-te. Eu sou velha, mas não sou inútil.
Se é loucura, sei quem cure com fórmulas mágicas e plantas;
se alguém lançou mau-olhado, purificas-te com rito mágico;
se é cólera dos deuses, a cólera aplacar-se-á com sacrifícios.
400 Que mais me vem ao espírito? Decerto, a fortuna e a família
estão bem, como normal: teu pai e tua mãe são ainda vivos. "
A o ouvir 'pai', Mirra arrancou suspiros do fundo do peito.
Mesmo sem imaginar ainda na sua mente qualquer crime,
a ama, porém, pressente que se trata de alguma paixão.
405 Obstinada no seu propósito, suplica-lhe que lhe revele
Mirra L I V R O X 257

o que se passa, seja o que for. No seu velho colo, acolhe-a


em lágrimas e, abraçando-a nos débeis braços, diz-lhe:
"Já percebi: estás apaixonada ! Neste assunto, nada receies,
vou ajudar-te com todo o meu empenho, e jamais o teu pai
410 perceberá. " Ela salta desvairada do colo da ama e afunda
o rosto na almofada, "Vai-te, peço, e condói-te de uma pobre,
envergonhada " , diz. Perante a insistência dela, "Sai daqui,
ou pára de perguntar porque sofro. É crime o que buscas saber. "

'A anciã estremece de horror e estende-lhe as mãos trémulas


415 pela idade e pelo medo. Aos pés da pupila cai suplicante,
ora dirigindo-lhe palavras ternas, ora, caso não lho diga,
assustando-a: ameaça relatar a corda e a tentativa de suicídio,
e promete-lhe os seus serviços se lhe confessar quem ama.
Aquela ergue a cabeça; as lágrimas brotam e inundam
420 o peito da ama. Muitas vezes está prestes a confessar,
muitas vezes retém a voz e cobre com as vestes o rosto
cheio de vergonha. "Oh ! como és feliz, mãe, pelo marido ! "
Mal diz isto, soltou um gemido. Um arrepio gelado penetra
no corpo da ama até aos ossos (agora percebeu ! ) . As alvas cãs,
425 que cobriam a cabeça, ficam de pé, hirtas, os cabelos rígidos.
Muita coisa soma para afastar, se possível, a terrível paixão;
e a jovem sabe que não são falsas as advertências que escuta.
Está, porém, decidida a morrer, se não se possuir o seu amor.
"Vive" , diz a ama, "possuirás o teu . . . " - não ousa dizer "pai";
430 cala-se, e confirma a sua promessa, jurando pela divindade.'

'Celebravam as devotas esposas a festa anual a Ceres,


essa em que, trajando vestes brancas como a neve, ofertam
as primícias das colheitas, grinaldas de espigas, e por nove
noites contam o acto de Vénus e o contacto com homens
435 entre coisas interditas. Entre a multidão estava Cencreis,
a esposa do rei, participando nos sagrados rituais secretos.
Deste modo estava o leito do rei vazio da esposa legítima,
quando a ama encontra Cíniras carregado de vinho.
Com zelo perverso, expõe a paixão verídica com nome falso,
440 e elogia a beleza dela. Ao perguntar ele a idade da jovem,
258 LIVRO X Mirra .

" É igual à de Mirra" , respondeu. Regressando a casa,


com ordens de a levar até ele, disse: "Alegra-te, menina;
vencemos ! " A pobre rapariga não sentiu o coração todo
alegre: o peito entristece-se, tomado de pressentimentos;
445 todavia, fica contente: tais as contradições da sua mente.

'Era a hora em que tudo está em silêncio, quando Bootes


fizera virar a carroça, enviesando o timão, entre os Triões.
Ela chega para o seu crime. A lua de ouro foge do céu,
as estrelas escondem-se encobertas por negras nuvens,
450 a noite fica sem luzes. Cobriste, Í caro, o primeiro, o rosto,
e tu, Erígone, feita deusa pela devotada afeição a teu pai.
Três vezes o pé tropeça, avisando-a para voltar para trás,
três vezes a fúnebre coruja agoira com seu cantar de morte.
Ela, porém, avança, e as trevas e a escura noite atenuam
455 a vergonha; na esquerda agarra a mão da ama, com a outra
tacteia o caminho às escuras. Ao chegar à soleira do quarto,
abre as portas e penetra no seu interior; mas os joelhos
tremem e desfalecem, a cor e o sangue escapam-se,
e a coragem abandona-a à medida que avançava.
460 E quanto mais perto está do crime, mais se horroriza
e se arrepende do atrevimento e deseja poder regressar
sem ser reconhecida. Como hesitasse, a anciã condu-la
pela mão até à beira do alto leito e, entregando-a, disse:
"Toma, Cíniras, ela é tua", e uniu os amaldiçoados corpos.

465 'O pai recebe as suas próprias entranhas no obsceno leito;


dissipa os receios virginais e anima a assustada jovem.
Talvez até pelo termo próprio da idade, chama-lhe "filha" ,
ela chama-lhe "pai " , para que nem nomes faltassem ao crime.
Saiu do quarto já grávida do pai, levando no medonho útero
410 o ímpio sémen e carregando a criminosa concepção.
Na noite seguinte, repete o crime, e nem então lhe pôs cobro.
Até que um dia, por fim, Cíniras, ávido de conhecer a amante
após tantos encontros, aproxima uma luz e reconhece a filha
ao mesmo tempo que o crime. Ficando sem fala pela dor,
475 puxa de uma cintilante espada da bainha, pendurada perto.
Mirra fugiu e, graças às trevas e à escuridão da noite,
Mirra - Vénus e Adónis L I V RO X 259

logrou escapar à morte. Vagueando por extensas planuras,


deixa para trás a palmífera Arábia e os campos de Pancaia.
Por nove vezes voltam os cornos da lua e ela ainda errava,
480 até que por fim, esgotada, descansou na região dos Sabeus.
Muito a custo aguentava o peso do útero. Então, sem saber
o que pedir, entre o medo da morte e a aversão à vida,
resumiu nesta prece: " Se algum deus ouve quem reconhece
os seus erros, oh ! , mereço um funesto castigo e não o recuso.
485 Mas para que estando viva não profane os vivos, e os mortos
estando morta, expulsai-me de um e de outro reino,
transformai-me, negando-me tanto a vida como a morte."

'Há, decerto, um deus que escuta quem reconhece os erros;


pelo menos, a prece final obteve deuses a favor. Pois, a terra,
490 à medida que fala, cobre as pernas; unhas dos pés fendem-se
e espalham-se em raízes oblíquas, suporte de um longo caule,
os ossos fazem-se madeira, embora reste no interior a medula,
o sangue converte-se em seiva, os braços em grandes ramos
e os dedos em ramitos, a pele endurece, fazendo-se casca.
495 Agora, a árvore, crescendo, já envolvera o útero grávido
e submergira o peito e estava a ponto de cobrir o pescoço.
Ela não suportou a demora; e baixando-se ao encontro
do lenho que crescia, mergulhou o rosto debaixo da casca.
E embora tenha com o corpo perdido os sentidos antigos,
500 todavia ela ainda chora, e tépidas gotas jorram da árvore.
Até as lágrimas podem receber honras: destilada do tronco,
a mirra retém o nome da senhora e fica famosa para sempre.'

'ORA, a criança concebida no crime crescera sob a madeira


e buscava caminho por onde sair e deixar para trás a mãe;
505 o ventre grávido ia inchando a meia-altura da árvore.
O peso estica a progenitora; as dores não acham palavras,
nem a parturiente tem voz para poder chamar Lucina.
Qual mulher com dores de parto, a árvore encurva-se
e geme sem cessar, e encharca-se com as gotas que caem.
510 A afável Lucina detém-se junto aos ramos vergados de dor,
estende-lhe as mãos e diz a fórmula propiciadora do parto.
A árvore abre fissuras, e da casca rachada dá à luz
260 L I V R O X VénuHAdónis

fardo vivo. O menino berra; e as Náiades depõem-no


um [71

sobre a erva macia e ungem-no com as lágrimas da mãe.


515 Até a Inveja lhe elogiaria a beleza: pois o seu corpo era tal
como o dos Amores desnudos que se pintam nos quadros.
Mas, para que o que envergam não estabeleça diferenças,
poderias a este pôr a leve aljava ou então retirá-la àqueles.

'O tempo desliza às ocultas, voando sem o sentirmos,


no e nada há mais veloz do que os anos. Ele, filho da irmã
e do próprio avô, há pouco encerrado dentro da árvore,
há pouco nascido, há pouco formosíssimo menino,
é já um rapaz, é já um homem, e já cada vez mais formoso.
E até já encanta Vénus, vingando assim a paixão da mãe.
525 Pois um dia, quando o filho, o da aljava, beijava sua mãe,
raspou-lhe sem querer o peito com uma flecha mais saída.
Ferida, a deusa afasta o filho, mas o golpe era mais fundo
do que parecia, ainda que de início passasse despercebido.

'Conquistada pela beleza do jovem, já não cuida da orla


530 de Citeros, nem demanda Pafo, rodeada de fundas águas,
ou a piscosa Cnido ou Amatunte, prenhe de metais.
Ausenta-se até mesmo do céu; ao céu prefere Adónis.
Não se afasta dele, só anda com ele; e embora habituada
a comprazer-se à sombra e a cuidar da beleza e a ampliá-la,
535 vagueia pelas serras, por bosques, por penedos e espinhos,
de veste arregaçada acima dos joelhos à maneira de Diana.
Atiça os cães e persegue presas não perigosas de caçar:
ora lebres que correm aos saltos, ora veados de altas hastes,
ora gamos; esquiva-se, no entanto, aos possantes javalis
540 e evita os lobos rapaces, os ursos armados de garras,
e os leões que se saciam com a matança do gado.

'A ti, também te avisa para os receares, Adónis, se de algo


podem seus avisos valer. " Sê bravo contra os que te fogem " ,
assim disse, "contra o s audazes a audácia não é segura.

7 Adónis.
Vénus e Adónis - Atalanta e Hipómenes L I V R O X 261

545 Não sejas temerário com riscos para mim, ó jovem,


nem provoques feras a quem a natureza deu armas;
que a tua glória não me custe caro. Nem a juventude,
nem a beleza, nem o que suscita a paixão comovem leões
[e os cerdosos porcos, e os olhos e o coração das feras] .
550 Os ferozes javalis têm raios nas presas recurvas
e a impetuosa raiva dos fulvos leões é tremenda,
raça que eu odeio . " Ao perguntar-lhe a razão, disse ela:
"Vou contar. Pasmarás com o prodígio de um velho crime.
Mas agora estou cansada por este esforço desusado:
555 eis que um choupo oportuno nos convida com a sombra,
e que a relva nos dá um leito; apraz-me descansar contigo
(e descansou) aqui no chão . " E deitou-se sobre a relva
e sobré ele, recostando a nuca no colo do jovem reclinado.
E intercalando beijos no meio das palavras, assim contou:

560 "'TALVEZ ouvisses contar que certa mulher vencia homens


velozes em competições de corrida. Tal rumor não é invenção.
A verdade é que ela os vencia. E nem saberias dizer se era mais
notável pelo valor dos pés, se pela excelência da sua beleza.
Consultando o deus se algum dia teria marido, disse-lhe ele:
565 'De marido não precisas, Atalanta; foge à experiência conjugal.
Mas não escaparás e, embora viva, não serás mais de ti própria'.

'"Aterrada pelo oráculo do deus, vai viver em sombrios bosques


sem esposo e afasta insistentemente a chusma de pretendentes,
impondo uma condição. "Nenhum de vós me possuirá", disse,
510 "antes de me vencer a correr. Competi comigo numa corrida.
Ao mais veloz, esposa e matrimónio serão dados como prémio,
os lentos pagarão com a vida. Esta seja a regra do certame. "
Era desapiedada, d e facto. Mas até com tal condição acorreu
temerária turba de pretendentes: tal o poder da sua beleza !

515 '"A assistir à corrida desigual estava ali sentado Hipómenes.


'Quem buscará esposa a custo de tamanho perigo para si?',
exclamara, e condena a paixão exagerada daqueles jovens.
Mas mal ela tirou as vestes e ele viu a beleza do seu corpo
(tal como o meu ou tal como o teu se viesses a ser mulher),
262 LIVRO X Atalantá e Hipómenes

580 emudeceu. Erguendo as mãos ao céu, 'Perdoai', exclamou,


'vós que há pouco censurei ! Ainda não conhecia o prémio
que buscáveis. ' Com termos elogiosos, inflama-se de paixão
e anseia que nenhum jovem corra mais veloz que ela,
e receia, invejoso. 'Mas porque não tento a minha sorte
585 nesta competição?', interroga-se. 'O próprio deus ajuda
os audazes. ' Enquanto Hipómenes pondera tais coisas
no seu espírito, a jovem voa como se tivesse asas nos pés.
E embora ao jovem da Aónia ela pareça correr tão depressa
quanto a flecha dos Cítios, é a beleza, é ela que mais o enche
590 de espanto. E a corrida até lhe confere uma beleza própria:
a brisa lança para trás a orla da veste, afastando-a dos lestos
pés, os cabelos voam atirados sobre as costas de cor marfim,
ondulam as fitas de bordos coloridos presas aos joelhos,
à brancura juvenil do seu corpo sobrevém um rubor,
595 tal como o toldo de púrpura, estendido sobre um átrio,
impregna a alvura do mármore de uma sombra artificial.
Enquanto o forasteiro tudo observa, a última volta termina.
Atalanta vence e cinge uma coroa festiva na cabeça.
Os vencidos soltam um gemido e sofrem o castigo acordado.

600 "'O rapaz, porém, não desanimou com o sucedido aos outros.
Detém-se no meio deles, e, olhando fixamente para a jovem,
perguntou: 'Porque buscas glória fácil vencendo gente fraca?
Compete comigo. Se a fortuna me fizer o vencedor,
não ficarás ressentida por alguém da tal grandeza te vencer.
605 Pois o meu pai é Megareu de Onquesto e é neto de Neptuno;
sou assim bisneto do rei das águas; e a minha valentia
não fica aquém da minha estirpe. Se, porém, eu for vencido,
terás grande renome, e imortal, por derrotar Hipómenes.'

"'Enquanto assim dizia, a filha de Esqueneu observava-o


610 com olhar doce, e nem sabe se prefere vencer ou ser vencida.
Assim disse: 'Mas que deus, tão hostil aos jovens belos,
o quer destruir, ordenando que busque este matrimónio
com risco da vida tão querida? A meu ver, não mereço tanto !
Nem é a sua beleza que me toca (mas bem podia tocar-me),
6l5 mas ser ainda menino. Não é ele que me perturba, mas a idade.
Atalanta e Hipómenes L I V R O X 263

E quanto a ter tal valentia e um espírito sem medo da morte?


E ele ser o quarto desde o início da estirpe dos mares?
E que ele me ame e tenha em tão grande valor casar comigo
a ponto de arriscar a vida, se lhe for negada pela cruel sorte?
620 Vai-te, forasteiro, se ainda podes ! Foge à boda suja de sangue !
Casar comigo é cruel. Nenhuma outra recusará desposar-te,
e pode dar-se o caso que uma moça bem sensata te deseje.
Mas porque me inquieto por ti, após a morte já de tantos?
Que veja ! Que morra, já que a matança de pretendentes
625 sem conta não o avisou, e que ele vem como farto da vida.
- Mas então ele vai morrer, só porque quis viver comigo?
E sofrerá ele morte imerecida como preço da sua paixão?
A minha vitória trará uma má vontade insuportável.
Mas a culpa não é minha. Prouvera que quisesses desistir,
630 ou então, já que és louco, que fosses mais veloz que eu !
Mas como é virginal o olhar no seu rosto de menino !
Ah! pobre Hipómenes, se não me tivesses visto nunca !
Tu merecias viver. Mas se eu tivesse sido mais afortunada
e o destino inexorável não me negasse o matrimónio,
635 tu serias o único com quem quereria partilhar o leito. '
Disse. E, inexperiente, tocada pela primeira vez pela paixão,
sem saber o que faz, ama, mas não se apercebe que é amor.

"'E já tanto o povo como o pai reclamam a habitual corrida,


quando o rebento de Neptuno, Hipómenes, com voz ansiosa,
640 me invoca: "Peço que a deusa de Citeros assista à empresa,
e que traga auxílio ao fogo da paixão que me instilou . "
E uma aragem benigna trouxe o s doces pedidos até mim.
Fiquei comovida, confesso, e não perdi tempo a levar ajuda.
Há um campo que os nativos designam pelo nome Támaso.
645 É a mais bela parte da terra de Chipre, que me consagraram
os antigos, e estipularam que fosse cedida aos meus templos
como doação. No meio do campo resplandece uma árvore
com sua copa fulva, de ramagens crepitantes de fulvo ouro.
Vindo dali, eu trazia por acaso nas mãos três maçãs de ouro
650 que eu própria colhera. Invisível a todos excepto a ele,
aproximei-me de Hipómenes e expliquei-lhe o uso a dar-lhes.
As trombetas dão o sinal. Da partida saltam ambos curvados,
264 L I V R O X Atalarrta e Hipómenes

e os velozes pés mal tocam ao de leve na superfície da areia.


Julgarias que eles poderiam roçar o mar com os pés a seco,
655 ou correr sobre as espigas erguidas de uma alva seara.
A coragem do jovem redobra com o clamor e o aplauso,
e as palavras dos que gritam: " É agora, Hipómenes, é agora !
É o momento de te aplicares ! Depressa ! Usa toda a tua força !
Não te atrases ! Vais vencer ! " Mas não é certo se tais palavras
660 alegram mais o herói filho de Megareu, se a filha de Esconeu.
Oh ! tanta vez ela se atrasou, embora pudesse já ultrapassá-lo,
e, mirando longamente o rosto, o deixava atrás, contrafeita !
A respiração ofegante, seca, saía-lhe d a boca esgotada,
e a meta ainda estava longe. Foi então que o descendente
665 de Neptuno atirou um dos três frutos da árvore.
A jovem ficou pasmada. Desejosa da reluzente maçã,
desvia-se do trajecto e apanha o ouro que pelo chão rolava.
Hipómenes ultrapassa-a: a assistência ressoa em aplausos.
Com uma rapidíssima corrida, a jovem recupera o atraso
610 e tempo perdido e, mais uma vez, deixa o rapaz para trás.
Com o lançamento da segunda maçã, atrasa-se de novo;
mas de novo alcança e ultrapassa o jovem. Só restava o final
da corrida. "Ajuda agora, ó deusa que me deste esta prenda ! "
Para um dos bordos da pista, donde mais demorasse a voltar,
675 atirou de viés, com o vigor da juventude, o rebrilhante ouro.
A jovem pareceu hesitar se a buscaria ou não. Foi então
que a forcei a apanhá-la e, apanhada, adicionei peso à maçã,
e assim a estorvei tanto pelo peso da carga como pelo atraso.
E para que a minha história não seja maior que a corrida:
6so a jovem ficou para trás; vitorioso, levou-o o seu prémio. 1•1

"'Pois não merecia eu a gratidão dele, ó Adónis, e ser honrada


com incenso? Mas ele, esquecido de mim, nem me agradeceu,
nem incenso me ofertou. Mudo para uma repentina cólera.
Magoada com o desdém, previno, com este exemplo, voltar
685 a ser desdenhada no futuro, e instigo-me contra ambos.

8 Jogo de palavras intraduzível em português. O verbo duco tanto significa 'levar', como, em
determinados contextos, 'casar'; assim resulta simultaneamente 'levou a sua recompensa' e 'casou
com a sua recompensa', ou seja, Atalanta.
Atalanta e Hipómenes - Vénus e Adónis (cont.) L I V R O X 265

"'Passavam diante de um templo oculto numa densa floresta,


que, em tempos, o ilustre Equíon erigira, cumprindo um voto
à Mãe dos deuses; o longo caminho persuadiu-os a repousar. [9]

Foi aí que um inoportuno acesso de desejo sexual, instilado


690 pelo nosso poder divino, se apodera de Hipómenes.
Junto ao templo havia um recanto quase sem luz,
semelhante a uma gruta, com tecto natural de pedra-pomes.
Sagrado por antiga religiosidade, para ali algum sacerdote
trouxera muitas estatuetas de madeira de deuses antigos.
695 Aqui entra e profana o sacrário com acto infame e proibido.
As sacras imagens desviam o olhar, a Mãe, de torres coroada,
hesita se haveria de afogar os criminosos nas águas do Estígio.
O castigo, porém, pareceu-lhe leve. Então, loiras jubas
cobrem as nucas lisas, os dedos recurvam-se em garras,
100 os ombros fazem-se omoplatas, toda a massa se concentra
no peito, a superfície das areias é varrida por uma cauda.
O rosto conserva a ira, em vez de palavras, lançam rugidos,
em vez de num quarto, vivem na floresta. Temíveis a outros,
os leões mordem os freios de Cíbele com dentes submissos.
105 Foge deles, meu querido, e com eles de todo o tipo de feras
que oferecem o peito ao combate e não as costas para a fuga,
para que a tua valentia não seja ruinosa para nós ambos. "

'ASSIM o avisou a deusa; e , atrelando os cisnes, pelos céus


partiu. Porém, a bravura dele vai ao arrepio destes conselhos.
110 Ora, sucedeu que os cães, farejando um rasto fresco, um javali
fizeram sair do seu covil. Aprestava-se ele a sair da mata,
quando o jovem neto de Cíniras o atinge com um golpe de viés.
De imediato, o feroz javali arranca com o focinho curvo a lança
encharcada do próprio sangue, e persegue o rapaz, que foge,
115 espavorido, em ânsia de local seguro. Crava-lhe bem fundo
as presas na virilha, prostrando-o, agonizante, na areia fulva.
Entretanto, não chegara ainda a Chipre a deusa de Citeros,
levada pelos ares no leve carro puxado pelas asas dos cisnes,

'Cíbele.
266 L I V R O X VénuseAdónis

quando, ao longe, reconheceu os gemidos do moribundo.


no Para ali dirigiu as alvas aves. Ao descortinar, do cimo do céu,
o corpo exânime, contorcendo-se na poça do próprio sangue,
lança-se do alto, e ora rasga as vestes, ora arranca os cabelos,
ora lacera o peito com mãos que não eram dignas de o fazer.

" Nem tudo porém ficará sob a vossa lei", diz, queixando-se
m contra o destino. "A recordação da minha dor permanecerá
para sempre, Adónis, e a cena da tua morte será repetida
todos os anos, reproduzindo por imitação a minha mágoa. r101

O sangue será transformado em flor. Pois, se acaso outrora


te foi permitido, Perséfone, transformar um corpo feminino
130 em perfumada hortelã, ser-me-á, então, agora negado rur

transformar o herói filho de Cíniras? " Tal dizendo, borrifou


o sangue com um néctar odorífero. Ao ser por este tocado,
aquele inchou, tal como da lama acastanhada costumam
brotar translúcidas bolhas. E a demora não foi maior
135 que uma hora inteira, quando do sangue desponta uma flor,
com a cor que costumam oferecer as romãs que encerram
os seus grãos sob flexível pele. A sua vida, porém, é breve.
Pois, mal segura e fácil de cair pela excessiva leveza,
arrancam-na os mesmos ventos que lhe dão o nome.' r121

10 As Adónias, festas em honra de Vénus e Adónis, especialmente celebradas em Clúpre.


11 A ninfa Menta.
1 2 Anémona (anemos em grego significa 'vento').
LIVRO XI

CONDUZIA o vate da Trácia, com tais canções enfeitiçados,


os bosques, as mentes dos animais e pedras que o seguiam,
quando eis que, do cimo de um outeiro, as jovens Cícones,
de peitos possessos, cobertos de peles de animais, avistam
Orfeu conjugando o canto com o dedilhar das cordas.
Uma de entre elas, as leves brisas sacudindo-lhe o cabelo,
vociferou: 'Eis ! Eis aqui aquele que nos despreza ! '; e o tirso
arrojou contra os melodiosos lábios do vate, filho de Apolo.
Este, bordando-se de folhas, faz-lhe uma marca sem o ferir.
10 O projéctil de outra é uma pedra: ao ser lançada, a pedra
foi conquistada em pleno ar pela harmonia da voz e da lira,
e caiu de rojo aos pés de Orfeu, como se suplicando perdão
por tão tresloucada ousadia. Porém, os ataques recrudescem
em temeridade. Já não há limites: reina a desvairada Erínia !
15 E todas as armas o seu canto teria amansado, não fora
o imenso clamor e as flautas Berecíntias de tubo encurvado,
as pandeiretas e as palmas e a gritaria do Bacanal abafarem
o som da cítara. Só então, por fim, as pedras se tingiram
do vermelho do sangue do vate, que já não se fazia ouvir.

20 De início, as Ménades apanharam aves sem conta, ainda


paralisadas pela voz do cantor, e serpentes, e o cortejo
de animais silvestres, o galardão da assistência de Orfeu.
Depois, voltam-se para Orfeu, as mãos tintas de sangue,
juntando-se tal como os pássaros sempre que avistam
25 ave nocturna esvoaçando de dia, ou quando no anfiteatro,
de manhã cedo, o cervo condenado a morrer na arena
é presa dos cães. Assim atacam o vate e arrojam os tirsos,
cobertos de verdejante folhagem, feitos não para tal função.
Umas atiram torrões, outras ramos arrancados às árvores,
268 L I V R O XI A morte de Orfeu

30 um grupo delas pedras. E para não faltarem armas ao desvario,


por um acaso, bois revolviam o solo com o arado afundado,
e, não longe, musculosos lavradores cavavam a dura terra,
preparando assim, com muito suor, a próxima colheita.
Ao avistarem o batalhão, estes fogem, largando as armas
35 do seu labor: pelos campos vazios, jazem enxadas dispersas
por todo o lado, pesados ancinhos e compridas picaretas.
Após tudo arrebatarem e despedaçarem ferozmente os bois
de cornos ameaçadores, correm de volta para matar o vate.
Estendendo ele as mãos, pela primeira vez neste instante
40 dizendo coisas inúteis, sem nada lograr enfeitiçar com a voz,
as sacrílegas matam-no. E através daquela boca (ó Júpiter ! )
escutada por pedras e entendida pelos sentidos dos animais
selvagens, a sua alma é exalada e dispersa-se para os ventos.

Choraram-te desoladas aves, Orfeu, e a multidão de animais,


45 e as duras pedras e os bosques que tantas vezes seguiram
os teus cantos. As árvores depuseram a folhagem e, de luto,
choraram-te de cabeça rapada. Até mesmo os rios, diz-se,
incharam com as suas lágrimas, e as Náiades e as Dríades
taparam as vestes de mantos negros e soltaram os cabelos.
50 Os membros jazem por todo o lado. A cabeça e a lira, Hebro,
tu acolhes. E, espantoso ! , ao deslizarem no meio da corrente,
a lira solta não sei que notas pungentes, a língua murmura
exânime algo pungente, algo pungente replicam as margens.
E levadas, por fim, até ao mar, deixam o rio lá da sua região,
55 e vão dar às costas de Lesbos, perto da cidade de Metimna.
Aqui, feroz serpente ataca a cabeça jazente neste areal
estrangeiro e os cabelos, borrifados de gotas de orvalho.
Por último, Febo surge, e, estando já ela prestes a morder,
[trava-a, e as queixadas abertas da serpente em pedra]
60 congela e petrifica as goelas, escancaradas como estavam.
A sombra dele desce para debaixo das terras e reconhece
todos os locais que antes vira. Buscando no Campo dos Pios,
encontra Eurídice e abraça-a nos seus braços desejosos.
Ali passeiam os dois juntos, por vezes lado a lado, ou ela
65 vai diante e ele a segue, ou ele a precede, indo diante dela.
E já sem receio, Orfeu olha para trás, para a sua Eurídice.
A morte de Orfeu -Midas L I V R O XI 269

Este crime, no entanto, Lieu não deixa ficar sem castigo.


Magoado pela perda do vate dos seus rituais sagrados,
de imediato prendeu nos bosques, com retorcidas raízes,
10 todas as mulheres Edonas que tinham assistido ao crime.
No local onde cada uma chegara na fuga, esticou os dedos
dos pés e espetou as suas extremidades na sólida terra.
E tal como o passarinho quando enredou a pata no laço
que o astuto passarinheiro camuflou, sentindo-se preso,
75 debate-se, e, no pânico, aperta mais o laço com a agitação,
assim cada uma delas, imobilizada e pregada ao solo,
fora de si de terror, tentava em vão fugir. Mas retém-nas
uma flexível raiz, que as impede de saltar dali para fora.
Perguntava onde estão os dedos, onde os pés e as unhas,
ao quando vê madeira subir pela macia barriga das pernas.
Ao intentar golpear as coxas com as desoladas mãos,
bate num tronco. E também o seu peito se torna tronco,
tronco são os ombros. Até os braços estendidos julgarias
serem ramos verídicos; e, se o julgasses, não te enganarias.

s5 MAS ISTO não bastou a Baco. Deixando também aquela região,


demanda, com um cortejo melhor, os vinhedos do seu Tmolo,
e também o Pactolo (embora, ao tempo, este não ainda fosse
de águas de ouro, nem motivo de inveja pela preciosa areia).
À sua roda reúne-se o séquito habitual, sátiras e Bacantes.
90 Falta, porém, Sileno. Cambaleando pelos anos e pelo vinho,
uns camponeses da Frígia tinham-no capturado e conduzido
amarrado com grinaldas ao rei Midas, a quem o trácio Orfeu,
com Eumolpo da terra de Cécrops, iniciara nos mistérios.

Logo que reconheceu o amigo e companheiro de culto,


95 contente com a chegada do hóspede, o rei dera uma festa
que durou dez dias consecutivos e outras tantas noites.
E já pela décima primeira vez Lúcifer reunira e retirara lá
do céu o cortejo das estrelas, quando o rei chega radiante
aos campos da Lídia e entrega Sileno ao jovem, seu pupilo.
100 Feliz com o regresso de quem o criara, o deus concedeu-lhe
o poder, grato mas nocivo, de escolher uma recompensa.
Destinado a fazer mau uso da oferta, diz: 'Faz com que tudo
270 L I V R O XI Midas.

em que eu toque com o corpo se transforme em fulvo ouro.'


Líber anuiu à escolha e deu o dom que se revelaria funesto;
105 e ficou entristecido por Midas não ter pedido coisa melhor.

O herói do Berecinto partiu feliz, radiante com o malefício;


tocando aqui e ali, põe à prova a credibilidade da promessa.
[Crendo a custo em si, na folhagem baixa, um verdejante]
ramo arrancou a uma azinheira: o ramo tomou-se ouro.
no Ergue uma pedra do chão, e a pedra empalideceu em ouro.
Toca também a terra: com o poderoso toque, a terra faz-se
uma pepita de ouro. Colheu então espigas secas de Ceres:
a colheita era de ouro; apanha da árvore uma maçã e agarra-a:
dirias ser uma prenda das Hespérides. Se toca com os dedos
m nos altos umbrais das portas, os umbrais parecem rebrilhar.
Até mesmo quando ele lavava as mãos em límpida água,
a água a escorrer-lhe das mãos teria enganado Dánae.
A custo contém em si as suas expectativas, imaginando
tudo de ouro. No meio da sua alegria, os serviçais põem
120 a mesa com pilhas de iguarias, sem faltar o cereal torrado.
Ora, então, na verdade, se ele tocara com a mão direita
nos presentes de Ceres, as ofertas de Ceres endureciam;
e se se aprontava a rasgar a comida com dentes ávidos,
ao tocar com o dente, uma lâmina fulva recobria a comida;
125 e se misturava o autor daquela sua prenda com água pura,
poderias ver o ouro liquefeito a escorrer-lhe da boca.

Atónito com a inédita desgraça, rico e também miserável,


anseia escapar à riqueza e odeia o que há pouco desejara.
Abundância alguma alivia a fome, a seca sede queima-lhe
lJo a garganta, e é torturado, como merece, pelo ouro já odioso.
Estendendo as mãos e os resplandecentes braços para o céu,
'Perdoa-me, Leneu, meu pai ! Cometi um erro ! ', exclamou.
'Amerceia-te de mim, suplico, tira-me esta maldição tão bela.'
A vontade dos deuses é clemente: ao reconhecer ter pecado,
135 Baco restituiu-o ao que era antes e desfaz o dom, concedido
para cumprir o acordado. 'Para não ficares coberto do ouro
que desejaste mal', diz, 'vai até ao rio vizinho à grande Sardes,
caminha pelo cimo da escarpada margem em sentido contrário
Midas e as orelhas de burro - Febo e Pã L I V R O X I 271

ao deslizar da correnteza, até chegares à nascente do córrego.


140 Aí, mergulha a cabeça e o corpo na fonte espumosa, onde ela
mais abundante jorrar e, ao mesmo tempo, lava o teu crime. '
O rei obedeceu e pôs-se sob a torrente: o poder de transformar
em ouro tingiu o rio e passou do corpo humano para as águas.
E ainda hoje os campos, absorvendo a semente do antigo veio,
145 são duros pelo ouro e, com a terra encharcada, amarelentos.

ODIANDO as riquezas, passou a habitar em bosques e campos,


venerando Pã, aquele que mora sempre nas grutas dos montes.
Mas a inteligência permanece obtusa, e, no peito, a mente tola
viria a causar de novo mal ao dono, como já uma vez fizera.

150 CoNTEMPLANDO o mar até longe, ergue-se o escarpado Tmolo,


de declives íngremes, bem alto. Estendido por duas encostas,
daqui termina junto a Sardes, dali perto da pequena Hipepes.
Um dia, aqui tocava Pã uma melodia ligeira na flauta de canas
unidas com cera, ufanando-se da canção às mimosas ninfas,
155 quando ousou apoucar os cantos de Apolo perante os seus.
Assim foi parar à competição desigual, sendo Tmolo o juiz.
O velho juiz sentou-se na sua montanha e afasta as árvores
das orelhas; a cabeleira verde-azulada fica apenas cingida
de um carvalho, e à volta das cavas frontes pendem bolotas.
160 Observando o deus dos rebanhos, disse: 'Da parte do juiz
não há razão para demora.' Aquele toca a flauta campestre,
e a melodia bárbara encanta Midas (que, por acaso, assistia,
quando ele se pôs a tocar) . Depois dele, o sacro Tmolo virou
o rosto para o rosto de Febo; o seu bosque seguiu a sua cara.
165 Este, com a cabeça loira cingida pelo louro do Parnaso,
varre o chão com o manto tingido da púrpura de Tiro,
sustém na mão esquerda a lira toda inscrustada de jóias
e marfim da Índia; a mão direita agarra no plectro.
A própria pose era de artista. Então, com o douto polegar
no faz vibrar as cordas. Cativado pela doçura do som, Tmolo
ordena a Pã que baixe a flauta de canas perante a cítara.

TODOS aprovam o juízo e a sentença do sagrado monte.


Porém, apenas a voz de um só, Midas, a critica e declara
272 L I V R O X I Midas (cont.) - Laomedonte e a fundação de Tróia

injusta. Ora, o deus de Delos não consente que orelhas


175 tolas conservem a forma de orelhas de seres humanos:
estica-as em comprimento e cobre-as de pêlos cinzentos,
fá-las flexíveis na base e dá-lhes o poder de se moverem.
Todo o resto é humano, só esta parte do corpo é punida:
passa a usar orelhas de um burrico de vagaroso caminhar.
180 [Ele, é certo, deseja ocultá-las, pelo vergonhoso opróbrio,]
e intenta cobrir as têmporas com um turbante de púrpura. [IJ

Mas um aio, habituado a cortar-lhe com navalha o cabelo


quando estava comprido, viu-as. Embora não se atrevesse
a revelar a deformidade que vira, ansiava expô-la aos ares.
185 E não conseguindo já calar-se mais, afastou-se e cavou
um buraco no chão. Em voz baixa, conta o tipo de orelhas
que vira no senhor, sussurrando para dentro do buraco.
Tapando-o com terra, enterra o segredo que revelara,
e, uma vez coberto o buraco, afasta-se dali em silêncio.
190 Eis que ali desata a brotar um denso canavial de trémulas
hastes. E, passado um ano, o canavial, mal ficou crescido,
denunciou o plantador: é que, movido pelo suave Austro,
diz as palavras enterradas e denuncia as orelhas do senhor.

TENDO-SE assim vingado, o filho de Latona partiu do Tmolo.


195 Viajando pelo límpido ar, aterrou no lado de cá do estreito
mar de Hele, a filha de Néfele, nas terras de Laomedonte.
À direita do Sigeu e à esquerda das águas fundas do Reteu,
havia um antigo altar consagrado ao Tonante Panonfeu. [lJ

Daqui vê que Laomedonte começara a construir os muros


200 de Tróia, uma nova cidade, e que a enorme empresa crescia
com trabalhos penosos, exigindo não pequenos meios.
Enverga então forma mortal, e com o pai do inchado mar,
o portador do tridente, edifica para o soberano da Frígia DJ

os muros, acordando pelas muralhas uma soma de ouro.


205 O obra estava de pé; mas o rei nega ter prometido pagar,

1 A mitra é uma peça de vestuário que cobre a cabeça, de proveniência oriental, uma espécie de
turbante preso sob o queixo.
2 Júpiter, na qualidade de senhor e todos os oráculos.
3 Neptuno.
Laomedonte - Peleu e Tétis L I V R O X 1 27 3

e, cúmulo da perfídia, às mentiras soma mesmo o perjúrio.


'Não ficarás impune ! ' exclamou o regente do mar; e todas
as suas águas desviou contra as praias da avara Tróia.
Transforma as terras, dando-lhe o aspecto de mar, arrebata
210 aos lavradores os bens e submerge os campos nas ondas.

E o castigo não foi bastante: também a filha do rei ele exige [4 1

para um monstro marinho. Acorrentada a um duro penedo,


é salva por Alcides. Reclama este a recompensa prometida, [51

os cavalos acordados. Negado o prémio por tamanho feito,


215 o herói conquista as muralhas de Tróia, duas vezes perjuras.
Vindo na expedição, nem Télamon partiu sem recompensa:
é-lhe dada Hesíone e ele fê-la sua. Quanto a Peleu, este era
já ilustre por ter desposado uma deusa, e não se ufanava ['l

mais do nome do avô que o do sogro: pois se não coubera


220 só a um ser neto de Júpiter, só a um coubera esposa divina.

DE FACTO, a Tétis dissera o velho Proteu: 'Deusa das ondas,


concebe um filho. Serás mãe de um jovem que as façanhas
do pai superará em valorosos feitos e será dito maior que ele.'
E para que o mundo não tivesse nada superior a Júpiter,
225 embora não fossem mornas as chamas que sentira no peito,
Júpiter escapou-se ao matrimónio com a marinha Tétis,
e ordenou ao neto, filho de É aco, que tomasse o seu lugar [71

nos seus desejos e fizesse amor com a donzela dos mares.

Há uma enseada na Hemónia, arqueada em forma de foice,


230 cujos braços avançam mar adentro. Seria um porto, se mais
funda fosse a água; o mar mal cobre a superfície da areia.
A praia é dura e compacta: não guarda marcas de pegadas,
não estorva o andar, nem cede sob um tapete de algas.
Ao pé há uma mata de murta, pejada de bagas bicolores;
235 a meio, uma gruta, não sei se natural se feita por arte humana

4 Hesíone.
5 Hércules, neto de Alceu; a recompensa são os cavalos que Zeus dera ao avô de Laomedonte,
por o ter ajudado no rapto de Ganimedes.
6 Peleu, irmão de Télamon, desposa Tétis, filha de Nereu.

7 Peleu.
274 L I V R O X I Laoniedonte - Peleu na corte de Céix

(talvez mais por arte humana) . Para aí tantas vezes vinhas,


ó Tétis, montando um golfinho com seus arreios, desnuda.

Foi aí que, quando dormias toda tolhida pelo sono, Peleu


te apanhou. E, ao recusares, embora te tentasse com preces,
240 tenta forçar-te, enlaçando o teu pescoço com os dois braços.
E não recorresses às tuas habituais artes, transformando-te
sempre em formas diversas, ele alcançaria o ousado intento.
Mas tu agora eras ave (ele, porém, continua agarrado à ave);
agora eras pesada árvore (ferrado à árvore ficava Peleu) .
245 A terceira forma foi a de um tigre listado. Com esta forma,
assustado, o filho de Éaco soltou os braços do teu corpo.
Então, reza aos deuses do mar, derramando sobre as águas
vinho, e com vísceras de um animal e o fumo de incenso,
até que o adivinho de Cárpato, lá das profundezas do mar,
250 assim diz: 'Filho de É aco, obterás a boda que tu desejas.
Quando ela vier repousar e adormecer na rochosa gruta,
basta que a ates, sem ela se aperceber, com cordas e nós
bem apertados. E não te engane ela com cem formas falsas:
prende tudo o que ela seja até que retome a forma inicial.'

255 Isto dissera Proteu; e escondeu então o rosto no mar,


deixando as ondas deslizarem sobre as palavras finais.
Já o Titã descaía e estava a chegar ao mar da Hespéria
com o carro a descer, quando a bela Nereide sai do mar
e entra no seu leito habitual. Ainda mal Peleu prendera
260 o seu corpo virginal, esta desata a mudar de forma,
até que sente o seu corpo firmemente agarrado
e os braços bem esticados, um para cada lado. Por fim,
soltou um gemido. 'Não venceste sem ajuda divina', diz;
e expõe-se como Tétis. Assim rendendo-se, o herói abraça-a
265 e obtém o desejo, engravidando-a do grandioso Aquiles.

AFORTUNADO era Peleu pelo filho, afortunado pela esposa.


A ele tudo calhara venturoso, se não contares com o crime
de ter degolado Foco. Sendo culpado do sangue do irmão,
fora banido da casa paterna e acolhido na terra de Tráquin.
210 Aqui, governava o reino, sem violência e sem matança,
Peleu e Céix - Dedálion e Quíone L I V R O X I 275

um rebento de Lúcifer, Céix, que carregava no rosto


o brilho do pai. Naquele tempo, desolado, bem diferente
do que costumava ser, chorava ele a perda de seu irmão. [•J

Quando ali chegou, cansado dos cuidados e da viagem,


215 o filho de É aco entrou na cidade com poucos camaradas,
deixando os rebanhos de ovelhas e as manadas que trazia
consigo num vale umbroso, não longe daquelas muralhas.
Quando lhe foi concedido entrar no palácio do rei, de mão
suplicante, empunhando ramo de oliveira envolto em lã,
2ao informa quem era e de quem era filho; oculta só o crime,
e mente sobre as razões do exílio; pede se o pode ajudar
na cidade ou no campo. Por seu turno, em tom gentil, diz
assim o de Tráquin: 'Até para a gente comum os meus bens
estão disponíveis, Peleu, e inospitaleiro o nosso reino não é.
2s5 A esta nossa natureza tu somas motivos ponderosos: nome
ilustre e Júpiter ser teu avô. Não percas tempo com preces.
Terás tudo o que pedes. Seja o que for que vejas, reclama
para ti uma parte. E prouvera que visses coisas melhores ! '
E pôs-se a chorar. Peleu e os companheiros perguntam-lhe
290 a razão que causara tamanha mágoa. Ele assim lhes disse:

'JULGAIS, porventura, que este pássaro, que vive da rapina


e que é o terror de todas as aves, sempre teve penas.
Ora ele foi um homem; já então (tão constante é o seu feitio) ,
era belicoso e feroz na guerra, sempre disposto à violência.
295 O seu nome era Dedálion; o pai de quem nasceu era aquele
que acorda a Aurora e que é o último a abandonar o céu.
Sempre cultivei a paz. O meu cuidado sempre foi a família
e manter a paz; ao meu irmão deliciavam as cruéis guerras.
A sua bravura subjugou reis e povos, e essa mesma bravura
300 ainda hoje persegue, metamorfoseada, pombas em Tisbe.

Nascera-lhe uma filha, Quíone, de deslumbrante beleza.


Aos quatorze anos, em idade de casar, mil pretendentes teve.

8 Dedálion.
27 6 L I V R O XI Dedálíon e Quíone

Ora sucedeu que um dia regressavam Febo e o filho de Maia,


aquele da sua dilecta Delfos, este do cume do seu Cilene,
305 quando a viram os dois juntos, juntos se abrasaram de amor.
Apolo adia as esperanças da paixão para a noite próxima,
mas o outro não tolera demoras: com a vara que traz o sono
toca nos lábios da virgem. Com o poderoso golpe, ela deita-se,
sofre a violência do deus. A noite borrifara o céu de estrelas,
310 quando Febo se disfarça de velha e colhe o prazer já roubado.
Quando a gravidez, já madura, completou o tempo devido,
nasce Autólico, rebento matreiro da estirpe do deus
dos pés alados, engenhoso em todas as acções ardilosas,
que tinha o costume de fazer do preto o branco
3 15 e do branco o preto: não desmerecia das artes de seu pai.
De Febo nasce Filámon (pois ela dera à luz dois gémeos) ,
famoso pelo cantar d a sua bela voz e o som d a cítara.

Na verdade, que proveito lhe trouxe ser mãe destes dois,


e ter seduzido dois deuses, ter nascido de um bravo pai
320 e de brilhante avô? Pois a glória não é para muitos nociva?
Para ela foi, sem dúvida, nociva, pois pretendeu ser superior
a Diana e criticou a beleza da deusa. Movida por feroz ira,
disse-lhe esta: "Então ganharei o teu agrado pelos actos. "
Sem mais demoras, retesou o arco e disparou uma flecha
325 com a corda, trespassando-lhe com a seta a língua culpada.
A língua emudece, a voz e palavras que tentava não saem;
esforçando-se por falar, a vida deixou-a junto com o sangue.
Então, tendo na alma a dor a de um pai, abracei-a desolado,
e disse palavras de consolo a meu irmão, tão devotado a ela.
330 O pai recebeu-as tal como o rochedo recebe os murmúrios
do mar, e pranteia convulsivamente a filha que perdeu.
Quando a viu a ser cremada, por quatro vezes saltou
para se lançar no meio da pira; quatro vezes repelido,
entrega-se desvairado à fuga, tal como se lança o bezerro
335 por onde não há caminho, de cabeça baixa, cravejada
dos ferrões dos zangões. Já então me pareceu que corria
mais do que era humano: julgarias que os pés tinham asas.

Deste modo escapou a todos. E, com o desejo de morrer,


chega velozmente ao cume do Pamaso. Apolo condoeu-se,
Dedálion - O lobo de Peleu L I V R O X 1 277

340 quando viu Dedálion atirar-se do cimo de um penhasco.


Converteu-o em ave, que ficou a pairar com as súbitas asas,
e deu-lhe um bico adunco e unhas recurvas como ganchos,
e a coragem de outrora e forças superiores ao seu corpo.
É agora o gavião, nada justo com ninguém, cruel com todas
3<5 as aves e, por causa do seu sofrimento, faz os outros sofrer.'

NARRAVA o filho de Lúcifer estas coisas assombrosas


sobre o irmão, eis que se precipita a correr, louco de pressa,
esbaforido, o guardador do rebanho, Onetor da Fócide,
e grita: 'Peleu, Peleu ! Sou mensageiro de grande desgraça ! '
350 E Peleu ordena-lhe que conte, qualquer que seja a notícia.
[0 de Tráquin fica em suspenso de medo, a boca trémula.]

Ele assim diz: 'Eu levara os bois cansados até à curva praia,
quando o Sol, chegado ao ponto mais alto, a meio do giro,
avistava tanto caminho à frente quanto o que via atrás de si.
355 Alguns dos meus bois ajoelharam-se sobre a areia fulva
e deitaram-se, contemplando as largas extensões do mar;
outros erravam de um lado para o outro em vagoroso passo,
outros ainda nadavam com pescoço levantado fora de água.
A beira-mar há um templo, nem luzente de mármore ou ouro,
360 mas oculto na penumbra de densos troncos de bosque antigo.
Habitam-no Nereu e as Nereides (que estes eram os deuses
do templo dissera um pescador, secando as redes na praia).
Junto a ele havia um sapal, coberto de densos salgueiros,
sapal que a água do mar formara, ao ficar ali estagnada.
365 Dali, com enorme estrondo e fragor, sai do matagal palustre
uma monstruosa fera, um lobo. Tudo aterroriza à sua volta,
as mandibulas faiscando, cobertas de espuma e de sangue
ressequido, os olhos raiados de uma labareda rubra.
E ainda que se enfureça tanto pela raiva como pela fome,
no ele é mais feroz pela raiva: é que não cuida em pôr termo
ao jejum e à sua atroz fome com a chacina de uns bois,
mas fere a manada toda, todos arrasa com sanha inimiga.
Feridos pelas letais dentadas, também alguns de nós
são mortos, defendendo-nos. A costa e as ondas vizinhas
375 e os sapais, retumbando mugidos, ficam tintos de sangue.
278 L I V R O XI O lóbo de Peleu

Perder tempo é fatal, o caso não permite hesitações !


Antes que tudo se perca, vamos todos para lá! Às armas !
Empunhemos as armas e lancemos um ataque conjunto ! '

Assim dissera o vaqueiro. Mas a desgraça não abalou Peleu.


isa Lembrado do seu crime, deduz que fora a Nereide a enviar 1•1

este mal, por oferenda ao defunto Foco, o filho que perdera.


Que os homens enverguem as armaduras e empunhem
as armas, ordena o rei do Eta. E aprontava-se a ir com eles, u01

quando Alcíone, a sua esposa, despertada pelo alvoroço,


is5 salta da cama; o cabelo, ainda não totalmente arranjado,
solta-o, descomposto. Lançando-se ao pescoço do esposo,
suplica-lhe com palavras e lágrimas que envie auxílio,
mas sem ele, e que, numa só, salve as suas duas vidas.
Diz-lhe o filho de Éaco: 'Põe de parte o receio, ó rainha, 1111

J9o belo de amor marital. Estou grato pelo que prometestes,


e decidi não tomar as armas contra tão insólito monstro.
Devemos rezar à deusa do mar.' Havia ali uma torre alta
com uma fogueira no topo, local grato às naus exaustas.
Lá acima sobem eles. Contemplam, gemendo, os bois
J95 jazendo na praia e o selvático devastador com o focinho
ensanguentado, o longo pêlo encharcado em sangue.
Depois, estendendo as mãos para a orla do mar aberto,
Peleu suplica à azulada Psâmate que ponha cobro à ira
e lhes acuda. Às palavras do filho de É aco, suplicante,
400 ela não cede; mas Tétis implorou em nome do esposo
e obtém dela o perdão. Porém, o lobo, chamado de volta
da cruel matança, não pára, excitado pelo doce sangue,
até que, ferrando-se à cerviz de bezerra esfrangalhada,
se transformou em mármore. Ele conservou o corpo
405 e tudo mais, excepto a cor; só a cor da pedra denuncia
que ele já não é um lobo, que já nada há nele a temer.

Mas o destino não permite que o banido Peleu se fixe


nestas terras. Vagueando, o exilado chega aos Magnetes;
e ali, Acasto da Hemónia purifica-o do crime de morte.

9 A nereide é Psâmate.
1 º Céix.
1 1 Peleu.
Céix e Alcíone L I V R O X I 279

410 ENTRETANTO, transtornado pelo assombroso caso do irmão


e pelos que se seguiram, com o coração cheio de angústia,
Céix apronta-se a ir até ao deus de Claro, a fim de consultar
o sacro oráculo, consolo dos homens: pois o sacrílego Forbas
e os Flégios faziam a viagem ao templo de Delfos impossível.

415 Antes de partir, porém, ele informou-te, fidelíssima Alcíone,


da sua decisão. De imediato, a esta o frio tomou a medula
dos ossos, a palidez, de cor idêntica à do buxo, cobriu-lhe
o rosto, as faces molharam-se de lágrimas derramadas.
Três vezes tenta falar, três vezes banhou o rosto com o choro.
420 Entrecortados por soluços, tais queixumes de devota esposa
lançou: 'Que mal fiz eu, meu amor, para mudares de ideias?
Onde estão aqueles cuidados que antes tinhas por mim?
Poderás tu, sem cuidados, partir, abandonando Alcíone?
Já te apraz longa viagem? Já te sou mais querida longe de ti?
425 Ao menos, a viagem, julgo eu, é por terra. Ficarei só a sofrer,
não terei também receio: os cuidados ficarão isentos de medo.
São o mar e a funesta visão das águas que me causam terror.
Vi, há pouco, na praia pranchas de madeira esfrangalhadas,
e muitas vezes li nomes de homens em túmulos sem corpo.
430 E que não aflore ao teu espírito aquela ilusória confiança
por teu sogro ser filho de Hípotes, esse que retém no cárcere [l2J

os poderosos ventos e que, quando quer, acalma os mares.


Pois uma vez que os ventos, libertados, se apoderam do mar,
nada lhes é interdito: a terra inteira fica à sua mercê, e do mar
435 a superfície toda. Maltratam até as nuvens do céu e, colidindo
violentamente uns contra os outros, fazem saltar rútilos fogos.
Quanto mais os conheço (conheço-os bem: muitas vezes os vi,
desde pequena, na casa de meu pai) , mais os julgo temíveis.
Mas, se súplica alguma pode alterar o teu propósito,
440 meu querido esposo, e estás absolutamente decidido a viajar,
leva-me então contigo. Decerto seremos açoitados juntos
pelas ondas e só recearei o que sofrer. Juntos enfrentaremos
o que vier a acontecer, juntos iremos sobre os vastos mares.'

12 Éolo.
280 L I V R O XI Céix'e Alcíone

Com tais palavras, com as lágrimas da filha de Éolo, o marido,


445 filho de astro, comove-se: a chama de amor não era menor.
Contudo, não quer renunciar à planeada viagem por mar,
nem quer levar Alcíone a participar em tão grande perigo.
Responde muitas coisas para tranquilar o coração receoso,
mas nem assim a convence. Acrescenta ainda estas palavras
450 para a acalmar, as únicas que fizeram a amada resignar-se:
'Qualquer demora é para nós longa, sem dúvida. Mas juro-te
pelas chamas de meu pai que, se os fados me permitirem,
hei-de voltar antes que a lua encha duas vezes o seu disco. '
Quando com tal promessa lhe deu esperanças d e regresso,
455 logo dá ordens para trazerem do estaleiro a nau de pinho,
a lançarem à água e apetrecharem com equipamento devido.
Ao ver isto, como que pressentindo o que viria a acontecer,
de novo Alcíone sentiu um calafrio. Desfez-se em lágrimas
e abraçou-se a ele. Por fim, infelicíssima, em tom lastimoso,
460 'Adeus', disse; e caiu redonda no chão, inanimada.

Ora, ainda Céix buscava pretextos de demora, já os jovens,


em filas gémeas, puxavam os remos contra o robusto peito,
e rasgavam as águas com golpes ritmados. Ela levantou
os olhos húmidos e, estando o marido de pé na popa
465 recurva, agitando a mão e a fazer-lhe sinais, primeiro ela
vê e devolve-lhe os acenos. Quando a terra ficou para trás
e os olhos já não são capazes de reconhecer o rosto dele,
segue com o olhar, enquanto pode, a nau de pinho que foge.
Mal se afasta tanto que, devido à distância, não a podia ver,
410 discerne porém ainda as velas ondulando do alto do mastro.
Mas quando nem as velas avista, busca, angustiada, o quarto
vazio e lança-se na almofada. A almofada e o leito renovam
o pranto a Alcíone: recordam que parte de si está ausente.

Tinham saído do porto, e as brisas agitavam as enxárcias.


475 Os marinheiros voltam os remos e deixam-nos pendentes
no costado, içam a verga para o topo do mastro, e do mastro
desfraldam as velas todas, a receber as brisas que sopravam.
Sulcava o navio a superfície da água, mais ou menos a meio
da sua viagem, e longe estavam as terras de ambos os lados,
Céix e Alcíone L I V R O XI 281

480 quando, ao cair da noite, o mar começa a embranquecer


com ondas inchadas, e o impetuoso Euro se põe a soprar
com mais violência. 'Arriai a verga lá do alto, já ! ', berra
o comandante, 'E na verga ferrai a vela toda ! ' , assim
ordena. Mas rajadas de vento frontais retêm a ordem,
485 e o fragor do mar não permite escutar uma só palavra.
Por iniciativa própria, uns correm a pôr os remos a salvo,
outros a reforçar o casco, outros a negar ao vento as velas.
Este vaza a água das ondas e lança o mar de volta ao mar;
aquele arrebata a verga. E ao tal fazerem em polvorosa,
490 a borrasca recrudesce, terrível, e de todo o lado os ventos
ferozes travam batalha e revolvem as águas indígnadas.
O próprio comandante do navio apavora-se e confessa
não saber qual a posição, o que deva ordenar ou proibir.
Tal a dimensão do desastre, tão superior ao seu saber!

495 Ouvem-se homens a berrar, cordas a estrugir, as ondas,


pesadas pelo choque de ondas, a ribombar, o éter a troar.
O mar eleva-se com as vagas e parece atingir o nível do céu,
e tocar com os seus salpicos o manto de nuvens sobre ele.
E ora quando revolve as fulvas areias do fundo, a sua cor
500 é idêntica a esta, ora é mais negra que as águas do Estígio;
por vezes fica raso e torna-se branco da ressoante espuma.
Também a nau de Tráquin é arrastada por tais alternâncias.
Ora do alto, como se do cimo de uma montanha, parece
avistar em baixo os vales e as profundezas do Aqueronte,
505 ora, quando desce e é rodeado pelo mar curvo à sua volta,
parece que, do fundo do abismo, olha lá para o alto do céu.
O casco açoitado pelas vagas solta sem parar um estrondo
enorme, e sob os golpes ressoa tal como quando, por vezes,
o aríete de ferro, ou a balista, sacode e destroça a fortaleza.
510 [Tal como leões ferozes arrebanham forças para a investida
e avançam, dando o peito às armas e às lanças em riste,
assim, mal a vaga se solta e os ventos saltam ao ataque,
a nau subia às alturas e ficava muito mais alta.]
E já as cavilhas cedem, e as junções, despojadas da capa
515 de cera, se abrem, dando passagem às mortíferas ondas.
282 L I V R O X I Céix Alcíone
e

E eis que as nuvens rebentam e desaba copiosa chuvada.


Julgar-se-ia que o céu inteiro tinha descido sobre o mar,
e que o mar inchado subira até às regiões do céu.
As velas encharcam-se com a bátega; com as ondas celestes
520 misturam-se as águas marinhas. Ao céu faltam os seus fogos:
a negra noite é esmagada por trevas, as suas e as da borrasca.
Estas, porém, faiscantes relâmpagos despedaçam, e dão luz,
e os fogos dos relâmpagos reacendem os fogos das estrelas.
E já as ondas saltam para dentro do oco casco da nau.
525 Tal como um soldado, o mais em destaque na tropa toda,
após ter várias vezes atacado as muralhas da cidade sitiada,
obtém, por fim, o desejo e, inflamado pela paixão de glória,
entre mil homens embora, conquista as muralhas sozinho,
assim, após nove vezes as vagas fustigarem os altos costados,
530 a força da décima onda, erguendo-se mais colossal, desaba
e assalta a esgotada embarcação sem parar, até se lançar
lá dentro, como se nas muralhas de uma nau conquistada.
Ora, parte do mar tentava ainda invadir a nave de pinho,
parte já lá estava dentro. O pânico apodera-se de todos,
535 tal como é a cidade tomada de pânico, quando uns, de fora,
perfuram os muros, e outros, já dentro, os muros ocupam.

O saber esvai-se, os ânimos esboroam-se, e cada onda


que chega parece uma morte que irrompe e neles desaba.
Um não contém as lágrimas, outro está aturdido; este chama
540 felizes a quem funeral aguarda, aquele reza a deus e faz votos,
e implora auxílio, e estende inutilmente os braços para o céu
que não consegue ver. A um vêm ao espírito o irmão e o pai,
a outro, o lar e os filhos, a todos, o que deixaram para trás.
Alcíone angustia Céix, e nos lábios de Céix nada há senão
545 Alcíone. E embora tudo o que quisesse fosse tão-só a esposa,
alegra-se, porém, por ela estar longe. Queria olhar para trás,
para as costas da pátria, e lançar um último olhar à casa,
mas já nem sabe onde fica: em tamanhos remoinhos o mar
referve, e as sombras, trazidas pelas nuvens da cor do pez,
550 ocultam o céu inteiro, e a imagem de noite está duplicada.
Com o assalto do turbilhão de chuva, o mastro despedaça-se,
despedaça-se o leme. Vaidosa dos despojos, a vaga ergue-se
Céix e Alcíone L I V R O X I 283

enrolada, e olha lá do alto as outras vagas, qual conquistador.


E tal como se alguém arrancasse o Atos inteiro ou todo o Pindo
555 do seu lugar e os lançasse no mar aberto, assim esta se lança
de cabeça e desaba, e, tanto pela pancada, como pelo peso,
afunda a nau nas profundezas. Com ela, a maioria dos homens
é levada pela enxurrada esmagadora, e não volta à superfície,
cumprindo o seu destino. Uns agarram-se a partes e bocados
560 esfrangalhados do barco. Ele, Céix, com a mão que costumava
segurar o ceptro, segura-se aos destroços da nave, e invoca
sogro e o pai, oh ! , em vão. Mas é sobretudo o nome da esposa,
Alcíone, que, ao nadar, lhe está nos lábios. É ela que recorda,
que evoca. Anseia por as ondas levarem seu corpo para diante
565 dos olhos dela, para que, já sem vida, mãos amadas o sepultem.
Ao nadar, sempre que as ondas permitem abrir a boca, grita
o nome da ausente Alcíone, e murmura-o às próprias ondas.
Eis que, sobre o meio das vagas, negro arco de água rebenta,
e submerge e afunda a cabeça dele nas ondas estoiradas.
510 Naquela manhã, Lúcifer surgiu enegrecido, de tal modo
que não se conseguia reconhecer. E porque estava impedido
de se ausentar do céu, cobriu o rosto com densas nuvens.

Entretanto, sem saber de tamanha desgraça, a filha de É olo


contava as noites. E já se apressava a preparar as roupas
575 que ele haveria de envergar e as que, quando ele chegasse,
ela usaria; e em vão prometia a si própria o regresso dele.
A todos os deuses, é certo, ela ofertava devoto incenso;
mas, acima de todos, prestava culto a Juno no seu templo.
Vinha até aos altares rezar pelo marido que já não vivia,
580 pedindo para que o esposo estivesse bem, que retornasse
são e salvo, que a ela nenhuma outra mulher preferisse
- de tantos pedidos, apenas este lhe podia ser concedido.
A deusa não aguentou mais tais súplicas por um defunto.
E, a fim de afastar estas mãos poluídas dos seus altares,
585 disse: ' Íris, fidelíssima mensageira das minhas palavras,
dirige-te velozmente até à soporífera morada do Sono,
e ordena-lhe que envie um sonho a Alcíone na forma
do falecido Céix, a contar o que de verdade aconteceu. '
Com tais palavras, Íris enverga u m manto d e mil cores,
284 L I V R O XI Céix e Alcíone (o palácio do Sono)

590 e, marcando o céu com um largo arco, dirige-se, tal


como fora ordenado, à morada real, oculta em nuvens.

PERTO dos Cimérios, há uma caverna de profundos recessos,


uma montanha oca, residência e lar do preguiçoso Sono.
Nela, jamais ao nascer, ou a meio do seu curso, ou ao pôr-se,
595 logra Febo penetrar com os raios. Do chão exalam-se névoas
à mistura com brumas e crepúsculos de luminosidade dúbia.
Ai., ave alguma em vigília, crista na cabeça, canta a despertar
a Aurora, nem é o silêncio rompido pelo ladrar de cães
sobressaltados, nem por ganso, mais perspicaz que os cães.
600 [Não há animal bravio, nem rebanhos nem ramos movidos
pela brisa, nem algazarra humana que solte um só som.]
Habita ali uma quietude muda; mas da base de uma rocha
brota um regato vindo do rio Letes, cuja água murmurante,
deslizando entre o crepitar dos seixos, convida ao sono.
605 Diante da entrada da gruta, florescem férteis papoilas
e incontáveis plantas, da seiva das quais a Noite húmida
colhe a sonolência que borrifa pelas terras na escuridão.
Não há porta alguma em toda a casa, para não soltar
um só rangido ao girar nos gonzos, nem guarda no umbral.
610 Ao centro da gruta, está um leito alto de ébano, de colchão
de penas, tudo de cor negra, coberto de uma colcha escura.
Nele se deita o deus em pessoa, o corpo relaxado, lânguido.
À sua roda, por todo o lado, jazem sonhos vazios imitando
formas várias, tantos quantas as espigas que a seara produz,
615 as folhas que o bosque tem, grãos de areia atirados na praia.

Mal a donzela lá entrou, afastando com as mãos os sonhos


para poder passar, a sagrada mansão iluminou-se do brilho
das suas vestes. Muito a custo, o deus ergueu as pálpebras
que jaziam lentas, pesadas, e deixou-as cair, uma e outra vez,
620 batendo no cimo do peito com o queixo baloiçante.
Por fim, abanou-se a si mesmo; erguendo-se sobre o cotovelo,
quer saber, pois reconheceu-a, a razão da vinda. Ela replicou:
'Sono, repouso de todas coisas, Sono, mais sereno dos deuses,
paz do espírito, que afugentas os cuidados, que confortas corpos
625 esgotados pelas duras ocupações e os restauras para o trabalho,
Céix e Alcíone (o palácio do Sono) L I V R O XI 285

ordena a um sonho, que imite na perfeição formas autênticas,


que vá a Tráquin, cidade de Hércules, com a aparência do rei,
até junto de Alcíone, e faça ver a imagem de um naufragado.
Isto é o que te ordena Juno.' Após cumprir a incumbência,
630 Íris partiu (nem, na verdade, era capaz de resistir mais tempo
à força do sono) : ao sentir a sonolência insinuar-se no corpo,
fugiu dali, regressando pelo arco por onde há pouco viera.

Por seu lado, de entre a multidão de um milhar de filhos,


o pai desperta Morfeu, um verdadeiro artista na imitação
635 de formas. Nenhum outro havia mais hábil a representar
o andar, as feições do rosto, o timbre de uma voz, do que ele.
Junta ainda o trajar e as palavras mais usuais de cada um.
Mas ele só imita seres humanos. É outro que se transforma
em animal selvagem, em ave, em serpente de longo corpo.
640 Os deuses chamam-lhe Í celo, Fobetor chama-lhe a multidão
dos mortais. Há ainda um terceiro, detentor de arte distinta,
Fântaso. Numa ilusão perfeita, este converte-se em terra,
ou pedra ou tronco, todas as formas que carecem de vida.
Uns costumam aparecer de noite a reis e a cabos de guerra,
645 outros vagabundeiam por entre o povo e a plebe.
A estes, o velho Sono ignora-os; e de todos os irmãos
escolhe apenas um, Morfeu, para cumprir as ordens
da filha de Taumante. E relaxado de novo pelo doce torpor,
deitou a cabeça e enfiou-se outra vez sob a espessa coberta.

650 Aquele voa através das trevas, sem que as asas fizessem
ruído algum. E, passado pouco tempo, chega à tal cidade
da Hemónia. Tirando as asas do seu corpo, transformou-se
no aspecto de Céix e, tendo assumido a figura dele, lívido
e de aspecto cadavérico, sem qualquer trapo a cobri-lo,
655 pára junto ao leito da pobre esposa. A barba parece molhada,
dir-se-ia que escorria água a jorros dos cabelos encharcados.
Então, inclinando-se sobre a cama, as lágrimas inundando
o rosto, disse: 'Reconheces tu Céix, ó infelicíssima esposa?
Ou acaso a morte já me desfigurou? Olha: reconhecer-me-ás,
660 mas, em vez do marido, encontrarás o espectro do marido.
De nada me valeram, Alcíone, as tuas preces aos deuses:
286 L I V R O X I Céix e Alcíone

estou morto. Não me prometas a ti, iludindo-te a ti própria.


No mar Egeu, o Austro carregado de nuvens surpreendeu
o navio e, sacudindo-o com colossais rajadas, destroçou-o.
665 As ondas encheram-me a boca gritando em vão teu nome.
Não é narrador pouco fiável que te dá notícia de tal coisa,
não é por meio de vagos rumores que a estás a escutar:
sou eu, o náufrago, e em pessoa, quem conta o meu fado.
Levanta-te, anda ! Entrega-te ao pranto e veste-te de luto !
610 Não me envies para o insubstancial Tártaro sem ser chorado. '
As palavras, Morfeu soma-lhes uma voz que ela pudesse
acreditar ser a do seu esposo; até as lágrimas que vertia
pareciam reais, e até as mãos tinham os gestos de Céix.

No meio do sono, Alcíone desata a gemer e a chorar, agita


675 os braços, buscando o corpo - mas apenas abraça o ar.
Então gritou: 'Pára ! Para onde foges? Iremos os dois juntos ! '
Transtornada pelo som da própria voz e a visão do marido,
desperta. A princípio, olha à volta, a ver se ainda ali estava
quem há pouco lhe aparecera: pois os servos, sobressaltados
680 pelos gritos, tinham trazido luz. Depois, ninguém achando,
golpeia o rosto com as mãos e rasga o vestido sobre o peito,
e fere até o próprio peito. Nem cuida de soltar os cabelos:
arranca-os ! E à ama, que lhe perguntava a razão de tal pesar,
'Já não existe Alcíone alguma, nenhuma mesmo: ela morreu
685 com o seu Céix ! ', disse. 'Poupa-me as palavras de consolo !
Ele morreu num naufrágio. Eu vi-o e reconheci-o, e as mãos
para ele estendi quando ele partiu, na ânsia de o reter.
Era uma sombra, mas a sombra bem visível e verdadeira
de meu esposo. Não tinha, não, se queres saber, o aspecto
690 habitual, nem seu rosto brilhava com o fulgor de outrora.
Foi pálido e nu e com o cabelo ainda encharcado que o vi,
ai de mim ! Ele esteve aqui, coitadinho, olha, aqui neste
mesmo lugar. ' E põe-se a ver se restava algum vestígio.
'Era isto, sim, isto que a alma receava, como se adivinhasse.
695 Por isso, pedia que não me deixasses para seguir os ventos.
Mas decerto eu deveria ter exigido que me levasses contigo,
visto que partias para morrer ! Teria sido melhor para mim
ter ido contigo. De facto, nem teria havido instante algum
Céix e Alcíone L I VR O X I 287

da minha vida longe de ti, nem teríamos mortes separadas.


100 Agora morri sem lá estar, fui joguete das ondas sem lá estar,
e sem mim o mar tragou-me. Terei um coração mais cruel
que o próprio pélago, se fizer algum esforço por prolongar
a vida mais tempo e se lutar por sobreviver a tamanha dor.
Mas não ! Nem lutarei, nem te abandonarei, ó infeliz !
105 Agora ao menos vou contigo. E se no túmulo não for a urna,
ao menos, as letras gravadas unir-nos-ão; e se os teus ossos
não tocarem os meus, ao menos, tocarei teu nome com o meu.'
A dor impede-a de falar mais. O choro convulsivo entrecorta
as palavras, e os gemidos irrompem-lhe do coração aturdido.

110 Era manhã. Abatida, Alcíone sai de sua casa para a praia,
dirigindo-se de novo ao local de onde o tinha visto partir.
E enquanto aí se demorava, enquanto ia dizendo 'Aqui
soltou as amarras; foi nesta praia que me beijou ao partir' ,
enquanto recorda os factos assinalados pelo sítio e o mar
115 contempla, eis que avista nas límpidas águas, lá ao longe,
algo que parecia um corpo. A princípio, estava incerta
do que fosse. Depois, uma onda impeliu-o para mais perto,
e, embora lá longe, era claro que era um corpo. Sem saber
quem era, mas sendo náufrago, comove-se com o presságio,
120 e chora como se por um desconhecido. 'Oh ! pobrezinho ! ', diz,
'quem quer que sejas, e pobre da esposa, se tiveres. ' Trazido
pelas ondas, o corpo está mais perto. Quanto mais fixa o olhar,
cada vez menos e menos é senhora de si. Agora já o corpo
chegara à costa, agora já o vê bem e consegue reconhecê-lo:
m era o marido. ' É ele ! ' exclama, rasgando confusamente tudo
junto: o rosto, e os cabelos, e as vestes. De mãos trémulas
estendidas para Céix, grita: ' É assim, meu amado esposo,
é assim que voltas para mim infeliz?' Junto à rebentação,
,

havia um molhe. Construído por mão humana, quebrava


no a fúria do mar à chegada, e amortecia os ataques das vagas.
Saltou lá para cima. Espantoso como o conseguíu: voava!
E batendo no ar ligeiro com as asas agora mesmo nascidas,
rasava a crista das ondas, pássaro digno de compaixão.
Enquanto voava, a sua boca crepitante, de delgado bico,
135 lançava um grito que parecia triste e cheio de queixumes.
288 L I V R O X I Céix é Alcíone - Ésaco

Quando, na verdade, tocou o corpo silencioso e exangue,


abraçou-se, com as asas recentes, aos membros amados,
e foi em vão que o cobriu de beijos frios com o duro bico.
Se Céix tal sentiu, ou se era pelo movimento das ondas
140 que parecia erguer o rosto, as gentes estavam na dúvida.
Mas ele sentira. Por fim, os deuses apiedaram-se, e ambos
se transformaram em pássaros. Sujeito ao mesmo destino, [IJJ

também então o amor perdurou: nem na condição de aves


os laços conjugais se dissolveram. Acasalam e procriam.
145 Em época de Inverno, ao longo de sete serenos dias,
Alcíone choca os ovos num ninho flutuando no mar.
Nestes dias, as ondas acalmam-se: Éolo aprisiona os ventos
e impede-os de sair, oferecendo aos netos um mar raso.

UM VELHO observava-os a voar juntos sobre o vasto mar.


150 Elogia ele aquela sua paixão, que se manteve até à morte.
Um ao pé dele, ou eventualmente o mesmo, disse então:
'Este que vês' (e indica um merganso de pescoço longo)
'deslizando sobre o mar, movendo as pernas encolhidas,
também é de estirpe real. Os seus ancestres, se percorrer
155 quiseres a sequência completa até ele, foram Ilo, Assáraco,
Ganimedes, que Júpiter raptou, o velho Laomedonte,
e, finalmente, Príamo, a quem couberam os últimos anos
de Tróia. Heitor foi seu irmão; e se não lhe tivesse tocado
um insólito destino nos primeiros anos da juventude,
160 talvez o seu renome viesse a ser não inferior ao de Heitor,
embora a mãe deste tenha sido a filha de Dimas, (l4]
ao passo que É saco nasceu de Alexírroe, às escondidas,
dizem, filha do bicorne Granico, no sopé do umbroso Ida.

'Ele odiava as cidades. Longe do refulgente palácio,


765 vivia nos montes remotos e nos campos humildes,
e só raramente participava nas assembleias em Ílion.
Mas não tendo um coração insensível nem inexpugnável
ao amor, muitas vezes espreitou Hespérie, filha de Cébren,

13 Pássaro da família dos Al cionídeos.


14 Hécuba.
Ésaco L I V RO X I 289

pelos bosques todos. Um dia, avista-a na margem do rio,


110 pai dela, a secar ao sol os cabelos soltos, caídos nos ombros.
Ao ser vista, a ninfa foge, tal como a apavorada corça foge
ao ruço lobo, ou ao gavião o pato do rio, ao ser apanhado
longe do lago que deixara. O herói troiano persegue-a
e acossa-a, ele veloz pelo amor, ela pelo medo veloz.
m E eis que, ao fugir, uma cobra, escondida nas ervas, o pé
lhe morde com o curvo dente, e injecta veneno no corpo.
A fuga acaba junto com a vida. Desvairado, abraça-se a ela,
exanime, e grita: "Oh! arrependo-me de te ter perseguido !
Nunca receei tal, nem vencer-te tinha para mim tanto valor.
1so Nós os dois te matámos, pobre moça. A ferida foi da cobra,
mas a causa veio de mim. Eu sou mais criminoso que ela,
eu que com a minha morte te consolarei da tua morte. "

'Com tais palavras, da falésia, cuja base as roucas ondas


corroíam, despenha-se no mar. Ao cair, Tétis apiedou-se
1s5 e recebeu-o suavemente; e enquanto nadava nas águas,
cobre-o com penas e nega-lhe a desejada morte. Ele,
apaixonado, indigna-se de ser forçado a viver à revelia,
e por a sua alma, ao querer deixar a sua infeliz morada,
ser impedida disso. Ao ganhar súbitas asas nos ombros,
1 90 voa para o alto, e lança de novo o corpo contra as águas.
Penas amortecem a queda. Ésaco atira-se furioso de cabeça
no fundo do mar, e tenta, sem parar, o caminho da morte.
O amor emagrece-o, as pernas entre articulações alongam-se,
o pescoço fica comprido, a cabeça bem distante do corpo.
195 Ama o mar e chama-se merganso, porque mergulha nele.'
LIVRO XII

SEM SABER que Ésaco ganhara asas e estava vivo, o pai, Príamo,
chorava a sua morte. Também Heitor, com seus irmãos, levara
oferendas fúnebres ao túmulo, vazio, com o nome dele inscrito.
Entre os que participaram na triste cerimónia faltara Páris,
ele que logo depois trouxe para a sua pátria uma longa guerra [IJ

com sua esposa raptada; e mil navios conjurados a seguiram,


junto com uma coligação de todos os povos dos Pelasgos.

Ora, o castigo não teria tardado muito, se ferozes ventos


não fizessem os mares intransitáveis, e se a região da Beócia
10 não tivesse retido a armada pronta a zarpar da piscosa Aulis.
Aqui preparavam um sacrifício a Júpiter, segundo uso pátrio,
quando, abrasando-se o velho altar com fogo nele acendido,
os Dánaos viram uma cobra azulada rastejar por um plátano
acima, vizinho ao local do sacrifício que estavam a iniciar.
15 No cimo da árvore, havia um ninho com oito passarinhos.
Estes a serpente abocanha junto com a mãe, que esvoaçava
de roda do que tinha perdido, e engole-os no sôfrego ventre.
Todos ficaram atónitos. Mas o áugure, adivinho infalível,
o filho de Testor, diz: 'Venceremos. Alegrai-vos, Pelasgos ! [iJ

20 Tróia cairá, mas a nossa empresa será longa e trabalhosa';


e interpreta as nove aves como outros tantos anos de guerra.
A serpente, enroscada, como era, nos ramos verdes da árvore,
faz-se pedra; e ainda hoje há lá uma rocha em forma de cobra.

Nereu, porém, continua a revolver as ondas do mar da Aónia


25 e recusa transportar o exército. Há quem julgue que Neptuno

1 Helena.
2 Calcas.
Os Gregos em Áulis - Ifigénia - 0 Rumor L I V RO X I I 291

quer poupar Tróia, pois fora ele a construir os muros da cidade.


Mas não o filho de Testor. Na verdade, ele sabe, e não cala,
que a cólera da deusa virgem deve ser aplacada com sangue
de virgem. Mal o interesse público venceu o dever paternal,
30 e o rei venceu o pai, e Ifigénia, prestes a dar seu casto sangue,
estava de pé, diante do altar, entre os oficiantes em lágrimas,
a deusa cedeu e tapou o olhar de todos com uma névoa. A meio
da cerimónia, do alvoroço do sacrifício e das vozes das orações,
diz-se que ela trocou a jovem de Micenas por uma corça.
35 Assim, quando Diana foi aplacada, com uma morte condizente
mais com ela, e a cólera de Febe se dissipou e, junto com ela,
a do mar, os mil navios zarparam recebendo vento de popa;
e, após inúmeras aventuras, alcançam os areais da Frígia.

No CENTRO do mundo há um lugar situado entre as terras,


40 o mar e as regiões celestes, os limites do tríplice universo.
Dali se avista tudo o que acontece em qualquer sítio, mesmo
no mais distante, e todas as vozes lhe chegam às orelhas ocas.
Mora ali o Rumor. Escolhera casa para si no cimo da cidadela.
À mansão proporcionou entradas sem conta e mil aberturas,
45 mas com portas nenhumas fechou os umbrais: de noite e de dia
permanece escancarada. É toda feita de bronze ressonante:
ela vibra toda, e ecoa as palavras todas, e repete o que ouve.
Lá dentro não há sossego nem silêncio em parte alguma.
Não é, porém, um clamor, mas antes um murmurar baixinho,
50 tal como costumam soar as ondas do mar quando se ouvem
ao longe, ou como o som do troar dos derradeiros trovões
quando Júpiter faz ribombar as negras nuvens.
O átrio formiga de gente; vêm e vão, multidão insubstancial,
e por toda a parte vagueiam milhares de rumores, falsidades
55 à mistura com verdades, e fazem rebolar conversas confusas.
Estes atafulham os ouvidos ociosos com mexericos,
aqueles levam aos outros o que ouviram contar, e a invenção
cresce de tamanho: cada um junta algo novo ao que ouviu.
Ali mora a Credulidade, ali o Erro que age sem pensar,
60 e a Alegria fútil, tal como os angustiados Temores,
e a repentina Sedição, e os Sussurros, de origem incerta.
Dali o Rumor observa tudo o que se passa no céu e no mar
e na terra, e tudo procura inquirir sobre o mundo inteiro.
292 L I V R O X I I Cicno

ÜRA, ele fizera saber que estava a chegar a armada dos Gregos
65 com poderoso exército; e assim, quando o inimigo desembarca
em armas, estavam à sua espera. Os Troianos travam o avanço,
defendem a praia, e, sob a lança de Heitor, pela lei do destino,
és tu, Protesilau, o primeiro a cair. O combate travado custa
caro aos Dánaos, e na matança a bravura de Heitor é conhecida.
10 Também os Frígios se deram conta, à custa de não pouco sangue,
de quão potente era o punho dos Aqueus. E já os areais do Sigeu
se tingiam de rubro, já Cicno, o filho de Neptuno, mil homens
à morte entregara, já Aquiles no seu carro atacava e prostrava
contingentes inteiros com os golpes da sua lança de madeira
15 do Pélion, e buscava nas linhas da batalha ou Cicno ou Heitor,
quando encontra Cicno (Heitor fora adiado para o décimo ano).
Então, incitando os cavalos, de alvos pescoços carregados
pelo jugo, levou o seu carro de guerra na direcção do inimigo;
e, brandindo com o musculoso braço a lança a vibrar,
80 'Quem quer que tu sejas, ó jovem', gritou, 'Leva este consolo
pela tua morte: teres sido chacinado por Aquiles da Hemónia. '
Tal diz o neto de É aco; e a pesada lança voa atrás das palavras.
Mas embora não houvesse desvio no disparo da certeira lança,
não logrou qualquer efeito com sua ponta de ferro: chocou
85 simplesmente contra o peito, como se golpe de lâmina romba.
'Filho de uma deusa' , exclamou o outro, 'pois já te conheço
pelo teu renome, porque te espantas por eu não estar ferido?'
(ele, de facto, pasmava-se) . 'Não é o capacete que vês, de fulvo
penacho de crinas de cavalo, nem o escudo convexo que pesa
90 no meu braço que me protegem; apenas os uso de ornamento.
Pela mesma razão, enverga Marte o armamento. Removamos
toda esta protecção, e ficarei ainda assim sem um só arranhão.
De algo vale ser filho não de uma Nereide, mas sim daquele
que governa o mar inteiro, e mais Nereu e as suas filhas.'
95 Assim disse, e arremessou contra o neto de É aco um dardo,
que foi cravar-se na curvatura do escudo. Perfurou o bronze
e as nove camadas de couro detrás, e só a décima o travou.
O herói arranca-o fora e, com toda a potência do seu braço,
atira de novo um dardo a vibrar. E de novo o corpo fica ileso,
Cicno L I V R O X I I 293

loo sem qualquer ferida. E nem uma terceira lança foi capaz
de beliscar Cicno, que se expunha sem qualquer protecção.

Aquiles inflamou-se de fúria, tal como o touro na vasta arena,


quando investe com terríveis chifres contra o pano vermelho,
provocação para si, e percebe que foi enganado na investida.
105 Examina a lança, para ver se a ponta de ferro não teria caído;
mas à madeira estava bem presa. 'Então é a minha mão', diz,
'que está débil e perdeu de uma só vez as forças de outrora?
Decerto, eu era forte, quando primeiro derrubei de Limesso
as muralhas, ou quando inundei Ténedos e Tebas, a cidade
110 de Eécion, com o sangue dos seus próprios homens,
ou quando o Caíco deslizou rubro com o massacre do povo
da região, e Télefo duas vezes sentiu o labor da minha lança. [JJ

Também aqui, com tantas pilhas de mortos que fiz e que vejo
sobre a praia, a minha mão direita foi poderosa e ainda o é.'
m Disse, e como se não cresse no que em tempos fizera, a lança
atira contra um reles soldado lício defronte, um tal Menetes:
a um tempo, ela trespassa a couraça e, debaixo dela, o peito.
Quando este bateu com o peito moribundo no duro chão,
ele arranca aquele mesmo dardo da ferida ainda quente,
120 e exclama: 'Foi com esta mão, foi com esta lança que venci !
Usarei as mesmas contra ele; seja o resultado o mesmo, peço.'
Tal dizendo, atira-a contra Cicno. A lança de freixo não falha,
inescapável, e atingiu com estrondo o ombro esquerdo;
mas depois ressaltou como de uma muralha ou de sólida rocha.
125 Porém, onde o tinha atingido, viu que Cicno tinha uma marca
de sangue. Aquiles enche-se de alegria. Mas em vão:
não havia ferida alguma, aquele sangue era o de Menetes.

Então, na verdade, lançou-se de cabeça do cimo do carro,


rugindo de raiva, e ataca corpo a corpo com cintilante espada
Bo o inimigo imperturbável, e vê que o gládio perfura o escudo
e o capacete, mas que contra o duro corpo a ponta fica romba.
Não aguentou mais: desviando-lhe o escudo, golpeia-lhe três,

' Télefo uma vez foi ferido pela lança de Aquiles, outra vez foi curado pela mesma lança.
294 L I V R O X I I Cicno - Os Gregos em Áulis (cont.)

quatro vezes a cara e as cavas frontes com o punho da espada.


Quando ele recua, segue-o, persegue-o, confunde-o, atira-se
m sobre ele, estonteado, não lhe dá tréguas. Tomado de pânico,
já diante dos olhos lhe pairam trevas, e, ao recuar, andando
de costas, trava-o um pedregulho, ali no meio do campo.
Por cima dele Aquiles empurra Cicno e, com enorme força,
vira-o e fá-lo cair de costas, atirando-o contra o chão.
140 Depois, pressionando o peito com o escudo e os fortes joelhos,
puxa as correias do capacete, que, comprimidas sob o queixo,
estrangulam a garganta e cortam a respiração e o caminho
do sopro vital. Preparava-se ele para despojar o derrotado,
quando vê a armadura vazia: o deus do mar transformara
145 o corpo num pássaro branco, cujo nome já ele então tinha. [41

ESTA façanha, este combate, trouxe uma trégua de muitos dias;


de ambos os lados pousaram as armas e suspenderam a guerra.
E enquanto as sentinelas guardavam as muralhas dos Frígios,
e enquanto as sentinelas guardavam as trincheiras dos Argivos,
150 eis que chegara o dia festivo em que Aquiles, vencedor de Cicno,
procurava aplacar Palas com o sangue de uma vaca imolada.
Depois de ter depositado as entranhas sobre o altar em brasa,
e de o odor ter penetrado pelos ares e ser aceite pelos deuses,
o ritual consumiu esta parte, o resto foi usado no banquete.

155 Os chefes reclinaram-se nos leitos. Enchem o estômago


de carne assada e aliviam os cuidados e a sede com vinho.
Eles não se deliciam com cítaras, nem canções os encantam,
ou a longa flauta de madeira de buxo, cheia de orifícios.
Passam antes a noite toda a conversar, e a valentia é o tema
160 dos discursos. Narram as batalhas, as do inimigo e as deles,
e encanta-os relembrar à vez, vezes sem conta, os perigos
enfrentados e vencidos. De que, na verdade, falaria Aquiles,
ou de que mais falariam na presença do grande Aquiles?
A conversa recaiu, sobretudo, sobre a sua recente vitória,
165 aquela em que derrotara Cicno. Parecia a todos assombroso

4 Cicnus em latim significa cisne.


Ceneu L I V R O X I I 295

que o corpo do jovem fosse impenetrável a toda a arma,


invulnerável aos golpes, e que tomasse rombo o ferro.

PASMAVA-SE o neto de Éaco, pasmavam-se os Aqueus,


quando Nestor assim diz: 'Na vossa geração, foi Cicno
110 o único que podia desprezar o ferro, a quem golpe algum
conseguia perfurar. Mas eu próprio vi em tempos idos
mil golpes sofrer Ceneu da Perrébia e sair de corpo ileso,
Ceneu da Perrébia, ilustre pelos seus feitos, que habitava
em Ótris. E o caso mais espantoso nele é que ele nascera
115 mulher. ' Com o insólito de tal prodígio, alvoroçam-se
os presentes e rogam que conte. Entre eles, diz Aquiles:
'Vamos, conta, pois estamos todos ansiosos por escutar,
ó eloquente ancião, ó sabedoria do nosso tempo,
quem foi esse tal Ceneu, porque mudou de sexo,
180 em que expedição o conheceste, no auge de que batalha,
quem o derrotou, se, por acaso, o derrotou alguém. '
Então o ancião: ' Embora a minha longa idade s e oponha,
e muito a que assisti nos anos de mocidade se me escape,
são ainda mais as coisas de que me lembro; e nenhuma está
185 tão gravada na mente, entre tantos casos na guerra e na paz.
E se há alguém que, graças a uma longa velhice, pôde ser
espectador de muitos acontecimentos, então eu já vivi
uns duzentos anos; e agora vou no meu terceiro século.

'Cénis era filha de Élato. Famosa pela deslumbrante beleza,


190 era a jovem mais formosa da Tessália. Pelas cidades vizinhas,
e pelas tuas cidades (de resto, era tua conterrânea, Aquiles),
em vão pretendentes sem conta por ela ansiavam e suspiravam.
Porventura até talvez Peleu tivesse tentado fazê-la sua esposa,
se já não lhe tivesse cabido, ou, ao menos, ter sido prometido,
195 o matrimónio com a tua mãe. Cénis jamais chegou a contrair
casamento. Ora, um dia, caminhava numa praia recôndita,
quando foi violada pelo deus do mar (assim dizia um rumor) .
Neptuno, depois de colher o prazer de desflorar uma virgem,
diz: "Qualquer que seja o teu pedido, não receies uma recusa;
200 escolhe o que queres pedir! " (isto é o que diz o mesmo rumor) .
"O ultraje que me fizeste" , diz Cénis, "faz desejar algo grande:
296 L I V R O X I I Ceneu - A batalha entre Lápitas e Centauros

jamais possa sofrer o mesmo. Faz com que não seja mulher,
e ter-me-ás concedido tudo . " As últimas palavras disse-as já
num tom mais grave, que podia passar por voz de homem,
205 como, de facto, já era. Pois já o deus do mar profundo anuíra
ao seu desejo. E concedera-lhe algo mais: que jamais pudesse
ser ferido por golpe algum, ou perecer pelo ferro.
Feliz com a dádiva, partiu; e o de Átrax passa a sua vida
em ocupações masculinas e deambula pelos campos do Peneu.

210 'O FILHO do audacioso lxíon desposara Hipodamia, e convidara �1

os ferozes filhos da Nuvem a participar no banquete, em mesas


dispostas em filas dentro de uma gruta coberta por árvores.
Estavam presentes os chefes da Hemónia, eu próprio lá estive;
e o palácio em festa ressoava com a algazarra confusa da turba.
215 Eis que cantam Himeneu, o átrio enche-se do fumo das tochas,
avança a noiva rodeada de uma caterva de matronas e moças,
ela de deslumbrante beleza. Afortunado chamámos a Pirítoo
por ter tal esposa. Por pouco não nos enganámos no augúrio.
O caso é que, ó Ê urito, ó mais feroz dos ferozes Centauros,
220 o teu coração se inflama, tanto pelo vinho, como pela visão
da jovem, e reina em ti a embriaguez duplicada pelo desejo.
De imediato, reviradas as mesas e destroçado o banquete,
a recente esposa é levada à força, arrastada pelos cabelos.
Êurito rapta Hipodamia, cada um dos outros a que lhe apraz
m ou a que podia: era a imagem de uma cidade conquistada !

A mansão ressoa com gritos das mulheres. Levantamo-nos


todos à pressa, e Teseu, o primeiro, " Que loucura te ataca,
Êurito" , gritou, "para, estando eu vivo, provocares Pirítoo
e, sem saberes o que fazes, ultrajares dois homens num só? "
230 [E para o magnânimo herói mostrar que não falava em vão,
afasta os que atacavam e tira a jovem àqueles desvairados.]
Este nada responde (não tinha, na verdade, como defender
um tal acto com palavras) , mas vai atrás dele e agride,
com mãos atrevidas, o rosto e nobre peito do protector dela.

5 Piritoo. Os filhos (ou melhor, netos) da nuvem, Néfde, são os Centauros.


Lápitas e Centauros L I VR O X I I 297

235 Por acaso, havia ali um antigo vaso, todo eriçado de figuras
em relevo, gigantesco: o vaso agarrou o ainda mais gigantesco
filho de Egeu, ele próprio, e arremessou-o à cara à sua frente.
Este vomita coágulos de sangue, e também miolos e vinho,
pela ferida e pela boca, e cai aos coices de costas no chão
240 encharcado. A sua morte inflama os irmãos de duplo corpo,
e, à porfia, a uma só voz, todos gritam: "Às armas ! Às armas ! "
O vinho inspirava coragem. No início da batalha, voavam
taças pelos ares e frágeis jarras e côncavos potes, utensílios
para uso no banquete, agora usados na guerra e na matança.

245 'O primeiro, Âmico, filho de Ofíon, não teve pejo em espoliar
a cela sagrada das oferendas votivas, e arrebatou, o primeiro,
deste aposento o candelabro cheio de cintilantes lamparinas.
Erguendo-o bem alto, tal como aquele que se apronta a partir
do touro o pescoço níveo com o machado sacrificial,
250 esmigalhou-o de encontro à testa de Celadonte, um Lápita,
deixando-lhe a cara irreconhecível numa massa de ossos.
Os olhos saltaram fora, os ossos do rosto são esmagados,
e o nariz é enfiado para trás até ficar preso a meio do palato.
Mas Pélates de Pela, arrancando uma perna à mesa de bordo,
255 estendeu-o por terra, enfiando-lhe o queixo no peito;
e enquanto cuspia dentes à mistura com o escuro sangue,
envia-o, com outra paulada, para as sombras do Tártaro.

'Grineu, que estava a seu lado, observou o altar fumegante


com olhar medonho e gritou: "Porque não usamos isto ? " .
260 Levantando a colossal ara junto com o fogo que nele ardia,
arremessou-o para o meio do contingente de Lápitas,
esmagando dois deles, Bróteas e Orio. A mãe de Orio
era Mícale, de quem se dizia muitas vezes ter feito descer
com cantos mágicos os cornos da lua, mesmo resistindo.
265 "Não te safarás impune ! Dai-me somente uma arma ! "
gritara Exádio; e toma por arma uma armação de veado,
oferenda votiva ali pendurada no cimo de um pinheiro.
Depois, espeta os olhos de Grineu com a dupla ramagem
e arranca-lhe os olhos: um fica cravado nas hastes, o outro
210 desliza pela barba e fica pendente, endurecido no sangue.
298 L I V R O X I I Lápitas e Centauros

'Eis que Reto apanha um tição de ameixoeira a arder


do meio do altar, e, com um golpe da direita, espatifa
as têmporas de Caraxo, cobertas de loira cabeleira.
Apanhados pela chama voraz, os cabelos incendeiam-se
m qual seara seca, e o sangue, a referver dentro da ferida,
solta um medonho chiar, tal como costuma muitas vezes
soltar o ferro tornado rubro pelo fogo, que o ferreiro
com a curva tenaz retira e mergulha na tina de água:
ele silva e assobia, imerso na água que se torna morna.
280 Ferido, sacode da cabeleira hirsuta as ávidas chamas,
e, arrancando do chão a soleira de um portal, ergue-o
sobre os ombros, carga para um carro de bois. O peso
não permite que a arroje ao inimigo, e a mole de pedra
esmagou um amigo seu, Cometes, que estava mais perto.
285 Reto não contém a alegria: "Assim, suplico" , exclamou,
"possa ter o resto do vosso contingente a mesma força! "
Redobra as pancadas com aquele tição semi-queimado:
com três, quatro golpes violentos, parte a base do crânio,
e os ossos afundaram-se nos miolos feitos numa papa.

290 'Triunfante, volta a atenção para Evagro, Córito e Driante.


Quando um deles caiu por terra, Córito, a quem a barba
ainda mal despontava no queixo, "Que glória é para ti
abater um menino? " gritou Evagro. Mas Reto nem o deixa
dizer mais nada: enquanto falava, feroz, as rútilas chamas
295 enfia-lhas na boca aberta, pela goela abaixo, até ao peito.
Também a ti, feroz Driante, ele persegue, rodando o tição
em fogo à volta da cabeça. Mas contigo não teve o mesmo
resultado. Exultando pelo êxito com as mortes sucessivas,
espetas-lhe um pau queimado entre a cerviz e os ombros.
3 00 Reto solta um gemido, a custo arranca o pau do duro osso;
e agora é ele que foge, encharcado no seu próprio sangue.

'Fogem dali também Orneu e Lícabas e Médon, já ferido


na omoplata direita, e Taumante juntamente com Pisenor,
e Mérmero, que há pouco a todos vencera num certame
305 de corridas (agora, ferido, corria bem mais lentamente) ,
e Folo, e Melaneu, e Abante, o caçador de javalis,
Lápitas e Centauros L 1 V R O X I I 299

e Ásbolo, o áugure que tentou em vão dissuadir os seus


de lutar. A Nessa, que fugia temendo ser ferido, gritou:
"Não fujas ! Estás reservado para o arco de Hércules ! "
310 Contudo, Eurínomo e Lícidas e Areu e Imbreu à morte
não escaparam: todos a mão direita de Driante abateu,
golpeando-os na cara. Na cara também tu, Creneu,
foste atingido, embora tivesses voltado costas e fugido:
pois, ao olhares para trás, levaste com o pesado ferro
315 entre os olhos ambos, onde o nariz se une à base da testa.

'No meio de tamanho alarido, Midas permanecia deitado


num profundíssimo sono, sem que nada o acordasse,
esparramado na espessa pele de uma ursa do Ossa,
segurando na mão adormecida a taça de vinho misturado.
320 Quando de longe o viu, inútil, sem brandir qualquer arma,
Forbas agarrou no propulsor do dardo e gritou: "Beberás
vinho misturado com água do Estígio ! "; e sem mais tardar,
atirou um dardo contra o rapaz: o freixo de ponta de ferro
trespassou o pescoço (por acaso, estava deitado de costas).
325 Não se apercebeu da morte, e da garganta o negro sangue
escorreu às golfadas para a cama e até para dentro da taça.

'Eu vi com os meus olhos Petreu tentando do chão arrancar


um carvalho carregado de bolota. Rodeia-o com os braços,
e sacode-o e empurra de todos os lados; e o tronco já abana,
330 quando Pirítoo dispara uma lança apontada às costelas
de Petreu, e lhe prega ao duro tronco o peito que lutava.

'Dizem que Lico sucumbiu à bravura de Pirítoo, sucumbiu


Crómis à bravura de Pirítoo, mas ao vencedor ambos
conferiram glória inferior à que lhe deram Díctis e Hélops.
m Hélops foi trespassado pelo dardo, que, no voo, pela fronte
abriu caminho e furou desde a orelha direita até à esquerda;
Díctis, ao fugir em pânico à perseguição do filho de Ixíon, r,1
despenhou-se do cimo de um monte abrupto dos dois lados
e cai de cabeça, e, com o peso do corpo, despedaça um freixo

6 O filho de lxíon é Pirítoo.


300 L I V R O X I I Lápitas e Centauros

340 do monte enorme: despedaçando-o, envolve-o das tripas.


Afareu acorre para o vingar e tenta atirar um pedregulho
que arrancara ao monte. Nesse instante, o filho de Egeu
apanha-o, e com um bastão de carvalho despedaça-lhe
os enormes ossos do antebraço. Sem vagar ou vontade
345 para dar à morte o corpo agora inútil, salta para a garupa
do alto Bienor, não afeito a acartar alguém senão ele próprio,
apertando os flancos com os joelhos, agarra e puxa para trás
com a esquerda o cabelo e, com um nodoso bastão, desfaz
a cara e a boca, que cuspia ameaças, e as duríssimas frontes.
350 Com esse bastão ele prostrou por terra Nedimno e Licotas,
perito no dardo, e Hípaso, cuja barba comprida lhe cobria
o peito, e Rifeu, mais alto do que as copas das árvores,
e Tereu, habituado a apanhar ursos nas serras da Hemónia
e a levá-los para casa vivos e rosnando de indignação.

m 'Demoleonte não tolerou mais que Teseu continuasse a ter


tais sucessos na batalha. Com enorme esforço, ele bem tenta
arrancar, de entre espessos silvados, um velho pinheiro;
não conseguindo, partiu o tronco e atirou-o contra o inimigo.
Ao vir o projéctil lá de longe, Teseu esquivou-se, avisado
360 por Palas: pelo menos, assim ele queria que se pensasse.
Mas a árvore não caiu sem efeitos: pois amputou do pescoço
o peito e o ombro esquerdo de Crantor, de elevada estatura.
Este fora, em tempos idos, o escudeiro de teu pai, ó Aquiles,
que o rei dos Dólopes, Amintor, ao ser derrotado na guerra,
365 oferecera ao filho de Éaco como penhor de paz e lealdade. m

Quando Peleu o viu ao longe, esfacelado pela atroz ferida,


"Ao menos recebe isto como homenagem fúnebre, Crantor,
jovem mais querido de todos ! ", diz, e com o potente braço
e a força da intenção, contra Demoleonte atirou uma lança
310 de freixo. Esta rebentou a caixa torácica e ficou a vibrar,
cravada nos ossos. Ele bem extrai a haste, mas sem a ponta,
e mesmo isto a muito custo: a ponta fica presa no pulmão.
A própria dor dá forças: ferido, empina-se contra o inimigo

7 Peleu.
Lápiras e Cenrauros L I V R O X I I 301

e escoiceia o homem com os seus cascos de cavalo. Este


315 recebe os coices com o capacete e o escudo que ressoam,
e, protegendo os ombros, empunha a arma em riste:
com o golpe, fura os dois peitos através das omoplatas.

'Antes disto, porém, entregara já à morte Flegreu e Hile,


de longe, e Ifínoo e Clânis, em combate corpo a corpo.
380 Junta a estes Dórilas, que trazia as frontes por pele de lobo
protegidas e, como arma, temível, um extraordinário par
de encurvados chifres de boi, todos rubros de sangue seco.
Disse-lhe eu (pois a fúria dava-me forças) : " Olha! Olha
como os teus chifres se vergam perante o meu ferro ! "
385 e contra ele lancei o dardo. Não conseguindo esquivar-se,
põe a direita à frente da testa, que não escaparia ao golpe;
e a mão ficou pregada à testa. Levanta-se um clamor. Peleu,
quando o vê imobilizado e derrotado pela atroz ferida (ele
estava mais perto), fere-o com a espada em cheio no ventre.
390 Ele saltou para a frente e arrastou ferozmente as tripas por terra,
e, ao arrastá-las, pisou-as, e, ao pisá-las, rasgou-as e embaraçou
as pernas nelas e estatelou-se no chão de abdómen esvaziado.

'Nem a tua formosura, Cílaro, te salvaguardou do combate


(se, na verdade, admitimos que tal natureza tem formosura) .
395 A barba despontava e era da cor do ouro, e da cor do ouro
os seus cabelos caíam dos ombros até meio das omoplatas;
no rosto, um vigor encantador; a nuca, os ombros, as mãos,
o peito e tudo aquilo que nele humano era, assemelhavam-se
às estátuas aplaudidas de um escultor. A sua parte equina era
400 irrepreensível, não inferior à humana: dá-lhe pescoço e cabeça,
e seria digno de Castor. Tão apropriado à sela é o seu dorso,
tão robusto e musculoso é o peito. É todo negro, mais negro
que negro pez, mas alva é a cauda, e de cor alva as patas.
Muitas da sua raça suspiraram por ele, mas só Hilónome
405 o arrebatou: fêmea mais deslumbrante entre aqueles seres
meio-animais jamais habitou nas profundezas das florestas.
Foi a única que conquistou Cílaro, com carícias, com o amor
e declarações de amor. E procura também arranjar-se, tanto
quanto o corpo o permite: ora alisa os cabelos com o pente,
302 L I V R O X I I Lápitas e Centauros

410 ora se atavia com grinaldas de rosmaninho, ora de violetas


e de rosas, outras vezes, trazendo brancos lírios;
duas vezes ao dia lava o rosto no ribeiro que desliza do cimo
da floresta de Págasas, duas vezes mergulha o corpo no rio.
E, pendentes do ombro ou do flanco esquerdo, não usa peles,
415 senão as que lhe assentam bem, e de animais seleccionados.
O amor neles era igual. Deambulavam pelas serranias juntos,
juntos entravam nas grutas. Também então entraram juntos
no palácio do Lápita, e juntos enfrentavam a feroz batalha.

'Quem lançou não se sabe, mas eis que um dardo é disparado


420 da esquerda e crava-se em ti, Cílaro, pouco abaixo onde o peito
sucede ao pescoço. Ao extraírem o dardo, o coração, atingido
por pequena ferida, vai-se esfriando junto com o corpo todo.
De imediato, Hilónome toma nos braços o corpo moribundo,
e, pressionando com a mão, tenta acalmar a ferida, e encosta
425 os lábios aos lábios dele, e procura travar a alma que foge.
Mas quando o vê morto, com palavras que o clamor impediu
de chegar aos meus ouvidos, deixou-se cair sobre o dardo
que nele estava cravado, e morreu abraçada ao marido.

'Tenho ainda diante dos olhos aquele que usava seis peles
430 de leão, atadas entre si com nós bem apertados, Feócomes,
431 assim protegendo tanto a parte humana, como a equina.
432 Atirou um tronco que um par de juntas de bois mal moveria,
433 rachando de alto a baixo a cabeça de Téctafo, filho de Óleno.
439 E aprestava-se a despojar das armas o jovem caído por terra,
440 quando eu (teu pai bem o sabe) enterrei o gládio bem fundo
no ventre do saqueador. Também Ctónio e Teléboas jazem
por obra da minha espada. O primeiro trazia uma forquilha
de dois dentes, o outro um dardo. Com o dardo feriu-me:
vês aqui a marca, a velha cicatriz ainda hoje é bem visível.
445 Então é que eu devia ser enviado para conquistar Pérgamo:
naquele tempo, eu era capaz de travar, se não mesmo vencer,
com a minha espada o grande Heitor. Mas nesse tempo Heitor
não nascera, ou era menino, agora falha-me a minha idade.

'Para quê falar-te de Perifante que venceu Pireto de natureza


450 dupla, para quê falar de Âmpix, que, com a lança de corniso
Lápitas e Centauros - Ceneu (cont.) L I V RO X I I 303

sem ponta, espetou em cheio a cara do quadrúpede Equeclo?


Macareu atirou uma alavanca ao peito Erigdupo de Peletrónio,
e derrubou-o. Lembro-me, também, de que um dardo de caça,
disparado por Nesso, se foi cravar na virilha de Cimelo.
455 Tu não acreditarias que o filho de Âmpix, Mopso, apenas
vaticinava o futuro. Pois, com um dardo disparado por Mopso
caiu por terra o biforme Hodites, que em vão intentava falar:
mas a língua estava pregada ao queixo, e o queixo à garganta.

'CINCO enviara já Ceneu para junto da morte: Estífelo, Bromo,


460 Antímaco, Élimo, Piracmo, este armado com um machado.
Não me recordo dos ferimentos, mas fixei o número e o nome.
Eis que se lança em voo Latreu, colossal de estatura e membros,
armado com os despojos de Haleso de Emátia, que ele matara.
A sua idade era aquela entre a de jovem e a de homem idoso:
465 a força era de jovem, mas cabelo branco salpicava as frontes.
Impressionante pelo escudo, o gládio e a lança macedónica,
voltando o rosto para uma e outra linha de batalha,
brandiu as armas e, galopando em círculos rigorosos,
lançou estas palavras, impetuoso, para as vazias brisas:
410 "Também tenho de te tolerar, Cénis? Pois para mim serás
sempre mulher, sempre Cénis. Não te lembras da tua natureza
ao nascer, não te ocorre por que facto foste recompensado,
a que preço obtiveste essa falsa forma de homem?
Vê o que nasceste ou o que padeceste, e agarra, vamos ! ,
415 na roca e nos cestos com lã, e retorce os fios com o polegar!
Deixa a guerra para homens ! " Enquanto tais injúrias proferia,
Ceneu atira a lança: enterra-se no flanco esticado pelo galope,
onde o homem se une ao cavalo. Aquele enraivece-se de dor,
e, com a lança, golpeia o rosto desprotegido do jovem de Filo.
4so Mas ela ressalta, tal como o granizo em cima do telhado,
ou quando alguém fere o oco tambor com uma pedrinha.
Então, ataca-o de perto e esforça-se por enterrar o gládio
no rijo flanco: o gládio não encontra passagem alguma.
"Mas não me escaparás ! Degolo-te com o gume da espada,
485 já que a ponta está romba. " Diz, e vira-lhe a espada de viés
contra o flanco, rodeando o ventre com a longa mão direita.
A pancada tilinta, como se atingindo um corpo de mármore,
304 L I V R O X I I Certeu

e, ao embater na pele calejada, a lâmina despedaça-se e voa


em estilhaços. Quando, para espanto deste, já lhe oferecera
490 o bastante o corpo sempre ileso, "Vamos ! " , exclamou Ceneu,
"Testemos o teu corpo com o nosso ferro ! " . E afundando
a espada mortífera na omoplata até ao punho, às cegas roda
e torna a rodá-la nas vísceras, infligindo uma ferida à ferida.

'Com vasto clamor, eis que os seres biformes violentamente


495 desabam sobre ele, e só a ele todos atacam e atiram dardos.
Os dardos caem rombos, e sob tantos golpes Ceneu, o filho
de Élato, lá se aguenta sem ferimentos ou marcas de sangue.
Ficam atónitos com o inédito caso. " Oh ! tremenda desonra ! " ,
exclama Mónico, "um só, e nem é bem um homem, vence
500 um povo inteiro; mas ele é, de facto, homem, pela acção débil
somos, afinal, o que ele já foi. De que nos valem gigantescos
membros e as duplas forças, e o facto de em nós a natureza
ter combinado dois seres animais, os mais fortes de todos?
Nós não somos, julgo, filhos de mãe divina, nem de Ixíon,
505 aquele que era tão grande que tinha esperanças de possuir
a excelsa Juno; nós somos vencidos por um semi-homem.
Arremessai sobre ele pedras e troncos e montanhas inteiras,
atirai bosques para cima, sufocai-lhe a respiração sempre viva !
Que uma floresta esmague a garganta e o peso faça de ferida. "
510 Assim disse, e encontrando por acaso um tronco, derrubado
pela violência do enfurecido Austro, atirou-o contra o inimigo
poderoso, dando o exemplo. Em pouco tempo, o Ótris ficou
desnudado de árvores e já o Pélion não tinha mais sombras.
Sepultado sob o gigantesco amontoado de árvores, Ceneu
515 debate-se sob o peso e suporta com os rijos ombros a pilha
de troncos. Porém, quando sobre a cara e a cabeça a mole
aumentou, a respiração já não tem ar para inspirar.
Fraqueja por fim, e ora se esforça em vão por erguer-se
para o ar, ora sacudir de cima os bosques que são atirados;
520 por vezes, move-os, tal como é sacudido o escarpado Ida
pelos tremores de terra - ei-lo ! , nós próprios o vemos daqui.

'Como acabou é incerto. Uns diziam que o corpo, pela mole


de árvores, foi empurrado até ao insubstancial Tártaro.
Ceneu - Periclímeno L I V RO X I I 305

O filho de Âmpix discorda. Pois do cimo da pilha ele vira (s1

525 uma ave de asas fulvas levantar voo para o límpido ar:
nessa ocasião, foi a primeira vez, e a última, que a observei.
E mal Mopso a viu, esvoaçando sobre o seu acampamento
em lento voo, e soltando à sua volta um enorme chilrear,
seguindo-a, ao mesmo tempo, com o olhar e o coração,
530 "Viva ! Viva ! " , exclamou ele, "ó glória da raça dos Lápitas,
dantes o mais valente dos homens, agora ave única, Ceneu ! "
Vindo dele, isto mereceu crédito. A dor redobra a fúria
e não tolerámos que tanto inimigo esmagasse um só homem.
E não parámos de com o ferro dar largas à nossa mágoa,
535 até parte ser morta, a restante fugir e desaparecer na noite.'

SOBRE o combate entre Lápitas e os semi-humanos Centauros,


isto foi que o rei de Pilos contou. Mas Tlepólemo não conteve
mais o ressentimento por ele ter passado em silêncio a morte
do neto de Alceu, e disse: ' É estranho, ó ancião, teres olvidado
540 os feitos gloriosos de Hércules. Pois meu pai costumava contar
amiúde como os nascidos da Nuvem foram por ele subjugados. '
Triste, o rei de Pilos respondeu: 'Porque m e forças a relembrar
esses males e reabrir dolorosas feridas cicatrizadas pelos anos,
e a confessar o meu ódio e ressentimento contra o teu pai?
545 De facto, ele cometeu proezas incríveis - ó deuses ! - e encheu
o mundo dos seus feitos, feitos que eu preferiria poder negar.
Nem tão-pouco eu exalto Deífobo, nem Pulidamante,
nem o próprio Heitor - de facto, quem louvaria um inimigo?

' É que, em tempos, teu pai arrasou as muralhas da Messénia,


550 e destruiu cidades da Élide e de Pilos, que não tinham culpa,
e irrompeu, a ferro e fogo, pela minha própria casa adentro.
Para não falar de outros que ele também dizimou, nós,
os filhos de Neleu, éramos doze, todos jovens admiráveis:
doze sucumbiram à violência de Hércules, todos menos um:
555 eu. E que os outros pudessem ser abatidos, podemos tolerar.
Mas é de pasmar a morte de Periclímeno. A ele, Neptuno,

8 Mopso.
306 L I V R O X I I Périclímeno - A morte de Aquiles

o fundador do sangue de Neleu, dera o poder de assumir


a forma que quisesse e, de novo, desfazer a forma assumida.
Depois de em vão se ter tornado em todo o tipo de formas,
560 adopta o aspecto do pássaro que costuma levar os raios
nas recurvas garras, o mais querido ao rei dos deuses.
Dando uso às suas forças, e às asas, e ao recurvo bico,
e às unhas em gancho, a ave retalhara a cara do herói.
O jovem de Tirinto aponta-lhe o arco, demasiado certeiro,
565 e mal ela subiu para as alturas do céu e entre as nuvens
lá pairava, atingiu-a no ponto onde a asa se une ao flanco.
A ferida nem foi grave, mas os tendões rasgados pelo golpe
fraquejam, e recusam o movimento e as forças para voar.
Despenha-se no solo, pois as debilitadas asas não apanham
510 mais ar; a flecha, que se espetara apenas ao de leve na asa,
enterra-se ainda mais pelo peso do corpo assim espetado;
trespassando o cimo do flanco, sai pela esquerda do pescoço.
Parece-te então agora que eu devo enaltecer as façanhas
do teu Hércules, ó magnífico chefe da armada de Rodes?
575 Pelos meus irmãos, não busco outra vingança que não seja
calar os seus feitos; mas a amizade por ti permanece firme. '

Depois de o filho d e Neleu tal ter dito com o seu doce falar,
e, terminado o discurso do ancião, repetirem a dádiva de Baco,
erguem-se dos leitos do triclínio; o resto da noite dão ao sono.

580 MAS o DEUS, que com o tridente governa as ondas do mar,


continua a sofrer, no seu coração de pai, pelo filho, cujo corpo
mudara na ave de Faetonte; e, odiando o sanguinário Aquiles, [91
dá largas a raiva imorredoira, mais do que seria civilizado.
E agora a guerra já se arrastava há quase dois quinquénios,
585 quando tais palavras dirige ao Esminteu, de cabelos intonsos: " º1

'Ó tu, de longe o mais querido para mim dos filhos do irmão
meu, que comigo erigiste, em vão, de Tróia as muralhas,
não gemes quando contemplas esta fortaleza que sucumbirá
em breve? Não sofres com os milhares de mortos que na defesa

9 0 cisne.
10 Apolo.
A mone de Aquiles L I V R O X I I 307

590 dos muros caíram? Para não referir todos, não te vem à mente
a sombra de Heitor, arrastado no chão à volta da sua Pérgamo?
E, no entanto, ainda vive aquele selvagem, mais sanguinário
do que a própria guerra, o devastador da nossa obra, Aquiles !
Que venha até mim: farei com que sinta de quanto é capaz
595 o meu tridente. Mas já que não me é lícito defrontar o inimigo
corpo a corpo, mata-o com flecha, às ocultas, sem ele esperar. '
O deus de Delos anuiu, condescendendo com a vontade do tio
e com o seu próprio desejo; e, envolto num névoa, dirige-se
às linhas dos de Ílion. No meio daquela carnificina humana,
600 vislumbra Páris, disparando uma saraivada de flechas
contra simples soldados aqueus. Revelando-se como deus,
'Porque gastas flechas com zé-ninguéns? Se cuidas dos teus,
volta-as para o neto de Éaco e vinga teus irmãos chacinados. '
Disse, e apontando para o filho de Peleu, que ia prostrando
605 no chão troianos com o ferro, volta-lhe o arco nessa direcção
e guiou-lhe a flecha certeira com a sua mortífera mão direita.
Depois de Heitor, esta foi a única coisa que conseguiu alegrar
o velho Príamo. Tu, Aquiles, vencedor de tão grandes heróis,
foste vencido pelo medroso raptor de uma grega casada !
610 Se tinhas de perecer em combate com uma mulher,
terias preferido sucumbir ao duplo machado do Termodonte. [ l lJ

Já ardia aquele terror dos Frígios, honra e protecção do nome


dos Pelasgos, o neto de É aco, o chefe invencível na guerra;
o mesmo deus que o armara foi o mesmo que o cremou. u21

615 Já só era cinza, e de Aquiles, outrora tão grande, já só restava


qualquer coisa que mal dava para encher uma uma pequena.
Mas a sua glória pervive, a ponto de encher o mundo inteiro.
Esta dimensão corresponde a tal herói, e nela o filho de Peleu
é igual a si mesmo, e não sente o insubstancial Tártaro.

620 Até o escudo dele provoca uma guerra, para se poder saber
a quem deveria caber, e pelas suas armas puxam das armas.
Aquelas nem o filho de Tideu, nem Ájax, o filho de Oileu,

1 1 As Amazonas.
" Vulcano.
308 L I V R O X I I A morte de Aquiles

nem o mais novo dos Atridas, nem o maior de idade e feitos,


nem outros, ousam reclamar; somente o filho de Télamon
625 e o de Laertes se arrogaram reivindicar tão grande honra. t13i

O bisneto de Tântalo afastou de si o odioso ónus de decidir: t14J

convidando os chefes da Argólide a sentarem-se no meio


do acampamento, endossou a todos a decisão sobre o litígio.

n Ájax e Ulisses, respectivamente.


14 Agamémnon.
LIVRO XIII

Os CHEFES sentaram-se, os soldados alinharam em círculo de pé.


Diante destes ergue-se Ájax, o dono do escudo de sete camadas.
Descontrolado de fúria como estava, fitou com olhar feroz
a praia do Sigeu atrás de si e os barcos postos sobre o areal.
E, estendendo as mãos, disse: 'Por Júpiter, estou a defender
a minha causa diante das naus, e o meu adversário é Ulisses !
Mas ele não hesitou em ceder diante das chamas de Heitor,
as quais travei, que pus em fuga para longe da nossa armada.
De facto, é mais seguro combater com palavras mentirosas
10 que lutar com o punho. Eu não sou dotado para a oratória,
tal como ele não é para a acção: eu valho na linha de batalha
da feroz guerra, tanto quanto ele é valoroso em eloquência.
Julgo, porém, que não é preciso recordar-vos os meus feitos,
Pelasgos: a eles assististes. Pois que Ulisses descreva os seus,
15 que fez sem testemunhas, dos quais só a noite é sabedora.
Peço excelso prémio, reconheço, mas, se é ele meu rival,
esta honra diminui. Não pode orgulhar-se Ájax de obter
uma coisa, tão grande embora sendo, a que Ulisses aspirou.
Ele já tem agora o seu prémio por ter feito esta tentativa,
20 pois, quando for vencido, será dito ter competido comigo.

'No meu caso, se dúvidas pudesse haver sobre o meu valor,


eu seria sempre superior pela nobreza. Sou filho de Télamon,
aquele que com o valoroso Hércules tomou o bastião de Tróia
e desembarcou nas costas da Cólquida com a nau de Págasas.
25 Éaco foi seu pai, que entre as sombras silenciosas administra
a justiça, ali onde pesado penedo esmaga Sísifo, filho de Éolo.
O supremo Júpiter reconhece É aco e admite ser ele seu filho:
ora, deste modo, Ájax é o terceiro a contar de Júpiter.
Mas que a genealogia de nada valha para a minha causa, Aqueus,
310 L I V R O XI I I As armas de Aquiles

30 se eu não a partilhar com o grandioso Aquiles: ele


era meu primo. Reclamo coisas de um primo. Porque é que,
nascido do sangue de Sísifo, igual em velhacaria e embustes,
enxertas nomes de uma família diversa na estirpe de Éaco?

'Por chegar primeiro à guerra, sem a denúncia de ninguém,


35 devem negar-me as armas? Parecerá, pois, preferível aquele
que as tomou em último, após ter tentado fugir ao serviço
militar fingindo estar louco, até que um outro mais esperto,
o filho de Náuplio, para sua desgraça, desvendou o plano [!)

deste coração cobarde e o arrastou para a guerra de que fugia?


40 Tomará as excelsas armas porque não quis tomar nenhumas?
Serei desonrado e despojado de prémio vindo de um primo,
só porque me ofereci para enfrentar os primeiros perigos?
Prouvera que a sua loucura fosse verdadeira ou tida como tal,
e que jamais este incitador à patifaria tivesse vindo connosco
45 até à fortaleza da Frígia ! Jamais, ó filho de Peante, estarias [21

abandonado em Lemnos para nossa infâmia, tu que agora,


segundo se diz, escondido em antros na floresta, comoves
as pedras com os gemidos e imploras para o filho de Laertes
o que merece; e se os deuses existem, não imploras em vão.
50 Ele, que connosco prestou juramento para a mesma guerra,
oh ! , um dos nossos chefes, que maneja as flechas que herdou
de Hércules, agora, alquebrado pela doença e pela fome,
cobre o corpo e alimenta-se de pássaros, e pássaros caça
empregando as flechas destinadas a causar o fim de Tróia.
55 Apesar de tudo, está vivo, pois não acompanhou Ulisses:
quereria também o pobre Palamedes ter sido abandonado !
[Ao menos, estaria vivo, e não teria tido morte desonrosa.]
Demasiado recordado da loucura que, para sua desgraça,
este provou ser falsa, acusou-o de trair a causa dos Dánaos,
60 e mostrou a falsa culpa, exibindo ouro que antes enterrara.
Logo, ou pelo exílio, ou pela morte, tem subtraído forças
aos Aqueus. Assim combate Ulisses, assim é ele temível.

1 Palamedes.
2 Filoctetes.
As armas de Aquiles L I V R O X I I I 311

'E embora pela sua eloquência ele vença até o leal Nestor,
jamais fará com que eu acredite que ter abandonado Nestor
65 não foi um crime. Este, embora muito suplicasse a Ulisses,
vagaroso pelo cavalo ferido, esgotado pela provecta idade,
foi traído pelo companheiro. Que não estou a inventar nada
o filho de Tideu sabe bem, ele, que, chamando-o tantas vezes 01

pelo nome, o criticou e censurou a fuga ao amigo espavorido.


10 Os deuses observam os assuntos humanos com olhos justos.
Eis ! , precisa da ajuda que não prestou: tal como abandonou,
assim o deveriam abandonar, o próprio ditou a regra para si.
Põe-se a gritar pelos camaradas. Eu chego e vejo-o a tremer,
lívido de medo, apavorado perante a iminência da morte.
15 Pus-lhe à frente o colossal escudo e cobri-o, jazia ele no chão,
e salvei a alma cobarde - quão pouco mérito há neste caso !
Se teimas em competir comigo, retornemos ao mesmo local;
traz de volta o inimigo, a tua ferida e a cobardia habitual;
esconde-te por trás do escudo, e luta comigo de lá debaixo.
80 Mas, mal eu o resgatei, ele, que pelas feridas nem forças tinha
para estar de pé, desata a fugir sem ferida alguma a atrasá-lo !

'Eis que vem Heitor, trazendo os seus deuses para a batalha.


Por onde quer que vá, não és só tu que ficas aterrado, Ulisses,
mas até homens valentes: tão grande o pavor que traz com ele.
85 Fui eu quem, de longe, o prostrou com enorme pedra de costas
no chão, exultava ele pelo seu sucesso na sanguinária matança.
Fui eu quem lhe fez frente, quando ele desafiava quem com ele
queria lutar. Vós, Aqueus, fizestes votos pela minha sorte,
e as vossas preces resultaram. Se perguntardes o resultado
90 daquele combate, direi que ele não conseguiu vencer-me.
Mas eis que os Troianos trazem o ferro e o fogo, e Júpiter até,
contra a frota dos Dánaos: onde estava agora o eloquente Ulisses?
Fui eu, é claro, quem protegeu com o peito o milhar de barcos,
esperança do vosso retorno; por tantos navios dai-me as armas.
95 Pois se me é permitido falar verdade, maior honra alcançarão

3 Diomedes.
312 L I V R O X I I I As armas de Aquiles

as armas do que eu: a sua glória ficará ligada à minha glória.


Não é Ájax que anseia pelas armas, mas sim as armas por Ájax.

'O de Ítaca com isto compare o seu Reso e o inofensivo Dólon


e a captura de Heleno, filho de Príamo, e o roubo do Paládio:
100 nada feito à luz do dia, nada feito na ausência de Diomedes.
E se alguma vez derdes as armas a tão miseráveis méritos,
dividi-as então, e que a Diomedes caiba o quinhão maior.
Mas para quê dá-las ao Ítaco, que sempre age às escondidas,
sempre desarmado, e ludibria o incauto inimigo com ardis?
105 O próprio brilho do capacete, cintilante do reluzente ouro,
denunciará as suas emboscadas, revelará onde se esconde.
Mas nem a cabeça do de Dulíquio sob o capacete de Aquiles [•J
suportará tamanho peso, nem deixará a lança do Pélion
de resultar pesada carga para braços não feitos para lutar,
110 nem o escudo, com a imagem do vasto mundo cinzelado,
ficará bem ao medroso braço esquerdo, nascido para ardis.
Porque reclamas prenda, ó despudorado, que te fará débil?
Se o povo Aqueu, por equívoco, te as conceder, haverá antes
motivo para o inimigo te despojar delas, não para te temer,
115 e a fuga, a única coisa, ó poltrão-mor, em que todos vences,
será retardada, se tiveres de arrastar tamanho equipamento.
Acresce que o teu escudo, tão raramente em combate usado,
está intacto; o meu, que tantos projécteis já teve de suportar,
abre-se com mil furos: preciso que um mais novo lhe suceda.
120 Enfim, para quê mais palavras? Julgai-nos pelas acções.
Lançai as armas do bravo herói para o meio do inimigo,
mandai resgatá-las e condecorai com elas quem as resgatar. '

Acabara o filho de Télamon; um burburinho vindo da multidão


seguiu-se às palavras finais, até que o herói, o filho de Laertes,
125 se levanta. Detendo um pouco o olhar fixo no chão, ergueu-o
depois para os chefes e descerrou os lábios para o discurso
que aguardavam; nem faltou encanto às eloquentes palavras.

' Ulisses.
As armas de Aquiles L I VR O X I I I 3 13

'Se os meus votos e os vossos se tivessem cumprido, Pelasgos,


não haveria hesitação sobre quem as herdaria em tal disputa.
no Tu terias as tuas armas, Aquiles, tal como nós te teríamos a ti !
Porque os fados injustos o negaram tanto a mim como a vós'
(tal dizendo, finge com a mão enxugar dos olhos uma lágrima)
'quem pode tomar melhor do que eu o lugar do grande Aquiles,
eu que fiz o grande Aquiles tomar o seu lugar entre os Dánaos?
m Que somente ele não retire proveito de parecer obtuso, como é,
e que o meu talento não me seja pernicioso, Aqueus, que útil
sempre vos foi; que apenas a minha eloquência, se alguma tiver,
que agora se expressa pelo dono, como tanta vez o fez por vós,
não suscite inveja: ninguém deve renunciar aos dons pessoais.

140 'Linhagem, antepassados e coisas que não fizemos nós próprios


a custo lhes chamo nossas. Mas já que Ájax veio dizer de Júpiter
ser bisneto, então também a origem da minha estirpe é Júpiter,
e dele distamos tantas gerações quanto ele próprio dista.
Pois o meu progenitor é Laertes, e o pai deste foi Arcésio,
145 e o deste Júpiter: entre eles nenhum houve condenado e banido. B1
Também do lado de minha mãe tenho o deus do Cilene, nobreza
que se soma à primeira; há um deus em ambos os meus pais.
Mas não é por ter origem mais nobre por parte de minha mãe,
nem por meu pai estar inocente do sangue de um irmão seu,
150 que reclamo as armas ali postas. Ajuizai a causa pelos méritos
próprios, conquanto o facto de Télamon ser irmão de Peleu
não seja tido por mérito de Ájax, nem a posição na linhagem,
mas se pretenda com tal espólio uma distinção pela bravura.
Pois, se o que busca é o parentesco e a prioridade na herança,
155 então ele tem um pai, Peleu, e tem também um filho, Pirro.
Qual o lugar de Ájax? Enviem as armas para a Ftia ou Ciros.
E depois, Teucro não é menos primo de Aquiles do que ele.
Reclama este as armas? Se as reclamasse, acaso as obteria?

'Ora, já que temos de disputar a contenda só à base de feitos,


160 pois bem, eu fiz mais proezas do que seria capaz de abarcar
facilmente em palavras; mas permiti-me seguir a ordem delas.

5 Referência ao pai de Ájax, Télamon, implicado com o irmão Peleu no assassínio de Foco.
3 14 L I V R O X I I I As armas de Aquiles

'Sua mãe, a filha de Nereu, sabendo logo que ele iria morrer, [•1

disfarça o filho com roupas; e a todos ludibriara, entre eles


o próprio Ájax, o embuste das vestes que então envergava.
165 Ora, entre artefactos femininos introduzi algumas armas,
a fim de despertar os seus instintos viris. Mesmo sem despir
os vestidos de mulher, o herói agarrara já no escudo e na lança,
quando eu digo: "Ó filho da deusa, Pérgamo, que há-de cair,
está-te reservada. Porque hesitas em arrasar a portentosa Tróia? "
110 Detive, então, o bravo jovem e enviei-o para bravos feitos.
Assim, os feitos seus são, no fundo, meus. Fui eu quem venceu
em combate Télefo com a lança e o curou, vencido e implorante.
A queda de Tebas é façanha minha. Dai-me o crédito de Lesbos
e Ténedos, e Crises e Cila, todas elas cidades de Apolo, e Ciros,
m ter sido eu a conquistá-las. Vede como as muralhas de Lirnesso
jazem por terra: é como se a minha direita as tivesse derrubado.
Fui eu quem vos deu o homem capaz de matar o terrível Heitor,
para não falar de outros: graças a mim jaz morto o ilustre Heitor!
Peço estas armas em troca daquelas com que descobri Aquiles:
180 eu dei-lhas em vida; após a sua morte, reclamo-as de volta.

'Quando a dor da afronta de um só assolou os Dánaos todos,


mil navios encheram a baía de Aulis, defronte da Eubeia.
Muito tempo aguardaram vento para a frota, mas vento algum
se ergueu, ou então era contrário. A Agamémnon cruel profecia
185 ordena que sacrifique a inocente filha à desapiedada Diana. [7 J

O progenitor rejeita tal, enfurece-se contra os próprios deuses:


detrás do rei estava, porém, o pai. Ora, com palavras eu logrei
reverter para o interesse público a sua tema disposição de pai.
Agora, de facto, confesso, e, ao confessar, me perdoe o Atrida:
190 ganhei uma causa difícil diante de um juiz não imparcial.
Porém, o bem de todos, do irmão e da autoridade suprema
a ele conferida convencem-no a pagar a glória com o sangue.
Enviam-me também junto da mãe: foi impossível convencê-la, [s1

6 Aquiles; a sua mãe é Tétis.


7 Ifigénia.
• Clitemnestra.
As armas de Aquiles L I V R O X I I I 3 15

tive de a enganar pela astúcia. Se fosse o filho de Télamon


195 a ir junto dela, as velas ainda estariam vazias de seus ventos !

'Enviam-me também em audaz embaixada à cidadela de Ílion.


Ali avistei a sede do senado da íngreme Tróia e nela entrei,
nessa altura ainda repleta de soldados. Sem temor, defendi
a causa de que a Grécia inteira coligada me incumbira,
200 e acuso Páris e reclamo a restituição dos bens e de Helena,
e logro impressionar Príamo e Antenor, o aliado de Príamo.
Mas Páris e os seus irmãos e aqueles que com ele a raptaram
a custo contiveram as ímpias mãos: tu bem o sabes, Menelau,
e esse foi o primeiro dia em que corri perigo de vida contigo !

205 'Demorado seria contar tudo o que pelo engenho e pelo punho
de proveitoso para vós fiz no decurso de tão longa guerra.
Após os primeiros confrontos, por muito tempo os inimigos
se entrincheiraram nas muralhas e ocasião alguma houve
para batalha em campo aberto; enfim, ao décimo ano lutámos.
210 Que fizeste entretanto, tu que nada mais sabes que combater?
Que serviços prestaste? Pois se perguntas o que eu fazia então,
lanço emboscadas ao inimigo, rodeio as fortificações de fossos,
encorajo os aliados a aguentarem de bom ânimo o tédio
de tão longa guerra, explico de que forma devíamos cuidar
m das provisões e armamento, vou em missões onde é preciso.

'Eis que, a conselho de Júpiter, iludido pela visão de um sonho,


o rei ordena que abandonemos as tarefas da guerra encetada.
Ele logra justificar a ordem com a autoridade da origem dela.
Ájax não devia aceitar tal, mas exigir que se destrua Pérgamo
220 e lutar, algo que sabe fazer. Porque não os impede de partir?
Porque não toma as armas, dá exemplo à turba desorientada?
Isto não era de mais para quem nada diz a não ser bravatas.
E quanto a ele ter fugido também? Vi e envergonhei-me de ver,
quando tu voltaste as costas e aprontavas as desonrosas velas.
m De imediato, exclamei: "Que fazeis? Que loucura vos impele,
ó camaradas, a desistir de Tróia, que é como se já conquistada?
Que levais para casa findos dez anos, a não ser desonra? "
3 16 L I V R O X I I I As armas de Aquiles

Com estas e outras palavras (a dor fizera-me eloquente),


trouxe os fugitivos de volta da armada prestes a desertar.
m O Atrida convoca os aliados, que vêm trémulos de medo,
e nem mesmo agora o filho de Télamon ousa abrir a boca
para algo dizer; na verdade, com palavras insolentes ousara
Tersites atacar os reis, o que, graças a mim, não ficou impune.
Levanto-me e incito os assustados cidadãos contra o inimigo,
235 e, com minhas palavras, reclamo de volta a coragem perdida.
Desde esse dia, todas as proezas que este pareça ter feito
são-me devidas: fui eu que o trouxe de volta quando fugia.

'Por fim, qual dos Dánaos te elogia e busca a tua companhia?


Ao invés, o filho de Tideu partilha comigo os seus feitos,
240 aprecia-me, e confia sempre em Ulisses por companheiro.
Não é pouco, entre tantos milhares de Gregos, ser escolhido
por Diomedes. E não foi o resultado de sorteio que me fez ir.
Ainda assim, desdenhando os perigos do inimigo e da noite,
mato Dólon, um tal de entre o povo frígio que ousara fazer
245 o mesmo que nós, mas não antes de o forçar a tudo revelar,
e de ficar sabendo o que congeminava a pérfida Tróia.
Eu já sabia tudo, nem tinha já mais nada para espiar:
já podia, pois, regressar, obtendo os louvores prometidos.
Mas, não contente com isto, dirigi-me às tendas de Reso,
250 e, no seu acampamento, matei-o, a ele e aos companheiros.
E assim, vitorioso, com os votos que fizera realizados,
regresso no carro capturado, qual festivo cortejo triunfal.
Negai-me as armas daquele cujos cavalos o inimigo pedira
por paga dessa noite, e Ájax será mais generoso que vós !

255 'Para quê recordar os contingentes de Sarpédon da Lícia,


trucidados pela minha espada? Numa poça de sangue
prostrei Cérano, o filho de Ífito, e Alastor e Crómio,
Alcandro e Hálio, e bem assim Némon e também Prítanis;
entreguei à morte Tóon, juntamente com Quersidamante,
260 e Cárops, e também Énomo, conduzido por cruel destino,
e outros menos famosos, que pela minha mão tombaram
sob a muros da cidade. Também trago feridas, cidadãos,
As armas de Aquiles L I V R O X I I I 3 17

honrosas pelo sítio delas. Nem acreditai em palavras vãs "'


- Eis ! Vede vós próprios ! ' (e com a mão afastou a veste) .
265 'O meu peito sempre se entregou à luta pela vossa causa.
Ora, após tantos anos, sangue algum o filho de Télamon
pelos companheiros verteu: tem o corpo sem uma cicatriz.

'E que importa, porém, se ele diz que defendeu em armas


a armada dos Pelasgos contra os Troianos e contra Júpiter?
210 Empunhou armas, reconheço. Nem é meu hábito apoucar
por malícia as boas acções de outrem. Mas não tome sozinho
o que é de todos, mas conceda-vos também parte das honras.
Foi o neto de Actor, a salvo sob a aparência de Aquiles, quem r101

repeliu os Troianos das naus prestes a arder com o defensor.


m Também julga que só ele teve a coragem de afrontar as armas
de Heitor, esquecido do rei e dos chefes e de mim próprio:
nono a oferecer-se, deve ao sorteio ter sido ele o escolhido.
Contudo, qual foi o desfecho do teu combate, ó valentão?
Eu digo: Heitor partiu incólume, sem ferimento algum.

280 'Ai de mim ! Como me dói quando sou forçado a relembrar


aquele dia em que Aquiles, a muralha dos Gregos,
sucumbiu ! Nem lágrimas, desgosto ou medo me fizeram
perder tempo a erguer alto do chão o cadáver e a trazê-lo.
Nestes ombros, sim, nos ombros, dizia eu, carreguei o corpo
285 de Aquiles e suas armas, as que agora me afadigo por levar.
Eu tenho força bastante para carregar tão grande peso,
e o espírito saberá apreciar a honra que me concederdes.
Foi então para isto, diria eu, que sua mãe, a azulada deusa,
tanto se afadigou por seu filho, para que esta prenda do céu,
290 obra de uma tal arte, envergasse o soldado sem inteligência
e bruto? Ele nem reconhece as figuras cinzeladas no escudo:
o Oceano, as terras e os astros na alta abóbada celeste,
as Plêiades e as Híades, e o Arcto, sempre isento do mar.
[E os globos afastados e a espada cintilante de Oríon.
295 Exige apoderar-se de armas que ele nem sequer entende.]

9 Ou seja, as feridas estão no peito, não nas costas.


10 Pátrodo.
3 18 L I V R O X I I I A. armas de Aquiles

'E quanto àquilo de que me acusa, de fugir aos deveres


da dura guerra e de chegar tarde à expedição já começada,
não se apercebe ele de que vitupera o valoroso Aquiles?
Se chamas crime a ter fingido, então fingimos nós ambos;
300 se atraso é uma culpa, então eu cheguei ainda antes dele.
A mim reteve extremosa esposa, a Aquiles mãe extremosa:
o tempo inicial foi a elas concedido, e todo o restante a vós.
Nem temo, ainda se não fosse capaz de a refutar, acusação
que partilho com tamanho herói. Ele, porém, foi descoberto
305 pelo engenho de Ulisses, mas não o foi Ulisses pelo de Ájax.

'Não é de nos espantarmos que contra mim espalhe insultos


com a estúpida língua: também vos lança acusações infames.
Se no meu caso é ignóbil ter falsamente acusado Palamedes
de um crime, foi então para vós honroso tê-lo condenado?
310 Mas nem o filho de Náuplio foi capaz de refutar acusação
tão grave e tão patente, nem vós vos limitastes a ouvir-me
culpá-lo: vós vistes, eram óbvias as coisas a sugerir suborno.

'Nem eu mereço ser acusado de o filho de Peante estar retido


em Lemnos, a ilha de Vulcano. Defendei esta vossa acção,
3 15 pois vós anuístes. Não negarei que fui eu que vos persuadi
a que ele se poupasse às fadigas da guerra e da viagem,
e tentasse acalmar com algum repouso as dores ferozes.
Ele aquiesceu - e está vivo ! Não só este meu conselho
foi leal, mas ele até resultou feliz, embora bastasse ser leal.
320 Visto os videntes exigirem a sua presença para Pérgamo cair,
não me incumbis da missão: é melhor ir o filho de Télamon,
que com eloquência amansará aquele homem transtornado
de dor e raiva, ou o vencerá pela astúcia ou um estratagema . . .
Antes o Simoente fluirá às arrecuas e o Ida se perfilará
325 sem folhagem, e a Aqueia prometerá auxilio a Tróia,
do que, caso a minha inteligência cesse de zelar por vós,
a esperteza do bronco Ájax trará proveito aos Dánaos.
Embora tenhas ódio aos companheiros, ao rei e a mim,
duro Filoctetes, embora me abomines e sem fim rogues
330 pragas contra mim, e desejes no meio do teu sofrimento
teres-me em teu poder para poderes derramar-me o sangue,
[e tal como já dispus de ti, também tu disponhas de mim,]
As armas de Aquiles L I V R O X I I I 3 19

eu irei até junto de ti e esforçar-me-ei por trazer-te comigo,


e apoderar-me-ei das tuas flechas, caso a Fortuna me ajude,
335 tal como capturei, aprisionando, o vidente dos Dárdanos, [l lJ

e desvendei os oráculos dos deuses e o destino de Tróia,


e roubei da cela sagrada a estatueta de Minerva da Frígia,
lá no meio dos inimigos. E Ájax quer comparar-se a mim?

'Ora, os fados impediam Tróia de ser conquistada sem ela.


340 Onde pára o valente Ájax? Onde as grandiloquentes palavras
do grande herói? Porque tens medo agora? Porque ousou
Ulisses esgueirar-se entre sentinelas e aventurar-se na noite,
e, entre espadas ferozes, não apenas nas muralhas de Tróia,
mas até na fortaleza lá no alto penetrar, e arrebatar a deusa
345 do seu santuário, agarrá-la e trazê-la pelo meio dos inimigos?
Se eu não tivesse feito isto, seria em vão que o filho de Télamon
manejaria no braço esquerdo o escudo do couro de sete touros.
Nessa noite, alcancei a vitória sobre Tróia. Foi então que venci
Pérgamo, quando, pela força, fiz com que pudesse ser vencido.

350 'Pára de nos indicar com olhares e sussurros o filho de Tideu,


o meu querido amigo. Ele tem o seu próprio quinhão de glória.
Quando brandias o escudo em prol da frota aliada, não estavas
só: tinhas por colegas a tropa toda; a mim coube-me um único.
E se ele não soubesse que a bravura vale menos que a razão,
355 e que não se trata de ter de premiar uma mão direita invicta,
ele próprio as reclamaria; reclamaria o Ájax mais modesto, [ 121
o feroz Eurípilo e o filho do famoso Andrémon, nem o faria [ 13 1
menos Idomeneu, e até Meríones, nascido na mesma pátria,
e demandaria as armas o irmão do filho mais velho de Atreu. [141
360 Pois são bravos guerreiros, não inferiores a ti no labor de Marte.
Mas eles vergaram-se à minha inteligência; a tua direita é útil
na guerra; mas a tua cabeça precisa de ser regida por mim.
Tu tens força sem engenho, eu preocupo-me com o futuro.

1 1 Heleno.
12 O filho de Oileu.
13 Toante.
14 Os dois filhos de Atreu são Menelau (o mais novo) e Agamémnon (o mais velho).
320 L I V R O X I I I As armas de Aquiles

Tu sabes combater, mas é comigo que o filho de Atreu escolhe


365 a ocasião para pelejar; tu somente entregas o teu corpo,
eu, a inteligência. E tal como quem pilota o barco é superior
ao remador, e tal como o general sobreleva sobre o soldado,
de igual modo eu te supero. Pois no nosso corpo a mente
vale mais que o punho: todo o vigor reside nela.

310 'Quanto a vós, chefes, concedei o prémio a quem por vós zelou,
em paga pelos cuidados de tantos anos, nos quais eu me afligi;
concedei este galardão como recompensa pelos meus serviços.
O meu trabalho chega ao fim. Afastei os entraves do destino,
tomei a alta Pérgamo, fazendo com que pudesse ser capturada.
375 Pelas esperanças comuns, pelos muros de Tróia prontos a cair,
pelos deuses que há pouco subtraí ao inimigo, agora imploro
[e por aquilo que possa faltar e que deva ser feito sabiamente,
e se há algo de ousado ou perigoso que deva ainda ser feito,
se julgais que algo ainda resta fazer para o destino de Tróia] :
380 recordai-vos de mim ! E se não me derdes as armas a mim,
dai-as a ela ! ' - e aponta para a fatídica imagem de Minerva.'

Os chefes quedam-se impressionados, e ficou patente o valor


da eloquência: o hábil orador levou as armas do bravo herói.
Aquele, que, só, Heitor deteve em duelo, e tanta vez o ferro
385 e o fogo e o próprio Júpiter, só não o detém o acesso de raiva:
a fúria venceu o herói invicto. Puxando da espada, gritou:
'Ao menos, esta é minha; ou até para si a reclama Ulisses?
Esta devo usá-la contra mim. Ela, tantas vezes encharcada
do sangue dos Frígios, encharca-se agora do sangue do dono,
390 para que ninguém possa derrotar Ájax, senão o próprio Ájax ! '
Assim diz , e enterrou a mortal espada no peito, onde ao ferro
era acessível, peito que, por fim, recebeu o seu primeiro golpe:
As suas mãos não logram arrancar a lâmina, de tão cravada:
o próprio sangue a expulsou. O chão avermelha-se de sangue,
395 e das verdes ervas faz surgir aquela flor da cor da púrpura,
a mesma que, em tempos, brotara da ferida do filho de Ébalo. 1 1 '1

" Jacinto (ver X, 205-2 16).


Hécuba, Políxena e Polidoro L I V RO X I I I 321

Ao centro das pétalas estão inscritas letras, comuns ao rapaz


e ao herói: neste caso, indica o nome, no outro, o grito de dor. [! 6J

VITORIOSO, faz-se à vela rumo à pátria de Hipsípile e do ilustre


400 Toante, ilha de má fama pelo massacre de seus antigos maridos, [l7J
a fim de recuperar as armas do herói de Tirinto, as suas flechas.
Quando as trouxe de volta aos Gregos, junto com o dono delas, [l8J
então, por fim, o golpe final foi desferido na já tão longa guerra.
[Tróia e Príamo sucumbem juntos; quanto à esposa de Príamo,
405 após tudo perder, perdeu também a forma humana, a infeliz,
e veio aterrorizar um céu estrangeiro com um ladrar insólito,
ali, onde o longo Helesponto se fecha num apertado estreito.]

Ílion estava então em chamas. O fogo ainda não se extinguira,


e o altar de Júpiter já bebera o pouco sangue do idoso Príamo;
410 a sacerdotisa de Febo, arrastada pelos cabelos, para os céus [!9]

ia estendendo as mãos, inutilmente. Os Gregos vencedores


arrastavam dali como prémio, sempre motivo de invejas,
as mães dos Dárdanos, abraçadas, até à última, às estátuas
dos deuses pátrios e barricadas nos templos em chamas.
415 Astíanax é atirado daquela torre de onde antes costumava
tantas vezes observar seu pai, que sua mãe lhe apontava, [20J

combatendo por si e para defender o reino de seus avós.

Já Bóreas os aconselha a zarpar, e estalam as velas agitadas


pelo sopro favorável; o nauta exorta a aproveitar o vento.
420 "Adeus, Tróia ! Levam-nos à força ! " gritam, beijando o chão
as Troianas, ao deixarem as casas fumegantes e a pátria.
A última a embarcar na frota (dava dó só de ver ! ) é Hécuba,
que entretanto fora descoberta entre os sepulcros dos filhos.
Agarrava-se aos túmulos e cobria de beijos aqueles ossos,

16 AI AI em grego, ou seja o início do nome Ájax e wna expressão de dor como em português
'Ai ! ' .
17 Lemnos.
18 Filoctetes.
1 9 Cassandra.
2º Heitor e Andrómaca.
322 L I V R O X I I I Hécuba, Políxena e Polidoro

425 quando mãos de Dulíquio a arrastam. Mas de um logrou


ainda sacar cinzas, as de Heitor, e, sacadas, levou-as no colo;
sobre o túmulo de Heitor deixou, pobre oferenda fúnebre,
um punhado de cãs arrancadas da cabeça: cabelo e lágrimas.

Defronte da Frígia, onde ficava Tróia, situa-se uma terra


430 habitada pelos Bístones. Ali ficava o sumptuoso palácio
de Polimestor, a quem o teu pai te confiara secretamente
para te criar, ó Polidoro, afastando-te da guerra na Frígia.
Um plano sábio, não fosse confiar também tesouro enorme,
prémio para um crime, provocação para a alma gananciosa.
435 Mal a sorte dos Frígios sucumbiu, o pérfido rei dos Trácios
pega na sua espada e enterra-a na garganta do seu pupilo.
E como se, eliminando o corpo, o crime pudesse apagar,
lança de um penhasco o cadáver para as ondas debaixo.

Junto à costa da Trácia, o Atrida havia fundeado a frota,


440 até o mar ficar mais calmo e o vento mais favorável.
Aqui, eis que de súbito, tão colossal como fora em vida,
sai Aquiles de uma enorme fenda que no solo se abrira,
de olhar ameaçador, com a mesma expressão daquele dia
em que, feroz, atacara injustamente Agamémnon com ferro.
445 'Partis então esquecidos de mim, ó Aqueus', vociferou,
'e a gratidão pela minha bravura fica enterrada comigo?
Livrai-vos ! Para meu túmulo não ficar sem honras fúnebres,
imolai Políxena e aplacai deste modo o fantasma de Aquiles. '

Assim disse, e o s camaradas obedeceram à impiedosa sombra.


450 Arrancando-a ao colo da mãe, quase a única que a confortava,
a jovem, triste, corajosa de modo superior à condição feminina,
é levada até ao sepulcro para a imolarem junto à terrível tumba.
Lembrada de quem era, quando a aproximaram do cruel altar
e ela percebeu que o selvagem sacrifício preparado era para si,
455 e mal viu Neoptólemo de pé, junto dela, empunhando o ferro,
com os olhos cravados no seu rosto, disse-lhe então:
'Serve-te agora, por fim, deste sangue de nobre linhagem.
Vamos, sem demora, enterra a espada na minha garganta
ou no meu peito ! ' (e descobriu tanto a garganta como o peito) .
Hécuba, Políxena e Polidora L I V R O X I I I 323

460 'Decerto eu, Políxena, não suportaria ser escrava de ninguém.


[E com tal sacrifício não lograrás aplacar qualquer divindade.]
Tão-só gostaria que a mãe não se apercebesse da minha morte:
é a minha mãe que estorva e reduz a minha alegria de morrer,
embora não seja minha morte, mas a sua vida que deve chorar.
465 E vós, para que eu chegue livre junto das sombras do Estígio,
afastai-vos só e, se o que peço é justo, evitai tocar numa virgem
com mãos masculinas. O sangue de alguém livre será mais
grato àquele, quem quer que ele seja, que, com a minha morte,
vos aprestais a aplacar. Se, porém, as derradeiras palavras
470 de meus lábios alguém comovem (é a filha do rei Príamo,
não uma cativa, que roga), devolvei à minha mãe o meu corpo
sem resgate: não pague com ouro o triste direito a sepultar-me,
mas com pranto; antes, quando podia, pagava também com ouro.'

Tal dissera. O povo não contém as lágrimas, lágrimas que ela


475 conteve. O sacerdote, também ele chorando, a contra-gosto
rasga o peito que ela lhe oferece, espetando-lhe o ferro.
Desfalecendo os joelhos, acaba por deslizar e cair por terra,
mantendo o olhar intrépido até ao último instante de vida.
E até enquanto caía, a sua preocupação era tapar as partes
480 que devia cobrir, salvaguardar o decoro do seu casto pudor.
As Troianas levam-na e recordam os filhos todos de Príamo
que tiveram de chorar, quanto sangue dera uma só casa.
Gemem por ti, ó virgem, e por ti, há pouco esposa de um rei, [2!J

chamada mãe de príncipes, imagem da prosperidade da Ásia.


485 Agora, até como presa tens má sorte, pois o vitorioso Ulisses
não quer que sejas dele, a não ser só por teres dado Heitor
à luz. A muito custo, encontrou Heitor dono para sua mãe !
Ela, abraçada ao corpo esvaziado daquela alma tão corajosa,
por ela verte lágrimas, como pela pátria, filhos e o marido
490 tantas vezes vertera. Derrama lágrimas sobre as feridas dela,
cobre-lhe os lábios com os seus, flagela o peito já habituado,
e, esfregando os cabelos encanecidos no sangue já seco,
de seios rasgados, diz muita coisa, e entre elas as seguintes:

21 Ifigénia e Hécuba, respectivamente.


324 L I V R O X I I I Hécuba, Políxena e Polidora

'Oh ! filha, última dor para tua mãe (o que ainda me resta?)
495 tu jazes morta, filha; eu vejo a tua ferida, ferida minha.
Eis: para eu não perder nenhum dos meus senão pelo ferro,
até tens o teu ferimento. Mas, por seres donzela, pensava
que do ferro estavas livre. Caíste, mesmo donzela, pelo ferro.
E quem matou tantos irmãos teus, foi o mesmo que te matou:
500 o destruidor de Tróia, o aniquilador da nossa família, Aquiles.
Quando ele sucumbiu às flechas de Páris e Apolo, dissera eu:
"Agora, ao menos, já não nada tenho a recear de Aquiles. "
Mas até agora tinha de o recear. Sepultado, as próprias cinzas
encarniçam-se contra esta família; até da tumba o senti inimigo.
505 Para o neto de Éaco fui fecunda! Jaz no chão a portentosa Ílion, [221
e a desgraça de um povo acabou com este terrível desfecho
- mas, apesar de tudo, acabou ! Só para mim Pérgamo pervive,
o meu sofrer continua. Há pouco a mais importante de todas,
poderosa por tantos genros e filhos e noras e o marido, agora
510 arrastam-me exilada, pobre, arrancada às tumbas dos meus,
presente para Penélope. E enquanto fiar a lã que me ordenar,
ela apontar-me-á às senhoras de Ítaca e dirá: "Esta é a aquela,
a ilustre mãe de Heitor, esta é aquela tal, a esposa de Príamo. "
E agora, depois de tantos ter perdido, tu, a única que aliviava
515 esta dor de mãe, foste imolada junto ao túmulo de um inimigo.
Ao inimigo pari a oferenda fúnebre ! Porque vivo, feita ferro?
Que espero eu? Para o que me reservas, ó longa senectude?
Porque prolongais, deuses cruéis, a vida a uma velha, senão
para ver novas exéquias? Quem julgaria possível que Príamo
520 fosse dito afortunado depois da destruição de Pérgamo?
Afortunado é, porque morreu. Assim não te vê assassinada,
filha minha, ele que perdeu a vida juntamente com o reino.
Pois tu, jovem princesa, terás por dote, julgo eu, exéquias,
e o teu corpo será encerrado no jazigo da tua família. . .
525 Mas tal não é a sorte da nossa casa ! Para ti, honras fúnebres
serão lágrimas de tua mãe e um punhado de terra estrangeira.
Tudo perdi. Só me resta um filho, o predilecto de sua mãe,
como razão para ir aguentando viver mais algum tempo,

22 Aquiles.
Hécuba e Polidora L I V R O X I I I 325

agora o único, outrora o mais novo de todos os meus rapazes,


530 Polidora, enviado para esta terra e ao rei do Ísmaro confiado.
Porque perco tempo entretanto, e não lavo com água pura
a tua atroz ferida e o rosto cruelmente salpicado de sangue?'

Assim dizendo, dirigiu-se à praia com o seu andar de anciã,


arrepelando encanecidos cabelos. 'Dai a vasilha, Troianas'
535 pedira a desgraçada, 'para ir buscar água lúnpida ao mar'.
Eis que avista, arremessado no areal, o corpo de Polidora,
com as terríveis feridas desferidas pela espada da Trácia.
As Troianas largam um berro. Com a dor, ela fica sem fala;
a própria dor devora-lhe quer a voz, quer as lágrimas
540 que brotavam lá de dentro. Tal como um duro rochedo,
fica imóvel, aturdida, e ora crava o olhar no chão defronte,
ora; de tempos a tempos, ergue o rosto feroz para o céu,
ora observa o rosto do filho jazente, ora as suas feridas,
sobretudo as feridas, e arma-se e apetrecha-se de cólera.
545 Mal se incendiou de fúria, como se ainda fosse rainha,
decide vingar-se e queda-se, absorta, a iÍnaginar o castigo.
Tal como se enfurece a leoa a quem roubaram a cria de leite,
e, encontrando as pegadas, persegue o inimigo sem o ver,
assim Hécuba, depois de misturar a raiva com a sua dor,
550 não esquecida do seu orgulho, mas esquecida da sua idade,
vai até junto de Polimestor, o artífice da atroz matança,
e solicita uma audiência: é que queria mostrar-lhe um ouro,
que ainda permanecia escondido, para ele entregar ao filho.
O odrísio acreditou; com a t habitual t avidez por riquezas,
555 vai ao encontro privado. Aí, com voz doce e muita manha,
'Depressa, Hécuba', disse, 'dá-me a prenda para o teu filho.
Tudo o que me deres será dele, tal como o que antes já deste,
pelos deuses te juro.' Com olhar feroz, ela observa-o a falar
e a jurar em falso. Incendiada de cólera, que vai inchando,
560 agarra-o neste estado, grita pelas outras mulheres cativas,
e enterra-lhe os dedos nos pérfidos olhos, e das órbitas
arranca-lhe os globos oculares (a cólera fá-la maléfica) ,
e , manchada com o sangue culpado, mergulha ali a s mãos
e escava não olhos (já lá não estavam) mas o sítio dos olhos.
326 L I V R O X I I I Hécuba - Aurora e Mémnon

565 O povo da Trácia, inflamado pela desgraça infligida ao rei,


desata a atacar as Troianas, arremessando dardos e pedras.
Ela corre atrás das pedras que atiravam, e tenta mordê-las
com um rosnar rouco, e, ao abrir a boca para dizer algo,
quando tentou falar, ladrou. Esse local ainda hoje lá está,
510 e do episódio deriva o seu nome. Por muito tempo lembrada m1
das antigas desgraças, uivou desolada pelos campos Sitónios.
A desdita dela impressionou os conterrâneos, os Troianos,
e os inimigos, os Pelasgos, e comoveu até os deuses todos,
de tal forma todos que até a própria esposa e irmã de Júpiter
515 chegou a reconhecer que Hécuba não merecia um tal fim.

EMBORA os tenha apoiado na guerra, Aurora não tem vagar


para carpir os infortúnios e o fim de Tróia e o de Hécuba.
Angustia-a aflição bem mais próxima, um luto na família,
a perda de Mémnon. Pois este a mãe da cor do açafrão viu
580 sucumbir sob a lança de Aquiles nas planícies da Frígia.
Viu, e aquela cor, com a qual as horas da madrugada
ruborescem, empalideceu, e o céu ocultou-se atrás das nuvens.
A mãe não aguentou mais contemplar o cadáver colocado
sobre as derradeiras chamas, e, de cabelos soltos, tal
585 como estava, não achou indigno prostrar-se aos joelhos
do magno Júpiter, e de às lágrimas adicionar tais palavras:

'Mesmo inferior a todos quantos o céu dourado sustenta


(pois pelo mundo inteiro raríssimos templos tenho eu) ,
porém sou deusa, e nem vim para que m e dês santuários
590 e dias de sacrifícios, e aras que se esquentem com chamas.
Mas, se reparares no serviço que te presto, embora mulher,
quando, ao nascer de um novo dia, vigio a fronteira da noite,
reconhecerás que devo ser premiada. Mas não é este o anseio
nem tal a situação de Aurora: reclamar honras merecidas.
595 Venho porque perdi o meu Mémnon, que em vão empunhou
valorosas armas pelo seu tio, e que, na sua tenra idade, [24 1

lJ O local chama-se Cinossema, que significa 'a tumba do cão'.


24 Príamo.
Aurora e Mérnnon - Eneias L I V R O X I I I 327

foi chacinado pelo bravo Aquiles - assim vós o quisestes.


Concede-lhe, rogo, algumas honras, consolo pela sua morte,
ó supremo soberano dos deuses, alivia as feridas à sua mãe.'

600 Júpiter anuíra. Então, a elevada pira de Mémnon colapsou


envolta em altas labaredas, e volutas de fumo negro
obscureceram o dia, tal como quando os rios exalam névoas
neles nascidas, e abaixo delas ao sol não é permitido entrar.
Voltejam negras cinzas e aglomeram-se, e condensam-se
605 numa massa que vai adquirindo forma e extraindo do fogo
calor e vida, conferindo-lhe asas a sua própria leveza.
Primeiro, assemelha-se a um ave; depois, é ave verdadeira,
com as asas estrepitando. Ouve-se igualmente o restolhar
de inúmeras irmãs, cuja origem do nascimento é a mesma.
610 Três vezes voam de roda da pira, três vezes o bater de asas
pelo ar ecoa em uníssono. Ao quarto voo, dividem as forças.
Então, os dois bandos lançam-se ferozmente numa batalha,
cada um do seu lado, e, com os bicos e recurvas garras,
dão largas à sua fúria e esgotam asas e peitos à sua frente.
615 Parentes das cinzas sepultadas, caem como oferendas
e recordam que elas nasceram de um valoroso herói.
O fundador dá o nome aos súbitos pássaros: a partir dele
chamam-se Mnemónides. E sempre que o sol já percorreu
os doze signos, os que vão morrer voltam à luta como o pai.
620 Assim, se a outros pareceu lastimoso que a filha de Dimas
ficasse a ladrar, Aurora entregou-se à dor. E ainda hoje verte
devotadas lágrimas, rociando de orvalho o mundo inteiro.

MAS o destino não permite que as esperanças de Tróia também


sejam destruídas com os muros. Aos ombros, o herói da Citereia
625 traz imagens sacras e, outra coisa sacra, o pai, venerável carga l25 1

(de entre tantas riquezas, o pio herói escolheu só tais despojos


e o seu amado Ascânio) . A frota foge, zarpando de Antandro,
e navega pelas extensões do mar. Deixa para trás os portais
malditos dos Trácios, terra que ressuma o sangue de Polidora.

25 Eneias com seu pai Anquises.


328 L I V R O X I I I Eheias - As filhas de Ânio

630 E aproveitando os ventos e as correntes favoráveis, aporta


à cidade de Apolo, juntamente com os seus companheiros. r"'

Ânio, que, como rei, servia o povo e, como sacerdote, o culto


a Febo de forma impecável, acolhe-o no templo e no palácio.
Mostra a cidade e os famosos santuários, e os dois troncos
635 aos quais, em tempos, Latona se agarrara na hora do parto.
Após queimarem incenso, e no incenso derramarem vinho,
e cremarem, segundo a tradição, as vísceras de bois imolados,
dirigem-se ao palácio real. Reclinam-se em espessas alfombras
e tomam a dádiva de Ceres, acompanhada com límpido Baco.
640 Então diz assim o pio Anquises: 'Ó sacerdote eleito de Febo,
estou enganado ou não tinhas um filho, quando vi a cidade
pela primeira vez, e quatro filhas, tanto quanto me lembro?'

ABANANDO a cabeça cingida de fitas da cor da neve, Ânio


retorquiu-lhe, desolado: 'Não te equivocas, sublime herói.
645 Efectivamente, viste-me, em tempos idos, pai de cinco filhos.
Ora, hoje (tamanha a instabilidade das coisas que revolteia
o ser humano ! ) vês-me quase sem filhos. Pois, de que ajuda
me vale o meu rapaz ausente, de quem a terra de Andros
deriva o nome, ilha que, em nome de seu pai, ele governa?

650 ' O deus de Delos deu-lhe a arte dos augúrios. Presente


diverso deu Líber às raparigas, maior do que se poderia
desejar ou até crer: tudo em que as minhas filhas tocavam
transformava-se em cereal ou vinho puro, ou no azeite
da alva Minerva. Tinham esta faculdade bem proveitosa.
655 Mal soube disto o filho de Atreu, o saqueador de Tróia
(não julgueis que nós, de algum modo, não sentimos
também a vossa tormenta) , recorrendo à força das armas,
arrebata-as à sua revelia dos braços do pai e ordena-lhes
que abasteçam a frota da Argólide com o seu dom celeste.
660 Cada uma foge para onde pode. Refugiam-se na Eubeia
duas, outras tantas filhas em Andros, a terra do irmão.
Chegam soldados ameaçando guerra se não as entregar.

26 Delos.
As filhas de Ânio - As filhas de Orion L I V R O X I I I 329

O medo venceu o dever fraternal: entregou-as ao castigo,


ainda que irmãs. Mas ao irmão medroso podias perdoar:
665 não havia ali um Eneias para defender Andros, não havia
um Heitor, por cuja obra aguentastes até ao décimo ano.
Já aprontavam os grilhões para lhes acorrentar os braços,
quando elas ergueram os braços ainda livres para o céu
e imploraram: "Baco, nosso pai, acode-nos ! " ; e o autor
610 do dom ajudou-as (se se pode chamar ajudar destruí-las
de um modo assombroso) . Como perderam o seu aspecto
nunca consegui saber, e ainda hoje não consigo explicar.
Mas o final da desgraça é conhecido: cobrindo-se de penas,
transformaram-se nas aves da tua esposa, níveas pombas. ' l27 1

675 APós o banquete, que preencheram com estas e outras


conversas, levantaram as mesas e foram dormir.
Ao nascer do dia, levantam-se e vão ao oráculo de Febo.
Este instruiu-os a buscar a antiga mãe, a região de origem
da sua estirpe. O rei assiste à partida e dá-lhes presentes:
680 um ceptro a Anquises, uma capa e uma aljava ao neto,
um vaso a Eneias, que, em tempos, um seu amigo, Terses,
nascido junto ao Ismeno, lhe enviara da região da Aónia.
Fora Terses a enviá-lo, mas quem o fabricara fora Álcon,
natural de Lindo, que nele cinzelara uma longa história.
685 Via-se uma cidade, e nela sete portas poderias apontar
(estas serviam de legenda e mostravam qual era ela) . l2•1
Diante da cidade, exéquias e túmulos e chamas das piras
funerárias; mães, de cabelos soltos e peitos desnudados,
exprimem luto. Vêem-se acolá também ninfas a chorar,
690 lastimando-se das fontes secas. Perfilam-se árvores
sem folhas, nuas; cabras roem as ressequidas pedras.
Eis que no meio de Tebas representa as filhas de Oríon.
Uma desfere virilmente um golpe na garganta desnuda,
Aquela enterra uma arma bem fundo no bravo peito:
695 Caem pelo seu povo. São levadas pelas ruas da cidade
em faustoso funeral e cremadas em lugar cheio de gente.

27 Vénus.
28 Tebas.
330 L I V R O X I I I As filhas de Oríon - Viagem de Eneias à Sicília

Então, para que a estirpe não se extinga, das cinzas das jovens
saltam fora dois gémeos, que a tradição chama Coroas,
e encabeçam o cortejo fúnebre das cinzas onde nasceram.
100 Até aqui as figuras em relevo rebrilhavam em bronze antigo;
o rebordo do vaso tinha incrustadas folhas de acanto em ouro.
Em troca, os troianos dão prendas não inferiores às recebidas.
Ao sacerdote oferecem um turíbulo para guardar incenso,
um cálice para libações e uma cintilante coroa de ouro e jóias.

105 DEPOIS, recordando-se de que eles, sendo Teucros, provêm


da estirpe de Teucro, rumam a Creta e aí desembarcam.
Mas não suportando o clima da região muito tempo, deixam
as suas cem cidades e decidem rumar aos portos da Ausónia.
Rebenta uma feroz borrasca, que atira os heróis aos baldões;
110 refugiados na traiçoeira baía das Estrófades, aterrorizou-os
a alada Aelo. E já tinham passado Dulíquio com seus portos,
Ítaca e Sarnas, e o Nérito e suas casas, reino do velhaco Ulisses.
Avistam Ambrácia, outrora disputada em litígio entre deuses,
e a pedra com a forma do juiz que assim fora transformado, l291

115 terra hoje em dia famosa pelo templo de Apolo de Áccio.


Vêem a região de Dodona com os seus carvalhos falantes,
e o golfo de Caónia, de onde os filhos do rei dos Molossos
tinham escapado ao ímpio incêndio, providos de asas.

De seguida, rumam ao vizinho país dos Feaces, de campos


120 plantados de férteis pomares. Depois tocam Butroto, no Epiro,
onde reina o vidente da Frígia com a sua réplica de Tróia. l301
Daí, sabendo o que o futuro traria (o filho de Príamo, Heleno,
tudo predissera em advertência exacta) , entram nas águas
da Sicânia. Esta projecta mar adentro três promontórios
m dos quais Paquino está voltada para o chuvoso Austro,
Lilibeu enfrenta o suave Zéfiro, Peloro olha para os Arctos,
que jamais no mar mergulham, e também para o Bóreas.
É por aqui que os Teucros chegam; e com remos e a maré
favorável, a frota fundeia na praia de Zancle ao cair da noite.

29 Cragaleu.
30 Heleoo.
Cila e Glauco - Galateia e Polifemo L I V R O X I I I 33 1

no CII.A tudo assola do lado direito, a irrequieta Caríbdis


do lado esquerdo. Esta devora naus e regurgita-as depois,
aquela possui um ventre letal cingido de ferozes cães
e o rosto de uma jovem; e, se os poetas não nos legaram
apenas fantasias, em tempos, ela fora mesmo uma donzela.
135 Por ela suspiravam pretendentes sem conta. Ela repelia-os,
e ia ao pé das ninfas do mar (era tão cara às ninfas do mar ! ) ,
e contava como escapara, ludibriando, à s paixões dos moços.
Um dia, enquanto lhe oferecia o cabelo para o pentear,
Galateia, suspirando sem cessar, tais palavras lhe dirige:

740 'A TI, ao menos, ó jovem, corteja-te a raça gentil dos homens
e podes rejeitá-los, tal como o fazes, sem qualquer problema.
Mas a mim, que sou filha de Nereu, a quem a azulada Dóris
deu à luz, que estou segura por uma multidão de irmãs,
não me foi lícito escapar à paixão do Ciclope, a não ser
745 com tanto sofrimento. ' E as lágrimas embargaram-lhe a voz.
A jovem enxugou-lhas com o polegar alvo como o mármore,
e, consolando a deusa, retorquiu: 'Conta-me, minha querida,
não encubras a razão da tua dor. Sabes que sou de confiança.'
E com tais palavras a Nereide respondeu à filha de Crateis:

750 'Ácis era filho de Fauno e de uma ninfa filha do Simeto.


Era motivo de grande deleite para o seu pai e sua mãe,
mas ainda maior para mim; e, de facto, só a ele me unira.
Sendo um rapaz lindo, perfizera já dezasseis anos de vida
e uma incerta lanugem marcava-lhe as tenras bochechas.
155 Por ele, eu morria de amores, por mim, o Ciclope, sem fim.
Se perguntasses qual sobrelevava em mim, se o meu amor
por Ácis ou a aversão ao Ciclope, não saberia dizer-to.
Eram as duas coisas equivalentes. Oh ! quão colossal é
o teu poder, alma Vénus ! Pois aquele ser cruel, horrendo
1w até para os próprios bosques, que forasteiro algum visita
impunemente, que despreza o magno Olimpo e os deuses,
sente que coisa é o amor. E dominado pelo poderoso desejo,
abrasa-se de paixão, olvidado dos rebanhos e de suas grutas.
Agora cuidas do teu aspecto, agora cuidas de ficar atraente,
332 L I V R O X I I I Çalateia e Polifemo

165 Polifemo, agora penteias o cabelo espetado com um ancinho,


e já te encanta desbastar a barba hirsuta com uma foice,
e ver na água o reflexo das feições ferozes, e ensaiar olhares.
A paixão pela matança, a ferocidade, a sede imensa de sangue
desvanecem-se; e os barcos chegam e partem em segurança.
no Um dia, Télemo chega de barco à Sicília e vai até ao Etna,
Télemo, filho de Êurimo, que nunca se enganara a interpretar
o voo da aves. Tal diz ao terrível Polifemo: "Esse olho único
que tu tens aí no meio da tua testa, Ulisses vai-to tirar. "
Ele riu-se e retorquiu: "Ó mais estúpido dos adivinhos,
m enganas-te: outra já mo tirou. " Assim desdenhou quem dizia
em vão a verdade, e, ora, calcorreando as praias, as esmaga
com os enormes passos, ora, cansado, volta à escura gruta.

Há uma colina que se projecta pelo mar adentro, em forma


de longa cunha afiada; o mar corre ao longo dos dois lados.
180 Para aqui trepou o selvagem Ciclope e no meio se sentou;
sem ninguém as conduzir, as ovelhas lanzudas vieram atrás.
Quando aos pés pousou o pinheiro que usava como cajado,
árvore bem mais apropriada a suportar as vergas dos barcos,
e tomou a flauta composta de cem canas reunidas,
185 os montes todos escutaram, escutaram também as ondas
o seu tocar pastoril. Oculta atrás de uma rocha e aninhada
no colo do meu querido Ácis, saquei de longe com os ouvidos
o seu cantar; ao ouvi-lo, guardei na memória tais palavras:

" ' Ó Galateia, mais alva que a pétala do níveo ligustro,


190 mais florida do que prados, mais esbelta que o alto amieiro,
mais brilhante que vidro, mais brincalhona que o cordeirinho,
mais macia que conchas polidas constantemente pelas ondas,
mais agradável que no Inverno o sol, que a sombra no Verão,
mais majestosa que a palmeira, mais vistosa que alto plátano,
195 mais reluzente que o gelo, mais doce que a uva madura,
mais suave que as penas do cisne, e também que o requeijão,
e, se não fugires, mais formosa que um jardim bem regado.
E também, Galateia, mais casmurra que bezerro não domado,
mais dura que um carvalho velho, mais falsa do que as ondas,
800 mais inconstante que ramos de salgueiro e vinha de uva branca,
Galateia e Polifemo L I V R O X I I I 333

mais inamovível que os rochedos, mais impetuosa que um rio,


mais soberba que o aplaudido pavão, mais violenta que o fogo,
mais espinhosa que silva, mais brutal que ursa que deu à luz,
mais surda que o mar, mais desapiedada que serpente pisada,
805 e, coisa acima de tudo o resto que eu gostaria de te poder tirar,
mais veloz quando foges, não tanto como o cervo acossado
pelo sonoro ladrar, mas antes do que os ventos e a veloz brisa.

' " Se tu me conhecesses bem, arrependias-te de fugir de mim;


tu própria reprovarias as demoras e tudo farias para me reter.
810 Tenho grutas, parte de uma montanha, de tectos abobadados
na rocha viva, onde nem o sol no pino do Verão se sente,
nem se sente o Inverno. Tenho maçãs nos ramos carregados,
tenho, nas longas vides, cachos de uvas iguais ao ouro,
e tenho também purpúreas; umas e outras guardo para ti.
815 Com as tuas mãos, tu própria colherás deliciosos morangos
que brotam na sombra do bosque, colherás cornisos outonais
e ameixas, não só aquelas azuladas com o seu sumo escuro,
mas também aquelas, tão requintadas, que parecem cera fresca.
Se casares comigo, jamais te faltarão castanhas, jamais faltarão
820 os frutos do medronheiro; todas as árvores serão ao teu serviço.
Todos estes rebanhos são meus; muitos outros erram nos vales,
muitos no bosque se abrigam, muitos estão recolhidos nas grutas.
Nem seria capaz de dizer quantos são, se acaso perguntasses.
Só pobres contabilizam os animais ! No elogio que lhes faço,
825 não precisas de acreditar: vem aqui e tu própria poderás ver
como de tão inchados os úberes mal cabem entre as coxas.
E quanto a crias, possuo em tépidas redis cordeirinhos,
e possuo também, da mesma idade, cabritos noutros redis.
Nunca me falta o leite da cor da neve; parte dele guardo
8Jo para o beber, parte o coalho nele dissolvido endurece.
As prendas que te caberão não são encantos fáceis de obter,
nem demasiado banais, como gamos ou lebres ou um bode,
ou um casal de pombas ou um ninho roubado a uma copa.
Nos cimos da serra descobri, para poderem brincar contigo,
835 duas crias de felpuda ursa, de tal forma iguais entre si
que dificilmente conseguirás distinguir uma da outra.
Achei-as e disse: 'Estes vou guardar para a minha senhora'.
334 L I V R O X I I I Galateia e Polifemo

Agora, tira só a tua brilhante cabeça para fora do mar azul,


vem agora, Galateia, e não desdenhes os meus presentes !

840 "'Decerto, eu sei como sou. Vi há pouco na límpida água


a minha imagem, e o meu aspecto agradou-me ao vê-lo.
Observa como sou grande ! Nem no céu Júpiter tem corpo
maior que o meu (pois vós costumais contar que há um tal
Júpiter que aí reinará) . Uma cabeleira imensa transborda
845 sobre o rosto rude e, qual bosque, dá sombra aos ombros.
E não penses que é feio o meu corpo estar todo eriçado
de tão densas e duras cerdas. Feio é uma árvore sem folhas,
feio é o cavalo a quem crinas o loiro pescoço não tapam;
penas cobrem os pássaros, a beleza das ovelhas está na lã.
850 Fica bem a um homem barba e pêlos hirsutos pelo corpo.
Só tenho um olho, a meio da testa, mas que se assemelha
a um enorme escudo. E depois? Não vê do céu o magno Sol
todas as coisas daqui? E todavia o Sol tem uma só órbita.
Soma a isto que é o meu pai quem reina nos vossos mares.
855 Eu dou-to como sogro. Apieda-te um pouco de mim e ouve
as preces de quem te suplica. Só me ajoelho diante de ti:
eu, que desprezo Júpiter, e o céu, e o raio que tudo trespassa,
é a ti que venero, Nereide. A tua ira é mais cruel que o raio.

"'Por outro lado, eu suportaria melhor ser desprezado por ti,


860 se fugisses a todos; mas por que razão escorraças o Ciclope,
e, ao mesmo tempo, amas Ácis e Ácis preferes a meus abraços?
Que se encante consigo mesmo e que te encante, Galateia
(eu preferiria que não) : somente mal a oportunidade me surja,
ele sentirá que a minha força é proporcional ao enorme corpo.
865 Esquartejá-lo-ei vivo e espalharei os membros aos bocados
pelos campos e pelas tuas ondas. Assim ele se una contigo. . .
Ardo d e paixão, sim, e o fogo despeitado arde mais violento,
e parece-me que trago no peito o Etna, para aqui transferido
com toda a sua energia - e tu, Galateia, nem te comoves ! "

810 'Tendo-se assim lamentado em vão (pois eu estava a ver tudo),


levanta-se como um touro desvairado a quem tiraram a vaca.
Não consegue estar parado e vagueia pelos bosques e vales
Galateia, Polifemo e Ácis - Cila e Glauco (cont.) L I V R O X I I I 335

habituais, quando, feroz, me vê a mim e a Ácis, desprevenidos,


nem recearmos nada deste género, e exclama: "Eu vi-vos !
875 Farei com que este seja o vosso último encontro amoroso ! "
O vozeirão foi tão potente quanto um Ciclope enraivecido
devia ter. Com tal clamor, até o Etna se arrepiou horrorizado.
Eu, apavorada, mergulho na superfície das águas vizinhas;
o herói neto do Simeto voltara as costas e desatara a fugir,
880 gritando: "Acode-me, Galateia, suplico-te ! Acudi-me, pais,
e acolhei nos vossos domínios aquele que vai morrer ! "
O Ciclope vai atrás dele. Arranca parte de uma montanha
e arremessa-a contra ele; e embora apenas a extremidade
do pedregulho mal o tenha atingido, esmagou Ácis todo.
885 Quanto a mim, a única coisa que o destino me permitia
fazer, eu fiz: que Ácis assumisse os poderes de seu avô. uo

Da massa do pedregulho jorrava sangue de cor escarlate.


Pouco tempo depois, o rubor começou a desvanecer-se.
Primeiro, torna-se da cor do rio turvado pela chuva,
890 e, com o tempo, fica límpido. Depois, com um toque,
a rocha fende-se e das rachas brotam canas verdes e altas,
e a boca aberta na rocha ressoa com o saltitar das águas.
E, espantoso ! , de súbito ergue-se, até à cintura, um jovem
de insólitos chifres cingidos com canas entrançadas,
895 que, não fosse ser maior, não fosse o rosto todo azulado,
seria Ácis. Mas, ainda assim, era mesmo Ácis, tornado
rio, e as suas águas conservaram o seu antigo nome.'

GALATEIA parara de falar. O grupo ali reunido desfaz-se,


e as Nereides retiram-se, indo nadar nas plácidas ondas.
900 Cila regressa. Pois, não se atrevendo ainda a aventurar-se
em mar aberto, ora vagueia desnuda pela areia absorvente,
ora, quando se cansa, deparando com algum recesso de mar
afastado, refresca o corpo na água das ondas ali confinadas.
Eis que, sulcando as ondas, chega Glauco, recente habitante
905 do abismo marinho, cujo corpo fora há pouco transformado
junto a Antédon, diante da Eubeia. Ao ver a jovem, a ela fica
preso de desejo, e põe-se a dizer todas as palavras que julga

31 O rio Simeto.
336 L I V R O X I I I Cila e Glauco

poderem travar a sua fuga; mas ela foge e, veloz pelo medo,
chega ao cimo de um monte que se ergue sobranceiro ao mar.
910
É um cume colossal defronte do estreito, coberto de árvores,
convergindo num só cimo, curvando-se sobre o mar adentro.
Aqui se detém ela, neste local seguro, sem saber se ele será
monstro ou então deus. E olha com espanto para a cor dele,
para o cabelo que lhe cobre os ombros e as costas mais abaixo,
915 por, a partir das virilhas, se seguir torcida cauda de peixe.

Ele apercebeu-se. Apoiado em rocha que se erguia ali ao pé,


'Eu não sou um monstro, nem sou criatura feroz, ó menina, '
disse, 'mas um deus das águas. Nem Proteu tem mais poder
sobre os mares, nem Tritão ou o filho de Atamante, Palémon.
920 Em tempos, porém, fui mortal. Mas, vê tu bem, devotado
ao mar profundo, já então eu vivia afadigando-me sobre ele.
Pois ora puxava as redes que, por sua vez, puxavam o peixe,
ora, sentado numa rocha, manejava a linha com cana de pesca.

'Ora, há um certo areal que confina com um verdejante prado.


925 Um lado é bordejado pelas ondas, o outro pelo campo herboso,
campo que jamais as cornígeras bezerras feriram com os dentes,
que jamais mordiscastes, plácidas ovelhas, peludas cabrinhas.
Dali nunca a atarefada abelha trouxe pólen das flores colhido,
nem saíram festivas grinaldas para as cabeças, nem jamais
930 mão de foice armada ali ceifou. Eu fui o primeiro a sentar-me
naquele relvado, enquanto secava as encharcadas redes.
Um dia, sobre ele estendi por ordem os peixes que pescara
para os contar, peixes que o acaso levara contra as redes,
ou que a ingenuidade conduzira até aos recurvos anzóis.
935 A coisa parece inventada (de que me vale inventar tal coisa?):
ao tocarem nas ervas, as minhas presas começam a mexer-se,
a saltitar sobre os flancos, a avançar pela terra como pelo mar.
E enquanto fico pregado ao chão de espanto, todos eles
fogem para o mar, abandonando a praia e o novo senhor.

940 'Fico boquiaberto; longamente me interrogo e busco a causa,


se foi algum deus que isto fez ou o suco de alguma planta.
"Mas que planta pode ter semelhante poder? " Com a mão
Cila e Glauco L I V R O X I I I 337

colhi ervas do prado e mordi com os dentes o que colhera.


Mal a garganta ainda nem bem engolira o estranho suco,
945 quando eis que, de súbito, senti as entranhas tremerem,
e o coração arrebatado pela paixão por outro elemento.
Não fui capaz de resistir mais tempo: "Ó terra a que jamais
retornarei, adeus ! " disse, e mergulhei o corpo dentro do mar.

'Acolhem-me deuses marinhos, dão a honra de ser um deles,


950 e imploram ao Oceano e a Tétis que retirem de mim tudo
o que eu ainda pudesse ter de mortal. Estes purificam-me,
recitando nove vezes a fórmula que purifica de todo o mal,
e ordenam que me ponha debaixo das águas de cem rios.
E, de imediato, derramam-se torrentes de várias direcções,
955 e uma massa de água desaba-me em cascata sobre a cabeça.
Isto é tudo o que posso contar sobre os memoráveis factos,
tudo de que me lembro. O resto não sei: perdi os sentidos.
Quando voltei a mim, pelo corpo todo sentia-me diferente
daquilo que antes era, e nem na mente me sentia o mesmo.
960 Então, pela primeira vez, eu vi esta barba verde escura
e estes cabelos com que agora varro os imensos mares,
e os enormes ombros e os braços de cor verde-azulada,
e as pernas encurvadas a acabar em barbatana de peixe.
Mas que me alegra ter tal aspecto e aos deuses marinhos
965 encantar, que me alegra ser deus, se nada disto te persuade?'

Dizia ele tais coisas, quando Cila abandona o deus, tendo ele
ainda mais para dizer. Agastado com a rejeição, enfurece-se
e ruma ao palácio assombroso da filha de um dos Titãs, Circe.
LIVRO XIV

E agora já o Etna, arremessado sobre as goelas do Gigante, [iJ

e os campos dos Ciclopes (que não sabem o que é a enxada


ou qual o uso do arado, e que nada devem às juntas de bois)
o da Eubeia, que habita nos mares inchados, deixara para trás. [21

Deixara também para trás Zancle, os muros de Régio defronte,


e o estreito dos naufrágios, espremido entre os dois litorais,
que marca os limites entre as terras da Ausónia e as da Sicília.
Dali, cruzando o mar Tirreno, nadando com a potente mão,
Glauco chegou às colinas herbosas e aos salões do palácio
10 de Circe, a filha do Sol, apinhados das mais variadas feras.

Mal a viu, depois de se saudarem um ao outro, assim disse:


'Ó deusa, de um deus compadece-te, suplico ! Só tu podes
dar-me alívio nesta minha paixão, caso eu pareça digno dele.
Ninguém sabe melhor que eu, ó filha do Titã, quão grande
15 é o poder das plantas, eu que, por meio delas, mudei de forma.
E para que não te seja desconhecida a razão do meu desvario,
foi numa praia de Itália, em frente às muralhas de Messina,
que eu vi Cila. Morro de vergonha ao contar as promessas,
as preces, os mimos, as palavras que ela rejeitou com desdém.
20 Mas, se algum poder há nas fórmulas mágicas, uma fórmula
recita nos teus lábios sacros; se forem mais potentes as ervas,
lança mão do poder comprovado de uma planta eficaz.
Não te digo para tratares nem curares esta minha ferida
(não é preciso pôr-lhe cobro ! ) : que ela partilhe deste fogo.'

1 O gigante é Tifeu.
2 Relembre-se que se trata de Glauco.
Cila, Glauco e Circe L I V R O X I V 339

25 Circe (pois nem há outra mulher de índole mais propensa


a este tipo de chamas, quer a causa disto resida nela mesma,
quer Vénus as provoque, ressentida com a denúncia do pai) 01

estas palavras diz: 'Melhor seria buscares uma que o queira,


que deseje o mesmo que tu, arrebatada por paixão idêntica.
30 Tu merecias ser cortejado sem o pedires (decerto, o podias ! ) ,
e s e deres esperanças, acredita, sem o pedires cortejado serás.
E para não teres dúvidas e ganhares confiança na tua beleza,
eis-me a mim: embora deusa, embora filha do Sol brilhante,
embora com tal poder pelos esconjuros, tal poder pelas ervas,
35 anseio ser tua. Despreza quem te despreza, dá a vez a quem
por ti suspira, dá às duas, com um só gesto, o que merecem.'
A ela, tal tentando, 'Mais depressa brotará arvoredo do mar',
exclamou Glauco, 'e algas nos cimos dos serranias do que
a minha paixão mudará para outra, estando viva Cila. '

40 A deusa indignou-se. E visto que não lhe podia fazer mal


(nem quereria, pois amava-o), encoleriza-se contra aquela
que ele preferia a si. E ressentida pela rejeição do seu amor,
logo se põe a moer umas ervas de má fama junto com sucos
medonhos e, depois de moídas, mistura ladainhas de Hécate.
45 Depois, põe um manto verde-mar e, cruzando um bando
de carinhosas feras, sai do interior do seu palácio.
Demandando Régio, que está defronte às rochas de Zancle,
entra nas ondas que fervilhavam pela turbulência do mar,
e sobre elas caminha, como se por terra firme andasse,
50 correndo sobre a superfície das águas com os pés secos.

Ora, havia uma pequena baía, arqueada num recurvo arco,


lugar de retiro predilecto de Cila. Ali se refugiava da fúria
do mar e do céu, quando o sol, a meio do seu trajecto circular,
está na máxima força e do zénite reduz as sombras ao mínimo.
55 Este local a deusa infecta, poluindo com venenos de efeitos
monstruosos: borrifa de sucos espremidos de raízes maléficas,
e uma obscura e confusa cantilena de enigmáticas palavras

' Ver o episódio no livro IV, vv. 171-189.


340 L I V R O X I V Cila e Glauco - A viagem de Eneias (cont.) - Cercopes

três por nove vezes recita em sussurro em seus lábios mágicos.


Chega Cila. Já mergulhara nas águas até meio do ventre
60 quando vê as ancas desfigurarem-se com monstruosos cães
a ladrar. De início, não acreditando que aquilo eram partes
do seu corpo, foge e tenta afastá-los, e tem medo dos focinhos
ferozes dos cães. Mas, ao fugir deles, arrasta-os consigo,
e quando busca as partes do corpo, as pernas, as coxas e pés,
65 no seu lugar descobre mandíbulas como aquelas de Cérbero.
Ergue-se sobre cães raivosos, e sob o ventre proeminente
e virilhas truncadas mantém dominados os dorsos das feras.

Glauco, que a amava, chorou, e fugiu a desposar Circe,


que usara os poderes das plantas com demasiada crueldade.
10 Cila permaneceu naquele local; e mal lhe foi dada ocasião,
por ódio a Circe, arrebatou a Ulisses os seus companheiros.
Mais tarde, ela mesma teria afundado os barcos dos Teucros, (41

não tivesse sido primeiro transformada em escolho, rochedo


que ainda hoje ali emerge. Até o marinheiro evita o escolho.

15 QUANDO as naus troianas, à força de remos, lograram passar


tal rochedo e a voraz Caríbdis, e estavam quase a chegar à costa
da Ausónia, o vento fê-las voltar atrás, para os areais da Líbia.
Ali acolheu Eneias, tanto na sua morada, como no seu coração,
a de Sídon; mas não suportando ter sido deixada pelo marido, �1
80 por este frígio, numa pira erigida como se para um sacrifício,
lançou-se sobre a espada; e, enganada, a todos enganou.

Fugindo da cidade há pouco fundada no litoral arenoso,


volta de novo à morada de É rix e junto do leal Acestes;
aí sacrifica e presta honras fúnebres ao túmulo de seu pai.

85 ZARPA com as naus que Íris, enviada por Juno, quase queimara.
Passa pelo reino do filho de Hípotes e a região fumegante
de enxofre a ferver, os escolhos das Sirenes, filhas de Aqueloo.

4 A armada de Eneias, na sua fuga de Tróia.


' A rainha Dido.
Os Cercopes - A Sibila L I V RO X I V 341

Despojada do piloto, a nave de lenho de pinho passa ao largo 1•1

de Próquite, Inárinte e Pitecusas, situada num monte despido


90 de arvoredo, assint chamada pelo nome dos habitantes dali.
De facto, o pai dos deuses, odiando as intrujices e mentiras
dos Cercopes, e as malfeitorias desta raça de burlões, um dia
transformara os homens em disformes anintais, de forma que
figurassem diferentes do homem, mas ainda assint parecidos:
95 reduz-lhes o tamanho dos membros, vira o nariz para cinta
e achata-o, sulca-lhes o rosto com fundas rugas das velhas,
e, cobrindo-lhes o corpo todo com uma pelagem amarelada,
envia-os para este local. Mas, antes disso, subtraiu-lhes o uso
da fala e o da língua, nascida para tremendas mentiras:
100 deixou só poderem lamuriar-se com roufenhos guinchos.

DEPOIS de ultrapassar estas ilhas e ter deixado para trás


as muralhas de Parténope à direita, e, à esquerda, a tumba
do melodioso filho de Éolo e a região fértil em pântanos, 171

entra no litoral de Cumas e no antro da Sibila de provecta


105 idade. Roga-lhe poder ir através do Avemo ao encontro
da sombra de seu pai. Ela fixou longamente o olhar no chão;
por fim, ergueu os olhos e, em delírio ao receber o deus, diz:
'Grandes coisas buscas, ó herói, maior de todos pelos feitos,
cuja direita é famosa pelo ferro, pelo fogo a tua piedade.
110 Não tenhas, porém, medo, Troiano: obterás o que buscas.
Comigo a guiar-te, virás a conhecer as moradas do Elísio,
o últinto dos reinos do mundo e a sombra querida de teu pai.
Para o valor, caminho algum é inacessível. ' Disse, e apontou
para um ramito de ouro rebrilhando na floresta da Juno
m do Avemo, e ordenou-lhe que o arrancasse do tronco. 1•1

Eneias obedeceu. E assint viu o reino do medonho Orco,


e os seus próprios antepassados, e a envelhecida sombra
do magno Anquises. Aprendeu também as leis destes locais
e quais os perigos que teria de enfrentar em guerras futuras.

6 O piloto é Palinuro.
7 O falecido é Miseno; ainda hoje este cabo se chama Miseno.
8 Por 'Juno do Avemo' designa o poeta Prosérpina.
342 L I V R O X I V A Sibila - Aqueménides

120 Depois, ao caminhar, cansado, pelo caminho de regresso,


alivia o esforço conversando com a sua guia de Cumas.
Percorrendo a pavorosa vereda na escuridão crepuscular,
'Quer sejas mesmo deusa ou apenas caríssima aos deuses',
disse, 'para mim serás sempre divina. Reconheço que te devo
125 a vida, tu que acedeste a que eu fosse às terras da morte
e das terras da morte pudesse sair depois de as ter visto.
Quando sair para as brisas do céu, pelos serviços prestados
a ti erigirei um templo, e oferecerei incenso em tua honra.'

A vidente olha para trás, para ele; e, com suspiros fundos,


uo diz: 'Eu não sou deusa, nem deves honrar um ser humano
com o sacro incenso. E para não errares sem saber, escuta.
Vida eterna, sem fim algum, ter-me-ia sido concedida
se a minha virgindade se tivesse aberto à paixão de Febo.
Enquanto tinha esperanças, enquanto ansiava seduzir-me
m com prendas, "Escolhe, ó jovem de Cumas, o que quiseres"
diz, "e o que quiseres será teu " . Juntei poeira num monte
e, mostrando-lho, pedi-lhe, insensata, que me coubessem
tantos aniversários quantos grãos o monte de poeira tinha:
faltou pedir logo que fossem também sempre de juventude.
140 Ele, porém, ofereceu-mos, e mesmo a juventude eterna,
se eu sofresse o desejo carnal. Rejeitando a prenda de Febo,
permaneço inupta. Agora, já a idade mais feliz me voltou
as costas, e aproxima-se a passo trémulo a velhice doentia,
que, por muito tempo, terei de suportar. Pois tu bem vês
145 que já vivi sete séculos; resta-me ver, para igualar o número
de grãos de areia, três centos de ceifas, três centos de mostos.
Virá o tempo em que os longos dias me tomarão pequenina,
eu agora tão grande, e o corpo, consumido pela velhice,
se reduzirá a um peso mínimo. Então, não parecerei ter sido
150 amada ou ter encantado um deus. E talvez o próprio Febo
já nem me reconheça ou até afirme que jamais me amou.
[A tal ponto ficarei mudada, e serei invisível para todos,
mas serei conhecida pela voz: a voz deixar-me-ão os fados] .

ESTAS coisas ia a Sibila contando pelo caminho que subia,


155 quando o troiano Eneias emerge das moradas do Estígio
Aqueménides L I V R O X I V 343

junto à urbe eubeia. Cumpridos os tradicionais sacrifícios, [91

chega ao litoral, que ainda não tinha o nome da sua ama. [!OJ

Aqui ficara, durante longas e penosas provações, Macareu


do Nérito, camarada de Ulisses, o que por muito passou.
160 Eis que reconhece Aqueménides, que um dia fora deixado
entre os rochedos do Etna. Espantado por, de súbito, vivo
o encontrar, diz: 'Que circunstância ou que deus te salvou
a vida, Aqueménides? Por que razão urna nau bárbara
transporta um grego? A que terras ruma o vosso barco? '
165 A estas perguntas, já sem o seu hirsuto e eriçado trajar,
já bem arranjado e sem farrapos cosidos com espinhos,
responde Aqueménides: 'Que eu volte a ver Polifemo
e aquela sua bocarra a escorrer sangue humano,
se a este navio eu prefiro a minha própria casa ou Ítaca,
110 se eu venero Eneias menos que a meu pai; jamais pagarei
o bastante a minha gratidão, mesmo que tudo lhe ofereça.
Pois se eu agora falo e respiro, e o céu e o cintilante sol
agora contemplo, poderia então eu ser ingrato e esquecido?
Ele fez com que a minha existência não acabasse na boca
175 do Ciclope; e ainda se hoje mesmo eu deixasse a luz da vida,
seria sepultado num túmulo, decerto não na pança daquele.

'Quais então os meus pensamentos (se o terror não roubou


de mim todos os sentimentos e a razão), quando vos vi
partir para o alto-mar, abandonando-me? Bem quis gritar,
180 mas temi denunciar-me ao inimigo: a berraria de Ulisses
foi também quase fatal à vossa nau. Vi como a um monte
arrancou penedo tremendo e o atirou para o meio das ondas.
Vi-o de novo disparando enormes rochas com o seu braço
gigantesco, expelidas como se pela potência da catapulta,
185 receando que a pedra ou a turbulência das águas o navio
afundassem, esquecido de que eu já não estava a bordo.
Mas quando a fuga vos subtraiu a urna morte certa,
ele põe-se a deambular por todo o Etna, aos gemidos,
tacteando o caminho na floresta, cego do seu único olho,
190 chocando contra rochas. Estendendo os braços imundos

9 Trata-se da cidade de Cumas, fundada por colonos da Eubeia.


1° Caieta.
344 L 1 V R O X I V Aqueménides - Macareu: as aventuras de Ulisses

de sangue seco para o mar, amaldiçoa o povo Aqueu


e berra: " Oh ! se algum acaso me trouxer de volta Ulisses
ou algum dos camaradas contra quem lance minha raiva,
a quem devore as entranhas e rasgue com minhas mãos
195 o seu corpo vivo, e o seu sangue me inunde as goelas,
e os membros estremeçam triturados pelos meus dentes,
como a perda do olho roubado me será leve ou nada até ! "
Estas e outras diz ele, feroz; o terror e a palidez apossam-se
de mim, ao ver a face ainda então encharcada em sangue,
200 as mãos desapiedadas e a órbita despojada do seu olho,
os membros e a barba endurecida com sangue humano.
[Tinha a morte diante dos olhos, mas ela era o mal menor.]
Já imaginava que me ia apanhar, que as minhas entranhas
iam mergulhar nas dele. Não me saía da cabeça a imagem
205 daquele tempo em que eu o vi arremessar contra o chão,
três e quatro vezes, os corpos de dois companheiros meus,
e ele próprio agachar-se sobre eles como um leão hirsuto,
atafulhando o bandulho sôfrego com as vísceras e carnes,
e os ossos com o tutano branco, e os membros ainda vivos.
210 Todo eu tremo. Paralisado, sem pinga de sangue, abatido,
vejo-o a mastigar e a cuspir o sanguinolento banquete,
vomitando bocados de comida amassados com vinho.
Tal destino preparava-se, imaginava, para mim, desgraçado.
Por muitos dias fico escondido, estremecendo ao mínimo
215 ruído, temendo a morte e também ansioso por morrer,
afastando a fome com bolotas e ervas à mistura com folhas,
só, indefeso, sem esperança, abandonado à morte e ao castigo.
Um dia, passado muito tempo, avistei ao longe este navio;
gesticulando, implorei que me deixassem fugir: corri à praia
220 e comovi-os. E um barco troiano acolheu a bordo um grego !
E tu, conta também as aventuras, ó mais caro dos camaradas,
e as do chefe e tripulação que contigo se aventuraram no mar. ' rui

ESTE conta acerca de Éolo, o rei do fundo mar dos Tuscos, r121

Éolo, filho de Hípotes, que num cárcere aprisiona os ventos.

11
O chefe é Ulisses.
12
O mar Tirreno, entre a Itália, a Sardenha e a Sicília.
As aventuras de Ulisses: Circe L 1 V R O X 1 V 345

225 E que, encerrados numa pele de boi, presente inesquecível,


os oferecera ao chefe de Dulíquio. Impelidos pelo sopro deles,
navegaram nove dias, até avistarem a terra que buscavam.
Ao chegar a aurora, a seguinte a surgir após as outras nove,
a cobiça e a avidez pelo saque venceram os companheiros:
210 achando que tinha ouro, desapertaram os cordões aos ventos.
Com eles, a nau voltou para trás, pelas ondas donde viera
há pouco, e regressou de novo ao porto do soberano da Eólia.

'Dali, viemos até à antiga cidade de Lamo, o Lestrígone,'


prosseguiu ele. 'Naquele território reinava então Antífates. uJJ

215 À sua presença fui enviado, acompanhado por outros dois.


A custo nos salvámos, eu e um companheiro meu, fugindo;
mas o terceiro ensopou a nefanda boca do Lestrígone
com o seu sangue. Ao fugirmos, Antífates persegue-nos
e convoca a sua tropa. Acorrem às chusmas e arremessam
240 troncos e pedras, afogam os homens, despedaçam as naus.
Uma delas, porém, e uma só, escapou, a que nos trazia,
a Ulisses e a mim.
'Arrasados com a perda de parte dos camaradas,
e após lamentações sem fim, navegámos para aquela terra
que muito ao longe daqui avistas - só de longe, acredita-me,
245 deves ver a ilha, acredita-me ! E a ti, mais justo dos Troianos,
filho de uma deusa (pois, terminada a guerra, já não te devo
chamar inimigo, Eneias), aviso-te: foge das costas de Circe !

'Também nós, quando aportámos o barco às costas de Circe,


lembrados ainda de Antífates e do selvagem Ciclope,
250 nos recusámos a ir e a entrar numa mansão desconhecida.
Tirámos à sorte; o sorteio enviou-me a mim e ao fiel Polites,
e também a Euríloco e Elpenor, demasiado dado ao vinho,
mais outros dezoito companheiros, às muralhas de Circe.
Mal lá chegámos e nos detivemos na soleira da mansão,
255 acorrem mil lobos, e ursos e leoas à mistura com os lobos,
metendo-nos medo. Mas não havia motivo para temor:
nenhum deles vinha para nos fazer um só arranhão.

0 Relembre-se que Macareu é o narrador.


346 L I V R O XI V Ulisses e Circe

Pelo contrário, abanaram no ar docilmente as caudas,


e, ao andarmos, acompanham-nos fazendo festas, até que
260 servas nos recebem e, através do átrio revestido de mármore,
nos conduzem à senhora. Estava num belo aposento interior,
sentada num trono solene, trajando resplandecente veste
sobre a qual se cobrira com um manto de ouro.
Fazem companhia Nereides e ninfas, que não cardam a lã
265 com o mover dos dedos, nem da lã puxam maleáveis fios,
mas que dispõem plantas por ordem, e separam por cestos
flores espalhadas sem ordem e ervas de variadas cores.
Ela superintende o trabalho delas, e é ela quem sabe
qual o emprego de cada folha, qual a combinação perfeita
210 nas misturas, e examina atentamente as plantas e as pesa.

'Quando ela nos viu, após nos saudarmos uns aos outros,
desanuviou a expressão e aquiesceu a tudo o que pedimos.
Logo ordena que preparem uma mistura de grãos de cevada
torrados, mel, o poder do vinho e leite que sofreu o cardo;
215 e, sorrateira, acrescenta sucos que passam despercebidos
no sabor doce. Aceitamos as taças que a divina mão oferece.
Mal a sorvemos, sedentos como estávamos, com a boca seca,
e a cruel deusa nos tocou nos cabelos com a varinha mágica,
(que vergonha ! , mas contarei), começo a eriçar-me de cerdas,
280 e já não consigo mais falar, e em vez de palavras emito
roufenhos grunhidos, e vou caindo de cara para o chão.
Senti a minha boca a calejar-se e a ficar um focinho redondo,
o pescoço a inchar de músculos, as mãos com que há pouco
agarrara na taça, essas põem-se a deixar pegadas no chão.
285 Com os que tinham sofrido o mesmo (tal o poder da droga ! )
sou fechado numa pocilga. S ó Euríloco vimos que não tinha
a forma de porco: só ele recusara a taça que lhe ofereceram.
Se não a tivesse evitado, ainda agora faria eu parte da vara
de cerdosos porcos, nem Ulisses teria vindo, vingador,
290 até junto de Circe, informado por ele de tamanha desgraça.

'Dera-lhe o deus do Cilene, o que traz a paz, uma flor branca;


os deuses chamam-lhe 'moly', e fixa-se com uma raiz negra.
Protegido por ela e também pelos conselhos celestes, entra
Ulisses e Circe - Pico, Circe e Canente L I V R O X I V 347

na mansão de Circe e é convidado para a traiçoeira bebida.


295 Procurava ela roçar-lhe os cabelos com a varinha, quando ele
a empurra, puxa da espada e fá-la render-se, cheia de medo.
Seguem-se juras e apertam a mão, e, aceite no seu leito, pede,
por dote conjugal, os companheiros com os corpos de antes.
Salpica-os com sucos, estes benéficos, de uma erva ignota,
300 toca-os na cabeça com a varinha voltada ao contrário,
e recita palavras contrárias às palavras que antes recitara.
Quanto mais as canta, mais nos vamos levantando do chão
e nos endireitamos, as cerdas caem, a fenda dos bífidos pés
desaparece, e regressam os ombros, e os antebraços voltam
305 a seguir aos braços. Chorosos, abraçamo-nos a ele, choroso,
agarramo-nos ao pescoço do chefe, e nenhuma outra coisa
logramos dizer antes de dar testemunho da nossa gratidão.

'ALI nos demorámos um ano. Durante período tão longo,


muitas coisas vi com os olhos, muitas ouvi com os ouvidos.
310 Eis uma história, de entre muitas, que me contou em segredo
uma das quatro servas treinadas para tal tipo de ritos sacros.

'Pois, um dia, quando Circe entretinha sozinha o meu chefe,


esta mostrou-me uma estátua de mármore da cor da neve:
era a de um jovem, que sobre a cabeça tinha um pica-pau.
315 Posta num templo, era notável por tantas coroas de flores.
Cheio de curiosidade, perguntei quem fora ele, porque era
venerado no templo, porque trazia aquele pássaro na cabeça.
Ela disse: " Escuta, Macareu, e aprende daqui quão poderosa
é a minha senhora; presta bem atenção ao que te vou contar.

320 "'Pico era filho de Saturno e rei dos territórios da Ausónia,


e um apaixonado por cavalos, desses adestrados para a guerra.
Em vida, tinha a figura que vês; podes observar a sua beleza,
e desta imagem de imitação bem podes inferir a verdadeira.
O carácter era igual à beleza, e pela idade não pudera ainda
325 assistir quatro vezes à competição quadrienal da grega Élide. '"1

14 Os Jogos Olímpicos, em Olímpia; o rapaz teria, pois, quase dezasseis anos.


348 L I V R O XI V Pico;Circe e Canente

Mas com seu rosto fascinara as Dríades, nadas nas serranias


do Lácio, e por ele suspiravam as divindades das fontes,
as Náiades, as do Álbula, as das águas do Numício,
e as do Anião e do Almão, com o seu curtíssimo curso,
330 e as do impetuoso Nar e as do Fárfaro de escura corrente,
e aquelas que vivem na lagoa da floresta da Diana da Cítia c"1
e nos lagos vizinhos. Ele, porém, desprezava todas elas
e amava apenas uma ninfa, que se diz no monte Palatino,
em tempos idos, Venília ter dado à luz de Jano da Jónia.
335 A menina cresceu; e mal atingiu a idade de matrimónio,
casou com Pico, da terra dos Laurentes, o preferido a todos.
Ela era de rara beleza, mas mais rara ainda era a arte do canto:
daqui chamar-se Canente. Bosques e pedras costumava
mover com a sua voz, amansar as feras e deter as águas
340 dos longos rios, e reter os vagabundos pássaros.

"'Um dia, cantarolava ela canções com a sua voz feminina,


quando sai de casa Pico para ir aos campos dos Laurentes,
com o fito de caçar javalis da região. Montava a garupa
de um cavalo fogoso e trazia na mão esquerda duas lanças,
345 trajando um manto escarlate preso em cima por fulvo ouro.
Para esta mesma floresta viera também a filha do Sol,
a fim de colher novas ervas nas férteis encostas, vinda
dos campos Circeios, assim chamados pelo seu nome.
Logo que viu o jovem, escondida por trás de uma moita,
350 ficou estupefacta. As ervas que colhera caíram das mãos,
uma chama pareceu percorrer toda a medula dos ossos.
Logo que ela se refez desta tremenda turbulência interior,
esteve quase a declarar o seu desejo; mas o galope do corcel
e os serviçais espalhados à volta não permitiram abeirar-se.
355 'Não me escaparás, nem que seja o vento a arrebatar-te',
disse, 'se bem me conheço, se o poder das minhas plantas
não se dissipou todo e os encantamentos não me falharem.'

"'Assim disse, e modelou a imagem incorpórea de um falso


javali, ordenando-lhe que passasse a correr diante dos olhos

l .5 Trata-se do lago Nemi, no Lácio, especialmente consagrado a Diana.


Pico, Circe e Canente LIVRO XIV 349

360 do rei e parecesse embrenhar-se no bosque denso de troncos,


onde a ramagem é mais cerrada, locais inacessíveis ao cavalo.
Sem demora, Pico põe-se logo a perseguir a presa, sem saber
que é só imagem; lesto, salta da garupa espumante do corcel,
e, atrás da esperança vã, calcorreia as profundezas do bosque.
m Ela entoa preces e pronuncia certas fórmulas deprecatórias,
e reza a deuses misteriosos com uma misteriosa cantilena
com que costumava obscurecer até a face da nívea lua e tecer,
sob a cabeça do pai, um manto de nuvens carregadas de chuva.
Também desta vez, ao cantar a fórmula, o céu se adensou
310 e a terra exalou uma névoa; os que o acompanham perdem-se
por veredas imersas na escuridão, e o rei fica sem escolta.

"'Aproveitando a ocasião e o local, disse: 'Oh ! pelos olhos teus


que conquistaram os meus, por essa beleza, ó rapaz líndissimo,
que faz com que eu, uma deusa, te suplique, cuida das chamas
m da minha paixão e aceita por sogro o Sol, que tudo perscruta,
não sejas insensível desdenhando de Circe, filha de um Titã. '
Assim dissera. Ele afastou-se feroz dela e das suas preces,
e retorquiu: 'Quem quer que sejas, não sou teu. Uma outra
tem-me por cativo, e ter-me-á para sempre, faço eu votos.
3so Nem violarei os pactos do matrimónio com um amor de fora,
enquanto os fados me conservarem Canente, a filha de Jano. '
Em vão reiterou, vezes sem conta, a s suas preces a filha d o Titã.
'Não te sairás impune', exclamou, 'nem voltarás para Canente !
Aprenderás o que pode uma mulher, despeitada, apaixonada
385 [pelos factos', diz, 'e Circe é mulher, apaixonada, despeitada] . '

"'Então, duas vezes se virou para poente, duas para nascente,


três vezes tocou o jovem com a varinha, três fórmulas recitou.
Ele desata a fugir, mas com espanto vê-se a correr mais veloz
do que de costume; viu também asas a saírem-lhe do corpo,
390 e, furioso por, de súbito, ir somar-se aos bosques do Lácio
como nova ave, esburaca com duro bico o carvalho silvestre,
e, na sua cólera, inflige ferimentos aos longos ramos.
As suas penas assumiram a cor purpúrea do manto dele,
o ouro, que inicialmente fora &bula e que mordia a veste,
350 L I V R O X I V Pico, Circe e Canente

395 transforma-se em plwnas, e a nuca cinge-se de fulvo ouro.


E nada do que era antigamente restou a Pico, senão o nome.

' "Entretanto, os camaradas chamam por Pico vezes sem conta


pelos campos - em vão ! -, e em parte algwna o encontram.
Deparam, porém, com Circe (pois ela já diluíra a atmosfera,
400 permitindo que os ventos e o sol dispersassem as névoas) .
Pressionam-na com acusações justas, exigem o rei d e volta,
somam a violência, aprestam-se a atacá-la com cruéis armas.
Então, sobre eles espalha wn vírus letal e poções venenosas,
e, vindos do Érebo e do Caos, a Noite e os deuses da Noite
405 convoca e lança súplicas a Hécate com prolongados uivos.
As florestas saltaram do seu sítio (assombroso de dizer! )
o solo gemeu, as árvores em redor ficaram lívidas,
os prados ensoparam-se, salpicados de gotas de sangue.
Parecia que as pedras soltavam uns mugidos roufenhos,
410 os cães uivavam, o chão formigava imundo de negras cobras,
esvoaçavam as almas impalpáveis dos mortos silenciosos.
Atónito, o povo apavora-se com tais prodígios: apavorados,
tocou-lhes nas bocas espantadas com a varinha enfeitiçada,
e, pelo toque, os jovens tornam-se nas formas monstruosas
415 das mais diversas feras: nenhwn conservou o seu aspecto.

"'Já Febo ao pôr-se tinha salpicado as praias de Tartesso,


e em vão os olhos e o coração de Canente aguardavam
o marido. Servidores e o povo bem percorrem em grupos
os bosques todos, levando luz de tochas ao encontro dele.
420 E não bastou à ninfa entregar-se ao pranto, arrancar cabelos
e flagelar o peito (porém, tudo isto faz) : correndo para fora,
ela deambula, tomada de delírio, pelos campos do Lácio.
Durante seis noites e outros tantos regressos da luz do sol,
assim a viram a correr, sem dormir nem comer nada,
425 pelos montes, pelos vales, por onde o acaso a levasse.
O Tibre foi o último a vê-la, esgotada pelo sofrimento
e pelo vaguear, o corpo prostrado na comprida margem.
Ali, desfeita em lágrimas, cantando as suas dores,
lançava palavras de tristeza com voz débil, tal como,
430 por vezes, o cisne ao morrer canta wn canto fúnebre.
Pico, Circe e Canente - Eneias no Lácio - Diomedes L I V R O X I V 35 1

Por fim, a ténue medula derreteu-se de tanto sofrer,


e ela dissolveu-se, dissipando-se, pouco a pouco, no leve ar.
Mas o local registou a sua história: as antigas Camenas
chamavam-lhe, com justeza, Canente, do nome da ninfa."

435 'Naquele longo ano, contaram-me, e eu vi, muitas coisas


deste tipo. Por fim, entorpecidos, amolecidos pela inacção,
temos ordem de voltar ao mar e desfraldar de novo as velas.
A filha do Titã falou dos riscos da rota e do longo caminho,
e dos perigos que ainda faltava enfrentar no mar cruel.
440 Gelei de medo, confesso; ao chegar a esta praia, aqui fiquei.'

MACAREU terminara. E a ama de Eneias, sepultada em urna


de mármore, tinha no seu sepulcro este breve epitáfio:
AQUI• CAIETA•O•PUPILO•DE•PIEDADE•FAMOSA,•SALVANDO
DO·FOGO· DOS•ARGIVOS, •COM•O•DEVIDO•FOGO•CREMOU.

445 Soltam a amarra que estava atada à herbosa costa,


e para trás, bem para longe, deixam as insídias e a mansão
da famigerada deusa. Rumam aos bosques onde, escurecido
pela sombra deles, o Tibre irrompe no mar com a loira areia.
Apossa-se ele do palácio e da filha de Latino, filho de Fauno, [ I 6J

450 não sem guerra, porém: travam-se batalhas com um feroz


povo, e Turno enraivece-se por causa da noiva prometida.
A Tirrénia toda acorre ao Lácio para lutar, e por muito tempo
buscaram ansiosamente a árdua vitória pelas armas.

DE AMBOS os lados, engrossam as tropas com forças de fora,


455 e muitos defendem os Rútulos, muitos o acampamento
troiano. Eneias não vai em vão às muralhas de Evandro;
mas é em vão que Vénulo a cidade do refugiado Diomedes
visita. De facto, este fundara uma enorme cidade na Iapígia,
ao tempo de Dauno, e governava a região entregue em dote.
460 Mas quando Vénulo, ao cumprir a incumbência de Turno,
lhe pediu auxílio, o herói da Etólia desculpa-se com a falta
de tropas: ele não quer comprometer numa guerra o povo

16
Eneias; a filha de Latino é Lavfu.ia, que desposará Eneias .
352 LIVRO XIV DioÍnedes

do seu sogro, nem tinha ninguém da sua própria gente


que pudesse armar. 'E para que não penses que isto é falso,
465 embora ao recordar a amargura faça ressurgir o meu sofrer,
suportarei, porém, a dor de o contar.
'Quando a íngreme Ílion
foi incendiada, e Pérgamo foi pasto das chamas dos Dánaos,
e o herói de Nárico raptou uma virgem a uma deusa virgem [i7 1

e lançou sobre todos um castigo que só ele merecia pagar,


410 somos dispersos e, sobre mares hostis, arrastados pelos ventos.
Relâmpagos, escuridão, chuva, a fúria do céu e do mar, tudo
nós, Dánaos, padecemos; Cafereu foi o cúmulo dos desastres.
Para não demorar contando tristes desventuras uma por uma:
até a Príamo a Grécia podia então parecer digna de ser chorada.
415 A mim, os cuidados da belicosa Minerva salvaram-me a vida,
arrancando-me às ondas; mas de novo sou arrastado para longe
da região de meu pai, e a alma Vénus castiga-me, lembrada
daquela ferida antiga. E tais provações sobre o mar profundo [ISJ

tive de suportar, tais provações nas batalhas em terra firme,


480 que, vezes sem conta, chamei eu afortunados àqueles homens
que a borrasca, que todos sofremos, e o inexorável Cafereu
afogou nas águas - e eu bem queria ter sido um de entre eles !

'Meus camaradas, sofrendo até às últimas na guerra e no mar,


perdem o ânimo e reclamam o fim das errâncias. Mas Ácmon,
485 de feitio esquentado, e exasperado, à época, pelas desgraças,
"Haverá ainda algo, homens, que a vossa paciência recuse
aguentar? " perguntou. "O que pode ainda a deusa de Citeros
fazer mais, supondo que o quer? Pois quando tememos o pior,
há lugar para preces; mas quando o pior já nos coube em sorte,
490 os pés calcam o medo, a maior das catástrofes já não nos aflige.
Que ela oiça isto e odeie, como o faz, todos os que Diomedes
acompanham: o ódio dela, porém, todos nós desprezamos.
Os seus poderes t magnos custaram bem caro t a nós . "
Dizendo tais palavras, Ácmon d e Plêuron irrita Vénus
495 e enfurece-a, e com estas farpas reavive a antiga cólera.

1 7 Trata-se de Ájax, filho de Oileu, Cassandra e Palas/Minerva, respectivamente.


18 Episódio da Ilíada V , 330.
Diomedes - 0 pastor da Messápia - As naus dos Troianos L I V R O X I V 353

Poucos aprovam as palavras dele; nós, a grande maioria


dos seus amigos, censuramos Á cmon. Ao querer responder,
a sua voz adelgaça-se junto com o canal da voz, os cabelos
tornam-se penas, e de penas também se recobre o pescoço,
500 e o peito e costas; os braços tomam penas mais compridas,
e os cotovelos arqueiam-se, formando asas ligeiras.
A maior parte do pé cobre os dedos, a boca espeta-se rígida
endurecendo em matéria córnea, e termina em aguçada ponta.
Para ele olha com pasmo Lico, para ele olham Idas e Nicteu
505 mais Rexenor, para ele olha Abante; e enquanto se pasmam,
tomam idêntico aspecto. A maior parte da tripulação
levanta voo e esvoaça em redor das remos batendo as asas.
Se perguntares qual era o aspecto destes súbitos pássaros
não é o de cisnes, mas parecidíssimo com o de cisnes brancos. 091

510 E, de facto, a custo mantenho eu, genro de Dauno da Iapígia,


esta cidade e a árida região, com quase ninguém dos meus.'

ASSIM falara o neto de Eneu. Vénulo abandona o reino


do calidónio, o golfo da Peucécia e a região da Messápia.
Foi aqui que viu uma gruta, sombria por densas ramagens,
515 escorrendo leve fio de gotejante água. Nela habita agora Pã,
o semi-bode, mas naquele tempo habitavam-na umas ninfas.
Um dia, um pastor da Apúlia fá-las fugir daquele lugar
espavoridas. A princípio, ficam assarapantadas com o susto;
mas logo recuperando o sangue-frio, e vendo, com desdém,
520 quem as persegue, voltam às danças movendo os pés ao ritmo.
O pastor escarnece delas e põe-se a imitar com saltos pacóvios,
e, para mais, junta insultos vulgares aos palavrões obscenos.
E o homem não se calou até uma árvore lhe cobrir a garganta.
Pois agora é uma árvore, e na seiva ainda se pode reconhecer
525 o feitio dele, pois o zambujeiro mostra um sinal da sua língua
no amargo das suas bagas: a aspereza verbal passou para elas.

QUANDO a embaixada regressou de lá, trazendo a notícia


de que as armas da Etólia tinham sido negadas, os Rútulos
prosseguem sem reforços a guerra iniciada; e muito sangue

19 São gaivotas.
354 L I V R O X I V As naus dos Troianos

530 jorrou dos dois lados. Eis que Turno traz ávidos archotes
contra os cascos de pinho: teme o fogo quem o mar poupou.
Já Múlciber queimava o pez e as ceras e os outros alimentos
para as chamas e avançava pelo longo mastro até às velas,
e os bancos travessos das curvas naus fumegavam, quando,
535 lembrada de que o pinho fora cortado no cimo do Ida, a santa
Mãe dos deuses enche os ares do tilintar do bronze percutido
pelo bronze, e do chinfrim das flautas de buxo assopradas. rioi

Levada pelas leves brisas por leões domesticados, assim diz:


' É em vão que ateias incêndios com a tua direita sacrílega,
540 Turno ! Salvá-las-ei. Jamais, com o meu consentimento,
o voraz fogo queimará partes e membros de meus bosques. '
Enquanto a deusa tal dizia, trovejou, e a seguir a o trovão
caíram pesadas chuvas à mistura com saltitante granizo,
e os filhos de Astreu revolveram os ares e o mar inchado ri • i

545 com as suas inopinadas colisões, brigando entre eles.


Recorrendo às forças de um destes irmãos, a alma Mãe
rompeu as amarras de cânhamo da armada da Frígia;
tombando as naus para a frente, afunda-as no meio do mar.
Mal a madeira amolece e o lenho se transforma em corpo,
550 as popas recurvas transfiguram-se em forma de cabeça,
os remos convertem-se em dedos e pernas que nadam,
e o que fora flanco, flanco fica, e a quilha, que percorre
o fundo dos cascos a meio, converte-se em espinha dorsal.
O cordame torna-se macios cabelos, as vergas são braços,
555 e a sua cor é azulada como antes fora. Agora remexem
as ondas, que antes temiam, com brincadeiras juvenis,
estas Náiades marinhas. Nascidas nas duras serranias,
habitam o macio mar e não pensam mais na sua origem.
Porém, não esqueceram os perigos - e tantos foram ! -
560 que padeceram no mar cruel, e muitas vezes aguentaram
com as mãos naus aflitas - excepto se levavam Aqueus.
Ainda lembradas da destruição da Frígia, odeiam Pelasgos,
e foi de rostos risonhos que viram os destroços do barco

20 A grande Mãe dos deuses é Cíbele.


21 Referência aos três ventos Zéfiro, Bóreas e Noto.
As naus - Árdea - Apoteose de Eneias L I V RO X I V 355

do Nérito, e de risonhos rostos viram a nau de Alcínoo t221

565 enrijecer, e sobre o casco de madeira crescer um escolho.

HOUVE esperança de que, ganhando as naus vida como ninfas


marinhas, o Rútulo, aterrado com o prodígio, desistisse da luta.
Mas ele persiste: os dois lados têm os seus deuses, e coragem,
coisa ao nível dos deuses. E não é por um reino dado por dote,
570 nem pelo ceptro de um sogro, nem por ti, virginal Lavínia,
que lutam, mas só pela vitória, e travam guerra pela vergonha
de depor as armas. Por fim, Vénus vê as armas do filho vencer,
e Turno sucumbe. Sucumbe também Árdea, tida por poderosa
em vida de Turno. Quando o fogo estrangeiro a consumiu
515 e as tépidas cinzas cobriram as ruínas das casas ocultando-as,
do meio dos escombros levantou voo uma ave, desconhecida
até então, que fustigou as cinzas batendo-lhes com as asas.
O grito, o aspecto escanzelado, a cor pálida e tudo quanto
corresponde à cidade conquistada pervive nela, até o nome
580 da cidade. E Árdea pranteia-se a si e flagela-se com as asas. r"i

E AGORA o valor de Eneias havia forçado todos os deuses,


e até mesmo a própria Juno, a pôr cobro a antigos rancores,
quando, consolidado o poder de Julo, que se fazia homem,
o herói filho da deusa de Citeros estava maduro para o céu.
585 Vénus fora angariar apoio aos deuses; abraçada ao pescoço
de seu pai, dissera: 'Ó pai, que jamais, em tempo algum,
foste duro para mim, sê agora gentilíssimo, peço-te,
e ao meu querido Eneias, que pelo meu sangue te fez avô,
concede condição divina, embora pequena, ó excelso,
590 conquanto alguma lhe dês. Já basta ele ter visto uma vez
o odioso reino, ter cruzado uma vez a corrente do Estígio. '

O s deuses anuíram, e a esposa d o rei não manteve o olhar


impassível, mas aquiesceu, com a expressão apaziguada.
Então, o pai disse: 'Sois ambos dignos da dádiva celeste,
595 tu, a que pedes, e aquele por quem pedes: toma, filha,

22 Alusão a Ulisses.
" Árdea, a cidade de Turno; em latim, ardea significa garça-real.
356 L I V R O X I V Eneias - Os reis latinos - Vertumno e Pomona

o que desejas'. Tal dissera. Ela rejubila e agradece ao pai,


e, levada pelas leves brisas no carro da junta de pombas,
aterra no litoral laurente, onde, coberto de canas, serpenteia
o Numício e suas águas fluviais em direcção ao mar vizinho.
600 Ordena-lhe que lave de Eneias e leve para o fundo do mar,
na silenciosa corrente, tudo o que nele está sujeito à morte.
O cornígero deus executa a incumbência de Vénus,
e lava-o com as suas águas, e limpa de Eneias tudo
o que tinha de mortal: apenas fica com a sua melhor parte.
605 Purificado o corpo, a mãe ungiu-o com um perfume
divino, e tocou-lhe nos lábios com ambrósia misturada
com doce mel, e tornou-o um deus que o povo de Quirino
chama de Indígete e que recebeu com um templo e altares.

ALBA e o estado Latino ficaram então sob o governo


610 de Ascânio, o de dois nomes. Depois, sucedeu-lhe Sílvio. 1241

O filho deste, Latino, obteve o nome de um antepassado


junto com o ceptro antigo. A Latino seguiu-se o ilustre Alba.
Deste nasceu Épito; depois dele, vieram Cápeto e Cápis,
mas Cápis foi primeiro. Das mãos destes recebeu Tiberino
615 o poder, e, ao afogar-se na corrente do rio tusco, o nome
conferiu às aguas. Foi ele o pai de Rémulo e do agressivo
Ácrota. Rémulo, que era o irmão mais velho, sucumbiu
fuhninado por um raio, quando estava a imitar um raio.
Ácrota, de feitio mais moderado que o irmão, legou
620 o ceptro ao bravo Aventino, que, no monte onde reinara,
aí mesmo jaz sepultado, conferindo o nome ao monte.

AGORA era Proca quem governava o povo do Palatino.


Foi no seu reinado que Pomona viveu. Entre as Hamadríades
do Lácio, nenhuma outra cuidava mais habilmente do jardim,
625 nenhuma outra houve mais devotada às árvores de fruto.
Daqui deriva seu nome. Não são tanto os bosques nem os rios
que ela ama, mas os campos e ramos carregados de ricos frutos.
Nunca lhe pesara na direita o dardo, mas sim a curva foice,

24 Os dois nomes para o filho de Eneias eram Ascânio e J ulo.


Vertumno e Pomona L I V R O X I V 357

com a qual ora reprime a exuberância vegetal e desbasta ramas


635 que por toda a parte alastram, ora faz uma incisão na casca
para fazer um enxerto e fornecer seiva a um rebento exterior.
Não deixa que sofram com sede, e irriga as retorcidas fibras
das absorventes raízes, fazendo deslizar as águas em regos.
Esta a sua paixão, o seu afã: desejo carnal algum havia nela.

635 Receando, porém, a brutalidade dos aldeões, fechara o pomar


com vedação, refugia-se e proíbe o acesso ao sexo masculino.
O que não fizeram os sátiros, jovens e hábeis a dançar,
e os Pãs, com os chifres engrinaldados de ramas de pinheiro,
e Sileno, sempre tão jovem apesar da sua longa idade,
640 e o deus que amedronta os ladrões pela foice e pelo pénis, rm

para a conquistarem ! Na verdade, no amor por ela, a todos


vencia Vertumno: mas não era mais afortunado que eles.
Oh ! quantas vezes numa cesta levou espigas, disfarçado
de robusto ceifeiro, e era a imagem perfeita de um ceifeiro !
645 Tantas vezes, trazendo as têmporas cingidas de feno fresco,
parecia alguém que acabava de vir de revirar a erva cortada.
Tantas vezes trazia um aguilhão na rude mão, para jurares
que tinha acabado de soltar do jugo os bezerros cansados.
Tomava a podoa, era aquele que desbasta e poda as vinhas.
650 Punha uma escada ao ombro: pensarias que ia apanhar fruta.
[Tomava um gládio, era um soldado, uma cana, um pescador.]
Enfim, disfarçando-se tantas vezes de tantas formas, descobre
o modo de entrar para ter a alegria de admirar a beleza dela.

Pois um dia, cingindo a cabeça com um lenço às cores, '261

655 apoiado num bastão, pondo nas têmporas madeixas de cãs,


disfarçou-se de velha e penetrou no jardim bem tratado.
Admirando os frutos, t 'Mas tu és ainda mais bela ! ' t disse.
E elogiando-a, deu-lhe uns poucos de beijos, como jamais
velha verídica teria dado. Então, sentou-se encurvada na terra,
660 e ergueu o olhar para os ramos vergados aos fardos outonais.
Defronte havia um ulmeiro esplendoroso, ataviado de cachos

25 Trata-se do deus Priapo.


26 Por lenço traduzi mitra (ver p. 272, nota 1).
358 L I V R O X I V Vertumno e Pomona

de reluzentes uvas. Após o gabar e à vinha, sua companheira,


disse: 'Se este tronco permanecesse solteiro, sem a parreira,
não haveria razão para ser procurado, senão pela folhagem.
665 E se também esta videira, que repousa abraçada ao ulmeiro,
não tivesse sido desposada, jazeria tombada sobre a terra.
Tu, porém, não és tocada pelo exemplo desta árvore,
foges à união carnal, nem cuidas de te casares com alguém.
Oh ! Quem dera que quisesses ! Nem a Helena assediariam
610 mais pretendentes, nem àquela que provocou a batalha
dos Lápitas, nem a esposa do t cobarde ou audacioso t Ulisses. (27 1

Mesmo agora, fugindo e rechaçando os que por ti suspiram,


mil homens te desejam, quer semideuses, quer até deuses,
quer todos os seres divinos que moram nos montes Albanos.
675 Mas se fores sábia, se quiseres casar bem e dar ouvidos
a esta velha, que te quer mais do que todos aqueles outros
(que te amo mais do que pensas . . . ), rejeita matrimónio banal
e escolhe para companheiro de leito Vertumno, de quem me
tens por garantia; pois nem ele se conhece melhor a si mesmo
680 do que eu. Não anda ao acaso, vagueando pelo mundo todo:
só vive nestes locais. Nem é como muitos dos pretendentes,
que, mal vêem uma, logo se apaixonam: tu serás a primeira
paixão e também a última, e a ti, só a ti, consagrará a vida.
Ainda para mais, ele é jovem, tem o dom da beleza natural,
685 e ele pode assumir de modo apropriado qualquer forma:
far-se-á aquilo que ordenares, será o que quer que ordenes.
E quanto a terdes o mesmo gosto, e os frutos que tu cultivas
ser ele o primeiro a agarrar, e segurar feliz na mão teus dons?
Mas agora ele não anseia pelos frutos colhidos da árvore,
690 nem por ervas com doces sucos que o teu jardim alimenta,
por nada, a não ser por ti ! Condói-te de quem arde de amor;
por meus lábios, crê, é ele em pessoa que suplica o que deseja.
Teme deuses vingadores, a do Idálio que odeia corações (281

duros, o rancor que jamais esquece da deusa de Ramnunte. (291

695 E para que tenhas mais receio (a longa idade fez-me saber

27 Hipodamia e Penélope, respectivamente.


28 Vénus.
29 Némesis.
Ífis e Anaxárete L I V R O X I V 359

muita coisa) vou contar um caso conhecido em toda Chipre,


que poderá facilmente fazer-te ceder e abrandar a tua dureza.

'CERTA ocasião, vislumbrara Ífis, nascido de família humilde,


a nobre Anaxárete, que pertencia à linhagem do velho Teucro.
100 Vislumbrara-a, e um fogo apossara-se dos seus ossos todos.
Muito tempo lutou; e quando viu que não conseguia vencer
a desatinada paixão com a razão, veio suplicante à sua porta.
Ora, confessando à ama o seu amor lastimoso, implorava,
pelas esperanças dela na pupila, que não fosse dura com ele;
105 ora com lisonjas assediava servos sem conta, um por um,
e pedia-lhes, de voz angustiada, o apoio deles a seu favor.
Tanta vez confiou às mimosas tabuinhas palavras para levar,
outras tantas pendurou junto ao umbral coroas de flores
molhadas do orvalho das lágrimas, e apoiou à soleira dura
110 o macio flanco, e insultava, desolado, as trancas da porta.
Ela, mais violenta que o mar inchado ao pôr dos Cabritos,
mais dura do que o ferro fundido numa forja do Nórico
e do que rocha viva enraizada ainda no seu sítio original,
desdenha e ri-se dele. Feroz, soma à desapiedada conduta
m frases de soberba e rouba toda a esperança ao apaixonado.
Ífis não suportou mais os tormentos deste longo sofrer;
e diante da porta pronunciou as suas derradeiras palavras:
"Venceste, Anaxárete ! Não terás de suportar mais
o incómodo que te causo. Prepara já jubilosos triunfos,
120 convoca Péan, põe na cabeça uma coroa de reluzente louro.
Venceste, pois; de bom grado morro. Rejubila, moça de ferro !
Serás forçada a elogiar pelo menos alguma coisa em mim,
algo haverá que te seja grato: reconhecerás o meu mérito.
Mas lembra-te de que o meu amor por ti só desaparecerá
125 quando morrer, pois terei de perder as duas luzes juntas.
Não serão rumores a vir ao pé de ti anunciar a minha morte:
eu irei em pessoa, para que não haja dúvida, bem à tua vista,
para que teus cruéis olhos pastem no meu corpo sem vida.
Se todavia, ó deuses, é certo que vedes as humanas coisas,
no lembrai-vos de mim (a minha língua já não consegue mais
suplicar) , e fazei com que falem de mim por muito tempo,
e outorgai à minha fama o tempo que tirastes à minha vida. "
360 L I V R O X I V Ífis e Anaxárete - Vertumno e Pomona (cont.)

'Disse; e erguendo os olhos húmidos e os braços pálidos


para a ombreira que tantas vezes ataviara de grinaldas,
735 atou com um nó um laço à trave do cimo da porta,
"Apraz-te esta grinalda, ó mulher cruel e pérfida ? " disse,
e enfiou a cabeça no laço. Virado até mesmo agora para ela,
fica pendurado, pela garganta sufocada, peso digno de dó.
Os pés estremecendo baloiçam e batem na porta: esta solta
140 um som t como um longo gemido t, abre-se e desvenda

o sucedido. Os servos largam um berro. Erguem-no em vão,


acartam-no para a morada da mãe (pois o pai já falecera) .
Esta toma-o n o seu colo e abraça-se a o corpo gelado
do filho. Depois de dizer as palavras dos pais enlutados,
745 das enlutadas mães executa as tarefas. Lavada em pranto,
encabeça o cortejo fúnebre através das ruas da cidade
e carrega o cadáver lívido no féretro para ser cremado.

'Por um acaso, a casa da jovem era vizinha à rua onde passava


o choroso cortejo. O som de lamentações chegou aos ouvidos
750 da insensível Anaxárete: já um deus vingador agia sobre ela.
Comovida, assim diz: "Vejamos este lamentável funeral",
e vai para o andar superior com as janelas escancaradas.
Ora mal se pôs a observar Ífis, deitado no fúnebre leito,
os olhos congelaram-se, o sangue morno escapou-se do corpo
155 e este cobriu-se de lividez; ao tentar mover os pés e recuar,
ficou pregada ao chão, e, ao tentar desviar o olhar dali,
nem sequer tal logrou. Pouco a pouco, invade os membros
a pedra que há muito trazia dentro do seu duro coração.
E para que não penses que isto foi inventado, ainda hoje
760 em Salamina lá está a estátua com a imagem da sua senhora, 0°1

e o templo chamado de Vénus Espectadora. Lembrada disto,


ninfa minha, pára com essa fria altivez, une-te a quem te ama.
Assim o frio primaveril não te queime os frutos ao nascerem,
nem os impetuosos ventos tos arranquem quando em flor. '

765 DEPOIS de ter contado, mas em vão, estas coisas, condizentes


com o aspecto de anciã, regressou à sua condição de jovem;

30 Trata-se de Salamina em Chipre, não a do Peloponeso, perto de Atenas.


Vertumno e Pomona - Apoteose de Rómulo e Hersilia L 1 V R O X 1 V 361

despojando-se dos apetrechos de velha, revelou-se à donzela,


qual imagem brilhantíssima do sol, quando venceu as nuvens
que o tapavam, e, sem nenhuma obstruindo, refulge de novo.
110 Aprestava-se a usar a força, mas força não é precisa: a ninfa
é cativada pela beleza do deus e, por sua vez, sentiu igual ferida.

A SEGUIR, os exércitos do injusto Amúlio governaram o reino


da Ausónia: foi pelo neto que Numitor, já velho, recupera
o poder régio perdido. E durante a festa das Palílias, os muros
115 da Cidade são fundadas. Tácio e os pais Sabinos dão início
à guerra, Tarpeia, abrindo acesso à cidadela, abandona a vida,
merecendo o castigo de ser esmagada sob a pilha de escudos.
Depois, os filhos dos Cures, à maneira de lobos silenciosos,
reprimem as palavras nos lábios, atacam os homens vencidos
180 pelo sono e chegam aos portões que o filho de Ília trancara uii

com sólidos barrotes. Porém, a filha de Saturno descerrou


em pessoa uma das portas, fazendo girar o gonzo sem ranger.
Só Vénus se apercebe de que a tranca do portão fora retirada;
e tê-lo-ia fechado não fosse não ser permitido a deus algum
785 anular actos de outro deus. Junto ao templo de Jano viviam
as Náiades da Ausónia, um local borrifado por fresca fonte.
Ela pediu ajuda e as ninfas não recusaram o justo pedido
da deusa: fizeram esguichar a jorros os ricos veios de água
da fonte. Mas a entrada para o templo de Jano, então aberto,
190 era ainda acessível e a água não logrou bloquear a passagem.
Injectam amarelentos enxofres sob a abundante nascente
e inflamam as ocas galerias com fumegante betume.
Por este e outros meios, o calor penetrou nas profundezas
da nascente, e vós, ó águas, que há pouco ousáveis competir
195 com o frio dos Alpes, não cedestes em calor ao próprio fogo.
Sob a chuva de chamas, fumegam os dois postes do portal,
e o portão, prometido em vão aos rudes Sabinos, é obstruído
pela insólita nascente, até os soldados de Marte se lograrem
armar para a guerra. Após Rómulo se apresentar em armas
soo fora dos muros, e a terra de Roma estar coberta de cadáveres
dos Sabinos, e estar coberta dos dos seus, e o ímpio gládio

" Rómulo.
3 62 LIVRO XIV Róínulo - Hersília

ter misturado o sangue do genro com o sangue do sogro,


acordam pôr cobro à guerra com tratado de paz, não lutar
até à última pelo ferro e, enfim, associar Tácio ao poder régio.

805 TÃao já falecera. Estabelecias tu, Rómulo, leis unificadas


para ambos os povos, quando, tirando o capacete, Mavórcio
tais palavras dirigiu ao pai dos deuses e dos homens:
'Chegou a hora, pai, estando o estado Romano pujante
sobre sólidas fundações e não dependendo de um só chefe,
810 de outorgar a recompensa prometida a mim e ao teu neto
dela merecedor: retirá-lo da terra e colocá-lo nos céus.
Pois tu, um dia, diante de um concílio reunido dos deuses,
(recordo-me das palavras piedosas, gravei-as na memória):
"Haverá um que trarás cá para cima, para o azul dos céus "
815 disseste: que agora o sentido das tuas palavras se cumpra ! '
O omnipotente anuiu; ocultou os céus com nuvens negras
e aterrorizou a cidade com trovões e relâmpagos.
O Gradivo sentiu que era o sinal para o rapto prometido,
e, apoiado na lança, sobe o sem-medo para o seu carro,
820 incita os cavalos, sob o peso do ensanguentado jugo,
fazendo o chicote estalar. E, deslizando pelos ares abaixo,
aterrou no cimo do monte Palatino, coberto de bosques,
e arrebatou o filho de Ília, que outorgava aos seus Quirites
direitos não despóticos. O seu corpo mortal desintegrou-se
825 ao passar pelas leves brisas, tal como o projéctil de chumbo
disparado pela grande funda costuma desfazer-se no céu,
e vem uma aparência bela, mais digna dos triclínios celestes:
a figura é tal qual a de Quirino com o seu manto purpúreo. 0 21

CHORAVA-O a esposa como perdido, quando a real Juno


830 ordena a Íris para descer pelo caminho em forma de arco 1m

até junto de Hersília, e leve à viúva as seguintes instruções:


'Ó senhora, glória suprema do povo do Lácio, glória
do povo dos Sabinos, outrora a consorte digníssima

3 2 A trahea é uma espécie de toga mais curta, de púrpura ou com uma banda de púrpura, de

origem etrusca, usada em ocasiões solenes, e comummente usada pdos equites.


33 O arco-íris, naturalmente.
Hersília LIVRO XIV 363

de tão grande herói e que agora és a consorte de Quirino,


840 põe cobro às lágrimas. E se anseias rever o teu esposo,
segue-me, anda, até àquele bosque que verdeja na colina
de Quirino e envolve de sombra o templo do rei de Roma. '
Íris obedece e, deslizando para a terra pelo arco pintado,
dirige-se a Hersilia com as palavras de que fora incumbida.
840 Aquela, mal erguendo os olhos, com um olhar reverente,
'Ó deusa - pois não saberei dizer facilmente quem és tu,
mas é claro que és uma deusa - leva-me, leva-me' , disse,
'mostra-me o rosto de meu marido; se os fados me deixarem
poder vê-lo uma só vez, direi ter recebido o céu de prenda. '
845 Sem demora, ela sobe à colina de Rómulo com a jovem
filha de Taumante. Aí, uma estrela cai do céu e despenha-se
na terra, e, com os cabelos em chamas pelo fulgor desta,
Hersilia partiu então pelos ares juntamente com a estrela.
Acolhe-a nos braços familiares o fundador da cidade
s5o de Roma; e mudando o antigo nome junto com o corpo,
chama-lhe Hora: é agora a deusa associada a Quirino.
LIVRO XV

ENTRETANTO, procura-se alguém capaz de carregar o peso


de tamanho fardo e que consiga suceder a tão grande rei.
Então, a sua fama, arauto da verdade, destina ao poder
o ilustre Numa. Não satisfeito em conhecer os costumes
do povo Sabino, ele aspira na sua vasta inteligência a algo
superior, e dedica-se ao estudo da natureza das coisas.
A sua paixão por tal estudo fê-lo deixar a pátria e os Cures,
e entrar na cidade que, em tempos, hospedou Hércules. u1
Ora, ao perguntar quem fora o fundador destas muralhas
10 gregas em costas itálicas, um dos anciãos lá daquela região,
não desconhecedor dos tempos antigos, assim respondeu:

'CONTA-SE que o filho de Júpiter, ao regressar do Oceano, 121

rico em bois da Ibéria, chegara, por um trajecto feliz, à costa


do Lacínio. Deixando a manada a vaguear pelo tenro prado,
15 entrou na casa, mansão hospitaleira, do grande Cróton,
e aí descansou e recuperou as forças das longas canseiras.
Ao partir, assim disse: "Na geração dos teus netos, haverá
neste local uma cidade. " A promessa revelou-se verdadeira.
Pois havia um certo Míscelo, filho de Alémon da Argólide,
20 o homem mais querido aos deuses de toda a sua geração.
Um dia, esmagado por pesado sono, sobre ele se curvou
o portador da clava e lhe disse: 'Vai, deixa a terra nativa !
Vamos, demanda a corrente pedregosa do longínquo Ésar ! '
E ameaça com muitas coisas temíveis, caso não obedecesse.
2s Depois disto, o sono desaparece juntamente com o deus.

1A cidade de Crotona.
2 Hércules, que tem como atributos a pde de leão e a clava.
Numa e Míscelo L I V RO XV 365

'O filho de Alémon levanta-se e rememora em silêncio


a recente visão. Longo tempo debate consigo mesmo:
uma divindade ordenara que partisse, a lei proibia partir,
e a pena era a morte para quem quisesse trocar de pátria.
30 O luminoso Sol ocultara a refulgente cabeça no Oceano,
e a opaca Noite extraíra para fora a sua cabeça estrelada.
Aparece-lhe o mesmo deus com as mesmas advertências,
e com mais ameaças e mais graves, caso não obedecesse.
Ele teve receio e aprestou-se a mudar o seu lar, e a pátria
35 também, para nova região. Um rumor percorre a cidade
e ele é processado por desprezar a lei. Quando a acusação
terminou e o delito fica provado sem recurso a testemunhas,
o réu, esfarrapado, erguendo o rosto e mãos para os deuses,
"Ó tu, a quem uma dúzia de trabalhos ao céu te deu direito,
40 acode, suplico ! ', diz, 'pois tu és o instigador do meu delito. "

'Havia um antigo costume d e usar pedritas negras e brancas:


aquelas condenavam os réus, estas absolviam da inculpação.
Naquele tempo, foi assim que a sentença fatal foi expressa,
e negros foram todos os seixos lançados na desapiedada urna.
45 Mas quando foi voltada, à medida que derramava as pedritas
para a contagem, a cor de todas mudou de negro para branco:
a intervenção divina de Hércules tornou a sentença favorável,
absolvendo o filho de Alémon. Ele agradece ao pai, o enteado
de Anfitrião, e navega pelo mar Jónio com ventos favoráveis.

50 'Passa por diante de Tarento, fundada por Lacedemónios,


e por Síbaris e por Nereto, cidade dos Salentinos,
e o golfo de Túrios, e Némesis e a região da lapígia.
Errando um pouco pelas terras que contemplam a costa,
depara com a foz do rio Ésar, a si destinada, e, não longe dali,
55 com um sepulcro, sob o qual a terra cobria os ossos sagrados
de Cróton. Naquela região, como lhe fora ordenado, fundou
umas muralhas e transfere o nome do sepultado para a cidade. '
Assim dizia um a tradição segura terem sido o s primórdios
do local e desta cidade, situada dentro das fronteiras de Itália.
366 L I V R O XV O discurso de Pitágoras

60 MORAVA ali um homem, natural de Samos, que tinha fugido "1

de Samos e dos reis, e que, por ódio à tirania, vivia um exílio


voluntário. Este, pela mente abeirou-se dos deuses, embora
perdidos lá nas lonjuras do firmamento; e o que a natureza
negava ao olhar dos mortais, sorveu ele com os olhos da razão.
65 E depois de tudo examinar com o espírito e atento empenho,
expunha os ensinamentos a todos, e a multidões em silêncio,
maravilhadas com as suas palavras, explicava os primórdios
do vasto universo e as causas das coisas, e o que era a natureza,
o que era a divindade, donde vem a neve, qual a origem do raio,
10 se Júpiter trovejava ou eram os ventos estilhaçando as nuvens,
o que fazia tremer as terras, segundo que leis viajam os astros,
e tudo o que está oculto. Foi o primeiro a condenar servirem-se
animais nas mesas, o primeiro a descerrar os lábios, doutos
mas em que ainda não acreditavam, e a dizer estas palavras:

15 'Ó mortais, parai de poluir os vossos corpos com alimentos


abomináveis ! Há searas, há os frutos que vergam os ramos
com o seu peso, e os cachos de uvas inchados nas vinhas;
há vegetais deliciosos e aqueles que podem ficar agradáveis
e mais tenros pelo fogo. Ninguém vos arrebata o leite,
80 nem o mel rescendendo ao perfume da flor do tomilho.
A terra pródiga dá riquezas e fartura de alimentos gentis,
e oferece iguarias sem necessitar de matança e de sangue.
Os animais acalmam o jejum com carne; porém, nem todos:
é que o cavalo e os rebanhos e as manadas vivem do pasto.
85 Mas aqueles que têm uma natureza selvagem e feroz,
os tigres da Arménia e os irascíveis leões, e os ursos
junto com os lobos, rejubilam com manjares sangrentos.
Oh ! que medonho crime, enterrar vísceras nas vísceras,
engordar o sôfrego corpo amontoando nele outro corpo,
90 um ser vivo viver à custa da morte de outro ser vivo !
E entre tantos recursos que a terra, a melhor das mães,
produz, nada te contenta senão mastigar com cruel dente
feridas horríveis e trazer de volta os hábitos dos Ciclopes?

' Pitágoras. Polícrates foi um célebre tirano de Samos.


O discurso de Pitágoras L I V R O XV 367

Nem poderias acalmar a fome da tua voraz e imoral


95 pança, sem que destruas a vida de uma outra criatura?

'Ora, aquela antiga idade, que nós designamos de ouro,


vivia afortunada pelos frutos das árvores e pelas plantas
que a terra produza, e não poluía os lábios com sangue.
Nesse tempo, as aves batiam tranquilas as asas pelos ares,
loo e a lebre, sem medo, deambulava pelo meio dos campos,
e nem a credulidade do peixe o fazia pendurado do anzol.
Vivia tudo sem ardis, sem qualquer temor por logros,
tudo cheio de paz. Mas depois que um malvado inventou
invejar os alimentos t dos deuses t, quem quer que fosse,
105 e afundou no ventre sôfrego iguarias feitas de corpos, ele
abriu caminho para o crime. Pode ser que o ferro se tenha
amornado e manchado de sangue primeiro ao matar feras.
E isto teria bastado: admitimos que animais que buscam
a nossa morte podem ser enviados à morte sem impiedade.
uo Mas se é lícito matá-los, eles não têm de ser comidos.

'Logo o crime vai mais longe. Primeiro, julgam que o porco


merece morrer sacrificado, porque desenterra as sementes
com o focinho curvo e corta assim as esperanças desse ano.
Por mordiscar a vinha, levam o carneiro até ao altar de Baco
u5 vingador para o imolar. A culpa deles prejudicou ambos.
Mas que mal fizestes vós, ovelhas, plácido gado nascido
para olhar pelos homens, trazendo néctar nos úberes cheios,
que a nós ofereceis a vossa lã para as nossas macias vestes,
e que nos sois mais úteis em vida do que na morte?
120 E que mal fizeram os bois, animal sem manha nem embustes,
inofensivo, cândido, nascido para suportar o trabalho?
É muito ingrato, enfim, e indigno da dádiva das colheitas
aquele que teve a coragem de imolar o que lavra o campo,
e, libertando-o há pouco do peso do curvo arado, golpeia
125 com um machado aquele cachaço moído de trabalho,
que tanta vez renovara a dura terra e tantas colheitas dera.

'Nem lhes bastou cometer tal nefanda maldade: imputaram


a causa do crime aos próprios deuses, e crêem que um deus
368 L I V R O XV O discurso de Pitágoras

celeste rejubila com a matança de um bezerro trabalhador.


no Uma vítima, sem uma só mácula, de beleza excepcional
(a beleza é-lhe nociva) , deslumbrante pelas fitas e o ouro,
é parada diante do altar, e ouve, sem perceber, as preces,
e observa ser-lhe colocado na testa, bem entre os chifres,
o cereal que plantou; golpeada, tinge de sangue a faca
m que porventura já antes vira reflectida na límpida água.
De imediato, arrancam as vísceras ao peito ainda vivo,
examinam-nas, perscrutam nelas a vontade dos deuses.
Depois - tal a fome do homem por alimentos interditos ! -
ousais ainda comê-la, ó raça humana ! Eu vos imploro:
140 não o façais ! Prestai muita atenção aos meus conselhos:
quando derdes ao palato bocados de bois imolados,
ficai bem cientes de que mastigais os vossos lavradores.

'E já que um deus me move a boca, seguirei devidamente


o deus que me move a boca. A minha Delfos e o próprio céu
145 eu abrirei e desvendarei as revelações da venerável mente.
Grandes coisas cantarei, jamais investigadas pelo raciocínio
dos antigos, que muito tempo ficaram ocultas. Como é bom ir
entre altos astros, como é bom deixar esta terra, morada inerte,
e, levado numa nuvem, pousar nos ombros do possante Atlas,
150 e, de longe, observar lá em baixo os homens vagueando à toa,
desprovidos de razão, assustados, cheios de medo de morrer,
e exortá-los, desenrolando assim a sequência do destino:

'Ó raça paralisada de estupor pelo terror da morte gélida,


porque temeis o Estígio, as trevas e os nomes inexistentes,
155 matéria para poetas, e os perigos de um mundo imaginário?
Os corpos, quando a chama os desintegra na pira, ou o tempo
pela decomposição, mal algum podem sofrer, acreditai-me.
As almas estão livres da morte e, deixando a primeira morada,
em nova mansão são acolhidas e lá habitam, vivendo sempre.
160 Eu próprio, lembro-me bem, fui, à época da guerra de Tróia,
Euforbo, o filho de Panto, em cujo peito, em tempos idos,
se cravou em cheio a pesada lança do Atrida mais novo.
Reconheci o escudo, que então eu trazia na mão esquerda,
há pouco em Argos, a cidade de Abante, no templo de Juno.
O discurso de Pitágoras L I V R O XV 369

165 'Tudo se transforma, nada morre. O espírito vagueia e anda


daqui para ali, dali para aqui, e invade um corpo, qualquer
que ele seja, e dos animais passa para o corpo humano,
e de nós passa para os animais, e em instante algum perece.
Tal como a dúctil cera se molda sempre em novas figuras,
110 e não permanece como era, nem conserva as mesmas formas,
e, no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma,
é o que digo, mas transmigra para uma variedade de formas.
Logo, para a gula do estômago não vencer o respeito devido,
livrai-vos de expelir, é o meu ensinamento, almas de parentes
175 com impia matança, e que o sangue não se nutra de sangue.

'E já que navego sobre o vasto mar e desfraldei as velas todas


aos ventos, nada há no mundo todo que permaneça o mesmo.
Tudo flui, e toda a imagem que se forma é passageira.
Até o próprio tempo escorre, num movimento incessante,
lso tal como um rio. Na verdade, nem imobilizar-se pode o rio
nem o veloz instante. Tal como a onda é impelida pela onda,
e a anterior, empurrada pela seguinte, empurra a anterior a si,
assim, deste modo foge o tempo, e deste modo prossegue
e é sempre novo. Pois o que foi antes fica deixado para trás
185 e torna-se o que não era, e todos os instantes são renovados.

'Vês como as noites, terminado o seu trajecto, avançam


para o dia, e uma claridade cintilante sucede à negra noite.
O céu não tem a mesma cor, quando os corpos fatigados
jazem afundados no sono, ou quando Lúcifer sai, radioso,
190 com o corcel branco; e tem ainda outra, quando, precedendo
o dia, a filha de Falante tinge o mundo antes de o dar a Febo. 141

O próprio disco deste deus, quando se ergue no horizonte,


é rubro de manhã, rubro quando no horizonte se oculta.
No ponto mais alto é de brilho claro, pois ali a natureza do ar
195 é melhor, e, lá ao longe, foge assim à contaminação da terra.
Jamais a forma da nocturna Diana pode ser igual ou a mesma,
e a de hoje, se o seu globo está crescendo, é sempre menor
do que a que se segue, e maior, se o globo vai minguando.

4 Aurora.
370 L I V R O XV O discurso de Pitágoras

'O quê? Não vês como o ano se desenrola em quatro fases


200 no seu percurso, à imitação da nossa própria vida?
Pois, no início da Primavera é temo e lactente, semelhante
à idade da meninice. Então, a erva jovem, sem vigor, é
rechonchuda e tenra, e delicia os lavradores com esperanças.
Então, há flores por toda a parte, e com as cores das flores
205 brinca o nutriente prado, e não há ainda pujança nas folhas.
Depois da Primavera, o ano, mais robusto, passa ao Verão,
e toma-se um jovem forte. Na verdade, não há estação
mais robusta, nem outra mais luxuriante, nem mais ardente.
Sucede o Outono, que, pondo de lado o ardor da juventude,
210 é maduro e calmo, moderado, a meio caminho entre jovem
e velho, mas já com as suas têmporas salpicadas de cãs.
E lá chega o Inverno, a tremer de frio, senil, o passo trémulo,
despojado de cabelo, ou então, se algum tiver, todo branco.

'Também o nosso corpo se transforma constantemente,


215 sem pausa alguma, nem seremos amanhã o que fomos antes,
ou o que somos. Houve um tempo em que, simples semente,
promessa inicial de homem, nos ocultámos no ventre materno.
A natureza aplicou as mãos de artífice e não quis que o corpo
nosso, encerrado nas vísceras distendidas da mãe, sufocasse,
220 e desta morada enviou-nos para fora, para o vazio do ar.
Ao vir à luz, o recém-nascido ficou deitado, sem forças;
mais tarde, movia o corpo a quatro patas, como os animais,
e, pouco a pouco, trémulo, com joelhos ainda pouco firmes,
pôs-se em pé, ajudando os músculos com qualquer apoio.
225 Depois ficou forte e ágil, e passa todo o espaço da juventude;
e, cumpridos também os anos do meio da vida,
desliza pelo caminho em declive da declinante velhice.
Esta corrói a base e desmorona as forças da idade anterior;
e envelhecido chora Mílon, ao contemplar aqueles braços
230 gastos, que outrora tinham sido massa de sólidos músculos,
semelhantes aos de Hércules, e que agora pendem flácidos.
E chora a filha de Tíndaro, quando ao espelho vê as rugas
de velha e se interroga porque foi duas vezes raptada. 151

' Helena foi, primeiro, raptada por Teseu e Pirítoo, depois, por Páris.
O discurso de Pitágoras L I V R O XV 371

Ó tempo que tudo devoras, e tu, velhice cheia de inveja,


235 vós tudo destruís, e, corrompido pelos dentes da idade,
tudo consumis, a pouco e pouco, numa morte lenta.

'Tão-pouco o que nós chamamos elementos duram sempre.


Por que fases eles passam (prestai bem atenção), vou ensinar.
O universo eterno contém quatro substâncias geradoras.
240 Destas, duas são mais pesadas, e, pelo seu próprio peso,
são puxadas para baixo: são elas a terra e a água.
As outras duas não têm peso e tendem a ir para cima
se ninguém as impedir: o ar e, mais puro que o ar, o fogo.
Embora separados no espaço, todos os elementos derivam
245 deles mesmos e a eles retornam: a terra desintegra-se
e dissolve-se em límpida água; esta, dissipando-se em ar,
parte em vapor e ar; e o ar, por seu turno, libertado do peso,
saltita, levíssimo, para cima, para os fogos lá do alto.
Depois, voltam atrás, a mesma ordem desenrola-se ao invés.
250 De facto, o fogo condensa-se e converte-se no ar mais denso,
este em água, e a água, aglomerando-se, solidifica-se em terra.

'Nem o aspecto de cada coisa dura sempre, mas a natureza,


a renovadora das coisas, produz formas a partir de outras.
Coisa alguma em todo o universo morre, acreditai em mim,
255 mas tudo muda e toma um aspecto novo. Chama-se nascer
começar a ser coisa distinta do que antes era, e morrer
cessar de ser a mesma coisa. Embora aquela talvez se tenha
tornado nesta, e esta naquela, o total permanece o mesmo.
De facto, sou levado a pensar que nada dura muito tempo
260 com a mesma forma. Assim chegastes do ouro ao ferro,
ó idades, assim amiúde se transformou a fortuna dos locais.
Eu próprio vi o que, em tempos idos, fora terra firmíssima
ser agora mar, e vi, a partir do mar, formarem-se terras.
Bem longe das ondas jazem no chão conchas marinhas,
265 e velhas âncoras são encontradas nos píncaros dos montes.
O que antes foi planície, a passagem das águas tornou vale,
e montanhas foram carregadas por aluviões para o mar;
terrenos outrora pantanosos estão áridos, de areias secas,
os que sofriam de seca são pântanos húmidos e estagnados.
3 72 L l V R O X V O discurso de Pitágoras

210 Aqui a natureza fez jorrar novas nascentes, mais além


fechou-as, e t antigos t tremores de terra fizeram saltar fora
t muitos t rios, ou então, bloqueando-os, fizeram-nos sumir.

'Assim, depois de Lico ser tragado por um buraco na terra,


emerge bem longe dali, renascendo de uma outra abertura.
215 Assim o Erasino ora é sorvido, ora, após a corrente deslizar
sob as terras, regressa, enorme, nas planícies da Argólide.
Diz-se que o Caíco na Mísia, insatisfeito com a nascente
e as antigas margens, flui agora por um outro percurso.
Também o Amenano, que traz a rebolar as areias da Sicília,
280 ora corre, ora, por vezes, está seco, entupida a sua nascente.
Antes era bebido, agora o Anigro derrama água que nem
te atrevas a tocar (salvo se toda a credibilidade aos poetas
se deva tirar) , depois de os biformes seres terem lavado [' J

aí as feridas que o arco de Hércules, o da clava, infligiu.


235 O quê? Não é o Hípanis, nascido nas serras da Cítia,
que antes era água doce e que agora amargo sal inquinou?
Rodeadas pelas ondas estiveram Antissa, e Faro, e a Tiro
dos Fenícios, e nenhuma delas é hoje em dia ilha alguma.
Dantes, os camponeses de Lêucade viviam numa península,
290 agora circunda-os o mar; também se diz que Zancle à Itália
esteve unida, até que o mar arrebatou a fronteira entre elas,
e, enfiando ondas de permeio, empurrou as terras para trás.
Se procurares Hélice e Búris, ambas cidades da Aqueia,
encontrá-las-ás sob as águas; e ainda hoje os nautas sempre
295 mostram as cidades afundadas e as muralhas ali submersas.
Perto de Trezena, a terra de Piteu, há um outeiro escarpado,
sem qualquer árvore. Outrora a área mais rasa da planície,
hoje é, pois, um outeiro: é que (coisa arrepiante de contar! )
a violência selvagem dos ventos, fechada em escuros antros,
Joo ansiando ser exalada por algum sítio, e tendo lutado em vão
por fruir do céu mais livre, mas não havendo na masmorra
inteira qualquer fenda ou passagem para as suas rajadas,
inchou a terra e dilatou-a, tal como o sopro da boca costuma
encher uma bexiga ou um saco de pele arrancada ao bicome

6 Centauros.
O discurso de Pitágoras L I V R O XV 373

305 carneiro. O inchaço desse local ainda hoje ali está, e possui
o aspecto de alta colina; e, passado tanto tempo, endureceu.

'Embora muitas coisas que ouvi e sei me venham à mente,


vou contar só umas poucas. O quê? Não é também a água
que dá e tira formas novas? Ao meio-dia, comígero Ámon,
310 a tua corrente está gelada, e tépida ao nascer e pôr do sol.
Diz-se que os Atamanos acendem a lenha aplicando-lhe
só água, quando a lua encolhe o seu globo até ao mínimo.
Os Cícones têm o rio que, ao ser bebido, torna em pedra
as entranhas, pois reveste de mármore tudo em que toca.
315 O Crátis, na nossa região, e o Síbaris, que lhe é vizinho,
tomam os cabelos semelhantes ao âmbar e ao ouro.
E as mais espantosas são as águas que não só os corpos
conseguem transformar, mas também até as mentes.
Quem não ouviu falar de Sálmacis, de obscenas águas,
320 e dos lagos da Etiópia? Se alguém delas beber uns goles,
ou endoidece, ou sofre um sono espantosamente pesado.
Todo aquele que aliviar a sede na fonte de Clitor,
foge ao vinho e encanta-se, abstémio, com água pura,
ou porque há um poder na água adverso ao calor do vinho
325 ou porque (é o que contam os naturais) o filho de Amitáon,
quando arrebatou à loucura as aturdidas filhas de Preto
com uma fórmula e plantas mágicas, despejou nas águas
o purgante da mente, e o ódio ao vinho ficou nas ondas.
Para ali, de efeitos bem diversos, corre o rio dos Lincestas:
330 quem quer que sorva umas boas goladas sem moderação
cambaleia tal como se tivesse bebido vinho puro.
Há um local na Arcádia (os antigos chamaram-lhe Feneu)
suspeito pelas estranhas águas, que de noite deveis temer:
bebidas de noite fazem mal, bebê-las de dia mal não faz.

m 'Assim, os lagos e os rios tomam os poderes mais diversos.


Houve um tempo em que Ortígia boiou à deriva nas ondas:
hoje está parada. Argo receou as Simplégades, encharcadas
nesse tempo pelos embates das ondas que elas esmagavam,
enquanto hoje em dia estão imóveis e resistem aos ventos.
340 Nem o Etna, que arde dentro das suas fornalhas de enxofre,
será sempre de fogo; de facto, nem sempre foi de fogo.
374 L I V R O XV O discurso de Pitágoras

É que se a terra é um ser animado, que vive e possui


respiradouros em muitos sítios que assopram chamas,
ela pode mudar os canais por onde expira, e, sempre que
345 é abalada, pode fechar estas cavernas e abrir aqueloutras.
Ou então, se nas profundezas dos antros estão aprisionados
velozes ventos, que atiram pedras contra pedras e matéria
contendo sementes de fogo, e esta pelos choques se inflama,
mal os ventos se acalmem, as cavernas voltarão a estar frias.
350 Ou então, se são substâncias betuminosas a incendiar-se,
e amarelentos enxofres a arder com ténues volutas de fumo,
é claro que, quando a terra não der mais comida e alimento
rico às chamas, esgotadas as forças com o correr do tempo,
à sua natureza devoradora faltará alimento, e esta, então,
355 não aguentará a fome: o fogo desertará dos desertos locais.
Em Palene, conta-se, na terra dos Hiperbóreos, há homens
que ficam com os corpos recobertos por leves plumagens
sempre que mergulham nove vezes no pântano de Tritónis
- eu não acredito. Diz-se também que há mulheres na Cítia
360 que fazem a mesma magia, salpicando o corpo com poções.

'Se algum crédito, porém, se deve dar a factos comprovados,


acaso não vês que todo o cadáver, decomposto pelo passar
do tempo e o calor que o derrete, se transforma em vermes?
t Vamos ! t Enterra também touros imolados t escolhidos t,
365 coisa sabida de experiência: das vísceras putrefactas nascem
por toda a parte abelhas florílegas, que, à maneira dos pais,
vivem no campo, dão-se à labuta, afadigam-se pelo futuro.
O corcel de guerra, enterrado no chão, é origem dos zangões.
Se arrancares as côncavas pinças ao caranguejo da costa
310 e colocares o resto debaixo do chão, da parte sepultada
sairá um escorpião a ameaçar-te com a cauda em gancho.
As lagartas silvestres, que costumam entretecer as folhas
com brancos fios (é coisa observada pelos camponeses) ,
mudam a sua forma para a forma d a borboleta fúnebre.
375 O lodo tem sementes que dão origem às esverdeadas rãs:
produ-las sem pernas, mas depois dá-lhes pernas aptas
para nadar; e, para que sejam aptas para longos saltos,
as posteriores superam em tamanho as patas anteriores.
Nem é uma cria de urso o que ursa há pouco deu à luz,
O discurso de Pitágoras L I VRO XV 375

380 mas carne ainda mal viva; lambendo-a, a mãe molda-lhe


os membros e confere-lhe a forma que ela própria tem.
Acaso não vês que as larvas das melíferas abelhas, que
a cera hexagonal protege, nascem corpos sem membros
e, só mais tarde, desenvolvem patas, só mais tarde asas?
385 O pássaro de Juno, que transporta estrelas na sua cauda,
e a ave, escudeiro de Júpiter, e as pombas da de Citeros,
e toda a espécie de aves, quem julgaria que podiam nascer
de dentro de um ovo, se não soubesse que é o que sucede?
Há quem creia que, quando a coluna vertebral se putrefaz
3 90 na tumba fechada, a medula espinal converte-se em cobra.

'Mas estas extraem de outros a origem do seu nascimento.


Ora, há uma ave que se regenera e se reproduz a si mesma.
Os Assírios chamam-lhe fénix. Não é de grãos ou de ervas
que vive, mas de lágrimas de incenso e da seiva do amorno.
395 Ela, ao completar cinco séculos de vida, constrói para si
um ninho nos ramos de uma azinheira, ou na copa
da trémula palmeira, com as unhas e o imaculado bico.
Mal cobriu o fundo de cássia e espigas de delicado nardo,
e canela moída junto com fulva mirra, deita-se lá em cima
400 e termina a sua existência por entre estas fragrâncias.
Depois, do corpo paterno renasce um pequenino fénix,
diz-se, destinado a viver o mesmo número de anos.
Quando a idade lhe dá forças e é capaz de carregar pesos,
alivia os ramos da alta árvore do pesado fardo do ninho,
405 e leva devotamente o seu berço, e sepulcro de seu pai.
E quando, pelas leves brisas, chega à cidade de Hiperíon,
pousa-os diante das sacras portas do templo de Hiperíon.

'Mas se alguma novidade assombrosa reside nestes casos,


espantemo-nos pois com a hiena, que alterna de condição:
410 ora é fêmea, que se faz montar pelo macho, ora é macho.
E com aquele bicho que se alimenta dos ventos e da brisa,
e que, de imediato, se camufla com as cores em que tocou. m

A Índia, vencida, deu linces a Baco, o de cachos coroado:

7 O camaleão.
376 L I V R O XV O discurso de Pitágoras

o que quer que a bexiga destes, segundo se diz, lança fora,


415 transforma-se em pedra, e congela-se em contacto com o ar.
E o mesmo sucede com o coral: pois, logo que toca os ares,
solidifica, ele que era uma planta mole debaixo das ondas.

'O dia terminará e Febo mergulhará os cavalos ofegantes


no fundo do mar, antes que eu abarque, no meu discurso,
420 todas as coisas que assumiram formas novas. Assim vimos
os tempos mudarem e uns povos tornarem-se poderosos,
outros decaírem. Assim foi Tróia, grande em riqueza e homens:
ao longo de dez anos, foi capaz de dar tanto do seu sangue;
agora, arrasada ao nível do solo, exibe as antigas ruínas
425 e, no lugar de riquezas, os sepulcros de seus antepassados.
[Renomada foi Esparta, poderosa a grande Micenas,
tal como foi a cidadela de Cécrops, tal como a de Anfíon; [s1

Esparta é hoje terreno sem valor, a alta Micenas desabou.


O que é Tebas, a dos filhos de Édipo, senão um nome?
4Jo O que resta da Atenas de Pandíon, senão o seu nome?]
Agora mesmo consta que a Roma dos Dárdanos se ergue,
e que, junto à corrente do Tibre, que nasce nos Apeninos,
lança os alicerces do seu estado com gigantesco esforço.
Pois, até ela, ao crescer, vai mudando de forma, e um dia
4J5 será cabeça do mundo imenso. Assim falaram os adivinhos,
diz-se, e os proféticos oráculos. E, tanto quanto me lembro,
quando o estado Troiano vacilava, Heleno, filho de Príamo,
isto havia dito a Eneias, choroso, em dúvida se se salvaria:
"Filho de uma deusa, se tomaste bem nota das profecias
440 da minha mente, Tróia não sucumbirá toda, estando tu vivo.
As chamas e o ferro abrir-se-ão para tu passares; partirás,
e, pegando em Pérgamo, levá-la-ás contigo, até chegares
a outra região, mais amiga de Tróia e de ti que a de teus pais.
E vejo que uma cidade te deve descendentes dos Frígios,
445 grande como outra não há, nem haverá, nem outrora se viu.
Ao longo de muitos séculos, outros chefes fá-la-ão poderosa,
mas será um rebento do sangue de Julo a torná-la soberana
do mundo. Quando a terra se tiver servido dele, comprazerá

8 Atenas e Tebas, respectivamente.


O discurso de Pitágoras - A morte de Numa L 1 V R O X V 3 77

ele as moradas celestes, e o final do seu trajecto será o céu. "


450 Estas coisas, recordo-me bem, Heleno profetizou a Eneias,
o portador dos Penares, e alegro-me por muros de parentes [9J

crescerem, e a vitória dos Pelasgos ser proveitosa aos Frígios.

'Mas para não nos afastarmos para mais longe, esquecidos


os corcéis de correr para a meta, o céu e tudo o que está sob ele
455 mudam de forma, tal como a terra e tudo o que sobre ela está.
Também nós, parte do universo, já que não somos só corpo,
mas também almas esvoaçantes, que podemos ir habitar
dentro de feras e ocultarmo-nos no peito do gado, deixemos
que estejam seguros e respeitados os corpos que possam ter
460 albergado as almas de nossos pais ou irmãos, ou de alguém
por algum elo a nós unido, ou, ao menos, de seres humanos,
e não nos empanturremos com banquetes como o de Tiestes.
Que mau hábito tem esse, quão ímpio se apresta para sangue
humano, aquele que com a faca rasga a garganta do vitelo
465 e oferece orelhas moucas, imperturbáveis, aos seus mugidos,
ou o que tem a coragem de decepar o cordeirinho, que solta
berros iguais aos de um menino, ou o que come a ave
a quem ele próprio deu de comer ! O que é que falta aqui
para o crime completo? Daqui, até onde planeia chegar?
410 Que o boi lavre ou impute a sua morte à provecta idade,
que a ovelha proporcione defesa contra o gélido Bóreas,
cabras ofereçam úberes cheios para a nossa mão ordenhar.
Tirai as redes e armadilhas e laços e artifícios traiçoeiros,
e não enganeis os pássaros com o ramo untado de visco,
475 nem iludais os cervos com truques de penas para os aterrar,
nem escondais os recurvas anzóis com falaciosos pitéus.
Matai quem vos fizer mal, mas matai somente tais seres;
que a boca se abstenha de sangue e colha gentis manjares. '

CoM o ESPÍRITO instruído com estes e outros ensinamentos,


4so diz-se que Numa retomou à pátria, e, tendo-lhe sido pedido,
aceitou, ainda para mais, tomar as rédeas do povo do Lácio.

9 Pitágoras, como acima ele próprio diz, achava-se a reincarnação de Euforbo, herói troiano.
378 L I V R O XV Numa - Hipólito e Egéria

Ditoso pela esposa, uma ninfa, e pelas Camenas a guiá-lo, c101

foi ele quem ensinou os ritos dos sacrifícios e que converteu


um povo habituado à feroz guerra às artes do tempo de paz.
485 Quando, idoso, chegou ao fim do reinado e do tempo de vida,
e faleceu, pelas mulheres do Lácio, povo e senadores, Numa
foi chorado. A esposa, essa deixou a cidade e refugiou-se lá
longe, escondendo-se nos densos bosques do vale de Arícia.
Aí, com gemidos e lamentações, perturbava o culto a Diana
490 de Orestes. Oh ! quantas vezes as ninfas do bosque e do lago
não a advertiram a que tal não fizesse e lhe disseram palavras
de consolação ! Quantas vezes, lavada em lágrimas, lhe disse
o herói filho de Teseu: 'Pára de chorar. Não é só a tua sorte cui

digna de dó. Olha para infortúnios semelhantes de outros:


495 suportarás melhor tua sorte. Prouvera que outros exemplos,
que não o meu, pudessem aliviar a tua dor; porém, ele pode.

'SE EM CONVERSA te chegou aos ouvidos que certo Hipólito,


pela credulidade do pai e a mentira da criminosa madrasta,
foi na morte lançado, pasmarás, e a custo lograrei provar,
500 mas esse jovem sou eu. Uma certa ocasião, a filha de Pasífae, u21

tendo em vão tentado que eu conspurcasse o leito de meu pai,


alegou que eu queria o que ela queria, e, invertendo o libelo,
(por medo de ser denunciada ou ressentida pela rejeição? ) ,
fez-me condenar. Sem d e todo o merecer, meu pai baniu-me
505 da cidade; ao partir, amaldiçoou-me, rogando praga hostil.
Exilado, dirigia-me no meu carro para Trezena, a de Piteu,
e já avançava ao longo da costa do golfo de Corinto,
quando o mar se levanta, e uma gigantesca massa de água
vemos erguer-se encurvada e crescer como uma montanha,
510 e lançar mugidos, e fender-se no cimo da sua crista.
Rompendo a onda, salta dali para fora um touro cornígero:
erguendo-se contra as brandas brisas até ao peito, cospe
das narinas e da escancarada boca uma quantidade de mar.
O coração dos meus amigos apavora-se, mas o meu espírito

10 Egéria.
1 1 Hipólito.
12
Fedra.
Hipólito e Egéria L I V R O XV 379

m fica impávido: basta-lhe o exílio. Eis que os fogosos cavalos


voltam o pescoço para o mar, e, de orelhas espetadas,
horrorizam-se. Aterrados com o monstro, são tomados
de pânico e arrastam o carro pela alta falésia. Em vão luto
por os travar com os freios, ensopados de branca espuma,
520 todo inclinado para trás, puxo a mim as maleáveis rédeas.
O pânico dos cavalos não teria vencido as minhas forças,
não fosse, ao chocar com um tronco, uma roda partir-se,
ali onde gira sem parar à volta do eixo, e se ter estilhaçado.
Sou cuspido do carro. Presos os braços nas rédeas, verias
525 as vísceras arrastadas vivas, músculos cravados num tronco,
dos membros, parte arrastada, parte ficar para trás presa,
e os ossos despedaçados soltarem um estalido tremendo,
a alma esgotada a ser expirada. E não há parte do corpo
que se pudesse reconhecer: todo ele era uma só ferida.
5Jo Acaso tu podes ou atreves-te a comparar a tua desgraça
com a minha, ó ninfa? Para mais, vi ainda o reino sem luz,
e tratei do corpo estraçalhado nas águas do Flegetonte,
e só o potente remédio do filho de Apolo me devolveu rm

a vida. Quando a recuperei, graças às poderosas ervas


m e ao auxílio da arte de Péan, apesar da indignação de Dite,
a fim de que, ao verem-me, não fizesse aumentar a inveja
por tal dádiva, a Cíntia cobriu-me com uma espessa névoa.
E para que pudesse andar tranquilo e ser visto sem perigo,
acrescenta-me anos de vida, e deixa-me com um rosto
540 irreconhecível. Largo tempo hesitou se me daria Creta
ou Delos para morar; depois, desistindo de Delos e Creta,
aqui me pôs, ordenando, ao mesmo tempo, que abdicasse
do meu nome que podia recordar cavalos, "Tu que foste
Hipólito" , disse, " doravante serás Vírbio" . E desde então '14'

545 vivo neste bosque. Sendo divindade menor, escondo-me


sob o poder divino da senhora e sou um servidor seu.' r1'l

" Esculápio.
14 Hippolytu.r em grego significa 'o que desatrela os cavalos, o que os liberta', Virbiu.r poderia
sugerir ao auditório romano algo como 'duas vezes homem'.
1 5 Diana.
380 LIVRO XV Egéria - Tages e a lança de Rómulo - Cipo

Desgraças alheias, porém, não logram aliviar o sofrimento


de Egéria. Prostrada por terra no sopé de uma montanha,
dissolve-se em lágrimas, até que a irmã de Febo, levada
550 por compaixão do seu sofrer, o corpo dela em fresca fonte
transformou, reduzindo os membros a um regato eterno.

O ESTRANHO caso impressionou as ninfas; o filho da Amazona [ l6J

quedou-se estupefacto, tal como quando o Tirreno, ao lavrar,


observou no meio dos campos um prodigioso monte de terra,
555 primeiro, a agitar-se por si só, sem que ninguém o movesse,
depois, a assumir uma forma humana e a perder a de terra,
e a descerrar a boca recente para revelar os fados vindouros
(os nativos chamaram-lhe Tages, e foi ele o primeiro homem
a ensinar o povo etrusco a desvendar os eventos futuros).
560 Ou tal como quando, um dia, Rómulo observou uma lança,
espetada no monte Palatino, de repente recobrir-se de folhas,
erguer-se com raízes inéditas, não na ponta de ferro cravada;
depois, já não mais projéctil mas árvore de flexíveis ramos,
oferecia sombra inesperada aos homens boquiabertos.

565 Ou TAL como Cipo, ao ver nas águas do rio os seus cornos.
De facto, ele bem os via. Mas, julgando que o crédito dado
ao reflexo era falso, vezes sem conta levou os dedos à fronte
e tocou no que via. E já não acusando mais os próprios olhos,
deteve-se (ao vencer o inimigo, regressava então, triunfante) ,
570 e estendendo os olhos para o céu e também os braços, disse:
'Ó deuses, o que quer que seja que este prodígio pressagie,
se for algo feliz, que caiba feliz à pátria e ao povo de Quirino,
se for ameaçador, que caiba a mim.' E, queimando aromas
em altar de erva, colhida no verde prado, aplaca os deuses,
575 e derrama vinho de taças e sacrifica alguns borreguinhos
para consultar as vísceras palpitantes, a ver o que diziam.
Mal o arúspice do povo Tirreno se pôs a inspeccioná-las,
viu nelas, de facto, grandes acontecimentos no mundo,
embora não fossem claros. Mas mal ergueu o olhar agudo
5so das entranhas do animal para os chifres de Cipo, exclamou:

16 Hipólito, filho de Teseu e da Amazona Antíope ou Hipólita.


Cipo L I V R O XV 381

'Salve, ó rei ! A ti, de facto, a ti, Cipo, e aos teus chifres


este local e as fortalezas do Lácio prestarão obediência.
Tão-só não te demores, apressa-te a entrar nos portões
abertos. Assim ordena o destino ! Pois, recebido na urbe,
585 serás rei, e senhor tranquilo serás do ceptro para sempre.'
Aquele recuou e, desviando o olhar torvo das muralhas
da cidade, gritou: 'Ah ! Para longe, bem longe, os deuses
afastem tais presságios ! Muito mais justo será terminar
a vida no exílio do que me vejam como rei no Capitólio ! '

590 Assim disse; e de imediato convoca o povo e o respeitável


Senado; mas antes, encobre os chifres com pacífico louro.
Detém-se em cima de uma fortificação pelas bravas tropas
construída, e implora aos deuses, segundo o modo antigo:
'Está aí um homem, que, se não o afastardes da cidade,
595 será rei. Quem é ele, direi com um gesto, não pelo nome:
traz chifres na fronte. O áugure indica que, se ele entrar
em Roma, ditará leis que vos reduzirão à servidão.
Ele, de facto, podia ter irrompido pelas portas abertas
não fosse eu travar-lhe o passo, embora ninguém esteja
600 mais ligado a ele que eu. Tende-o longe da cidade, Quirites,
ou, se for merecedor, agrilhoai-o com pesadas correntes,
ou libertai-vos do medo matando o tirano dado pelo fado. '

Como o s murmúrios que nos pinhais d e copas arregaçadas


se ouvem quando o feroz Euro assobia, ou os que as vagas
605 do mar produzem se alguém as ouve ao longe, assim ressoa
o povo. Mas no meio desta confusão de gritos da multidão
em alvoroço, uma voz, porém, sobressai: 'Quem é aquele? '
e observam a s frontes e procuram o s chifres que tinha dito.
De novo lhes diz Cipo: 'Vós já tendes quem reclamais. '
610 Tira da cabeça a coroa de folhas, tentando o povo impedi-lo,
e exibe a fronte na qual se destacava o par de chifres.
Todos baixaram os olhos e soltaram um gemido.
A contra-gosto fitaram aquela cabeça ilustre pelos méritos.
Quem poderia acreditar? Não permitiram que vivesse mais
615 sem distinções honoríficas e impuseram-lhe a coroa festiva.
Os aristocratas, visto ser-te interdito entrar na cidade,
382 L l VRO XV Cipo. - Esculápio em Roma

atribuíram-te como prémio, Cipo, propriedade tão grande


quanta pudesses contornar com um arado no solo afundado
com a junta de bois, desde o nascer do dia até ao pôr do sol.
620 Para recordar o seu aspecto prodigioso, nos postes de bronze
da porta esculpem cornos, para ficarem por longos séculos.

REVELAI agora, ó Musas, deusas dos poetas sempre presentes


(vós sabeis, e a vastidão do tempo passado não vos faz errar)
onde a ilha circundada pelo fundo Tibre foi recrutar o filho
625 de Corónis, para o adicionar aos cultos da cidade de Rómulo. [ 1 71

Em tempos idos, uma peste atroz infectara os ares do Lácio,


e cadáveres jaziam imundos, exangues, lívidos pela doença.
Derreados de tanto funeral, quando vêem nada poderem
os esforços humanos, nada poderem os saberes dos médicos,
6Jo buscam ajuda celeste. Vão até Delfos, o oráculo de Febo,
cujo chão é o centro do mundo, e lá suplicam ao deus
que, com resposta salvífica, se digne acudir a tal situação
lastimável e pôr cobro às desgraças de tão grande cidade.
Tudo estremeceu ao mesmo tempo, o santuário, o loureiro
635 e a aljava que o próprio deus trazia; e a trípode, abalando
os corações de terror, do fundo do templo lançou tal dizer:
'O que buscas, Romano, devias buscar em local mais próximo;
busca-o agora nesse local mais próximo; não é de Apolo
que precisais para reduzir as mortes, mas do filho de Apolo.
640 Ide com auspícios favoráveis e convidai a ir a minha prole.'
Quando o sábio Senado escutou as instruções do deus,
indagam qual a cidade onde vive o jovem filho de Febo,
e mandam ir homens, pelos ventos, às costas de Epidauro.

Logo que os emissários ali aportam com a recurva nau,


645 dirigem-se à assembleia de senadores gregos e solicitaram
que lhes dessem o deus. Estando presente, ele poria cobro
às mortes do povo da Ausónia: assim dizia oráculo infalível.
As opiniões dividem-se e são variadas. Uns julgam que não
se devia recusar o auxílio, muitos outros recomendam

17 Esculápio.
Esculápio em Roma L I V R O XV 383

650 conservarem o seu bem, não enviar nem entregar o seu deus.
Enquanto hesitavam, o crepúsculo expulsou a luz da tarde.
E já a sombra recobrira de escuridão o globo das terras,
eis quando o deus Auxiliador surge em sonhos, parado
de pé diante do teu leito, Romano, mas tal como costuma
655 estar no templo. Segurando um tosco báculo na esquerda,
puxava a espessa e longa barba com a mão direita,
e, de coração plácido, pronunciou as seguintes palavras:
'Não tenhas medo: eu irei, e deixarei as minhas estátuas.
Observa apenas esta serpente, que se enrosca no báculo
660 com seus nexos. Fixa-a bem, para, ao vê-la, a reconheceres.
Transformar-me-ei nela, mas serei muito maior, e ver-me-eis,
tão grandioso como devem os seres celestes ao transformar-se.
De imediato, com a voz parte o deus, e com o deus e a voz
parte o sono, e a alma luz do dia persegue o sono em fuga.

665 A Aurora seguinte pusera já em fuga os fogos das estrelas.


Ainda hesitantes sobre o que fazer, os dirigentes reúnem-se
no templo finamente trabalhado do deus que lhes solicitavam,
e rogam que revele por sinais celestes onde deseja residir.
Não tinham ainda terminado, quando o deus, todo de ouro,
610 feito serpente de alta crista, se anuncia soltando silvos.
À sua chegada, agitou a estátua e os altares e as portas,
e o chão de mármore e o tecto de ouro. E erguendo-se
bem alto do peito para cima, detém-se no meio do templo,
lançando a toda à sua volta um olhar faiscante de fogo.
675 A multidão estremece de horror. Reconheceu a divindade
o sacerdote, de cabelos puros cingidos por branca fita, e diz:
'Ei-lo, é o deus, é o deus ! Respeitai em silêncio e no espírito
todos vós que aqui estais ! Ó mais belo, que a tua aparição
traga proveito e ajudes as gentes que praticam o teu culto. '
680 Todos os presentes veneram o deus que se revelara e todos
eles repetem as palavras do sacerdote assim redobradas;
os Enéadas apoiam-nos devotamente com a voz e o coração.
O deus anuiu a tal, e outorgou penhor seguro, movendo
a crista e soltando repetidos silvos com a língua a vibrar.
685 Então, desliza pelos lustrosos degraus abaixo, e, voltando
para trás o rosto, contempla, ao partir, os antigos altares
384 L I V R O XV Esculápio em Roma

e a morada tão familiar, e saúda o templo em que habitara.


Depois, pelo chão coberto de flores que sobre ele lançavam,
rasteja enorme, serpenteando, e dirige-se pelo centro
690 da vila até ao porto, protegido por um molhe encurvado.
Aqui detém-se. Parecendo despedir-se do cortejo de fiéis
com plácido rosto e agradecer à multidão que o seguira,
embarcou no navio da Ausónia. Este sentiu a carga divina,
e a quilha afundou-se um pouco com o peso do deus.

695 Rejubilam os Enéadas; e depois de imolar um touro no areal,


soltam as amarras retorcidas da nau, ataviada de grinaldas.
Um brisa ligeira impelia o barco. O deus ergue-se bem alto,
e, apoiando o pescoço na popa recurva, carregando nela,
contempla lá em baixo as ondas azuis. Cruzando o mar Jónio,
100 viaja com brandos Zéfiros. E, ao sexto nascimento da filha
de Falante, chega a Itália. É levado para lá do cabo Lacínio,
renomado pelo templo da deusa, para lá da costa de Cilaceu; [isi

deixa para trás a Iapígia, e à força de remos escapa às rochas


de Anfriso do lado esquerdo, e à falésia abrupta do Celeno
105 do lado direito, e alcança Romécio e Caulónia e Narícia,
e supera o estreito bem apertado do Peloro na Sicília,
a ruma à mansão do rei, filho de Hípotes, e aos metais
de Témese, e a Leucósia e aos roseirais do tépido Pesto.
Depois, chega a Cápreas e ao promontório de Minerva,
110 e às colinas tão apreciadas pelas vinhas de Surrento,
e à cidade de Hércules e a Estábias e a Parténope, nascida u91

para o ócio, e, depois daqui, ao templo da Sibila de Cumas.


Dali chegam às nascentes de água quente, e a Litemo,
rico de aroeiras, e ao Vultumo, que arrasta muita areia
115 na corrente, e Sinuessa, apinhada de pombas brancas,
e à malsã Minturnas, e onde o pupilo sepultou a ama, [201

e ao palácio de Antífates, e Tracas, cercada por pântanos, [20

e à terra de Circe, e a Âncio, de litoral de areia compacta.

18 Templo de Juno.
19 A cidade de Hércules é Herculano; as nascentes de água quente são em Baías.
20
O local onde Eneias sepultou a ama é hoje Gaeta.
21
O palácio de Antífates é hoje Formia.
Esculápio -Júlio César e Augusto L I V R O X V 385

Quando os marinheiros apontaram a nau à vela para aqui


120 (pois estava o mar encrespado), o deus desdobra as roscas
e, deslizando com cerradas curvas e enormes espirais,
penetra no templo de seu pai que tocava o loiro areal.
Acalmado o mar, o deus de Epidauro deixa o altar paterno.
E, depois de gozar da hospitalidade de deus tão ligado a si,
m sulca na areia da praia um rasto com o rilhar das escamas,
e, trepando pelo leme da embarcação, pousa a cabeça
na alta popa, até que finalmente chega a Castro
e ao território sagrado de Lavínio, e, enfim, à foz do Tibre.
Para aqui, de toda a parte acorre uma multidão ao encontro,
1Jo o povo inteiro, e mães e pais, e as que vigiam o teu fogo,
ó troiana Vesta, e saúdam o deus com um clamor de alegria.
E por onde, sobre a corrente contrária, a veloz nau é levada,
em aras erigidas em fila nas margens de ambos os lados
crepita o incenso, que vai perfumando os ares com os fumos,
7J5 vítimas são golpeadas, e amornam as facas nelas cravadas.
E já ela entrara na cidade de Roma, a capital do mundo.
A serpente ergue-se e move o pescoço enroscando-o no topo
do mastro, olha à volta a ver qual a sede apropriada para si.
Ora, há um lugar onde o rio se divide e corre à volta dele
140 em duas partes iguais (o seu nome é a Ilha) , e de ambos
os lados estende braços iguais, ficando a terra no meio.
Aqui desembarcou da nau de pinho do Lácio a serpente,
o filho de Febo, e, reassumindo a sua aparência divina,
pôs fim ao luto e, portador da saúde, veio morar na Cidade.

145 ESTE, porém, veio para os nossos templos como estrangeiro;


César é deus na sua própria cidade. Excepcional na guerra
e na paz, não foram tanto as guerras terminadas em triunfo,
nem os feitos na pátria e a glória rapidamente alcançada
que o vieram a transformar num astro novo, em cometa,
150 quanto a sua descendência: não há entre os feitos de César
acção mais grandiosa do que ter sido pai do nosso soberano.
E, de facto, ter subjugado os Britânicos cercados de mar
e comandado pelos sete braços do Nilo, produtor de papiro,
os barcos vencedores, e acrescentado ao povo de Quirino
155 os Númidas rebeldes e Juba do Cínips, e o Ponto orgulhoso
3 86 LIVRO XV Césai e Augusto

do renome dos Mitridates, e ter merecido triunfos inúmeros


e só alguns ter celebrado, será que tudo isto vale mais
do que ter gerado tal homem? Com ele protector do mundo,
prestastes, ó deuses, um favor imenso ao género humano.

760 Mas para que este não fosse filho de sémen de ser mortal,
aquele tinha de ser feito deus. Quando a mãe de Eneias, (221

a de ouro, tal viu, e viu ainda que se maquinava morte


sinistra para o pontífice e que conspiração armada se urdia,
empalideceu, e pôs-se a dizer aos deuses que lhe saíam
765 ao caminho: 'Olha, que tremenda cilada se prepara
contra mim, com que perfídia se atenta contra a vida
do único que me resta da estirpe do dardánio Julo.
Serei sempre só eu a torturar-me com justas aflições?
Ora me fere a lança de Cálidon do filho de Tideu, (2 31

no ora me apavoro pelos muros de Tróia, mal defendidos,


ora tenho de ver meu filho arrastado em longas errâncias,
açoitado pelo mar, entrar na mansão dos mudos mortos,
comandar a guerra contra Turno ou, para falar verdade,
contra Juno sobretudo? Porque recordo agora os antigos
775 infortúnios de meu filho? O receio do presente não permite
recordar anteriores. Eis ! vede afiarem malvadas espadas !
Impedi-os, rogo, afastai para longe o crime, não apagueis
as chamas de Vesta com o sangue do seu sacerdote ! '

Em vão Vénus lança, angustiada, pelo céu inteiro


780 tais palavras. Os deuses comoveram-se. Não podem,
porém, quebrar os férreos decretos das antigas Irmãs. (241

Emitem, todavia, sinais claríssimos do luto iminente.


Dizem que um estrépito de armas entre negras nuvens
e o som de temíveis trombetas e das trompas nos céus
785 prenunciaram o ímpio crime. A aparência do sol, triste,
também oferecia uma luz macilenta às angustiadas terras.
Muitas vezes se viram tochas lampejando entre astros,

22 Vénus.
23 Diomedes.
24 As Parcas.
César e Augusto L I V R O XV 387

muitas vezes caíram gotas de sangue por entre a chuva;


Lúcifer, escurecido, ficou manchado de fosca ferrugem,
190 e manchado de sangue avançava o carro da Lua.
Em mil locais, o mocho do Estígio piou funestos agoiros,
em mil locais o marfim lacrimejou, e ouviram-se, dizem,
cânticos e palavras de ameaça nos bosques sagrados.
Vítima alguma dá bom augúrio; o fígado anuncia tumultos
195 enormes, iminentes, e acham nas entranhas a ponta cortada.
No fórum e em roda das casas e dos templos dos deuses
uivavam cães pelas noites, dizia-se, erravam as sombras
dos mortos mudos, e a Cidade foi sacudida por tremores.

Mas os avisos dos deuses não conseguiram vencer


soo as ciladas e o destino que viria: gládios desembainhados
levam para a casa sagrada, pois nenhum lugar na Cidade
apraz mais para o crime e atroz matança do que a Cúria.
Então, a deusa de Citeros golpeou com as mãos ambas
o peito e planeia ocultar o rebento de Eneias na nuvem
so5 com a qual, em tempos, arrebatara Páris ao feroz Atrida,
e com a que Eneias escapara à espada de Diomedes.
A ela, o pai assim disse: 'Aprestas-te a mover sozinha
o invencível destino, filha? Entra tu mesma na mansão
das três Irmãs; verás ali numa gigantesca estrutura
810 o arquivo do mundo, feito de bronze e ferro maciço,
que não receia os golpes do céu, nem a cólera do raio,
nem qualquer forma de destruição, seguro e eterno.
Acharás ali, inscrito em indestrutível metal, o destino
da tua descendência. Eu próprio o li e fixei na memória,
815 e vou contar, para não ignorares por mais tempo o futuro.
Este por quem te afadigas, ó deusa de Citeros, completou
o seu tempo, e terminaram os anos que ele devia à terra.
Que ele entre deus no céu e seja venerado em templos,
tu o farás, bem como ao seu filho, herdeiro do seu nome,
820 que suportará sozinho o fardo conferido, e, bravíssimo
vingador da morte do pai, ter-nos-á a seu lado na guerra.
Sob os seus auspícios, as muralhas de Mútina, sitiadas,
serão vencidas e implorarão a paz. Farsália senti-lo-á,
e Filipos, na Emácia, de novo encharcar-se-á de sangue,
388 L I V R O X V César e Augusto

325 e um de nome Magno verá vencido nas águas da Sicília. [25J

A esposa egípcia de um general romano, fiando-se mal [2•J

na tocha nupcial, sucumbirá, e vãs ficarão as ameaças


de que o nosso Capitólio ficaria escravo do seu Canopo.
Para quê enumerar-te terras bárbaras e povos que vivem
830 nos dois lados do Oceano? Tudo o que a terra habitável
contém, isso será dele. Também o mar será seu súbdito.
Quando a paz for dada às terras, voltará a sua atenção
para as leis da vida civil, produzirá legislação justíssima,
e com o seu exemplo regulará a moralidade. Antevendo
835 já o tempo futuro e as gerações que hão-de vir, ordenará
que a descendência nascida da sua santa esposa [27]

carregue tanto o seu nome, como os seus cuidados.


E só atingirá a mansão do céu e os astros, seus parentes,
quando igualar, já idoso, a idade do rei de Pilos.
840 Entretanto, rapta a alma ao corpo assassinado e fá-la
um astro, para que o divino Júlio contemple para sempre,
da sua morada lá do alto, o meu Capitólio e o fórum. '

Mal dissera tais palavras, eis que a alma Vénus, invisível


a todos, pára no meio da sede do Senado e arrebata ao corpo
845 do seu César a alma acabada de libertar-se. Não permitindo
que ela se dissipe nos ares, leva-a para os astros celestes.
Ao levá-la, sentindo que esta se iluminava e inflamava,
largou-a do seu regaço. Mais alto do que a lua, ela voa,
arrastando uma cabeleira flamejante pelo trajecto imenso,
850 e cintila feito estrela. E vendo os feitos do filho, confessa
que são maiores que os seus e rejubila por ele o superar.
Este proíbe que suas acções sejam ditas superiores às do pai.
A fama, porém, é livre e não se submete a quaisquer ordens,
e à sua revelia di-las superiores: só neste ponto o contradiz.
855 Assim o grande Atreu se rendeu aos títulos de Agamémnon,
assim Teseu superou Egeu, assim Aquiles venceu Peleu.
Enfim, para usar exemplos ao nível destes dois homens,

25 Sexto Pompeio, que se intitulava Magno, tíntlo que seu pai assumira. Não foi Octaviano que

o venceu, mas Agripa.


26 Cleópatra e Marco António.

27 Tibério e Lívia.
Augusto - Epílogo L I VR O XV 389

assim também Saturno é inferior a Júpiter. Júpiter é senhor


da cidadela dos céus e dos reinos do mundo triforme;
860 da terra é senhor Augusto: ambos são pais e governantes.

Ó deuses, rogo-vos, companheiros de Eneias, perante quem


o fogo e a espada cederam, ó deuses Indígites e tu, Quirino,
pai da Cidade, e tu, Gradiva, pai do invicto Quirino,
e tu, Vesta, sagrada entre os deuses da família de César,
865 e tu, Febo, deus da sua família juntamente com Vesta,
e tu, Júpiter, que ocupas lá no alto a cidadela de Tarpeia,
e todos quantos a um poeta é lícito, e um dever, invocar:
venha tarde esse dia, mais tarde que o final da minha vida,
em que Augusto abandone o mundo que agora governa,
810 se some ao céu, e, lá de longe, ajude os que a ele rezarem.

CONCLUÍ agora uma obra que jamais a ira de Júpiter ou o fogo


conseguirão apagar, ou o ferro, ou o passar do tempo voraz.
Quando quiser, que esse dia, que não tem poder algum senão
sobre o meu corpo, ponha termo ao meu incerto tempo de vida.
875 Porém, na minha melhor parte, serei levado imortal
para lá dos altos astros, e o meu nome será indestrutível.
E por onde, nas terras subjugadas, o poder Romano se espraiar,
a boca dos povos ler-me-á, e por séculos sem fim, graças à fama
(se os vaticínios dos poetas alguma verdade contêm) , viverei.
Glo s s á rio e Í n d i c e
Abante ( 1 ) : rei de Argos, filho de Linceu e Hipermnestra, pai de Acrísio, avô de Dánae,
bisavô de Perseu (IV 607 , 672, 767 , V 137, 236, XV 1 63 ) .
Abante (2 ): um dos participantes n o combate entre Fineu e Perseu (V 126).
Abante (3 ): Centauro na batalha contra os Lápitas (XII 306).
Abante (4): companheiro de Diomedes, metamorfoseado em gaivota (XIV 505).
Ábaris: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 86) .
Abundância: a deusa Bona Copia em Roma (IX 88).
Acaia: região nordeste do Peloponeso, designando por extensão a Grécia (III 5 12 , IV
606, V 3 06, 577, Vll 504, VIII 268, XIII 325 , XV 293 ) .
Acarnanos: habitantes d a Acamânia, região a sul d o Epiro, n a parte ocidental d a Grécia,
no mar Jónio (VIII 569) .
Acasto: filho de Pélias, aliado de Meleagro e rei de Iolco na Tessália (VIII 306, XI 409).
Áccio: cidade e promontório na costa ocidental da Grécia, célebre pela batalha em que
Octávio venceu Marco António em 3 1 a.C., pondo fim à guerra civil e, deste modo,
alcançando o poder sobre Roma. Era um dos emblemas da propaganda augustana,
cantada por Vergílio, Propércio, Horácio e Ovidio (XIII 7 15 ) .
Acestes: filho d e Criniso, companheiro d e Eneias ( XIV 83 ) .
Acetes: marinheiro devoto de Baco (III 5 2 8 , 64 1 , 696).
Ácis: filho de Fauno, amado de Galateia e rival de Polifemo, metamorfoseado em rio
(XIII 750, 757, 787, 861 , 874, 879, 884, 886, 896).
Ácmon: companheiro de Diomedes, metamorfoseado em gaivota (XIV 484, 494, 497 ) .
Acne: mulher que atraiçoou a s u a pátria, a ilha d e Sífnos (VII 465).
Aconteu: soldado de Perseu, petrificado ao olhar para a cabeça da Górgone (V 200).
Acrísio: rei de Argos, filho de Abante, pai de Dánae e avô de Perseu (III 599, IV 607 , 612,
V 69, 237).
Ácrota: rei de Alba (XIV 617, 619).
Acte: antigo nome para a Ática (II 554, 72 1 , VI 7 1 1 , VII 68 1 , VIII 170).
Actéon: filho de Aristeu e Autónoe e neto de Cadmo, metamorfoseado em veado (III 138,
146, 174, 198, 230, 244, 720, 72 1 ) .
Actor ( 1 ) : pai hipotético d e Êurito e Ctéato, o s Actóridas que tomam parte n a caçada ao
javali de Cálidon (VIII 308).
Actor (2): avô de Pátroclo (XIII 273 ) .
Actor (3 ) : pai d e Érito, um dos partidários d e Fineu contra Perseu ( V 80).
Actóridas: ver Actor ( 1 ) .
Admeto: filho d e Feres, rei d e Feras n a Tessália, participante n a caçada a o javali d e Cáli­
don; porventura a razão do desgosto amoroso de Apolo (II , 683 , VIII 3 10).
394 G L O S S ÁRIO E ÍNDICE

Adónis: filho d e Cíniras e Mirra, metamorfoseado em flor ( X 503 , 5 1 3 , 532, 542, 68 1 , 7 12,
726, 73 1 ) .
Aelo ( 1 ) : 'Tempestade' , u m dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 1 9).
Aelo (2 ): uma das Harpias (XIII 7 1 1 ) .
Afareu ( ! ) : pai d e Linceu e Idas, Argonautás e participantes n a caçada a o javali d e Cáli-
don (VIII 304).
Afareu (2) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 4 1 ) .
Afenor: u m dos filhos d e Níobe (VI 248).
Afidas: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 16).
Agamémnon: um dos Atridas (o outro é Menelau), rei de Micenas, que chefiou a expedi­
ção dos Gregos contra Tróia, casado com Clitemnestra, pai de Ifigénia e Orestes
(XII 623 , 626, XIII 189, 2 16, 230, 359, 3 64, 439, 444, 655, XV 855) ; cf. Atridas.
Aganipe: fonte no monte Hélicon, na Beócia, grata às Musas (V 3 12 ) .
Agave: filha d e Cadmo e mãe d e Pen teu, irmã d e Autónoe, Sémele e Ino (III 523 , 725 , IV
424).
Agenor: rei da Fenícia, pai de Europa e de Cadmo, avô de Sémele, bisavô de Actéon (II
858, III 7, 5 1 , 8 1 , 90, 97, 258, 308, IV 563 ) , e antepassado de Perseu (IV 772 ).
Agirtes: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 148).
Aglauro: filha de Cécrops, irmã de Pândroso e Herse, metamorfoseada em estátua (I 559,
739, 748, 785, 797, 805 ) .
Agre: 'Caça', uma das cadelas d a matilha d e Actéon (III 2 12 ) .
Ájax ( 1 ) : filho d e Télamon, herói d a guerra d e Tróia (X 2 0 7 , XI I 624 , XIII 2 , 17, 28, 97 ,
123 , 1 4 1 , 152, 156, 164, 194, 219, 23 1 , 254, 266, 32 1 , 3 05 , 327, 338, 340, 346, 390).
Ájax (2): filho de Oileu, herói grego da guerra de Tróia, rei de Nárico, na Lócride (XII
622 , XIII 356, XIV 468) .
Alastor: soldado lício às ordens de Sarpédon, morto por Ulisses (XIII 257 ) .
Alba ( 1 ) : rei d o Lácio (XIV 6 1 2 ) .
Alba (2) : Albalonga, cidade d o Lácio, fundada por Ascânio, filh o d e Eneias (XIV 609).
Albanos: montes perto de Roma, hoje monti Albani (XIV 674).
Álbula: primitivo nome do rio Tibre (XIV 328).
Alcandro: soldado lício às ordens de Sarpédon, morto por Ulisses (XIII 258).
Alcátoe: nome de Mégara por o seu fundador ser o rei Alcátoo, filho de Pélops (VII 44 3 ,
VIII 7 ) .
Alcátoo: rei d e Mégara (VIII 7 ) .
Alce: 'Força' , u m dos cães da matilha d e Actéon (III 2 1 7 ) .
Alceu: filh o de Perseu e Andrómeda, pai d e Anfitrião, avô d e Hércules (XII 539).
Alcidamante: pai de Ctesila, metamorfoseada em pomba (VII 3 69) .
Alcides: patronímico de Hércules derivado do nome do avô, Alceu (IX 1 3 , 50, 1 10, 2 1 7 ,
XI 2 1 3 ) ; cf. Hércules.
Alcimedonte: um dos marinheiros tirrenos que ataca Baco, metamorfoseado em golfinho
(III 618).
Alcínoo: rei dos Feaces, que acolhe Ulisses após o seu naufrágio (XIV 564).
Alcíone: filha de Éolo ( ! ) e esposa de Céix (VII 40 1 , XI 3 84, 415, 423 , 444, 447 , 458, 473 ,
544, 545 , 563 , 567 , 573 , 588, 628, 661 , 674, 684 , [7 10), 746).
Alcítoe: filha de Mínias (IV 1, 274).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 395

Alcmena: mulher de Anfitrião, mãe de Hércules de Júpiter (VI 1 12, VIIl 544, IX 23, 276,
281, 3 12 , 3 96).
Alcméon: filho de Anfiarau (IX 408, 412 ).
Álcon: artesão de Lindo, cidade da ilh a de Rodes (XIII 683 ) .
Alémon: pai d e Míscelo da Argólide (XV 19, 2 6 , 48).
Alexírroe: filha do rio Granico e mãe de Ésaco (XI 7 62) .
Alfenor: filho d e Níobe (VI 248).
Alfeu: rio e deus correspondente, enamorado da ninfa Aretusa (II 250, V 487 , 576, 600).
Almão: rio do Lácio, afluente do Tibre (XIV 329).
Aloídas: patronúnico dos gigantes Oto e Efialtes (VI 1 17 ) .
Alpes: montanhas (II 226, XIV 795).
Altar: constelação (II, 139).
Alteia: rainha de Cálidon, filha de Téstio, irmã de Plexipo e Toxeu, esposa de Eneu, mãe
de Meleagro e Dejanira (VIII 445, 452 , 473 , 522, 53 1 ) .
Amatunte: cidade na costa sul d e Chipre famosa pelo seu templo d e Vénus e Adónis (X
220, 227 , 53 1 ) .
Amazonas: mulheres guerreiras d a Cítia, nas margens d o Mar Negro, combaterem Hér­
cules e Teseu (que desposando Antíope ou Hipólita, tem o filho Hipólito) (XV
552).
Ambrácia: cidade do Epiro, na parte Ocidental da Grécia, hoje Arta (XIII 7 14).
Amenano: rio da Sicília, perto do Etna, e que corre por Catânia (XV 279).
Amiclas ( 1 ) : cidade da Lacónia, vizinha a Esparta, a sudoeste de Esparta (VIII 3 14).
Amiclas (2): fundador de cidade na Lacónia, pai de Jacinto (X 162 ) .
Âmico: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 245).
Amimone: fonte em Argos (II 240).
Amintor: rei dos Dólopes, na Tessália, e pai de Fénix (VIII 307, XII 3 64).
Amitáon: pai do adivinho Melampo que curou as filhas de Petro (XV 325).
Ámon (1): deus egípcio, identificado com Júpiter, representado com cabeça de carneiro
(IV 670, V 17, 328, XV 3 09).
Ámon (2): irmão de Bróteas, que participa no combate contra Fineu (V 1 08).
Amor: personificação (1 480, 532, 540, IV 758, V 374, VII 55 , 698, X 26, 29, 5 16); cf. Cu­
pido
Âmpico: um dos Cefenes, sacerdote de Ceres, partidário de Fineu no combate contra
Perseu (V 1 10).
Âmpix ( 1 ) : partidário de Fineu, petrificado ao olhar a cabeça da Górgone (V 184).
Âmpix (2) : Lápita, esposo de Clóris, pai de Mopso, que toma parte no combate contra os
Centauros (VIIl 3 16, 350, XII 450, 455 , 524).
Amúlio: rei de Alba, expulsa o irmão Numitor do poder e é derrubado pelos sobrinhos
neto Rómulo e Remo (XIV 772 ) .
Ânafe: ilha do mar Egeu (VII 461, 462).
Anapis: deus e rio da Sicília (V 4 17).
Anaxárete: princesa de Chipre amada por Ífis, descendente de Teucro, rei de Salamina,
em Chipre, metamorfoseada em estátua (XIV 699, 7 18, 750).
Anceu: participante na caça ao javali de Cálidon (VIII 3 15, 3 91, 40 1 , 407, 5 19).
396 G L O S S ÁRIO E ÍNDICE

Âncio: cidade costeira d o Lácio, hoje Anzio ( XV 7 1 8) .


Andrémon ( 1 ) : pai d e Anfiso e esposo d e Dríope (IX 3 3 3 , 3 63 ) .
Andrémon (2): rei d a Etólia, pai d e Toante (XII 357).
Andrógeo: filho de Minos e Pasífae (VII 458, VIII 58).
Andrómaca: esposa de Heitor, mãe de Pátroclo (XIII 416).
Andrómeda: filha d e Cefeu, salva p o r Perseu (IV 670, 739, 757 , V 152, 2 19, 229, 236).
Andros (1): filho d e Ânio, rei da ilha d e Andros (XIII 648).
Andros (2): ilha do mar Egeu (VII 469, XIII 648, 66 1 , 665).
Anfiarau: rei d e Argos, filho d e Ecleu, por instigação da esposa Erífile, subornada por um
filho de Édipo com um colar que pertencera a Harmonia, vai na expedição dos
'Sete contra Tebas' e morre; o filho Alcméon irá vingá-lo matando a mãe (VIII 3 16,
IX 407 ).
Anfimedonte: partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 75).
Anfíon: rei de Tebas, filho de Antíope, irmã de Zeto, esposo de Níobe (VI 152, 178-179,
22 1 , 27 1 , 402, XV 427) .
Anfisso: filh o d e Apolo e Dríope (IX 338, 356).
Anfitrião: filho de Alceu e rei de Tirinto (VI 1 12), pai aparente de Hércules (IX 140, XV 49).
Anfitrite: uma das Nereides, esposa de Neptuno (I 14).
Anfriso ( 1 ) : local não identificado na costa jónica da Magna Grécia (sul de Itália) (XV 704).
Anfriso (2) : rio na Tessália, perto do qual Apolo apascentou o rebanho de Admeto (I 580,
VII 229).
Anigro: rio da Élide (XV 2 8 1 ) .
Ânio: rei d e Delos e sacerdote d e Apolo; a s filhas foram metamorfoseadas e m pombas
(XIII 632 , 64 1 ) .
Anião: rio d o Lácio ( XIV 329).
Ano: personificação (II 25 ) .
Anquises: pai d e Eneias, sendo a mãe Vénus (IX 425 , XIII 625 , 640, 680, XIV 1 12 , 1 1 8).
Antandro: cidade da Mísia, na Ásia Menor (XIII 627 ).
Antédon: cidade d a Beócia, defronte da Eubeia (VII 232, XIII , 906).
Antenor: herói troiano conselheiro de Príamo (XIII 2 0 1 ) .
Anteu: gigante filho da Terra, derrotado por Hércules (IX 1 84).
Antífates: rei dos Lestrígones (XIV 234, 237, 238, 249, XV 717).
Antígona: filha d e Laomedonte, metamorfoseada e m cegonha (VI 93 ) .
Antímaco: Centauro que toma parte n o combate contra o s Lápitas (XII 460).
Antíope: filha de Nicteu (2) , foi seduzida por Júpiter disfarçado de sátiro, e deu à luz An­
fíon e Zeto (VI 1 1 1 ) .
Antissa: cidade d a ilha d e Lesbos, originalmente um a ilha independente ( XV 287).
António: Marco António, político e general, rival d e Octaviano na questão da sucessão do
poder em Roma depois da morte de Júlio César (XV 826).
Antónoe: filha de Cadmo e Harmonia, mãe de Acteón e tia de Penteu (III 198, 720).
Ánubis: deus egípcio com cabeça de chacal (IX 690).
Aónia: nome primitivo para a Beócia, do rei epónimo Áon, expulso por Cadmo e os fení­
cios; designa os local de fixação das Musas (! 3 13 , III 3 19, 339, V 333, VI 2, VII 763 ,
IX 1 12 , X 588, XII 24, XIII 682).
GLOS SÁRIO E ÍNDICE 397

Apeninos: montanhas que dividem a Itália de norte a sul, onde nasce o Tibre (II 226, XII
432) .
Apídano: rio d a Tessália, afluente d o Enipeu (I 580, VII 228).
Ápis: deus egípcio representado com a forma de boi (IX 69 1 ) .
Apolo: filho d e Júpiter e Latona, deus d a música, d a poesia e medicina, também desig­
nado Febo; por vezes tomado pelo Sol, ou seja, Hélio, filho do Titã Hipérion; pai de
Esculápio (I 44 1 , 473 , II 454 , 543 , 598, 612, 64 1 , 677 , III 42 1 , VI 264, 3 84, VII 3 89,
VIII 15, IX 332, 455 , X 107, 167, 209, XI 8, 155, 174, 1 94, 3 06, 339, 4 12 , XII 585 ,
XIII 174, 7 15 , 63 1 , XII 143 , 144, 533 , 63 8, 63 9). Ver Febo; Sol; Péan; Délio; Titã.
Apúlia: região sul da península itálica, hoje Puglie (XIV 5 17).
Aquelóides: filhas do deus e rio Aqueloo (V 552, XIV 87) .
Aqueloo: rio entre a Acarnânia e a Eólia, que desagua n o mar Jónio; o deus a ele associado
é o pai das Sereias, das Aquelóides e de Calírroe; o corno arrancado por Hércules é
a Cornucópia; metamorfoseava-se em várias formas como serpente e touro (VIII
549, 560, 614, IX 68, 96, 4 1 3 ).
Aqueménidas: dinastia que reinou na Pérsia, e, por extensão, designando os Persas (N
2 12 ) .
Aqueménides: companheiro d e Ulisses que fica abandonado n o país dos Ciclopes (a Sicí­
lia) e é salvo por Eneias (XIV 1 60, 1 63 , 1 67 ) .
Aqueronte: rio, e respectivo deus, d o Averno, o mundo subterrâneo da morte (V 540, XI
504).
Aqueus: naturais da Acaia, geralmente designando por extensão os Gregos (VII 56, XII
71, 60 1 , XIII 62 , 88, 1 13 , 136, XN, 1 9 1 ) .
Aquilão: vento d o Norte (I 2 6 2 , 329, V 285, VII 3 ) ; cf. Bóreas.
Aquiles: filho de Tétis e Peleu, rei da Ftia na Tessália, o grande herói grego da guerra de
Tróia (VIII 3 09, XI 265, XII 73 , 8 1 , 95 , 126, 138, 150, 1 62 , 1 63 , 168, 176, 1 9 1 , 3 63 ,
3 65 , 582 , 593 , 604, 605 , 608, 6 1 3 , 615, 618, XIII 30, 107, 130, 1 3 3 , 134, 157, 1 63 ,
166, 179, 273 , 2 8 1 , 285, 298, 3 0 1 , 442 , 448, 500, 502, 505, 582, 597, XII 856).
Arábia: região da Ásia (X 478).
Aracne: 'aranha' em grego, jovem da Lídia, rival de Minerva na arte de trabalhar ao tear,
metamorfoseada em aranha (VI 5, [7,] 83 , 1 03 , 1 3 3 , 149).
Arcade: filho de Júpiter e Calísto (II 468, 496, 500).
Arcádia: região do centro do Peloponeso (I 689, II 405 , III 2 1 0, IX 192, XII 332).
Arcésio: pai de Laertes e avô de Ulisses (XIII 144).
Arctos: constelaçôes da Ursa Maior e Ursa Menor, metamorfose de Calísto e seu filho Ar-
cade (II 1 3 2 , III 45, 595, N 625 , XIII 293 , 726). Ver Triões.
Ardea: cidade dos Rútulos no Lácio, hoje Ardea (XIV 573 , 580).
Arestor: pai de Argo (I 624) .
Aretusa: ninfa amada por Alfeo, transformada e m fonte na Sicília ( V 409, 487 , 496, 573 ,
599, 625 , 642) .
Areu: Centauro que toma parte n o combate contra o s Lápitas (XII 3 10).
Argíodo: 'o de Argos' , um dos cães da matilha de Actéon (III 223 ) .
Argivos: narurais d e Argos, designando por extensão o s Gregos (XII 149).
398 G L O S S ÁRIO E ÍNDICE

Argo ( 1 ) : barco com que Jasão e seus companheiros realizaram a viagem à Cólquida em
busca do velo de ouro (VI 72 1 , VII 1, XV 337).
Argo (2) : filho de Arestor, tinha cem olhos e foi incumbido por Juno de vigiar lo; após a
sua morte, os olhos passaram a ser as manchas da cauda dos pavões (I 624, 625 , 635 ,
636, 664 , 670, 679, 680, 720, 11 533 ) .
Argólide: região na Grécia, nordeste d o Peloponeso (I 726, II 524, VIII 267 , XII 627 ,
XIII 659, XV 1 9 , 276).
Argos: cidade da Argólide no nordeste do Peloponeso (I 601 , II 240, III 560, IV 609, VI
414, IX 276, 3 13 , XV 1 64).
Argonautas: cf. Mínias.
Ariadne: filha do rei Minos e Pasífae, abandonada por Teseu; o seu diadema transforma-
se na constelação Coroa Boreal (VIII 174).
Arícia: cidade do Lácio (XV 488).
Arménia: região da Ásia Menor, a sul do Cáucaso (VIII 1 2 1 , XV 86).
Ame: atraiçoou a ilha de Sífnos, metamorfoseada em gralha (VII 465 ) .
Ásbolo ( 1 ) : 'Farrusco', um dos cães da matilha d e Actéon (III 2 1 8 ) .
Ásholo ( 2 ) : Centauro que toma parte na batalha com o s Lápitas (XII 307).
Ascálabo: rapaz que provoca Deméter (Ceres) e é transformado em lagartixa (V 45 1 ) ; cf.
Estelião.
Ascálafo: filho de Aqueronte e Orfne, transformado em mocho por Deméter (V 539).
Ascânio: filho de Eneias (XIII 627, 680, XIV 610); cf.Julo.
Ásia: (V 649, IX 448, XIII 484).
Asopo: deus e rio da Beócia, pai de Egina e avô de Éaco (VI 1 13 , VII 484, 616).
Assáraco: rei de Tróia, avô de Príamo (XI 755).
Assíria: região da Ásia (V 60, XV 3 93 ) .
Astéria: filha d o Titã Ceo, amada por Júpiter, transformada e m codorniz e , posterior­
mente, na ilha de Ortígia, mais tarde chamada Delos (VI 108).
Astíages: parúdário de Fineu no combate contra Perseu (V 203 , 2 05 ) .
Astíanax: filho d e Heitor e Andrómaca, atirado d o alto das muralhas d e Tróia pelo Gre-
gos no rescaldo da vitória (XIII 4 15 ) .
Astipaleia: ilha d o mar Egeu ( VII 461, 462 ) .
Astreia: filha d e Júpiter e Témis (I 149) .
Astreu ( 1 ) : parúdário de Fineu no combate contra Perseu (V 144).
Astreu (2) : Titã, filho do Titã Crio, teve de Aurora os filhos Zéfiro, Bóreas e o Noto (XIV
544).
Atalanta (1): jovem da Tégea, amada por Meleagro (VIII 3 17 , 380, 426, X 565, 589, 598,
669).
Atalanta (2 ) : filha do rei Esqueneu, esposa de Hipómenes; são os dois metamorfoseados
em leões (X 565 , 598, 609, 660).
Atamanes: habitantes de região montanhosa do Epiro (XV 3 1 1 ) .
Atamante: filho d e Éolo, irmão d e Sísifo, esposo de Leucótoe, pai d e Palémon, o deus ma­
rinho (III 564, IV 42 1 , 467 , 47 1 , 489, 497, 5 12, XIII 9 1 9 ) .
Atenas: cidade da Ática ( I I 72 1 , V 652 , VI 42 1 , VII 5 0 7 , 723 , VIII 263 , XV 427, 430).
Ática: região de Grécia onde se situava Atenas (VII 492 ) .
G L O S SÁRIO E ÍNDICE 399

Átis ( 1 ) : jovem da Índia, partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 47, 63 , 72).
Átis (2) : jovem da Frígia, amado de Cíbele, transformado em pinheiro (X 1 04).
Atlas: Titã, filho de}ápeto e pai das Plêiades (sendo a mãe Maia), avô de Mercúrio, meta­
morfoseado em montanha na parte ocidental do Norte de África (I 682, II 296, 685 ,
704, 743 , 834, IV 368, 628, 63 1 , 644, 646, 653 , 657 , 772, VI 174, VIII 627 , IX 273,
XV 149).
Atos: montanha da Macedónia, na península Calcídica (II 2 17, XI 554 ) .
Átrax: cidade n a Tessália (XII 208) .
Atreu: filho de Pélops e Hipodarnia, pai de Agamémnon e Menelau (os Atridas) (Xlll
3 64, XV 855) .
Atridas: patronúnico d e Agamémnon (Atrida maior) e Menelau (Atrida menor), pelo
nome de seu pai, Atreu, rei de Micenas (Agamémnon: XII 623 , XIII 1 89, 230, 359,
3 64, 439, 655 ; Menelau: XII 623 , XV 1 62, 805 ) .
Augusto: primeiro imperador d e Roma, filho adoptivo d e Júlio César, e, por consequên­
cia, alegadamente descendente de Eneias por intermédio de Julo-Ascânio (1 204,
562, XV 447 , 750, 758, 819, 850, 852, 860, 869) .
Áulis: cidade costeira na Beócia, de onde parte a expedição contra Tróia (XII 10, XIII
182 ) .
Aurora (gr. Éos): deusa d o amanhecer, descendente d o gigante Falante (1 6 1 , I I 1 13 , 144,
III 149, 1 84 , 600, IV 81, 63 0, V 440, VI 48, VII 100, 209, 703 , 72 1 , 835 , IX 42 1 , XI
296, 598, XIIl 576, 594, 62 1 , XIV 228, XV 1 9 1 , 665 , 700).
Ausónia: região do sul de Itália, designando por extensão Itália (V 350, XIII 708, XIV 7,
77, 320, 772, 786, XV 647 , 693 ) .
Austro: vento do sul (I 6 6 , I I 853 , V 285, VII 5 3 2 , 660, VIII 3 , XI 1 92 , 663 , XI I 5 1 1 , XIII
725 ) .
Autólico: filh o d e Mercúrio e d e Quíone, que casa com Mestra (a filha d e Erisícton) , pai
de Anticleia (a mãe de Ulisses) (VIII 738, XI 3 12 ) .
Autónoe: filh a d e Cadmo, i rm ã d e Agave, Sémele e Ino, tia d e Penteu, mãe d e Actéon (III
198, 523 , 720) .
Aventino: rei de Alba (XIV 620).
Avemo: Geralmente, equivalente a Tártaro, Orco, Érebo, designa o reino da morte, por
vezes, um lago deste reino. Uma das entradas seria em Itália, junto a Cumas, no
golfo de Nápoles (Laco Avemo) ; a outra no cabo Ténaro na Grécia (V 540, X 5 1 ,
XIV 105, 1 15 ) .
Babilónia: cidade d a Mesopotâmia (II 248, IV 44, 57 ) .
Babilónios: habitantes d a Babilónia (IV 99).
Bacantes (Ménades): devotas dos rituais báquicos (IV 25, IX 64 1 , XI 89).
Baco (gr. Dioniso) : deus do vinho, filho de Júpiter e Sémele (III 3 10, 3 17 , 42 1 , 518, 572,
573 , 629, 63 0, 69 1 , IV 3, 11 (=Brómio), 273 , 4 1 6, 523 , 605 , 765, V 329, VI 488 (=vi­
nho), 588, 596, 598, VII 450 (=vinho), IX 642, XI 85 , 125 (=vinho) , 135, XI 17, XII
578 (=vinho=, XIIl 63 9 (=vinho), 669, XV 1 14, 4 1 3 ) .
Bactros: região d a Ásia, correspondendo vagamente à zona norte d o actual Afeganistão
(V l34).
Baias: cidade no golfo de Nápoles, hoje Baia (XV 7 1 3 ) .
400 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Baleares: ilhas Baleares (II 728, IV 709) .


Baquíades: dinastia que reinou em Corinto, designando por extensão as gentes de Co-
rinto; fundam Siracusa (V 407 ) .
Bato: camponês d e Piles, metamorfoseado e m pedra ( I I 688, 702 ) .
Báucis: esposa d e Filémon, metamorfoseada e m tília (VIII 63 1 , 63 9, 68 1 , 705 , 7 14, 7 1 5 ) .
Bebe: lago na Tessália (VII 2 3 1 ) .
Bélides: a s cinquenta netas d e Belo, filhas d e Dánao, também conhecidas por Danaides,
que, com a excepção de Hipermnestra, mataram os noivos, seus primos, filhos de
Egipto, na noite de núpcias e foram condenadas a transportar eternamente água em
vasilhas rotas (IV 463 , X 43 ) .
Belo ( 1 ) : rei mítico d a Pérsia (IV 2 1 3 ) .
Belo (2 ): filho d e Posídon e a ninfa Líbia, irmão d e Agenor, rei d o Egipro, pai d e Egipto e
Dánao, avô das Bélides (IV 463 ) .
Belona (gr. Enio) : divindade romana da guerra, filha d e Marte (V 155).
Beócia: região de Grécia central, entre a Fócide e a Ática (II 239, III 1 3 , XII 9).
Berecinto: montanha da Frígia, segundo os autores antigos, consagrada a Cíbele (XI 16, 106) .
Béroe: ama de Sémele (III 278).
Bíblis: irmã de Cauno, filha de Mileto, metamorfoseada em fonte (IX 453 , 454, 455, 467,
534, 5 8 1 , 635, 643 , 650, 656, 663 ) .
Bienor: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 346).
Bisaltes: rei da Trácia, pai de Teófane, amada de Neptuno, metamorfoseada em ovelha (VI
1 17).
Bístones: povo da Trácia, assim chamado a partir de Bíston, filho de Marte e Calirroe
(XIII 430).
Bitínia: região da Ásia Menor, tendo a Frígia a norte, banhada pelo mar de Mármar e o
mar Negro; confunde-se por vezes com a Lídia, com a Mísia e também com a Frígia
(VIII 7 1 9).
Biias: mãe de Menefronte (VII 3 86).
Bootes: constelação designada em português Boieiro (II 176, VIII 207 , X 446).
Bóreas: vento do norte, por vezes identificado com o Aquilão (I 65 , II 1 85, VI 682 , 702 ,
XIII 4 1 8 , 727, XV 47 1 ) .
Botres: filho d e Eumelo (VII 3 90).
Brisa: alegado nome de uma ninfa que falsamente se acreditava Céfalo amar (VII 8 1 3 , 837 ,
856).
Britânicos: naturais da Grã-Bretanha (XV 752).
Brómio: ver Baco.
Bromo: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 459).
Bróteas ( 1 ) : partidário de Perseu no combate contra Fineu (V 108).
Bróteas (2) : Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 262).
Búbaso: cidade da Cária junto a Cnido (IX 643 ).
Bubastis: deusa egípcia com figura de gata, identificada com Ártemis (IX 691 ) .
Búris: cidade costeira n a Acaia (XV 293 ) .
Busíris: rei d o Egipto (IX 1 83 ).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 401

Butes: filho de Falante, irmão de Clito (VII 500, 665 , 666).


Butroto: cidade do Epiro fundada pelo troiano Heleno, filho de Príamo e Hécuba (XIII
720).
Cabritos: estrelas da constelação de Auríga (Cocheiro) (XIV 7 1 1 ).
Cadmo: fundador de Tebas, filho de Agenor, irmão de Europa, marido de Harmonia, pai
de Agave, Ino, Sémele e Autónoe, avô de Actéon, Baco e Penteu; metamorfoseado
em serpente (III 3, 7, 14, 24, 5 1 , 8 1 , 90, 97 , 1 15 , 129, 13 1 , 138, 174, 287, 73 1 , 138,
564, IV 470, 545, 563 , 572, 591, 592, VI 178, 217, IX 304).
Cafereu: promontório na Eubeia (XIV 472, 481).
Caíco: rio da Mísia ( I l 243 , XII 1 1 1 , XV 277 ) .
Caieta: ama d e Eneias; o local onde fo i sepultada era identificado com a moderna Gaeta
(XIV 157, 44 1 , 443 , XV 7 16).
Caístro: rei da Lídia, famoso pelos cisnes (Il 253 , V 3 86).
Cálais: filho de Bóreas e Oritia, que, juntamente com seu irmão Zetes, participou na expe­
dição dos Argonautas e liberta Fineu das Harpias (VI 7 1 6, VII 3 ) .
Caláuria: ilha situada n o Golfo d e Egina, n a costa noroeste d o Peloponeso, onde o casal
real se metamorfoseou em pássaros (VII 384).
Calcas: vate filho de Testar, adivinho de Micenas, que toma parte na guerra de Tróia (XII
19, 27).
Cálidon: cidade junto ao rio Eveno, na Etólia (VI 415, VIII 270, 324, 495 , 527, 528, 727,
IX 2 , 1 12, 147, XIV 5 12 , XV 769).
Calidónios: natural de Cálidon (referindo-se a Diomedes, filho de Eneu, rei de Cálidon
(XIV 5 1 3 ) .
Calimne: ilh a d o mar Egeu ( VI II 222 ) .
Caliope: uma das nove Musas (V 338, 662 , [665 ] , X 148).
Calirroe: filha de Aqueloo e esposa de Alcméon; os filhos metamorfoseiam-se em adultos
para vingar o pai (IX 4 1 3 , 432).
Calisto: ninfa, filha de Licáon, mãe de Árcade, metamorfoseada em ursa e depois na cons­
telação da Ursa Maior (II 409-4 10, 460, 469, 497 , 508).
Camenas: ninfas romanas das fontes, assimiladas às Musas (XIV 433 , XV 482).
Campo dos Pios: local do mundo da morte onde Orfeu e Eurídice viverão para sempre (X
62) .
Cânace: filha d e Éolo, violada por Posídon, mãe d e Tríopas, e avó d e Erisícton (VI 1 1 6).
Cánaque: 'Ladrador', um dos cães da matilha de Acteón (III 2 17).
Canente: ninfa filha de Jano e Venília, e esposa de Pico (XIV 338, 381, 383, 4 1 7 , 434).
Canopo: cidade do Egipto, junto ao delta do Nilo (XV 828).
Cáon: herói epónimo da região da Caónia, no Epiro (X 90).
Caónia: região do Epiro (V 1 63 , XIII 7 1 7 ) .
Caos: personificação d o vácuo primordial, anterior à criação (I 7, I I 299), por vezes desig­
nando o Tártaro, o mundo da morte (X 30, XIV 404).
Capaneu: um dos heróis argivos que toma parte na expedição dos 'Sete contra Tebas' ,
quando Polinices tenta expulsar o irmão Etéocles d o poder régio sobre Tebas ( IX
404).
Capela: estrela, filha de Óleno, da constelação Auriga (Cocheiro) (IlI 595).
402 G L O S S Á R I O E· Í N D I C E

Cápeto: rei d e Alba ( XIV 6 1 3 ) .


Cápis: rei d e Alba ( XIV 6 1 3 , 614)
Capitólio: monte de Roma sobre o qual estava o mais importante templo de Roma, o de
Júpiter Óptimo Máximo (1 5 6 1 , II 538, XV 589, 828, 842) .
Cápreas: ilha n o mar Tirreno n a Campânia, junto a o golfo d e Nápoles, hoje Capri (XV
709).
Caranguejo: constelação (II 83 , IV 625 , X 127).
Caraxo: Lápita que toma parte no combate contra os Centauros (XII 273 ) .
Cária: região da Ásia Menor (IV 296, IX 645 ) .
Canôdis: turbilhão n o m a r entre a Sicília e Itália (VII 63 , VIII 1 2 1 , XI I I 7 3 0 , XIV 76).
Caricio: ninfa Oceânida mãe de Ocírroe (II 63 6).
Carneiro: constelação (X 165 ) .
Caronte: o barqueiro que fa z a s almas atravessar o rio n o mundo dos mortos ( X 73 ) .
Cárops: soldado lício à s ordens d e Sarpedón, morto por Ulisses (XIII 260).
Cárpato: ilha do mar Egeu (XI 249) .
Carteia: cidade na ilha de Ceos (VII 368, X 1 10).
Cassandra: vidente filha de Príamo, rei de Tróia (XIII 4 1 0, XIV 468).
Cassíope: esposa de Cefeu e mãe de Andrómeda (IV 67 1 , 692 , 736,V 153 ) .
Castália: fonte n o monte Parnaso, consagrada a Apolo e à s Musas (III 14).
Castor: gémeo de Pólux (os chamados Díoscuros), e irmão de Helena; os Díoscuros são fi­
lhos de Leda (esposa de Tíndaro) e Júpiter transformado em cisne; metamorfosea­
dos na constelação Gémeos (VIII 3 0 1 , 372, XII 4 0 1).
Castro: cidade no Lácio, perto d e Árdea (XV 727).
Cáucaso: série de montanhas que se estende entre o mar Negro e o mar Cáspio (II 224, V
86, VIII 798).
Caulónia: cidade na ponta sul da península itálica, na Calábria (XV 705 ) .
Cauno: irmão gémeo d e Bíblis (IX 453 , 455 , 488, 489, 453 , 574, 5 8 1 ) .
Cébren: rio n a região d e Tróia, pai d a ninfa Hespéria, amada d e Ésaco ( XI 768).
Cecrópida: Teseu (VIII 55 1 ) .
Cecrópides: Procne e Filomela (VI 667 ) .
Cécrops: fundador d e Atenas, pai d e Aglauro, Pândroso e Herse ( I I 555, 784 , 797, 805 ,
VI 70, 446, VII 486, 502 , 67 1 , XI 93 , XV 427) .
Céfalo: neto de Éolo e esposo d e Prócris (VI 68 1 , VII 493 , 495 , 502, 5 12 , 665, 666, 672,
865, VIII 4).
Cefenes: povo da Etiópia, governado pelo rei Cefeu (IV 669, 763 , V 2 , 97) .
Cefeu: rei da Etiópia, marido d e Cassíope, pai d e Andrómeda (IV 669, 69 1 , 7 3 6 , 770, V
12, 42, 43 , 152).
Cefiso ( 1 ) : rio que atravessa a Fócide e a Beócia, e respectivo deus, pai de Narciso (1 3 69,
III 19, 342, 35 1 ) .
Cefiso (2): ri o na Ática (VII 438).
Cefiso (3 ) : rio na Argólide ( ? ) , cujo neto se metamorfoseou em foca (VII 388).
Céix: rei de Tráquin, filho de Lúcifer, irmão de Dedálion, esposo de Alcíone, metamorfo­
seado em ave marinha (XI 27 1 , 283 , 346, 35 1 , 383, 4 12 , 445 , 461, 544, 560, 588, 653 ,
658, 673 , 685, 727, 739).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 403

Celadonte ( 1 ) : partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 144).


Celadonte (2) : Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 250).
Celeno: lugar na costa meridional de Itália (XV 704).
Celmis: um dos Dáctilos do monte Ida que criaram Júpiter, metamorfoseado em aço (IV
282).
Cencreis: esposa de Cíniras e mãe de Mirra (X 43 5 ) .
Ceneu ( 1 ) : guerreiro invulnerável nascido mulher, depois metamorfoseado e m pássaro: cf.
Cénis (VIII 3 05, XII 172, 173 , 179, 208, 459, 477, 479, 490, 496, 5 14, 53 1 ) .
Ceneu (2 ) : promóntorio no extremo noroeste d a ilha d e Eubeia, famoso pelo templo de
Júpiter Ceneu (IX 137).
Cénis: filha do Lápita Élato, transformada por Neptuno num homem invulnerável, Ce­
neu, como compensação por a ter violado (XII 1 89, 195 , 201, 470, 47 1 ) ; cf. Ceneu.
Centauros: seres fabulosos, metade homem, metade cavalos, netos de Ixíon, rei dos Lápi­
tas, e de uma nuvem, Néfele, com a forma de Juno (II 636, IX 1 9 1 , XII 2 1 9, 536,
54 1 , XV 283 ) .
Ceo: u m dos Titãs, pai d e Latona, avô d e Diana (III 173 , VI 1 86, 346, 3 66).
Ceos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades (VII 368, X 12 1 ) .
Cerambo: pastor d o monte Ótris, n a Tessália, transformado e m escaravelho (VII 3 5 3 ).
Cérano: guerreiro lício às ordes de Sarpédon, morto por Ulisses (XIII 257 ) .
Cerastas: povo d e Chipre com cabeças com cornos, metamorfoseados e m vitelos ( X 223 ).
Cérbero: cão de três cabeças que guarda o Hades; da baba nasce o acónito, uma planta ve-
nenosa (IV 4 1 3 , 450, 5 0 1 , VII 408, 4 1 1 , IX 1 85 , X 22, 65 , XIV 65 ) .
Cércion: salteador que actuava n o caminho d e Elêusis para Mégara, aniquilado por Teseu
(VII 439).
Cercopes: povo das ilhas Pitecusas (moderna Ischia e ilhas vizinhas), metamorfoseados
em macacos (pithekos em grego significa macaco) (XIV 92 ) .
Ceres (gr. Deméter): deusa da agricltura, e m especial dos cereais, irmã d e Júpiter e mãe de
Prosérpina (I 2 1 3 , III 437 (= cereal), V 1 1 0, 3 4 1 , 343 , 376, 4 1 5 , 438, 462, 490, 509,
533, 564, 567, 572, 642 , 655 , 660, VI 1 14, 1 18, VII 439, VIII 274, 292 (=cereal), 742,
758, 77 1 , 779, 786, 814, IX 423 , X 74, 43 1 , XI 1 12 (= cereal), 122, XIII 63 9).
César: Gaio Júlio César, político, general, intelectual romano; pai adoptivo de Octaviano,
futuro imperador Augusto; a sua família dizia-se descendente de Julo, filho de
Eneias; foi divinizado após a morte; comandou a expedição à Grã-Bretanha (54
a.C.) , ao Egipto (47 a.C.), Numídia contra o rei Juba (46 a.C.) , ao Ponto contra o fi­
lho de Mitridates VI (47 a.C.); morto em 44 a.C. por uma conjura dirigida por Bruto
e Cássio (1 202 , XV 742 , 746, 750, 7 6 1 , 766, 816, 84 1 , 845 , 864, 865 ) .
Chipre: ilha consagrada a Vénus (III 220, V 252, X 2 7 0 , 645 , 7 17 , XIV 696); cf . Ofiúsa e
Pafo ( 1 ) .
Cíane: ninfa d a Sicilia transformada e m fonte e lagoa (V 409, 4 1 2 , 425 , 465 ) .
Ciânee: ninfa filha d o rio Meandro, esposa d e Mileto, m ã e d e Bíblis e Cauno (IX 450).
Cíbele: divindade da Frígia, designada Mãe dos deuses (X 1 04, 688, 696, 704, XIV 536).
Cíclades: arquipélago no mar Egeu (II 2 64).
Ciclope: os Ciclopes são gigantes, geralmente situados na Sicília (também em na ilha
grega de Lemnos, e nos Campos Flegreus, hoje Pozzuoli, no Golfo de Nápoles); fa-
404 G L O S S Á R I O E -Í N D I C E

bricam o s raios d e Júpiter; em particular Polifemo, apaixonado por Galateia ( I 259,


III 3 05, XIII 744, 755, 757 , 780, 860, 876, 882, XIV 2 , 174, 249, XV 93 ); cf Polifemo.
Cicno ( 1 ) : rei dos Lígures, filho de Esténelo, parente de Faetonte, metamorfoseado em
cisne (II 367, 377, XII 5 8 1 )
Cicno (2 ) : filho d e Apolo e Híria, amado por Fílio, metamorfoseado e m cisne (VII 3 7 1 ) .
Cicno (3 ) : filho d e Neptuno, guerreiro invulnerável, metamorfoseado e m cisne (XII 7 2 ,
7 5 , 7 6 , 1 0 1 , 122, 1 2 5 , 138, 150, 1 6 5 , 169).
Cícones: povo da Trácia (VI 7 10, X 3 , XI 3 , XV 3 1 3 ) .
Cidade: Roma (XV 744, 798, 80 1 , 863 ) .
Cidoneia: cidade costeira n o noroeste d e Creta (VIII 22).
Cila ( 1): filha de Nisa, rei de Mégara, metamorfoseada em ave marinha (VIII 17, 3 5, 90, 104).
Cila (2 ) : ninfa amada por Glauco, metamorfoseada por Circe em monstro com uma cin-
tura de cães e posteriormente em rochedo defronte a Caríbdis (VII 64 , XIII 730,
749, 900, 966, XIV 18, 39, 52, 59, 70).
Cila (3 ) : cidade da Mísia (XIII 17 4).
Cílaro: Centauro que toma parte no combate contra os Lápitas (XII 3 93 , 407 , 420).
Cilaceu: promontório nos Abruzzi, na Calábria (XV 702).
Cilene: montanha na Arcádia, local de nascimento de Mercúrio (I 2 1 7 , 713, II 720, 818, V
176, 33 1 , 607 , VII 386, XI 304, XIII 146, XIV 2 9 1 ) .
Cilícia: região sudeste d a Ásia Menor ( I I 2 17 ) .
Cimelo: Lápita que toma parte n o combate contra o s Centauros ( XI I 454) .
Cimérios: povo fabuloso que habitaria perto d o reino do Sono (XI 592 ) .
Cimolos: ilha d o mar Jónio d o arquipélago das Cíclades (VII 463 ) .
Cínips: rio d o norte d e África (V 1 2 4 , VII 272, X V 755 ) .
Cíniras ( 1 ) : rei d e Chipre, filho d e Pigmalião e pai d e Adónis ( X 298, 3 3 8 , 343 , 3 5 7 , 3 6 1 ,
369, 3 80, 43 8, 464, 472 , 52 1 , 7 12 , 73 1 ) .
Cíniras (2 ) : rei d e Assíria; a s filhas foram metamorfoseadas e m escadas d e u m templo por
Juno (VI 98) .
Cíntia: Diana, assim designada pelo monte Cinto, em Delas, onde nasceu (II 464, VI 754,
XV 53 7 ) . Ver Diana.
Cinto: montanha em Delas consagrada a Apolo e Diana (II 22 1 , VI 204). Daqui os apela-
tivos Cíntio e Cíntia (II 465, VII 755 ) .
Ciparisso: jovem amado p o r Apolo, metamorfoseado e m cipreste (X 1 0 7 , 1 2 0 , 130).
Cipo: lendário pretor romano (XV 565 , 580, 581, 609, 617).
Cíprio: 'o de Chipre' um dos cães da matilha de Acteón (III, 220) .
Circe: deusa feiticeira, filha do Sol, que em tempos romanos era situada no actual Monte
Circeo, na costa do Lácio (IV 205 , XIII 968, XIV 10, 14, 25, 68, 7 1 , 247 , 248, 253 ,
290, 294, 3 12 , 346, 348, 376, 382, 438, 3 85, 399, 447, XV 7 18).
Círis: filha de Nisa metamorfoseada em pássaro (VIII 1 5 1 ) .
Círon: lendário salteador na costa d a Ática (VII 444, 447 ) .
Ciros: ilha d o mar Egeu, entre a Eubeia e Lesbos, onde Aquiles s e escondera, disfarçado
de mulher (XIII 156, 174).
Citereia: Vénus por ter nascido em Citeros (XIII 624) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 405

Citéron: montanha entre a Ática e a Beócia, relacionada com o culto a Baco (II 223 , III
702 ) .
Citeros: ilha do mar Egeu, à borda da qual nasceu Vénus da espuma do mar (IV 1 90, 288,
X 530, 640, 7 17 , XIV 487, 584, XV 3 86, 803 , 8 1 6 ) .
Cítia: região a norte do mar Negro, hoje correspondendo a parte da Ucrânia (1 64 , II 224,
V 649, VII 407 , VIIl 788, 797, X 589, XIV 33 1 , XV 285, 359, 460).
Cimos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades (V 252, VII 464 ) .
Citoro: montanha de Paflagónia, na Ásia Menor, famosa pela sua madeira (IV 3 1 1 , VI 132).
Clânis (1): partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 140, 143 ) .
Clânis (2) : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 379).
Claro: cidade costeira da Lídia, famosa pelo templo e oráculo de Apolo (1 5 16, XI 4 1 2 ) .
Cleonas: cidade situada no extremo noroeste da Argólide, no Peloponeso (VI 4 1 7 ) .
Cleópatra ( 1 ) : mulher d e Meleagro (VIII 52 1 ) .
Cleópatra (2) : rainha d o Egipto, como Cleópatra VII, esposa d e Júlio César e d e Marco
António, a última da dinastia dos Ptolemeus (XV 826).
Clície: jovem amada pelo Sol, metamorfoseada em hdiotropo (IV 206, 234, 256).
Clímene: mãe de Faetonte, esposa do rei etíope Mérops, filha do Oceano e Tétis (1 756,
765, II 19, 37, 43 , 3 3 3 , 355, 356, IV 204).
Clímeno: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 98).
Clitemnestra: esposa de Agamémnon, mãe de Ifigénia e Orestes (XIII 1 93 ) .
Clítio: partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 140, 142 ) .
Clito ( 1 ) : partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 87 ) .
Clito (2 ): jovem ateniense filho de Palante, amigo de Céfalo, irmão de Butes (VII 500, 665,
666).
Clitor: cidade da Arcádia, na vizinhaça da qual havia uma fonte e lago com poderes má-
gicos (XV 322).
Cnido: cidade da Cária na Ásia Menor, famosa pelo templo de Vénus (X 53 1 ) .
Cnóssios: habitantes d e Cnosso (VIII 40).
Cnosso: capital do reino de Minas em Creta (III 208, VII 52, 47 1 , VIII 52, 144, IX 669).
Cócalo: rei da Sicília que protege Dédalo (VIII 260) .
Calco: natural da Cólquida (VII 3 3 1 ) .
Cólofon: cidade d a Lídia, na Jónia (VI 9).
Cólquida: região na parte oriental do Mar Negro, pátria de Medeia (VII 120, 296, 3 0 1 ,
348, 3 94, XIII 24) .
Combe: filha d e Ófio, metamorfoseado e m pássaro (VII 3 83 ) .
Cometes: Lápita que toma parte n o combate contra os Centauros (XII 284 ) .
Carícia: gruta no monte Pamaso, relacionada com as Ninfas (1 320).
Coricíades: ninfas que vivem na gruta Carícia, no monte Pamasso (1 320).
Corinto: cidade da Grécia situada no Istmo do mesmo nome (V 407, VI 4 16, XV 507 ) .
Ver Éfira.
Córito ( 1 ) : Lápita que toma parte no combate contra os Centauros (XII 290, 29 1 ) .
Córito (2) : partidário d e Perseu n o combate contra Fineu ( V 124).
Córito (3 ) : filho de Páris e de uma ninfa do monte Ida, Enone (VII 3 6 1 ) .
Cómix: 'gralha', filha d e Coroneu, metamorfoseada e m gralha (II 547 , 695 ) .
406 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Coroa: constelação Coroa Boreal, proveniente d a metamorfose das jóias d a coroa de


Ariadne (VIII 1 8 1 ) .
Coroas: gémeos nascidos das cinzas das filhas d e Oríon, transformados e m astros (XIII
698).
Coroneu: um focense, pai de Córnix (II 569).
Corónis: princesa de Larissa na Tessália, amada por Apolo e mãe de Esculápio (II 542 ,
599, 629, XV 625) .
Cós: ilha d o m a r Egeu (VII 3 63 ) .
Cragaleu: juiz dos deuses que ficou metamorfoseado e m pedra (XIII 7 14).
Crago: montanha da Lícia (IX 646).
Crantor: jovem dólope, escudeiro predilecto de Peleu, morto na batalha entre Lápitas e
Centauros (XII 3 62 , 3 67 ) .
Crateis: mãe d e Cila (XIII 749 ) .
Crátis: rio d a Calábria, e m Itália (XV 3 15 ) .
Credulidade: personificação (XII 59).
Creneu: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 12 ) .
Creonte: rei d e Corinto (VII 3 95 ) .
Creta: ilha d o Mediterrâneo (VII 223 , 434, VIII 100, 1 1 8, 1 8 3 , IX 666, 668, 735, XIII 706,
XV 540, 54 1 ) .
Creúsa: filha d o rei d e Corinto, Creonte, noiva d e Jasão, assassinada por Medeia (VII
3 94).
Crisaor: cavalo irmão de Pégaso (IV 786).
Crises: cidade da Mísia, na Ásia Menor, sagrada a Apolo (XIII 174).
Crócale: ninfa do séquito de Diana (III 169) .
Croco: jovem tranformado em açafrão (IV 283 ) .
Crómio: soldado lício à s ordens d e Sarpédon morto por Ulisses (XIII 257 ) .
Crómion: cidade vizinha a Corinto, devastada por u m javali morto por Teseu (VII 435) .
Crómis ( 1 ) : partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 1 04).
Crómis (2) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 3 3 ) .
Cróton: anfitrião d e Hércules, d e quem a cidade d e Crotona, n o sul d e Itália, toma o
nome (XV 15, 55) .
Crotona: cidade do sul d e Itália ( XV 8).
Ctéato: filho de Actor (v. Actóridas).
Ctesila: filha de Alcidamante (VII 369).
Ctónio: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 44 1 ) .
Cumas: cidade d e Campânia, famosa pela Sibila ( XIV 1 04, 12 1 , 1 3 5 , 156, XV 7 12 ) .
Cupido (gr. Eros) : deus d o amor, filho d e Vénus (I 453 , 463 , IV 32 1 , V 3 66; VII 7 3 , IX
482, 544, X 3 1 1 , 525 ) ; cf. Amor.
Cures: cidade dos Sabinos a nordeste de Roma, pátria de Numa, o segundo rei de Roma
(XIV 778, XV 7).
Curetes: génios que protegeram a infância de Júpiter em Creta (IV 282, VIII 153 ) .
Cúria: edifício e m Roma onde o Senado s e reunia ( XV 802 ) .
Dafne: filha d e Peneu, amada por Apolo, metamorfoseada e m loureiro (I 452, 472, 504,
525, 544a, 490) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 407

Dáfnis: pastor do monte Ida, metamorfoseado em pedra (IV 276).


Damasícton: um dos filhos de Níobe (VI 254) .
Dánae: filha de Acrísio, rei de Argos, m ã e d e Perseu, fecundada p o r Júpiter sob a forma
de chuva de ouro (IV 6 1 1 , V 1, VI 1 13 , XI 1 17 ) .
Danaides: ver Bélides.
Dánaos: designa os Gregos (XII 1 3 , 69, XIII 59, 92 , 134, 1 8 1 , 238, 327, XIV 467 , 472 ) .
Dárdanos: designação dos Troianos, derivada d e Dárdano, rei d e Tróia (XIII 3 3 5 , 4 1 3 ,
XV 43 1 , 767).
Dáulis: cidade na Fócide (V 276).
Dauno: rei da Apúlia, sogro de Diomedes (XIV 459, 462 , 5 10).
Dedálion: filho de Lúcifer e irmão de Céix, metamorfoseado em gavião (XI 273 , 295 , 340,
4 10 ).
Dédalo: inventor ateniense, pai d e Ícaro, tio d e Perdiz, construtor do labirinto de Creta
(VIII 159, 166, 1 83 , 240, 250, 260, IX 742).
Déifobo: filho de Príamo, morto por Menelau (XII 547 ) .
Dejanira: filha d e Eneu, rei d e Cálidon, e d e Alteia, irmã d e Meleagro, esposa d e Hércu­
les (VIII 543 , IX 9, 1 0 1 , 138).
Déjone: mãe de Mileto (IX 444).
Delfos: cidade da Fócide, a ocidente da Beócia e Ática, onde se encontrava o mais famoso
santuário e oráculo de Apolo da antiguidade (I 5 16, II 543 , 677 , IX 332, X 168, XI
304, 4 14, XV 144, 630).
Délia, Délio: ver Delos.
Delos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades (também chamada Ortigia e Asté­
ria), consagrada a Apolo e Diana (I 694, III 597, VI 1 89, 333, VIII 22 1 , IX 332, XIII
63 1 , XV 337, 54 1 ) ; daí os apelativos Délio (I 454, V 329, VI 250, XI 174, XII 597,
XIII 650) e Délia (V 63 9); cf. Apolo e Diana.
Demoleonte: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 355, 369).
Deo: outro nome para Ceres (Deméter) (VI 1 14, VIII 758); cf. Deméter.
Dércetis: mãe de Semíramis, rainha da Babilónia (IV 44) .
Deucalião: filh o d e Prometeu, sobrevive com a esposa Pirra a o dilúvio universal ( I 3 18,
348, 3 90, VII 356).
Dia ( 1 ) : personificação (II , 25 ) .
Dia (2) : outro nome para a ilha d e Naxos, n o mar d e Creta, que acolhe Ariadne após ser
abandonada por Teseu (III 690, VIII 174); cf. Naxos
Diana (gr. Ártemis) : filha de Júpiter e Latona, irmã gémea de Apolo, neta do Titã Ceo,
deusa virgem da caça, por vezes, associada à lua (I 476, 487 , 695 , 696, II 4 1 5 , 4 16,
425 , 44 1 , 45 1 , 464, III 156, 1 63 , 173, 1 80, 1 85 , 25 1 , IV 304, V 330, 375, 619, 639, VI
1 60, 2 1 6, 4 15 , VII 746, 755, VIII 272, 277, 253 , 3 94, 3 95, 543 , 579, IX 89, X 536, XI
322, XII 28, 35, 36, XIII 1 85 , XIV 3 3 1 , XV 196, 489, 537, 546, 550) ; designada Dic­
tina (II 44 1 ) ; cf. Febe, Cíntia, Luna.
Dicte: monte em Creta (III 2, 223 , VIII 43 , IX 7 1 7 ) .
Dictina: ver Diana.
Díctis ( 1 ) : um dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado em golfinho
(III 615).
408 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Díctis (2 ) : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 334, 337).
Dídime: ilha do mar Egeu (VII 469).
Dido: rainha de Cartago; apaixonada por Eneias, suicida-se após este a ter abandonado ao
partir para as costas itálicas (XIV 79).
Dimas: pai de Hécuba (XI 761, XIII 620).
Díndimo: montanha na Frígia (II 223 ) .
Diomedes ( 1 ) : herói grego, rei d e Argos, filho d e Tideu, neto d e Eneu, toma parte na
guerra de Tróia, sendo o companheiro mais frequente de Ulisses; no final da vida, es­
tabelece-se em Itália (XII 622, XIII 1 3 , 68, 1 00, 1 02 , 239, 242 , 350, XIV 457 , 46 1 ,
491, 5 12 , XV 769, 806).
Diomedes (2) : rei da Trácia, filho de Ares e Pirene, que alimentava os cavalos com carne
humana (IX 1 94).
Dione: filha de Atlas, mãe de Níobe (VI 1 7 4 ) .
Dirce: ninfa e fonte famosa perto d e Tebas ( I I 239).
Dite: nome de Plutão, rei do mundo subterrâneo da morte (II 261, IV 438, 5 1 1 , V 356,
367 , 3 84, 3 95 , 420, 508, 520, 564, 567, 569, VII 249, X 15, 47, XV 535).
Dodona: cidade do Epiro, famosa pelo seu templo a Zeus (Júpiter) (VII 623 , XIII 7 1 6).
Dólon: espião troiano morto por Diomedes em famoso episódio da Ilíada (XIII 98, 244).
Dólopes: povo da Tessália (XII 364 ) .
Dorceu: 'Gazela', u m dos cães da matilha d e Actéon (III 2 1 0).
Dórilas ( 1 ) : rico proprietário da região dos Nasamones, no norte de África, partidário de
Perseu no combate contra Fineu (V 129, 130).
Dórilas (2 ) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 380).
Dóris: esposa de Nereu e mãe das Nereidas; mãe de Galateia (II 1 1 , 268, XIII 742 ) .
Dragão: constelação (III 45 ) .
Dríades: ninfas dos bosques (III 507, VI 453 , VIII 746, 7 7 7 , X I 4 8 , XI V 326).
Driante ( 1 ) : filho de Marte, tomou parte na caçada ao javali de Cálidon (VIII 307 ) .
Driante (2) : Lápita que toma parte n a batalha contra o s Centauros (XII 290, 296, 3 1 1 ) .
Dríope: filha d e �urito, metamorfoseada e m flor d e lótus (IX 3 3 0 , 3 3 6 , 342 , 3 64 ) .
Drómas: 'Veloz', cadela da matilha de Actéon (III 2 1 7 ) .
Dulíquio: ilha do mar Jónio, vizinha a Ítaca, parte dos domínios de Ulisses (XIII 1 07 , 425 ,
7 1 1 , XIV 226) .
Eácidas: descendentes de Éaco, em especial os seus filhos e o seu povo (VIII 4 ) .
Éaco: filho de Júpiter e Egina, neto do rio Asopo e rei de Egina, pai de Peleu, Télamon
(por parte de Endeis) e Foco (sendo a mãe Psâmate), avô de Aquiles (VII 472, 473 ,
478, 484, 494, 506, 5 17 , 666, 667 , 668, 798, 864, VIII 4, IX 435 , 440, XI 227, 246,
250, 275, 389, 399, XII 82 , 95 , 168, 3 65 , 603 , 6 1 3 , XIII 25, 27, 33, 505 ) .
Eagro: rei da Trácia e pai d e Orfeu (II 2 1 9).
Eante: rio do Epiro (1 580).
Ébalo: pai de Jacinto (X 196, XIII 3 96).
Ecália: cidade da Eubeia (IX 136, 330).
Ecleu: esposo de Hipermestra e pai de Anfiarau; companheiro de Hércules na sua expe­
dição contra Tróia (VIII 3 1 6).
G L OSSÁRIO E ÍNDICE 409

Eco: ninfa enamorada de Narciso, transformada por Juno em eco (III 357, 359, [368] ,
3 80, 386, 493 , 5 0 1 , 507 ) .
Édipo: rei d e Tebas, filho d e Laio e Jocasta (VII 759, XV 429).
Edones: povo da região entre a Trácia e a Macedónia, famoso pelo seu culto a Baco; as
mulheres que assistiram à morte de Orfeu transformam-se em árvores (XI 70).
Eécion: rei de Tebas na Ásia Menor, pai de Andrómaca, a esposa de Heitor (XII 1 10).
Eeia: terra onde habitava de Circe, identificado em tempos romanos com o Monte Circeo,
no Lácio (IV 205 ) .
Eetes: rei d a Cólquida, pai d e Medeia (VII 7 , 9, 96, 1 02 , 170, 326).
Éfira: nome primitivo de Corinto (II 240, VII 3 9 1 ) .
Egéon: u m dos gigantes d e cem braços, p o r vezes identificado com Briareu o u mesmo
Neptuno (II 9).
Egéria: ninfa itálica, uma das Camenas, esposa de Numa, metamorfoseada em fonte (XV
482, 487, 548) .
Egeu ( 1 ) : rei de Atenas, filho de Pandíon e pai de Teseu; desposou Medeia; ao matar-se
nas ondas, deu o nome ao mar (VII 402, 420, 453 , 5 02 VIII 174, 406, 560, XII 237,
342, XV 856).
Egeu (2) : mar Egeu (IX 448, XI 663 ) .
Egina ( 1 ) : filha d o rio Asopo, amada por Júpiter e mãe d e Éaco (VI 1 13 , VII 524, 616).
Egina (2 ) : ilha do golfo Sarónico, não muito afastada de Atenas; o seu antigo nome era
Enópia (VII 472, 474, 490) .
Egipto: região no norte de África (V 323 , XV 826).
Egle: irmã de Faetonte (II 350).
Élato: pai de Cénis, transformada por Neptuno num homem invulnerável, Ceneu (XII
189, 497 ) .
Eleleu: título d e Baco (IV 1 5 ) .
Elêusis: cidade da Ática famosa pelo mistérios a Deméter (Ceres) (VII 43 9).
Élide: região e cidade a noroeste do Peloponeso (II 679, V 488, 494, 576, 608, VIII 3 08,
IX 187, XII 550, XIV 325 ) .
Élimo: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 460) .
Elísio: morada após a morte dos heróis e homens virtuosos (XIV 1 1 1 ) .
Elpenor: companheiro d e Ulisses ( XIV 252 ) .
Emátia: região da Macedónia; por vezes, designa a Macedónia e Tessália juntas (V 3 13 ,
669, XI I 463 , XV 824) .
Emátides: outro nome para a s Piérides, derivado d e Emátia, região d a Macedónia (V 669).
Emátion: ancião dos Cefenes, morto na disputa entre Perseu e Fineu (V 100).
Enéadas: os descendentes de Eneias, ou seja os Romanos (XV 682 , 695 ) , e particular­
mente César, cuja família se dizia descendente de Eneias, por intermédio do seu fi­
lho Ascânio / Julo (XV 804 ) .
Eneias: filho de Anquises e Vénus, herói troiano, que, escapando ao incêndio de Tróia, viajará
para Itália e estará na base da origem de Roma (XIII 624, 665, 68 1 , XIV 78, 1 16, 155,
170, 247, 44 1 , 443, 456, 5 8 1 , 588, 600, 603, 608, XV 437, 450, 7 1 6, 761 , 806, 861).
Enésimo: filho de Hipocoonte, participante na caçada ao javali de Cálidon (VIII 362 ) .
Eneu: rei de Calidón, esposo de Alteia, pai de Tideu, Dejanira e Meleagro, e avô de Dio­
medes ( 1 ) (VIII 273 , 2 8 1 , 4 14, 486, 522 , 529, IX 12, XIV 5 1 2 ) .
410 G L O S S ÁRIO E ÍNDICE

Enipeu: rio d a Tessália (1 579, VI 1 16, VI I 229).


Énoe: rainha dos Pigmeus, metamorfoseada em grou por desafiar Juno (VI 90).
Énomo: guerreiro lício às ordens de Sarpedón, morto por Ulisses (XIII 260).
Enópia: nome primitivo da ilha de Egina (VII 47 1 , 473 , VII 49 1 ) .
Eólia ( 1 ) : região n a Ásia Menor (VII 3 57 ) .
Eólia (2) : território d e Éolo, ilhas a Norte d a Sicília (XIV 232).
Éolo (1): deus dos ventos, filho de Hípotes e pai de Alcíone e de Cânace (1 262, IV 663 , VI
1 1 6, VII 357, IX 507, XI 43 1 , 444, 5 6 1 , 573 , 747, XIV 86, 223 , 224, 232, XV 707 ) .
Éolo (2) : filho d e Hdeno, pai d e Ame, Atamante, Sísifo, Déjone (IV 4 8 7 , 5 12 , VI 681 , VII
672 , XIII 26).
Éolo (3 ) : pai do trombeteiro Miseno (XIV 1 03 ).
Eoo: 'o da Aurora', cavalo da quadriga do Sol (II 153 ).
Épafo: filho de Júpiter e lo, identificado com o deus egípcio Ápis, representado por um
boi (1 748, 753 , 756).
Epidauro: cidade da costa leste do Peloponeso, na Argólide, centro do culto a Esculápio
(Asclépio em grego) (111 278, Vll 436, XV 643 , 723 ) .
Epimeteu: Titã, irmão d e Prometeu e pai d e Pirra (1 3 90).
Epiro: região a norte da Grécia (VIII 283 , XIII 720) .
Épito: rei de Alba (XIV 613 ) .
Epopeu ( 1 ) : pai d e Nictímene (II 592 ) .
Epopeu (2) : uma dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado e m golfi-
nho (Ili 6 1 9 ) .
Equeclo: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas ( XI I 45 1 ) .
Equémon: partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 1 63 , 169).
Equidna: 'Víbora', monstro com corpo de mulher e pescoço de serpente, mãe de mons­
tros como Cérbero, a Hidra de Lema, a Quimera, o leão da Nemeia (IV 5 0 1 , VII
409, IX 69).
Equínades: Náiades transformadas por Aqudoo em ilhas do mesmo nome, próximas do
litoral da Acamânia (VIII 589) .
Equíon ( 1 ) : um dos jovens tebanos nascidos das sementes que Cadmo planta, e que ajuda
o herói a construir as muralhas de Tebas; esposo de Agave, e pai de Penteu (II 126,
536, III 126, 5 1 3 , 526, 701, X 686) .
Equíon (2) : um dos Argonautas, irmão gémeo de Eurícion e participante na caçada ao ja-
vali de Cálidon (VIII 3 1 1 , 34 5) .
Erasino: rio d a Argólide (XV 275 ) .
Érebo: nome d o mundo subterrâneo d a morte (V 543 , X 7 6 , XIV 404 ) ; cf . Avemo.
Erecteu: filho de Pandíon e pai de Prócris e Oritia, designando por vezes os atenienses
(VI 677 , 7 0 1 , VII 43 1 , 697 , 726) .
Ericina: Vénus, a que o monte Érix na Sicília estava consagara (V 3 63 ) ; cf. Vénus.
Erictónio: filho de Vulcano, nascido sem mãe, rei de Atenas (II 553 , 757 , IX 423 ) .
Erídano: nome lendário d o rio Pó, que fl ui n o norte d e Itália (II 3 2 4 , 372).
Erífile: esposa de Anfiarau (VIII 3 16, IX 407, 410).
Erigdupo: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 452) .
Erígone: filha de lcário (VI 125, X 45 1 ) .
Erimanto ( 1 ) : monte n a Arcádia (II 499, V 608).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 411

Erimanto (2) : rio n a Arcádia e Élide, afluente d o Alfeu (II 244).


Erínia: divindade maléfica vingadora dos crimes de sangue (1 24 1 , 725 , IV 490, XI 14, IV
45 1 ) ; cf. Fúrias.
Erisícton: filho de Tríopas e pai de Mestra, condenado por Deméter (Ceres) a uma fome
insaciávd por ter profanado um bosque consagrado à deusa (VIll 738, 75 1 , 768,
779, 824, 840, 872) .
Érito: filh o de Actor, partidário de Fineu n o combate contra Perseu ( V 80) .
Érix ( 1 ) : montanha no noroeste da Sicília, consagrada a Vénus (11 22 1 , V 364 ) .
Érix (2) : partidário d e Fineu n o combate contra Perseu, petrificado a o contemplar a ca­
beça da Górgone (V 1 95 ) .
Érix ( 3 ) : rei siciliano, amigo d e Eneias, epónimo d a cidade d e Érix (moderna Erice) e do
monte do mesmo nome (XIV 83 ) .
Erro: personificação (XII 59).
Ésaco: filho de Príamo e de Alexírroe, meio-irmão de Heitor, metamorfoseado em mer-
ganso (XI 762, 773 , 7 9 1 , XII 1 ) .
É sar: rio d a Calábria, e m Itália, perto d e Crotona ( XV 23 , 54).
Escorpião: constelação (II 82, 195 ) .
Esculápio (gr. Asclépio) : deus d a medicina e d a saúde, filho d e Apolo e Corónis (II 629,
633 , 642, XV 533 , 624, 639, 642 , 653 , 667 , 723 , 743 ) .
Esfinge: monstro que aterrorizava Tebas e que fo i vencido por Édipo (VII 761 ) .
Esmílax: jovem amada d e Croco, transformada e m planta (IV 283 ) .
Esminteu: u m dos epítetos d e Apolo (XII 585 ) .
Éson: rei d e Iolco, n a Tessália, pai de Jasão, rejuvenescido por Medeia (VII 5 9 , 77, 84,
1 10, 132, 156, 1 63 , 164, 255 , 176, 252, 287, 292 , 303, VIll 4 1 1 ) .
Esparta: cidade a sul do Pdoponeso (ill 208, Vl 414, X 170, 2 17, XV 426, 428).
Esperqueu: rio da Tessália (1 579, II 250, V 86, VII 230).
Esqueneu: pai de Atalanta (X 609, 63 8, 660).
Estábias: cidade no golfo de Nápoles (XV 7 1 1 ) .
Estelião: cf. Ascálabo.
Esténdo ( 1 ) : pai de Cicno, o rei de Ligúria e amigo de Faetonte, transformado em cisne
(11 3 67 ) .
Esténdo (2) : rei d e Micenas, filho d e Perseu e Andrómeda, e pai d e Euristeu (IX 273 ) .
Esticte: 'Malhada', um a das caddas d a maúlha d e Actéon (ill 2 1 7 ) .
Esúfdo: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 459) .
Estígio: rio do mundo subterrâneo da morte (1 140, 1 89, 737, II 1 0 1 , m 76, 272, 2 9 1 , 505 ,
695 , IV 434, 438, V 1 16, 504, VI 662 , X 1 3 , 65, 3 13 , 697 , Xl 500, XII 132, 322, Xill
465 , XIV 155, 5 9 1 , XV 154, 7 9 1 ) .
Estinfalo: monte e lago n a Arcádia (V 585, IX 1 87 ) .
Estrímon: rio d a Trácia, hoje Struma (II 257 ) .
Estrófades: nome d e duas ilhas n o m a r Jónio, morada d a s Harpias (XIII 7 10).
Eta: montanha no sul da Tessália (1 3 13 , II 2 17 , IX 165, 204, 230, 249, XI 3 83 ) .
Etálion: u m dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado em golfinho
(ill 647) .
Etéocles: irmão d e Polinices, filh o d e Édipo, e rei d e Tebas após a morte deste (IX 405 ) .
Étion: adivinho partidário d e Fineu n a disputa com Perseu ( V 146).
412 G L O S S Á R I O E ÍN D I C E

Etíopes: habitantes da Etiópia ( I 778).


Etiópia: região em África, a sul do Egipto (II 235, IV 669, XV 320).
Etoa: vulcão na Sicília (II 220, IV 663 , V 352, 442, VIII 260, XIII 770, 868, 877 , XIV 1,
161, 188, XV 340).
Etólia: região na Grécia, na parte ocidental, a sul do Epiro (XIV 46 1 , 528).
Éton: 'o Ardente' , um dos cavalos da quadriga do Sol (II 153 ) .
Etrúria: ver Tirrénia.
Etruscos: também designados Tirrenos e Tuscos, era o povo da Etrúria, hoje a actual Tos­
cânia e o extremo norte do Lácio (XV 558). Ver Tirrenos e Tuscos.
Eubeia: ilha junto à costa leste da Grécia (VII 232, IX 2 1 8, 226, XIII 1 82 , 660, 906, XIV
4, 156).
Euforbo: herói troiano, filho de Panto, morto por Menelau (XV 1 6 1 ) .
Eufrates: rio d a Mesopotâmia ( I I 248) .
Eumelo: natural d e Tebas, matou o filho Botres, transformado por Apolo e m pássaro (VII
390).
Euménides: 'Benfazejas', divindades agrícolas, termo para designar as Erínias ou Fúrias
após um processo de mudança de velhas divindades vingadoras de crimes de sangue
(VI 430, 45 1 , 662, VIII 4 8 1 , IX 410, X 45, 3 14, 349); cf. Erínias, Fúrias.
Eumolpo: filho de Posídon e Quíone, rei da Trácia (XI 93 ) .
Eurícion: filho de Actor da Ftia, participante n a caçada a o javali d e Cálidon (VIII 3 1 1 ) .
Eurídice: esposa d e Orfeu ( X 8, 3 1 , 4 8 , XI 63 , 66) .
Euríloco: companheiro de Ulisses (XIV 252, 286) .
:Ê:urimo: pai de Télemo (XIII 77 1 ) .
Eurínome: mãe d e Leucótoe (IV 209, 2 1 9).
Eurínomo: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 1 0).
Eurípilo (1): herói grego da Tessália, que toma parte na guerra de Tróia (XIII 357).
Eurípilo (2 ) : filho de Hércules e rei de Cós (VII 363 ) .
Euristeu: rei d e Micenas, filho d e Esténelo (IX 203 , 274) .
:Ê:urito ( 1 ) : rei da Ecália, morto por Hércules, pai d e Íole, Ífüo e Dríope, avô d e Anfisso
(IX 357, 3 95 ) .
:Ê:urito (2) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas ( XI I 2 1 9, 224, 228).
:Ê:urito (3 ) : eventualmente o mesmo :Ê:urito (1) pai de Hípaso, um dos participantes na ca­
çada ao javali de Cálidon (VIII 308, 3 7 1 ) .
Euro: vento d e sudeste (I 6 1 , I I 160, VII 659, 660, 664, VIII 2 , XI 48 1 , XV 604).
Europa (1): filha de Agenor, irmã de Cadmo, mãe de Minas (Il 844, 858, 868, III 258, V
648, VI 1 03 , VIII 24, 49, 120).
Europa (2 ) : continente (V 648).
Eurotas: rio da Lacónia (II 247 , X 169) .
Evagro: Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 290).
Évan: título de Baco (IV 15).
Evandro: filho de Carmenta; tendo emigrado do Peloponeso para Itália, funda Palanteu,
cidade no espaço onde mais tarde será Roma e foi aliado de Eneias contra Tumo
(XIV 456) .
Eveno: rio da Etólia, que passa em Cálidon (VIII 527, IX 1 04).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 413

Evipe: esposa de Píero e mãe das Piérides (V 303 ) .


Exádio: Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 266) .
Faetonte: filho do Sol e de Clímene (1 75 1 , 755 , 764, 776, II 19, 34, 54, 99, 1 1 1 , 178, 227,
3 1 9, 327, 342, 3 68, 3 8 1 , IV 245 , XII 582).
Faetusa: uma das Helíades, filhas do Sol, irmã de Faetonte (II 346) .
Fama: ver Rumor
Fântaso: deus dos sonhos (XI 642) .
Fárfaro: rio d o Lácio, afluente d o Tibre, hoje Farfa (XIV 3 3 0 ) .
Faro: ilha n o Egipto junto a Alexandria ( I X 773 , XV 287 ) .
Farsália: cidade d a Tessália, famosa pela batalha em que Júlio César venceu Pompeio em
48 a.C., momento determinante para a sua vitória na guerra civil (XV 823 ) .
Fásis: rio na Cólquida, que desagua no m a r Negro (hoje rio Rion, na Geórgia), relacio­
nado com Medeia (II 249, VII 6, 247 , 298) .
Fauna: divindade romana dos campos e vida silvestre, e rei lendário do Lácio (1 193 , VI
329, IX 449, XIII 750, XIV 449) .
Favónio: vento d e ocidente ( I X 66 1 ) . Cf. Zéfiro.
Feaces: povo lendário da ilha de Esquéria, que acolheu Ulisses em famoso episódio da
Odisseia (XIII 719).
Febe ( 1 ) : 'brilhante', epíteto de Diana e, por vezes, nome equivalente (I 11, 476, II 415
723 , VI 2 1 6, XII 36); cf. Diana.
Febe (2): irmã de Faetonte (II 350).
Febo: 'brilhante', epíteto de Apolo e, por vezes, nome equivalente (1 450, 452, 464, 490,
553 , II 545 , 608, 628, III 8, 10, 18, 530, V 330, VI 122, 215, 3 89, VII 350, 3 65 , VIII
3 1 , 350, IX 444, 663 , X 133, 162, 178, 197 , 2 14, XI 58, 1 64, 3 03 , 3 1 0, 3 16, XIIl 4 1 0,
501, 632 , 640, 677, XIV 133, 14 1 , 150, XV 549, 630, 642, 743 , 865 ) . Por vezes, equi­
vale a Sol (1 338, 752, II 23, 36, 1 1 0, 398, 454, III 15 1 , IV 348, 7 1 5 , VI 486, VII 324,
XI 595 , XIV 416, XV 1 9 1 , 4 1 8)
Fédimo: um dos filhos de Níobe (VI 239).
Fedra: madastra de Hipólito, esposa de Teseu, irmã de Ariadne e filha de Pasífae (XV
498, 500).
Fegeu: rei epónimo e fundador da cidade de Fegeia na Arcádia, sogro de Alcméon, o fi-
lho de Anfiarau (II 244, IX 4 12).
Fene: esposa de Perifante, transformados porJúpiter em águia marinha e falcão (VII 399).
Feneu: cidade e lago na Arcádia (XV 332).
Fenícios: habitantes da Fenícia, na costa da Síria, hoje correspondendo grosseiramente ao
Líbano (III 46, XV 288).
Fénix (1): filho de Amintor, um dos participantes na caçada ao javali de Cálidon (VIII 307).
Fénix (2): ave fabulosa que ressuscitava das suas próprias cinzas (XV 3 93 , 402).
Feócomes: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 430).
Feres: rei de Feras na Tessália, irmão de Éson e pai de Admeto (VIII 3 1 0).
Festa: cidade de Creta (IX 669, 7 1 6).
Fíale: ninfa do séquito de Diana (III 1 7 1 ) .
414 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Filámon: poeta e adivinho, filho de Apolo, casado com a ninfa Argíope, de quem teve Tâ-
miris (XI 3 16).
Filémon: esposo de Báucis, metamorfoseado em carvalho (VIII 63 1 , 68 1 , 706, 7 14, 7 15).
Fileu: filho de Áugias, rei da Élide; participante na caçada ao javali de Cálidon (VIII 308).
Filio: jovem enamorado de Cicno (2) (VII 372).
Filipos: cidade na Macedónia oriental onde Marco António e Octaviano (mais tarde Au­
gusto) venceram os exércitos da facção anti-César, comandados por Bruto e Cássio,
em 42 a. C., pondo assim termo a uma guerra civil (XV 824).
Fílira: mãe do centauro Quíron (II 676, VII 352).
Filo: cidade da Tessália (XII 479).
Filoctetes: filho de Peante, depositário do arco e flechas de Hércules, partiu para a guerra
de Tróia, mas foi abandonado por Ulisses na ilha de Lemnos (IX 23 1 , XIII 45 , 3 13 ,
329, 402).
Filomela: filha de Pandíon e irmã de Procne, metamorfoseada em rouxinol (VI 45 1 , 475,
502 , 5 1 1 , 520, 553 , 572, 60 1 , 643 , 657 , 666, 667).
Fineu ( 1 ) : irmão de Cefeu, noivo de Andrómeda, defronta Perseu e é metamorfoseado em
pedra ao olhar para a cabeça da Górgone (V 8, 36, 89, 92 , 93 , 107, 157, 2 1 0, 224,
229, 23 1 ) .
Fineu (2 ): adivinho d a Trácia, condenado a uma vdbice nas trevas, atormentado pela
Harpias, visitado pelos Argonautas (VII 2).
Flegetonte: um dos rios do mundo subterrâneo da morte (V 544, XV 532).
Flégias: partidário de Fineu na disputa contra Perseu (V 87 ) .
Flégios: povo d a Beócia, fundado por Flégias, herói grego d a guerra d e Tróia ( XI 414).
Flégon: 'o flamejante', um dos cavalos da quadriga do Sol (II 154).
Flegra: planícies na Calcídia, a sudeste da Macedónia, onde teve lugar a Gigantomaquia
(X 15 1 ) .
Flegreu: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 378).
Fobetor: 'Assustador', divindade relacionada com os sonhos (XI 640).
Foceia: cidade costeira na }ónia, na Ásia Menor, entre Quios e Lesbos (VI 9).
Fócide: região central da Grécia, a oeste da Beócia e norte do golfo de Corinto, onde se si­
tuava o monte Pamaso e o santuário de Delfos (I 3 13 , II 244, 569, V 276, XI 348).
Foco: filho de Éaco e Psâmate, e irmão de Télamon e Peleu (estes eram filhos de Endeis,
filha de Círon) (VII 477 , 668, 670, 685 , 733, 795 , 796, 798, XI 268, 3 8 1 ) .
Folo: Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 306).
Fome: personificação (VIII 784, 785, 799, 791, 814).
Forbas (1): de Siene no Egipto, filho de Metíon, partidário de Fineu na disputa contra
Perseu (V 74, 78).
Forbas (2) : lendário salteador flégio que actuava na Fócide (XI 413 ).
Forbas (3 ) : Centauro no combate contra os Lápitas (XII 321).
Forco: pai das três Górgones (também ditas Fórcides), vencidas por Perseu: Medusa e
duas outras (Esteno e Euríale) que partilhavam o uso de um único olho (IV 743 ,
774, V 230).
Foroneu: filho de Ínaco e irmão de Io (I 669, II 524).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 415

Fortuna: personificação e deusa romana (II 140, ill 141, V 140, VI 1 95 , Vill 73 , XIII 334,
525 ).
Frígia: região da Ásia Menor compreendendo Tróia (VI 147, 177, 400, Vill 162, 620, XI
9 1 , 203 , XII 38 XIII 44, 337, 429, 580, 72 1 , XIV 547, 562).
Frígios: habitantes ou referente à Frígia (VI 166, X 155, XII 70, 148, 612, XIII 244, 3 89,
435, XIV 80, XV 444, 452) .
Frio: personificação (Vill 790).
Frixo: filho de Acamante e de Néfele, irmão de Hele. A segunda mulher de seu pai, Ino,
quis sacrificá-lo junto com a irmã a Zeus, mas o deus, ou Néfele, enviaram um car­
neiro alada de ouro, no qual Frixo e Hele lograram fugir; ao chegar à Cólquida, a
pele deste carneiro ficou preservada, guardada por um dragão, e este é o objecto al­
mejada pela expedição dos Argonautas, chefiada por Jasão (VII 7 ) .
Ftia: cidade da Tessália, morada d e Peleu e pátria d e Aquiles (XIII 156).
Fúrias: as três Fúrias eram Tisífone, Aleto e Megera (IV 45 1 , VI 662 , X 3 13 ). Ver Erínia e
Euménides.
Galântis: servidora de Alcmena, transformada em doninha (IX 3 06, 3 16, 324).
Galateia: ninfa marinha, filha de Nereu e Dóris, amada por Polifemo e por Ácis (XIII 739,
749, 789, 798, 83 9, 858, 863 , 869, 880, 898).
Gália: Gália (I, 533).
Ganges: rio da Índia (II 249, IV 21, V 48, VI 63 6).
Ganimedes: irmão de llo e Assáraco, copeiro amado por Júpiter (X 156, 160, 155, XI 756).
Gargáfia: vale e fonte na Beócia consagrados a Diana (III 156).
Gérion: monstro de três cabeças que habitava no extremo da Ibéria (na Corunha ainda
existe o chamado farol de Hércules, de fundação romana) (IX 1 84) .
Gíaros: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades (V 252, VII 470).
Gigantes: seres primitivos monstruosos filhos da Terra (Geia), que combateram os deuses
olímpicos (I 152, V 3 1 9, 346, X 150, XIV 1, 1 84).
Glauco: pescador de Antédon, diante da Eubeia, transformado em divindade marinha,
apaixonado por Cila (VII 233 , XIII 904, XIV 4, 9, 38, 68) .
Gorge: irmã de Meleagro e de Dejanira, esposa de Andrémon, mãe de Toante (VIII 543 ).
Górgones: as três filhas de Forco, Medusa, Esteno e Euríale (IV 618, 699 (=Medusa) , 779,
80 1 , V 180 (=Medusa), 1 96, 202 (=Medusa), 209 (=Medusa) ).
Gortínios: habitantes da cidade de Gortina em Creta (VII 778).
Graças: três divindades (Eufrósine, Aglaia e Talia) (VI 429).
Gradiva: um dos epítetos de Marte (VI 427, XIV 818, XV 863 ) ; cf. Marte.
Granico: rio da Frígia, na Ásia Menor (XI 763 ).
Grécia: comunidade de cidades gregas (Xill 194, XIV 474).
Grego: (IV 16, 538, VII 2 14, XII 64, 609, Xill 24 1 , 2 8 1 , 402 , 4 1 1 , XIV 1 64, 220, 325 , XV
10, 645).
Grineu: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 258, 268).
Halcioneu: guerreiro da Bactriana, partidário de Fineu no combate contra Perseu (V
135).
Haleso: Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 463 ) .
Hálio: guerreiro lício à ordens d e Sarpédon, morto por Ulísses (Xill 258).
416 GLOSS ÁRIO E ÍNDICE

Hamadríades: 'Ninfas dos carvalhos o u das árvores' ( I 690, XIV 623 ) .


Harmonia: esposa d e Cadmo, metamorfoseada e m serpente (ill 133 , IV 568).
Hárpalo: 'Agarrão', um dos cães da matilha de Actéon (III 22 1).
Harpia: 'Raptor', um das cadelas da matilha de Acteón (ill 2 15).
Harpias: divindades malévolas que atormentavam o rosto de Fineu, salvo por Calais e
Zeto; as Harpias refugiam-se nas ilhas Estrófades, no mar Jónio, onde Eneias as en­
contrará (VII 4).
Harpócrates: deus do Egipto (IX 692).
Hebe: 'Juventude', deusa da juventude, filha de Júpiter e Juno, casa com Hércules
quando este é divinizado (IX 400; 4 16); cf. Juventude.
Hebro: rio na Trácia (II 257 , XI 50).
Hécate: deusa da magia e do mundo da morte, filha de Astéria e Perses (VI 140, VII 74,
94, 174, 177, 194, 24 1 , XIV 44, 405 ) .
Hécuba: filha de Dimas, esposa d e Príamo, mãe d e Heitor, metamorfoseada e m cadela
(XI 761, XIII 404, 422 , 483 , 5 1 3 , 549, 556, 566, 575 , 577, 620).
Heitor: herói troiano, filho de Príamo e Hécuba (XI 758, 760, XII 2 , 67 , 69, 75, 76, 447,
548, 591, 607, XIII 7 , 82 , 177, 178, 276, 279, 384, 4 1 6, 426, 427 , 486, 487, 5 1 3 , 666).
Hele: filha de Atamante e Néfele, irmã de Frixo (veja-se a entrada); dela deriva o nome do
Helesponto (hoje estreito dos Dardanelos), ao cair do carneiro de ouro na sua fuga
(XI 196).
Helena: filha de Leda e Júpiter, esposa de Menelau, raptada por Páris, o herói troiano
(XII 5, 609, XIII 200, XIV 669, XV 232 ) .
Heleno: adivinho troiano, filho d e Príamo e Hécuba, irmão gémeo da profetisa Cassan­
dra, estabelece-se em Butroto no Epiro (XIII 99, 335, 72 1 , 722, XV 437 , 450).
Helesponto: estreito entre a Trácia e a Ásia Menor, hoje estreito de Dardanelos na Turquia
(XI 195, XIII 407); cf. Hele.
Helíades: filhas do Sol, irmãs de Faetonte; a seiva das suas árvores era considerada o âm-
bar (I 763 , II 340, 372, X 91, 263 ) .
Hélice ( 1 ) : cidade d a Acaia (XV 293 ) .
Hélice (2) : partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 87 ) .
Hélice ( 3 ): a constelação Ursa Maior (Vill 207).
Hélicon: montanha na Beócia, morada das Musas (ll 2 1 9, V 254, 664, Vill 534).
Hélops: centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 334, 335).
Hemo: montanha na Trácia (II 2 1 9, VI 87, X 77).
Hemónia: outro nome para a Tessália, região norte da Grécia (I 156, 586, II 542 , 559, V
306, VII 132, 159, 264 , 3 14, VIII 8 1 3 , XI 229, 409, 652 , XII 8 1 , 2 1 3 , 353 ).
Hemónio: Centauro da Tessália armado de arco, metamorfoseado na constelação Sagitá-
rio (II 8 1 ) .
Hena: cidade n o centro d e Sicília, famosa pelo templo a Ceres ( V 3 85 ) .
Herculano: cidade na Campânia, n o golfo d e Nápoles (XV 7 1 1 ) .
Hércules: herói, mais tarde divinizado, filho d e Júpiter e Alcmena (VII 3 64, 4 10, IX 1 3 ,
23 , 5 1 , 66, 1 04, 1 1 0, 1 12 , 135, 140, 157 , 2 1 7 , 229, 256, 264, 268, 274, 277, 286, 401,
XI 162, 213, 627, XII 309, 359, 539, 540, 544, 549, 554, 564, 574, XIII 13, 23, 52,
401, XV 8, 12, 22, 32, 39, 47 , 49, 32 1 , 284, 7 1 1 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 417

Hermafrodito: filho de Mercúrio e Vénus (N 288, 368, 383).


Herse: filha de Cécrops, amada por Mercúrio (II 558, 724, 739, 747 , 803 , 809) .
Hersília: esposa de Rómulo, divinizada como Hora (XIV 83 1 , 839, 848, 85 1 ) .
Hesíone: filh a d e Laomedonte, rei d e Tróia, esposa d e Télamon ( XI 2 1 1 ) .
Hesíone: filha d e Laomedonte ( XI 2 1 1 , 2 1 7 ) .
Hespéria: ocidente, geralmente a Itália o u a Península Ibérica para o s Gregos (II 143 , 258,
325, N 2 14, 628, XI 257) .
Hespérie: ninfa amada por Ésaco ( XI 768).
Hespérides: (de Héspero, Ocidente) as três ninfas que viviam no extremo ocidental da
terra guardando um pomar de maçãs de ouro (XI 1 14).
Héspero: geralmente confundido com Lúcifer ( V 44 1 ) .
Híades: filhas d e Atlas e irmãs das Plêiades (III 595 , XIII 293 ) .
Híale: ninfa d o séquito d e Diana (III 1 7 1 ) .
Biantes: povo que habitava na Beócia antes d a chegada d e Cadmo (III 146, V 3 12 , VIII
3 1 0).
Hilactor: 'Ladrador', um dos cães da matilha de Actéon (III 224) .
Hile: Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 3 7 8 ) .
Hileu ( 1 ) : 'Florestal', u m dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 1 3 ) .
Hileu (2): um dos participantes n a caçada a o javali d e Cálidon (VIII 3 12 ) .
Hilo: filho d e Hércules e de Dejanira, esposo d e Íole (IX 279).
Hilónome: centauro fêmea, amada de Cílaro, que assiste à batalha contra os Lápitas e nela
morre (XII 404, 423 ) .
Himeneu: deus d o matrimónio (I 480, N 7 5 8 , V I 429, IX 762, 765 , 796, X 2, XI I 2 15 )
Himeto: montanha n a Ática (VII 702 , X 284).
Bipalmo: pai de Peneleu (herói grego da guerra de Tróia e um dos Argonautas), partici-
pante na caçada ao javali de Cálidon (VIII 360).
Hípanis: rio da Cítia, hoje Bug, na Ucrânia, desagua no Mar Negro (XV 285).
Hípaso ( 1 ) : filho de Êurito, participante na caçada ao javali de Calidón (VIII 3 12, 3 7 1 ) .
Hípaso (2) : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 3 5 1 ) .
Hipepes: cidade d e Lídia (VI 1 3 , XI 152).
Hiperbóreos: 'para lá do Bóreas', povo fabuloso que habitaria no extremo norte da terra
(XV 356)
Hiperíon ( 1 ) : um dos Titãs, pai do Sol (N 1 92 , 24 1 )
Hiperíon (2) : identificado como o próprio sol (VIII 565, XV 406, 407 ) .
Hipocoonte: rei d e Amiclas, a sudoeste d e Esparta, participante n a caçada a o javali d e Cá-
lidon (VIII 3 14, 362 ) .
Hipocrene: 'fonte d o cavalo', famosa fonte no monte Hélicon . ( V 2 5 7 , 3 12 ) .
Hipodamante: pai d e Perímele (VIII 593 , 600).
Hipodamia: esposa de Pirítoo (XII 2 10, 224, XIV 670). '
Hipólita: numa versão, mãe de Hipólito (XV 552).
Hipólito: filho de Teseu e da Amazona Antíope ou Hipólita; acusado falsamente pela ma­
dastra Fedra, morre e é trazido à vida por Esculápio; Diana leva-o para o Lácio,
onde se toma o deus Vírbio (XV 493 , 497, 544, 552) .
418 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Hipómenes: filho de Megareu, esposo d e Atalanta, metamorfoseado em leão ( X 575, 586,


600, 608, 632, 63 9, 65 1 , 657, 660, 665 , 668, 690) .
Hípotes: pai de Éolo (IV 663 , XI 43 1 , XIV 86, 224, XV 707 ) .
Hipótoo: participante na caçada a o javali d e Cálidon (VIII 307 ) .
Hipseu: partidário d e Fineu na disputa com Perseu (V 9 8 , 99).
Hipsípile: neta de Dioniso e Ariadne, filha de Toante, rei de Lemnos, a única das mulhe­
res que não participou no assassínio dos homens da ilha (XIII 399).
Híria: lago na Beócia, e respectiva ninfa, mãe de Cicno, metamorfoseada em lago por cho-
rar o filho que pensa morto (VII 3 7 1 , 380).
Hodites ( 1 ) : partidário de Perseu na sua disputa com Fineu (V 97 ).
Hodites (2) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 457 ) .
Hora: Hersília divinizada (XIV 85 1 ) .
Horas: personificação ( I I 2 6 , 1 1 8).
Hórus: divindade egípcia, filho de Osíris, representado com um dedo nos lábios (IX 692).
laco: epíteto de Baco (IV 15).
Iáliso: cidade na ilha de Rodes (VII 3 65 ) .
lante: jovem prometida d e Ífis ( 1 ) ( IX 7 15 , 723 , 744, 760, 797 ) .
lápigia: região da Apúlia ( XIV 458, 5 10, XV 703 ) .
lápix: filho d e Dédalo e rei no sul d e Itália, que deu o nome à região da lapígia ( XV 5 2 ) .
lásion: filho d e Júpiter e Electra (uma das Plêiades), amado por Deméter (Ceres) (IX 423 ) .
Ibéria: península Ibérica, a Hispânia dos Romanos (VII 3 2 5 , IX 1 8 4 , XV 1 3 ) .
Ícário (2) : p a i d e Erígone (X 450).
Ícaro ( 1 ) : filho de Dédalo (VIII 196, 204, 23 1 , 232, 233 ) .
Ícaro ( 2 ) : ilha no mar Egeu junto a Samos, n a costa d a Ásia Menor, que ganhou o nome do
filho de Dédalo (VIII 135).
Ícelo: um dos sonhos, também chamado Fobetor (XI 640).
lcnóbates: 'Batedor', um dos cães da matilha de Actéon (III 207 , 208).
Ida (1): monte de Creta (IV 277 ) .
I d a (2 ): monte d e Tróia ( I I 2 1 8, IV 289, 293 , VII 3 5 9 , X 7 1 , XI 763 , XII 520, XIII 324,
XIV 535).
Idálio: cidade de Chipre, onde Vénus era especialmente venerada (XIV 693 ) .
Idas ( 1 ) : um dos filhos d e Afareu, participante na caçada a o javali de Cálidon (VIII 305).
Idas (2) : um dos Cefenes morto por Fineu, que tentou manter-se neutral na disputa com
Perseu (V 90).
Idas (3 ) : companheiro de Diomedes, metamorfoseado em gaivota (XIV 504).
Ídmon: 'o que saber', pai de Aracne (VI 8, 133).
Idomeneu: rei de Creta, herói da guerra de Tróia (XIII 358).
Ifigénia: filha de Agamémnon e Clitemnestra (XII 30, 34, XIII 185, 483 ) .
Ifínoo: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 379).
Ífis (1): filha de Ligdo e Teletusa, metamorfoseada em homem (IX 668, 7 15 , 724, 745 ,
787 794, 797 ) .
'
Ífis ( 2 ) : avô d e Ífis ( 1 ) ( IX , 709) .
Ífis (3 ): jovem de Chipre, apaixonado por Anaxárate (XIV 698, 7 17 , 753 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 419

Ífito ( ! ) : pai d e Cérano (XIII 257 ) .


Ífito (2) : filho de Êurito ( ! ) , companheiro d e Meleagro (VIII 3 7 1 ) .
Ilha Tiberina: ilha n o Tibre no centro d e Roma, onde havia famoso templo a Esculápio,
consagrado em 289 a.C. (XV 740).
Íiia : mãe de Rómulo (XIV 780, 823 ).
Íiion: nome da região de Tróia (VI 95 , XI 766, XII 599, XIII 1 96, 408, 505 , XIV 466).
llioneu: um dos filhos de Níobe morto por Apolo (VI 2 6 1 ) .
lliria: região na costa d o m a r Adriático (V 568).
Ilitia: nome grego para a deusa romana Lucina, propiciadora dos partos (IX 283 ) .
Ilo: fundador lendário d e Íiion, irmão d e Assáraco e Ganimedes (X 1 60, XI 755).
Imbreu: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 1 0).
Ínaco: rio, e deus correspondente, da Argólide, pai de lo, avô de Ínaco, antepassado de
Perseu (I 583 , 6 1 1 , 640, 642, 645 , 65 1 , 753 , IV 7 1 8, IX 687) .
Inárime: ilha junto a o golfo de Nápoles, hoje Ísquia (XIV 89) .
Índia: região da Ásia, banhada pelo Indo e o Ganges (I 778, IV 2 1 , 605 , V 47, VIII 288,
XI 168, XV 4 1 3 ) .
Indígete: epíteto d e Eneias (XIV 608).
Indígetes: divinidades primitivas romanas (XV 862).
Ino: filha de Cadmo e esposa de Atamante, irmã de Agave, Sémele, Autónoe, mãe de Le­
arco e Melicertes, metamorfoseada em deusa marinha como nome de Leucótoe (III
3 13 , 532, 722, IV 4 1 7 , 430, 497, 528, 563 ) ; cf. Leucótoe.
Insânia: personificação (IV 485).
Inveja: personificação (II 760, 768, VI 129, X 5 15, 584).
Inverno: personificação (II 30).
lo: filha de Ínaco, irmã de Foroneu, metamorfoseada em vaca, venerada como Ísis (I 584,
6 1 1 , 628, 629, 669, [684 ] , 726, II 524, IX 140, 278, 3 94).
lolau: filho de Ificles, sobrinho de Hércules e condutor do seu carro (VIII 3 10, IX 397,
430).
lolco: cidade costeira na Tessália, pátria de Jasão (VII 158).
Íole: filha de Êurito (1), amada de Hércules e esposa de Hilo (IX 140, 279, 325 394, 3 95).
Íris: deusa do arco-íris, filha de Taumante, mensageira de Juno (I 270, IV 480, XI 585 ,
589, 630, 64 8 , XIV 85 , 830, 83 8, 846) .
Irmãs: ver Parcas (II 654, V 532, VIII 452 , XV 781) e Fúrias (IV 45 1 , VI 662, X 3 13 ) .
Ísis: deusa egípcia, identificada com l o (I 74 7 , IX 687 , 773 ) .
Ísmaro: monte d e Trácia, designando, por extensão, a Trácia (II 257, IX 64 1 , X 3 05 , XIII
530).
Isménides: as Beócias, termo derivado do rio Ismeno que atravessa esta região (III 732, IV
3 1 , 562 , VI 159).
Ismeno (1): rio da Beócia que corre perto a Tebas, pai de Crócale (II 244, III 169, XIII 682).
Ismeno (2 ) : um dos filhos de Níobe (VI 224).
Ísquis: amante de Corónis (II 599).
Isse: filha de Macareu de Lesbos, ludibriada por Apolo sob o disfarce de pastor (VI 124)
Istmo: o Istmo de Corinto, que divide a Grécia continental do Peloponeso (VI 419, 420,
VII 405).
420 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Istro: nome antigo para o rio Danúbio inferior (II 249) .


Ítaca: ilha do mar Jónio, pátria de Ulisses (XIII 98, 1 03 , 5 12 , 7 1 2 , XIV 169).
Itália: península entre os mares Adriático e Tirreno (XIV 17, XV 9, 59, 290, 701).
Ítis: filho de Tereu e Procne (VI 437, 620, 63 6, 652 , 659).
Ixíon: rei dos Lápitas, pai de Pirítoo, tentou seduzir Juno, mas foi enganado por uma nu­
vem; pela ousadia, gira eternamente uma roda no Inferno (IV 461, 465, VIII 403 ,
567 , 612, IX 123 , X 42, XII 2 1 0, 337, 504).
Jacíntias: festas em honra de Vénus e Jacinto (X 218).
Jacinto: filho de Amiclas, amado por Apolo, metamorfoseado em flor (X 162, 1 83 , 185,
196, 2 17 , 2 19, XIII 396).
Jano: deus romano associado aos inícios, pai de Canente (XIV 334, 3 8 1 , 785, 789).
Jápeto: um dos Titãs, filho de Geia, pai de Prometeu, Epitemeu e Atlas (I 82, I, 3 95 , IV
63 1 ) .
J asão: filho d e Éson, herói grego, chefe d a expedição dos Argonautas e esposo d e Medeia
(VII 5, 25, 26, 48, 59, 66, 77, 84, 90, 1 10, 132, 156, 164, 175, 255, 297, 397 , VIII 3 02,
349, 4 1 1 ) .
Jónio: mar entre a Grécia e o sul de Itália (IV 535, XIV 334, XV 4 9 , 699).
Juba: Juba I, rei da Numídia, no Norte de África, derrotado por César em 46 a.C. (XV
755).
Júlio: cf. César.
Julo: nome identificado com Ascânio, filho de Eneias (XIV 583 , XV 447 , 767); cf. Ascâ­
nio.
Juno: irmã e esposa de Júpiter (I 270, 60 1 , 612, 616, 680, 722, II 423 , 435, 466, 469, 508,
5 1 8 , 525 , 53 1 , III 256, 263 , 27 1 , 285, 287, 294, 320, 3 3 3 , 362, 3 65 , IV 173 , 42 1 , 426,
448, 464, 473 , 479, 524, 548, V 330, VI 91, 94, 207 , 332, 337, 429, VII 523 , VIII 22 1 ,
IX 1 5 , 2 1 , 135, 176, 198, 259, 284, 295, 3 09, 400, 499, 762, 796, X 160, XI 578, 629,
XII 506, XIII 574, XIV 85 , 1 14, 320, 582, 592 , 7 8 1 , 829, XV 1 64, 385, 774).
Júpiter (gr. Zeus) : rei dos deuses, filho de Saturno, irmão e esposo de Juno (I 106, 1 14,
1 1 6, 154, 163 , 166, 205, 208, 244, 25 1 , 274, 328, 5 17 , 588, 589, 615, 623 , 668, 673 ,
733 , 749, II 60, 62, 280, 3 04, 377, 3 96, 401, 422 , 429, 437, 444, 473 , 481, 488, 505 ,
678, 697, 726, 744, 836, 848, Ill 7, 26, 256, 261, 265, 270, 272, 280, 281, 283 , 288,
3 1 8, 3 3 3 , 3 63 , IV 3, 260 (= céu), 282, 610, 61 1 , 640, 645 , 650, 697 , 698, 7 14, 755,
799, V 1 1 0, 296, 327, 3 69, 5 1 3 , 5 14, 523 , 528, 564, VI 5 1 , 72, 73 , 94, 1 1 1 , 176, 5 1 6,
VII 3 66, 588, 596, 615, 623 , 652, 80 1 , VIII 100, 122, 152, 265 , 626, 703 , IX 14, 23,
26, 104, 137, 198, 229, 242 , 243 , 263 , 265 , 27 1 , 289, 302, 405 , 4 14, 416, 427, 439,
499, X 148, 149, 155, 156, 161, 224, XI 41, 218, 220, 224, 226, 286, 756, XII 1 1 , 52,
XIII 5 , 28, 91, 14 1 , 142, 145, 2 16, 269, 3 85 , 409, 574, 586, 600, 707 (= céu, clima),
842 , 844, 857 , XIV 585 , 807 , 816, XV 12, 70, 386, 807 , 858, 866, 87 1 ) ; cf. Tonante.
Juventude: divindade (VII 24 1 ) ; cf. Hebe.
Labro: 'Raivoso' , um dos cães da matilha de Actéon (III 223 ) .
Lacedemónios: termo que designa o s Espartanos, derivado d o nome d e u m lendário rei
Lacedémon (XV 50).
Lacínio: cabo no sul de Itália, na Calábria, não longe de Crotona, famoso pelo templo a
Juno (XV 14, 701).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 42 1

Lácio: região de Itália central, onde se situa Roma (I 560, II 3 66, XIV 327, 390, 422 , 452 ,
610, 624, 832, XV 4 8 1 , 486, 626, 582, 742) .
Lacne: 'Peluda', uma das cadelas d a matilha d e Acréon (III 222 ) .
Lácon: 'Espartano', u m dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 1 9).
Lacónios: naturais da Lacónia, região sudeste do Peloponeso (III, 223 ) .
Láctea, Via: nebulosa (I 169).
Ládon (1): rio da Arcádia (1 703 ) .
Ládon (2) : u m dos cães da matilha d e Actéon, natural da região do rio homónimo na Ar-
cádia (III 2 1 6).
Ládon: gigantesco dragão que guardava o pomar de Atlas (IV 647 ) .
Laertes: pai d e Ulisses (VIIl 3 15, XI I 625 , XIII 4 8 , 124, 144).
Laio: pai de Édipo e esposo de Jocasta (VII 759).
Lamo: rei dos Lestrígones (XIV 23 3 ) .
Lampécia: uma das Helíades, filhas d o Sol (II 349) .
Lâmpeto: vate dos Cefenes morto durante a disputa entre Fineu e Perseu (V 1 1 1 ) .
Laomedonte: rei d e Tróia, pai d e Príamo ( VI 96, XI 1 96, 199, 203 , 757) .
Lápitas: povo d a Trácia, que travaram famoso combate com o s Centauros (XII 250, 2 6 1 ,
4 1 8 , 5 3 0 , 536, XIV 67 1 ) .
Larissa: cidade d a Tessália (II 542).
Latino (1): filho de Fauno (XIV 449, 570).
Latino (2) : rei de Alba (XIV 6 1 1 , 612).
Latona: filha do Titã Ceo, amada por Júpiter, mãe de Apolo e Diana (1 696, VI 1 60, 1 6 1 ,
162, 1 7 1 , 1 85, 200, 204, 2 14, 274, 280, 3 15, 336, 346, 366, 3 84, Vll 3 84, VIII 1 5 ,
277, 3 94, 543 , XI 1 94, XIII 635 ) .
Latreu: Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 462 ) .
Laurentes: nome primitivo dos habitantes d o Lácio (XIV 3 3 6 , 3 4 2 , 598).
Lavínia: filha de Latino, rei do Lácio, prometida a Turo, mas que casa com Eneias (XIV
449, 45 1 , 570).
Lavínio: cidade no Lácio fundada por Eneias, designada pelo nome da esposa, Lavínia,
tradicionalmente identificada com Pratica di Mare, no Lácio (XV 728) .
Leão: constelação (II 2 8 1 ) .
Learco: filh o d e Atamante e Ino ( IV 5 17 ) .
Lebinto: ilha do mar Egeu (VIII 222).
Leda: filha de Téstio, irmã de AIteia, mulher de Tíndaro, mãe (por Júpiter metamorfose­
ado em cisne) de Castor, Pólux e Helena (VI 109).
Lélaps ( 1 ) : 'Furacão', um dos cães da matilha de Actéon (Ili 2 1 1 ) .
Lélaps (2) : 'Furacão', cachorro que Prócris oferece a Céfalo, metamorfoseado em estátua
de pedra, juntamente com a raposa que perseguia (VII 77 1 ) .
Léleges: povo d a Ásia Menor que s e estabeleceu em regiões d a Grécia, como Mégara (VII
443 , VIII 6, 443 , IX 645 , 652) .
Lélex ( 1 ) : natural d e Nárico, na Lócride, participante na caçada ao javali d e Cálidon
(VIII 3 12 ) .
Lélex (2) : herói d e Trezena, na Argólide, filho d e Piteu, neto d e Pélops, companheiro de
Teseu (VIII 567, 617).
422 G L O S S Á R I O E ÍN D I C E

Lemnos: ilha d o mar Egeu consagrada a Vulcano, local d e desterro d e Filoctetes, herói
grego da guerra de Tróia (II 757, IV 1 85 ; XIII 46, 3 14, 400).
Leneu: 'o dos lagares', um dos títulos de Baco (IV 14, XI 132).
Lema: lago na Argólide, morada da Hidra, arúquilada por Hércules (1 598, IX 69, 130,
158).
Lesbos: ilha do mar Egeu (II 592, XI 55, XIII 173).
Lestrígones: povo lendário que comeu alguns companheiros de Ulisses em célebre episó­
dio da Odisseia (XIV 233, 237).
Leteia: mulher de Óleno, transformada em pedra do monte Ida (X 69).
Letes: 'o rio do esquecimento' , rio que corre no mundo subterrâneo da morte, e que pro-
vocava o esquecimento (VII 152, XI 603 ) .
Lêucade: ilha no mar Jónio, frente à costa d a Acamânia (XV 289).
Leucipo: participante na caçada ao javali de Cálidon (VIII 3 06).
Lêucon: 'Branco' , um dos cães da matilha de Actéon (III 2 1 8).
Leucónoe: uma das Miníades, as filhas de Mínias (IV 168).
Leucósia: ilha do mar Tirreno, na costa da Lucânia (XV 708).
Leucótoe ( 1 ) : nome que Neptuno atribui a Ino após ser transformada em divindade ma­
rinha (IV 542).
Leucótoe (2) : filha de Órcamo e Eurínome, amada por Febo, transformada em árvore do
incenso (IV 1 96, 208, 220).
Líber: divindade itálica da vinha assimilado a Baco (III 520, 528, 63 6, IV 17, VI 125, VII
294, 359, VIII 177, XI 1 04, 64 1 , XIII 65 1 ) ; d. Baco.
Líbia: actual Líbia, e por extensão África (II 237, IV 6 1 7 , XIV 77).
Líbio: natural da Líbia (V 75, 328).
Líbis: um dos marinheiros tirrenos que atacam Baco (III 617, 676).
Lícabas (1): um dos marinheiros tirrenos que atacam Baco (III 623 , 673 ) .
Lícabas (2) : partidário d e Fineu n a sua disputa contra Perseu (V 60).
Lícabas (3 ): Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 302).
Licáon: 'Homem-lobo', rei da Arcádia, pai de Calisto, metamorfoseado em lobo após ter
tentando matar Júpiter (I 165, 198, 2 1 8, 22 1 , II 495 , 497, 526).
Licas: servidor de Hércules metamorfoseado em rochedo (IX 155 , 2 1 1 , 2 1 3 , 229) .
Liceto: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 86).
Liceu ( 1 ) : 'o monte dos lobos', monte da Arcádia (I 2 1 7 , 699, VIII 3 17 ) .
Liceu (2) : local nos arredores d e Atenas onde s e situou a escola d e Aristóteles (II 7 1 0 ) .
Lícia: região da Ásia Menor; no livro VI, certos camponeses são metamorfoseados e m rãs
(IV 296, 297, VI 3 17 , 339, 3 83 , IX 645 , XII 1 16; XIII 255 ) .
Lícidas: Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 3 1 0).
Licisca: 'Lobazinha', uma das cadelas da matilha de Actéon (III 220).
Lico ( 1 ) : rio da Ásia Menor, afluente do Meandro (XV 273 ) .
Lico (2) : Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 332).
Lico (3 ) : companheiro de Diomedes, metamorfoseado em gaivota (XIV 504).
Licormas (1): rio da Etólia (II 245 ) .
Licormas (2) : u m dos Cefenes, no combate entre Perseu e Fineu (V 1 1 9).
Licotas: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 350).
GLOS SÁRIO E ÍNDICE 423

Licto: cidade de Creta (VII 490).


Licurgo: rei da Trácia, que se opõe a Baco (IV 22).
Lídia: região da Ásia Menor (VI 1 1 , 146, XI 99) .
Lieu: 'o que relaxa', um dos epítetos de Baco (IV 1 1 , VIII 275, XI 67) .
Ligdo: pai d e Ífis, natural d e Creta (IX 670, 684).
Ligúria: região no none de Itália (II 370).
Lilibeu: promontório ocidental na Sicília (V 351, XIII 726).
Lítnira: cidade na Lícia (IX 646).
Limnêe: ninfa, filha do rio Ganges e mãe do indiano Átis (V 48).
Lincestas: habitantes de uma região no sul da Macedónia, banhada pelo rio Lincesto (XV
324).
Linceu ( 1 ) : filho de Egipto e neto de Belo, marido de Hipermnestra, pai de Abante, rei de
Argos, avô de Acrísio, bisavô de Dánae, trisavô de Perseu (IV 766, V 99, 1 84)
Linceu (2) : filho de Afareu, panicipante na caçada ao javali de Cálidon (VIII 304).
Lincida: patronítnico de Perseu, do nome do tetravô Linceu (V 99)
Linco: rei da Cítia (hoje pane da Ucrânia), transformado em lince (V 650).
Lindo: cidade na ilha de Rodes (XIII 684).
Lirceu: montanha no Peloponeso, entre a Argólide e a Arcádia (1 598).
Liríope: ninfa violada pelo rio Cefiso, mãe de Narciso (III 342 ) .
Lirnesso: cidade d a Mísia, perto d e Tróia (XII 1 08, XIII 175).
Literno: cidade da Campânia (XV 7 1 3 ) .
Lívia: esposa d e Augusto (XV 83 6).
Lótis: ninfa transformada em flor do lótus (IX 347).
Lúcifer: o astro da manhã, ou seja, o planeta Vénus (quando é visível ao entardecer é cha­
mado Héspero); pai de Céix e Dedálion (II 1 14, 723 , IV 629, 664, VIII 1, XI 97 ,
27 1 , 295, 346, 561, 570, XV 1 89, 789).
Lucina: divindade relacionada com os panos (V 3 04, IX 294, 3 1 0, 3 15 , 698, X 507, 5 10).
Luna (gr. Selene): deusa romana assimilada a Diana como irmã do Sol (II 208, VII 207,
XV 196, 790). Cf. Diana, Febe.
Luto: personificação (IV 484 ) .
Macareu ( 1 ) : natural d e Lesbos, pai d e lsse, que fo i violada por Apolo ( V I 124).
Macareu (2) : Lápita que toma pane na batalha contra os Centauros (XII 452).
Macareu (3 ) : companheiro de Ulisses (XIV 158, 3 1 8, 44 1 ) .
Macedónia: região a none d a Tessália (XII 466) .
Mãe dos deuses: ver Cíbele.
Magnetes: naturais da região de Magnésia, na Tessália, nome derivado do herói epónimo,
Magnes (XI 408).
Maia: uma das Plêiades, filha de Atlas, mãe de Mercúrio (1 670, II 685 , XI 303 ) .
Manes: espíritos dos defuntos n a religião romana (1 586).
Manto: filha de Tirésias (VI 157).
Maratona: planície a nordeste de Atenas, famosa pela vitória dos Gregos sobre os Persas
em 480 a. C. (VII 434).
Mareota: região a sul de Alexandria, com um lago do mesmo nome, que produzia um vi­
nho famoso (IX 773 ) .
424 G L O S S ARIO E Í N D I C E

Marmáridas: naturais d a Marmáride, região d a Líbia, n o norte d e África ( V 125 ) .


Mársias: sátira da Frígia, inventor d a flauta d e dois tubos, que desafiou Apolo para llllla
competição musical e que, ao ser derrotado, foi esfolado vivo; metamorfoseado em
rio (VI 383, 400) .
Marte (gr. Ares): deus da guerra, filho de Júpiter (III 32, 132, 53 1 , IV 172, VIII 6 1 , 437,
XII 91, XIV 798, 806). Por vezes, personifica a própria guerra, a batalha,o combate
(III 123 , 540, VII 140, VIII 7 (=poder militar), 20, 61 (=poder militar), XII 379, 6 1 0,
XIII 1 1 , 209, 360 (=guerra), XIV 246, 450, XV 746). Ver Gradivo; Mavórcio.
Mavórcio: outro nome de Marte (VI, 70, VII, 101 VIII 6 1 , XIV 806).
Meandro: rio da Frígia e da Lídia, que desagua junto a Mileto, e deus respectivo, de curso
sinuoso, pai de Ciânee e avô de Cauno e Bíblis (II 246, VIII 162 , IX 450, 574).
Medeia: feiticeira filha de Eetes, rei da Cólquida e esposa de Jasão (II 67 1 , VII 9, 11, 4 1 ,
70, 134, 157, 257, 285, 296, 298, 3 0 1 , 326, 33 1 , 348, 3 97, 406, XII 3 03 ) .
Médon ( 1 ) : lllil dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado e m golfinho
(III 67 1 ) .
Médon (2) : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 302).
Medusa: lllll a das Górgones, vencida por Perseu; a sua cabeça petrificava quem a fitasse;
do seu sangue nascem os cavalos Pégaso e Crisaor (IV 615, 618, 656, 699, 743 , 7 8 1 ,
782, (794 ] , V 7 0 , 1 80, 202, 209, 2 1 7 , 2 3 0 , 247 , 248, 257, 3 12 , VI 1 1 9, X 22).
Mégara: ver Alcátoe.
Megareu: pai de Hipómenes (X 605, 660).
Melampo (1): adivinho e feiticeiro, filho de Amitáon, que curou a loucura das filhas de
Preto com lllll a poção mágica (XV 325).
Melampo (2 ) : 'Patas Negras', lllil dos cães da matilha d� Actéon (III 206, 208).
Melaneu ( 1 ) : 'Negro', lllil dos cães da matilha de Actéon (III 222 ) .
Melaneu ( 2 ) : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas ( XI I 3 06).
Melaneu (3 ) : partidário de Perseu no combate contra contra Fineu (V 128).
Melanipe: 'Égua negra', nome que Ocírroe assume após se metamorfosear em égua (II
675 ) .
Melanquetes: 'Pêlo Negro', lllil dos cães da matilha d e Actéon (III 232).
Melanto (1): filha de Deucalião, a quem Neptuno, sob a forma de golfinho, fez mãe de
Delfo, que depois deu o nome a Delfos (VI 120) .
Melanto (2) : lllil dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado em golfinho
(III 617).
Melas: há vários rios com este nome, por exemplo, na Trácia e na Panfília (II 247 ) .
Meleágrides: irmãs d e Meleagro (VIII 5 2 0 , 535).
Meleagro: herói de Cálidon, filho de Alteia e de Eneu, irmão de Dejanira (VIII 270, 299,
324, 3 85 , 4 14, (425] , 437, 446, 5 15 , IX 149), ou também de Alteia e Marte (VIII
437 ) . Morre conslUilido por chamas; as irmãs transformam-se em pássaros do tipo
das pintadas.
Melicertes: filho de Aramante e de Ino-Leucótoe, bisneto de Agenor por parte da mãe,
metamorfoseado no deus marinho Palémon (IV 522, 563 ); cf. Palémon.
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 425

Mémnon: filho de Titono (irmão de Príamo) e de Aurora, metamorfoseado em ave de ra­


pina; as aves saídas das suas cinzas eram as Memnónides (XIII 579, 595 , 600) .
Memnónides: aves saídas das cinzas de Mémnon (XIII 618).
Ménades: 'loucas', designação das Bacantes, devotas dos rituais báquicos (XI 20); d. Ba-
cantes.
Ménalo: montanha na Arcádia (1 2 16, II 4 15, 442 , V 608).
Mendes: cidade de Egipto, junto ao delta do Nilo (V 144).
Ménefron: homem que cometeu incesto com a sua filha Cilene na Arcádia, e com a sua
mãe Bifade (VII 3 86).
Menelau: rei de Esparta, irmão de Agamémnon e esposo de Helena (XII 623 , XIII 1 9 1 ,
203 , 3 5 9 , XV 162, 805 ) ; d. Atridas.
Menetes: soldado lício morto por Aquiles na guerra de Tróia (XII 1 16, 127).
Menta: ninfa transformada em hortelã (X 730).
Meónia (1): primitivo nome da Lídia, região da Ásia Menor (II 252 , VI 5, 1 03 , 149) .
Meónia (2) : designação da Etrúria com referência aos marinheiros que desrespeitaram
Dioniso e se transformaram em golfinhos (III 583 , IV 423 ) .
Mera: mulher que s e metamorfoseou e m cadela (VII 3 62 ) .
Mercúrio (gr. Hermes) : filho d e Júpiter e Maia, mensageiro dos deuses, apaixonado por
Admeto; o seu monte sagrado era o Cileno; os atributos eram o caduceu, uma es­
pada curva e asas nas sandálias (ou no chapéu) (1 669, 673 , 682 , 7 13 , II 685 , 697 ,
704, 708, 7 14, 720, 726, 74 1 , 804 , 818, 834, IV 288, 3 84, 754, V 176, 33 1 , VIII 627 ,
XI 3 04, 3 12 , XIII 146, 2 9 1 ) .
Meríones: herói cretense, companheiro d e Idomeneu na guerra d e Tróia (XIII 358).
Mérmero: Centauro que participa na luta contra os Centauros (II 3 05 ) .
Mérops: rei dos Etíopes, esposo d e Clímene e alegado p a i Faetonte (1 763 , I I 1 84).
Mês: personificação (II 25).
Messápia: região do sul de Itália (XIV 5 13 ) .
Messene: capital d a Messénia ( VI 4 1 7 ) .
Messénia: região n o sudoeste d o Peloponeso (II 679, XII 549).
Messina: cidade da Sicília (XIV 17).
Mestra: filha de Erisícton, que tinha o poder de se metamorfosear no que quisesse (VIII
738-739, 847 , 872 , 878).
Metimna: cidade na ilha de Lesbos (XI 55).
Métion: pai de Forbas de Siene, no Egipto (V 74).
Mícale (1): promontório na Jónia (II 223 ) .
Mícale (2) : feiticeira, mãe d o Lápita Orio (XII 263 ) .
Micenas: cidade d a Argólide, pátria de Agamémnon (VI 4 14, XII 34, XV 426, 428).
Míconos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades (VII 463 ) .
Midas: rei d a Frígia, que transformava tudo e m ouro e que ganhou umas orelhas d e burro
(XI 92, [ 1 05 ] , 1 06, 1 62 , 174) .
Migdónia: região da Ásia Menor, derivado de um lendário rei, Mígdon, equivalente neste
contexto à Lídia (II 247 , VI 44) .
Mileto: filh o d e Apolo e Déjone, pai d e Cauno e d e Bíblis, fundador d a cidade d o mesmo
nome (IX 443 , 447 , 488, 489, 635 ) .
426 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Mílon: Mílon d e Crotona, célebre atleta grego (XV 229).


Mimas: promontório da Ásia Menor, defronte a Quios (II 222 ) .
Minerva (gr. Palas Atena): irmã d e Júpiter, deusa d a sabedoria e das artes, patrona d a ci­
dade de Atenas (II 553 , 563 , 567 , 580, 588, 7 1 0, 7 12 , 749, 752 , 765 , 783 , 788, 794,
834, III 102, 127, IV 34, 38, 755 , 799, V 46, 250, 263 , 270, 296, 336, 375, 645, 755 ,
798, VI 1 , 23 , 26, 36, 44, 5 1 , 70, 129, 135, 335, 3 85 , VIII 250, 252 , 264, 275 , 548,
664, XII 15 1 , 360, XIII 99, 337, 3 8 1 , 654, XIV 468, 475, XV 709).
Miníades: as três filhas do rei Mínias; Leucipe, Arsipe e Alcítoe, que se metamorfosearam
em morcegos (IV 32, 3 89, 425 ).
Mínias (1): os Argonautas, assim chamados por o chefe da expedição, Jasão, ser bisneto
de Mínias, rei de Orcómeno (VI 72 1 , VII 1, 8, 1 15 , 120).
Mínias (2 ) : rei de Orcómeno, na Beócia, pai das três Miníades (IV 1 , 32, 3 89, 425 ) .
Minos: filho de Júpiter e Europa, rei d e Creta, esposo d e Pasífae e pai d e Ariadne (VII
456, 47 1 , 48 1 , VIII 6, 23 , 24, 42, 43 , 45, 52, 64, 95 , 152, 157, 174, 1 87, IX 437, 44 1 ) .
Minotauro: monstro metade touro, metade homem, filho d e Pasífae, esposa d e Minos, e
de um touro (VIII 155, 156, 169, 170).
Minturnas: cidade do sul do Lácio, junto à foz do Garigliano (XV 7 1 6).
Mirmidões: homens originários de formigas que sofreram uma metamorfose em seres hu­
manos (VII 654).
Mirra: filha de Cíniras, de quem teve Adónis, transformada no arbusto da mirra (X 3 12 ,
3 17 363 , 3 6 9 , 402, 44 1 , 476, 504, 506, 520).
'
Míscelo: filho de Alémon de Argos e fundador de Crotona, na Calábria (XV 20, 26, 48).
Miseno: companheiro de Eneias, filho de Éolo (3 ), sepultado num cabo ainda hoje cha­
mado Capo Miseno (XIV 1 03 ) .
Mísia: região d a Ásia Menor (XV 277) .
Misme: velha que recebe Deméter (Ceres) e lhe serve uma bebida, quando Ascálabo troça
da deusa (V 448).
Mitridates: nome de uma dinastia de reis do Ponto; o mais famoso é Mitridates VI que foi
derrotado por Pompeio em 63 a.C., quando o reino do Ponto passa a região cliente
de Roma (XV 756).
Mnemósine: deusa da memória, mãe das Musas (chamadas Mnemónides), seduzida por
Júpiter disfarçado de pastor (V 268, 280, VI 1 14).
Molossos: povo semibárbaro, que habitava no extremo noroeste da Grécia, o Epiro; to­
mam o nome do rei epónimo Molosso, filho de Neoptólemo e Andrómaca, e neto de
Aquiles (I 227 , XIII 7 1 7 ) .
Molpeu: partidário d e Fineu no combate contra Perseu (V 163 , 168).
Mónica: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 499).
Mopso: vate dos Lápitas, filho de Âmpix (VIII 3 1 6, 350, XII 455 , 456, 524, 527 ) .
Mopsópia: nome primitiva d e Atenas, tomado d o nome d e u m lendário rei d a cidade,
Mopsopo (VI 423 ) .
Mopsópios: nome primitivo dos atenienses tomado d o nome d o lendário rei Mopsopo ( V
661).
Morfeu: filho do Sono (XI 634, 647, 67 1 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 427

Múlciber: outro nome de Vulcano (II 5, IX 263 , 423 , XIV 533 ) .


Múnico: rei dos Molossos, n o Epiro, cujos filhos (três rapazes e uma filh a ) tentaram esca­
par a um ataque de salteadores que lançaram fogo ao palácio, e se metamorfosearam
em pássaros (XIII 7 17 ) .
Muníquia: porto próximo de Atenas ( I I 709) .
Musas: nove deusas, patronas das artes (V 255 , 268, 280, 309, 3 3 3 , 530, 664, VI 2, XV
622) ; referência a uma em particular (U rânia: V 294, 3 3 7; Calíope: X 148).
Mútina: cidade no norte de Itália, a moderna Modena (XV 822) .
Nabateus: povo d a região de Nabateia, na Arábia (I 6 1 , V 163 ) .
Náiades: ninfas d a água, divindades das fontes e rios (I 642, 690, II 3 2 5 , III 505 , 1V 49,
289, 304, 329, 356, VI 329, 453 , VIIl 580, IX 87 , 657 , X 9, 5 13 , XI 48, XIV 328, 557,
786).
Nape: 'Vale', uma das cadelas da matilha de Actéon (III 2 14).
Nápoles: ver Parténope.
Nar: rio do Lácio, afluente do Tibre, hoje Nera (XIV 330).
Narciso: filho do rio Cefiso e da náiade Liríope, metamorfoseado em flor (III 346, 35 1 ,
370).
Narícia: cidade na Calábria, no extremo sul de Itália, fundada por Lócrios de Nárico (XV
705).
Nárico: cidade na Lócride, reino de Lélex, pátria de Ájax, filho de Oileu (VIII 3 12 , XIV
468).
Nasamones: povo do Norte de África (V 129).
Náuplio: pai de Palamedes (XIII 39, 3 1 0).
Naxos: ilha do mar Egeu, também designada Dia, onde foi abandonada Ariadne por
Teseu e salva por Dioniso, metamorfoseando a sua grinalda na constelação Coroa
(III 63 6, 640, 649, 690, VIII 174).
Nebrófono: 'Matador de cervos' , um dos cães da matilha de Actéon (III 2 1 1 ) .
Nedimno: Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas ( XI I 350).
Néfele ( 1 ) : ninfa do séquito de Diana (III 1 7 1 ) .
Néfele (2 ) : primeira esposa d e Atamante, rei d e Tebas, mãe d e Frixo e Hele ( XI 1 96).
Néfele (3 ): mãe de Centauro (pai dos Centauros), como nuvem (XII 504).
Neleu: filho de Neptuno e da ninfa Tiro, rei de Pilos, pai de Nestor (II 690, VI 4 1 8, XII
553 , 558, 577).
Nemeia: região da Argólide (IX 197, 236).
Némesis (1): deusa da vingança, associada à cidade de Ramnunte, na costa na Ática, perto
de Maratona, onde havia um famoso santuário (III 406, XIV 694 ) .
Némesis (2 ) : cidade n o extremo sul d e Itália ( XV 52).
Némon: soldado lício às ordens de Sarpédon, morto por Ulisses (XIII 258).
Neoptólemo: também com o nome de Pirro, filho de Aquiles e de Deidamia (XIII 155,
455 ).
Neptuno (gr. Posídon): deus dos mares, irmão deJúpiter e de Plutão (I 275 , 33 1 , II 270, 291,
293 , 574, lV 533 , 539, 798, V 370, VI 75, 1 15, VIII 598, 602, 603 , 85 1 , IX l , X 605, 639,
665, XI 26, 148, 202, 207, 558, XII 25, 72, 93 , 144, 197, 198, 205, 556, 580, XIII 854).
428 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Nereides: ninfas d o mar, filhas d e Nereu (1 3 0 1 , V 1 7 , XI 3 6 1 , XIII 899, XIV 264). Refe­
rência a uma Nereide em particular (Tétis: XI 258, XII 93 ; Psâmate: XI 3 80; Gala­
teia: XIII 749, 858).
Nereto: cidade de Calábria (XV 5 1 ) .
Nereu: deus d o mar, esposo d e Dóris, pai d e cinquenta filhas, a s Nereides, entre a s quais
Tétis e Galateia (1 187, II 268, VII 685 , XI 2 19, 3 6 1 , XII 24, 94, XIII 162, 742 ) .
Nérito: monte d e Ítaca, considerado por Vergílio e Ovídio como ilha (XIII 7 12, XIV 159,
564).
Nessa: Centauro, filho de lxíon e Néfele, morto por Hércules (IX 1 0 1 , 1 08, 1 12 , 1 19, 12 1 ,
13 1 , 153 , XI I 308, 454) .
Nestor: rei d e Pilas, filho d e Neleu, famoso pela sabedoria e provecta idade (VIII 3 13 ,
365, XI I 169, XII 537, 542, 577, XIII 63 , 64, XV 83 9).
Nictélio: 'Noctumo', um dos epítetos gregos de Baco (IV 15).
Nicteu (1): pai de Antíope (VI 1 1 1 ) .
Nicteu (2) : companheiro d e Diomedes, metamorfoseado e m gaivota (XIV 504).
Nictímene: filha de Epopeu, metamorfoseada em coruja (II 592, 593 ) .
Nileu: suposto filho d o Nilo, partidário d e Fineu n o combate contra Perseu (V 187).
Nilo: rio do Egipto (1 422, 728, II 254, V 1 87 , 324, IX 774, XV 753 ) .
Ninfas: divinidades menores, que habitavam nos bosques, fontes e campos (1 192 etc.).
Nino: rei e fundador de Nínive, esposo de Semíramis (IV 88).
Níobe: filha de Tântalo e de Díone, esposa de Anfíon, rei de Tebas; transformou-se em rocha
no monte Sípilo de onde brota uma nascente (VI 149, 155, 165, 2 1 1 , 273 , 287, 403 ).
Nisa: local lendário na Índia, onde as ninfas locais criaram Baco (111 3 14).
Niseu: 'o de Nisa' , epíteto de Baco (IV 13 ) .
Nisa: filho d e Pandíon, irmão d e Egeu, rei d e Mégara, pai d e Cila, apaixonada por Minas,
metamorfoseado em águia marinha (VIII 8, 17, 35, 90, 126).
Nixo: constelação também chamada Engónasis, geralmente considerada a constelação
Hércules (VIII 182).
Nixos: divindades propiciadoras dos partos (IX 294).
Noite: personificação (IV 452, VII 1 92, XI 607 , XIV 404, XV 3 1 ).
Nómia: ninfa apaixonada pelo pastor Dáfnis; rejeitada, metamorfoseou-o em pedra (IV
277).
Nonácris: montanha na Arcádia (1 690, II 4 10, VIII 426).
Nórico: região entre a Rétia e a Panónia, a sul do Danúbio, parte da actual Áustria (XIV
7 12).
Noto: vento do sul, também designado Austro (1 264).
Numa: Numa Pompílio, segundo rei de Roma, tradicionalmente relacionado com a for-
mulação das estruturas religiosas da cidade (XV 4, 480, 486).
Numício: rio do Lácio (XIV 328, 599).
Númidas: povo da Numídia, em África (XV 754).
Numitor: rei de Alba, irmão de Amúlio (XIV 773 ) .
Nuvem: ver Néfele (3 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 429

Oceano: divindade marinha, esposo de Tétis (Il 5 10, Vll 267 , IX 499, 594, XIII 292, 95 1 ,
XV 12, 30, 830).
Ocírroe: 'Rio veloz', filha do centauro Quíron e da ninfa Caricio, metamorfoseada em
égua (Hipe ou Hipo) (II 63 8).
Odrísios: povo da Trácia, junto ao Hebro (VI 490, XIII 554).
Ofeltes: um dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado em golfinho (III
605 , 64 1 ) .
Ófio: pai d e Combe (VII 3 83 ) .
Ofíon: gigante, rei dos Titãs antes d o tempo d e Crono e Reia, destronado e lançado no
Tártaro por Júpiter, pai do centauro Âmico, que toma parte na batalba contra os Lá­
pitas (XII 245).
Ofiúco: constelação (VIII 1 82 ) .
Ofiúsa: 'a das serpentes', nome dado a várias ilhas, sobretudo a Chipre e Rodes (X 230).
Oileu: rei dos Lócrios, pai de Ájax menor (XII 622) .
Óleno ( 1 ) : pai de Ege, que s e transformou e m cabra; mais tarde, metamorfoseou-se e m es­
trela na constelação Auriga (III 594).
Óleno (2) : pai de Téctafo, um dos Lápitas que toma parte na batalha contra os Centauros
(XII 433 ) .
Óleno (3 ) : esposo d e Leteia; metamorfoseado com a esposa em rochedo n o monte Ida,
por Leteia se ter vangloriado de ser mais bela que uma deusa (X 68).
Olíaros: ilha do mar Egeu (VII 469) .
Olímpo ( 1 ) : montanha entre a Tessália e a Macedónia, lendária morada dos deuses (I 155,
2 12, II 60, 225, VI 487, VII 225 , IX 499, XIII 761).
Olímpo (2) : flautista, discípulo e hipotético filho do sátira Mársias (VI 3 93 ) .
Onetor: guardião dos rebanhos d e Peleu (XI 348).
Onquesto: cidade de Beócia (X 605).
Ops: deusa itálica, irmã e esposa de Saturno (IX 498).
Órcamo: rei de Babilónia, pai de Leucótoe (IV 2 12 , 236).
Orco: outro nome para o reino da morte (XIV 1 16).
Orcómeno ( 1 ) : cidade da Arcádia (V 607)
Orcómeno (2) : cidade da Beócia (VI 416).
Oréades: ninfas dos montes (VIII 787 ) .
Oresítrofo: 'criado nos montes', u m dos cães d a matilhade Actéon (III 23 3 ) .
Orestes: filho de Agamenón e d e Clitemnestra, vinga a morte d o pai matando a mãe e
Egisto (XV 490) .
Orfeu: poeta da Trácia, filho de Apolo e Calíope, esposo de Eurídice (X 3 , 1 1 , 12, 50, 64,
79, 89, 143 , XI 1, 5, 8, 22, 23 , 44, 66, 92) .
Orfne: 'Escuridão', ninfa d o mundo subterrâneo d a morte, mãe d e Ascálafo (V 539).
Onbaso: 'Montanhês', um dos cães da matilha de Actéon (III 2 10).
Oriente: (IV 20, 56, 197 , VII 266).
Orio: Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 262 ) .
Oríon: caçador, filho d e Euríale e Neptuno, metamorfoseado e m constelação (Oríon); p ai
das Corónides, a s filhas que s e sacrificaram para salvar a cidade d e uma epidemia
(VIII 207 , XIII 294, 692 ) .
430 GLOSS ÁRIO E Í-N D I C E

Oritia: filha d e Erecteu, rei d e Atenas, irmã de Prócris, esposa de Bóreas, mãe de Cálais e
Zetes (VI 694, 707 , VII 695 , 7 1 1 ) .
Orneu: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 3 02 ) .
Orontes: rio n a Síria (II 248).
Ortígia ( 1 ) : 'ilha das codornizes', antigo nome da ilha de Delas, berço de Apolo de Diana,
por isso apelidada Ortígia (I 694 , X'V 336).
Ortígia (2): 'ilha das codornizes', ilha junto a Siracusa na Sicília (V 499, 640)
Osíris: deus egípcio, esposo de Ísis (IX 693 ).
Ossa: montanha na Tessália (1 155 , II 225, VII 224, XII 3 1 9).
Ótris: montanha na Tessália (II 22 1 , VII 225, 352, XII 174, 5 12 ).
Outono: personificação da estação do ano (I I 29).
Pã: deus dos bosques e dos rebanhos (1 698, 705 , XI 147, 153, 160, 1 7 1 , XIV 515, 63 8).
Pactolo: rio da Lídia (VI 16, XI 87 ) .
Pafo ( 1 ) : cidade d e Chipre (X 290, 530).
Pafo (2) : filha de Pigmalião (X 297, 298).
Págasas: porto de Iolco na Tessália, de onde parte a nau Argo na expedição dos Argonau­
tas (VII 1, VIII 349, XII 4 1 3 , XIII 24).
Paládio: estatueta sagrada de Palas em Tróia (XIII 99).
Palamedes: filho de Náuplio, herói grego na guerra de Tróia; denunciou o logro de Ulis­
ses para escapar à guerra; mais tarde, Ulisses acusá-lo-á falsamente de trair a causa
dos gregos, forjando uma carta e escondendo ouro na sua tenda como prova de su­
borno (XIII 38, 56, 308, 3 10).
Palante (1): filho de Pandíon, rei de Atenas, irmão de Egeu, pai de Clito e Butes (VII 500,
665, 666).
Palante (2) : filho dos Titãs Crio e Euríbia, pai de Aurora numa versão (noutra versão os
pais de Aurora são os Titãs Hiperíon e Teia) (IX 42 12, X'V 191, 7 0 1 ) .
Palas: epíteto d a deusa grega Arena, Mínerva e m Roma (11 553 , 567, 7 12 , 834 , III 1 0 1 , IV
38, V 46, 263 , 336, 375, VI 23, 26, 36, 44, 70, 129, 135, VII 399, 723 , VIII 252 , 275 ,
XII 15 1 , 360); cf. Minerva.
Palatino: um dos montes de Roma, berço de Rómulo e Remo; no tempo de Ovídio, aí vi­
via Augusto (1 176, XIV 333, 622 , 822 , X'V 561).
Palémon: filho de Aramante e lno-Leucótoe, metamorfoseado em divindade marinha (IV
542, XIII 9 1 9) ; cf. Melicertes.
Palene: península na Macedónia (X'V 356).
Palestina: região no Médio Oriente (V 145)
Palestinos: naturais da Palestina (IV 45 ) .
Palicos: irmãos gémeos, filhos d e Júpiter, que na cidade d e Palica, na Sicília, eram consi­
derados deuses protectores da fecundidade e do juramento, e relacionados com os
fenómenos vulcânicos (V 405 ) .
Palidez: personificação (VIII 790) .
Palilias: festa em honra da deusa Pales, celebrada em Roma a 2 1 de Abril, dia da fundação
da Cidade (XIV 774).
Palínuro: piloto da nau de Eneias (XIV 88).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 43 1

Pancaia: terra imaginária rica em incenso, especiarias e essências aromáticas, situada no


mar Vermelho, no extremo do Como de África (X 307, 478).
Pandíon: rei de Atenas, pai de Procne e Filomela e filho de Erictónio (VI 427 , 436, 495,
520, 634 , 666, 675, XV 430).
Pândroso: uma das filhas de Cécrops (II 558, 738). Ver Aglauro.
Pânfago: 'Devora tudo', um dos cães da matilha de Actéon (III 2 10).
Panonfeu: 'o que pronuncia todos os oráculos', epíteto de Zeus (Júpiter) (XI 198).
Pânope: cidade da Fócide (III 19).
Panopeu: herói fundador e epónimo da cidade de Pânope; um dos participantes na ca­
çada ao javali de Cálidon (VIII 3 12 ) .
Panto: pai d e Euforbo, herói troiano que infligiu a primeira ferida a Aquiles, morto por
Menelau (XV 1 6 1 ) .
Paquino: ponta sudeste da Sicília ( V 3 5 1 , XIII 725 ).
Parcas: as três deusas do destino, Cloto, Láquesis e Atropo (II 654, V 532, VIII 452 , XV
781).
Paretónio: região no norte de África (IX 77 3).
Páris: filho de Príamo e Hécuba, raptor de Helena e, em consequência, causador da
guerra de Tróia (VII 361, XII 4, 600, 609, XIII 200, 202, 501, XV 805).
Pamaso: monte da Fócide consagrado a Apolo e às Musas (1 3 17 , 467 , II 22 1 , IV 643 , V
278, XI 165 , 339).
Paros: ilha no mar Egeu do arquipélago das Cídades (III 4 1 9, VII 465 , VIII 22 1 ) .
Parrásia: cidade n a Arcádia, e, por extensão, designando a Arcádia (II 460, VIII 3 15 ) .
Parténio: monte e bosque entre a Argólide e a Arcádia (IX 188).
Parténope: antigo nome de Nápoles (XIV 101, XV 7 1 1 ) .
Pasífae: filha d o Sol, esposa d e Minos e mãe d e Ariadne, Deucalião, Glauco, Fedra e Mi-
notauro (VIII 122, 136, 156, 542 , IX 736, XV 500).
Pátaros: cidade na Lícia, famosa pelo templo e oráculo de Apolo (1 5 16).
Patras: cidade costeira na Acaia (VI 417).
Pátroclo: neto de Actor, herói grego da guerra de Tróia, amigo de Aquiles, morto por Hei­
tor (V 74, VIIl 308, XIII 273 ).
Pavor: personificação (IV 485 ) .
Péan: ' o curador', epíteto d e Apolo, como deus d a medicina; originariamente u m deus in­
dependente, logo assimilado a Apolo (1 566, XIV 720, XV 535).
Peante: filho de Táumaco, pai de Filoctetes (IX 23 1 , XIII 45, 3 13 ) .
Pégaso: cavalo alado, nascido d o sangue d e Medusa, e autor d a fonte d e Hipocrene ( IV
786, V 257, 262 , V I 1 1 9, VII 1 , VIII 349, XI I 4 1 2 , XIII 24).
Peixes: constelação (X 78, 1 65).
Péla: cidade na Macedónia (V 3 02 , XII 254).
Pélagon: um dos participantes na caçada ao javali em Cálidon (VIII 360).
Pelasgos: nome para design ar os Gregos, a partir de povo lendário (VII 49, 13 1 , XII 7, 19,
6 1 3 , XIII 14, 128, 269, 572, XIV 562, XV 452 ) .
Pélates ( 1 ) : partidário d e Fineu n o combate d e Perseu (V 124).
Pélates (2) : Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 254).
432 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Peletrónio: região d a Tessália habitada pelos Centauros e Lápitas, que toma o seu nome
do rei epónimo dos Lápitas, Peletrónio (XII 452) .
Peleu: filho d e Éaco, irmão d e Télamon e Foco, marido d e Tétis e p ai d e Aquiles (VII 477,
669, 864, VIII 309, 380, XI 2 17, 238, 227, 244, 246, 250, 259, 266, 275, 284, 289,
349, 350, 379, 3 89, 398, 399, 407, XII 1 93 , 366, 3 65 , 387, 604, 616, XIII 15 1 , 155,
XV 856).
Pélias: irmão de Éson (VII 299, 3 04, 322 ) .
Pélion: montanha na Tessália (I 155 , VI I 224, 3 5 2 , XI I 75 , 5 1 3 , XIII 108).
Pélops: filho de Tãntalo e irmão de Níobe, pai de Atreu e Tiestes (VI 404, 4 1 1 , 414, VIII
623 ) .
Peloro: ponta nordeste d a Sicília (V 3 5 0 , XI I I 726, XV 706).
Pémenis: 'Pastora', uma das cadelas da matilha de Actéon (III 2 15).
Penates: divinidades romanas do lar, frequentemente significando a casa (I 17 4, 23 1 , 773 ,
III 539, V 155 , 497, 650, VII 574, VIII 9 1 , 637 , IX 446, 63 9, XII 55 1 , XV 864).
Penélope: esposa de Ulisses (VIII 3 15, XIII 3 0 1 , 5 1 1 , XIV 67 1 ) .
Peneu: rio n a Tessália, e respectivo deus, pai d e Dafne (I 452 , 472, 504, 525 , 544a, 570, II
243 , VII 230, XII 209).
Pentesileia: filha de Ares (Marte), rainha das Amazonas; tomou parte na guerra de Tróia
do lado de Príamo, morrendo às mãos de Aquiles (XII 6 1 1 ) .
Penteu: rei d e Tebas, filho d e Equíon e d e Agave, neto d e Cadmo, opõe-se à introdução
do culto dionisíaco na cidade e acaba despedaçado pela mãe e suas companheiras de
delírio (III 5 1 3 , 526, 532, 5 6 1 , 577, 692, 701, 706, 7 12 , IV 22, 429, V 5 1 3 , 701).
Peónia: região no norte da Macedónia (V 3 03 , 3 14).
Peparetos: ilha no mar Egeu (VII 470) .
Perdiz: sobrinho de Dédalo, metamorfoseado em perdiz (VIII 237, 242 , 255) .
Pérgamo: cidadela d e Tróia, designando, por extensão, Tróia (XII 445 , 5 9 1 , XIII 168,
2 1 9, 320, 349, 374, 507 , 520, XIV 467 , XV 442).
Pergo: lago vizinho à cidade de Hena, no centro da Sicília (V 3 86).
Periclimeno: filho de Neleu, irmão de Nestor; metamorfoseado em ave por Posídon, seu
avô, foi morto por Hércules (XII 556).
Perifante ( 1 ) : rei da Ática, esposo de Fene, metamorfoseados em águia e falcão respectiva-
mente (VII 400).
Perifante (2) : Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 449).
Perifetes: filho de Vulcano, salteador famoso do Epidauro (VII 437).
Perímele: ninfa amada por Aqueloo, metamorfoseada em ilha (VIII 5 9 1 , 605 ) .
Perrébia: região no noroeste da Tessália (XII 1 7 2 , 1 7 3 ) .
Perse: Oceãnide, m ã e d e Circe (IV 205).
Perséfone: nome grego de Prosérpina, divindade do mundo infernal da morte, esposa de
Plutão e filha de Deméter (Ceres) (V 469, X 15, 729) ; cf. Prosérpina.
Perses: pai de Hécate (VII 74).
Perseu: filho de Júpiter e de Dánae, salvador de Andrómeda (IV 6 1 1 , 63 9, 665 , 672, 697 ,
699, 7 1 8 , 730, 766, 770, 772, V 16, 30, 3 3 , 34, 56, 69, 79, 99, 128, 137, 167, 176, 178,
1 84, 190, 20 1 , 2 1 6, 236, 248, 250)
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 433

Pérsia: região da Ásia (I 62)


Pesto: cidade em Itália, a sul de Salemo (XV 708).
Pétalo: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 1 15 ) .
Petreu: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 327, 3 3 1 ) .
Peucécia: região d o golfo d a Apúlia, cujo nome s e deve a Peucécio, irmão d e Iápix, hoje
golfo di Manfredonia (XIV 5 13 ) .
Pico: rei d o Lácio, filho d e Saturno, metamorfoseado e m pica-pau (XIV 320, 3 3 6 , 342,
362 , 396, 397, 4 1 7) .
Piérides: jovens que competiram com as Musas, metamorfoseadas e m pegas (V 669).
Píero: pai das nove Piérides (V 302).
Pietas: deusa romana relacionada com a noção de dever, respeito e devoção à família e aos
deuses (VII 72 (= o Dever), IX 679, X 3 2 1 , 323)
Pigmalião: escultor de Chipre (X 243 , 252 , 275, 290).
Pigmeus: povo fabuloso (VI 90) .
Pilos: cidade na Élide, de que Nestor era rei (II 685 , VI 4 1 8, VIII 365 , XII 537, 542 , 550,
XIII 255, XV 83 9).
Pindo: monte de Tessália (I 57 1 , II 225 , VII 225 , XI 554).
Piracmo: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 460).
Píramo: jovem da Babilónia, enamorado de Tisbe, cujo sangue coloriu para sempre as ba-
gas da amoreira (IV 55, 7 1 , 105, 142 , 143 , 145).
Pirene: famosa fonte perto de Corinto (II 240, VII 391).
Pireneu: rei de Dáulis, que tenta violar as Musas (V 275, 287 ) .
Pireto: Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 449) .
Pireu: porto d e Atenas (VI 446).
Pirítoo: filho de Ixíon e amigo de Teseu (VIII 303, 404, 567, 612, XII 2 1 0 , 2 1 7 , 228, 330,
332, 333, 337).
Pírois: 'o de fogo' , um dos cavalos da quadriga do Sol (II 153 ) .
Pirra: filha d e Epimeteu, que era filho d o TitãJápeto, esposa d e Deucalião (1 3 1 9, 350,
3 84, 3 90, 3 95).
Pirro: outro nome de Neóptolemo, o filho de Aquiles (XIII 155).
Pisa: cidade da Élide, pátria de Aretusa (V 404, 494).
Pisenor: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 03 ) .
Pitágoras: famoso filósofo grego d a segunda metade d o século V I a.C., originário d a ilha
de Sarnas, funda uma escola filosófica em Crotona, no sul de Itália (XV 60).
Pítane: cidade costeira na Ásia Menor, perto de Pérgamo (VII 357 ) .
Pitecusas: n o passo ovidiano, aparentemente uma cidade n a ilha d e lschia n o mar Tirreno;
nome para as ilhas em frente ao cabo Miseno (lschia, Procida e Vivara) (XIV 89) .
Piteu: rei de Trezena, filho de Pélops (VI 4 1 8 , VIII 622 , XV 296, 506) .
Píticos: jogos celebrados em honra de Apolo, tomam o nome da serpente Píton, morta
pelo deus (1 447 ) .
Píton: serpente monstruosa morta por Apolo; este acontecimento d á origem aos Jogos Pí­
ticos, celebrados em Delfos (1 439, 459) .
Plêiades: sete filhas de Atlas e Plêione, irmãs das Híades, metamorfoseadas em aglome­
rado de estrelas (I 670 (= Maia), VI 174, XIII 293 ) .
434 GLOS SARIO E ÍNDICE

Plêione: mãe das Plêiades (II 7 43 ) .


Plêuron: cidade d a Etólia (VII 382, XIV 494).
Plexipo: um dos filhos de Téstis, rei de Plêuron, irmão de Alteia e de Toxeu, morto com
este pelo sobrinho Melagro na sequência da caçada ao javali de Cálidon (VIII 3 04,
434, 440).
Plutão: rei do mundo subterrâneo, irmão de Júpiter e Neptuno: cf. Dite.
Pó: rio no norte de Itália, que desagua no mar Adriático (II 258).
Polidectes: rei de Serifo, pretende de Dánae; incumbiu Perseu de ir buscar a cabeça da
Górgone para poder apoderar-se de Dánae; no regresso, Perseu petrificou-o com a
cabeça (V 242 ) .
Polidégmon: partidário d e Fineu n o combate contre Perseu (V 85) .
Polidora: 'o que d á muitas prendas' , filho d e Príamo e Hécuba, morto por Polimestor
(XIII 432, 530, 536, 629).
Polifemo: Ciclope, enamorado de Galateia (XIII 744, 755, 757, 765 , 772, 780, 860, 876,
882, XIV 174, 249, XIV 167).
Polimestor: 'o dos mil artifícios ' , rei da Trácia, acolhe Polidora, filho de Príamo e de Hé­
cuba, e mata-o, após roubar o tesouro que o pai deste lhe confiara (XIII 43 1 , 436,
530, 55 1 , 554).
Polinices: irmão de Etéocles, filho de Édipo, ataca o irmão para se apoderar do poder so-
bre Tebas (IX 405 ) .
Polipémon: avô de Alcíone a neta d e Sínis (VII 401 ) .
Palites: companheiro d e Ulisses ( XIV 25 1 ) .
Políxena: filha d e Príamo e Hécuba (XIII 448, 460, 483 ).
Pólux: gémeo de Castor (VIII 3 0 1 , 3 72, XII 401 ) . Ver Castor.
Pomona: uma das Hamadríades do Lácio, ninfa dos bosques como divindade das árvores
de fruto, amada por Vertumno; pomum em latim significa maçã e, em geral, frutos
(XIV 623 , 7 7 1 ) .
Pompeio: Sexto Pompeio, filho d e Pompeio Magno, o opositor político d e César, opôs-se
militarmente aos sucessores deste, em particular Octaviano (mais tarde Augusto)
(XV 825 ) .
Ponto: região d e Ásia Menor, correspondendo e m geral à parte noroeste d a actual Tur­
quia; foi um reino helenístico independente até à queda de Mitridates VI em 63 a.C.
(XV 755) .
Portáon: pai d e Eneu, avô d e Dejanira e Meleagro (IX 12, VIII 542 ) .
Prétides: filhas d e Prero, curadas por Melampo d o desvario d e crerem ser vacas ( XV 326).
Preto: irmão de Acrísio e pai das Prétides, petrificado pela cabeça da Medusa (V 238, 239).
Príamo: último rei de Tróia, esposo de Hécuba (XI 757, XII 1 , 608, XIII 99, 201 404, 409,
470, 481, 5 1 3 , 5 19, 596, 722, XIV 437, 474).
Príapo: deus da procriação e da fecundidade, dos jardins e dos vinhedos (IX 348, XIV
640).
Prítanis: soldado lício às ordens de Sárpedon, morto por Ulisses (XIII 258).
Proca: rei de Alba (XIV 622 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 435

Procne: filha de Pandíon, irmã de Filomela e esposa de Tereu, metamorfoseado em ando­


rinha (VI 428, 433 , 440, 468, 470, 563 , 580, 599, 603 , 609, 619, 634, 64 1 , 653 , 667,
668).
Prócris: filha de Erecteu e esposa de Céfalo (VI 682 , VII 694, 707 , 708, 712, 726, 824,
842) .
Procrustes: nome d e um salteador que actuava no caminho d e Mégara a Atenas, morto
por Teseu (VII 438).
Prometeu: filho do TitãJápeto, pai de Deucalião (I 82 , 390).
Propétides: jovens que passavam a vida a prostituir-se, metamorfoseadas em pedra (XI
22 1 , 238).
Próquite: ilha na costa perto de Nápoles, hoje Procida, do nome da mulher troiana, pa­
rente de Eneias, que aí foi enterrada (XIV 89) .
Proreu: um dos marinheiros tirrenos que atacam Baco, metamorfoseado em golfinho (III
634) .
Prosérpina (gr. Perséfone): filha d e Ceres e Júpiter, esposa d e Plutão depois d e este a ter
raptado (II 261, V 376, 3 9 1 , 414, 438, 470, 489, 505 , 530, 543 , 554, 566, 572, VI 1 14,
VII 249, X 15, 46, 730, XIV 1 14 - 1 15). Cf. Perséfone.
Protenor: um dos Cefenes no combate entre Fineu e Perseu (V 98).
Protesilau: herói grego na guerra de Tróia, esposo de Laodamia, morto às mãos de Heitor
(XII 68).
Proteu: divindade do mar que podia metamorfosear-se em múltiplas formas (II 9, VIII
73 1 , XI 22 1 , 249, 255 , XIII 918).
Psâmate: Nereide violada por Éaco, mãe de Foco; enviou um lobo medonho contra os re-
banbos de Peleu (XI 3 80, 398).
Psécade: ninfa do séquito de Diana (III 1 7 1 ) .
Psófis: cidade d a Arcádia, no vale d o Erimanto ( V 607 ) .
Ptérelas: 'Alado' , um dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 1 2 ) .
Pudor: personificação (VII 7 2 ) .
Pulidamante: herói troiano, filho d e Pântoo e Frôntis ( XI I 547 ).
Quersidamante: soldado lício às ordens de Sarpédon, morto por Ulisses (XIII 259) .
Quimera: monstro da Lícia que lançava fogo pela boca, parte leão, parte serpente, parte
cabra (VI 339, IX 647 ) .
Quios: ilha d o mar Egeu, n a costa d a Ásia Menor (III 598).
Quirino: nome de Rómulo após a sua divinização (XIV 607, 828, 834, 837, 85 1 , XV 572,
754, 862, 863 ).
Quirites: sabinos originários de Cures, fixados no monte Quirinal que passaram a desig­
nar os cidadãos de Roma (XIV 823 , XV 600).
Quíron: Centauro filho de Fílira e Saturno, pai de Ocírroe, mestre de Aquiles e Esculápio
(II 630, 633 , 676, VI 126, VII 352 ) .
Quíone: filha d e Dedalión, amada por Apolo e por Mercúrio ( XI 3 0 1 ) .
Radamanto: filho d e Júpiter e Europa, irmão d e Minas e juiz nos infernos ( IX 436, 440).
Ramnunte: cidade costeira na Ática, perto de Maratona, famosa pelo santuário a Némesis
(III 406, XIV 694).
43 6 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Rânis: ninfa d o séquito de Diana (III 1 7 1 ) .


Rectidão: personificação (VII 72).
Régio: porto no sul de Itália, defronte a Messina (XIV 5 , 47).
Rémulo: rei de Alba, irmão de Ácrota (XIV 616, 617).
Reno: rio na Germânia (II 258).
Reso: rei da Trácia, morto por Ulisses (XIII 98, 249).
Reteu: cabo na Tróade, onde se pensava estar o túmulo de Ájax (XI 1 97 ) .
Reto ( 1 ) : Centauro que toma parte n a batalha contra o s Lápitas (XII 27 1 , 285, 293 , 300).
Reto (2 ): partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 38).
Rexenor: companheiro de Diomedes, metamorfoseado em gaivota (XIV 505 ) .
Rife u : Centauro que toma parte na batalha contra o s Lápitas (XII 352).
Ródano: rio na Gália que desagua no Mediterrâneo (II 258).
Rodes: ilha e cidade no mar Egeu (VII 365 , XII 574).
Rodo: 'rosa', filha de Neptuno e Vénus, ninfa epónima da ilha de Rodes, amada pelo Sol,
mãe dos Helíades (IV 204).
Ródope: cadeia de montanhas na Trácia (II 222, VI 87 , 589, X 1 3 , 50, 77).
Roma: cidade no Lácio (1 2 0 1 , XIV 800, 837 , 844, 850, XV 43 1 , 597 , 586, 625 , 736, 744,
746, 798, 80 1 , 863 ) .
Romanos: povo de Roma (XIV 808, XV 637 , 654, 826, 877 ) .
Romécio: cidade costeira n o sul d e Itália, n a Magna Grécia, n o mar Jónio ( XV 705).
Rómulo: filho de Marte e de Ília (também chamada Reia Sílvia), pai do povo romano
(XIV 773 , 780, 799, 805 , 810, 823 , 837 , 840, 845 , XV 2, 560, 625) .
Rumor: personificação, também designada Fama ( IX 1 3 7 , XII 43 , 62) .
Rútulos: povo d o L ácio, cujo chefe, Turno, enfrentou Eneias, quando este chegou para
obter um território de fixação (XIV 455 , 528, 567 ) .
Sabeus: habitantes d e Sabeia, região n o sudoeste d a Arábia, cuja capital Saba era célebre
pelos produtos aromáticos, como incenso e mirra (X 480) .
Sabinos: povo da Itália, a nordeste de Roma, sendo a capital Cures, governada por Tácio
(XIV 775, 797, 80 1 , 833 , XV 5).
Salamina: cidade de Chipre, fundada por Teucro procedente da Salamina no Peloponeso
(XIV 760).
Salentinos: povo que habitava na Calábria e Messápia, entre os Apeninos e o golfo de Ta­
rento (XV 5 1 ) .
Sálmacis: fonte n a Cária, perto d e Halícarnasso, e respectiva ninfa, que possuía águas má­
gicas (IV 285, 306, 337, 346, XV 3 1 9).
Samos (1): ilha do mar Egeu junto à costa da Ásia Menor, consagrada a Juno; lugar de nas-
cimento de Pitágoras (VIII 22 1 , XV 60, 6 1 ) .
Samos (2 ) : ilha d o mar Jónio junto a Ítaca (XIII 7 12 ) .
Sardes: principal cidade d a Lídia ( XI 137, 152).
Sarpédon: filho de Júpiter e Laodamia, herói lício na guerra de Tróia combatendo do lado
troiano, morto por Pátroclo (XIII 255) .
Sátiras: divindades campestres d o séquito d e Baco (1 1 93 , 692 , IV 2 5 , V I 1 10, 3 8 3 , 3 9 3 , XI
89, XIV 63 7 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 437

Saturno (gr. Crono): soberano do mundo antes de Júpiter; pai de Júpiter, Juno, Neptuno
e Plutão (1 1 13 , 163 , 6 1 3 , 616, 722, II 435, 53 1 , III 27 1 , 294, 3 3 3 , 3 65, IV 448, 464,
V 330, 420, VI 1 16, 126, VIII 703 , IX 176, 243 , 498, XIV 320, 7 8 1 , XV 858).
Século: personificação (II 26).
Sedição: personificação (XII 6 1 ) .
Sémele: filha de Cadmo, irmã d e Agave, lno, Autóne, e mãe d e Baco (III 260, 2 7 4 , 287,
292 , 329, 5 10, 520, V 329, IX 642 ).
Semíramis: rainha da Babilónia, filha de Dércetis, metamorfoseada em pomba (IV 47, 58,
V 85 ) .
Sereias: filhas d e Aqueloo, companheiras d e Prosérpina, metamorfoseadas e m ninfas do
mar, metade mulher, metade pássaro, cujo canto seduzia os marinheiros causando­
-lhes a morte (V 555, XIV 87).
Serifo: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cídades (V 242 , 252, VII 464).
Serpente: constelação (II 138, 173 , VIII 182).
Síbaris ( 1 ) : cidade na Lucârúa, no sul de Itália, no golfo de Tarento (XV 5 1 ) .
Síbaris (2 ) : rio perto d e Síbaris, hoje Coscile (XV 3 15).
Sibila: sacerdotisa de Apolo em Cumas, perto de da baía de Nápoles, uma fundação de
descendência da Eubeia (XIV 1 04, 1 2 1 , 135, 154, XV 7 12).
Sicília: ilha do Mediterrâneo, também designada Sicânia ou Trinácia, hoje Sicília (V 347,
361, 412, 464, 495 , 476, VII 65 , VIII 283 , XIII 724, 770, XIV 7 , XV 279, 706, 825 ).
Ver Sicânia, Trinácia.
Sídon: cidade do Peloponeso, a oeste de Corinto (III 2 16).
Sídon (1): cidade costeira na Fenícia, a moderna Sídon no Líbano (II 840, III 129, IV 572,
X 267 , XIV 79).
Sídon (2 ): designação dada à cidade de Tebas, fundada por habitantes de Sídon na Fení-
cia (IV 543 ) .
Siene: cidade d o Alto Egipto (V 7 4).
Sífnos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cídades, moderna Sifanic (VII 465).
Sigeu: cabo perto de Tróia (XI 197, XII 71, XIII 4).
Sileno: sátiro, ancião ébrio do séquito de Baco (IV 26, XI 90, 99, XIV 639).
Silvano: divinidade romana dos campos (1 193 ) .
Sílvio: rei d e Alba (XIV 6 1 0 ) .
Simeto: rio a sul d o Etna, na Sicília, e respectivo deus, avô d e Ácis, o amado d e Galateia
(XIII 750, 879, 886).
Simoente: rio da região de Tróia (XIII 324).
Simplégades: rochedos à entrada do Bósforo que chocavam um no outro esmagando os
barcos que passavam; após a passagem da nau Argo, ficaram fixos para sempre (VII
62, XV 338).
Sínis: salteador no Istmo de Corinto morto por Teseu (VII 440).
Sinuessa: cidade da Campârúa (XV 7 15).
Sípilo (1): monte entre a Lídia e a Frígia, onde Níobe permaneceu petrificada (VI 149,
3 1 1)_
Sípilo (2 ): filho de Níobe (VI 230).
43 8 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Siracusa: cidade n a Sicília, fundada pela dinastia dos Baquíades d e Corinto ( V 408, 499,
640) .
Siringe: n infa amada por P ã , metamorfoseada e m canavial, a partir d o qual o deus fabrica
a sua flauta (1 69 1 , 705 ) .
Siros: ilha d o mar Egeu, uma das Cíclades (VII 464).
Sirte: uma de duas áreas na costa entre Cartago e Cirene, proverbialmente perigosas para
os navios (VIII 120) .
Sísifo: filho de Éolo (2), célebre pelo castigo eterno de ter de subir um pedregulho por
uma encosta acima, que, prestes a atingir o cume, rola de volta para baixo (IV 460,
466, X 44, XIII 26, 3 1 ) .
Síton: u m hermafrodíta (IV 280).
Sitónia: região da Trácia, derivado de Síton, lendário rei epónimo, e, por extensão, a Trácia
(VI 587, XIII 57 1 ) .
Sol: deus ( II 1 , 3 2 , 154, 162, 3 94, 75 1 , 770, II 1 , 32, 153 , 162 , 3 04, 329, 3 8 1 , 394, IV 170, 192,
2 14, 234, 238, 24 1 , 157, 270, 488, 634, VII 96, 209, 663 , IX 736, Xl 353 , XIII 852, 853 ,
XIV 10, 3 3 , 346, 375, XV 30, 192); ver também Apolo, Febo, Hiperíon, Titã.
Sono: personificação (VIII 823 , XI 586, 593 , 623 , 646).
Surrento: cidade de Campânia, na ponta sul do Golfo de Nápoles (XV 7 10).
Sussurros: personificação (XII 61)
Tácio: rei dos Sabinos (XIV 775, 804, 805 ) .
Tages: nascido de u m torrão d e terra, ensinou aos Etruscos a arte dívinatória dos arúspi­
ces (XV 558).
Taígete: uma das Plêiades, filhas de Atlas e Plêione, transformadas na constelação do
mesmo nome (III 595).
Támaso: cidade de Chipre (X 644) .
Tánais: rio da Cítia, hoje o Don ( I I 141).
Tântalo ( 1 ) : rei da Frígia, filho de Júpiter e da ninfa Pluto, pai de Níobe e de Pélops, avô
de Atreu e Tiestes, bisavô de Agamémnon e Menelau, condenado no Inferno a uma
fome e sede eternas (embora tivesse alimento e bebida a rasar os lábios) por tentar
roubar o alimento dos deuses (IV 458, VI 172, 2 1 1 , 240, 408; X 4 1 , XII 616).
Tântalo (2): filho de Níobe, neto do rei da Lídía do mesmo nome (VI 140).
Tarento: cidade do sul de Itália, na Calábria, Magna Grécia (XV 50).
Tarpeia: jovem romana do templo de Rómulo, que traíu os Romanos ao deixar entrar os
inimigos Sabinos na cidadela do Capitólio; como prémio pela traição, foi morta pe­
los próprios inimigos sob os seus escudos (XIV 776); dá o nome a um rochedo no
Capitólio (hoje, rocca Tarpea) , associada ao castigo a infligir aos traidores (XV 866).
Tártaro: nome para o mundo subterrâneo da morte (1 1 13 , II 2 6 1 , V 3 7 1 , 423 , VI 675 , X
20, XI 670, XII 257, 523 , 619); por vezes é designado por Caos (X 30, XIV 404).
Tartesso: região sul da Península Ibérica, por extensão a Hispânia (XIV 416).
Taumante ( 1 ) : filho de Ponto (o rnar) e Geia (a terra); de Electra, uma das filhas do Oceano,
teve por filhas as Harpias e Íris (IV 480, XI 648, XIV 846).
Taumante (2): Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 3 03 ) .
Tauro: maciço d e montanhas na Ásia Menor (II 2 17).
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 439

Tebanos: habitantes de Tebas, na Beócia (VI 162).


Tebas ( 1 ) : cidade na Beócia, fundada por Cadmo (III 131, 548, 553 , 561, IV 4 1 7 , 543 , V
254, VII 763 , IX 403 , XIII 685 , 692 , XV 427 , 429).
Tebas (2): cidade na Mísia, perto de Tróia, destruída por Aquiles (XII 1 09, XIII 173 ).
Téctafo: Lápita que toma parte na batalha contra os Centauros (XII 433 ).
Tégea: cidade da Arcádia, pátria de Atalanta, moderna Paleo-Episcopi (VIII 3 17, 380).
Tejo: rio da Hispânia (II 25 1 ) .
Télamon: filho d e Éaco, irmão d e Peleu e Foco, e pai d e Ájax (VII 476, 477, 647 , 669,
864, VIII 309, 378, XI 2 16, XII 624, XIII 22, 123 , 145, 15 1 , 1 94, 23 1 , 266, 3 2 1 , 346).
Teléboas: Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 447 ) .
Télefo: rei da Mísia, filho de Hércules, fundador da cidade d e Pérgamo (XII 7 1 2 , XIII
17 1 , 770, 77 1 ) .
Télemo: adivinho d o país dos Cíclopes, que havia vaticinado a Polifemo que viria u m dia
Ulisses e que o cegaria (XIII 770, 77 1 ) .
Telestes: pai d e lante, prometida d e Ífis (IX 7 17).
Teletusa: esposa de Ligdo, mãe de Ífis (IX 682, 696, 703 , 766) .
Telquines: espécie de génios da ilha de Rodes, filhos do Ponto e da Terra, com poderes
mágicos e dotados da faculdade de fazer chover, granizar e nevar, e cujo olhar tinha
efeitos maléficos (VII 3 65 ).
Témese: cidade na Calábria, no sul de Itália (VII 207, XV 708).
Témis: deusa da justiça (I 3 2 1 , 379, IV 643 , VII 762 , IX 403 , 418).
Temores: personificação (XII 60).
Tempe: vale do rio Peneu na Tessália (I 569, VII 222 , 3 7 1 ) .
Ténaro: cabo n o sul d a Lacónia, famoso pelo templo d e Posídon e pelo mármore (II 247,
X 13, 1 83 ) .
Ténedos: ilha n a costa d e Tróia, famosa pelo templo d e Apolo (I 5 16, XI I 109, XIII 174).
Tenos: ilha do mar Egeu do arquipélago das Cíclades, junto a Delos (VII 469).
Teófane: filha de Bisaltes, amada de Neptuno, metamorfoseada em ovelha (VI 1 17).
Tereu ( 1 ) : rei da Trácia, esposo de Procne, metamorfoseado em poupa (VI 424, 433 , 455 ,
473 , 478, 490, 497 , 520, 549, 615, 635, 647 , 65 1 , 66 1 , 682).
Tereu (2) : Centauro que toma parte na batalha contra os Lápitas (XII 353 ) .
Termodonte: rio n a Capadócia, que desagua n o Mar Negro, atravessando o território das
Amazonas (II 249, IX 1 89, XII 6 1 1 ) .
Terodamante: 'Matador d e feras' , um dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 3 3 ) .
Téron: 'Caçador', um dos cães d a matilha d e Actéon (III 2 1 1 ) .
Terra: personificação da terra, identificada por vezes com a deusa grega Geia (I 12, 157,
544, II 272, 301, VII 1 96).
Terror: personificação (IV 485 , VIII 790).
Terses: hóspede do rei Ânio (XIII 68 1 , 683 ) .
Tersites: héroi grego na guerra d e Tróia, famoso pelas atitudes cobardes (XIII 23 3 ).
Téscelo: partidário de Fineu no combate com Perseu, petrificado ao olhar para a cabeça
de Medusa (V 1 82 ) .
440 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Teseu: rei d e Atenas, filho d e Egeu (ou d e Neptuno), pai d e Hipólito e amigo de Pirítoo,
vencedor do Minotauro; abandona Ariadne em Naxos (também chamada Dia), que
o ajudara a vencer o monstro (VII 404, 42 1 , 433, VIII 174, 263 , 303, 406, 548, 55 1 ,
560, 565, 573 , 726, IX 1 , XI I 227 , 237, 342, 355, 359, XV 493 , 498, 504, 856).
Téspias: cidade na Beócia, perto do monte Hélicon (V 3 09).
Tessália: região nordeste da Grécia (VII 222 , VIII 768, XII 1 90) .
Téstio: rei de Plêuron, teve numerosos filhos, entre os quais Alteia (a mãe de Meleagro) ,
Leda, Hipermestra, Ificto, Evipo e o s Testíadas (Plexipo e Toxeu) (VIII 304, 433 ,
452, 473 , 487 ) .
Testor: pai d o adivinho Calcas (XII, 19, 2 7 ) .
Tétis ( 1 ) : deusa do mar, esposa d e Oceano ( I I 6 8 , 1 5 6 , 5 0 9 , IX 499, XI 784, XIII 95 1 ) .
Tétis (2) : ninfa d o mar, filha d e Nereu e d e Dóris, mãe d e Aquiles (XI 2 17 , 22 1 , 226, 237,
258, 264, 400, XII 93 , 1 94, XIII 162, 288, 3 0 1 ) .
Teucro ( 1 ) : primitivo rei d e Tróia (XIII 706) .
Teucro (2) : filho de Telámon e Hesíone, fundador de Salamina em Chipre (XIII 157, XIV
699).
Teucros: nome para os Troianos, derivado do nome do antigo rei Teucro (XIII 705, 728,
XIV 72); cf. Troianos.
Teutrante: rei da Mísia (II 243 ) .
Tiberino: rei d e Alba, d e quem o rio tomou o seu nome (anteriormente chamava-se Ál­
bula) (XIV 614).
Tibério: enteado de Augusto e seu sucessor (XV 836).
Tibre: rio que atravessa o Lácio e Roma, chamado primitivamente Álbula (II 259, XIV
426, 448, 615, XV 432 , 624, 728) .
Tício: gigante condenado ao castigo de ter o fígado eternamente a ser debicado por abu­
tres, por tentar violar Latona (IV 457, X 43 ) .
Tideu: pai d e Diomedes ( XI I 622 , XI II 6 8 , 2 3 9 , 3 5 0 , XV 769).
Tiestes: irmão de Atreu, filho de Pélops e Hipodamia; Atreu serviu os filhos de Tiestes
num banquete, e um outro filho seu, Egisto, vingou o pai, matando Agamémnon, fi­
lho de Atreu (XV 462).
Tifeu: gigante vencido por Júpiter e esmagado sob o Etna (III 304, V 321, 325, 348, 352,
XIV 1 ) .
Tigre: 'Tigre', um dos cães da matilha d e Actéon (III 2 17 ) .
Timolo: ver Tmolo.
Tíndaro: rei de Esparta, esposo de Leda e falso pai dos Dioscuros Castor e Pólux, e de
Helena (Júpiter é, de facto, o pai) e Clitemnestra (VIII 3 0 1 , XV 232).
Tínia: região da Ásia Menor, identificada com a Bitínia e a Frígia (VIII 7 1 9).
Tioneu: 'filho de Tíone' , epíteto de Baco (IV 13 ) .
Tirésias: famoso adivinho cego d e Tebas, mudou d e sexo duas vezes (III 3 2 3 , 348, 5 1 1 , VI
157) .
Tiríntia: Alcmena, p o r s e r d e Tirinto ( V I 1 12 ) .
Tirinto: cidade da Argólide, pátria d e Hércules (VII 410, IX 6 6 , 268, XII 5 64, XIII 401)
Tiro ( 1 ) : cidade da Fenícia, famosa pela púrpura (II 845 , III 35, 258, 539, V 51, 390, VI 61,
223 , IX 3 4 1 , X 2 12, XI 166, XV 287 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 44 1

Tiro (2): filha de Salmoneu; de Neptuno, disfarçado de rio Enipeu, tem Pélias e Ndeu; de
Creteu tem Éson, Féretes e Amintáon (VI 1 17 ) .
Tirrénia: Etrúria, região d a Itália a norte d o Lácio, chamda a partir d o herói epónimo Tir-
reno (XIV 452 ) .
Tirreno: m a r que banha a costa ocidental d e Itália (XIV 8).
Tirrenos: outra designação para os Etruscos (III 576, 696, IV 24, XIV 8, X'I! 553 , 577).
Tisbe (1): jovem da Babilónia, amada de Píramo, cujo sangue coloriu para sempre as ba-
gas da amoreira (IV 55, 7 1 , 93 , 99, 1 1 6, 143 , 145 ) .
Tisbe (2 ): cidade d a Beócia (XI 300).
Tisífone: uma das Fúrias (IV 479, 98 1 ) .
Titã ( 1 ) : o Sol, filh o d o Titã Hiperíon (1 10, I I 1 1 8, VI 438, VII 3 98, X 7 8 , 174, XI 257,
XIII 968, XIV 14, 376, 3 82, 43 8).
Titã (2 ) : Hiperíon, pai do Sol (IV 192 , 24 1 ) .
Titã (3 ) : Jápeto, pai d e Epimeteu, avô d e Pirra ( 1 3 95 ).
Titã (4) : Ceo, pai de Latona, avô de Diana (III 173 , VI 1 85, 346, 366)
Titono: irmão de Príamo, amado de Aurora, que obteve a imortalidade (IX 422 ) .
Tiepólemo: filh o d e Hércules (XII 5 3 7 , 574).
Tmolo (ou Timolo): montanha na Lídia e o deus a ela associado (II 2 17, VI 15, XI 86, 150,
156, 163 , 170, 194).
Toactes: partidário de Fineu no combate contra Perseu (V 147 ) .
Toante ( 1 ) : rei d e Lemnos, pai d e Hipsípile (XIII 400).
Toante (2 ) : filho de Andrémon (XIII 357 ) .
Tonante: epíteto d e Júpiter como deus dos trovões e dos relâmpagos (1 170, I I 466, XI
198, 3 1 9).
Tóon: soldado lício às ordens de Sarpédon morto por Ulisses (XIII 259).
Tóos: 'Ágil ' , um dos cães da matilha de Actéon (III 22 1 ).
Touro: constelação (II 80).
Toxeu: filho de Téstio, rei de Plêuron, irmão de Alteia e Plexipo, morto com Plexipo pelo
sobrinho Meleagro na sequência da caçada ao javali de Cálidon (VIII 3 04, 434,
44 1 ) .
Tracas: nome d e Tarracina, cidade n o Lácio, e m Itália, moderna Terracina { X'I/ 7 17 ) .
Trácia: região nordeste d a Grécia, compreendo a Macedónia Grega, a Macedónia e parte
da Bulgária (VI 87 , 424, 434, 66 1 , 682 , IX 194, X 83 , XI 1, 92 , XIII 436, 439, 537,
565 , 628).
Trácios: habitantes da Trácia (V 277 ) .
Tráquin: cidade d a Tessália, onde reinava Céix ( XI 2 6 9 , 283 , 35 1 , 5 0 2 , 627 ) .
Trezena: cidade d a Argólide ( VI 4 1 8 , VIII 567, X'I! 296, 506) .
Trinácria: Sicília (V 347, 476) .
Triões: constdação da Ursa Maior, dita os Sete Triões, segunda transfiguração que sofreu
Calisto, sendo a primeira em ursa (1 64, II 17 1 , 528, X 447 ) . Ver Hélice.
Tríopas: pai de Erisícton e avô de Mestra (VIII 75 1 , 872) .
Triptólemo: filh o d e Celeu, rei d e Elêusis (V 645, 653 , 66 1 ) .
442 GLOSSÁRIO E ÍNDICE

Tritão: deus d o mar, filho e trompeteiro de Neptuno, génio d o lago Tritónis n a Líbia, e pai
de Palas, a companheira de Minerva (I 3 3 1 , II 8, VI 3 84, XIII 919).
Tritónia: epíteto de Minerva, ver Tritónis (VI 3 85 ) .
Tritónis ( 1 ) : lago n a Líbia o u ri o n a Beócia, consagrado a Minerva (frequente o epíteto Tri-
tónia) (II 783 , 794, III 127, V 250, 270, 645 , VI 1 , VIII 548).
Tritónis (2) : lago porventura na Calcídica, se não for o anterior (XV 358).
Triunfo: personificação (1 561, III 127, VIII 358).
Trívia: epíteto de Diana, identificada com Hécate e com a Lua, como ' deusa dos cruza­
mentos' (II 4 1 6 ) .
Tróia: cidade na Frígia, junto a o estreito dos Dardanelos, geralmente identificada com
Hissarlik na Turquia (VIII 3 66, IX 3 , XI 200, 208, 215, 758, XII 20, 26, 587, XIIl 23 ,
53 , 169, 1 97 , 226, 246, 325, 336, 339, 343 , 348, 375, 379, 404 , 420, 429, 481, 500,
534, 538, 566, 577, 623 , 655 , 72 1 , XV 160, 422 , 440, 442 , 770) ; cf. Ílion; Pérgamo.
Troianos: naturais de Tróia (XI 773 , XII 66, 605 , XIII 9 1 , 269, 274, 42 1 , 481, 534, 538,
566, 572, 702, 705 ( = Teucros), 728 ( = Teucros), XIV 72 ( = Teucros) , 75, 1 10, 155,
220, 245 , 456, XV 437, 73 1 ) .
Túrios: cidade n a Calábria, n o sul d e Itália, junto a Síbaris ( XV 52).
Tumo: rei dos Rútulos no Lácio, adversário de Eneias quando conquistou este território
para fixar os Troianos fugidos da destruição de Tróia, metamorfoseado em garça­
real (XIV 45 1 , 460, 530, 540, 567, 573 , 574, XV 773 ) .
Tuscos: outra designação para o s Etruscos (III 625 , XIV 223 , 615).
Ulisses: herói da guerra de Tróia, esposo de Penélope, filho de Laertes e rei de Ítaca (XII
625, Xlll 6, 14, 18, 48, 55, 62 , 65, 83 , 92 , 98, 103 , 107, 124, 240, 3 05 , 342, 3 87, 425 ,
485, 7 12, 773 , XIV 7 1 , 159, 169, 1 80, 1 92, 226, 242 , 289, 563 , 67 1 ) .
Urânia: 'a Celeste' , um das nove Musas, dedicada à astronomia ( V 260, 294, 337)
Venilia: ninfa, mãe de Canente, amada de Pico (XIV 334).
Vénulo: soldado rútulo, enviado a Diomedes para pedir auxilio (XIV 457, 460, 5 12 ) .
Vénus (gr. Afrodite): deusa d o amor, mãe d e Cupido e d e Eneias, esposa d e Vulcano ( 1
463 , III 132, 294, 323 , IV 1 7 2 , 1 90, 258, 288, 3 7 9 , 3 84, 53 1 , V 3 3 1 , 3 64, 3 7 9 , VII
802, IX 424, 482, 553 , 634, 728, 734, 796, X 80, 229, 239, 270, 277, 291, 324, 434,
524, 525, 529, 640, 7 1 7 , XI 3 06, XII 198, XIII 624, 674, 759, 875, XIV 27, 42, 1 4 1 ,
3 80, 477, 487, 494, 572, 587, 602, 634, 693 , 760, 783 , XV 3 86, 7 6 1 , 779, 803 , 816,
843 ) . Muitas vezes designa o próprio amor, matrimónio ou o acto sexual (Ili 294,
323 , IV 258, VI 460, IX 1 4 1 , 553 , 639, 728, 739, X 79, 324, 434, 548, XI 306, XII
198, XIII 875 , XIV 42, 1 4 1 , 3 80, 634). Cf. Ericina.
Vénus Espectadora: era venerada num templo em Salamina, na ilha de Creta (XIV 760) .
Verão: personificação da estação do ano (II 28).
Vertumno: deus itálico das estações, enamorado de Pomona, a deusa dos frutos (XIV 642,
678, 765 ) .
Vesta: deusa romana d o fogo doméstico e da cidade ( XV 73 1 , 7 7 8 , 864, 865 ) .
Vírbio: ' o que fo i homem duas vezes', nome d e Hipólito, ressuscitado p o r Esculápio ( XV
544).
Vitória: personificação e deusa (VI 82, VIII 1 3 ) .
GLOSSÁRIO E ÍNDICE 443

Vulcano: deus do fogo e da metalurgia, esposo de Vénus, por vezes personificando o pró­
prio fogo (II 1 06, 757, IV 173 , 1 85 , VII 1 05 , 437, IX 25 1 , XII 614 (=fogo), XIII
3 14). Ver Múlciber.
Vulrurno: rio da Campânia, que corre a norte de Nápoles, moderno Volturno (XV 7 14).
Xanto (1): rio junto a Tróia, chamado também Escamandro; as duas vezes que ardeu foi
quando houve o combate contra Hércules, por Laomedonte se recusar a pagar o
preço pela construção das muralhas de Tróia, e depois na própria guerra de Tróia (II
245 ).
Xanto (2): rio na Lícia (IX 646) .
Zancle: nome primitivo da cidade de Messina, na Sicília (XIII 729, XIV 5, 47, XV 240) .
Zéfiro: vento de oeste, também chamado Favónio, geralmente considerado brando e suave
(I 64, 1 08, XIII 726, XV 700).
Zetes: filho de Bóreas e Oritia, que, juntamente com o seu irmão Cálais, participou na ex­
pedição dos Argonautas, e libertou Fineu das Harpias (VI 7 1 6, VII 3 ) .
Acabou de imprinúr-se
em Outubro de 2014
na Pentaedro (Lisboa)

DEPÓSITO LEGAL 3 8 1 154/14


On M j} iJ>
PEÓNIA

M A C E D O �I A

M A R J Ó N I O

Principais elementos geográficos

citados nas Metamorfoses de Ovídio


. Atos
LFM�ésti•
W.
Hif

...
M. Dír1dimo

CIROS
LÍDIA

M A R

PATMOS �

Você também pode gostar