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Sem medo
Sem medo
) Alberta
nona ( ABERTA
AL BERTO [1948-1997]
ㅡ 50 POEMAS DE O MEDO ㅡ
restam-me os ténis esquecidos, e a cidade evade-se por todos os seus irradiavas malícia quando te aproximaste montado na velha bicicleta.
buracos. a camisa deste-ma tu em troca doutra que estivesse limpa. a suja fendias o asfalto com um sorriso, franzias o nariz para ajeitares os óculos.
visto-a eu quando imito a tua voz, e esse estremecer de ombros ao enrolares falámos noite dentro, era verão. uma inocência coalhava em redor, nas
as mangas. reencontro-me depois no cheiro a suor do colarinho. mas os ténis, árvores, no ar. descobrimos um prédio abandonado, em ruínas quase. a brisa
esses, durmo com eles, e na escuridão da imensa cama fodo com os seus entrava pelo que restava das janelas partidas. cheirava a mijo e a merda, a
buracos. trapos queimados, a lixo. teu corpo emanava perfume a medronho e a after-
-shave barato. mordia-te a orelha, desapertava o brinco e tu zangavas-te.
amanhecia. hoje passei por ali, já demoliram a casa. sinto-me recompensado
quando penso em ti, e o mundo se turva ao décimo copo de vinho. ah! como
são tristes as casas destinadas à demolição.
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é verão, o crepúsculo rebenta sobre a pele e a memória deambula. o contam que um dos seus amigos lhe pediu um copo de água. levantou-se
olhar vai afagar as ancas estreitas dum rapazito. sigo a sua correria em e foi buscá-lo. voltou da cozinha estendendo-lhe o copo, não sem antes ter
direcção ao supermercado para um recado à mãe, quem sabe... passa por mim, mergulhado o sexo dentro dele, por brincadeira. o outro bebeu e riram muito.
olha-me fixamente, espanta-se. é muito jovem ainda, o seu sorriso está a noite cansou-os, a manhã precipitava-se pela janela. entreabriu as pálpebras,
ligeiramente manchado de chocolate. encosto-me a uma roulotte, bebo, sem sentiu rente ao peito a estranha respiração do gigantesco e húmido insecto.
que ele suspeite desta súbita paixão. é muito novo ainda, bebo mais, até que a
solidão se perde na espessura turva do vinho. às vezes morre-se tanto, e tão
cedo!
espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes
PARECE QUE LUCRÉCIO DIZIA... borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura de teu nome insinuar-se-á
o olhar saboreia o morno vinho gota a gota, junto ao coração
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, árvores reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas
em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre de tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito
mais tarde, escrevia eu
poderiam as mãos trocar de ofício
AUTO-RETRATO COM REVÓLVER o revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível
sulco de uma bala
bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
CAMPOS DA BEIRA-MAR DOZE MORADAS DE SILÊNCIO
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melharucos esses pássaros que se alimentam de abelhas estamos quase no tempo do vinho maduro
verdelhões corvos pombos entravam pela janela soube-o pelo aroma que se desprende de teu sexo
mal falavas neles pousavam no sexo nas mãos intenso mel transportado pelas fulvas abelhas
nos lábios quentes de esperma oferenda de verão árduo... cal secreta
e sorrias recomeçando outra ladainha onde garatujámos corações a canivete
tingir a ponta dos dedos e do sexo envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer
na tinta permanente dos corpos... desejar-te amassar com os dentes uma morte íntima
de olhos fechados sentado num jardim público durante a sonolência balbuciante das papoulas prolongar
a vida deste verão até ao mais próximo verão
de vez em quando para que os corpos tenham tempo de amadurecer
sublinhar determinadas palavras que se confundem ao mel
escutar atentamente o latejar fogoso da terra... sentir colher em teu sexo o sumo espesso
os escaravelhos enrolarem excrementos verdes e no calor molhado da noite seduzir as luas
junto ao rumor imperceptível das casas desabitadas o riso dos jovens pastores desprevenidos... as bocas
do gado triturando o restolho... as correrias inesperadas
ler apressadamente um jornal ou uma carta esquecida das aves rasteiras
escrever um bilhete postal:
e crescerei das fecundas terras ou da morte
Cheguei bem. Escrevo-te um dia destes que sufoca o cio da boca
subirei com a fala ao cimo de teu corpo ausente
recolher folhas secas delgadas hastes quebradas transmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes
pedaços de musgo para uma insuspeita colecção
minúsculos lamentos escondidos pelos bichos
no jardim... perseguir um cão sem rumo que te recorda
CINCO FOTOGRAFIAS PARA ALEXANDRE DA MACEDÓNIA
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hoje é dia de coisas simples apesar de Alexandre ter um olho de cada cor
(Ai de mim! Que desgraça! a fotografia tinha o rigor das imagens a preto e branco
O creme da terra não voltará a aparecer!) a noite desabara sobre os corpos estendidos
coisas simples como ir contigo ao restaurante a lua surgia como um tentáculo de gelo
ler o horóscopo e os pequenos escândalos apercebíamos mãos voláteis por entre as estátuas
folhear revistas pornográficas e um de nós teimava em esconder-se no interior de uma delas
demorarmo-nos dentro da banheira
os répteis temiam a pedra
na aldeia pouco há a fazer com seus inalcançáveis corações de quartzo
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das chávenas pulsando
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos uma cabeça azulada pousa docemente sobre os joelhos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa a noite era um estuário de dedos emaranhados
beberemos café na memória húmida das bocas... alguém contou:
sorriremos às pessoas e às coisas a lebre é capaz de mudar de sexo em plena correria
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se eu não acreditei
(se estivesses aqui!) os olhos vigiavam o exterior do corpo
em silêncio olharíamos a foz do rio quando te curvaste para colher um medronho
e o brincar agitado do sol nas mãos das crianças descalças
hoje pelas fendas da janela entrava uma fragrância rubra
e a luz espessa deitava-se
sobre as areias cobertas de lodo
pouco sabíamos acerca do ciúme
deambulávamos à procura de um deus fogoso e terno
ou dalgum poço onde nos debruçarmos
estava a ouvir-te
que desarrumo propositado vai pelo quarto
eu bordava um pano com flores de estonteante açafrão
dormitava sentado à janela espiava o mar
o corpo coberto de dúvidas e medo
eras novo ainda a lâmpada suja alumia o olhar debruçado para as veias
mal sabias reconhecer os teus próprios erros é o cansaço do excessivo crepúsculo... o receio
e o uso violento que de noite eu fazia deles que a dor se me agarre às mãos
esta cama de minerais acesos tento fugir deixar-te nessa prostração sem palavras
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo rasgo a espuma vegetal da voz... entro no corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca por uma sílaba mais aberta e untada
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido apago a fala a incandescência do sangue
onde a memória te imobilizou procuro o esperma... único alimento
que de repente me cega e sacode o coração
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes fotografo o interior do corpo
pela janela espio a paisagem destruída devasso os corredores dos ossos as distantes artérias
e o coração triste dos pássaros treme e quando encontro uma porta regresso à superfície da terra
onde um vulcão se extingue poro a poro... lentamente
quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela estendidos na erva
onde debruço a noite do rosto tocado... me despeço atentos à desolação dos corpos e da paisagem
os dedos tatuando promessas e profecias pelos ombros
as narinas abertas ao amargo iodo das areias... os olhos
alagados pelas visões doutro mundo... o medo da noite
cobrindo a pele com seus minúsculos guizos
depois
RUMOR DOS FOGOS
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19 de janeiro corpo
desejar que, repentinamente, o mar recuasse sempre até à linha do que te seja leve o peso das estrelas
horizonte significaria tê-lo de volta aqui, ao pé de mim, um instante mais tarde e de tua boca irrompa a inocência nua
a roçar-me as costas. dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa
desço com a lentidão ruiva das feras dizem que vive na transparência do sonho
ao nervo onde a boca procura o sul à beira-mar envelheceu vagarosamente
e os lugares dantes povoados sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
ah meu amigo nenhum ofício cantante
demoraste tanto a voltar dessa viagem o tenha convencido a permanecer entre os vivos
o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias
VIGÍLIAS
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os barcos são a imagem que resta para fugir quando aqui não estás
mas só as palavras nos embriagam o que nos rodeou põe-se a morrer
são labareda que devora os barcos e a memória
onde nos movíamos a janela que abre para o mar
esquecemos o que nos ensinaram continua fechada só nos sonhos
e se por acaso abríssemos os olhos me ergo
um para o outro abro-a
encontraríamos outra imobilidade outro abismo deixo a frescura e a força da manhã
outro corpo hirto escorrerem pelos dedos prisioneiros
latejando na imperceptível ferida nocturna da tristeza
acordo
pernoito na precária vida do fogo para a cegante claridade das ondas
este rumor de mãos ao de leve pelo corpo
adormecido na superfície do espelho um rosto desenvolve-se nítido
assalta-me o desejo incerto de te acordar além
e o medo de querer de novo tudo reinventar rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
homens cegos procuram a visão do amor é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
onde os dias ergueram esta parede rente aos grandes cinemas do mar
intransponível como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me
caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos ㅡ cantam sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de séculos
a linha do horizonte é uma lâmina se fizeres um movimento de farol com o cigarro
corta os cabelos dos meteoros ㅡ corta eu ㅡ que vou a passar ㅡ tudo verei
as faces dos homens que espreitam para o palco mas nada será meu
nocturno das invisíveis cidades porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate ㅡ nem o desejo se levantará
escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos para seduzir o corpo daquele que se ausentou
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios
mesmo assim conheço
adormecem sempre todas as esquinas da imunda cidade que amo
antes que a cinza dos olhos arda mesmo assim sofro de insónias ㅡ imito o noitibó
e se disperse o bêbado louco
gesticulo como aquele que já não sou e
no fundo do muito longe ouve-se outro não serei
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto mantenho-me de pé e fumo
dos incêndios dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
prosseguem caminho que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
com a voz atada por uma corda de lírios obrigados a vender o corpo já usado
os cegos aos insuspeitos violadores de poemas
são o corpo de um fogo lento ㅡ uma sarça
que se acende subitamente por dentro
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos e não voltaram
SIDA a telefonar