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AL BERTO

) Alberta
nona ( ABERTA
AL BERTO [1948-1997]
ㅡ 50 POEMAS DE O MEDO ㅡ

Al Berto, O MEDO, Porto, Assírio & Alvim, 2017.


ROULOTTES DA NOITE DE LISBOA
2

dilui-se o rosto na sulfurosa primavera da noite. uma claridade


desprende-se do interior da roulotte, ilumina. atrás de nós a noite é um
imenso subterrâneo de treva envenenada. ecoam vozes, passam os últimos
autocarros. danço sempre até que a manhã me roube os amantes imaginados,
disseste. eis o retrato do noctívago puto: cabelos de sombra húmida pelos
ombros, caídos para a testa, escondem o azulíneo do olhar. e a boca estreita
como lâminas, a sensual boca donde nasceriam, mais tarde, os cruéis beijos da
cidade. tem um risco de luz sobre a pálpebra, e no marfim dos dentes o
segredo doutro rapaz. era tarde. envolto na camisa de algodão move-se no
meu sonho. ouço um mar do outro lado do seu peito. amanhecia quando
enganaste teu pai, fingias esperar o autocarro. vieste comigo e fomos pela
sujidade dos néons à procura duma pensão.
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restam-me os ténis esquecidos, e a cidade evade-se por todos os seus irradiavas malícia quando te aproximaste montado na velha bicicleta.
buracos. a camisa deste-ma tu em troca doutra que estivesse limpa. a suja fendias o asfalto com um sorriso, franzias o nariz para ajeitares os óculos.
visto-a eu quando imito a tua voz, e esse estremecer de ombros ao enrolares falámos noite dentro, era verão. uma inocência coalhava em redor, nas
as mangas. reencontro-me depois no cheiro a suor do colarinho. mas os ténis, árvores, no ar. descobrimos um prédio abandonado, em ruínas quase. a brisa
esses, durmo com eles, e na escuridão da imensa cama fodo com os seus entrava pelo que restava das janelas partidas. cheirava a mijo e a merda, a
buracos. trapos queimados, a lixo. teu corpo emanava perfume a medronho e a after-
-shave barato. mordia-te a orelha, desapertava o brinco e tu zangavas-te.
amanhecia. hoje passei por ali, já demoliram a casa. sinto-me recompensado
quando penso em ti, e o mundo se turva ao décimo copo de vinho. ah! como
são tristes as casas destinadas à demolição.
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é verão, o crepúsculo rebenta sobre a pele e a memória deambula. o contam que um dos seus amigos lhe pediu um copo de água. levantou-se

olhar vai afagar as ancas estreitas dum rapazito. sigo a sua correria em e foi buscá-lo. voltou da cozinha estendendo-lhe o copo, não sem antes ter

direcção ao supermercado para um recado à mãe, quem sabe... passa por mim, mergulhado o sexo dentro dele, por brincadeira. o outro bebeu e riram muito.

olha-me fixamente, espanta-se. é muito jovem ainda, o seu sorriso está a noite cansou-os, a manhã precipitava-se pela janela. entreabriu as pálpebras,

ligeiramente manchado de chocolate. encosto-me a uma roulotte, bebo, sem sentiu rente ao peito a estranha respiração do gigantesco e húmido insecto.

que ele suspeite desta súbita paixão. é muito novo ainda, bebo mais, até que a
solidão se perde na espessura turva do vinho. às vezes morre-se tanto, e tão
cedo!
espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes
PARECE QUE LUCRÉCIO DIZIA... borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura de teu nome insinuar-se-á
o olhar saboreia o morno vinho gota a gota, junto ao coração
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, árvores reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas

(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os


movimentos forrados por uma película em matéria finíssima,
transparente, deixando contudo aperceber as modulações de seu corpo-
-rebuçado)

bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo


embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante de ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo

em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre de tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito
mais tarde, escrevia eu
poderiam as mãos trocar de ofício
AUTO-RETRATO COM REVÓLVER o revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível
sulco de uma bala

as palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos


o texto transparece na claridade das manchas de tinta
teço a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário, doem-me
estes gestos
estas coisas cobertas de pó sobre a mesa: papéis amarrotados, fotografias,
cartas interrompidas, objectos quebrados, sinais ténues de gordura e de
fundos de chávena
lápis, cigarros esboroados, o revólver

num dos cantos inacessíveis da casa, as aranhas vão construindo ninhos


diáfanos
segregam sábios labirintos em perigosa baba
sinto-me vazio, hoje
a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso
está tudo muito calmo, em redor da casa, o jardim quieto
poderia passar o dia a ler, por desfastio, à maneira dos príncipes persas
a tarde torna as madeiras rubras, aquece
os livros parecem de pedra em seu arrumo cauteloso

ao alcance está o revólver


perto da mão que nunca aprendeu a escrever, aquece ao simples contacto dos
dedos
a outra mão, a direita, definhou um pouco quando aprendeu o silencioso ofício

eu explico: hoje deve ser domingo


e a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza, sem
cessar
TRUQUE DO MEU AMIGO DA RUA TRUQUE DA POLAROID

ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina olhou-o dormir


olhar vazio varrendo a multidão, parei escorregou por entre-lençóis-quentes, virou-o
sorri e tu vieste, fomos andando a respiração coalhava pelas costas, ele finge dormir
os ombros tocavam-se, em direcção a casa solta um ligeiríssimo e desordenado resfolegar, ao sentir o sexo retirar-se
amanhã nem sequer falaremos disto
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me dormimos
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo de cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que te não tive outros dias em que a solidão é mais cruel olha-o só
esperei-te deitado, outro cigarro sentado aqui no meio do quarto
e ainda espero frente ao textos emendados, remediados, remendados
gosto dos corpos que riem, frescos ferido, ele masturba-se
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo depois acorda-o, conta uma história qualquer, beija-o
húmido da boca, que sempre percorre e descobre sorri-lhe com os lábios a tremerem de abelhas
ele continua a dormir, indiferente ao mel
tacteio-te de alto a baixo
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro vagueio pela casa
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te rente aos ângulos estreitos dos corredores, sem saber por onde fugir-me
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via

sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão


manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio de
autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda

e tuas mãos, recordo-me


sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, em sossegado sono
TRUQUE DO PÊSSEGO TRUQUE DO VENENO

vou levantar-me e morder um pêssego ofereço-te uma laranja


trincá-lo, para que o sumo escorra aveludado pela língua, e um travo de tenho sempre laranjas escondidas no fundo das algibeiras
natureza-morta se me cristalize na garganta berlindes como olhos assustados de pantera, cordéis encerados
terá Rubens pintado pêssegos nus? e Hockney quartos semelhantes a piscinas bons para estrangular
vazias? lâminas doces para abrir sinais de vida sobre a pele
ouço a música húmida do fruto, agitando-se e uma faca quebrada que me ajuda a recordar alguns nomes de cidade
na saliva desfaz-se o caroço, inicia-se no sangue a gestação da flor interior
desprendem-se sementes rugosas, estames inchados, pólenes levíssimos o pior é que nos jogos de laranjas, mesmo nos mais difíceis
o miolo açucarado do fruto lembra-me um rosto desgasto pelo vento quem PERDE GANHA
uma ilha de açúcar vem perturbar o sono sabemos que o veneno age sempre dos pés para a cabeça
depois, para que a lenda continue, pego num vaso estonteia
encho-o de estrume, semeio insónias espero, atento à última convulsão
finco os dentes na terra para lhe transmitir força
rego-a regularmente com cuspo e urina recente mais tarde, desato o cordel
retiro a faca profundamente enterrada, recuo um pouco
a minha vocação é o ilusionismo contemplo o sangue e a obra, esvazio as algibeiras
esta paixão que me prende à terra e ao sangue aéreo das pombas substituo os objetos, descalço as luvas
(escrevo sempre durante a noite, com uma presença etérea a meu lado) apago as impressões digitais, falsifico as fotografias
amanhã inicia-se mais uma primavera lavo demoradamente o sangue e o esperma da boca
e do caroço sepultado crescerá um puto nu com pele de pêssego comido saio para a rua, clandestino
o melhor, pensei eu procuro outro puto tardio pela cidade
era continuar a ser parecido comigo mesmo seduzo-o com a imagem deslavada duma laranja, recomeço
o inocente jogo
não sei se os meus vizinhos se inquietarão ao aperceberem estes jogos ilícitos
mas só estes me dão prazer
enquanto escrevo, despontam corpos esbeltos dos vasos
por entre as plantas e a loucura
onde o mais secreto desejo se mantém jovem
OFÍCIO DE AMAR O MEDO (1)
1982

já não necessito de ti 28 de maio


tenho a companhia nocturna dos animais e a peste o mar, vivemos em frente ao mar. aqui nos mantemos precariamente
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o vivos. sem fascínio, sem projectos, sem esperança, amamo-nos.
remorso quase anoiteceu, penso que não devia preocupar-me com mais nada que
não fosse escrever. mas o silêncio donde a escrita irrompe está muito perto
um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio daquilo que vivo. escrevo pouco, prefiro viver.
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração a noite incendeia o lado esquivo do coração, ouço-me atentamente,
não, não preciso mais de mim como se morresse. regresso a casa e à página em branco.
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto


deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo
tudo abandonei, já não consigo voar com as aves, nem possuo a imagem
dos rostos felizes. não me lembro onde larguei a velha gabardina que nos
abrigou tantos invernos. as estrelas cintilam sobre as pedras polidas pelas
marés. a cal estalada dos muros revela antigas paisagens. ignoro se
permanecerei aqui muito tempo.
24 de julho estávamos em julho, fechei o caderno contigo dentro, nunca mais voltei a
a noite jorra silêncio de estrelas e de mar, cobre de cintilações a terra apaixonar-me.
lavrada. vergam-se pinheiros à luz do luar, a resina enegrece os dedos. ouve-
-se o rebentar das ondas, adormeço. marulhares sobem ao peito entorpecido
pelo vinho e pelo haxixe.
olho-te dormir, a cabeça entornada sobre o meu ombro. sei que do meu
corpo doente fizeste a tua praia.

são duas da tarde, uma maneira de festejar a noite em pleno dia. estou
sozinho, almoço. o calor envolve-me como uma planta invisível, insaciável.
sufoca-me, beija-me os dedos cansados de tamborilar na mesa. o restaurante
está quase vazio.
do extremo longínquo doutra mesa olhas-me com insistência. sim, talvez
no próximo verão, quando o buço imitar um frágil bigode, quando tiveres
deixado de andar de bicicleta e vieres acampar sozinho. esboço um sinal
imperceptível, sorris. uma destas noites irei contigo para me devolveres o
olhar que te emprestei.
mas aproximaste-te, headphones, óculos escuros, uma luva negra na
mão esquerda, o cabelo revolto pelos ombros, um sorriso nos lábios capaz de
escurecer o dia.
invento uma paisagem para estar contigo, gasto os dias a passear pelos
campos à espera que voltes da praia. o tempo foi sempre a minha ruína...
caminho pela imensidão das águas, perco-te. anoto no caderno: esta
noite falaremos sobre uma paixão. que mais faremos com os corpos?
RETRATO DE UM AMIGO ENQUANTO BEBE

30 de julho íamos por noites de ciclone largar a tristeza


o crepúsculo daquele que escreve está repleto de seiva petrificada na à porta marítima das tabernas... éramos a sombra
aurora dos dias. que mancha o tampo da mesa oscilante
quando regressares, encontrar-me-ás moribundo ou metamorfoseado falávamos alto como fazem os marinheiros
na minha própria escrita. ao folheares os meus livros desprender-se-á deles bebíamos até cair
um cheiro amargo a plantas esmagadas, e não encontrarás mais nada a não ser
a brancura envenenada do papel. as palavras apagaram-se deles ao mesmo conheço este homem
tempo que eu me apaguei por dentro do teu silêncio. debruçado para o rosto indeciso do rapaz
a triste noite cai rente à janela, espalha nos vidros finíssimos sulcos de perguntava se havia algum mal no que fazia
areia orvalhada. são horas de te reinventar, cobrir-te o corpo com um novo eu olhava a televisão pedia mais vinho
alento de vida, até que a mudez nos vista definitivamente. interrogava-me
acordaremos depois para a lentidão dos gestos sempre repetidos, que secretos desejos teriam singrado
fumaremos do mesmo cigarro, beberemos café, conversaremos muito com aquele navio carregado de morte?
evitando que os olhares se toque, mas do segredo das palavras que nos cantam
nem um só sinal permanecerá. e a cidade crescia noite adiante sob a tempestade
o dia começou a refulgir nos espelhos. devem ser quase seis da manhã. os passos ecoavam apressados pelo cais
guardamos o precioso silêncio e o mistério destes minúsculos fingimentos. um ㅡ Como te chamas? perguntou
dia, quando a paixão vier também dormir no amanhecer, levantar-nos-emos mas o rapaz não respondeu... e nada em redor
daqui. nada diremos um ao outro, nem recordaremos a travessia dos desejos. tremeluzia
iremos suportando o destino daquilo que fomos na transumância da vida.
tu irás pela beleza andrógina dos adolescentes, e eu, pobre de mim, eu... o homem levantou-se
tentarei uma vez mais o regresso ao simulacro da vida: escreverei. indiferente à revelação da alba titubeou tossiu
apoiado no magro ombro do rapaz
desapareceram pelas ruas estreitas do mar
entre redes cordas quilhas e remos
onde se embarca para o medo esquecido de mais um dia
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
O DOMADOR DE LUAS com tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas

estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria


conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos

sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso


eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
que os dedos enlear-se-ão uns nos outros e sobre a pele
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor

bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar

La vie est une gare, je vais bientôt partir,


je ne dirai pas où.

calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
CAMPOS DA BEIRA-MAR DOZE MORADAS DE SILÊNCIO
3

melharucos esses pássaros que se alimentam de abelhas estamos quase no tempo do vinho maduro
verdelhões corvos pombos entravam pela janela soube-o pelo aroma que se desprende de teu sexo
mal falavas neles pousavam no sexo nas mãos intenso mel transportado pelas fulvas abelhas
nos lábios quentes de esperma oferenda de verão árduo... cal secreta
e sorrias recomeçando outra ladainha onde garatujámos corações a canivete

salmonetes golfinhos que se avistam no horizonte noite dentro


dos sonhos uma eira onde me refugiava no inverno embriago-me com vinho macio... sentado na desolação
dormia escondido na palha seca batia punhetas duma esplanada mal iluminada debaixo dos pinheiros
porque o cheiro a bosta e a feno me excitava o orvalho humedece o caderno em cima da mesa o lápis
a caneta um refrigerante intragável... tua ausência
zunia o silêncio dos campos da beira-mar pressentida na fresca seda dos caracóis
fustigados pela chuva de março íamos por veredas
enlameando nossas mágoas ainda adolescentes e mais além um valado de soturnas açucenas
uma árvore seca pássaros e canaviais... caminho
a manhã chegava encostando-se às vidraças por onde nunca me aventurei
fazia-se tarde
tinhas de voltar ao trabalho enquanto eu ficaria
estendido no chão
sob o peso dos nomes dos peixes e dos pássaros
o frémito de asas e barbatanas suspirado sobre a pele
no arrepio de quem não consegue viver sozinho
e nu
pensei que para sempre te perdia
7 8

tingir a ponta dos dedos e do sexo envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer
na tinta permanente dos corpos... desejar-te amassar com os dentes uma morte íntima
de olhos fechados sentado num jardim público durante a sonolência balbuciante das papoulas prolongar
a vida deste verão até ao mais próximo verão
de vez em quando para que os corpos tenham tempo de amadurecer
sublinhar determinadas palavras que se confundem ao mel
escutar atentamente o latejar fogoso da terra... sentir colher em teu sexo o sumo espesso
os escaravelhos enrolarem excrementos verdes e no calor molhado da noite seduzir as luas
junto ao rumor imperceptível das casas desabitadas o riso dos jovens pastores desprevenidos... as bocas
do gado triturando o restolho... as correrias inesperadas
ler apressadamente um jornal ou uma carta esquecida das aves rasteiras
escrever um bilhete postal:
e crescerei das fecundas terras ou da morte
Cheguei bem. Escrevo-te um dia destes que sufoca o cio da boca
subirei com a fala ao cimo de teu corpo ausente
recolher folhas secas delgadas hastes quebradas transmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes
pedaços de musgo para uma insuspeita colecção
minúsculos lamentos escondidos pelos bichos
no jardim... perseguir um cão sem rumo que te recorda
CINCO FOTOGRAFIAS PARA ALEXANDRE DA MACEDÓNIA
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hoje é dia de coisas simples apesar de Alexandre ter um olho de cada cor
(Ai de mim! Que desgraça! a fotografia tinha o rigor das imagens a preto e branco
O creme da terra não voltará a aparecer!) a noite desabara sobre os corpos estendidos
coisas simples como ir contigo ao restaurante a lua surgia como um tentáculo de gelo
ler o horóscopo e os pequenos escândalos apercebíamos mãos voláteis por entre as estátuas
folhear revistas pornográficas e um de nós teimava em esconder-se no interior de uma delas
demorarmo-nos dentro da banheira
os répteis temiam a pedra
na aldeia pouco há a fazer com seus inalcançáveis corações de quartzo
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das chávenas pulsando
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos uma cabeça azulada pousa docemente sobre os joelhos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa a noite era um estuário de dedos emaranhados
beberemos café na memória húmida das bocas... alguém contou:
sorriremos às pessoas e às coisas a lebre é capaz de mudar de sexo em plena correria
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se eu não acreditei
(se estivesses aqui!) os olhos vigiavam o exterior do corpo
em silêncio olharíamos a foz do rio quando te curvaste para colher um medronho
e o brincar agitado do sol nas mãos das crianças descalças
hoje pelas fendas da janela entrava uma fragrância rubra
e a luz espessa deitava-se
sobre as areias cobertas de lodo
pouco sabíamos acerca do ciúme
deambulávamos à procura de um deus fogoso e terno
ou dalgum poço onde nos debruçarmos

depois tocámo-nos como crianças desajeitadas


enumerámos as terras que dali se avistavam
e de manhã
quando os deuses cansados se recostam
em seus leitos vegetais e sobre os oceanos
2 surgem constelações de repente palpáveis
torna-se doce amar os adolescentes da Beócia
um jovem escravo servia o vinho
quando algumas gotas foram derramadas sobre a mesa de novo me obrigaste a inventar a insónia
em honra de Baco e a saciar a sede com a ambrósia de teus cabelos
reparei na delicadeza aquática de suas mãos
percorro teu rosto e a sombra que se impregna à toalha
ao inclinares-te
parece o centro sossegado duma rosa
nunca aprenderas a tocar cítara
valia-te a beleza do corpo
e o conhecimento nocturno de todas as salivas

lá fora... talvez em Delfos


os cascos dourados dos cavalos enterravam-se na poeira
os carros estavam prontos
das ilhas chegava o silêncio perturbador dos sonhos
atava as pontas duríssimas duma estrela em aço
este corpo viandante partirá ao amanhecer
a cidade movia-se
no fulgor cítrico dos pomares que a cercavam
lembro-me
tinhas quinze anos e o vinho era puro

de luz apagada fumávamos deitados


Alexandre levantou-se
para beijar as pálpebras de seu amigo ainda entregue ao sono
na sua infância Alexandre comia com os dedos
calei-me
4 o dia está límpido
um travo de sal arde-me na boca aflita
onde começará o esquecimento?
num outro lugar desejado desponta a flor do loureiro
e a cautela do sangue
um corpo de aromas longínquos rasga o espaço da fotografia
vertiginoso não se detém
um sátiro acenava-nos com um falo em couro vermelho
suspeito que é noite há muito tempo
ouço-me latejar
Alexandre perfumava o sexo com Íris de Corinto
a imagem que possuo da morte
é a de um pássaro brusco sulcando o chão
por isso todas as fotografias estão repletas de mel
mas vazias de ti

estava a ouvir-te
que desarrumo propositado vai pelo quarto
eu bordava um pano com flores de estonteante açafrão
dormitava sentado à janela espiava o mar
o corpo coberto de dúvidas e medo

a memória arrasta-se sobre a pele de tua ausência


é uma língua recolhendo minúsculos dejectos
que aderem aos meus ténis para dançar rock'n'roll
uma sirene um insecto em volta do candeeiro
por fim ouço a chuva balbuciar teu nome contra o empedrado
ERAS NOVO AINDA
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as dálias desbotam e as zínias envelheceram procuro-te no meio dos papéis escritos


dentro da garrafa de plástico a água turvou-se atirados para o fundo dos armário de vidrinhos
depois ocorreu-me qualquer remoto pensamento comias uvas no meio da página
aquele instante em que procuravas sorrindo
a minha mão por baixo da mesa do restaurante a seguir era como se fosse noite
havia olhares que se cruzavam corpos
peço-te para puxares os cabelos para trás deambulações pela praia
um fio de azeite brilha nos teus lábios era noite e alguém se aproximava
quando as palavras são violentas... sem o saber
precipito o teu regresso a casa eu estava sentado passeando os dedos
pelas nódoas frescas do vinho sobre a mesa o caderno
hoje não me lamento onde de quando em quando rabiscava um rosto
levanto o olhar para o lugar que deixaste quase vazio e listas de nomes que não queria esquecer
falo sobre a repetição dos dias
invade-me o prazer de te imaginar aqui a jantar comigo paguei o vinho o pão e o queijo
quase em sussurro pedires-me cinco paus para ouvirmos levantei-me
muito calados sempre o mesmo shade of pale tu cortaste-me a fuga vagarosamente preparada
pediste-me um cigarro
esta ausência foi a única dádiva abandonada
escrevia tudo isto há muito tempo na outra página estávamos rindo
evitando que o punho da camisa se sujasse estendidos no pobre embarcadouro de madeira
na gordura das arestas da mesa... e tinha a certeza planeávamos atravessar a noite mágica do rio
de nunca descobrires os corações
desenhados com ternura no guardanapo de papel a página seguinte está em branco
mas lembro-me que te agarrei as mãos e disse:
todos os cigarros do mundo são para ti
O ESQUECIMENTO EM YUCATÁN
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eras novo ainda a lâmpada suja alumia o olhar debruçado para as veias
mal sabias reconhecer os teus próprios erros é o cansaço do excessivo crepúsculo... o receio
e o uso violento que de noite eu fazia deles que a dor se me agarre às mãos

esta cama de minerais acesos tento fugir deixar-te nessa prostração sem palavras
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo rasgo a espuma vegetal da voz... entro no corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca por uma sílaba mais aberta e untada
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido apago a fala a incandescência do sangue
onde a memória te imobilizou procuro o esperma... único alimento
que de repente me cega e sacode o coração
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes fotografo o interior do corpo
pela janela espio a paisagem destruída devasso os corredores dos ossos as distantes artérias
e o coração triste dos pássaros treme e quando encontro uma porta regresso à superfície da terra
onde um vulcão se extingue poro a poro... lentamente
quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela estendidos na erva
onde debruço a noite do rosto tocado... me despeço atentos à desolação dos corpos e da paisagem
os dedos tatuando promessas e profecias pelos ombros
as narinas abertas ao amargo iodo das areias... os olhos
alagados pelas visões doutro mundo... o medo da noite
cobrindo a pele com seus minúsculos guizos
depois
RUMOR DOS FOGOS
1 2

pernoitas em mim se um dia a juventude voltasse


e se por acaso te toco a memória... amas na pele das serpentes atravessaria toda a memória
ou finges morrer com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
pressinto o aroma luminoso dos fogos como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
é noite ainda apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
o corpo ausente instala-se vagarosamente porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
envelheço com a nómada solidão das aves pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor
já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim


com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição
O MEDO (2)
5 1984

vêm sôfregos os peixes da madrugada 14 de janeiro


beber o marítimo veneno das grandes travessias todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetecia ver pessoas,
trazem nas escamas a primavera sombria do mar ninguém.
largam minúsculos cristais de areia junto à boca escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o
vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos
vem deitar-te comigo no feno dos romances sobressalta-me, desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela
para que a manhã não solte o ciúme janela.
e de novo nos obrigue a fugir sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer, que mais posso
vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado, nem me parece que
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça esteja feliz. escrevo com um único fim: salvar o dia.
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicarem o outono no sumo das amoras

iremos pelos campos


à procura do silente lume das cassiopeias
CESARINY E O RETRATO ROTATIVO DE GENET EM LISBOA RETRATOS POR ANTÓNIO CORREIA

ao lusco-fusco mário fecho com força as pálpebras


quando a branca égua flutua ali ao príncipe real e delas se desprendem estes corpos erguem-se
as bichas visitam-nos com suas cabeças ocas os rostos enevoados de sono
em forma de pêndulo abrem as bocas para mostrar movem-se lentamente pela noite enleando-se
restos de esperma viperino debaixo das línguas e na trepidação da música desgastam
com o dedo esticado acusam-nos de traição o que a insónia de ontem deixou como um sobejo
vibram riem entre desejos adiados
sabemos que estamos vivos ou condenados a este corpo pelas pequenas derrotas do amor
cela provisória do riso onde leonores e chulos
trocam cíclicos olhares de tesão e são corpos nem tristes nem alegres
ficamos assim parados esperam o amanhecer encostados aos bares
sem tempo estáticos e sós sob a luz nervosa dos néons
o desejo diluindo-se no escuro à espera muito sós e sem nome
que um qualquer varredor da alba anuncie oferecem-se perdidos de cansaço adormecem
o funcionamento da forca para a última erecção antes que a cidade se incendeie e revele
o fundo desolado dos espelhos
lá fora mário
longe da memória lisboa ressona esquecendo abro por fim os olhos
quem perdeu o barco das duas ou se aquele que caminha pinto até que o branco iridescente da tela
será atropelado ao amanhecer ou se o soldado se deixe inundar pelo luminoso retrato da solidão
que falhou o degrau do eléctrico para a ajuda fode
ou ajuda ou não ajuda e se lisboa num vão de escadas
é isto
tão triste mário sobre o tejo um apito
a paixão talvez seja a ausência dum corpo que desperta a intensidade da
vida no interior doutro corpo; lugar onde a luz mal emergiu ainda, e as
O MEDO (3) palavras se formam a partir de vestígios de silêncio. ardem brandamente no
1985 sangue, as palavras, mas ainda são confusas, dispersas, apenas sons
indefinidos. depois, a mão executa-as, mata-as um pouco ao alinhá-las sobre
18 de janeiro desertos brancos, e a vida estremece, modifica-se. as palavras, quando mortas,
cogito em coisas que me recordam conversas distantes com amigos. não já não valem a pena porque substituíram tudo. criaram outras realidades. é
sei bem o quê, chegam à memória rostos e sons. vozes. não compreendo o que com medo que me vejo por trás de cada uma delas. as palavras são perigosas
dizem, estou cansado. é-me difícil saber se sou eu ou o meu corpo que está máscaras fúnebres que se colam à cara e não precisam de boca, de voz. as
cansado. talvez estejamos os dois, raramente nos separamos. aturamo-nos os palavras mudas escondem o medo de um dia deixar de saber quem sou por
maus humores e os momentos de insuspeita felicidade. dormimos e amamos trás de tanta máscara sobreposta.
juntos. não escrever, não falar, não gesticular. imobilizar-me como a pedra que
por vezes apetece-me deixá-lo, voar e estender-me por cima dele, freme à passagem do vento. uma lágrima irrigará o cristal, um veio de água
esfregar-lhe o sexo na boca, nos cabelos, beijá-lo, fazer-lhe inesquecíveis sobre as pálpebras, sobre os lábios que adivinham a transumância das
cenas de ciúme, para depois ter o prazer da reconciliação comigo mesmo. constelações. a respiração rouca da árvore sob o peso da geada. a flor que
mas há momentos muito tristes, aqueles em que as plantas crescem sinaliza o caminho dos insectos. a terra, a pouco e pouco, perceptível ao tacto.
subitamente para dentro da sombra, e tu não estás aqui. é obsessão minha grito, finjo o grito.
amar quem passa. se abrisse os olhos ter-te-ia, só para mim, até à linha sentado à varanda do mundo morro como todas as coisas que morrem,
inexistente do horizonte do mar. sobrevivo com todas as coisas que vivem.
anoitece devagar. anoitece sobre os ombros. anoitece onde não estou e permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar.
em redor de meu corpo, anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo.
presença. a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido.
dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com
sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que
existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se
ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada.
o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo
está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser
eterno na fracção de segundo.
se morresse agora mesmo não deixava nada, porque bebi toda a minha
sede, esvaziei-me, devorei noites a fio esse amargo que têm as coisas antes de
nos pertencerem. teu corpo, por exemplo, custou-me tanto inventar-lhe
formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o
acompanhasse. teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.
RÉSTIA DE NINGUÉM
4

19 de janeiro corpo
desejar que, repentinamente, o mar recuasse sempre até à linha do que te seja leve o peso das estrelas
horizonte significaria tê-lo de volta aqui, ao pé de mim, um instante mais tarde e de tua boca irrompa a inocência nua
a roçar-me as costas. dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te


deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio


o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama


e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo
EREMITÉRIO OS DIAS SEM NINGUÉM
5 4

mais nada se move em cima do papel dizem que a paixão o conheceu


nenhum olho de tinta iridescente pressagia mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
o destino deste corpo senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
os dedos cintilam no húmus da terra turvo pela ligeira náusea da velhice
e eu
indiferente à sonolência da língua conhece a solidão de quem permanece acordado
ouço o eco do amor há muito soterrado quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço ergue-se para o espelho
no interior desta ânfora alucinada que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

desço com a lentidão ruiva das feras dizem que vive na transparência do sonho
ao nervo onde a boca procura o sul à beira-mar envelheceu vagarosamente
e os lugares dantes povoados sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
ah meu amigo nenhum ofício cantante
demoraste tanto a voltar dessa viagem o tenha convencido a permanecer entre os vivos

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas


inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti


com uma esferográfica cravada no coração
MEU ÚNICO AMIGO
1 2

só conseguia amar-te se falasse de mim maravilhar-te as insónias


sem cessar com o paciente crepúsculo da idade
acordar fora do corpo esquecer o olhar
hoje vivo quase sempre sozinho sobre o pêlo ruivo dos animais beber
paciência o fulgor das estrelas no esplendor da alba
os momentos de infelicidade estão esquecidos nomear-te
para recomeçarmos juntos a vida toda
uma pétala de luz percorre as linhas da mão
o rosto é aquele que sonhei ensinar-te o segredo dos alquímicos minerais
e não o que a noite dos espelhos tenta dar-me acender-te um pouco de culpa
na imatura paisagem do coração
eis o retrato de meu único amigo
a quem tudo revelo eis a travessia que te proponho
o que me cresceu no coração amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a música inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias
VIGÍLIAS
3 1

os barcos são a imagem que resta para fugir quando aqui não estás
mas só as palavras nos embriagam o que nos rodeou põe-se a morrer
são labareda que devora os barcos e a memória
onde nos movíamos a janela que abre para o mar
esquecemos o que nos ensinaram continua fechada só nos sonhos
e se por acaso abríssemos os olhos me ergo
um para o outro abro-a
encontraríamos outra imobilidade outro abismo deixo a frescura e a força da manhã
outro corpo hirto escorrerem pelos dedos prisioneiros
latejando na imperceptível ferida nocturna da tristeza
acordo
pernoito na precária vida do fogo para a cegante claridade das ondas
este rumor de mãos ao de leve pelo corpo
adormecido na superfície do espelho um rosto desenvolve-se nítido
assalta-me o desejo incerto de te acordar além
e o medo de querer de novo tudo reinventar rasando o sal da imensa ausência
uma voz

quero morrer
com uma overdose de beleza

e num sussurro o corpo apaziguado


perscruta o coração
esse
solitário caçador
REGRESSO ÀS HISTÓRIAS SIMPLES RECADO
2

o esplendor dos lábios deixa a noite ouve-me


devassar o sorriso do rapaz onde pernoito que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
aprisiono luas dentro da gaiola de água alimento suficiente para a tua morte
fujo com o domador de astros
pelos segredos do mar vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer ㅡ vai por esse campo
a tinta dos limos manchou-lhe a embriaguez de crateras extintas ㅡ vai por essa porta
nas mãos pararam os gestos e o receio de tocar de água tão vasta quanto a noite
um deus
no peito rebentou o novelo de luzes deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
quando os sexos se derramaram e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo ㅡ deixa
mas a tristeza não é o que sobejou da adolescência que o outono traga os pássaros e as abelhas
a tristeza é o envelhecimento precoce para pernoitarem na doçura
das palavras que sabemos para a ocasião do teu breve coração ㅡ ouve-me
e já não têm voz
quando o coração vai pelo gume das horas possíveis que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
ainda guardo a gaiola de luas desassossegadas a morada eterna ㅡ o mar por onde fugirá
mas o domador de astros diluiu-se no instante o etéreo visitante desta noite
em que tudo se ofereceu e tudo se perdeu
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira ㅡ não esqueças o ouro
o marfim ㅡ os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
HORTO ENGATE

homens cegos procuram a visão do amor é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
onde os dias ergueram esta parede rente aos grandes cinemas do mar
intransponível como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me
caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos ㅡ cantam sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de séculos
a linha do horizonte é uma lâmina se fizeres um movimento de farol com o cigarro
corta os cabelos dos meteoros ㅡ corta eu ㅡ que vou a passar ㅡ tudo verei
as faces dos homens que espreitam para o palco mas nada será meu
nocturno das invisíveis cidades porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate ㅡ nem o desejo se levantará
escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos para seduzir o corpo daquele que se ausentou
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios
mesmo assim conheço
adormecem sempre todas as esquinas da imunda cidade que amo
antes que a cinza dos olhos arda mesmo assim sofro de insónias ㅡ imito o noitibó
e se disperse o bêbado louco
gesticulo como aquele que já não sou e
no fundo do muito longe ouve-se outro não serei
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto mantenho-me de pé e fumo
dos incêndios dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
prosseguem caminho que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
com a voz atada por uma corda de lírios obrigados a vender o corpo já usado
os cegos aos insuspeitos violadores de poemas
são o corpo de um fogo lento ㅡ uma sarça
que se acende subitamente por dentro
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos e não voltaram
SIDA a telefonar

aqueles que têm nome e nos telefonam


um dia emagrecem ㅡ partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivamos o amor no abismo do tempo


e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias ㅡ o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos


acordamos trémulos confusos ㅡ a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação


dos segundos ㅡ tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola


a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos


os invernos o repouso a sonolência
o vento
INCÊNDIO

se conseguires entrar em casa e


alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha ㅡ não te assustes

são os teus antepassados que por um momento


se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde


zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo ㅡ diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas ㅡ com eles no chão
) Alberta
( ABERTA

«Poesia grega clássica ㅡ 50 fragmentos», primeira ABERTA, setembro, 2018.


«Konstandinos Kavafis ㅡ 50 poemas», segunda ABERTA, outubro, 2018.
«Walt Whitman ㅡ 50 poemas de Folhas de Erva», terceira ABERTA, novembro,
2018.
«Poesia espanhola contemporânea ㅡ 50 poemas», quarta ABERTA, dezembro,
2018.
«António Botto ㅡ 50 poemas de Canções», quinta ABERTA, janeiro, 2019.
«Eugénio de Andrade ㅡ 50 poemas», sexta ABERTA, fevereiro, 2019.
«Luís Miguel Nava ㅡ 50 poemas», sétima ABERTA, março, 2019.
«Daniel Faria ㅡ 50 poemas», oitava ABERTA, abril, 2019.
«Al Berto ㅡ 50 poemas de O Medo», nona ABERTA, maio, 2019.

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