Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Editorial ------------------------------------------------------------- p. 05
Isabel Marz --------------------------------------------------------- p. 10
Ana Elisa Granziera ---------------------------------------------- p. 12
Daniel Rodas ------------------------------------------------------- p. 19
Marina Grandolpho ---------------------------------------------- p. 24
Krishnamurti Góes dos Anjos ---------------------------------- p. 30
Lucas Carneiro ---------------------------------------------------- p. 35
Estefany Lima ------------------------------------------------------ p. 38
Gonzalo Dávila Bolliger ------------------------------------------ p. 40
Isabel Furini -------------------------------------------------------- p. 46
Fabiana Rodrigues Carrijo -------------------------------------- p. 49
Iara Sydenstricker ------------------------------------------------ p. 53
Ricardo Pecego ---------------------------------------------------- p. 57
Uelson Teixeira ---------------------------------------------------- p. 63
Felipe Pereira Batista --------------------------------------------- p. 65
Géssica Menino ---------------------------------------------------- p. 72
Marcos Antonio Leite Junior ----------------------------------- p. 74
Agradecimentos e Contatos ------------------------------------- p. 78
Editorial
Poema é barba de
Fogo
Poema assusta o
Frontão
Poema é risco de
Lobo
Patada no meio do
Chão
Poema é laço de
Pólvora
No pito que trisca
O nariz
Poema é dança de
Roda
Girando a bala num
Triz
Poema é chama de
Lacre
Aberto na briga do
Não
Poema é rastro de
Sangue
Queimando do mangue
Ao sertão
O poeta atiça. A listra que queima e risca. O poeta trisca. O fogo na saia e se arrisca. O
poeta é tudo: fogo girando o monturo. O poeta é furo. Queimando por cima do muro.
E nascendo vai. Poema de fogo e tocha. E crescendo vai. O fogo que logo atocha. O pavio
na chama: o fogo que logo clama. Com os pés na lama. Poema que queima e chama.
E chamando arrisca. O fogo que logo clama. E clamando atiça. O fogo que em si se
chama. A verdade nua: do fogo que queima a pua. A verdade crua: poema de sol e lua.
E assim se faz. Poema queimando a vida. E assim refaz. Poema renova a vida. E de volta
o nu. Do corpo que queima em dança. Se refaz no nu. Poema em si:
SUCURU!
Equipe Sucuru
*
* *
Arpoador
Isabel Marz tem 29 anos, nasceu em Belford Roxo, baixada fluminense do Rio de
Janeiro, e é formada em literatura pela UFRRJ.
O SONO
Um banho relaxante,
Uma xícara de chá.
Cheiro de hidratante nos antebraços.
As páginas do livro se dissolvem na meia-luz.
O clique do abajur.
O escuro esfria o corpo por debaixo do lençol.
Cobertas que abraçam.
Um suspiro longo que abre a boca num bocejo.
Costas pesadas no colchão.
Travesseiro de lavanda.
Rosto suave, sem expressão.
Uma imagem de sonho por trás das pálpebras.
Não lembro se paguei a conta de luz.
Ela não respondeu meu Whats.
Acho que preenchi o formulário errado.
Deixei roupa no varal e vai chover.
Esqueci a senha .
A mala extraviou.
O bolo solou.
Acabou o papel.
O nude vazou.
O JANTAR
Ana Elisa Granziera é escritora, ilustradora e aquarelista paulistana, nascida em 1979,
e residente no Canadá desde 2017. É autora do livro Brutta figura (Chiado Books - 2020),
do blog La Cucinetta desde 2006, e da newsletter Boletos & Borboletas desde 2021.
Ilustrou livros infantis e didáticos no Brasil, expôs suas aquarelas em Toronto, e hoje é
professora de arte em Ottawa, onde mora com o marido e dois filhos, personagens de suas
crônicas e cartuns. Corre maratonas no meio do mato, e escreve poemas quando tem
insônia. Recentemente, lançou a obra “Manual das Decepções de uma Vida Comum”,
pela Mocho Edições.
AQUELE SOL
NEFELIBATA
Lá fora a manhã
O risco aberto da patrulha
Dos arcos
O guidão da névoa
Em recortado escombro
PLANO SONORO
À noite
Os móveis estalam
Imóveis na copa
Um cheiro de corpo
Atrelado às escadas
As sombras cinzentas
Detrás da janela
O eco do oco
Estalando no eco
VAN GOGH
Dor de
Olvido
Amarelo
Manga
Oceano
Trigo
ANCIÃO
À margem do
Hoje
O Ontem deitado
Sob um céu de
Pétalas.
BODOCONGÓ
Vermelho-bico
O céu laríngeo das araras
Junto ao mar de tédio
De aço
De sombras e fumaças no
Acaso.
ARTE DE VOAR
No bico de um
Pásso
A pedra voou
(No bico de um
Passo
A pedra soou.)
RELÓGIO
1h
2h
Daniel Rodas é escritor, poeta e dramaturgo. Graduado em Letras e Mestrando em
Literatura e Interculturalidade (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros
e Saturno (Editora Primata, 2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021). Integrou
as antologias Poesia fora do eixo (Toma Aí Um Poema, 2022) e Engenho Arretado:
poesia paraibana do século XXI (Patuá, 2023). Fez parte do grupo de teatro ExperIeus da
cidade de Monteiro-PB, onde colaborou como ator. Natural de Teixeira-PB, atualmente
reside em Campina Grande-PB. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir
incontrolável da vida.
De maquinário feminino e outras conversas
______________________________________________________________________
presunçosa e ofensiva
não vejo
a me-nor
gra-ça
de sentir o mundo
brincando,
que se transformam
DESPETALADA
por um homem
que a partiu
por um filho
que pariu
por um deus
que se omitiu
resignada,
desfez-se no chão
pétala
por
pétala
e enfeitou
o choro
incontido
que agora
rolava
pela
face
VASO QUEBRADO
estilhaçada no chão
a peça colidiu com o
assoalho e se espatifou
resignada, juntei
caco
por
caco
e me mantive calada,
apenas fitando
os seus olhos
daquela vez
cortando os dedos
— se for o caso.
Marina Grandolpho nasceu em Catanduva, SP, e atualmente vive em Campinas,
também SP. Formada em Letras pela UFSCar e doutora em Estudos Literários pela
Unesp, é professora e escritora, além de mãe e feminista. Possui textos publicados em
revistas/portais literários e em sua newsletter. Em 2022, publicou a zine independente Por
debaixo da carne sou palavra e, recentemente, publicou maquinário feminino e outras
conversas (Ed. Patuá), seu livro de estreia.
Fotografia de um minério
Passo e vou lendo Alberto Caeiro / que transita entre outeiros / fora das cidades.
Sexta-feira e há / porcos e cães ao lado das lixeiras / mototaxistas / radinhos / bares com idosos
/ jovens e crianças / brincando sobre areia-lavada.
Todos carregam olhar vago / grito sem gemido / são gaiolas para / pássaros que não cantam ou
voam.
O que se assemelha à visão do inferno de Dante / é apenas mais um dia / no Rio de Janeiro / e
ao desembarcar / carrego insistente pergunta:
ISBN: 978-65-5404-115-7
Link para compra e pronto envio:
https://www.editorafolheando.com.br/pd-92b280 ou
https://www.facebook.com/luciano.lanzillotti
https://lanzillotti.wordpress.com/blog/
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato
de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema
e À flor da pele – Contos. Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há
textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último
romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar
no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria
Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a
crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais,
revistas e sites literários.
Tempo, luto, morte, memória e vida: uma visão do romance Rosário Desgastado
(2023), de Luiz Eudes
Lucas Carneiro
Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc, et in hora mortis
nostræ. Amen. Os versos que arrebatam essa introdução remontam a famosa liturgia de
Santo Rosário, devoção bastante peculiar na tradição católica. Avindo do latim, o termo
Rosarium compreende etimologicamente um campo repleto de rosas; flor que no
imaginário cristão simboliza a Santíssima Virgem Maria. Para além dessa definição, o
substantivo também pode ser empregado para se referir a um artefato estruturado em
pequenos intervalos circulares, cuja função central reside na marcação das orações.
Essa prática que teve origem nos grandes conventos e mosteiros do século XVI,
foi constituída por monges e sacerdotes que faziam uso de pequenas pedras e grãos como
forma de conduzir, entre os fiéis iletrados, a contagem das rezas – composta por 150 Ave
Marias. Assim, cada prece feita em devoção à virgem compreende uma rosa, e cada
rosário rezado em sua totalidade equivale a uma coroa de flores – vista como sinônimo
de celebração do espírito, vida, triunfo, gozo e harmonia.
Diante da potencialidade simbólica materializada em uma única expressão, e
levando em consideração a força do catolicismo nas regiões sertanejas do Nordeste, não
poderíamos cogitar um título mais apropriado para o novo romance do escritor baiano
Luiz Eudes senão Rosário Desgastado. Lançada em março de 2023 pela editora
Pragmatha, a obra conta um prefácio anotado pelo poeta, jornalista e crítico literário
Tanussi Cardoso, e capa de Géssica Ronise.
Subdividida em duas partes não nomeadas – ambas estruturadas respectivamente
pela presença de 15 e 14 capítulos – Rosário Desgastado está situada no ponto chave da
memória, que caminha de mãos dadas com temáticas que flertam com a religiosidade,
misticismo, luto, vida e morte. Tendo como ambientação central o território do Junco –
interior baiano – a obra segue um fluxo cronológico marcado por certas alternâncias entre
passado e presente – conduzidas pela força onírica dos personagens.
No núcleo inicial da narrativa, o leitor se defronta com os personagens Abelardo
(protagonista) e Santinha, acompanhando de perto o lento e progressivo crescimento do
casal, bem como os duros percalços enfrentados durante esse processo – como por
exemplo as duras secas, dores, sofrimento, sol escaldante e trabalho árduo em latossolo.
Na segunda seção, quem conduz a narrativa até o seu final é João; filho do casal sertanejo
que em seu plano mais íntimo revive uma mescla de sentimentos que perpassa por sonhos,
memórias, luto, saudades, medo e lembranças da vida.
Contudo, para além de Abelardo, Santinha e João, outra personagem que marca
presença nos dois núcleos constituintes da obra, e que de certo modo merece uma
observação, diz respeito ao espectro; a mãe do belo que em seu espírito insone repousa
silenciosamente à espera de nós – tal como conjugada por Wallace Stevens nos versos de
Sunday Morning –, ou seja, a morte. Na estória, o desenlace natural da vida que em muito
invade o subconsciente das personagens caminha de forma paralela com a vida, sempre
tocada pelo tempo e circunscrevendo-se na realidade na qual ambos se encontram
Quanto à estrutura da linguagem, Luiz Eudes se vale de uma dicção vocabular
objetiva e poética, marcada por um lirismo movido por expressões e ditados populares
provenientes do nosso grande Sertão Baiano. Um estilo que possibilita realizarmos
algumas aproximações para com João Guimarães Rosa, que em sua prosa poética também
nos brinda com a riqueza de elementos que se fundem na cultura regional e se apresentam
também interligados a temáticas universais.
Temos aqui então uma obra que por meio da sua narrativa envolvente conduz o
leitor diretamente ao Junco; ao solo baiano e suas belezas, suas paisagens, seu brilho, seus
cidadãos, riquezas, costumes e nuances que nos permitem adentrar no universo de
Abelardo, Santinha, João, Rita e Chico do Mato, e compreender seus mistérios e anseios.
Por vezes tenho uma necessidade estranha de pegar um bonde. Estranha porque cá neste
lugar não há bondes, sem contar que para onde iria? — disso também não sei. Às vezes,
em salas pertencentes pego-me o esperando, me arrumo toda; arranjo-me o melhor
perfume, o melhor vestido, os melhores sapatos, dedico um tempo a enrolar os cabelos.
Mas ainda não estou pronta. Volto-me ao espelho revisando-me inteiramente; é aquela
sensação que nos diz faltar algo, que avisa como mãe bem atenta que o necessário
deixamos para trás. Não encontro, nem ao menos possuo alguma noção do que me falta,
mesmo concordando com a mãe de que algo que deveria estar comigo ou em mim não
está. Reviso-me novamente. Nada encontro. Tenho medo de perder o bonde — sim,
aquele que aqui não passa, mas que o espero em horário exato para ir a um lugar do qual
também não sei. Sinto que posso estar enlouquecendo. Saio num ato admirável de fé,
caminho pelas ruas centralizadas da cidade cheias de trilhos onde não há trens, poucas
árvores, muitas pessoas. Nas ruas que se expandem em cada pisada um assédio. Envolta
em imagens seduzentes que articulam seus desejos opressores sou fisgada. Perco-me no
alaranjar encapado de fulvo, mas nele não há cintilantes. Devo lembrar-me da queda. Dos
túneis amontoados de gente a voz da mãe ecoa em meus ouvidos. Tocada pelas horas me
apresso e como um barco sujeito ao mar respeito a imprecisão dos pisares que me guiam
ao bonde. Sujeita ao tempo, ao vento, ao mar, ao dono.
Melancolia
Os dias foram feitos para ti
E as noites, em silêncio, te veneram
Melancolia
O mar se cobre pouco a pouco pela névoa
E as aves, para sempre, se afastam
Melancolia
Qual o nome da tua temível potestade?
De noite, quando as lâmpadas se apagam
Vejo as crianças que perdem seus cabelos
E se transformam, uma a uma, em neblina...
O natimorto
Eu lembro
Pois ela caminhava como se fosse cair
E eu lembro:
Seus cabelos eram negros como noites mal dormidas
Seus olhos puxados como as terras distantes
E sua voz pesada como os que querem morrer...
...
...
Minha solidão
reverbera
nos abismos
escondidos
entre os muros
e a névoa
minha solidão
às vezes
tem voz de água
outras vezes
mantêm o silêncio
das pedras
porque a solidão
é um universo
de exílios
que se aloja
em nossas temporas
e ordena
afastamento
mamífero inoportuno
nosso corpo
quer ser amado
e acariciado
enquanto nossa alma
(silenciosa)
quer conhecer
as nuances do rosto de Deus
em cada ser deste universo.
Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante. Autora de 35 livros, entre eles, “Os Corvos
de Van Gogh” (poemas). É criadora do Projeto Poetizar o Mundo; recebeu Comenda
Ordem de Figueiró, no Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra pela
Fundação César Egido Serrano (Espanha, 2017). Seus poemas foram premiados no Brasil,
Espanha e Portugal. Palestrou sobre a arte de escrever em diversas Férias do Livro.
Ela queria morar na casa de bonecas
Sim. ‘Era um amor daqueles’. Você diria àquela pessoa em tempos imemoriais:
“Aceita que eu referende o ‘seu viver’? ”. Ao que o outro respondera: Seguramente!
Mal sabia você que ali seu destino seria outro, bem outro! Vivera tempos surreais,
o amor açoitava seu coração que pela primeira vez fora uma vez: estava, por fim entregue.
Não sabia o que lhe viria, só compreendia momentaneamente que queria muito encontrá-
la outra vez, outras tantas vezes. Se adormecia pouco, passou, então, a repousar menos
ainda. O coração taquicardíaco, a vida taquicardíaca. O desejo ditando o curso, os sonhos.
Passou então a esperar pelos e-mails – momento em que as almas se reconheciam de uma
longa e imprecisa viagem. Tempo e lugar de descansar e repousar o coração, o corpo, a
linha do destino. Passou, então, a contar os minutos, os segundos, os filigranas do tempo.
Pensou que teria encontrado a paz afinal, ou seria a guerra tão prometida, tão apetecida e
somente naquele momento possível? Deu de cara com o amor. Não adiantava, pois, as
recomendações alheias, nem mesmo as próprias recomendações. Queria, pois,
experimentar.
E experimentou escancaradamente, desavergonhadamente, e todos ‘os mentes’
possíveis. Sua metade estava ali, sua outra metade igualmente profunda, densa, inquieta
e lancinante. Por onde andara, por onde havia andado. Por que demorara tanto para o
encontro? O encontro marcado! Não aquele prometido pelo poeta outro, mas aquele
igualmente sonhado por sua essência danadamente romântica. Na linha imprecisa do
tempo passou a recolher uma a uma as sementes de romã – desculpa para um suco a dois?
Duas essências igualmente singulares, igualmente ímpares e complementares. Seria
possível? Sim, era possível. Assim quis, assim pensou e acreditou. Era tão fácil acreditar!
Quem não acreditaria? Seu coração pressagiou, sua alma também assim o fez e então
aconteceu. Quis conhecer a região do ‘abissal’, dos ‘entres os entres’, quis conhecer o
mundo de Alice, quis, danadamente, fazer companhia para o gato Cheshire, o Coelho
Branco e o Chapeleiro Maluco e tomar decididamente chá.
Era chegado novembro. Era chegado o amor. Como ele demorara chegar! E talvez
por este motivo também perpetrasse uma fissura daquela proporcional ao tempo
aguardado. Se ‘chuvinha de novembro amadurece a gabiroba’, de tão verde foi ‘perdendo-
se de si’ e, então, o novembro chegou e junto com ele saiu atônita para viver o não vivido,
mas tão cobiçado. Sim, prefaciou. Sentenciou também tudo, saiu de asas ligeiras, coração
puro e adejou alto, tão alto que esqueceu que era preciso ter um mínimo de lucidez. Era
preciso, mas quem disse que, entre ser preciso e viver, se escolheria aquele? Acabou, pois,
facilmente escolhendo este.
Conheceu a região dos ‘entres os entres’, reconheceu sensitivamente a carne de
sua carne, a ‘ânima’ de seu ‘animus’. Bastava um leve sim e teria ido. Sim foi, foi-se. E
então viajaram para o ali, para o azul, para o profundo, para o possível, por que não? La
Belle Munière, la belle hortelã, la belle musique de Satie.
Acreditou que tivesse relido a sua alma, apanhado os seus segredos primaveris,
adivinhado as suas sensações recônditas. Pensou ter soletrado como na lição aprendida
de cor uma a uma as páginas suas/nossas; Julgou ter navegado no seu corpo como se faz
a travessia de um rio caudaloso, antes mesmo percorrido de olhos fechados e sentidos
outros. Ela queria navegar aquele rio outras tantas vezes e encontrar. Encontrar-se?
Pensou precipitadamente que amor seria tal qual sentença matemática onde
fatalmente dois e dois seria quatro. Mas amor tem equação diversa. Queria ter conjugado
menos o verbo sofrer. Queria muito mais ter conjugado em todos os tempos possíveis o
verbo deleitar-se. Sim... viveu e apeteceu o inusitado por detrás do muro vizinho.
Quis morar na casa de boneca – aquela mesma oferecida por aquela pessoa como
sendo de uma de suas autoras preferidas. K. Mansfield. Aparentou não conhecer a estória
para acarinhar lhe por ter apresentado algo novo para o seu púbere universo literário. Sim,
na maior parte do tempo, tudo era novo, tudo era a primeira vez ou será que tudo que elas
faziam juntas era como se fosse a primeira vez? Leram, revisitaram: Helena Parente
Cunha, Milan Kundera, Virgínia Woolf, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Emily
Dickinson, Camille Claudel, Frida.
Reescreveram, nas fendas do tempo, uma escrita outra, um universo outro, uma
possibilidade também outra? Um estilo outro de ser, de sentir-se? Procurar-se? Ela teria
e descobriria um estilo ‘rosa de ser’ e você? Teria um estilo de ser, ou seria um estilo
delicado/meio frouxo de ser? Sempre doendo, sempre se doendo, sempre sangrando e
sofrendo. Sim deveria não ter aprendido facilmente a conjugar o verbo sofrer e seus
correlatos. Mas reconheceu que esta era uma lição impossibilíssima. Havia uma teimosia
natural/’inatural’, aprendizado de quando em vez’ viveu como rolinha atapetando o
terreno insólito do seu coração.
Queria/deveria ter restado na casa de boneca. Queria ter podido estar sobre as
abrangências daquele espaço da casa de boneca, brincar, rodopiar e cantar cantigas de
roda para a boneca mais nova de sapatinhos de verniz. Queria, pois, não ter que despertar,
queria não ter que acordar para a nova realidade, porque no seu íntimo ainda estava com
aquela sensação primeira e tão ‘intricadamente’ dela (o estilo rosa de ser) na pele, na
alma, no cerne do ser: “Tem gente que é assim mesmo: despede chegando e parte
querendo ficar”.
Fabiana Rodrigues Carrijo (Catalão/GO). Doutora em Estudos Linguísticos pela
Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professora no Ensino Superior, na
FAE (Faculdade de Educação) na UFG (Universidade Federal de Goiás/UFCAT – em
transição). É autora de diversos capítulos e artigos científicos na área de letras/linguística
espalhados em revistas e livros especializados. Recentemente prefaciou três livros
Quebra-cabeça essencial, de Miriam Nassif; (Des)caso com a poesia: inquietações, de
Maurício Gomes e Espontânea Clausura, de Elaine Rosa Teixeira, sendo os dois últimos
lançados pela Editora Scortecci. No momento, encontra-se envolvida com a editoração
de seus dois livros de crônicas denominados: Contratos de amor lacerados e Vento na
Roseira. E-mail para contato: facarrijo@gmail.com
TRECHO 1 (extraído do conto Maria do Socorro)
Nasceu numa cidadezinha semiafogada pelo mar. Pai pescador de camarões. Mãe
alcoólatra, documentos de identificação despedaçados, várias vezes perdidos e achados
na praia. Filha paciente, obcecada pela ideia de entrar numa universidade e sair
diplomada. Ousada para padrões locais.
Aos treze anos conheceu a capital, quando para lá foi enviada como empregada
doméstica. Três turnos de trabalho, o da noite dedicado a arranjar letras e números numa
escola pública para a qual nem sempre ia graças a atrasos da patroa, do patrão, do
patrãozinho. Seu expediente começava com a casa em sono profundo, às cinco da manhã.
Café pão leite xícaras cereal jarra frutas guardanapos adoçante copos manteiga garfos mel
pratos suco geleia açúcar mascavo toalha colheres iogurte torradeira facas açúcar branco
enfileiravam-se na mesma desordem de sonhos inconclusos, interrompidos aos berros
pelo despertador. Enquanto a família desjejuava, tirava do fogão ovos quentes fritos
mexidos omeletados conforme desejos dos comensais. Todas as manhãs jurava guardar
trechos de sonhos inacabados para montar um só, que fizesse sentido.
Nas tardes dominicais, dividia-se entre o cansaço e o desejo de passear. Saboreava
larguezas de espaços públicos, onde podia espichar braços e pernas sem medo de quebrar
cristais. Gostava do parque, de todas as manifestações sociais, das cores das ruas: uma
confirmação de que os mesmos motivos a aproximavam de outros iguais, também
divididos entre dormir e respirar a cidade. Assim consumiu-se no tempo, até que patrão
abandona patroa, que abandona patrãozinho, que vai morar com avó, há muito
abandonada. (...)
(...) Adorada por parturientes, madrinha primeira dos rebentos vingados, foi
santificada por mães agradecidas, canonizada por carpideiras e lavradores e perseguida
pelos demais. Assim viveu até enrugar.
E aguardou. Aguardou. Aguardou.
Então, numa semana da Paixão, quando soube ser a mais velha pessoa a existir,
babou rezas, bateu as patas na terra quente, mirou o céu e voou com os seus pendurados
numa corda feita de sisal e fé.
As testemunhas do milagre não souberam dizer de onde viera e para onde iria
aquele trenó esquisito que cruzou o sertão a puxar uma penca de gente seca, descalça e
feliz.
Foi Maria. Foi Lampião.
Romaria, Cobra-grande, Tupã.
Padre Cícero, José, Sebastião.
Mucamba, mulambo, mulé
Peixe-boi, Tangu-mau, escorpião.
Cigana, boiadeiro, Barnabé.
Curupira. Preto Velho. Assombração.
Mamaluca, caveira, maracujá.
Trovão, calmaria, cobra pajé.
Pecado, perdão, mal e fé.
Moça, homem, orixá.
Foi Maria.
Foi santa.
Foi o cão.
Páginas 51/52
Páginas 116/117
Naquele fim de semana, ela foi para Guaçuí, a uma clínica que
fazia o procedimento, mas o valor estava fora do seu alcance. O
local era bem discreto, quase que escondido, sem nenhuma
fachada de clínica. Na recepção o que se via além das jovens
ali era a expressão de decepção que elas carregavam. Cada
qual com a sua história e dificuldades que de alguma forma a
gravidez só complicou. Antes de ser atendida a recepcionista
pede que pague pela consulta e pelo procedimento que seria feito.
Sem nenhum recurso a mão ela pede para conversar com
o médico. A recepcionista então de forma nada educada,
se levanta e vai até o consultório.
Logo depois chama Andrielly, que entra no consultório,
ela aguarda a moça na porta e depois volta para seu posto.
Caríssimo leitor; como são belos e tortos os lábios daquele que vos fala.
Estou deitado em frente uma lagoa, onde os pássaros pousam, onde o vento ruge
e onde meu amor vem sempre à tarde; seu olhar me diz tudo, ou quase tudo...
Na beira do lago lava as roupas sujas das flores que cultiva, flores, cravos e rosas;
são belas e perfumadas. Pai de duas filhas, vivi sozinho com elas, ou elas com ele; sempre
fico de frente para a lagoa. Meu desejo é vê-lo todos os dias...
Mas a cada dia que passa ele fica menos tempo lavando suas roupas; em uma tarde
não veio mais, esperei o sol ir-se embora, mesmo assim não veio. Esperei dias... veio!
Senhor leitor, paciência... esse escritor anseia por lhe contar a história.
Os tempos logo se vão, restou em mim a saudade e a tristeza dos olhos azuis, da
pele clara como a neve, e do seu sorriso de verão.
Em um final de tarde, deitado em minha rede ao som dos pássaros ouço uma voz
leve... levantei, abri a porta, era ele meu amor, o homem da minha vida morreu nos meus
braços...
Sinopse:
Paraíba, 1930.
Ano da Revolução e do início da Era Vargas;
Também era dos coronéis, das mazelas da seca, das rixas de parentelas, da gana
exacerbada pela terra, dos saques de hordas de cangaceiros que aterrorizavam confins
dos sertões e cariris, dos sofridos tabaréus entre a cruz e o facão, do contraste entre o linho
e o gibão, da hegemonia de quem tem, oprimindo a quem não tem. Era das abastadas
fazendas de seculares criações de gado, quando o poderio brotava dos vastos campos de
algodão, regidos pelos senhores “feudais” sertanejos: dasurge o nosso romance. Os
habitantes da cidade de Princesa, no limiar da década de trinta, metiam-se, veementes,
numa insurreição armada contra o Presidente da província — o Sr. João Pessoa — ao
comando do bravo sertanejo e coronel José Pereira, criando verdadeiras trincheiras e
barricadas nas caatingas do sertão; lavradores e vaqueiros, como exímios soldados em
rudes milícias, de armas a mão, vão à guerra... Soldados, cangaceiros, coronéis e seus
jagunços permeiam pela história...
Há constante balbúrdia pelas ruas da cidade que se rebelou contra a Parahyba:
cavalos e suas soldadescas de fuzis em riste, o chiado das alpercatas sobre os seixos dos
carrascais, perrepistas socados em suas indumentárias de couro, o sol a reluzir as balas
das cartucheiras, os tiros a ecoarem enquanto Deus e o diabo chefiam aqueles confins...
Em meio a esses paradoxos está a família Vilar Pereira, liderada pelo coronel
Miguel Pereira, casado com dona Laura Vilar, pais de quatro filhos, aos cuidados da negra
Nanã e do fiel jagunço Zeferino, residentes na Fazenda Algodão. Como pedras de
tropeços, há os Carvalhos da Fazenda Macambira, que nutrem um ódio sanguinário pelos
bravos Pereiras, resultando em atos truculentos. Ana Joaquina, a única filha mulher da
família Pereira, será a heroína que presenciará o que há de mais cruel na essência do
homem que, regido pela crueza do Sertão e da guerra, verá despertar de seu âmago o lado
mais feral e mais dantesco da criatura humana que, embora feita à imagem e semelhança
de Deus, assemelha-se, amargamente, ao diabo durante o caminhar naquele vale de
lágrimas que era o existir no sertão do limiar do século XX, na eufórica e preterida Paraíba
de 1930... Não restará pedra sobre pedra...!
“... O que mais angustiava-nos era que as rixas que haviam entre nossa família Pereira e os Carvalhos
aumentaram desordenadamente após os combates entre coronel José Pereira e o presidente João Pessoa. No
entanto, os “pessoistas” batiam no peito, alegando a descendência heróica do presidente da província,
sobrinho de Epitácio Pessoa, que seu avô lutara na Revolução de 1817 e seu bisavô estivera na liderança
da Revolução Praieira, que o tio Epitácio reprimira com mão de ferro a juventude revoltosa dos Dezoito do
Forte de Copacabana, em 1922. Que assim, da mesma maneira que o tio desbaratara os anarquistas cariocas
de 1922, o sobrinho, que descendia do mesmo sangue, desbarataria os revolucionários sertanejos...” (página
206).
A mulher é representada através de Ana Joaquina, como o maior
estereotipo de audácia e bravura em Princesa do Sertão. Como uma moça de
princípios e oriunda de uma educação rígida e patriarcal, a protagonista traz em
si a garra necessária à vida face a face com a guerra. O romance é um resgate
constante e abissal dos conflitos ocorridos durante o Levante, como podemos
ver no excerto abaixo:
“Ao barulho do meu galope, Natanael cessou o chouto, apeou do cavalo, veio caminhando em minha
direção, enquanto eu acenava para ele com meu chapéu. Antes mesmo que meu cavalo cessasse o
galope, saltei da sela e, desenfreada, corri ao seu encontro, lancei-me aos seus braços...E nunca mais
estive só e, aos sopetões, trancos e barrancos dessa vida sofrida, segui lado a lado do moço gringo, o
único homem que amei em toda minha vida, que roubou meu coração, naquele dia, quando eu ainda
era a sinhazinha da Fazenda Algodão... Pedi que viesse comigo, que casasse comigo, que nunca mais
me deixasse só outra vez, que sofrer tudo aquilo de novo seria pior do que morrer... enquanto o
abraçava forte, muito forte, senti os primeiros respingos de uma neblina a molhar a caatinga, caindo
sobre nós, como um renovo mútuo das vidas que, até ali, andavam séquidas. Tudo, literalmente,
voltaria a florescer...! Era a chuva que chegava outra vez ao Sertão...” (página 450)
Ao longo das 450 páginas, são as dicotomias da vida que regem a trama e
que talham na madeira do coração das personagens a dureza necessária para se
escapar incólume aos golpes de uma época cruenta, algoz e desafiadora como foi
a Paraíba dos autoritários coronéis, cangaceiros, políticos e jagunços. No entanto,
é a bravura feminina quem toma espaço através de Ana Joaquina, o fiel arquétipo
da típica mulher sertaneja, nordestina e brasileira.
Marcos Antonio Leite Junior é formado em História pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) e mora em Rosana (SP). Escreve e pensa na literatura como um
exercício constante. Para saber mais: @brasilian0_
*
* *
Agradecemos:
A Eva Wilma Rodas Ramalho e Fernando Antônio Ramalho de Amorim – pelo apoio de
sempre;
Contatos
---------------------------------------------------------------------------------------------------
Envie seu texto em formato word (letra Times 12), juntamente com sua minibio (num
mesmo arquivo word) para o nosso e-mail: revistasucuru@gmail.com. Responderemos o
mais breve possível.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
VIVA A SUCURU!
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU