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VIAS CONTRÁRIAS

DIRETOR

Prof. Dr. Abrahão Costa Andrade

COMITÊ CIENTÍFICO

Profa. Dra. Ana Paula Buzetto Bonneau (UFRN)


Prof. Dr. Cristiano Bonneau (UFPB)
Prof. Dr. Edson Adriano Moreira (UFCG)
Prof. Dr. Érico Andrade (UFPE)
Prof. Dr. Hélder Machado Passos (UFMA)
Prof. Dr. Jaimir Conte (UFSC)
Prof. Dr. Jozivan Guedes (UFPI)
Prof. Dr. Marcelo Primo (UFS)
Prof. Dr. Marconi Pequeno (UFPB)
Prof. Dr. Marcos Fábio Alexandre Nicolau (UVA)
Profa. Dra. Mariana de Almeida Campos (UFBA)
Profa. Dra. Mariana Fisher (UFPE)
Prof. Dr. Miguel Ângelo Carmo (UFPB)
Profa. Dra. Olgária Chaim Feres Matos (UNIFESP)
Prof. Dr. Saulo Henrique Souza Silva (UFS)
Prof. Dr. Sérgio Luís Persch (UFPB)
Prof. Dr. Sílvio Rosa Filho (UNIFESP)
Prof. Dr. Ubiratane de Morais Rodrigues (UFMA)
Prof. Dr. Ulisses Vaccari (UFSC)
VIAS CONTRÁRIAS

EDUCAÇÃO E CAPITALISMO

Organizadores
Eduardo Chagas
Manoel Jarbas Vasconcelos Carvalho
Wildiana Jovino
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V622 Vias contrárias: educação e capitalismo [recurso eletrônico] / Eduardo


Chagas, Manoel Jarbas Vasconcelos Carvalho e Wildiana
Jovino (orgs.). – Cachoeirinha : Fi, 2024.

408p.

ISBN 978-65-85958-43-1

DOI 10.22350/9786585958431

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Fundamentos da educação – Capitalismo. I. Chagas, Eduardo.


II. Carvalho, Manoel Jarbas Vasconcelos. III. Wildiana Jovino.

CDU 37.01:330.1

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


10
ESPETÁCULO E ADOECIMENTO DO PLANETA:
A QUESTÃO ECOLÓGICA NA TEORIA
CRÍTICA DE GUY DEBORD
Inácio José de Araújo da Costa 1
Eduardo Chagas 2

1. O CAMINHO PARA UMA CRÍTICA “ECOLÓGICA” DO ESPETÁCULO

Cineasta, pensador radical e responsável por uma das principais


obras de teoria social do século XX, A sociedade do espetáculo (La société du
spectacle), Guy Debord não negligenciou a questão ambiental em sua
análise crítica do capitalismo moderno. Melhor dizendo, o impacto
ecológico do progresso econômico foi encarado pelo autor francês como
uma confirmação de sua teoria crítica centrada no conceito de espetáculo:
“o reino autocrático da economia mercantil que acedera ao status de
soberania irresponsável e o conjunto das novas técnicas de governo que
acompanham esse reino” (DEBORD, 1997, p. 168). Para Debord, fenômenos
como a poluição do ar e da água, o acúmulo de resíduos plásticos e o

1
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPG-FILO) da Universidade Federal do
Ceará (UFC), vinculado ao Instituto de Cultura e Arte da mesma instituição (ICA — UFC). Atua na linha
de pesquisa Ética e Filosofia Política e é membro do Grupo de Estudos Marxistas do curso de Filosofia
da UFC (GEM — UFC). Possui mestrado (2019) e licenciatura (2017) em Filosofia também pela UFC.
Atualmente é bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(Funcap). E-mail para contato: inaciojosecosta@gmail.com / inacio.jc@alu.ufc.br
2
Possui graduação e especialização em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (1989), mestrado
em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais
(1993), doutorado em Filosofia pela Universität Kassel, Alemanha (2002) e Pós-Doutorado em Filosofia
pela Universität Münster (2019), Alemanha. É professor efetivo (Associado 4) do Curso de Filosofia e do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), professor do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), professor do
Programa de Pós-Gradução em Educação Brasileira da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade
Federal do Ceará (UFC), professor colaborador do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) da UFC,
professor colaborador da Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA)
e Coordenador do Grupo de Estudos Ludwig Feuerbach (GELF-UFC). Atualmente, é Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ 2); é Editor-chefe da Revista Dialectus. É membro da
Internationale Gesellschaft der Feuerbach-Forscher (Sociedade Internacional Feuerbach). E-mail para
contato: ef.chagas@uol.com.br
186 • Vias contrárias: educação e capitalismo

aumento da concentração de radioatividade, constituem determinadas


formas de manifestação do espetáculo cuja repercussão concreta se dá na
“degradação da totalidade do ambiente natural e humano” (DEBORD,
2006, p. 1063, tradução nossa) 3. Desse modo, o presente artigo tem como
objetivo apresentar a dimensão ecológica da teoria crítica do espetáculo
ressaltando suas contribuições para o ainda atual debate sobre a crise
ambiental, considerada por Guy Debord como consequência e sintoma do
desenvolvimento econômico sem limites e destrutivo.
No entanto, é preciso destacar que o reconhecimento da pauta
ambiental veio tardiamente nas considerações de Debord, ganhando
importância na medida em que seu pensamento amadurecia. Durante
os anos iniciais da Internacional Situacionista (1957–1972), grupo de
vanguarda e crítica cultural do qual Debord foi um dos fundadores e um
dos membros mais proeminentes, suas reflexões direcionavam-se para
a criação de novas possibilidades de organização da vida a um nível
superior 4, isto é, uma vida apaixonante (passionnante) e desvinculada da
ideia burguesa de felicidade 5. Essa busca, no entanto, esbarrava nos
entraves repressivos de uma sociedade burguesa comandada pela lógica
do mercado, o que levou à compreensão de que o capitalismo seria
“incapaz de dominar e de empregar plenamente suas forças produtivas,
incapaz de abolir a realidade fundamental da exploração, portanto,
incapaz de dar lugar pacificamente às forças superiores de vida
chamadas por seu próprio desenvolvimento material” (DEBORD, 2009a,
p. 233, tradução nossa, grifo do autor) 6.

3
“[…] la dégradation de la totalité de l’environnement naturel et humain” (DEBORD, 2006, p. 1063).
4
Cf. DEBORD, 2003, p. 43.
5
Cf. Le tournant obscur In: IS n.º 2 (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 42).
6
“I believe capitalism incapable of dominating and fully emplying its productive forces, incapable of
abolishing the fundamental reality of exploitation, and therefore incapable of peacefully making way
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 187

Segundo Patrick Marcolini (2022, p. 5), os situacionistas


inicialmente limitaram, contudo, sua crítica à apropriação das forças
produtivas por uma burguesia incapaz de liberar todos os seus aspectos
subversivos e emancipadores. Em outras palavras, as consequências
imprevisíveis do ininterrupto progresso científico e tecnológico ainda
não estavam no horizonte da crítica de Guy Debord e dos situacionistas 7.
O que os interessava nesse momento era disputar com as forças
reacionárias da classe dominante — a polícia, a administração, o meio
corporativo empresarial, a publicidade — o controle dos avanços
trazidos por esse desenvolvimento material a fim de adequá-los para
um uso libertador, contra-hegemônico e, portanto, superior. Tratava-
se, segundo eles, de uma “corrida de velocidade entre os artistas livres e a
polícia para experimentar e desenvolver o emprego de novas técnicas de
condicionamento”, na qual “a polícia já tem uma vantagem considerável”
(INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 8, tradução nossa, grifo
do autor) 8. Tal posicionamento levou os situacionistas a uma acepção
utilitarista da natureza: “A dominação da natureza pode ser
revolucionária ou se tornar a arma absoluta das forças do passado”
(INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 8, tradução nossa) 9,

for the superior forces of life called for by its own material development” (DEBORD: 2009a, p. 233, grifo
do autor).
7
Em complemento, Marcolini ressalta que o encontro entre os situacionistas franceses e o teórico da
ecologia social Murray Bookchin em 1967 poderia ter sido uma oportunidade para os primeiros
repensarem sua teoria levando em conta o impacto ecológico do progresso técnico-científico. A partir
da década de 1950, Bookchin já documentava sintomas de uma alteração radical dos ambientes naturais
e sociais sob o efeito do desenvolvimento capitalista, chegando à seguinte conclusão: “a revolução se
faz duplamente necessária, para emancipar a humanidade e para preservar a vida das espécies” (Amorós
apud Marcolini, 2022, p. 5).
8
“Mais il faut comprendre que nous allons assister, participer, à une course de vitesse entre les artistes
libres et la policie pour expérimenter et développer l’emploi des nouvelles techniques de conditionnement.
Dans cette course la police a déjà un avantage considérable” (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997,
p. 8).
9
“La domination de la nature peut être révolutionnaire ou devenir l’arme absolue des forces du passé”
(INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 8).
188 • Vias contrárias: educação e capitalismo

declararam no texto A luta pelo controle das novas técnicas de


condicionamento (La lutte pour le contrôle des nouvelles techniques de
conditionnement), de 1958. Em Agora, a I.S. (Maintenant, l’I.S), de 1964,
reafirmaram essa posição:

O caminho para o perfeito controle policial de todas as atividades humanas


e o caminho para a criação livre e infinita de todas as atividades humanas é
um só: é o mesmo caminho das descobertas modernas. Estamos
necessariamente no mesmo caminho que os nossos inimigos – na maioria
das vezes, precedendo-os – mas devemos estar lá, sem qualquer confusão,
como inimigos. O melhor vencerá. A era atual pode testar, mas não empregar
múltiplas inovações, porque está acorrentada à conservação fundamental
de uma ordem antiga (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 368,
tradução nossa, grifo do autor) 10.

Para Marcolini (2020, p. 287-288), a primeira tentativa de crítica do


capitalismo concebida pelos situacionistas falhou ao compreender o
desenvolvimento tecnológico como um processo unidirecional e
predeterminado — uma “corrida de velocidade” —, não atentando para
o fato de que a tecnologia não é uma ferramenta neutra e que está
intrinsecamente ligada às estruturas de poder das quais emerge. Desse
modo, a crença no uso imaginativo dos avanços técnicos e na
possibilidade de usar as mesmas armas dos inimigos contra eles acabou
por reproduzir a ideologia burguesa de progresso — a pedra de toque do
pensamento ocidental 11 — que os próprios situacionistas já haviam
criticado: “Na conduta da vida individual, uma ação situacionista não se
baseia na ideia abstrata do progresso racionalista (segundo Descartes,

10
“La route du contrôle policier parfait de toutes les activités humaines et la route de la création libre
infinie de toutes les activités humaines est une: c’est la même route des découvertes modernes. Nous
sommes forcément sur la même route que nos ennemis – le plus souvent, les précédant – mais nous
devons y être, sans aucune confusion, en ennemis. Le meilleur gagnera. L’époque actuelle peut faire
l’essai mais non l’emploi de multiples innovations, parce qu’elle est enchaînée à la conservation
fondamentale d’un ordre ancien.” (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 368, grifo do autor).
11
Cf. ZACARIAS, 2020, p. 179.
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 189

‘nos tornando senhores e possuidores da natureza’)”


(INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 75, tradução nossa) 12.
Em A sociedade do espetáculo, publicada em 1967, já é possível
identificar uma mudança significativa no pensamento de Debord em
relação à compreensão do desenvolvimento técnico. A teoria crítica
exposta nessa obra parte do pressuposto de que a lógica do mercado,
fundamentada nas relações humanas alienadas e mistificadas pelo
fetiche do capital, passou a determinar e subjugar cada aspecto da
sociedade moderna, submetendo os indivíduos a uma posição de
passividade e não-intervenção — posição de “espectador” — diante da
economia e dos acontecimentos em geral. O espetáculo seria, então, “o
momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social”
(DEBORD, 1997, §42, grifo do autor) 13.
Debord afasta, aqui, o conceito de espetáculo da ideia de “produto
necessário do desenvolvimento técnico, visto como desenvolvimento
natural”, compreendendo-o não como um fenômeno orgânico e neutro,
mas como resultado de um processo que “convém ao automovimento
[econômico] total da sociedade” (SdE §24, grifo do autor). No entanto, ao
mesmo tempo em que a produção econômica autonomizada “espalha,
extensa e intensivamente, sua ditadura” (SdE §42) transformando o
mundo inteiro em “mundo da economia” (SdE §40), seu
desenvolvimento descontrolado a conduz para seu próprio colapso. Daí,
Debord afirma o seguinte:

A vitória da economia autônoma deve ser ao mesmo tempo o seu fracasso.


As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade econômica que foi a

12
“Dans la conduite de la vie individuelle, une action situationniste ne se fonde pas sur l’idée abstraite
du progrès rationaliste (selon Descartes ‘nous rendre maîtres et possesseurs de la nature’)”
(INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, 1997, p. 75).
13
Doravante, A sociedade do espetáculo será referenciada pelas iniciais SdE nas citações, juntamente com
a indicação do número da tese correspondente pelo símbolo “§”.
190 • Vias contrárias: educação e capitalismo

base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substituiu pela


necessidade do desenvolvimento econômico infinito, só pode estar
substituindo a satisfação das primeiras necessidades humanas
sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de
pseudonecessidades que se resumem na única pseudonecessidade de
manutenção de seu reino. Mas a economia autônoma se separa para sempre
da necessidade profunda na medida em que ela sai do inconsciente social que
dependia dela sem o saber. [...] No momento em que a sociedade descobre
que depende da economia, a economia, de fato, depende da sociedade. Esse
poder subterrâneo, que cresceu até parecer soberano, também perdeu sua
força (SdE §§51, 52, grifos do autor).

Enquanto a economia se desenvolve progressivamente


fetichizando as relações que a possibilitam, ela ignora seu próprio poder
de modificar nociva e irreversivelmente o mundo. Nesse contexto, o
progresso técnico-científico é enquadrado pela “racionalidade técnica”
(racionalité technique) 14 ou “instrumentação técnica” (instrumentation
technique) 15 do espetáculo, servindo tanto para a manutenção do
automovimento mercantil quanto para o “reforço constante das
condições de isolamento das ‘multidões solitárias’” (SdE §28). Para
Debord, todo avanço técnico-científico reconhecido ou cooptado pelo
espetáculo — do automóvel à televisão — contribui para manter os
sujeitos-espectadores atomizados e privados da capacidade de
organizarem-se consciente e comunitariamente. Em resumo: “Todas as
forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como
fatores de separações” (SdE §171), isto é, de alienações.
Toda crítica do capitalismo que se propõe radical precisa
considerar o tema da destruição da natureza mediante o
desenvolvimento ilimitado e predatório da economia mercantil, a
exemplo da crítica denotada pelo próprio Marx: “Por isso, a produção

14
SdE §19
15
SdE §45
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 191

capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de


produção social na medida em que solapa os mananciais de toda a
riqueza: a terra e o trabalhador” (MARX, 2017, p. 574). Mesmo ainda não
havendo nenhuma referência explícita à temática ambiental, no livro A
sociedade do espetáculo 16 encontram-se as bases para o florescimento de
uma conscientização ecológica no pensamento de Guy Debord que será
melhor desenvolvida em textos posteriores.

2. O ESPETÁCULO COMO AMEAÇA EXISTENCIAL À SOBREVIVÊNCIA NO


PLANETA

Pode-se considerar que a “virada ecológica” no pensamento de Guy


Debord teve como marco O planeta doente (La planète malade), escrito em
1971 para compor o décimo-terceiro número da revista Internationale
situationniste, que nunca chegou a ser publicado devido à dissolução do
grupo. A partir desse texto, a crítica debordiana admite o problema da
poluição como “fim forçoso” (fin forcée) do desenvolvimento da
economia autonomizada/fetichizada, atestando a compreensão do
progresso econômico sem freios como uma ameaça cada vez mais
palpável. Do mesmo modo, a crítica da racionalização/instrumentação
técnica pelo espetáculo torna-se uma constatação da inevitável
incompatibilidade entre a continuação do capitalismo e a manutenção
das condições mínimas necessárias para a existência biológica dos seres
humanos, a “sobrevivência” (survie):

A época que dispõe de todos os meios técnicos para alterar absolutamente


as condições de vida em toda a Terra é igualmente a época que, através do

16
Na adaptação fílmica de A sociedade do espetáculo, lançada em 1973, Debord já estava mais
sensibilizado às questões ambientais e fez uso de imagens de poluição para ilustrar a teoria exposta no
livro homônimo: Usina em Marghera poluindo o ar de Veneza; fábricas que unem suas fumaças às dos
automóveis para poluir a Cidade do México; pilha de lixo em frente à igreja de Saint-Nicolas-des-
Champs; a água suja do rio Sena (Cf. DEBORD, 2006, p. 1209).
192 • Vias contrárias: educação e capitalismo

mesmo desenvolvimento técnico e científico separado, dispõe de todos os


meios de controle e de previsão matematicamente indubitável para medir
com exatidão e com antecedência para onde leva — e até que data — o
crescimento automático das forças produtivas alienadas da sociedade de
classes: isto é, para medir a rápida degradação das próprias condições de
sobrevivência, no sentido mais geral e mais trivial do termo (DEBORD, 2006,
p. 1063) 17.

Desde seus escritos anteriores, Debord já considerava a sociedade da


economia superdesenvolvida incapaz, por seu próprio funcionamento, de
fornecer possibilidades qualitativamente superiores de vida ao relegar os
indivíduos à não-vida (non-vie) do trabalho e consumo alienados, isto é, à
mera sobrevivência. Em La planète malade, suas reflexões passam a
considerar como sendo inerente ao desenvolvimento do capitalismo o
comprometimento das condições de sobrevivência quantitativamente
ampliada. Nos termos de Debord, a produção de não-vida atravessou o
último estágio de seu progresso e tornou-se produção direta e manifesta
de morte 18. Esse comprometimento pôde ser reconhecido nos efeitos
residuais da produção industrial — o rápido aumento da poluição química
da atmosfera respirável, da água dos rios, lagos e oceanos, os efeitos do
barulho, a invasão dos espaços por materiais plásticos imperecíveis 19 —,
nos desdobramentos inesperados do desenvolvimento técnico — a
falsificação insensata dos alimentos pela indústria alimentícia, o
aumento irreversível do acúmulo de radioatividade pela exploração da

17
“L’époque qui a tous les moyens techniques d’altérer absolument les conditions de vie sur toute la
Terre est également l’époque qui, par le même développement technique et scientifique séparé,
dispose de tous les moyens de contrôle et de prévision mathématiquement indubitable pour mesurer
exactement par avance où mène — et vers quelle date — la croissance automatique des forces
productives aliénées de la société de classes: c’est-à-dire pour mesurer la dégradation rapide des
conditions mêmes de la survie, au sens le plus général et le plus trivial du terme” (DEBORD, 2006, p.
1063).
18
Cf. Debord, 2006, p. 1066.
19
Cf. Debord, 2006, p. 1064.
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 193

energia nuclear, o investimento em guerras atômicas e bacteriológicas 20


— e ainda na comoditização de elementos essenciais à sobrevivência: “[…]
tudo entrou na esfera dos bens econômicos, mesmo a água das fontes e o
ar das cidades […] a gestão de tudo se tornou um assunto diretamente
político, até as ervas dos campos e a possibilidade de beber, até a
possibilidade de dormir sem soníferos demais ou de se banhar sem sofrer
de alergias demais” (DEBORD, 2006, p. 1066, 1067, grifo do autor). 21
Ao incorporar a questão ambiental em sua análise, Debord se opõe
diretamente aos discursos errôneos e enganosos transmitidos pelo
espetáculo dominante. “A poluição está hoje na moda”, afirma, “ela se
apodera de toda a vida da sociedade e é representada ilusoriamente no
espetáculo” (DEBORD, 2006, p. 1063, tradução nossa) 22. Para Debord, as
discussões sobre poluição promovidas pelos senhores da sociedade
apenas dissimulam as raízes do problema na tentativa de evitar a
revolta dos explorados e mais afetados pelas catástrofes ambientais
iminentes. Quando muito, propõem reformismos a fim de conciliar o
imparável progresso econômico com novas oportunidades de lucro em
roupagem ecológico-científica: “O setor mais moderno da indústria se
lança aos diferentes paliativos da poluição, como se fosse um novo
mercado” (DEBORD, 2006, p. 1065) 23. A crítica da técnica

20
Cf. Debord, 2006, p. 1064.
21
“[...] tout est entré dans la sphère des biens économiques, même l’eau des sources et l’air des villes [...]
la gestion de tout est devenue une affaire directement politique, jusqu’à l’herbe des champs et la
possibilité de boire, jusqu’à la possibilité de dormir sans trop de somnifères ou de se laver sans souffrir
de trop d’allergies” (DEBORD, 2006, p. 1066-1067, grifo do autor). Em Thèses sur l’Internationale
situationniste et son temps (1972), Debord vai retomar esse mesmo argumento usando um jogo de
palavras entre bens econômicos e mal econômico: “Au moment où tout est entré dans la sphère des
biens économiques,même l’eau des sources et l’air des villes, tout est devenu le mal économique”
(DEBORD, 2006, p. 1101, grifo do autor).
22
“La ‘polution’ est aujourd’hui à la mode […] elle s’empare de toute la vie de la société, et elle est
représentée illusoirement dans le spectacle” (DEBORD, 2006, p. 1063).
23
“Le secteur le plus moderne de l’industrie se lance sur les différents palliatifs de la pollution, comme
sur un nouveau débouché” (DEBORD, 2006, p. 1065).
194 • Vias contrárias: educação e capitalismo

instrumentalizada pela razão espetacular torna-se também crítica à


passividade e inocuidade da ciência no espetáculo, limitada a descrever
a velocidade da destruição da natureza:

A impossibilidade está de fato já perfeitamente demonstrada por todo o


conhecimento científico separado, que discute somente sua data de
vencimento; e os paliativos que, se fossem aplicados firmemente, a
poderiam regular superficialmente. Uma tal ciência apenas pode
acompanhar em direção à destruição o mundo que a produziu e que a
mantém; mas ela é obrigada a fazê-lo com os olhos abertos. Ela mostra
assim, num nível caricatural, a inutilidade do conhecimento sem uso
(DEBORD, 2006, p. 1064, tradução nossa) 24.

Em Teses sobre a Internacional Situacionista e seu tempo (Thèses sur


l’Internationale situationniste et son temps), publicado em 1972 com
coautoria de Gianfranco Sanguinetti, Guy Debord reforça o
posicionamento defendido em La planète malade dando continuidade
aos argumentos do texto predecessor. Aqui, Debord reafirma que o
sistema econômico “entrou por si mesmo, pelo seu próprio movimento,
na via da autodestruição” e “ligou seu destino à procura de uma
deterioração literalmente insuportável de todas as condições de vida” 25
ao sacrificar as possibilidades de desenvolvimento qualitativo da vida
em favor do desenvolvimento quantitativo da economia. Diante dessa
compreensão, a poluição seria o infeliz resultado do pensamento
quantitativo burguês, a abundância efetivamente envenenada da
mercadoria e, juntamente com o proletariado, a concretização da

24
“L’impossibilité est en fait déjà parfaitement démontrée par toute la connaissance scientifique
séparée, qui ne discute plus que de l’échéance; et des palliatifs qui pourraient, si on les apliquait
fermement, la reculer légèrement. Une telle science ne peut qu’accompagner vers la destruction le
monde qui l’a produite et qui la tient; mais elle est forcée de le faire avec les yeux ouverts. Elle montre
ainsi, à un degré caricatural, l’inutilité de la connaissance sans emploi (DEBORD, 2006, p. 1064).
25
“[…] le fonctionnement du système économique est lui-même entré, de son propre mouvement, dans
la voie de l’auto-destruction […] car le système social existant a lié son sort à la poursuite d’une
détérioration littéralment insupportable de toutes les conditions de vie” (DEBORD; SANGUINETTI, 2006,
p. 1101).
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 195

economia política 26. Ainda nas Thèses…, o uso da mídia é abertamente


denunciado como instrumento de governo do espetáculo com finalidade
de ocultar os defeitos onipresentes de seu sistema, e, portanto, de
dissimular as causas e os efeitos reais da poluição. Desse modo, a
“enxurrada de discursos moralizantes e promessas de soluções à venda
sobre o que os governos e seus mass media chamam de poluição”
(DEBORD; SANGUINETTI, 2006, p. 1098) 27 faz parte da linguagem
espetacular dominante, cujo poder de persuasão leva os espectadores a
crer em “gestores da poluição que têm como tarefa primeira conduzir a
luta contra a sua própria poluição” (DEBORD; SANGUINETTI, 2006, p.
1093) 28.
A problemática ecológica levantada acima será retomada nos
Comentários sobre a sociedade do espetáculo, de 1988, sob a ótica do
estágio “integrado” da sociedade espetacular. O espetacular integrado
apresentado nessa obra se caracteriza, dentre outros aspectos
importantes, pela incessante renovação tecnológica, pela fusão
econômico-estatal e por fundamentar a linguagem de seu discurso no
segredo generalizado e na mentira sem contestação . É também o 29

momento em que a economia mercantil, elevada à condição de reino


autocrático, chegou ao ponto de não retorno de “guerra aberta contra a
humanidade; não apenas contra as possibilidades de vida do homem,
mas também contra as de sua sobrevivência”, justificando a crítica que
a definiu como “a negação completa do homem” (DEBORD, 1997, p. 197).

26
Cf. DEBORD; SANGUINETTI, 2006, p. 1101.
27
“L’apparition récente dans le spectacle d’un flot de discours moralisateurs et promesses de remèdes
de détail à propos de ce que les gouvernements et leurs mass media appellent la pollution” (DEBORD;
SANGUINETTI, 2006, p. 1098).
28
“[…] les managers de la pollution qui se donnent pour première tâche de conduire la lutte contre leur
propre pollution” (DEBORD; SANGUINETTI, 2006, p. 1093).
29
Cf. DEBORD, 1997, p. 175.
196 • Vias contrárias: educação e capitalismo

Diante desse cenário, Debord manifestou uma preocupação ainda mais


aguda com os rumos da humanidade refém de um sistema que a
arrastava para dentro do seu próprio colapso:

O espetáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa


que ele estabeleceu. A poluição dos oceanos e a destruição das florestas
equatoriais ameaçam a renovação de oxigênio na Terra; a camada de ozônio
não suporta o progresso industrial; as radiações de origem nuclear se
acumulam de modo irreversível. O espetáculo conclui que isso não tem
importância. […] Na conferência internacional de Genebra, em dezembro de
1986, tratava-se apenas de uma proibição mundial da produção de
clorofluorcarbono, o gás que faz desaparecer de pouco tempo para cá, mas
em ritmo acelerado, a fina camada de ozônio que protegia este planeta —
um dia vamos nos lembrar disso — contra os efeitos nocivos da radiação
ultravioleta. Daniel Verilhe, representante da filial de produtos químicos da
Elf-Aquitaine 30, e por esse motivo integrante da delegação francesa
nitidamente contrária a essa proibição, fez uma observação cheia de
sentido: “São necessários o mínimo três anos para conseguir eventuais
substitutos do produto, e os custos podem quadruplicar.” É sabido que essa
fugidia camada de ozônio, em tal altitude, não pertence a ninguém e não
tem valor mercantil. O estrategista industrial pôde, portanto, fazer com que
seus oponentes avaliassem todo o inexplicável descuido econômico que
estavam mostrando, com este apelo à realidade: “É muito perigoso basear
uma estratégia industrial em imperativos ambientais.” (DEBORD, 1997, p.
193, 196 – 197, grifo do autor).

Nos Comentários…, é digno de nota que Debord recorreu a notícias


da época para verificar a precisão de seus argumentos, buscando
sustentar sua teoria crítica na própria realidade factual. Ao citar
episódios como, por exemplo, a repercussão do incêndio na usina de
reciclagem de lixo nuclear de 1957 em Windscale, Inglaterra, ou a
declaração de Pierre Bacher, diretor-adjunto da EDF 31 sobre a segurança
das centrais nucleares em junho de 1987, Debord confirma sua tese

30
Empresa petrolífera francesa.
31
Électricité de France. Companhia francesa, até então estatal, de produção e distribuição de energia
elétrica majoritariamente de origem nuclear.
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 197

sobre o método da “desinformação” utilizado pelo discurso espetacular


para manutenção do poder estabelecido. Segundo ele, a desinformação
não pode ser confundida com a simples mentira ou negação dos fatos,
mas consiste no mau uso da verdade, isto é, deve conter uma parcela de
verdade deliberadamente manipulada 32. No caso do incidente de
Windscale, rebatizado de Sellafield como forma de confundir a opinião
pública, ficou-se sabendo que o governo inglês manteve secreto durante
trinta anos um relatório sobre a catástrofe capaz de abalar a confiança
do público na energia nuclear. No entanto, nenhuma dessas medidas
conseguiu conter o aumento da mortalidade por câncer e leucemia nas
redondezas da catástrofe 33. Quanto à declaração de Pierre Bacher 34,
Debord percebe que mesmo os reformistas defensores da energia
nuclear admitem que sua exploração não está destituída de potencial
destrutivo, ao que Debord conclui com acidez: “já que o acidente é
sempre possível, o que se deve evitar é que ele atinja um patamar
catastrófico, e já está bom. Basta contaminar aos poucos, com
moderação” (DEBORD, 1997, p. 196). O ato falho de Bacher configurou
em mais um atestado do caráter autofágico da produção econômica.
Ao concluir nos Comentários…, que “já não existe nada, na cultura e
na natureza, que não tenha sido transformado e poluído segundo os
meios e os interesses da indústria moderna” (DEBORD, 1997, p. 173),

32
Cf. DEBORD, 1997, p. 201-202.
33
Cf. DEBORD, 1997, p. 193-194.
34
“Em junho de 1987, Pierre Bacher, diretor-adjunto da EDF, expôs a última doutrina sobre a segurança
das centrais nucleares. Se elas forem equipadas com comportas e filtros, fica mais fácil evitar catástrofes
maiores, a fissão ou a explosão do núcleo, que afetariam o conjunto de uma ‘região’. É o que acaba
acontecendo quando se quer confinar demais. Cada vez que a máquina ameaça disparar, é melhor
descomprimir aos poucos, molhando uma estreita faixa vizinha de alguns quilômetros, faixa que será a
cada vez prolongada de maneira muito diferente e aleatória, ao sabor dos ventos. Pierre Bacher revelou
que, nos dois anos anteriores, discretas experiências feitas em Cadarache, na região de Drôme,
‘mostraram concretamente que os resíduos — essencialmente gases — não ultrapassam uns tantos por
mil, na pior hipótese 1% da radioatividade existente no núcleo’. Portanto, essa pior hipótese é muito
moderada: 1%” (DEBORD, 1997, p. 195-196).
198 • Vias contrárias: educação e capitalismo

Debord lamenta por um mundo que se perdeu, poluído e


irreversivelmente devastado pelo progresso econômico. O tom
melancólico de sua análise aproxima essa obra das reflexões de cunho
mais intimista expressas em In girum imus nocte et consumimur igni,
filme de 1978 em que a crítica do espetáculo se confunde com
rememoração de acontecimentos pessoais. Em determinado trecho do
filme, Guy Debord se recorda da cidade de Paris no tempo de sua
juventude, onde a poluição e o espetáculo ainda não haviam se
apoderado de cada aspecto da vida, revelando uma faceta mais afetiva
da relação de Guy Debord com a natureza:

Ainda não se tinha visto, por culpa do governo, o céu escurecer e o bom
tempo desaparecer, e a falsa bruma da poluição cobrir em permanência a
circulação mecânica das coisas, neste vale da desolação. As árvores não
tinham morrido sufocadas; e as estrelas não estavam apagadas pelo
progresso da alienação (DEBORD, 2022, p. 24).

O paralelo estabelecido entre poluição e espetáculo como agentes


de negação da vida deixa evidente o quanto a pauta ecológica adquiriu
importância nas considerações de Debord sobre o mundo moderno. Ao
longo de sua trajetória, o autor encontrou na realidade as evidências que
comprovassem sua percepção de que a luta contra a poluição precisa ser
uma luta contra o capital. E, do mesmo modo, a luta contra o capital
precisa levar em consideração a natureza não como algo a ser dominado,
mas como aquilo que envolve e perpassa todas as possibilidades de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos grandes méritos da teoria crítica do espetáculo está em


apontar o tensionamento entre as forças produtivas em favor do capital
e a preservação da natureza como a prova definitiva da
incompatibilidade entre a manutenção do capitalismo com as
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 199

possibilidades de vida humana no planeta. Mesmo que num primeiro


momento sua trajetória intelectual tenha sido orientada por uma visão
utilitarista da natureza para fins revolucionários, seu posicionamento
foi se modificando na medida em que a racionalidade técnica
espetacular alcançava maior poder de devastação. Com isso, Debord
adotou uma perspectiva crítica do progresso, se aproximando de
autores como Walter Benjamin: “porque a avidez de lucro da classe
dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a
humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue”
(BENJAMIN, 2011, p. 69).
As considerações de Debord também anteciparam discussões ainda
atuais, como a cooptação das pautas ecológicas por ideologias
reformistas alinhadas ao capitalismo. Noções como “desenvolvimento
sustentável”, apresentado no relatório Brundtland de 1987, e “economia
verde”, que defendem conciliar desenvolvimento econômico e
minimização de danos ao meio-ambiente, obscurecem a constatação
inquestionável de que a mecânica do capitalismo é predatória dando-
lhe um verniz “ecologicamente correto”. Da mesma forma, mecanismos
paliativos como o Protocolo de Kyoto, gestado na década de 1990 35,
jamais atingem a raiz do problema por estarem sujeitos às limitações
impostas pela própria economia de mercado. A “luta contra a poluição”
que não tiver por objetivo a transformação radical do sistema produtivo
está fadada ao fracasso.
Para o teórico do espetáculo, a sociedade mais poderosa
economicamente é também a mais doente, aquela que possui a
capacidade para recriar concretamente o mundo inteiro à imagem e

35
Esses exemplos foram elencados por Daniel Cunha no prefácio de sua tradução de La planète malade:
O planeta enfermo (CUNHA, Daniel apud DEBORD, 2009b, p. 151 – 152).
200 • Vias contrárias: educação e capitalismo

semelhança de sua enfermidade, como um planeta doente 36. A


emergência da crise climática tornou-se generalizada e palpável a ponto
de não poder mais ser encoberta pelo discurso espetacular, a
comoditização de elementos essenciais à vida — como a água, ar
respirável e alimento não envenenado — vem fazendo a mera
sobrevivência cada vez mais escassa. Diante de um cenário que beira o
catastrófico, o alerta de Debord não deve ser entendido como uma
defesa da natureza em abstrato, mas como um alerta para a
autopreservação da humanidade. “O velho oceano é em si mesmo
indiferente à poluição”, diz o autor, “mas a história não o é” (DEBORD,
2006, p. 1066, tradução nossa) 37. Por isso o slogan “revolução ou morte”
evocado em La planète malade ainda se faz tão necessário: a revolução,
nesse sentido, tornou-se a mais importante certeza científica relativa à
sobrevivência humana no planeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única: Obras escolhidas. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense,
2011.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Comentários sobre a sociedade do


espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DEBORD, Guy. Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de


organização e de ação da tendência situacionista internacional. In: JACQUES, Paola
Berenstein (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade.
Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 43–
59.

“Une société toujours plus malade, mais toujours plus puissante, a recréé partout concrètement le
36

monde comme environnement et décor de sa maladie, en tant que planète malade” (DEBORD, 2006,
1064, grifo do autor).
37
“Le vieil océan est en lui-même indifférent à la pollution; mais l’histoire ne l’est pas” (DEBORD, 2006, p.
1066).
Inácio José de Araújo da Costa; Eduardo Chagas • 201

DEBORD, Guy. La planète malade In: DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, coll.
Quarto, 2006, p. 1063–1069.

DEBORD, Guy; SANGUINETTI, Gianfranco. Thèses sur l’Internationale situationniste et


son temps In: DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, coll. Quarto, 2006, p. 1088–
1133.

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1957‐August 1960). Translated by Stuart Kendall and John McHale. Los Angeles:
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INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale situationniste: Édition


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