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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

No princípio era o verbo:


reflexões sobre o mundo
e a cultura surda
Sabrina Sales Araújo
Libras - Prof. Maurício Loubet
Introdução
Essa apresentação foi elaborada adotando como texto base “Recortes de uma vida
descobrindo o amanhã ” da escritora e pedagoga surda sul mato-grossense, Shirley Vilhalva.
Trata-se de um texto que relata memórias de vida de uma mulher surda desde a sua infância.
Pretende-se abordar algumas reflexões suscitadas por esse texto através de recortes sobre a
experiência de vida da autora que foram complementadas por buscas em artigos, livros e vídeos
que abordam os diferentes temas levantados atinentes à surdez, a cultura surda e ao ensino de
surdos. Para isso, propõe-se um percurso que favoreça a passagem pelos seguintes pontos:

A multiplicidade na diferença: surdez e deficiência auditiva;


A apreensão do mundo da pessoa surda;
Relações e interações com ouvintes – família e escola;
A aquisição da língua e o desenvolvimento da identidade;
Integração, inclusão e exclusão escolar: as escolas bilíngues como alternativa;
A opção e a decisão pelos aparelhos auditivos.
Não há muita coisa escrita por surdos sobre a surdez. Mesmo assim, considerando
que só fiquei surdo depois de ter aprendido a língua, não estou em melhor posição
do que uma pessoa ouvinte para imaginar como seria nascer no silêncio e chegar à
idade da razão sem adquirir um veículo de pensamento e comunicação. Só o tentar
já mostra a eloquência da extraordinária abertura do Evangelho de são João: No
princípio, era o Verbo. Como é que se formulam conceitos nessas
condições?
É isso — essa relação da linguagem com o pensamento — que compõe a mais
profunda, a suprema questão quando refletimos sobre o que aguarda, ou pode
aguardar, aqueles que nascem ou muito cedo se tornam surdos.

SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. (p.1)
O começo e o interpretar o mundo
através olhos
Morávamos próximo ao aeroporto e quando passava um avião minha mãe falava e
apontava: Shirley, olha lá o seu pai!, realmente eu não fazia ligação com aquele que
eu conhecia em casa, que era o tal de pai, que o mesmo estava sendo referido
através do avião. (p. 9)

Os meus olhos conseguiam registrar muitas coisas mesmo sem elaboração, ou seja,
não sabia com utilizar tantas coisas que via, tudo acontecia tão de repente, que não
conseguia acompanhar [...] eu nunca sabia o que estava acontecendo.
O começo e o interpretar o mundo
através olhos
[...] logo vi uma criança chegando sem entender o que ocorria, mamãe me disse
que era meu irmão, o que é irmão? [...] o nome dele é Dario e apontou para o
bebê, piorou meu entendimento, Dario, Dario, será que todos chamam Dario?
(p.10)
Cada cena que passava ficava gravada em meu cérebro, que no momento não fazia
que eu recordasse ou ligasse os fatos passados ou presente. O que passava dentro
de minha cabeça, o mais importante era o que estava acontecendo, o que
acontecerá precisará acontecer para eu poder entender (p.10)
Essa formação de mundo era
feita visualmente...
Como o tempo passou estava muito rápido e eu continuava sem entender o que se
passava, eu não conseguia expor meu pensamento, muitas imagens ocorrem
internamente, parecendo que tudo que vejo, fotografo e depois fica guardado
dentro de uma caixa na cabeça e não tem para onde ir, não tem como sair, eu não
sabia como expor por não ter uma canal de comunicação com o mundo durante
minha idade de três a quatro anos. (p. 12)
Comunicação com a família

Quando criança eu não sabia que era surda – parcial por que era difícil alguém
conversar comigo. [...] Em casa, meus familiares pouco conversavam, mas quando eles
falavam de frente apontando o que eles queriam eu os entendia. [...] Eu tinha
dificuldade de comunicar, eu sempre procurava evitar pessoas estranhas, eu sempre
tinha medo e sentia insegura de ter descoberto a existência da comunicação. (p. 14-15)
Várias vezes me encontrei balbuciando ou falando ou mesmo gritando, pensava que
estava falando como uma pessoa ouvinte e logo descobri que não era verdade, o que
eu imaginei ter dito não chegou a ser compreendido e muito menos ouvido por
alguém e que quando as pessoas diziam algo para mim eu verificava que não estava
compreendendo. (p.13)
Percebendo a diferença...
O que mais me chamava a atenção era quando as pessoas falavam (abrindo e
fechando a boca), principalmente os professores da escola:

• Observação do professor alfabetizador: desenho/Imagem – nome – fala;


• Brincadeira pau a pique: Por que eles correram e por que eu fiquei?
• Observação da dinâmica de um diálogo oral: Por que comigo não ocorre? leitura
labial ou orofacial, quando a face é a fonte luminosa de comunicação e os olhos
procuram sempre “ouvir” – esforço, intuição, busca por pistas e palavras chave.
• Aprendendo palavras através de figuras na escolinha da Maria: palavra HOMEM.
Surdez ou deficiência auditiva?
Sou filha de pais ouvintes, sendo que do lado
paterno tenho primos surdos, o que me leva
acreditar que minha surdez é hereditária.
Os surdos quando usuário da LIBRAS sente
necessidade de um conforto linguístico na
cultura visual- motora, enquanto a
necessidade dos deficientes auditivos é oral-
auditiva, não generalizando pois hoje
encontramos deficientes auditivos e surdos
parciais encontrando sua identidade na
comunidade surda usuária da Língua de
Sinais. (p. 21)
Relações na vizinhança e em
casa

• Prima-irmã Ângela;
• Amigas Meire e Kátia que a incluía nas brincadeiras com as demais crianças;
• Irmãos Dario e Nilton – perto na brincadeira e longe na comunicação
Na escola
• Sentar na frente ou no meio da sala?
[...] minha avó avisou a professora para que deixasse eu sentar na primeira carteira
por que eu não ouvia direito, na verdade eu não ouvia nada apenas lia as palavras
que as pessoas diziam, lendo os lábios, a expressão do rosto e das mãos fazendo
mímica representativa ou indicativa, usando exageradamente a intuição e vivia
mais na dúvida do que na certeza (p. 18).
[...] eu até podia saber o nome de um objeto mas não fazia relação ao seu
significado real e nem sabia a sua utilidade. (idem)
• Avaliação da visão e audição dos alunos: percepção de que não ouvia barulhos,
mas que sentia vibrações de altos ruídos, sem discriminar de onde vinham.
Ajuda, rejeição, frustração e
isolamento
• Falta de compreensão das explicações da professora, pedia explicações mais simples e
suas colegas explicavam até conseguir entender de forma mais concreta, com o uso de
sinais e mímica;
• Gosto por esportes - comunicação corporal;
• Rejeição e exclusão por parte de outras crianças que achavam que surdez era uma
doença contagiosa.
• Bullying e aceitação das imposições;
• Desejo de estar em uma escola onde as pessoas fossem surdas, pois a falta de
comunicação com os ouvintes causavam sentimento de isolamento;
• Insegurança acadêmica no E. F, foi muito marcante por aprender a ser copista sem saber
o significado e o significante da língua escrita
O sonho do magistério
• Ajuda do padrasto
Passava noites e mais noites lendo e as vezes chorava muito por não entender uma
simples frase.
• Impossibilidade de ser professora pois havia dificuldades com concordância
verbal e nominal, o que dificultaria a comunicação com os alunos.
• Estágio no Centro de Atendimento do Deficiente da Áudio Comunicação: como
uma surda poderá ensinar alunos surdos?
A causa das dificuldades
A leitura labial, mesmo em interação com gestos e expressões
corporais, quando interpretada por uma pessoa surda não segue os
mesmos padrões gramaticais da língua que está sendo falada. O
conceito de princípio, meio e fim, não acontece com o surdo como é
normal com uma criança ouvinte. Sua necessidade vai direto ao fim,
ou ao meio e muito depois ao princípio do que se é falado. Daí sua
dificuldade, mesmo alfabetizado, de elaborar e interpretar uma
história.
Renascendo...
Eu comecei a viver realmente como as demais
pessoas e entender o porque de minha
existência, tudo ficou melhor quando eu
descobri e tive a compreensão do que meu
padrasto havia me ensinado sobre encontrar
um mundo melhor, procurando ser cada dia
melhor e dizia ainda que “Quando eu
soubesse viver em paz com a intimidade de
minha alma eu poderia compartilhar com
outras pessoas”, verdade, isso eu só encontrei
quando entrei para o mundo totalmente
visual- espacial na comunidade surda. (p.29)
Correntes sobre a educação dos
surdos e formas de classificação
• Oralismo – perspectiva integracionista com foco na aprendizagem da língua majoritária,
proibindo gestos e outras formas de comunicação;
Oralismo

• Comunicação Total – caracteriza-se pelo conjunto de recursos comunicativos (orais, gestuais,


escritos) na busca de ensinar a língua majoritária e de dar acesso a outras áreas curriculares. A
associação de recursos, entre eles os sinais pode ou não ser utilizada como mero suporte para
aprender o português. Sua incorporação foi variada e dentre as principais possibilidades está o
bimodalismo;
• Bilinguismo e bilinguismo-bicultural: há modelos variados de implantação, considera a
condição bilíngue da pessoa surda e valoriza a Língua de Sinais como primeira língua capaz de
desenvolver a identidade e a cognição. O português deve ser aprendido como L2, prevalecendo
sua forma escrita apenas.
Aparelho auditivo
• A novidade dos sons aos 12 anos:
Não usei o aparelho, não me adaptei e
também sentia vergonha de usar pois as
pessoas debochavam demais e faziam
brincadeiras que ofendia. Voltei a usar
aparelho com vinte anos, recebi muito apoio
e acompanhamento para adaptação do
segundo aparelho. Nessa fase aproveitei mais
por saber qual era o meu objetivo do uso que
faria do aparelho auditivo.
• Descoberta da surdez neurossensorial
severa bilateral: operar ou não?
Educação bilíngue, uma
alternativa?
A educação bilíngue desloca o lugar antes dado à
língua majoritária, valorizando a LIBRAS como
língua no contexto de escolar e a experiência
cultural da pessoa surda. Pode variar entre
ensino da L1 primeiro ou simultaneamente a
aprendizagem da L2. A grande dificuldade de sua
implementação é que a mudança de perspectiva
é gradual e requer recursos materiais e humanos
aptos ao ensino dessa proposta, isto é, que
todos os funcionários se comuniquem usando
libras, que haja aulas de Libras com professores
surdos e disponibilidade de atendimento de
apoio em contraturnos.
Faculdade
• Depois de muitas tentativas fracassadas conseguiu cursar Pedagogia na UCDB;
• Apresentou-se como surda e se sentiu leve, antes disso tinha dificuldades em se aceitar;
• Foi ajudada por colegas de classe, entre eles alunos especiais;
• Ofertou palestras sobre Libras em troca de bolsa de estudo e conheceu instituições
preocupadas com a promoção da pessoa surda e da educação, como a Federação
Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS);
• Realizou o 1º Encontro Sul mato-grossense de surdos;
• Padre Morales a atualizava sobre questão das conquistas dos surdos no mundo e a
colocou em contato com aldeias indígenas de diferentes etnias, onde houve contato com
indígenas surdos e quando ela começou a se engajar na luta dessas outras minorias.
A relação entre letramento e minorias, uma relação instável, confusa,
heterogênea, cujos corpos e domínio perpassam, necessariamente, por
questões de língua, de colonialismo, do poder da normalização, do
poder das identidades, do saber e do olhar das representações da
alteridade e das imagens do(s) outro(s). Skilar (2013)
Referências
GÓES, Maria Célia Rafael. Orientações educacionais para o surdo In: GÓES, Maria
Célia Rafael. Linguagem, Surdez e Educação. Campinas – SP: Autores Associados,
1996.
Oliver, Sacks. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo – SP:
Companhia das Letras, 2010.
SKLIAR, Carlos. Prefácio. A pergunta pelo outro da língua; a pergunta pelo mesmo
da língua. In: LODI, Ana Claudia B [et al] (org). Letramento e minorias. Porto Alegre
– RS: Mediação, 6. ed. 2013.
VILHALVA, Shirley. Recortes de uma vida: descobrindo o amanhã

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