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CAMPBELL: O HERÓI DE MIL FACES

O percurso padrão da aventura mitológica do


herói é uma magnificação da fórmula
representada nos rituais de
passagem: separação-iniciação-retorno que
podem ser considerados a unidade nuclear do
monomito. Um herói vindo do mundo cotidiano
se aventura numa região de prodígios
sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e
obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de
sua misteriosa aventura com o poder de trazer
benefícios aos seus semelhantes. 

Campbell, 1949.
A partida

Aos vinte e cinco anos o franzino Joseph Campbell (1904—


1987) era um recém-graduado, bacharel e mestre com a
utilíssima titulação em artes liberais com ênfase em literatura, na
prestigiosa Universidade Colúmbia.

Parecia destinado a uma vida pacata de um acadêmico


universitário, candidatando-se ao doutorado. Porém, sentiu-se
atraído em combinar sânscrito, arte moderna e literatura medieval
para sua pesquisa doutoral. Seu projeto de pesquisa acabou
rejeitado.
A INICIAÇÃO

Desapontado pelas formalidades universitária, Campbell refugiou-se em uma cabana


no meio das florestas dos montes Apalaches, próximo a uma colônia de artistas em
Woodstock, NY. Por cinco anos aderiu a um plano de leitura rigoroso, tomando-lhe
doze horas de seu dia. Aos poucos, começou a notar um padrão nos mitos em que lia.

Campbell fez um minucioso escrutínio de mitos de todos os continentes. Fez uma


leitura comparativa sistemática dos mitos como Fraser. Levou os mitos a sério como
Cassirer. Enxergou um padrão arquetípico universal – inconsciente – conforme o
conceito de C. G. Jung. Adaptou a teoria dos ritos de passagem de van Gennep.
Ainda na tradição da escola do mito e rito, inspirou-se no grupo de classicistas
chamado de Cambridge Ritualists. Emprestou o neologismo “monomito” de James
Joyce, o qual o usara em Finnegans Wake.
O RETORNO

A confirmação de suas suspeitas veio quando em 1931 fez uma pausa na sua vida de
ermitão e visitou o escritor John Steinbeck na Califórnia. Lá conheceu o biólogo
marinho e filósofo Ed Ricketts (1897-1948). Ricketts era uma figura tão marcante que
inspiraria um livro de Steinbeck. Serviria também de modelo para o arquétipo da
jornada do herói de Campbell. Desse modo, o autor chegou à conclusão que os mitos
heroicos partilham uma estrutura básica a qual se referiu como monomito.

Joseph Campbell passaria ainda alguns anos na cabana até que, em paz com sua teoria
consolidada, aceitou um emprego no Sarah Lawrence College, uma pequena
faculdade de artes liberais ao norte da Cidade de Nova Iorque. Alguns anos mais
tarde, publicaria o livro O herói de mil faces que o tornaria um famoso mitólogo e
estudioso das religiões.
O resultado foi uma síntese de estudos literários e mitológicos, antropologia, filologia
e psicologia. Seguem sua narratologia a redação de romance best-sellers, as histórias
em quadrinhos de super-heróis e os filmes hollywoodianos.
AS FASES DA JORNADA DO HERÓI

Campbell delineou uma narrativa cíclica de dezessete estágios pelos


quais o herói – como Osíris, Édipo, Prometeu, Teseu, Ulisses, Buda,
Moisés ou Jesus – deve passar.

O livro é um compilado dos mitos mais famosos e presta como uma


boa introdução a eles. Campbell, como o mitologista Frazer, escreve
bem e teve uma ampla repercussão. Sua obra seria traduzida para
várias línguas.

Em suma, as fases podem ser representadas no esboço a seguir:


A PARTIDA

 O chamado da aventura: alguma coisa provoca o herói a


sair de seu mundo cotidiano.
 A recusa do chamado: inicialmente, há uma hesitação ao
chamado.
 O auxílio sobrenatural: uma intervenção sobrenatural
compele o herói a seguir seu destino.
 A passagem pelo primeiro limiar: o teste, portão ou início
da jornada separa o herói da sua vida pretérita.
 O ventre da baleia: a dificuldade inicial quase aborta a
jornada. É a saída do mundo conhecido.
A INICIAÇÃO

 O caminho de provas: o herói passa por muitas dificuldades que


o transforma.
 O encontro com a deusa: uma ajuda divina dá poderes e meios
para vencer a jornada.
 A mulher como tentação: uma tentação física ou psicológica
(não necessariamente uma mulher).
 A sintonia com o pai: um ato reconciliatório ou expiatório com o
arquétipo paterno.
 A apoteose: iluminado e aceitando seu destino, o herói prepara-se
para o clímax.
 A bênção última: conquista o objetivo de sua jornada.
O RETORNO

 A recusa do retorno: uma vez vitorioso, hesita.


 A fuga mágica: Há risco de o herói falhar, mas aparece um escape
extraordinário.
 O resgate com auxílio externo: recebe ajuda para voltar ao seu mundo.
 A passagem pelo limiar do retorno: a saída do mundo desconhecido.
 Senhor dos dois mundos: o herói domina agora o conhecido e o
desconhecido.
 Liberdade para viver: com a sabedoria e poderes adquiridos, goza a
vida ordinária com maior plenitude.
CRÍTICA
Se George Lucas, Stanely Kubrick e a Disney empregaram exaustivamente com sucesso a fórmula
narrativa do herói de Campbell; os scripts de Hollywood também exauriram o monomito.
Consequentemente, os filmes viraram enlatados. Há outros temas e parâmetros heroicos no mundo
(inclusive com heroínas, dando um aspecto diferente do mundo masculino do herói), mas o clichê
virou uma fórmula segura para cair no gosto do público.

Outra análise comparativa é a do mitotipo Rank-Raglan. Originalmente proposta pelo psicanalista


Otto Rank e refinada pelo Barão Raglan, um aficionado pela antropologia, essa tipificação descreve
os traços biográficos dos heróis. A diferença com Rank, que restringe os feitos heroicos ao início da
vida, especialmente com o nascimento extraordinário do herói, Campbell foca na ruptura da vida
ordinária já na fase adulta do protagonista. Talvez seja esse o motivo da popularidade do esquema
de Campbell: ele permite sonhar em quebrar as convenções e se restabelecer com algum ganho.

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