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Craia
BANCA:
AGOSTO/2003
II
RESUMO
ABSTRACT
The present work has as its central objective to question the problem
of the Technique ontological statute since the ontology by Gilles Deleuze.
Firstly, a general cartography on the Technique Philosophy is performed,
beginning with the "engineering Philosophy, moving on to the "humanities'
Technique Philosophy", until the thought of Martim Heidegger, indicating
the characteristics of each, end the differences between them. Secondly,
the deleuzian ontology is characterized according to the univocality,
immanence, ontological expressionism, and the question-problem complex
speculative axes. Thirdly, the ontology by Deleuze is sigularized around the
concept of virtual; thus, such notion is approached and thought within
Deleuze's opus aiming at defining the deleuzian ontology as specifically
virtual. Finally, the deleuzian ontological horizon is applied as analysis
category to think the Technique from a distinct perspective than the one
presented in the first moment. So, armed with such conceptual tools, the
Technique itself is characterized as virtual and productive.
VII
A Vero...
IX
AGRADECIMENTOS
INDICE
Introdução:..............................................................................01
O Ser e a Diferença...................................................................152
O estatuto da Diferença..................................................154
A abertura do Ser para a Diferença.................................175
Conclusão:...............................................................................283
Bibliografia:.............................................................................289
XIII
LISTA DE ABREVIATURAS:
B: O bergsonismo.
CO: Conversações, 1972-1990.
DB: A concepção da diferença em Bergson.
DR: Diferença e Repetição.
F: Foucault.
LB: A dobra: Leibniz e o Barroco.
LS: Lógica do Sentido.
NF: Nietzsche e a Filosofia.
QPh: O que é a Filosofia?
SPE: Spinoza e o problema da expressão.
AE: O Anti Édipo.
MP: Mil Platôs.
1
INTRODUÇÃO
2
justamente por este motivo – para reconhecer a diferença como Ser – que
foi necessário ir além da multiplicidade do mundo e da própria “Unidade”
do Ser e que se tornou preciso chegar a um Ser que não seja um ente a
mais, nem “Nada” como pura negatividade, por fim, que seja unívoco e não
Uno. O modo de reconhecer esta realidade do Ser é através do pensamento
de uma diferença tão radical que nem sequer as diferenças que se agitam
em todo o pensamento de Deleuze podem identificá-la, pois são, também
elas, derivadas. Com Deleuze chegamos a um pensamento do Todo-
diferença este é o paradigma que sustenta sua ontologia.
Esta via de análise deve ser aprofundada, uma vez que todo o
processo que sintetizamos se imbrica com a atividade do virtual. Como
mostraremos ao longo do trabalho, é possível ver isto claramente quando
interrogamos sobre aquilo que possibilita a dinâmica da individuação,
assim como a constituição-atualização real do objeto. Comprova-se então,
que não se trata de outra coisa que o passar do estado virtual ao estado
atual de um indivíduo. Porém, o passar da atualidade não suprime a
virtualidade, que sempre acompanha o objeto como sua cara não
atualizada.
O conceito de virtual é vital no registro ontológico deleuziano, mas a
importância particular para nós é que a problemática do virtual que aqui
indicamos deve ser postulada como categoria central para entender a
técnica, desde um outro lugar com relação às formas recolhidas no
primeiro capítulo. Assim, merece seu espaço próprio.
singular. Isto implica que nosso interesse é quem se agência com a letra
deleuziana para produzir um problema específico. Trata-se de um “entre”,
e não de uma abordagem unidirecional, por este motivo, acreditamos, não
estamos “traindo” o pensar de Deleuze, mas singularizándolo.
Esclarecidos esses pontos, o primeiro passo será mostrar,
pontualmente, como esta ontologia aqui determinada possibilita uma
aproximação do universo tecnológico, como o conhecemos hoje. Neste
sentido, acreditamos que é possível, nos limites deste trabalho, indicar as
linhas de contato entre a ontologia virtual e os “novos modos de ser”, que a
tecnologia propõe.
Com efeito, este é o epicentro da problemática. Logo após se
reconhecer a técnica – bem como seu suporte material, os objetos
tecnológicos – como modo de ser das coisas, ou dos entes, será preciso
estabelecer um certo modo de “entender” e “pensar” o próprio individuo,
isto é, a coisa. Deleuze trabalha sobre o princípio de individuação singular,
a partir do transfundo ontológico da Diferença; isto quer dizer, a dinâmica
pela qual é possível passar do Ser enquanto Diferença e chegar à coisa
enquanto singularidade.
Desde a perspectiva das leituras clássicas, transitadas no primeiro
capítulo, esta dinâmica só poderia conduzir a dois lugares determinados:
ou o mundo era libertado segundo os moldes habituais do pensar
científico, legitimado por uma epistemologia metafísica, ou o mundo era
condenado pelo domínio de certo tipo único de manifestação do ente. A
disjuntiva era: o mundo animado interiormente pelas tecno-ciências, ou
subjugado pela hegemonia global das mesmas. Em ambos os lugares, se
entrevê a manutenção do pensar metafísico como decorrência do fato de
que a proeminência da identidade por sobre a diferença e a multiplicidade
é mantida sem questionamentos. Podemos verificar isto tanto no postulado
de uma ordem consensual do ente formatado pela tecno-ciência, quanto
na determinação comum de todo o existente, segundo é lido, de modo mais
ou menos unificado, pela filosofia.
15
CAPÍTULO I
A INVENÇÃO DA TÉCNICA
18
INTRODUÇÃO
Apresentação
e contatos que a técnica e sua preocupação filosófica estabelecem com outros registros do
pensar e da produção, dado que estes contatos merecem um trabalho mais específico e
focalizado que o que aqui poderíamos oferece-lhes.
20
nos próximos anos será debatido com maior brio é o do sentido, vantagens,
danos e limites da técnica:”2
Com essas poucas linhas o filosofo espanhol nos coloca perante
nosso centro. Que dizemos, hoje, quando dizemos, filosoficamente, a
“Técnica”? Que sentido perseguimos, -e que sentido é produzido- quando
qualificamos nosso tempo, como determinado pelo técnico?
Não há dúvida sobre o “problemático” que resulta “definir” as
características do modo de ser técnico; e sabemos, com a mesma certeza,
como se torna árdua a tarefa especificamente filosófica, cada vez que, no
nosso tempo, a voltamos para a questão da técnica. Tal dificuldade reside
principalmente no fato, suspeitosamente simples, de que não é possível
falar “da” Técnica, pois ela mesma não se articula em torno de um núcleo
central que a remeta, sem deslocamentos, a seu próprio espaço semântico.
Por outro lado, estas dificuldades apontadas decorrem, também, do lugar
que ocupamos entanto interrogadores, dado que, de algum modo, já nos
encontramos “na” técnica, somos “com” a técnica. Aquilo que se apresenta
de modo complexo perante as ambições de nosso questionar, ao mesmo
tempo nos atravessa e nos constitui.
Ora, se é verdade que já estamos, de um modo drástico, no horizonte
da técnica, e que este horizonte nos perpassa, então, em um primeiro
momento, devemos reconhecer à técnica como uma instância operadora de
um certo tipo de ação, bem como um fenômeno que, de algum modo, se
relaciona com esse ente que nós mesmos somos. Dessa ação e dessa
relação surge uma reflexão que, defrontadas suas implicações mais
profundas, menos cotidianas e aparentes, permite tornar manifesto os
múltiplos aspectos daquilo que, sem dúvida, conforma uma dimensão
singular do pensar. Uma filosofia com predicados próprios procura seu
lugar. Neste sentido, a nossa investigação se torna, articuladamente,
2 Ortega y Gasset, J. Meditação sobre a técnica. Rio de Janeiro 1991, Instituto Liberal; Em
preferimos mantê-lo dado que ele indica com suficiente claridade a tensão existente entre
as categorias em jogo. Dito mais explicitamente, o que se encontra em pauta e a
capacidade de expressar, com o maior vigor e profundidade possíveis, certa “demanda” do
pensar; a demanda que interroga a esfera do ser do técnico ou do tecnológico.
29
15Sabemos que esta postura poderia ser denunciada como “metafísica”, ou pelo menos
excessivamente ortodoxa, pelo fato de manter uma cisão atribuída aos gregos entre teoria
e praxis. Ora, este modo de abordagem nos possibilita mostrar as dificuldades que
surgem assim que tentamos delimitar, de modo concreto, o espaço semântico, -e seu
horizonte objetual- entre técnico e tecnológico.
30
17 É necessário, neste ponto, frisar a relação que este postulado especulativo mantém com
toda a tradição mecanicista.
Com relação ao pensamento mecanicista, citamos Wilson Frezzatti, no seu artigo:
"Mecanicismo na Biologia: paradigmas de máquinas e corpos", (no prelo); em diante,
(Frezzatti, W., 2002).
"O mecanicismo, em sua acepção mais radical, pode ser definido por duas características:
1. a pretensão de explicar todas as coisas através das leis da figura e do movimento, isto é,
através da matemática; e 2. o pressuposto de que as explicações mecânicas são as únicas
passíveis de gerar conhecimento. De modo geral, o mecanicismo tornou-se um modelo para
explicar o Universo, inclusive os seres vivos: o mundo vivo não é diferente do não-vivo. Entre
os vários filósofos que se utilizaram desse modelo, difere o âmbito atingido por ele: Leibniz,
cujo Deus era entendido como uma causa final externa, considerava uma importante
teleologia; Newton, que contava com a possibilidade de toda matéria estar viva, e Espinosa,
cujo conatus significava um princípio de perseverança no ser, consideravam causas finais
imanentes, ou seja, consideravam leis com potencialidade de organizar e ordenar o mundo
37
por elas mesmas. Embora esses três filósofos tenham contribuído com a construção do
mecanicismo e tenham utilizado explicações mecanicistas, não as consideravam o padrão
único de conhecimento: o conhecimento não coincide com as explicações mecânicas. As
explicações mecanicistas são uma característica do pensamento do século XVII e têm em
Descartes o pioneiro em sistematizar filosoficamente o pensamento mecanicista.
A palavra mecanicismo deriva-se do grego dórico machané (máquina ou instrumento). Em
grego, temos também o adjetivo mechanikós (mecânico) e o substantivo mechaniké
(mecânica), isto é, a arte (techné) de construir máquinas. O mecanicismo do século XVII não
herdou apenas a palavra: nessa época e mesmo no século anterior os textos antigos sobre a
arte mecânica voltaram a ser muito estudados. A antiga arte mecânica foi retomada em um
novo contexto: no da geometrização da natureza e na homogeinização do Universo
resultantes do rompimento da separação substancial de mundos (sub-lunar e supralunar)
do cosmos aristotélico.
Aristóteles, em sua classificação das ciências, distinguia completamente os objetos da
matemática e da mecânica.
1. Ciências teoréticas, que têm como objeto o saber ou a verdade: a) Física: estuda os seres
que possuem existência própria e que estão sujeitos à mudança; b) Matemática: estuda os
seres imutáveis e que existem apenas como aspectos da realidade concreta; c) Metafísica ou
Teologia: estuda os seres que, ao mesmo tempo, têm existência própria e são imutáveis: as
causas primeiras e mais universais (o ser enquanto ser).
2. Ciências práticas (práxis), que têm como objeto a ação humana: a)Ética; b) Política; e c)
Economia.
3. Ciências poéticas (poiesis), a produção de obras exteriores ao agente (criação). Essas
ciências produção pela repetição da experiência e dispensam discussões teóricas, buscam
apenas a aplicação prática. Por exemplo: mecânica, náutica, medicina, escultura,
arquitetura, música, etc.
Nesse esquema de classificação, a lógica é uma ciência propedêutica, ou seja, seu conteúdo
é pressuposto necessário para todas as outras. Uma diferença epistemológica - e mesmo
ontológica - impede que a matemática e a mecânica tratem dos mesmos objetos. A
matemática trata daqueles objetos que não existem separados dos objetos concretos e que
não sofrem mudanças, em outras palavras, a matemática não pode ser utilizada para
construir máquinas: não se veria máquinas sendo compostas por, por exemplo, números
puros, triângulos e círculos perfeitos.
Nos séculos XVI e XVII, o tratado Sobre os problemas da mecânica (cerca de 287 a.C.),
escrito em termos lógico e não matemáticos e atribuído a Aristóteles, mas provavelmente
redigido por Stratos (o terceiro diretor do Liceu), e outros textos foram retomados e
reinterpretados. Um Arquimedes, ou melhor, a imagem de um grande mecânico matemático
construída pela falta de tratados mecânicos de sua autoria, foi contraposta a de um
Aristóteles escolástico, ou seja, de um obscurantista desprezador da matemática. A ligação
entre as máquinas e a matemática, atribuída a Arquimedes, era feita pelos próprios
cientistas seiscentistas, como por exemplo Torricelli, discípulo de Galileu. O trânsito entre o
mundo supralunar (perfeito e geométrico) e o mundo sub-lunar (imperfeito e mutável), na
cosmovisão aristotélica, estava interditado. O uso da geometria nas máquinas fortaleceu o
afastamento desse interdito; entre os filósofos que para isso contribuíram, podemos citar:
Mersenne, Huygens, john Wilkins, S. Stevin e Galileu.
A retomada da arte mecânica em novas bases forneceu ao mecanicismo seu primeiro
paradigma: as máquinas simples. O mecanicismo surgiu sob a égide das máquinas
simples, definidas já nos tratados antigos, as chamadas “as cinco grandes máquinas”: o
parafuso, o plano inclinado, a cunha, a alavanca e a roldana. Todas as outras máquinas
eram construídas pela combinação dessas cinco. (...) as máquinas não são apenas
instrumentos de ação, mas reflexos de nossa forma de apreender o mundo em uma
determinada etapa histórica, ou seja, determinados aspectos das máquinas constituem um
paradigma.”. (Frezzatti, W., 2002).
38
Ernest Kapp:
18 Segundo Mitcham, Ernst Kapp lançou a expressão “Philosophie der Technick”, quando a
utilizou como título de um de seus livros em 1877, sendo o primeiro na história que levou
esse título (Ver, pp. 25, 31). Curiosamente, a expressão inglesa “philosophy of technology”
surge, de modo significativo, muito mais tarde, durante um simpósio celebrado em 1966,
a partir dos trabalhos do filósofo argentino Mario Bunge, que também estabeleceu a
expressão “technophylosophy” (Ver, pp. 40-41). Do mesmo modo, é preciso indicar o uso
que faz desta expressão P. J. Lucia na sua conferência ministrada no Instituto
Psicotécnico, o dia 24 de março de 1933, cujo título foi o seguinte: “Busca de uma
filosofia da técnica” (LUCIA, P. J.: “Bosquejo de una filosofia de la técnica”. Revista de
Occidente; Madrid n1 118; 1933; pp. 38-57).
Por outro lado, esta expressão se vincula de modo tangencial com a noção de “filosofia
mecânica”. Esta última faz referência à concepção mecanicista do universo tão cara a
pensadores como Newton, Berkeley, e Boyle. Do mesmo modo podemos pensar em uma
relação com a expressão “filosofia dos manufatureiros”, que foi postulada pelo engenheiro
químico Andrew Ure, em 1835 (Ver Mitcham, 21-23).
39
19 Ver: Ernest Kapp, Grundlinien einer Philosophie der Technik, Berlim 1877.
20 Esta idéia já está pressente em Hegel (Cf vg., Lições sobre a filosofia da história
universal), pelo que, desde nosso ponto de vista, não á totalmente exata a apreciação de
Mitcham quando afirma: “Kapp antecipou-se àquilo que hoje poderia ser denominado de
uma filosofia do meio ambiente” (Mitcham, 1989, p. 25).
21 Por este motivo, estabelece analogias elementares entre as realidades artificiais e os
órgãos ou sistemas humanos. Assim, por exemplo, o telégrafo deve ser visto como a
extensão do sistema nervoso; a ferrovia como projeção da circulação sangüínea; o prato
como exteriorização do oco da mão; a linguagem e o Estado, como extensões da vida
mental e da natureza humana respectivamente. Continuando neste mesmo registro
especulativo, considera que, caso as ações humanas devam possuir limites (digamos uma
certa ética), as máquinas também o devem. Esta leitura da questão tecnológica implica,
em um certo sentido, uma volta a Aristóteles, e, por outro lado, uma ênfase, não na
Técnica, mas nas tecnologias particulares ou regionais.
22 Curiosamente, esta convicção filosófica o levou, por motivos não muito claros, a
cultivar a política e, mais tarde, junto com outros pioneiros alemães, a emigrar para
Texas. Depois da guerra civil norte americana, voltou para Alemanha onde continuou sua
tarefa filosófica.
40
P. K. Engelmeier:
Friedrich Dessauer:
23 A exposição detalhada deste programa não é necessária neste momento. A respeito ver:
P. K. Engelmeier, “Allgemeine Fragen der Technik”, in Dinglers Polytechnisches Journal
311, n° 2, janeiro de 1899.
24 Neste sentido, devemos realçar o fato de que E. Kapps, pelo contrário, e desde a
technik; (1927); Seele im Bannkreis der technik; (1945); Streit um die Technik (1956).
42
26 Esta crítica à atividade técnica é a que, como indica Mitcham, é proposta por Ernesto
Mayz Vallenilla no seu já clássico texto Esbozo de una crítica de la razón técnica. Ver nota
Número 25 em (Mitcham, 1989, p. 48)
27 Curiosamente, e desde um lugar completamente diferente, Gilbert Simondon diz:
29 Mitcham nota que foi justamente Espinas quem introduziu esta expressão
especializada, sendo explorada, mais tarde, pelo filósofo polaco Tadeusz Kotarbinsky
(MITCHAM, 1989, p. 39).
30 Posteriormente o psicólogo Gilbert Simondon aprofundou esta categorização,
distinguindo entre elementos ou partes, indivíduos ou aparatos e conjuntos ou sistemas,
como sendo gêneros de existência tecnológica.
Voltaremos a revisar a obra de Simondon mais adiante.
46
31 Neste sentido, é pertinente lembrar que Dewey propõe a aplicação da ciência não só
para resolver assuntos humanos, mas “para os seres humanos mesmos”, isto é, para
melhorar intelectualmente a espécie e experimentar com ela novas possibilidades e
relações. Pela sua parte, Thorstein Veblen propõe a reorganização tecnocrática da vida
econômica e política, e ao mesmo tempo a emancipação da tecnologia e dos princípios das
engenharias da corrupção política e econômica. Deixando de lado um certo utopismo que
atravessa estas pretensões, não é possível não ver nelas um importante grau de
preocupação com a esfera não técnica, o que determina que, em um certo sentido, a
própria técnica não é mais que uma ferramenta, privilegiada, para o melhoramento do
orbe humano. Assim, o centro da existência humana não seria o universo técnico, mas o
espírito humano que o conquistou e que agora espera poder aplicá-lo para seu bem estar.
47
O homem mantém seus privilégios. As referências bibliográficas destes autores podem ser
consultadas em (MITCHAM, 1989, pp. 30-40).
48
32 Esclarecemos, desde já, que não se trata de um privilegio só destes filósofos, pelo
contrario, o problema do fundamento atravessa todo o corpus da filosofia. Entre outros,
dois atores principais de nosso trabalho, Heidegger e Deleuze, assim o demonstraram.
Neste sentido, no Capítulo seguinte indicaremos a perspectiva deleuziana com mais
detalhe.
33 É surpreendente a informação do próprio Winner, segundo a qual esta afirmação deriva
não só de uma análise especulativa, mas também de experiências pessoais com amigos
engenheiros, que ajudariam a fundamentá-las e legitimá-las; a respeito ver (Winner,
1987, p. 25)
49
34 De qualquer maneira, e levando em conta que nos movemos dentro do horizonte dos
itinerário e objetivos, não é possível nos estendermos mais. Entre os numerosos trabalhos
a este respeito, sugerimos, para um maior esclarecimento, ver: Ernes Nagel. La estructura
de la ciencia: Problemas de la lógica de la investigación científica.; Barcelona, Paidos, em
diante, (Nagel, 1981 pp. 11-15) Também, Thomas S. Khun, La estructura de las
52
revoluciones científicas; México, Fondo de Cultura Económica, em diante (Khun, 1982, pp.
248 ss.) Finalmente (Mitcham, 1989, pp. 96 ss.)
36 É curiosa a definição de hermenêutica que Mitcham nos propõe. Como amostra da
complexidade que ela encerra, podemos defrontar a noção de Mitcham com outra mais
clara e tradicional; escolhemos uma entre outras, pois a variedade impera acerca desta
53
Lewis Mumford:
37 Temos na nossa frente as 744 páginas da magnífica edição da Editora Martins Fontes
do livro A cidade na história. Nesse texto Mumford já mostra, de modo subjacente e
elíptico, a secreta operação desta megamáquina na evolução das cidades ao longo da
história. Assim, a cidade moderna e contemporânea é a grande máquina por definição, ela
56
(Mumford, 1998).
38 Esta problemática encontra-se particularmente desenvolvida com uma grande atenção
40 Destacamos que, visando a suavizar esta falta de imaginação, Ortega propõe olhar as
técnicas segundo foram desenvolvidas no Oriente. Ver (Ortega y Gasset, 1991, pp. 38-44)
59
41 Vários comentadores vêem nesta perspectiva um embrião do que depois será elaborado
42 De modo lúdico, mas interessante, propomos uma breve linha de fuga. Uma conjetura
singular de Julio Cortázar nos parece aqui pertinente. Trata-se de uma observação
referida à relação entre o "homem comum", "do povo" e a técnica. A expressão homem
comum, no contexto do relato que vamos a citar é absolutamente problemática desde o
ponto de vista do politicamente correto, por este motivo não faremos comentários neste
sentido. Nos referimos ao conto curto As portas do céu; um dos textos mais fantásticos e
atrozes que Cortázar tenha escrito. Citamos em espanhol por vicio de hispano falantes, e
para preservar certa beleza que não seriamos capazes de reconstruir caso ensaiáramos
uma eventual torpe tradução: "(Para una ficha: estudiar, siguiendo a Ortega, los contactos
del hombre del pueblo y la técnica. Ahí donde se creería un choque hay en cambio
asimilación violenta y aprovechamiento; Mauro hablaba de refrigeración o de
superheterodinos con la suficiencia porteña que cree que todo le es debido)." In Julio
Cortazar, CuentosBuenos Aires Hyspamérica Ediciones, 1985, p. 70. Caso esto seja
verdade, Cortázar estaria muito mais cerca de Deleuze do que poderíamos imaginar.
61
Jacques Ellul:
43 A presente citação aparece, pela primeira vez, em: Ellul, Jacques; The Tecnological
Society, Knopf, New York, 1964; tradução para o inglês de John Wilkinson, do texto
original, La technique ou l’enjeu du siècle. De nosso lado, utilizamos aqui a tradução
espanhola El siglo XX y la técnica: Análisis de las conquistas y peligros de la técnica de
nuestro tiempo, tradução de Adolfo Maíllo, para Ediciones Labor, Barcelona, 1960, em
diante: (Ellul, 1960)
62
44 Assim, por exemplo, postula que “A inflação contemporânea da linguagem é (...) 'uma
expressão mecânica da reação compensadora do sistema técnico'” HOTTOIS, G.: “La
inflación del lenguaje y la disociación del sentido en la filosofía contemporánea”. Diálogo
Filosófico, n1 10 (1988) p. 41.
45 É interessante verificar que o contraste indicado por Ellul entre ações e fenômeno
técnico guarda uma certa similitude com a distinção de Mumford entre biotécnica e
monotécnica. No mesmo espirito comparativo, podemos ver como algumas características
da distinção de Ellul coincidem com as formulações de Ortega em torno da distinção entre
técnicas do acaso e do artesão, por um lado, e técnica do técnico por outro. Assim, sem
63
dúvida, a preocupação com uma categorização, ou até uma certa taxonomia da técnica, se
monstra como uma inquietude do tempo; o clima especulativo da época parece exigi-lo.
64
Do mesmo modo, estas distinções parecem se ancorar sobre uma estrutura similar,
partindo de hipóteses e critérios avaliativos coincidentes.
46 Segundo MITCHAM, (Ver pp. 76-81);. A proposta ética que faz Ellul em 1983 se
encontra mais próxima de Heidegger que de Ortega. Trata-se, sem dúvida, de uma
afirmação particularmente instigadora, mas que o autor americano não desdobra em
todas suas conseqüências. Nos limitamos aqui, portanto, só a indicar esta conexão
apontada por Mitcham.
65
A escola de Frankfurt:
mundo do trabalho à esfera das tecnologias giram em torno do fato de que as máquinas
67
Uma vez lembrado este quase conflito entre a Escola e sua filiação
marxista, é necessário destacar que, na nossa opinião, esta tensão deve
ser reconhecida como fruto da inquietude e fortaleza criativa, e não como
filha de uma incongruência com base nos próprios pensadores de
Frankfurt.
Como quer que seja, para os pensadores da Escola de Frankfurt a
técnica moderna é um vetor de dominação do homem em, pelo menos dois
registros; um destes registros implica a dominação do homem por parte da
própria técnica, o outro se expressa na dominação do homem pelo mesmo
homem. A operacionalização desta dominação se dá no fato de que o
homem moderno da técnica só apreende as coisas enquanto as manipula,
isto é, quando pode fabricá-las. Assim, o caminho obrigado desta
disposição do homem técnico nos conduz a um mundo total e globalmente
organizado e administrado, onde a resoluções de problemas ancestrais
torna-se um tecnicismo a mais. A ordem simbólica da transcendência, as
angustias primitivas, as forças espirituais originarias de um povo são
domesticadas e administradas pela cirúrgica ordem dos processos técnicos
de controle e fabricação. Retomar estes aspectos da existência é o reclamo
final dos frankfurtianos; depois de ter atravessado o polido solo do pensar
e do ser técnico, talvez só reste a melancolia, não mais a saudade, mas a
pura melancolia do perdido51.
51Para uma melhor compreensão da relação entre a Escola de Frankfurt e a técnica, ver
(Brüseke, 2001, pp. 138 ss.) O catarinense autor alemão elabora um mapa vivo e
particularmente expressivo sobre as diferentes ramificações e desdobramentos do
pensamento da Escola; destacamos em particular os parágrafos dedicados a Marcuse.
Voltaremos à Escola de Frankfurt e suas distinções internas mais adiante, no item
seguinte, dedicado a Heidegger. Escolhemos esta forma dividida de apresentar o
pensamento dos frankfurtianos dado que muitas das correntes internas da Escola
dependem das leituras, favoráveis ou distanciadas, que os filósofos de Frankfurt fazem
69
As disputas
das interpretações heideggerianas sobre a técnica; por este motivo, pensamos que seria
mais pertinente colocar outros esclarecimentos sobre a Escola em um lugar onde possam
ser articulados junto às colocações do pensador da floresta negra.
52 Em um certo sentido, esta relação entre ambas as linhas de abordagem desenham uma
“A filosofia da tecnologia das humanidades pode ser vista como uma série de tentativas de
discutir ou defender, precisamente, esta idéia fundamental da primazia do não técnico”.
53 O autor menciona a este respeito, como exemplos, aquilo que os engenheiros-filósofos
alemães Hans Lenk e Günter Ropohl denominam “filosofia social da tecnologia”, e que,
por sua vez, o pragmatista estadunidense Paul Durbin chama de “filosofia interdisciplinar
pragmática” (Ver, p. 86).
71
54 Levar isto a cabo em toda sua extensão e complexidade exigiria uma tese própria
registro; isto é assim, dado que o filósofo espanhol também procurou, com anterioridade
no tempo e com rigorosidade exemplar, desvendar as dobras da essência da técnica.
Por outro lado, ambos filósofos questionam a técnica desde algum lugar da fenomenologia
de matriz husserliana e, neste questionar, interrogam o destino histórico de ocidente.
Mais significativo é o fato de que os dois pensadores insistam em que a técnica não é,
simplesmente, ciência aplicada, nem uma parte secundária da episteme moderna, pelo
contrário, tratar-se-ia do maior fenômeno cultural do ocidente contemporâneo. Este modo
de conceber a técnica deve ser colocado do lado de um artificialismo profundo; com efeito,
73
Ora, o que implica “levar até seu limite último” a preocupação pela
questão ontológica da técnica?57 Tentar acompanhar esta jornada
heideggeriana será nossa tarefa nas próximas páginas. Comecemos, pois,
com as palavras com as quais o próprio Heidegger abre sua conferencia do
dia 18 de novembro de 1953 intitulada: A questão da técnica58.
a produção técnica por parte do homem implica em uma ruptura radical com qualquer
forma de “destreza” natural, ou qualquer tipo de instinto criativo baseado em uma
natureza própria do ser humano. Assim, não se trata de uma projeção natural do corpo e
da razão do homem através da técnica e de seus artefatos, ao contrario trata-se de uma
pura criação que tem a ver com um horizonte que transcende qualquer vetor de
naturalidade que possa ser adjudicado ao sujeito tecnicamente ativo. Justamente, o
perigo da técnica radica em que ela não é uma continuação ou potencialização de nossa
natureza animal ou biológica, mas uma alta produção de nosso espírito e, portanto, um
problema da cultura e do pensar, não da biologia ou da antropologia.
Ora, reconhecidas estas coincidências, é pertinente marcar algumas diferenças claras
entre Ortega e Heidegger. Neste sentido, enquanto que para Ortega a técnica é um meio
que, ainda que escondendo sua essência, viabiliza a realização de um projeto humano
determinado, para Heidegger, a técnica, entendida como um modo de desocultamento do
Ser e da verdade, implica uma instância destinal que nada tem a ver com o homem ou
com um projeto individual a ser desenvolvido. Por este motivo, e apesar de o pensador
espanhol não partir de uma antropologia filosófica, é possível articular a questão da
técnica com uma pergunta pelo homem, ainda que de modo exterior à própria técnica. Já
para Heidegger, vincular, de qualquer modo o pensamento da técnica com alguma forma
de interrogante antropológico implicaria recair na metafísica do sujeito nos moldes da
filosofia moderna.
57 É interessante lembrar que, na introdução do seu trabalho sobre Nietzsche, Heidegger
nos lembra que os grandes filósofos da história podem ser contados com os dedos das
mãos. Estes pensadores são, justamente, aqueles que engendraram um pensamento, e só
um, e que atingiram o máximo desenvolvimento possível desse pensamento, sua máxima
capacidade interrogativa. Nietzsche, com certeza, assentiria com um sorriso dissimulado
sob o bigode generoso.
58 Martin Heidegger, “A questão da técnica”, em Cadernos de Tradução nº 2, DF/USP,
A época da técnica
59 Seguimos aqui a tradução proposta pelo Doutor Benedito Nunes em seus vários
trabalhos sobre Heidegger para o neologismo Entbergung criado por Heidegger. Com
relação à mesma problemática de tradução, em circunstâncias específicas, o professor
Marco Aurélio Werle utiliza a expressão dês-abrigar ou desabrigar, junto com desocultar,
em particular para traduzir Entbergen.
76
60 A relação entre os diferentes diagramas epocais não deixa de ser uma questão maior no
pensamento de Heidegger. Não sendo este nosso tema principal, nos limitemos a frisar
que, sob hipótese alguma esta relação deve ser pensada como uma evolução ou como
uma relação causal tipo causa-efeito. Voltaremos a este ponto mais adiante.
61 Segundo os tradutores, existe todo um complexo jogo expressivo e semântico elaborado
por Heidegger acerca desta questão. Assim, o filósofo mobiliza os diferentes sentidos e
etimologias das expressões alemãs historisch; geschichtlich; geschichte e geschick. Ver
nota nº 9 in (Heidegger, 1997, p. 69).
77
62 O texto A coisa, de Heidegger, deve, na nossa opinião, ser lido junto ao texto sobre a
técnica, ambos formam um espaço reflexivo co-extensivo. No entanto, e por uma questão
de ordem na exposição, deixamos para tratar o texto sobre a coisa nos próximos
79
dia”, isto é, permitir que o ente recorte sua verdade sobre o fundo do Ser,
sob a luz de “seu ser”, sempre oculto; manifestação do Ser sob o
aparecimento do ente. Este teatro heideggeriano do ocultamento e
desocultamento entre o Ser e o ente, ou, segundo os próprios conceitos
heideggerianos, entre o ôntico e o ontológico, constitui o centro da noção
do pensador alemão sobre a verdade, aquilo que se deu em chamar, de
modo vago e não pouco problemático: “o retorno à concepção originária
grega de verdade”. Heidegger mostra a articulação entre a questão da
técnica e a noção de verdade por ele postulada do seguinte modo:
capítulos, onde a questão acerca das perspectivas filosóficas sobre o estatuto da coisa
será explicitada com maior atenção e profundidade.
80
63 Acreditamos, com total serenidade de espírito que, como todo grande filósofo, Heidegger
poderá ser celebrado ou negado, deificado ou esquecido, reivindicado como matriz
fecunda ou exorcizado como a fonte dos grandes erros de sua época. Por outro lado, todo
seu magistral conjunto de conceitos, bem como seu esforço para radicalizar o pensar
poderiam ser cruelmente ou justificadamente esquecidos; mas um resto da voz do triste
reitor continuará a ecoar. A conquista do pensamento da diferença ontológica será, para
sempre, o legado de Martim Heidegger. Podemos esquecer ou propositalmente enterrar o
resto de sua obra, mas já não será possível esquecer que Ser e ente são diferentes,
dramaticamente diferentes, ontologicamente diferentes. De qualquer sorte, não somos os
primeiros, nem os únicos, em fazer este reconhecimento, o próprio Deleuze assim o faz
notar em uma nota antológica de DR.
Más, e por outro lado, seja esta nossa insignificante homenagem a Heidegger em duas
frentes, uma frente é esta reivindicação do pensamento da diferença ontológica, a outra
frente é tudo o que não falamos sobre o evento do reitorado, a militância nacional-
socialista e o dossiê Farias, este último atravessado pelo seu autopretendido gesto
justiceiro.
64 Refletindo com profundo rigor dentro deste campo especulativo, Heidegger nos conduz
metafísico. Por este motivo, e desde esta perspectiva, a questão pelo Ser e
sua potência interrogativa não são independentes da questão que aborda a
“forma” do seu desocultamento, isto é, no nosso contexto específico de
pesquisa, pela técnica moderna enquanto tipo histórico, epocal, da
verdade.
Colocado o assunto deste modo, torna-se evidente que o problema
não admite uma abertura ao questionar proveniente da técnica mesma. A
técnica não pode ser entendida desde a própria tecnologia moderna, nem
sua problemática desdobrada com mais técnica; pretender que assim seja
seria contribuir, ainda mais, a obscurecer a questão. É justamente isto
que sucede quando a tecnologia se erige em paradigma de toda ação,
resultando, portanto, mais um modo do dogmatismo objetivado que não
admite outra leitura que não seja sua própria, e que se torna, além do
mais, incapaz, de reconhecer-se a si mesmo como dogma. A possibilidade
de pensar a técnica não se encontra, para Heidegger, nem na própria
técnica, nem no simples abandono dela, -entre outros motivos, porque um
tal abandono não parece possível neste ponto histórico, dado seu
não poderia ser de outro modo dada a força especulativa da análise heideggeriana. Uma
delas, e não a menos importante, nos exige voltar à Escola de Frankfurt, ou, pelo menos,
às reflexões que alguns de seus membros levaram adiante. É curioso verificar a
controvérsia que a posição heideggeriana suscitou entre diferentes autores da tradição da
Teoria Crítica. Neste sentido, Horkeimer e Adorno, os teóricos originais desta escola,
criticaram cabalmente a ciência e a tecnologia, sobre tudo pelas suas formas de
racionalidade ilustrada. Ora, fizeram isso em nome do próprio projeto ilustrado, baseado
em um outro uso da razão, permanecendo, neste sentido no mesmo horizonte que
possibilitou o desdobramento da técnica, como bem explica Heidegger, e indo mais fundo
que os frankfurtianos. Por outro lado, e esto é o mais interessante, Adorno também rejeita
a interpretação da tecnologia de Heidegger, e o faz de um modo desdenhoso. Este desdém
está motivado pelas dúvidas com que Adorno interpreta a tese heideggeriana que afirma a
técnica como uma manifestação histórica do Ser, bem como pela atribuição que, segundo
ele, Heidegger faz dos problemas a algum tipo de essência interna.
Operando um deslocamento importante, Habermas, um representante da segunda
geração da Escola de Frankfurt, posiciona-se de modo mais explícito em uma perspectiva
pró-tecnología. Acontece que na nossa contemporaneidade, tanto a ciência quanto a
tecnologia foram convertidas em “ideologia de legitimação da estrutura capitalista tardia”
83
Assim, para Habermas, não é apropriado criticar a tecnologia pelo seu domínio da
natureza, enquanto a natureza está composta de objetos meramente materiais livres para
serem utilizados pelos seres humanos autônomos, da forma que eles considerem
conveniente. A verdadeira crítica deve ser feita à razão que utiliza a técnica como meta-
discurso legitimador. Por esta via, implicitamente, e paradoxalmente, Habermas concorda
e afirma aquilo que Bunge denominava de “transfondo ontológico da tecnologia.”
Em relação ao encontro entre Heidegger e Marcuse, este último faz um uso que
poderíamos indicar como positivo de Heidegger. Por exemplo, afirma que nem a tecnologia
nem a técnica são motores de repressão, mas que a presença delas no espírito dos
“patrões”, que as quantificam e especificam, é o verdadeiro modo de opressão. Com efeito,
Marcuse sugere, com a maior veemência, que a natureza não deve ser controlada, mas
libertada por meio de uma nova ciência e tecnologia”. Nas palavras do próprio Marcuse
citadas por Mitcham do texto An Essay on Liberation: “Para se converter em veículos da
liberdade, a ciência e a tecnologia deveriam ser reconstruídas de acordo com uma nova
sensibilidade, a dos instintos vitais” (Mitcham, 1989, pp. 92 ss.)
De qualquer modo, os pensadores da Teoria Crítica nunca abandonaram o pressuposto
da existência de uma forma de subjetivação presente e necessária; seja como instância de
domínio e uso da própria técnica, ou como pressuposto para a existência desta. Com isso
Heidegger não pode concordar; seu olhar já está além do sujeito e não pode retornar.
84
67 Neste sentido, mais uma vez, é possível afirmar que sua reflexão se encontra em alguns
momento, o homem deve estar presente, como agente que moviliza ou cria
a técnica, como responsávle moral, ou como destinatário de suas
vantagens ou tragédias. Nenhuma destas formas sobrevive em Heidegger.
O limite de Heidegger
68 Não deveríamos deixar no esquecimento o fato de que Heidegger transitou, nos anos da
sua formação, por instituições religiosas onde o pensamento de origem cristão era
transmitido e repensado. Neste sentido, parece interessante a constatação de que uma
das premissas fundamentais que atravessa toda a ontologia cristã indica com total
clareza que Deus não é infinito in substantia; pois, caso assim fosse, a diferença, o
aberrante, o criado, e até o “mal”, também fariam parte da natureza de Deus. Segue-se
que aquilo que é infinito, é a “sabedoria, ou a inteligência de Deus”. A homogeneidade e a
totalidade ontológica nunca foram apropriadas para pensar Deus, talvez também não o
sejam para pensar o Ser.
92
71 Para aprofundar esta perspectiva, ainda que inserida em um marco mais amplo,
CAPÍTULO II
DELEUZE E A ONTOLOGIA
98
73 A leitura que aqui oferecemos sobre a ontologia de Gilles Deleuze deriva da ordem
reflexiva de nossa pesquisa anterior, iniciada durante nosso mestrado e desenvolvida nos
anos posteriores. O resultado deste trabalho é o texto A Problemática ontológica em Gilles
Deleuze; EDUNIOESTE, Cascavel, 2002, em diante (Craia, 2002); no qual nos baseamos
para a elaboração deste capítulo.
99
Deleuze postula uma ontologia. Dita ontologia é uma das mais ricas
em densidade e rigorosidade especulativa, bem como uma das mais
prolíficas em conseqüências filosóficas dos últimos anos. Poder-se-ia dizer
que a ontologia deleuziana acrescenta uma nova dimensão reflexiva à
recaracterização da interrogação pelo Ser, e, portanto de toda a
preocupação ontológica operada na filosofia do século XX a partir do
pensamento de Heidegger.
Deleuze pensa e afirma, ontológicamente, a Diferença pura. Trata-se,
especificamente, de montar o palco “problematizante” para o aparecimento
e a atuação da Diferença e seu elenco. São seus atores centrais nesta obra:
a imanência, a univocidade, a expressão, e o problema filosófico.
Em um primeiro momento, podemos definir esta ontologia que aqui
indicamos como estritamente “não metafísica”.74
Pensar em uma ontologia livre de condicionamentos metafísicos e,
como veremos mais adiante, das exigências da representação, implica
pensá-la, por um lado, alheia à instauração de uma hierarquia baseada
em um sistema opositivo e, por outro, eximida da necessidade de reclamar
nesta oposição (e nem em espaço distributivo algum) um lugar privilegiado
ou fundante para o negativo. Deverá ser indicada, ainda, como uma
ontologia que não remeta à “presença” como legitimação do Ser na
unidade-identidade do tempo através do presente. Por último, esta noção
de ontologia implica que não se postule o fundamento de todo o domínio
76 Estas últimas duas questões serão melhor abordadas nos capítulos III e IV.
103
um lado com os Sofistas, por outro com Platão, e, através deste último, com os Megáricos
e suas aporias. Ver (Aubenque, 1972, pp. 144 ss.). Devemos ressaltar, ainda, que as
críticas aristotélicas, justas ou injustas, não conseguem deslocar a problemática da
unidade platônica Ser-Bem, nem mesmo supondo o ser em ato e o ser em potência, ou os
104
muitos modos em que o ser se diz. Neste sentido, a denúncia do esquema aristotélico já é,
de uma forma indireta, uma “inversão do platonismo”.
79 Para uma maior aproximação a este ponto, sugerimos, mais uma vez, o vasto e
condenada, mas esta remissão, e a crítica que dela faz Deleuze, será desenvolvida mais
adiante.
81 De acordo com indicação de Aubenque no texto que estamos citando, isto é claramente
82“Aristóteles não começou (...) a partir da decisão de distinguir os múltiplos sentidos do ser,
pelo contrário, ele se viu progressivamente obrigado a reconhecer que o ser era unívoco.
(Aubenque, 1972 p. 6)
107
como era, por exemplo, o conceito de ser dos Eleatas. O ser não pode ser
Uno, porque, se o fosse, poderíamos atribuí-lo, também, a qualquer
processo de diferenciação (é claro que os Eleatas começaram por negar
este processo, mas isto era absolutamente inviável para o pensamento de
Aristóteles). Então, acima de tudo, não poderia ser Uno, pois, neste caso,
as diferenças poderiam se inscrever no espaço por ele aberto, não haveria
possibilidade de limitá-las a um conceito determinado em sua própria
identidade. Para que isto não ocorra, o estagirita cria estrias no espaço
ontológico atribuindo e distribuindo o ser aos diferentes modos dos quais
se diz, modos estes, em si mesmos, idênticos.
A submissão da diferença, assim sendo, se relaciona intimamente
com a equivocidade do ser, indicando, por conseguinte, como modo de
saída, a necessidade de estabelecer, afirmar e desenvolver a univocidade.
Um único discurso para o caráter duplo da ontologia que anunciávamos
anteriormente.
Apesar de tudo, ao menos em um ponto Aristóteles e Deleuze estão
de acordo: o ser não é um gênero. No entanto, as coincidências acabam aí.
De fato, eles chegam a esta concordância com objetivos e por caminhos
muito diferentes. Enquanto o primeiro pensa isto dentro do modelo do
juízo, o outro o faz movendo-se em direção à forma da proposição. Nesta, a
equivocidade como “vários sentidos do ser” e a univocidade como “único
sentido do ser”, requerem um novo perguntar pelo próprio ser, e um
estatuto diferente para o sentido. Os dois termos desta espécie de
dualidade devem ser revistos e submetidos a uma “outra” abordagem.
Aquilo que se encontra no centro do problema é o fato de que o ser
se diz, e se diz em um único sentido de uma multiplicidade que é diferente
dele e que comporta diferenças entre os seus membros. Mas, ele é, ao
mesmo tempo, designado por estes modos diferenciados, e designado como
único.
108
Devemos recordar, por último, que o sentido do ser apenas pode ser
estabelecido como pergunta, como interrogação ontológica. Sendo assim,
somente levando em conta o registro interrogativo é que poderemos
articular a relação entre ser e sentido, como sentido do ser.83
Para a dinâmica da univocidade e para a circulação dentro da
proposição ontológica não poderíamos separá-los, mas, a fim de que se
possa estudá-los mais de perto, isto não apenas é possível senão que,
suspeitamos, necessário. “A univocidade eleva, extrai o ser para melhor
distinguí-lo daquilo ao que ele acontece e daquilo que se diz.” (LS, p. 186)
Acreditamos, então, que é pertinente abordar “independentemente”, num
primeiro momento, o ser e o sentido, para poder depois relê-los juntos
dentro do campo próprio da univocidade como ontologia proposicional
complexa.
84 Analogia não é, como bem reconhece Deleuze, uma expressão aristotélica, porém, é
reconhecido em todo o seu direito pela maior parte dos autores não se deu,
“somente”, em decorrência de possíveis interesses especulativos, senão -
mais especificamente-, pela própria natureza desse suplemento. Este
apenas pode ser indicado de uma forma indireta, já que esta outra
dimensão não possui, diferentemente das anteriores, um estatuto
“determinado”, uma estrutura que a exponha de um modo plenamente
reconhecível e específico. Somente através do defeito que se percebe na
circulação interna da proposição, veiculada pela designação, pela
manifestação e pela significação, é que se pode indicar a modalidade que
virá, -necessariamente-, a completar o movimento proposicional. O
primeiro passo, portanto, é desdobrar este esquema de proposição, tal
como foi resumido aqui, e estudar mais de perto, ainda que
sinteticamente, cada um de seus componentes.
A partir desta leitura, Deleuze conclui, e demonstra, que uma
proposição designa um estado de coisas, com suas respectivas qualidades
e quantidades, conforme a manifesta um sujeito que fala, permitindo
entrever um grupo de desejos e crenças, no âmbito de um campo de
significação que, por sua vez, o situa num corpus lingüístico determinado.
Segundo Deleuze este é o esquema “clássico” de proposição, agora com
seus componentes já reunidos e em funcionamento.
Ora, Deleuze necessita de apenas um instrumento para demonstrar
a insuficiência desta estrutura. Ao introduzir a pergunta sobre qual destas
três dimensões é primeira em relação às outras, e qual é o comércio que
entre elas se estabelece, mostra-nos, claramente, a formação circular do
esquema, e, sobretudo, a impossibilidade de abrir este círculo a partir de
seu interior, procurando fazer prevalecer uma das três dimensões sobre as
outras.
Devemos ter o cuidado de não entender isto no sentido de uma
busca de fundamento: o que se mostra, ao contrário, é como cada
instância reclama de outra um fundamento, o qual, no entanto, não pode
receber. Cada relação da proposição exige ser fundada, mas as outras, que
114
no ponto seguinte.
87 Embora aqui façamos uma referência muito breve às relações que se estabelecem entre
os modos da proposição, ao longo de toda a terceira série de LS (pp. 13-25), Deleuze não
apenas determina as características e modos particulares de cada uma destas dimensões,
mas também estuda, a fim de poder exemplificar a necessidade do sentido como outra
dimensão independente, as relações que se estabelecem entre todas elas. O recorte que
aqui fizemos se deve exclusivamente às exigências de espaço; entretanto, para uma
115
quinta série de LS, na qual Deleuze aponta uma série de paradoxos do sentido que mais
adiante virão a completar a problemática do sem-sentido.
118
estes temas. Poderíamos acrescentar também as séries décima quarta e décima sexta a
fim de completar a reflexão sobre o incorporal e sua relação com o sentido.
119
muito mais "clássica", voltada, principalmente, para uma história da filosofia, e não para
uma ontologia fundamental.
91Deleuze indica e expõe os três sentidos principais do fundamento segundo a seguinte
ordem:
O primeiro se reconhece mais claramente no pensamento de Platão, ali o fundamento se
identifica com o Mesmo, o absolutamente idêntico (a Idéia). A fundamentação é
legitimada, neste caso, ao se remeter àquilo que possui, -de modo direto-, a “essência”.
Sendo assim, como foi indicado, unicamente a Idéia possui a essência de um modo direto
e primeiro, portanto, somente por semelhança à própria idéia, o fundado recebe a
fundamentação. É por isso que podemos afirmar que, no horizonte platônico, o
fundamento se define por uma identidade pura e primeira.
O segundo sentido que se pode atribuir ao fundamento se dá no âmbito da representação
generalizada, lugar em que se passa da fundamentação primeira dos pretendentes, à
fundamentação da pretensão da própria representação para abarcar e representar o
infinito.
Por último, o terceiro sentido, (aonde os outros dois se encontram), é o de estabelecer
uma ordenação, uma organização que doe uma taxonomia clara do presente que seja, ao
mesmo tempo, legítima e representável.
92 Para uma síntese com respeito ao problema do fundamento ver: (DR, pp.349-351).
122
94 Tradução nossa.
124
96 A respeito da disputa entre Spinoza e Descartes, e da importância que ela tem para
Deleuze, ver: SPE, Cap. X. Para o tema específico que aqui nos reúne, univocidade e
imanência, ver pp. 160-161-168.
97 Saber se os conceitos que Deluze indica em Spinoza -ou em outros autores que sua
100 O spinosismo de Deleuze passa a ter, a partir deste ponto, outro problema a enfrentar.
Dado que o ser é postulado como unívoco, isto é, como se mantendo sempre em sua
singularidade, e, ao mesmo tempo como infinito, por contar com infinitos atributos que o
expressam, existe o risco de se conceber o próprio ser como indiferente. Poder-se-ia
afirmar, do mesmo modo, que a univocidade pressupõe, em última instância, a identidade
do ser em si mesmo. O desafio aqui é, justamente, pensar uma forma de fazer com que a
diferença opere em algo que é, por si próprio, singular, infinito e indivisível; pensar de que
modo o absoluto pode deixar de ser indiferente e indeterminado sem deixar de ser
unívoco. Dito mais claramente: se podemos indicar algo como particular; individual;
distinto; é porque o recortamos sobre um horizonte que dele se diferencia, ou porque o
comparamos com "um outro". Ora, no caso da substância, por ser ela absoluta, tal
procedimento se torna impossível, e, por conseguinte, deveríamos dizer que a substância
é tão indiferente quanto infinita, ou seja, que é idêntica a si mesma. Paralelamente, isto
indicaria uma negatividade, um defeito de um pólo com relação ao outro, pois, aquilo que
torna algo diferente é uma qualidade que um ente possui e outro não, mas, no caso do ser
spinoziano, ou clássico em geral, como nele nada pode faltar, o ente que a ele se remete
deve, por natureza, determinar-se por uma carência. Neste sentido M. Hardt postula
magnificamente: “O ser é singular, não apenas porque é único e absolutamente infinito,
mas, o que é mais importante, porque é notável. Essa é a abertura impossível da Ética (...)”
(Hardt, 1996 p.109) Para uma leitura ampliada sobre este ponto, ver: (Craia, 2002, pp.
60-64).
128
As coisas expressam o ser de modos diferentes, e este, por sua vez, dado o
princípio de imanência entre o ser e o ente, apenas por elas pode ser
expressado. Ora, somente aquilo que originalmente é diferença pode ser dito
como diferença sem perder a sua unidade nem o seu sentido. O Ser não se
compara com um outro diferente e fora dele a fim de se determinar, senão
que é determinado por si, ao mesmo tempo em que é dito de infinitos
modos diferentes, mas com um só sentido. Ser diferença: esse é o sentido
unívoco do ser. O Ser é diferença e é imanente em relação ao que difere -a
multiplicidade, a qual o expressa de diferentes modos-, sendo, no entanto,
uno como diferença primeira. O sentido do ser, o mesmo do ser, é ser
diferença em si, primeira e imanente às coisas onde se expressa. A
diferença é unívoca e se agita como expressão no mundo como
multiplicidade.
Os momentos da Univocidade
posteriores.
102 O conceito de imanência deixa, na obra deleuziana, de referir “somente” a temática
103 Zourabichvili expõe este diagrama segundo a seguinte equação: “Deleuze posiciona
univocidade somente vai atingir uma elaboração mais decidida com os filósofos
mencionados no início do parágrafo. A eles devemos nos remeter para abordar o devir
unívoco da ontologia.
105 Conforme recorda José Antônio Miguez em sua introdução ao Poema de Parmênides:
"Identidade absoluta do pensamento e do ser, mas num sentido diferente ao formulado por
Descartes, posto que aquilo que se mantém como ser em Parmênides não é só o Eu pessoal
131
senão, melhor, e junto com ele, o todo exterior à realidade da pessoa" in: PARMÉNIDES
HERÁCLITO Fragmentos, (daqui em diante: Parménides, 1983, p. 50)
106 Os conceitos “expressão”, “analogia”, “equivocidade” e “univocidade” são, neste
contexto, claramente anacrônicos, e o uso que deles fazemos implica, de certa forma,
forçar os limites do clima filosófico no qual tanto Parmênides como Plotino pensaram. Se,
em vista disto, ainda assim decidimos utilizá-los, é porque cremos que eles mantêm a
referência a Parmênides e Plotino dentro do horizonte de nosso trabalho.
132
107 Para um estudo mais detalhado a respeito da perspectiva deleuziana sobre a relação
emanação-expressão-imanência, ver todo o Capítulo XI (pp. 153-169) de SPE.
108 Na realidade, não é estritamente a ontologia o que para Duns Scot, e, em geral, para
Este problema se encontra claramente exposto no texto de Étienne Gilson JEAN DUNS
109
SCOT introduction a ses positions fondamentales, (daqui por diante Gilson, 1952), pp. 90-
134
93. Sobre a polêmica entre analogia e univocidade, e sobre o lugar da Metafísica (Gilson,
1952 pp. 100 ss.)
110Parece existir uma concordância entre os diferentes estudiosos de Duns Scot no que
diz respeito à fonte da qual o Doutor Sutil extraiu as bases para esta reflexão. Teria sido o
filósofo Avicena quem deu a Duns Scot o instrumento conceitual para desenvolver seu
pensamento, através da distinção aviceniana dos três estados da essência. Também
Deleuze parece reconhecê-lo em LS: “O filósofo Avicena distinguia três estados da
essência: (...) o terceiro é a essência como sentido, a essência como expressa:sempre nesta
secura, animal tamtum, esta esterilidade ou esta neutralidade esplêndida.” (LS, p. 37)
O grau de dependência de Duns Scot com relação a Avicena não deixa de ser matéria de
divergência e nem de promover discussões. Em seu livro Tempos Capitais, Eric Alliez
135
mas, como causa divina, na medida em que é causa de si, não expressa a
sua natureza íntima. Subsiste, portanto, uma certa eminência de Deus em
relação aos atributos, e, deste modo, a univocidade pode somente ser
pensada, mas não efetiva e totalmente realizada. Fazer do ser um conceito
abstrato foi, a um só tempo, a sua maior grandeza e o seu limite.
percorre esta disputa a partir de uma perspectiva não histórica, mas conceitual, a qual se
136
aplica perfeitamente aos interesses de nosso trabalho. Ver. (Alliez, pp. 398-410).
111Sobre a distinção formal, (Gilson, 1952, pp. 244-248).
137
112 Assim demonstram as várias citações e remissões que Deleuze introduz em SPE.
Indicamos, na seqüência, algumas das mais importantes para o nosso estudo. (SPE, pp.
42-46; 150-152).
139
116 Seria preciso colocar, aqui, uma observação importante que foi apontada, em distintos
lugares, ao texto de Deleuze sobre Nietzsche. Nos referimos ao fato de que Deleuze utiliza
e se baseia, inclusive em passagens decisivas de NF, no texto de Nietzsche A Vontade de
Poder, hoje reconhecido como apócrifo, ou pelo menos duvidoso. No entanto, cremos que
esta possível objeção não é procedente no âmbito do presente trabalho, uma vez que não
se trata de retomar e explorar a letra nietzscheana, senão de ver as marcas de um
pensamento em outro. Pensamos que a veracidade histórica, -vital em outro registro-, não
determina a validade ou não, de uma abordagem que possui como objetivo um campo
problemático, e não uma revisão histórica.
117 Não podemos deixar de indicar aqui uma das formas mais claras que a literatura
encontrou, tal vez sem sabe-lo, como diria Barthes, para mostrar a Vontade de Poder
encarnada em algo parecido a um homem. Nos referimos ao romance clássico de Patrick
Süskind, O Perfume, Rio de Janeiro, Edições Record / Altaya, 1985, p.126. "Nada disso
143
adequava-se a Grenouille. Não tinha em mente nada parecido com 'Deus'. Não se
penitenciava nem esperava qualquer inspiração do alto. Só para a sua própria e única
diversão é que se retraíra, só para estar mais perto de si mesmo, Banhava-se em sua
própria existência, não desviado por nada mais, e achava isso maravilhoso. Jazia na gruta
de rochedos como o seu próprio cadáver, como a cadáver de si mesmo, mal respirando, o
coração mal batendo - e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum
farrista jamais viveu no mundo."
144
118 Temos consciência da oposição de alguns autores à interpretação que Deleuze faz de
pois, por este caminho, a Vontade de Poder não pode, por si só, ser Fundamento,
exigência básica de toda essência metafísica.
146
119 Apesar de Deleuze reconhecer dois modos ou dois momentos de seleção no eterno
retorno, nós nos referimos, somente, ao segundo modo, que possui uma importância
ontológica maior. Para uma leitura mais detalhada ver: (NF, pp. 95-104)
147
120 Neste sentido, M. Hardt mostra a relação entre o ontológico e o ético no pensamento do
eterno retorno. “O eterno retorno da vontade é uma ética por ser uma ‘ontologia seletiva’. É
seletiva porque nem toda vontade retorna: a negação vem somente uma vez; somente a
afirmação retorna. O eterno retorno é a seleção da vontade afirmativa enquanto ser. O ser
não é dado em Nietzsche; o ser precisa ser querido. Nesse sentido, a ética vem antes da
ontologia em Nietzsche.” (Hardt, 1996 p. 92) Para complementar sua análise Hardt
recorre ao texto de Pierre Klossowski Nietzsche et le cercle vicieux, especialmente ao
capítulo “le cercle vivieux en tant que doctrine selective”. Na tradução espanhola que
utilizamos: (Klossowski, 1995 pp. 125-167)
121 A postulação de um devir, de um ciclo e de uma seleção pode nos levar a pensar em
O SER E A DIFERENÇA
O estatuto da Diferença
ponto em que já não mais pode operar, resta, ainda, a analogia entre todos
os juízos reais e possíveis com relação ao Ser.
Toda a consistência interna do campo da representação trabalha
sobre um profundo esquecimento ou uma decidida exclusão da diferença
enquanto tal. Isto significa, conforme foi exposto, que toda diferença que
aparece ou que é pensada no horizonte da representação como conceito
em geral, pressupõe sempre, e em todos os registros, uma Identidade
prévia que a limita e mediatiza. O notável é que, apesar de tudo o que foi
dito, não se trata de uma condenação “explícita” ou de uma sentença
drástica e final que erradique, com um só gesto, tudo o que é diferente e o
condene à não existência, ao não-Ser. Ao contrário: “Trata-se, então, de
determinar um momento feliz -o momento feliz grego-, no qual a diferença
aparece como reconciliada com o conceito” (DR, p. 45). E, no entanto, em
seu interior, no terreno da decisão "não explícita", a representação exclui a
diferença, e de uma forma que deveria ser chamada, no mínimo, de
enérgica.
Este primeiro momento grego que agora percorremos, começa, sem
dúvida, com Platão, já que é justamente "o jovem heleno típico" que não
apenas abre o espaço filosófico para o desdobramento da Representação
mas, também, desenvolve o seu primeiro grande instrumento. Este não é
senão a Dialética; num plano mais geral como modo de conhecimento, e,
de acordo com um registro mais especificado, como meio de seleção.
Segundo Deleuze, aquilo que se encontra na base da Dialética platônica é
a operação de seleção de linhagens. A tarefa da filosofia de Platão, uma vez
estabelecido o fundamento único baseado na Idéia, é a de classificar,
dentre aqueles “pretendentes” que almejam receber a fundamentação,
aqueles que verdadeiramente se encontram em condições de recebê-la e
aqueles que não passam de falsos pretendentes. Trata-se de organizar o
universo da Idéia, da Cópia e do Simulacro (o fundamento, o fundamentado
e o infundável) seguindo, para tanto, o fio da identidade, uma identidade
"interna" entre a Idéia e a Cópia. É esta relação interna que, ao mesmo
159
tempo, faz com que a Cópia possa receber -da Idéia- a fundamentação, e
exclui a possibilidade de que o Simulacro a receba. Esta dialética seletiva e
classificatória já pressupõe as quatro raízes da Representação para poder
operar.125
125 Para um acompanhamento mais detalhado do gesto platônico, tal como Deleuze o
entende, seria preciso nos remetermos ao magnífico "Platão e o Simulacro" (in: LS, pp.
259-273). De nossa parte, acreditamos que não é aqui o lugar de abordar plenamente o
trabalho citado. Nos limitaremos, portanto, a referir a este estudo segundo as
necessidades do nosso próprio texto, e de um modo não detalhado.
A respeito do estatuto do simulacro, de sua relação com a diferença e de sua capacidade
de "devir", ver (Orlandi, 1989). Acreditamos não ser este o lugar de abordar plenamente os
trabalhos citados. Nos limitaremos, portanto, a fazer referência a esse estudo de acordo
com as exigências de nosso próprio texto e de forma não detalhada.
160
126Deleuze não aponta Merleau-Ponty explicitamente como fonte deste raciocínio, embora
ambos os filósofos coincidam neste ponto. De qualquer forma, é sugestivo que Deleuze
aborde Merleau-Ponty a partir do problema ontológico, no que este se relaciona com a
dobradura do ser e com o problema do visível e do invisível, fazendo referência,
161
justamente, ao texto de M.P. que leva esse nome (Merleau-Ponty, 1971). Para um estudo
mais detalhado, ver: (F. pp. 140-158)
162
128 Para uma aproximação mais detalhada sobre o modo do negativo no movimento da
dialética hegeliana segundo a crítica de Deleuze, ver: (Hardt, 1996, pp. 9-17).
166
De acordo com o que foi exposto até agora, conhecemos aquilo que
falseia e que controla a Diferença: é o âmbito da representação, constituído
167
129 Para um estudo mais completo e detalhado a respeito da Representação “órgica”, ver
contrário, ser portador de uma outra natureza que o torne “indefinível”. Se,
como foi dito, o conceito em geral é a reunião daquilo que é idêntico entre
vários entes, então não podemos procurar a diferença mais pura dentro do
conceito, nem tampouco entre dois conceitos que diferem, já que estes
implicam, em sua essência, séries que articulam identidades. Devemos, ao
contrário, procurar, em um primeiro momento, a Diferença no terreno do
sensível; devemos procurá-la no terreno da percepção sensível, ou, melhor
dizendo, naquela força do sensível que “atravessa” o conceito genérico e
que este deixa escapar; deixa sem re-conhecer. Isto significa que a
Diferença não se encontra restrita “exclusivamente” ao terreno do sensível,
e nem tampouco que o abarca em sua totalidade. Se assim fosse, o limite
de toda diferença seria estabelecido de acordo com a nossa capacidade de
perceber as diferenças e semelhanças entre aqueles indivíduos que
compartilham um mesmo conceito. Desse modo, não apenas estaríamos
restringindo as diferenças às margens estabelecidas pela possibilidade de
serem apreendidas pela sensibilidade, mas também continuaríamos a
submetê-las aos limites de um conceito genérico que as subsumissem (já
que seria absurdo, para a lógica do conceito genérico, comparar, na
percepção, indivíduos de campos conceituais diferentes, como, por
exemplo, Sócrates e Zeus); assim, a Diferença não é o sensível simples e
meramente fático. Devemos então dizer que, na realidade, a Diferença se
situa entre o conceito em geral e a percepção sensível, no sentido de que
ambas as dimensões (por um lado, conceito em geral e percepção, e, por
outro, Diferença) se atravessam e até mesmo convivem de um modo
aberrante: uma cobrindo a outra, e esta, por sua vez, possibilitando aquela
que a envolve.
Inversamente ao que ocorre na representação, onde as diferenças se
limitam e “se determinam”, no âmbito da Diferença primeira, na medida
em que é recolhida no sensível, parte-se de uma diferença de potencial, de
uma Intensidade pura e imensurável. Não podemos pensar a Diferença
como uma diferença de graus que possa ser medida de acordo com uma
170
130 Sobre o empirismo transcendental ver também: (DR, pp. 286-293; 299-314).
172
momento a ser repetido; de ver como ele deixa sem efeito essa cláusula
íntima da Metafísica que indica a proeminência ontológica daquilo que,
sem fissuras, é idêntico a si mesmo, e que, portanto, autoriza todas as
cópias. Deleuze recorda que isto somente pode ser levado a cabo ao preço
de uma inversão categorial mais geral (DR, p. 59), o que, para ele, significa
que o ser se diga do diferente. Se o eterno retorno cumpre esta exigência e
faz retornar somente o diferente e o não idêntico, é porque o seu horizonte
é o da Vontade de Poder, no qual não sobrevivem as identidades prévias ou
os pontos originais. Sendo devir, o eterno retorno pode ter apenas um
“Mesmo”, o de retornar constantemente como o diferente. Deste modo,
retornar é o único idêntico; é repetir o que não tem modelo, pois o modelo
foi suprimido, como princípio, na Vontade de Poder.
O mundo das intensidades puras tem um ser unívoco e esse ser é o
retornar como diferente, num ciclo que não é movimento, mas devir. Se for
verdade que não poderia haver diferença intensa, e, portanto primeira,
sem o horizonte plástico da vontade de Poder que abole toda identidade,
não é menos certo, para Deleuze, que não poderia haver Vontade de Poder
sem a “cadeia tortuosa” na qual as diferenças se projetam e se lançam e na
qual elas se afirmam retornando como o sempre diferente. Este círculo
descentrado é o eterno retorno. A Vontade de Poder deve então ser
entendida como indissoluvelmente ligada ao eterno retorno: um não pode
ser pensado sem a outra. Como poderia então qualquer destas duas
instâncias ser essência do ser do ente ou, simplesmente, fundamento,
levando em conta que ambas são indetermináveis e que, além disso, se
reclamam mutuamente? Segundo a leitura deleuziana isto é impossível,
pois todo fundamento metafísico deve, por definição, ser infundado e
prescindir de qualquer coisa exterior a ele para poder se determinar, ou,
especificamente, para operar como ser.
180
132 Deleuze utiliza a expressão volonté de puissance (que pode ser traduzida tanto por
vontade de potência como também por vontade de poder) para traduzir Wille zur Macht.
De nosso lado preferimos utilizar a forma vontade de poder. Reconhecemos as implicações
que este tema possui dentro dos estudos nietzscheanos, mas, e apesar disto, a nossa
eleição não persegue nenhum fim problematizante acerca desta questão. Declaramos,
desde já, a nossa incapacidade de abordar tamanha polêmica. Limitamo-nos, neste
estudo, a adotar a tradução de Andrés Sánchez Pascual, visto serem estas as edições que
estamos utilizando para o presente trabalho (ver bibliografia).
181
CAPÍTULO III:
A CONQUISTA DO VIRTUAL
186
133 Toda a teoria deleuziana da Idéia cruza-se neste momento com o problemático como
lugar do sentido, pois o sentido, sendo ideal, compartilha certos modos da idéia. “(...) mas
o sentido é como a Idéia que se desenvolve nas determinações sub-representativas. (...) A
idéia, que percorre todas as faculdades, não se reduz, no entanto, ao sentido” (DR, p. 201).
Nos limitaremos, por motivos de espaço, a enfatizar que o sentido como acontecimento,
tal como Deleuze o define, é o modo e o instrumento de verdade dos problemas, e,
portanto, um de seus principais componentes.
192
Este parágrafo nos faz lembrar, uma vez mais, a importância que o
fato de deixar de remeter o problema a suas soluções possui. Podemos
supor -e devemos fazê-lo-, que existem várias soluções para um problema
determinado, e, no entanto, elas não se sustentariam sem a estrutura do
problema que as engendra. Uma variedade de casos resolutivos, ou de
comprovações empíricas, e até mesmo de teses acabadas, não poderia, por
si sós, determinar o horizonte do questionamento do qual se desprendem.
Da ordem das resoluções empíricas não podemos passar ao modelo ideal
do problemático, mesmo recordando que este não é indiferente à própria
ordem empírica das soluções. Um campo resolutivo formado de diferentes
respostas ou soluções particulares somente adquire “sentido” ao ser
remetido ao seu horizonte problemático, isto é, à estrutura ideal da qual
recebe a sua possibilidade. Do contrário, não poderíamos reconhecer como
é que a variedade de soluções individuais e diferentes não deixa de se
remeter (ou, ao menos, de manter tal possibilidade) a um marco que, de
algum modo, as sustenta. Embora as soluções possam ser diferentes, elas
mantêm uma coesão com relação ao campo problemático ideal que as
impede de cair na abstração vazia ou inócua.
O que até aqui dissemos parece indicar que aquilo que difere, que
não é igual (as soluções), equaliza-se e centraliza-se na identidade e
homogeneidade do problema. É como se uma série de elementos livres
adquirisse sua razão e lógica à força de uma remissão obrigada a um
campo regulador. Deste modo, não faríamos mais do que colocar o
problema como subsolo fixo que determina as condições de toda solução, e
isto seria, sem dúvida, tornar a cair no problema do fundamento. No
entanto, nada disto ocorre, e a razão para tal, já foi anunciada
anteriormente, quando dizíamos que um problema e sua verdade definem-
se segundo sua estrutura interna ideal, o que, na realidade, indica o modo
de multiplicidade do problemático. O próprio problema já é, ele mesmo,
desregulado e descentrado, e este é, sem dúvida, o seu caráter mais
complexo: como é que aquilo que não possui uma continuidade abarcável
em sua totalidade pode emprestar “sua” coerência a um outro registro (os
modos empíricos do saber)? Esta dificuldade pode ser esclarecida mediante
estudo mais detalhado de certas características do problema.
Por um lado, todo horizonte problemático é constituído de relações
ou vínculos diferenciais que estruturam uma multiplicidade, a qual, como
tal, opera uma determinação autodiferenciadora do próprio problema; e,
por outro, o problema não se mantém indiferente e impassível com relação
às soluções, mas, ao contrário, relaciona-se com elas e, ao mesmo tempo
197
sentido, não é errado dizer que são a mesma coisa. “Não somente o sentido
é ideal, mas os problemas são as Idéias mesmas. (...) Assim, o problema ou
a Idéia, não é menos singularidade concreta, que a universalidade
verdadeira.” (DR, pp. 210-211). A fim de sermos mais exatos, devemos
ressaltar que a “relação”, tanto da idéia com a multiplicidade como dela
com o problema, deve ser entendida de acordo com seu caráter interno e
necessário, e não como uma relação circunstancial ou exógena. Por isto,
ao abordar a Idéia e sua relação com o problema, ingressamos em um
registro que nos permite, ao mesmo tempo, compreender o modo
operacional da própria multiplicidade pela qual ambos são percorridos.
Problema, Idéia e multiplicidade não são elementos isolados que, dada
uma somatória, geram um resultado exato, mas um conjunto de
agenciamentos que se remetem mutuamente, que se inter-constroem no
fluxo de sua própria dinâmica.
Deleuze faz com que a Idéia passe por um caminho de eliminação de
certas “distorções” que, segundo ele, a levavam a se mover dentro dos
limites estabelecidos pelas categorias da determinação e do determinável
enquanto elementos exteriores à própria Idéia. Neste sentido, a Idéia não
guardaria para si senão a capacidade de portar o princípio do
indeterminado, princípio que remete ao seu próprio exterior a fim de
desencadear e desdobrar a determinabilidade. Deste modo, para que a
Idéia possa, não só operar a gênese de certa verdade fatual, mas, também,
se relacionar com os modos empíricos, seria preciso que ela seja remetida
a um exterior que, de modo paradoxal, por um lado possibilita e por outro
reclama, para não se tornar uma espécie de “conjunto vazio” que nada
determina nem indica. Assim, todo o horizonte aberto pela Idéia seria
coutado ao princípio de determinação baseado, uma vez mais, no
surgimento de campos resolutivos empíricos que “completariam” a verdade
ideal. Tal característica sustenta-se em duas funções próprias da Idéia: a
primeira é que ela própria, na medida em que é indeterminada, não se
reconhece como imperfeita, mas como uma estrutura positiva e objetiva
199
135Sobre os dois primeiros momentos deste percurso, veja-se maiores detalhes em: (DR,
pp. 218-236). No que concerne à reflexão mais propriamente deleuziana (que aqui
procuramos expor), devemos remeter ao capítulo “Síntese Ideal da Diferença” (DR, pp.
218-285).
200
136 Os autores aos quais Deleuze se refere neste aspecto de seu trabalho são Salomon
delimitar o seu próprio espaço. Para ela, todos os devires são, ou podem
ser, próprios; e, o devir é, justamente, a dinâmica que leva adiante a
apologia do “entre” e da correlação, em oposição à estabilidade que está
baseada na preeminência do ente acabado, já determinado, isto é, do ente
indubitável.
137 A multiplicidade torna-se, portanto, corpo sem órgãos ou plano de imanência, e será
apontada como o continuum de intensidades (Diferenças), que determina a total
imanência de ser e ente ou, a partir do Spinoza que Deleuze recria e celebra, entre
substância e atributos. “O problema não é mais aquele do Uno e do Múltiplo, mas o da
multiplicidade de fusão, que transborda efetivamente toda oposição do uno e do múltiplo.
Multiplicidade formal dos atributos substanciais que constitui como tal a unidade ontológica
da substância. Continuum de todos os atributos ou gêneros de intensidade sob uma
mesma, e continuum das intensidades de um certo gênero sob um mesmo tipo ou atributo”
(MP, Vol. III, p. 15) Desenvolver essa temática de forma detalhada e rigorosa, como no
próprio MP, é tarefa que não é possível realizar aqui devido, principalmente, à
“multiplicidade” de conceitos e de abordagens, mas também de entradas em relação a
esse texto que autorizam ou deixam “usar”. Isso tudo merece um estudo específico.
Por outro lado, é preciso salientar que o exercício do uso das multiplicidades feito mais
adiante em MP se movimenta em uma região extremamente diversificada, a qual vai da
psicanálise à guerra, passando pela lingüística e pelas matemáticas - entre outras áreas.
Essa diversidade faz com que o texto se transforme em uma “máquina” capaz de se
agenciar com inúmeras outras máquinas teóricas, e de acordo com diferentes operatórias
ou funções (é exatamente sobre isso que trata o “livro”). Deleuze indica que o livro não é
mais uma imagem do mundo, pelo contrário, ele faz rizoma com o mundo.“Resumindo,
parece-nos que a escrita nunca se fará suficientemente em nome de um fora. O fora não tem
imagem, nem significação, nem subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o
livro-imagem do mundo. Um livro rizoma, e não mais dicotômico, pivotante ou fasciculado.”
(MP, Vol. I, p. 34). De nossa parte, quando nos envolvemos com um livro, antes de
aspirarmos ao título de “escritores múltiplos de agenciamentos”, a nossa intenção é, no
207
máximo, fazer parte integrante de uma “máquina de leitura” agenciada por uma
textualidade.
208
lugar” no qual se desenvolve exatamente, já que ao longo da sua obra aparece a rejeição
à doutrina de Hegel, ora de forma explícita, ora de forma encoberta. Para um
desenvolvimento mais relevante desta perspectiva vide (DR, pp. 61-77). Há uma
aproximação do “anti-hegelianismo de Deleuze” no estudo de M. Hardt citado no começo
deste trabalho (Hardt, 1996: vide nota 7).
Cabe destacar, entretanto, a voz discordante vinda das entrelinhas deleuzianas, quando o
filósofo francês faz a sua interpretação de Hegel, Trata-se de Catherine Malabou, no seu
artigo “Who’s Afraid of Hegelian Wolves?” (in Patton, 1996, pp. 114-138). Nesse artigo,
Malabou aplica à leitura deleuziana da dialética de Hegel a mesma lógica (ou melhor, a
mesma metodologia) que Deleuze aplica a Freud no primeiro “Platô” de Mil Platôs: “1914
- Un seul ou plusieurs loups?” (MP, pp. 38-52) Para Malabou, da forma como Freud “só
via”, segundo Deleuze, um só cachorro edipiano aí, onde o homem dos lobos nomeava uma
multiplicidade, Deleuze, da mesma forma, só vê “uma” identidade, “uma” contradição,
“uma” negatividade aí, onde Hegel busca superar essa paralisia do “mesmo” em nome de
uma filosofia dinâmica que incorpore realmente o diferente.
212
que tange à dialética platônica. Com isso não estamos afirmando, de modo
algum, o “platonismo de Deleuze”, mas reconhecendo que em Platão, o
pensamento deleuziano encontra um primeiro embrião da dialética não
“opositiva-representativa”.139 Como aparece caracterizada em DR, a
dialética platônica é uma dialética da divisão e da seleção, já que o que
Platão busca é selecionar pretendentes legítimos e, ao mesmo tempo,
descartar os falsos pretendentes. A este respeito, é decisiva a articulação
feita por Deleuze entre a dialética platônica e as críticas contra ela,
oriundas de Aristóteles, pois nestas últimas podemos prever a semente de
toda dialética que Deleuze virá rejeitar posteriormente. Trata-se, de algum
modo, da linha divisória que separa as águas da dialética platônica e da
uma dialética “pós-platônica”. Nessa perspectiva, Deleuze observa:
nosso objetivo, DR, pp. 82-95. Consultar também o importante “Simulacro e Filosofia
Antiga: Platão e o simulacro”, Primeiro Apêndice da Lógica do Sentido (LS, pp. 259-273);
este texto é decisivo para mergulhar na concepção deleuziana de “seleção” e de
“simulacro” - referidos a filosofia de Platão.
213
140 Acerca do problema do mito em Platão, Deleuze desenvolve mais o seu pensamento em
(DR, pp. 85-90)
141A critica deleuziana a forte concepção platônica da identidade, afirmada na Idéia e que
chega até a cópia, atravessando todo o espaço ontológico, foi lembrada no capítulo II do
presente trabalho. Por outro lado, este é um exemplo que esclarece ainda mais o modo de
leitura de Deleuze em relação à história da filosofia. Trata-se de um uso, de um ponto
214
142 A esse respeito vide textos sobre Leibniz e Foucault, como também os comentários a
preciso dizer, então, que o ser é correlativo à questão, mas que, nenhuma
das duas instâncias se deixa reduzir pela outra, assim como tampouco se
manifestam isoladas ou independentes.
143 A este respeito, pode-se consultar: (Alliez, 1996); assim como o artigo de Constantin V.
deve ao fato que a Diferença primeira possui, apesar de tudo, uma conexão
particular com a questão ontológica, e esta, por sua vez, com o
pensamento, conforme este se desenvolve nos problemas dialéticos. O que
nos comunica a questão, é o imperativo não predizível de um acaso
ontológico, enquanto jogo livre da Diferença, isto é, uma ordem, um
imperativo. Nunca é uma representação, nem tampouco uma intuição, (a
não ser que reestruturemos todo o conceito que temos desta), o que
possuímos do Ser, é somente sua força. Mas esta potência não é nem
mensurável, nem prognosticável em seus efeitos, pois provém do acaso-
diferença, do lance de dados unívoco. Se nos atrevemos a falar do Ser, -
independentemente da capacidade com o que façamos-, é porque a
pergunta ontológica continua expressando a força imperativa da Diferença.
Que esta última se apague na própria pergunta, é uma conseqüência que
não tem demasiada importância, pois a cadeia de violências que cria e
dispara ao próprio pensamento, já foi iniciada. Poderia, por outro lado,
pensar-se que se trata de um “destino”, talvez em algum sentido o seja,
mas um destino não pré-determinado, pois seu ponto zero é uma eterna
repetição, e sua linha de deslocamento o acaso mais extremo; seria
pertinente, então, seguir chamando-o de destino? Parece-nos mais correto
continuar chamando esta dinâmica de imperativa, uma vez que,
notavelmente obriga, mas não pré-determina.
No questionamento decorrente de um problema que não tem como
transcendente a sua solução, mas apenas a imanência da sua
constituição, o filósofo ousa desafiar o que tem afirmado primeiramente,
ou seja, indicar algo desde o pensar, daquilo que não pode ser
representado pela razão.
Liberar a Diferença é, -para nos agora-, tirar lhe o peso do silêncio,
lhe devolver sua voz, sua única voz.
O ESTATUTO DO VIRTUAL
229
Introdução:
144 Como não indicar o delicado escrito “Lucrécio e o Simulacro"? Neste apêndice de LS
Estes dois registros são nitidamente diversos, mais isto não implica
que, a priori, se deva outorgar mais realidade a um ou a outro. A matéria,
enquanto mens momentanea da percepção do pressente, é plenamente
atual, e designa a própria forma constitutiva da atualidade e da presença;
por outro lado, a memória é real, mas não atual, portanto, o tipo de
realidade que lhe corresponde é a virtualidade.
145Os sítios onde é possível reunir a ontologia e o virtual não se limitam aos trabalhos
sobre Bergson, ao contrário, se desenvolvem igualmente na monografia: DR (pp. 269-285),
236
O berço escolástico
bem como no estudo sobre Leibniz (LB, pp. 99-103; 117-126). Também tem seu espaço de
reflexão em Qph? (pp. 111-127; 144-154).
146 De qualquer sorte, um estudo detalhado sobre a complexidade semântica da categoria
do virtual neste inicio de milênio, bem como uma análise de sua importância nos deixaria
237
147 Le bergsonisme Paris, Puf 1966; e "La conception de la différence chez Bergson", In:
Les Études bergsoniennes, vol. IV, paris, Albin Michel, 1956, pp. 77-122
239
somente ao atual. Assim, o virtual não deve esperar ser atualizado para
poder ser real, ao contrário, o processo de atualização se estabelece entre
dimensões absolutamente reais e imbricadas. Por outro lado, o virtual,
sendo absolutamente real porem não atual, se articula necessariamente
em torno ao seu próprio processo de “atualização”, mas este processo é,
por sua vez, em cada caso “diferente e singular”, portanto o virtual nada
perde de individualidade, ao tempo que não se torna um universal
abstrato. É preciso acrescentar, junto com Deleuze que, em termos
referidos estritamente à dinâmica ontológica, seria um erro estabelecer que
o virtual se encontra em constante oposição ao real, pois isso implicaria
igualá-lo a passagem e a oposição que se opera entre o possível e o real,
que antes indicávamos; ora, é justamente deste esquema que o virtual
deve ser tirado.
CAPÍTULO IV:
VIRTUAL.
248
ADVERTÊNCIA LIMINAR
INTRODUÇÃO
149 Como veremos mais adiante, não pretendemos utilizar e descartar rapidamente esta
referencia ao Medievo. Ela possui sua própria importância, aqui como exemplo, mas
também como vetor destacado do problema que estamos tratando. Portanto, acreditamos
não cair no grupo de pessoas denunciadas por Alain de Libera no texto Pensar na Idade
Média. “Em filosofia, a Idade Média é central, mas está longe de tudo. Seus textos são
monumentos, mas seus monumentos são vestígios dos quais se tomam os ornamentos de
novas arquiteturas – um motivo aqui, um fragmento ali: é o reinado do chique acessório.
Enquanto isso, o pensamento medieval sobrevive em produções austeras, para o único
prazer dos especialistas”.(Libera de, 1999, p.27).
253
150 De qualquer modo, e sem nenhuma dúvida, teria sido não só interessante, mas
também prudente, conhecer o que opinariam sobre esta afirmação os homens da Fé, e em
particular da Fé sincera no fim dos dias. Acaso, teria sido a alvorada da Modernidade o
signo maior do tão temido Apocalipse, mas que, pela segreda e infinita ordem urdida pela
Divindade, não se manifestaria como um bramido no fogo e nas pestes, mas como uma
mortal serenidade de Espírito, através da cristalina luz da Razão e da Ciência como
metáfora de todas as doenças?
254
151O comentário do próprio Heidegger sobre a foto que os astronautas obtiveram da Terra
desde o espaço exterior, parece coincidir com estas preocupações, metaforicamente, ou
não, é a Terra a que corre risco. Por outro lado, também seria necessário acrescentar ao
coral de preocupações, as leituras alarmistas com relação à incidência das Ciências
Genéticas na nossa cultura. Tais preocupações levam em consideração o fato de que este
conjunto de conhecimentos técnicos opera, de modo “meramente instrumental”, o
substrato material último da vida. Assim, além das permanentes e visíveis questões de
ordem ética e religiosa, se agitam, no fundo, uma certa “angústia” baseada no fato de que
agora o homem pode “tocar” e alterar a própria origem biológica dele mesmo. Ora, antes
de mais nada, queremos esclarecer que não estamos aderindo às colocações de Peter
Sloterdijk, no seu polêmico texto: Regras para um parque humano. (Sloterddijk, 1999, pp.
32 ss.) Estamos só indicando que, a verdadeira preocupação surge quando aquilo com o
que se brinca é a vida, mas a vida como biologia molecular; já a vida espiritual ou
cultural, tantas vezes modificada, enquanto criação permanente, nunca implicou “o fim
255
A COISA E O VIRTUAL
152 Podemos indicar um certo paralelismo entre a denúncia deleuziana sobre como a
tradição insistiu em copiar a noção de problema filosófico no problema empírico,
denúncia que mostramos no capítulo anterior, e esta nossa colocação. Também aqui se
privilegia o empírico como modelo.
259
153 Um dos objetivos mais intensos da leitura que Deleuze faz de Spinoza, visa,
justamente, mostrar como em Spinoza não há uma negação em nível ontológico quando
anuncia: “toda determinação é negação”. Sabemos que Hegel, maldosamente, parte desta
afirmação, é de uma carta fragmentada a um amigo, para denunciar um movimento de
“perda do Ser” no seio do spinozismo. Hegel, para Deleuze, continua a ser o inimigo.
264
A TÉCNICA E A CRIAÇÃO
Assim, Jean-Louis Weissberg pode dizer, por exemplo: “Os trabalhos de Bergson sobre
157
158 Propõe Alliez: “(...) Extrair um puro ser de sensações.(Deleuze Guattari, O que é a
Filosofia?). O virtual como categoria estética, origem e fim da arte.” (Alliez, 2000, p. 274)
280
são capazes; nos coloca uma “máscara de oxigênio” para enfrentar novos
tempos com desejo saudável:
CONCLUSÃO
284
BIBLIOGRAFIA
290