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BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos. In: ______________.

Magia
e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de
Sergio Paulo Rouanet. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. P. 235-243. [Texto escrito
por Benjamin em 1924]

p. 236

“Segundo o autor [Karl Hobrecker, colecionador de livros infantis e que havia


publicado um livro sobre eles], o livro infantil alemão nasceu com o Iluminismo. Era
na pedagogia que os filantropos punham à prova o seu grande programa de remodelação
da humanidade. Se o homem é por natureza piedoso, bom e sociável, deve ser possível
fazer da criança, ente natural por excelência, um ser supremamente piedoso, bom e
sociável. (...) o livro infantil, em suas primeiras décadas, é edificante e moralista, e
constitui uma simples variante deísta do catecismo e da exegese.”

Benjamin considera os primeiros livros infantis áridos e até mesmo irrelevantes para o
público infantil, mas também critica os livros seus contemporâneos, cheios de desenhos
e com histórias para atrair crianças.

p. 236/237

“A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações
infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita
perfeitamente coisas sérias, mesmo as / mais abstratas e pesadas, desde que sejam
honestas e espontâneas (...).”

p. 237

“Ao lado da cartilha e do catecismo, na origem do livro infantil está a enciclopedia


ilustrada, o dicionário ilustrado (...).” Mescla texto agradável, didatismo sobre qualquer
coisa (e todas as coisas) e histórias de moralismo.

“Enfim, os contos de fadas e as canções, e até certo ponto também os livros populares e
as fábulas, constituíam fontes para os textos dos livros infantis.”

“A atual literatura romanesca juvenil, criação sem raízes, por onde circula uma seiva
melancólica, nasceu no solo de um preconceito inteiramente modeno. Trata-se do
preconceito segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma
existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente inventivos se
quisermos distraí-las. No entanto nada é mais ocioso que a tentativa febril de produzir
objetos – material ilustrativo, brinquedos ou livros – supostamente apropriados às
crianças. Desde o Iluminismo, essa tem sido uma das preocupações mais estéreis dos
pedagogos. Em seu preconceito, eles não veem que a terra está cheia de substâncias
puras e infalsificáveis, capazes de despertar a atenção infantil.”

p. 237/238

“As crianças, com efeito, têm um particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha
visivelmente com coisas. Elas se sentem atraídas irresistivelmente / pelos detritos, onde
quer que eles surjam - na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na
confecção de roupas. Nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas
assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos,
mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. Assim, as próprias
crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos. O conto
de fadas é uma dessas criações com posta de detritos – talvez a mais poderosa na vida
espiritual da humanidade, surgida no processo de pridução e decadência da saga. A
criança lida com os elementos dos contos de fadas de modo tão soberano e imparcial
como com retalhos e tijolos. Constrói seu mundo com esses contos, ou pelo menos os
utiliza para ligar seus elementos. O mesmo ocorre com a canção. E com a fábula.”

Benjamin se detém a analisar as gravuras nos livros infantis.

p. 239/240

Sobre o uso intenso das cores no livro infantil no período Biedermeier (1820 e 1830).
“Esse mundo de cores, em sua ostentação complacente, é reservado ao livro infantil. A
pintura renuncia aos efeitos vazios quando o colorido, a transparência ou a policromia
dos tons prejudica a sua relação com os planos. Nas imagens dos livros infantis,
contudo, o objeto e a autonomia do material gráfico não permitem pensar / numa sítese
da cor e do plano. Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esse
jogos cromaticos. Pois os livros infantis não servem para introduzir imediatamente os
seus leitores no mundo dos objetos, animais e homens -, na chamada vida. Só
gradulamente o seu sentido exterior vai se definindo, e apenas na medida em que o
dotarmos de uma interioridade adequada. A interioridade dessa visão está na cor, e nela
transcorre a vida sonhadora qua as coisas vivem no espírito das crianças. Elas aprendem
com a cor. Pois é essencialmente na cor que a contemplação sensível, desprovida de
qualquer nostalgia, está em seu elemento.”

p. 241

Sobre os anos de 1840 a 1860 e a gravura de Theodor Hosemann. “A imagem colorida


faz a fantasia infantil mergulhar, sonhadoramente, em si mesma. A gravura em branco e
preto, a reprodução sóbria e prosaica, lavam-na a sair de si. A imperiosa exigência de
descrever, contida nessas imagens, estimula na criança a palavra. Mas, assim como ela
descreve com palavras essas imagens, ela escreve nelas. Ela penetra nas imagens. Sua
superfície não é, como a gravura colorida, um noli me tangere – nem em si mesma, nem
para a criança. Ela tem um caráter meramente alusivo e admite a cooperação da
criança.”

p. 242

Ainda se referindo ao trecho anterior. “(...) essas imagens [em preto e branco] são mais
eficazes que qualquer outras na tarefa de iniciar a criança na linguagem e na escrita (...).
As cartilhas coloridas, como elas existem hoje, são uma fonte de confusão. No reino das
imagens incolores, a criança acorda; no reino das imagens coloridas, ela sonha seus
sonhos até o fim.”
Sobre a literatura infantil no final do século XIX. “(...) esse período engendrou uma
literatura que, em seu esforço complacente de atrair a atenção do público, perdeu o
conteúdo ético que dava sua dignidade mesmo às experiências mais toscas de pedagogia
classicística. Liberta dessa dimensão ética, tal literatura passou a depender dos
estereótipo da imprensa diária. A cumplicidade secreta entre o artesão anônimo e a
criança desaparece; escritores e ilustradores se dirigem cada vez mais à criança através
da mediação ilegítima de suas próprias preocupações e das modas predominantes. A
atitude sentimental, apropriada não à criança, mas à concepção pervertida que dela se
tem, adquire nas imagens direito de cidadania. O formato perde sua nobre discrição,
tornando-se incômodo.” Torna-se, segundo Benjamin, kitsch.

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