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O doutor e o analfabeto

Foi num rio qualquer do Estado do Pará, Amazónia, Brasil. Pode ter sido
no Guamá, no Tapajós, no Moju, no Acará, no Araguaia, no Tocantins, no
Xingu, no Trombetas, no próprio Amazonas… É… pode ter sido em qualquer
um, não faz diferença. O que conta é a história em si.
Era um doutor, destes metidos a sebo, que, por ser doutor, pensa que
tem o rei na barriga e gosta de pisar nos mais humildes.
Esta na margem de um rio paraense, desejando passar para a outra
margem.
Acercou-se de um caboclo e falou:
- Caboclo, eu quero passar para a outra margem. Qual é a tua canoa?
Nem ao menos perguntou se o caboclo podia ou não atravessá-lo.
Falou imperativamente e o pobre caboclo indicou, com um trejeito na
boca, a direcção onde estava sua montaria, onde o doutor embarcou.
A bem da verdade, não sei se o doutor era de curar, de leis ou de
construir. Sei apenas que era um doutor metido a besta e que gostava de
humilhar os outros.
Mal a pequena embarcação desatracou, começou a espicaçar o pobre
caboclo.
Ele, o doutor, sabia muito bem que o caboclo não tinha instrução.
Mesmo assim, falou:
- Caboclo, tu és formado em quê?
- Como então, dotô? Formado? O que é isso?
- Que Faculdade tu cursaste?
- Ora, mas, dotô! Eu não cursei em Faculdade nenhuma. Mas, ora…
- Então, perdeste dez anos da tua vida. Mas fizeste o segundo grau,
não?...
- Mas, quê, doto. Não fiz não, isso não tem prós meus lados…
- Perdeste mais dez anos de tua vida. Pelo menos cursaste o primeiro
grau?
- Não, seu dotô. Mas quando, então?
- Perdeste mais dez anos de tua vida…
O caboclo fez as contas – isto ele sabia fazer – e viu que tinha perdido
trinta anos da vida dele…
Olhava o doutor com admiração, mas ao mesmo tempo já chateado de
tanto estar perdendo anos de sua vida por não ter estudado…
E o doutor, implacável, fez ainda mais uma pergunta:
- Mas, caboclo, pelo menos tu sabes ler e escrever?
- Sei, não, dotô. Eu sou analfabeto de pai e mãe…
- Pois perdeste mais dez anos de tua vida…
Já eram quarenta anos que o caboclo perdia…
Estavam bem no meio do rio.
Nesse momento, a canoa começou a fazer água rapidamente e mais
rapidamente a se afundar.
Aí, o caboclo apenas teve tempo para perguntar ao doutor:
- Dotô, o senhor sabe nadar?
- Não… não… disse o doutor apavorado…
- Pois então, dotô, o senhor perdeu a sua vida toda… !
O caboclo saiu nadando em direcção à margem, enquanto o doutor
morria afogado, com toda a sua sabedoria…

Glossário

Caboclo – mestiço de branco, principalmente português, com índio.


Metido a sebo ou metido a besta – pessoa que se acha superior ás
outras.
Montaria – pequena embarcação da Amazónia.
Fazer água – diz-se quando a embarcação começa a encher de água.

Vale, Fernando e Monteiro, Walcyr, Histórias Portuguesas e Brasileiras para as


Crianças, Instituto Piaget, pág. 97 - 102.

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