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ROÇAS ESCRAVAS NO UNIVERSO BRANCO: A ECONOMIA ESCRAVAVISTA


PELOS VIAJANTES

Paulo Roberto de Almeida


Graduando em História e bolsista do Programa de Iniciação Científica – PIC do Centro Universitário do Leste de Minas
Gerais / Unileste-MG

Jezulino Lúcio Mendes Braga


Mestre em história social Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, professor do Centro Universitário do Leste de
Minas Gerais / Unileste-MG

RESUMO

O estudo pretende refletir sobre a possibilidade aberta ao escravo de trabalhar em proveito próprio, em
seus dias de folga, objetivando a compra de sua liberdade e de seus parentes. Além disto, procura também
corroborar com as novas discussões historiográficas que enfatizam a importância de se compreender a
organização do sistema escravista e seu funcionamento, tanto como forma de trabalho quanto sistema
social, cultural, político e econômico, sendo utilizada como fonte primária a literatura de viajantes que
passaram por Minas Gerais no século XIX. Os dados desta pesquisa indicaram que, nas Minas Gerais do
XIX, o elemento cativo possuía uma economia interna própria como resultado de sua negociação com o
senhor. Assim, verificou-se que a escravidão não foi tão rígida, como demonstrou por muito tempo a
historiografia tradicional, mas sim um sistema que permitiu ao escravo criar certos tipos de instituições ou
mecanismo capazes de lhe proporcionar-lhe pecúlio suficiente para a compra de sua alforria, assim como
a de seus parentes ou membros da comunidade.

Palavras-chave: Historiografia, Família, economia, autonomia, liberdade.

INTRODUÇÃO

Este testudo pretendeu contribuir para as discussões historiográficas acerca da escravidão, referindo-se
principalmente ao universo criado pela negociação entre senhor e escravo. Assim, coloca-se em discussão
a economia própria do escravo esboçada na roça cativa, presente na Comarca de Vila Rica no período que
se estende de 1850 a 1888.

Inicialmente, há que se esclarecer a escolha espacial e temporal desta pesquisa. Entende-se que Minas
Gerais teve um dos maiores plantéis de escravos do Brasil, devido principalmente à atividade mineratória
iniciada no século XVIII, e a partir do momento que ocorre o cessar do tráfico atlântico-1850- tem-se
início o tráfico interno interprovincial com o objetivo de manter a mão-de-obra escrava. Soma-se a isto, a
reprodução natural por parte dos cativos, ao constituírem famílias Paiva & Libby (1995), Braga (2001).

As balizas deste estudo se referem ao fim do tráfico de escravos, segunda metade do XIX momento em
que Minas Gerais estava com uma economia sedimentada, voltada principalmente para o mercado interno
Paiva (1995). E 1888, o ano da abolição, representa o momento definitivo em que o trabalho escravo
deixa de existir.

Portanto, pretendeu-se analisar a literatura de viagem apesar de ser um estudo etnográfico, antropológico
e resultado de diferentes interesses, já que parte das representações sobre o Brasil, sobretudo do século
XIX.
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PLANTANDO E COLHENDO A LIBERDADE: O CASO DA ROÇA ESCRAVA

A história da escravidão no Brasil é dinâmica e multifacetada por que a todo instante, a reescrevemos
dando a ela novas perspectivas, realidades e formatos.

A nova historiografia da escravidão brasileira deixa claro a importância de se compreender a organização


da escravidão e seu funcionamento tanto como forma de trabalho quanto sistema social, cultural, político
e econômico para que se entenda suas conseqüências teóricas e sistemáticas mais amplas, para a
compreensão da historia do Brasil e de seu lugar dentro do desenvolvimento da economia mundiali.

Um destes debates teóricos está representado pela obra de Cardoso e outros sobre a “brecha camponesa”,
o desejo e a capacidade dos escravos de cultivar e vender seus próprios alimentos, Gorender (1991) e
outros viam o escravismo como exploração irrestrita, que concedia aos escravos pouco espaço de
manobra ou de negociação. Ciro Cardoso (1982,1988), Reis (1989) e Reis & Silva (1989) descobriram
provas empíricas de escravos trabalhando na lavoura, cultivando e até vendendo seus próprios alimentos,
fato que levanta a questão sobre as definições do “modo de produção” e dos papéis econômicos.

Ciro Flamarion Cardoso (1982) em seu livro Agricultura Escravidão e Capitalismo afirma que existem
algumas hipóteses para a questão: 1) do ponto de vista econômico, a atribuição de uma parcela, e do
tempo para cultivá-la, cumpria uma função definida no quadro do sistema escravista colonial; a de
minimizar o custo de manutenção e reprodução da força de trabalho. Quanto a este aspecto, a variação
quanto a seu grau de importância no tempo e no espaço dependia da viabilidade da outra alternativa – o
fornecimento a baixo custo de roupa e alimento aos escravos pelos senhores, e da abundância de terras; 2)
também do ponto de vista econômico, bem integradas ao mercado mundial como exportadora de produtos
primários, outras características do sistema escravista atuavam em sentido contrário ao que já indicado:
trata-se da maximização da exploração do trabalho escravo, sobretudo na época de colheita, e elaboração
dos produtos na agricultura comercial de exportação, em determinadas atividades de subsistência:

3) no escravismo, também se estabelecia um acordo contratual, legal ou consuetudinário, que garanta para
a classe dominada certo direito.

Cardoso (1982) com o tema de “brecha camponesa” quis se referir à produção independente de alimentos
pelos escravos, para uso próprio ou para venda. Argumentava que a “brecha” abria ao escravo um maior
espaço psicológico e econômico, sem contudo abalar ou modificar significativamente as estruturas do
sistema escravista.
“Em trabalho publicado em 1987, no entanto, ele confere ao
fenômeno uma importância mais significativa. Sustenta agora que a
luta entre escravo e senhor em torno da “brecha camponesa” era um
elemento central na própria formação do “modo de produção
colonial”. Ao que parece, não se trata mais de uma fenda ou abertura
em alguma coisa – a definição do vocábulo “brecha”, dada pelo
dicionário-, mas do lugar privilegiado para a contenda entre escravos
e senhores”(Slenes,1999, p.198).

A autonomia escrava passava pelo acesso a um pedaço de terra cedido pelo senhor. Mas muito bem
colocada, é a questão de Cardoso (1982): se o escravo era uma propriedade, como era possível ser ao
mesmo tempo escravo camponês?

Bem, acredita -se que apesar de possuir este status de “coisa possuída”, o elemento cativo ao utilizar um
tempo livre, mesmo que este seja uma forma ou extensão do domínio senhorial, se tornava camponês,
uma vez que com sua produção era capaz de se alimentar melhor, juntar algum pecúlio para adquirir
manumissão própria ou de algum familiar e vender seu excedente para o mercado local.

Tanto é que no caso de Minas desde o século XVIII, verifica-se a existência de unidades produtivas: a
produção agro-pastoril escrava onde temos uma produção que já na sua origem volta para o mercado, com
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o objetivo especifico de expropriação do excedente gerado pelo escravo. Outro tipo, é a unidade produtiva
caracterizada pela mão-de-obra escrava na dupla atividade: agro-pastoril e minerador. Aqui também o
excedente produzido se constitui no objetivo final para o qual se volta a empresa.

Alem disso, de acordo com Cardoso “não há dúvida de que as atividades camponesas dos escravos eram
secundárias em relação ao escravismo dominante. Era algo funcional que reproduz o próprio sistema
escravista” (Cardoso, 1982, p.137).

De maneira alguma pode-se pensar no caso da roça escrava como algo a parte do escravismo, ou tão
somente, como casos isolados, muito pelo contrário, o senhor de escravo por meio deste ato poderia
conseguir melhores trabalhos de seu cativo, que trabalharia na espera de seu “momento livre”, uma troca
entre os pares.

Entende-se economia escrava como sendo uma forma de adaptação ou resistência: adaptação porque
conjuga trabalho obrigatório, diário e vigiado com momento pessoal de trabalho; resistência uma vez que
o “trabalho era do tipo familiar, embora a abertura das clareiras fosse responsabilidade coletiva”, com o
intuito de aumentar a ração e adquirir liberdade. Ou melhor, como afirma Slenes:
“Os frutos da roça, da criação e da exploração do mato tinham um
valor de troca, além de sua utilidade imediata. Os escravos,
desfrutando de melhores condições para suprir suas necessidades
básicas, também mais freqüentemente teriam excedentes para vender
ou poderiam até planejar suas atividades produtivas parcialmente em
função dos incentivos do mercado” Slenes (1999, p.195):

Como já foi exposto anteriormente, Cardoso (1982) em suas hipóteses deixa claro que a roça escrava era
uma concessão revogável que destinava ligar o escravo à fazenda e evitar a fuga. Da mesma forma que o
senhor poderia permitir que seu cativo tivesse para si um pedaço de terra, a partir do momento em que ele
se sentisse prejudicado por este “tempo livre”, não mais o permitiria.

Cardoso faz a seguinte analise sobre a economia própria do escravo, permitindo algumas reflexões.
“Para o escravo, a margem de autonomia representada pela
possibilidade de dispor de uma autonomia própria era mais
importante economia e psicologicamente. Na consciência social do
senhor de escravo, porém, a atribuição de parcelas de terras e do
tempo para cultivá-las era percebida como uma concessão revogável
destinada a ligar o escavo à fazenda e evitar a fuga” Cardoso (1982,
p.137)

A roça não está ligada apenas economicamente à vida do escravo, com o intuito de adiquirir pecúlio, mas
era um momento em que o escravo se sentia livre, aproximando-se do mundo dos livres, pois através
desta autonomia construía seu próprio universo repleto de traços culturais, religiosos e marcados pelo
cotidiano familiar.

O acesso ao mercado local não modificava o caráter do sistema escravista e seu regime de trabalho a que
estavam submetidos, não os libertando da condição de escravo, ademais, se as observações de Cardoso
estiverem corretas, havia além da luta de classes própria da escravidão, as contradições entre a visão do
senhor e dos escravos sobre os propósitos de uma economia própria.
“Já venda de alguns de seus produtos, seja apenas ao seu senhor,
como recomendava o Barão de Pati dos Alferes, ou também
(clandestinamente ou não) as casas de negócio na vizinhança da
fazenda, terra permitida aos escravos, a compra de objetos que,
mesmo sendo de pequena valor simbólico para a manutenção da
dignidade humana, frente à pressões do escravismo” (Slenes,
1999,p.196)
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Mesmo porque Cardoso nota a economia interna do escravo como um mecanismo de exploração da mão-
de-obra e como uma forma de minimizar os gastos com a escravaria.

Em estudo recente Escravos Roceiros e Rebeldes Stuart B. Schwartz, trata da questão da economia
escrava como uma abertura dada ao escravo pelo senhor por se tratar de um direito:
“Os escravos tinham permissão para usar um período Domingo( de
“folga” em benéfico próprio, recebiam incentivos de criar
irmandades religiosas e de participar nas formas culturais da
sociedade mais ampla” Schwartz (1999, p.194)

O autor aponta para o tempo livre como uma permissão dada pelo senhor, mas é claro que desde que isto
não prejudicasse a produtividade dentro da lavoura ou do próprio engenho. Para o escravo, “estas
oportunidades poderiam parecer uma abertura ou “brecha” no sistema escravista, de viver melhor e de
participar diretamente do mercado local e para os outros agricultores, eram razões eficazes (reduzir os
custos com alimentação e vestuários)a suas necessidades de mão-de-obra.
“O custo de manutenção caíram, e o agricultor que também soubesse
calcular que após 20 anos recuperaria todas as poupanças do escravo
na forma de manumissão. Um manual de agricultura de 1847 era
favorável a doação de hortas aos escravos, isso o liga à terra pelo
amor à propriedade. O escravo que é proprietário não foge nem
provoca desordem ampla” (Schwartz, 1999, p.100)

Desta forma, ceder parte de um lote aos escravos era garantir a mão–de–obra sem prejuízos, e manter o
plantel escravo. Para uma articulação do senhor, existia uma lei que garantia suas atuações dentro do
sistema escravista.

Além disso, esta economia interna representava para os escravos, de acordo com Schwartz, uma vitória
contra um regime brutal de trabalhos forçados e uma possível ruptura do sistema escravista. Em seus
estudos Schwartz (1999) percebe a economia escrava, como parte de dois mundos. O do senhor que
utiliza a roça escrava, como uma forma de diminuir os gastos com a mão - de - obra, e manter a ordem
(acesso a terra era garantido por lei), e pelo lado do escravo, representava uma ruptura da estrutura
escravista, um acesso à liberdade e uma forma de subsistência.

No caso do recôncavo baiano apontado por Schwartz o sistema de quotas (quantidade de trabalho similar
a divisão existente na agricultura) não era só usado no plantio , no corte da cana e em outras tarefas da
roça, mas também dentro do próprio engenho, embora fosse o ritmo do engenho que determinasse a
velocidade do processo. Ao completar as quotas, os escravos estavam, teoricamente livres para fazer o
que bem quisesse, e há fortes indícios que na Bahia e em outras partes do Brasil, de que a maioria dos
escravos queria alcançar um grau de independência, o que quase sempre significava trabalhar em seus
próprios terrenos e em suas próprias hortas. Ao utilizar os domingos, os feriados religiosos e, às vezes,
dias reservados ao descanso, os escravos podiam suplementar a dieta com a produção de sua própria
horta, vender o excedente ao mercado local ou ao proprietário, e quando guardava o dinheiro, para fazer
comprar a própria liberdade, ou de um ente querido

Nota-se que Schwartz (1999) faz três indicações importantes: Primeiro, o escravo tinha acesso a uma
quota, que era um direito por lei. Segundo, os escravos trabalhavam em dias livres, e até depois do
horário de trabalho. Terceiro, poderiam até ter a possibilidade de vender seu excedente no mercado local
ou para o senhor. Estes pontos nos fazem pensar e perceber até onde o escravo tinha esta
“independência”.

Acredita-se de fato, que a economia interna se destinava a manter o escravo preso à fazenda, mas não
anula a sua importância.
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Soma-se a isto, o fato de que este arranjo entre trabalho forçado e “propriedade” particular dos escravos
indica uma forma de acordo entre o senhor e o escravo. Esta oportunidade do cativo trabalhar para si,
varia de um sistema escravista para outro dentro da Colônia Portuguesa, segundo a necessidade de
mercado. O mais comum era a combinação do dois sistemas, atendendo ao objetivo dos agricultores e aos
desejos dos escravos Schwartz (1999,p.106).

Schwartz (1999) percebe esta economia como direito dos escravos ao analisar o Engenho Santana na
Bahia em 1789. Para tanto demonstra que estes escravos se rebelaram e fugiram do engenho pois não lhe
são assegurados seus direitosii.

Para enfatizar tal preposição, citaremos o documento utilizado por ele ao estudar a economia interna do
escravo:
“Meu senhor, nos queremos pás e não queremos guerra. Se meu
senhor também quizer a nossa pás há de ser nesta conformidade, se
quizer estar pello que nós quizermos a saber”.

“Em cada semana nos has de dar o dia de sesta frª e de sabado pª
trabalharmos pra nós não tirando hum destes dias por cauza de dia
st”

“Para podermos viver nos hade dar Rede tarrafas e canoas”.

“Não nos hade obrigar a fazer camboas, nem amariscar mande os


seus pretos Minas”.

“Para o seu sustento tenha lanxa de pescaria o canoas de alto, e


quando quizer comer mariscos mande seus pretos Minas”.

Faça huma barca grande pª quando fo pª Bahia nnós metermos as


nossas cargas pª não pagarmos fretes”.

Na plantação de mandioca, os homens querem que só tenhão tarefa


de duas mãos e meia a as mulheres de duas mãos”.

“A tarefa de farinha hade ser de cinco alqueres razos, pondo


arrancadores bastantes pª estes servirem de pendurarem os tapetes”.

“Poderemos plantar nosso arroz onde quizermos, e em qulqr brejo,


sem que pª isso peçamos licença, e poderemos cada hum tirar
jacarandas ou outro quar pau sem darmos parte pª isso”.

Vê-se portanto que os escravos queriam apenas ter a sua garantia de trabalhar, em proveito próprio em
dias livres: “Em cada semana nos has de dar o dia de sesta frª e de sabado pª trabalharmos pra nós não
tirando hum destes dias por cauza de dia st e ainda, “Poderemos plantar nosso arroz onde quizermos, e em
qulqr brejo, sem que pª isso peçamos licença, e poderemos cada hum tirar jacarandas ou outro quar pau
sem darmos parte pª isso”. Algo que Schwartz revela implicitamente é o fato de que os escravos, apesar
da existência deste direito, não tinha um acesso tão direto assim à terra, “Meu senhor, nos queremos pás e
não queremos guerra. Se meu senhor também quizer a nossa pás há de ser nesta conformidade, se quizer
estar pello que nós quizermos a saber”, pois era o senhor quem determinava, o tamanho do lote, o tempo
livre para esta atividade. Ou seja ele não era o gestor de seu próprio tempo.

Outro ponto importante é a participação no mercado local, através da venda de seu excedente.
Provavelmente o pecúlio adquirido nestes negócios, seria utilizado para compra de sua liberdade, e dos
parentes.

Em um artigo intitulado A função Ideológica da “Brecha Camponesa”, Silva (1989) chamando a atenção
para a explicação da negligência da historiografia brasileira acerca da margem de economia própria para o
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escravo, aponta para dois motivos: primeiro, as correntes tradicionais quando esbarravam com o
fenômeno, valorizavam-no como indicativo da “liberalidade do senhor”, sem perceberem por isso, as suas
motivações, ao contrário, raramente (quase nunca) colocaram o problema. E segundo, por falta de contato
com arquivos, acreditava que por ser o escravo propriedade, não poderia Ter um economia própria.

Silva (1989) trata esta questão como um mecanismo ideológico de dominação. Segundo ele, além dos
mecanismos tradicionais de manutenção da ordem escravocrata como Estado e Igreja, existia essa
margem de economia própria para o escravo dentro do sistema escravista, a chamada “brecha
camponesa”. Ao ceder um pedaço de terra em usufruto e a folga semanal para trabalhá-la, o senhor
aumentava a quantidade de gênero para alimentar a escravaria, ao mesmo tempo em que fornecia uma
válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão, concluindo que como qualquer outro
sistema, não poderia a escravidão, viabilizar-se apenas pela força.

De início, Silva (1989) deixa claro que a autonomia escrava foi deixada em segundo plano, mas no
decorrer do trabalho mostra que a autonomia própria do cativo esteve presente na estrutura escravista que
estava ligada a um mercado internacional.
“Em meados do século XIX, a acumulação sem precedentes de terras
e escravos, as novas produtivas nas fazendas e construção de
“palácios” e Igrejas na foça, o compra de títulos de nobreza, a
importação de objetos de luxo e o embarque de filhos para estudar na
Europa, eram indicativos do tempo de opulência, do novo retrato e
sucesso na incorporação da estrutura escravista ao mercado
internacional” (Silva. 1989, p.192)

Desta forma a escravidão cafeeiro teria todo um arquétipo idealizado pelo Barão de Pati, conforme suas
experiências cotidianas contidas em sua Memória da Fundação de uma Fazenda de Café na Província do
rio de Janeiro em 1847. Seria a economia do escravo, mais um sistema de controle e manutenção da
ordem escravista?

A que tudo indica, para Eduardo Silva a autonomia escrava era uma forma de manutenção da ordem.

“Um outro mecanismo de controle e manutenção da ordem escravista


foi a criação de uma margem de economia própria para o escravo
dentro do sistema escravagista. A chamada “brecha camponesa”, ao
ceder um pedaço de terra em usufruto e a folga semanal para
trabalhá-la, o senhor aumentava a quantidade de gênero disponível
para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo que fornecia
uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão”
(Silva, 1989, p.194)

A economia escrava servia para manter a ordem e ser um complemento da ração para seu contingente de
escravos.

Tanto é que os cafeicultores do município de Vassouras preocupados com os perigos das insurreições
negras, em 1854, recomendavam ao final, um conjunto de seis medidas, sendo a ultima permitir que os
escravos tenham roças e se liguem ao solo pelo amor a propriedade, o escravo que possui bem, não foge,
nem faz desordem.
“As três primeiras eram medidas repressivas : 1) manter nas
fazendas, uma determinada proporção entre pessoas livres e
escravos; 2) Ter armamento correspondente ao número de pessoas
livres; 3) manter os escravos sob vigilância. As outras três apelavam
para o caráter ideológico: 4) “permitir ou mesmo promover
divertimento entre os escravos”; 5) “promover por todos os meios o
desenvolvimento da idéias religiosas”, e, finalmente, 6) ”permitir que
os escravos tenham roças e se liguem ao solo pelo amor da
propriedade” (Silva. 1989, p.196)
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Isto tudo se faz necessário uma vez que “ o sistema escravista não poderia se manter apenas pela força,
mas por outros meios”.

Na ótica de Silva (1989) a autonomia escrava, não que fosse um mecanismo restrito de algumas regiões,
ou tão somente do Rio de Janeiro, garantia ao senhor em fins do tráfico negreiro, a presença do escravo
em suas fazendas não tendo assim que recorrer a outros meios.

Foge do apontamento de Silva o que Schwartz percebe ao analisar a autonomia escrava: a economia
interna seria uma forma de o senhor diminuir os gastos com compra de roupas, e melhor condição
alimentar para seu plantel, era uma forma de retirar do cativo algum dinheiro na forma de manumissão e
por fim, era para o escravo a garantia de um acesso ao mercado e até à liberdade.

Alias, apesar de ser um direito garantido por lei, esta economia interna do escravo, não passava de uma
articulação do sistema para manter o cativo sob controle, e diminuir os gastos de manutenção, na ótica
dos proprietários e uma forma de resistência e acesso a liberdade por parte dos escravos.

Outro trabalho interessante que merece ser comentado é a reflexão que Machado (1988) traça em seu
texto Em Torno da Autonomia Escrava, no qual a autora considera que os estudos sobre a escravidão têm
buscado redimensionar suas análises delimitando a dinâmica interna da sociedade como ponta modal das
transformações históricas.

Isto porque a historiografia brasileira, em especial a historiografia sobre a escravidão passava por um
novo dirigir dos rumos. Principalmente, por se tratar da década em que celebramos o centenário da
abolição.
Com isto, se buscou novas fontes, novos temas e novos objetos de
estudo que demonstrassem uma nova realidade do sistema escravista
antes, negligenciado pela historiografia tradicional. Ou seja,
“buscou-se uma renovação do conhecimento histórico da sociedade
brasileira” (Machado, 1988, p.144).

Dentro deste aspecto Machado (1988) percebe que a abordagem do tema autonomia escrava é complexo,
uma vez que trata-se de historiar as atividades informais dos cativos em sua variedade de formas ao longo
do tempos, como também de utilizá-lo como instrumento para melhor compreender os parâmetros da
organização social escrava.

Pode-se perceber que este tipo de atividade desempenhado pelo escravo revela muito mais que a
realização de uma atividade extra, mas sim todo um jogo de interesses e formas de organização estrutural
que provocassem a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, uma vez que o escravo dentro
deste arranjo acessava o mercado local e poderia comprar sua liberdade.

Nota-se ainda, uma flexibilização do sistema escravista, que de certo modo, facilita ao escravo o acesso à
liberdade. É claro que o senhor poderia trapacear, retendo para si o pecúlio, e impedindo o cativo de
adquirir manumissão, mas mesmo assim o cativo poderia trabalhar para alcança-la algum dia.

Assim entende-se que Machado (1988) vê a autonomia escrava como um processo de transição do
trabalho escravo para o trabalho livre. Porém, é preciso que prestemos atenção em elementos que nos
permitam perceber tal preposição.

Entende-se que a economia escrava não poderia se situar neste processo de transição pois se está prática
era uma forma de o senhor manter seu plantel, evitar qualquer tipo de revolta por parte dos negros, ele
não teria que se preocupar com o emprego de trabalhadores livres.
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OLHARES BRANCOS SOBRE A ROÇA ESCRAVA

A historiografia recente vem demonstrando que dentro do sistema escravista existia uma economia
própria do escravo que lhe era permitido aos domingos e dias santos.

Esta vertente percebe que esta economia se dava por muitos motivos ”forma de controle do senhor sobre
seu plantel, diminuição dos gastos com alimentação e vestimentas e acima de tudo uma pressão que os
escravos exercem sobre seu senhor para que estes não retirem seus direitos.

Verificado a existência desta variável dentro do sistema escravista, pretende-se analisar os relatos de
viajantes com o objetivo de observar esta economia na comarca de Vila Rica no período de 1850 a 1888,
período que se estende desde o cessar do tráfico de africanos até a abolição da escravatura.

Isto por dois motivos: primeiro, porque a temática do negro nos relatos dos viajantes seguiram o curso
dos acontecimentos que marcaram a própria história da Província e do País no século XIX. E segundo,
testemunharam grande parte das transformações decorrentes da substancial queda da produção aurífera e
ao mesmo tempo que a expansão das fronteiras agrícolas.

Tornam-se significativas as informações colhidas em Saint – Hilaire, quando passando por uma região em
1816, que viria a constituir o município de Juiz de Fora, então um pequeno núcleo populacional banhado
pelo rio Paraibuna – afluente do Paraíba do Sul - no qual a cafeicultura começara a ser organizada, deixou
um relato riquíssimo em detalhe.

Após se instalar para a pernoite, o viajante aproveitou o entardecer “para ir herborizar nas matas”. Em sua
caminhada, chegou a um milharal no meio do qual se elevava uma fumaça anunciando “uma choçaiii
qualquer de negro”, rumando nesta direção encontrou “uma dessas barracas que os pretos das Províncias
das Minas têm costume de levantar quando são obrigados a dormir no campo. São feitas de varas que,
enterradas obliquamente na terra, se juntam na parte superior como caibros de um teto, e cobrem de folha
de palmeira na maioria das vezes dispostas sem ordem. Algumas vasilhas de barro e recipientes feitos de
cabaça cortadas pelo meio no sentido do comprimento, compõem todo o mobiliário desses mesquinhos
abrigos”. Diante da barraca ele viu um negro sentado no chão comendo” e este, “da maneira mais
graciosa”, ofereceu em uma cabaça “pedaços de tatu assado sobre carvões” acompanhado de angu. Teve
início, então, uma conversação da qual o viajante não teria modificado “uma única palavra”.

Saint – Hilaire – Você naturalmente se aborrece vivendo muito só no


meio do mato?

Escravo – Nossa casa não é muito afastada daqui; além disso eu


trabalho.

Saint – Hilaire – Você é da costa da África, não sente algumas vezes


saudade da sua terra?

Escravo – Não: isto aqui é melhor; não tinha ainda barba quando vim
para cá; habituei-me com a vida que passo.

Saint – Hilaire – Mas, aqui você é escravo; não pode jamais fazer o
que quer.

Escravo – Isso é desagradável, é verdade; mas o meu Senhor é bom,


me dá bastante o que comer: ainda não me bateu seis vezes desde que
me comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para mim
aos domingos; pranto milho e mandubis (Arachis) com isso arranjo
algum dinheiro.

Saint – Hilaire – É casado?


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Escravo – Não: mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se


fica assim, sempre só, o coração não fica satisfeito.

Meu Senhor me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero


mais: as crioulas desprezam os negros da costa.

Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de


comprar; essa é da minha terra e fala a minha língua.

De acordo com o viajante, além de planejar sobre seu próprio casamento, o escravo sugere ter a
possibilidade de escolher a própria mulher, revelando sua preferência pelo casamento endogâmico –
queria uma mulher africana que falasse seu idioma. Situação demonstrada pela historiografia, para qual os
vários povos originários da África preferiam o casamento entre pessoas da mesma região ou até do
mesmo grupo único, acentuando-se a divisão quando se tratava de africanos .

Alem disso, tal aspecto denunciado pelo relato, revela a existência de certa autonomia por parte do
escravo tanto é que escolhe sua companheira, rejeitando a anteriormente escolhida por seu senhor. Mas
sem dúvida, o mais interessante é destacar o que se pretende através desta escolha: a roça era um caminho
pelo qual o elemento cativo, articulava a manutenção de uma herança cultural. Por meio do casamento
endogâmico se perpetuaria a língua, a religião, os costumes cotidianos e até mesmo a linhagem.
“Em vista disso, supõe-se que os africanos trazidos ao sudeste do
Brasil apesar da separação radical de suas sociedades de origem,
teriam lutado com uma determinação ferrenha para organizar suas
vidas, na medida do possível, de acordo com a gramática (profunda)
da família –linhagem” (Slenes, 1999, p.147).

Percebe-se ainda no mesmo diálogo, a mobilidade do escravo, pois estava no momento da conversa, em
frente a uma barraca que servia para dormir, quando estivesse no campo, em cujo interior havia algumas
vasilhas. Ocorria que ao trabalharem em sua roça, os escravos não eram vigiados, diferente do que
acontecia nos cafezais e/ou nos equipamentos de beneficiamento.

Segundo Slenes (1999, p.150), há indícios de que dentro do precário “acordo”que os escravos extraiam de
seus senhores, o casar-se significava ganhar maior controle sobre o espaço da “moradia”.

A roça seria a sua forma própria de economia, cultivada aos domingos, abrindo-lhe uma porta de acesso
ao mercado dando-lhe o retorno de “algum dinheiro”, que poderia ser usado na compra do tabaco, comida
diferente da habitual, uma roupa melhor para ele, e se fosse casado para sua mulher e seus filhos. Além de
ser usado na compra de sua alforria. Porém, isto não é regra geral para todos os escravos.

Cabe aqui fazer uma observação: o relato se refere a comarca do Rio das Mortes e não de Vila Rica, mas
se faz necessário, uma Vez que revela elementos importantes deste momento de autonomia e da economia
própria do cativo, se não o mais completo de todos os outros viajantes aqui utilizados.

Outro relato importante é o de John Mawe que viajou pelo Brasil em 1816 e observou em uma Fazenda
do Conde de Linhares situada na Comarca de Vila Rica que:
“Esta raça é aí tratada com a bondade e a humanidade a que faz jus
a seu bom procedimento; dão aos negros tanta terra quanto podem
cultivar nos momentos de lazer (a lei lhes concede para este fim os
domingos e feriados), e podem dispor avontade do produtos de seu
trabalho; trazem como vestimenta camisas e calças compridas de
pano de algodão, ai mesmo plantado e tecido” (Mawe, 1978,p.139).

No relato deste, pode-se perceber que a roça escrava era uma oportunidade dada ao cativo pela lei, mas é
claro que seria ingenuidade pensar que fosse uma forma de abrandamento da instituição escravista, muito
pelo contrário, ela não existiria se os cativos não fizessem uma negociação e ou pressão sobre os senhores
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para que lhe cedessem dias de folga. Mesmo porque , sabe-se que o sistema escravista era rígido em suas
estruturas e que o escravo era uma propriedade, um bem.
Mawe nos leva a pensar a garantia legal para este tipo de trabalho. A
afirmação de que a lei lhes concedia para estes fins, demonstra a
intencionalidade do sistema que cria condições de o escravo se auto
gerir sem prejuízo do tempo empregado na empresa, seja agrícola ou
mineradora. Seria um mecanismo de opressão. Dando ao escravo
tempo livre e terra para plantar, ou realizar tarefas com fim
liberativos, os senhores se desobrigavam de parte de seus
investimentos na subsistência dos escravos” (Leite, 1996,p.199)

O viajante revela que o escravo tinha a possibilidade de fazer o que quisesse com seus produtos “podem
dispor à-vontade do produtos de seu trabalho”. Isto nos leva a crer que o escravo acessava o mercado
local para obter melhores produtos, para sua alimentação, completando assim sua ração diária, e acumular
ao mesmo tempo, pecúlio para a compra de sua alforria. Além disso percebe-se que os trajes eram feitos
pelos próprios escravos uma vez que eram de algodão e que eram plantados ali mesmo. O que não fica
claro é a quantidade de terras que este poderia usar.

Há de se fazer uma ressalva nesse relato por demonstrar uma visão eurocentrica, racista e preconceituosa
da escravidão, colocando a concessão de terra como uma bondade do senhor, uma forma de benevolência
para com o escravo.

É sabido que não é assim. Para que os escravos conseguissem este momento, foi preciso arranjos e
pressão destes sobre seus senhores para que conseguissem fazer valer seus direitos.

Esta negociação entre os pares, aparecem desde os primeiros tempos e não podem ser explicadas apenas
pela via do paternalismo, mas são em boas medida, forçados pelos escravos (Reis & Silva, 1989,p.13).

Outro viajante que nos permite identificar a economia escrava é Georg Gardner, que viajando pela
Comarca de Serro Frio relata que “os escravos tem permissão de trabalhar por conta própria aos
domingos e feriados, não nas minas de seus senhores, mas em qualquer outro lugar, exceto nas minas da
coroa” (Gardner, 1975, p.209)

E ainda:
“Uma das casa era pequena venda pertencente a um negro que me
informou ser natural da África, por muitos anos trabalhou na
lavagem do diamante como escravo, mas pelo uso proveniente deste
privilegio de trabalho por conta própria nos domingos e feriados, teve
fortuna de encontrar em quantidade suficiente para comprar sua
alforria, bem como a da mulher e vários filhos” (Gardner,
1975,p.206)

Apesar de também não se tratar da Comarca de Vila Rica, este viajante vem corroborar para nossas
discussões. Inicialmente, traz a tona a finalidade do pecúlio adquirido pelos escravos, em seus momentos
de trabalho para si: quantidade suficiente para comprar a sua alforria, bem como a da mulher e varias
filhos”. Ou seja, o escravo teve a liberdade de escolher o que fazer com seu dinheiro. Muito mais que
poder escolher, tal fato, demonstra a finalidade ultima destes momentos, a liberdade.

Outra informação, é dada: “uma das casas era pequena venda pertencente a um escravo”. Talvez, tão
importante quanto a primeira informação ilustrada, o autor nos faz pensar a “liberdade” permitida pelo
senhor a este escravo para que acessasse o mercado local, negociando livremente o diamante encontrado.
Alem disso, revela quão móvel era a escravidão nas Minas Gerais do novecentos, que permitia a um
escravo trabalhar por conta própria em uma mina de diamante e alcançar a liberdade por meio de uma
descoberta.
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Já no primeiro relato, George Gardner define quando e onde os escravos poderiam trabalhar por conta
própria: “trabalhar aos domingos e feriados” e “não nas minas de seu senhor, mas em qualquer uma,
exceto da Coroa”.

Também Richard Burton em visita a Mina de Morro Velho relatou a vida e o cotidiano dos escravos:
“Terminado a revista (quer era realizada de dois em dois domingos )
ambos os sexos todas as idades se dirigiam a Igreja, os diligentes
iriam cuidaar das casas e das hortas, dos porcos e das galinhas, iriam
lavar roupa e costurar, ou carregar água, lenha ou capim para
vender” (Burton, 1976, p.208)

Quanto a compra de sua liberdade revela: “Um outro costume permite-lhes comprar a própria liberdade
e aplicar seus bens na manumissão das esposas e dos filhos” (Burton, 1976, p.234)

Nota-se que o escravo possuía sua própria economia, que era direcionada pela atividade agrícola nos dias
santos e no Domingo: “depois da revista, os diligentes iriam cuidar das hortas, das casas, dos porcos e das
galinhas, carregar lenha ou capim para vender”. Isto indica a margem de autonomia do escravo que por
um outro “costume podia comprar a própria liberdade, de seus filhos e da esposa”.

Não muito diferente dos já citados relatos, demonstra uma visão abrandada da escravidão. O certo é que
ele não tem o objetivo de analisar uma forma de economia ou ate mesmo a autonomia escrava, todavia,
quer ressaltar a forma como eram tratados os escravos. Para tanto, mais adiante, passando por São Miguel
do Piracicaba observou uma propriedade pertencente a um colono francês J. Monlevade;
“Seus escravos são bem alimentados, vestidos e alojados, como forma
de pagamento, eles aproveitam o Domingo para lavar ouro no
córrego e muitas vezes fazem 1$000 durante o dia, se tiverem de
trabalhar dias santos, recebem uma pequena quantia a titulo de
indenização” (Burton, 1976, p.254)

Este trecho, ilustra claramente a relação do senhor para com seus escravos: seus escravos são bem
tratados, vestidos e alojados; revelando uma visão abrandada e humanitária da escravidão por parte do
viajante.

O viajante relata sem querer a autonomia que os escravos tinham depois da revista. Fica claro, que seu
intuito era ressaltar a forma como J. Monlevade tratava seus escravos, todavia revela uma relação
senhor/escravo marcada por contradições. Primeiro, qual é o motivo ou razão determinantes desta atitude
por parte do senhor? Segundo, quais foram as ações dos escravos em seu cotidiano para que fizessem
valer seus direitos? Certamente houve um embate no cotidiano que corroborou para as conquistas dos
escravos. J. Monlevade, de alguma forma se sentiu ameaças pelo seu plantel que se organizou em algum
momento para lutar por sua reivindicações, inspirados por algum outro levante. Se não, haveria motivos
para tal tratamento dispensado as cativos?

Ao que tudo indica, os escravos se aproveitaram da situação e fizeram pressão que resultou em uma
negociação.

Estes aspectos da vida escrava segundo estes viajantes, não perpassam a negociação entre os pares, mas
existe a priori, uma ação paternalista por parte do senhor de escravos, a visão do cativo é excluída

Por outro lado, sabe-se que muitas das conquistas obtidas pelos escravos, foram conquistadas por meio de
conflitos tanto ideológicas quanto armados. Não obstante fica claro que acessado um mercado local, seja
ele agrícola ou minerador, o fim deste era a liberdade, não a liberdade de mobilização, do ir e vir, mas a
liberdade de viver.

Até mesmo nos faz pensar que era facultativo ao escravo vender seus produtos, primeiro a seu senhor, que
posteriormente negociaria estes no mercado local, negociando por conta própria sua mercadoria. Surge ao
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redor da questão algumas indagações: o que estaria por trás desta pretensa liberdade? Sabe-se que a partir
de 1850 cessa-se o tráfico atlântico de africanos, e que a província de Minas Gerais, passa a exportar a
mão–de–obra escrava, não mais de fora, do além mar, mas principalmente de outras províncias
principalmente da Bahia. Ocorre então, um processo de tráfico interno com o objetivo de abastecer as
Minas Gerais.

Estão, apesar deste cessar atlântico, Minas continuou tendo um dos maiores planteis de escravos do Brasil
Imperial. Mesmo porque, além do tráfico interno, havia uma alta taxa de reprodução natural, que era
positiva, por parte dos escravosiv.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há de se notar que ao caminhar para a abolição muitos senhores passaram a se preocupar com suas
propriedades, os escravos, pois abolida a escravidão, seriam os únicos a arcar com seu prejuízo. Desta
forma, ao pensar a economia escrava no período pós-tráfico e pré abolição, verifica-se a preocupação dos
senhores de manter seu plantel inalterado. A roça escrava pode se entendida em tal período, da seguinte
forma: a partir do momento que há necessidade de se manter a mão – de – obra, esta margem de
autonomia é uma articulação do senhor para manter seus escravos subjugados e presos à sua propriedade.

Cedendo parte de sua terra ao escravo, criava neste, a mínima idéia de que tinha certa liberdade, e mesmo
depois da abolição, liberto permaneceria ligada a terra. O direito que o escravo tem de folga aos
domingos e dias santos é uma adaptação que o senhor faz às suas necessidades. Uma jogada que o senhor
usa para manter seu escravo/liberto a seu mundo.

Apesar de certos historiadores perceberem esta prática como uma forma de manter o plantel sobre
controle, diminuir os gastos com alimentação e vestuário, esta conquista escrava é fruto de relações
políicas com seu senhor. Quando senhor e escravo se encontram para negociar, os primeiros não agiam
pelo amor divino, mas por necessidades e interesses, e o segundo quer buscar também o seu interesse, que
neste caso é a liberdade de viverv.

Porém, os escravos tinham consciência de que através desta economia, poderia transgredir as estruturas
rígidas do escravismo e criar seu próprio universo liberto, abarcando pelas tradições africanas.

Neste sentido, os escravos no Brasil definitivamente não tinham ilusões sobre as condições em que
viviam como cativos, da mesma forma como na África eles e seus pais, conservavam a memória da época
relativamente pacífica e próspera, anterior aos distúrbios causados pelo tráfico transatlântico. Mesmo
assim, eles teriam reconhecido na roça um espaço que não lhes era estranho e teriam elaborado maneiras
de usa-la em seu proveito.

“Desta forma, a formação da família fazia sonhar com


mais recurso, o escravo, ao casar-se, podia pensar em
conseguir mais controle sobre sua economia domestica.
No mínimo, podia ter mais esperança de tornar sua vida
na escravidão uma vida de “gente”, dentro de seus
próprios padrões culturais” (Slenes,1999, p.189)

Mas na verdade, quais seriam as limitações deste choque de interesses? Ou ainda, existia por parte destas
categorias sociais espaços para se ceder ao interesses do outro?

De certa forma, pode-se dizer que por parte dos escravos, a roça era um caminho aberto para sua
liberdade que não abriria mão, em nome de outrem, como se viu, quando este direito não foi respeitado,
se rebelaram, com o intuito de pressionar seu proprietário, para que este cedesse a este interesse.
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i
A este respeito ver: Slenes (1999), Leite (1996).

ii
Em 1789, um grupo de escravos deste engenho, no Sul da Bahia, matou o supervisor, apoderaram-se de algumas máquinas e
fugiram para criar um assentamento na floresta. Elaboraram um trato no qual impunha condições para que aceitassem volta ao
Engenho Santana e à escravidão.
iii
Nos dizeres de Gluck a choça é como “um espaço para dormir”, é “um abrigo contra efeitos climáticos”, não propriamente
um lugar para morar. A definição é útil, contanto que consideremos o “dormir”uma atividade social, não apenas fisiologia, e a
choça um refúgio, além de um abrigo. A choupana, enfim, permitia a escravos casados e seus filhos “dormissem em família”-
isto é, possibilitaria a “recriação de rituais de convivência familiar na hora de deitar e levantar, num espaço fechado contra o
mundo (Slenes,1999, p.180).
iv
Consultar em: Paiva (1995), Paiva &Libby (1995).
v
Florentino e Góes (1997).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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