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MANA 7(1):165-190, 2001

RESENHAS

AGIER, Michel. 2000. Anthropologie du em diferentes capítulos. O capítulo 3 co-


Carnaval: La Ville, la Fête et l'Afrique meça com uma descrição da Liberdade
à Bahia. Marseille/Paris: Parèntheses (o bairro onde surgiu esse grupo carna-
Eds. 253 pp. valesco), em seguida apresenta os fun-
dadores do bloco e termina narrando
seu primeiro desfile de carnaval. No ca-
Hermano Vianna pítulo 4, encontramos a história do Ilê
Doutor, PPGAS-MN-UFRJ Aiyê dividida em três períodos, nos
quais o bloco passa a se definir – e ser
Para quem abre pela primeira vez es- definido – primeiro como movimento
te livro, o título Anthropologie du Carna- cultural e depois como empresa. O ca-
val pode parecer enganoso. Mesmo o pítulo 5 é dedicado a uma análise das
subtítulo – La Ville, la Fête et l’Afrique “posições sociais” dos membros do Ilê
à Bahia – sugere uma abordagem muito Aiyê, sobretudo a partir de suas trajetó-
mais abrangente do que aquela que se rias profissionais e relações de paren-
apresenta de imediato ao leitor. Apa- tesco. O calendário anual de festas, a
rentemente, não estamos diante de um “mitologia” inventada pelo grupo e o
tratado geral sobre rituais carnavales- desfile de carnaval propriamente dito
cos, como a capa indica, mas sim de são estudados no capítulo 6; seu estilo
uma cuidadosa e densa etnografia so- musical e poético no capítulo 7 e, final-
bre as atividades de um único grupo mente, sua inserção política nos movi-
carnavalesco soteropolitano, o Ilê Aiyê. mentos negros baiano e brasileiro no
Porém, quem chega ao final da leitura capítulo 8. O restante do livro é forma-
compreende a pertinência do título. Na do por dois capítulos introdutórios, uma
verdade, o livro é uma importante lição conclusão e um posfácio teórico.
de como, do detalhe etnográfico de fe- Fiz questão de enumerar todos es-
nômenos muito particulares das socie- ses assuntos para dar uma idéia do grau
dades complexas contemporâneas, po- de comprometimento do autor com o
demos chegar à teoria mais “abstrata”, pormenor etnográfico, do peso que os
iluminando no caminho questões cen- “fatos” têm na organização do livro. Na-
trais para o trabalho de qualquer antro- da escapa ao seu olhar: o padrão gráfi-
pólogo. Em Anthropologie du Carnaval, co das vestimentas dos foliões; o núme-
teoria e “empiria” – e também minu- ro de tocadores de cuíca entre os per-
dência e generalidade – combinam-se cussionistas; as relações de gênero atua-
de maneira elegante e enriquecedora. lizadas no desfile e nos ensaios; a cone-
Todos os aspectos principais da or- xão com o candomblé; a economia e os
ganização do Ilê Aiyê são detalhados conflitos administrativos do bloco; a
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personalidade dos membros da direto- zar e cultuar a “herança africana” e o


ria. O resultado é uma das mais comple- “orgulho negro”. Alguns deles se tor-
tas descrições do intricado conjunto de naram conhecidos nacionalmente, co-
mecanismos que produz o carnaval bra- mo o Olodum ou o Ara Ketu (um bloco
sileiro a partir do ponto de vista e das com trajetória muito peculiar – sendo
atividades de um único grupo. A profu- conhecido hoje mais como um grupo de
são de detalhes pouco a pouco vai se pagode – e pouco presente neste livro).
justificando em teses ousadas que mo- Uma das características mais polê-
dificam nossa compreensão da festa e micas do Ilê Aiyê é a de permitir ape-
questionam o alcance das “teorias do nas a participação de negros em seus
carnaval” mais conhecidas. desfiles. Sua definição de quem é negro
Para Michel Agier, o carnaval é e quem não é não tem a ver com a re-
“uma instituição-chave para falar da gra do “one-drop-of-blood” popular nos
sociedade e seu conjunto” (:7), produ- Estados Unidos e que é adotada por al-
zindo o “duplo da cidade” que o abri- guns setores do movimento negro bra-
ga, e instaurando nela “uma fábrica de sileiro para se livrar das tendências
identidades”. Muitos estudiosos da fo- “conformistas” do “elogio da mestiça-
lia carnavalesca já escreveram coisas gem”. Ouvi várias histórias de mulatos
parecidas, mas com intuitos diferentes. escuros a quem foram negados seus pe-
O carnaval também seria um duplo li- didos de ingresso no bloco. Nunca con-
minar que inverteria ou reforçaria a or- segui entender a lógica dessas negati-
dem da “vida ordinária”, da vida não vas, já que via gente de pele mais clara
carnavalesca. Michel Agier propõe uma desfilando. Esta Anthropologie du Car-
maneira mais complexa de pensar essa naval vem esclarecer vários pontos da
“duplicidade” da folia, em que a festa minha questão: não basta ser “bem”
não tem o mesmo significado (seja in- negro para fazer parte do Ilê Aiyê, é
versão ou reafirmação) para todos os preciso ter outros vínculos com seu
grupos e indivíduos que dela partici- “universo relacional e afetivo denso”
pam, nem o conjunto da sociedade é (:109), sempre dirigido a um segmento
visto como um todo homogêneo organi- social específico entre os negros de Sal-
zado em torno de uma única “ordem” vador, aquele que possui “uma real in-
que pode ser “invertida” ou “reforça- serção socioprofissional nos diferentes
da” em apenas um sentido. setores do trabalho urbano” (:188) e
Na história do carnaval de Salva- que quer “se elevar socialmente” (:197).
dor, o aparecimento do Ilê Aiyê, em me- Em resumo: “A distância étnica, de apa-
ados dos anos 70, foi um fenômeno de- rência atemporal, é, nesse caso, uma
cisivo. É quase possível pensar a folia forma de distinção social.” (:193)
em dois tempos: antes e depois do Ilê Michel Agier faz outra observação
Aiyê. Michel Agier denomina o proces- interessante, que deve causar surpresa
so, do qual o Ilê Aiyê é elemento cen- para aqueles que pensam que o carna-
tral, de “reafricanização” da folia baia- val é um ritual homogêneo – usado por
na. Realmente: foi para designar o tipo todos os foliões para atingir os mesmos
de grupo carnavalesco criado pelo Ilê objetivos – ou que, pelo menos, o car-
Aiyê que se criou a expressão bloco naval dos blocos afro de Salvador seja
afro. Muitos blocos afros surgiram em um ritual homogêneo – usado por todos
outros bairros, seguindo o exemplo da os foliões soteropolitanos, negros e po-
Liberdade, buscando também temati- bres para atingir os mesmos objetivos.
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A partir de entrevistas e da aplicação de Seu “trabalho” é mais ambíguo; é como


um questionário, descobriu que a maio- um espelho que distorce a ordem pree-
ria dos componentes do Ilê Aiyê nunca xistente, deslocando fronteiras, des-
desfilaria no Olodum, por exemplo, e is- truindo alguns limites e inventando
to não por uma rivalidade competitiva outros. É um travestissement da reali-
entre blocos afro, e sim por causa de dade, que a “deforma”, manifestando as
uma diferença social: os negros que tensões e ao mesmo tempo permitindo
desfilam no Olodum pertencem a um transformações, que, por sua vez, terão
outro segmento social; o Olodum é criti- conseqüências muitas vezes profun-
cado pelo pessoal do Ilê Aiyê como um das na vida não carnavalesca, que se-
bloco afro descaracterizado, comercial rão reprocessadas novamente pela má-
e não tão “africano” e “negro” como de- quina identitária do carnaval e assim
veria ser ou como o Ilê Aiyê “é”. por diante.
Portanto, a definição de quem é ne- Toda essa produção carnavalesca
gro “o suficiente” para entrar para o Ilê esfuziante faz Michel Agier nos lem-
Aiyê deve ser vista mais como “uma brar do “paradoxo atual” (:226) revela-
modalidade de posicionamento soci- do por um número cada vez maior de
al” do que como “um retorno à etnia” trabalhos de campo, realizados entre
(:197), sendo melhor compreendida co- todos os tipos de culturas, em todo o
mo “uma retórica identitária atual” e planeta: ao mesmo tempo que os antro-
não como o resgate do passado, ou co- pólogos desconstroem as noções de
mo “a conservação da memória africa- identidade, revelando seu processo de
na”. Em outras palavras: “o africanismo “invenção” e seu caráter fluido/não es-
não depende de uma ligação direta com sencialista, as sociedades as recons-
a África, ele se transformou num instru- troem e a elas se apegam com maior vi-
mento de posicionamento social moder- gor e criatividade. Pode ser “conve-
no.” (:197) Nesse sentido, o tradiciona- niente” que seja assim, e assim conti-
lismo do Ilê Aiyê é, na verdade, um nue por muito tempo. Ao contrário do
“neotradicionalismo urbano” (:141), é a que pensavam os “pais” de nossa dis-
invenção de uma nova tradição, de uma ciplina, seu “objeto” não está desapa-
nova identidade para um grupo con- recendo. Temos cada vez mais diferen-
temporâneo, que só poderia existir em ças e tradicionalismos para saciar nos-
uma cidade contemporânea, que talvez sa sede de conhecimento. Mas lanço
até já tivesse existência como grupo, uma razão mais pragmática para me
mas que não tinha autoconsciência des- alegrar com tal paradoxo: se todo mun-
sa existência, e a criação dessa auto- do fosse antropólogo antiessencialista
consciência vai acontecer no carnaval. e anticulturalista, é bem capaz que não
Nesse sentido, também, é que o car- existisse mais carnaval.
naval pode ser pensado como “fábrica
de identidades”, território que tem uma
“capacidade suplementar de criar iden-
tidade” (:87), de exibir um “excesso ou
abundância de identidade” (:53). En-
tão, a folia não abole as fronteiras que
ordenam a vida ordinária da cidade ou
da sociedade, mas ela também não for-
tifica os limites grupais já existentes.
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BARTH, Fredrik. 2000. O Guru, o Ini- texto de aplicação dos direitos consti-
ciador e Outras Variações Antropo- tucionais.
lógicas (organização de Tomke Lask). A edição em português dessa cole-
Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. tânea permite, igualmente, sua divul-
243 pp. gação para um público mais amplo, de
estudantes e de especialistas que atu-
am em outras áreas do saber em suas
Eliane Cantarino O’Dwyer interfaces com a antropologia, como o
Professora, UFF campo disciplinar do direito. Para os
antropólogos profissionais, o título do li-
A publicação de uma coletânea de tex- vro faz jus a seu autor, mesmo que guru
tos do antropólogo Fredrik Barth no Bra- e iniciador tenham sido termos original-
sil vem brindar-nos com uma obra ins- mente empregados por Barth no con-
tigante, crítica dos dogmas e pressu- texto de uma reflexão comparativa en-
postos teóricos da disciplina, que abre tre duas grandes regiões etnográficas, o
novos horizontes para a prática da pes- Sudeste da Ásia e a Melanésia, sobre as
quisa antropológica em outros univer- “noções de uma sociologia do conheci-
sos sociais e culturais reconhecidamen- mento que ajudam a esclarecer o modo
te complexos, diferenciados e sincréti- pelo qual as idéias são moldadas pelo
cos como o nosso. Autor de uma produ- meio social em que se desenvolvem”
ção internacionalmente consagrada, (:143). As categorias nativas de guru e
Barth tem sido lido e divulgado no Bra- iniciador são usadas, respectivamente,
sil, basicamente, através da “Intro- para indicar formas distintas de com-
dução” ao livro Grupos Étnicos e suas partilhar idéias e tradições de conheci-
Fronteiras, contribuição inestimável aos mento, através da falação ou do ocul-
pesquisadores que trabalham com so- tamento, e podem ser pensadas como
ciedades indígenas e outros grupos ét- equivalentes ao papel assumido por
nicos e minorias. Principalmente, nos Barth no campo do saber antropológi-
casos em que a fraca diferenciação cul- co de “enfrentar novos desafios teóri-
tural desses grupos, imersos em uma cos” (:207) e participar do debate a par-
estrutura de interação com outros sub- tir do material etnográfico coligido nas
grupos de fortes marcadores regionais suas pesquisas em diferentes regiões,
(como no Nordeste), desqualifica, do como a Ásia, Oceania e parte da Áfri-
ponto de vista do observador externo, ca, que serviram igualmente de ancora-
as identidades étnicas assumidas como gem às teorias e aos grandes temas da
indígenas ou comunidades de afro-des- disciplina.
cendentes que reivindicam do Estado Nos estudos sobre grupos étnicos no
brasileiro, na atualidade, o reconheci- Brasil, inclusive nas condições de pro-
mento do território que ocupam e de dução do laudo antropológico, privile-
um status étnico distinto, de acordo giar o trabalho de campo tem permitido
com determinados preceitos constitu- romper, a partir da investigação dos fa-
cionais. Desse modo, a problemática da tos empíricos, ao se levar em conta os
definição de um grupo étnico, de acor- argumentos e conceitos comuns pro-
do com as reflexões de Barth, tem sido postos por Barth, com a “premissa do
largamente empregada pelos antropó- raciocínio antropológico de que a varia-
logos que estão envolvidos com a ela- ção cultural é descontínua” (:25). É pos-
boração de laudos periciais nesse con- sível, igualmente, abandonar a “visão
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simplista de que os isolamentos social e titucionais aos remanescentes de qui-


geográfico foram os fatores cruciais pa- lombos que, segundo o texto constitu-
ra a manutenção da diversidade cultu- cional, estejam ocupando suas terras.
ral” (:26). Na concepção do autor não se Como não se trata de uma expressão
deve “considerar como característica verbal que denomine indivíduos, gru-
primária dos grupos étnicos seu aspecto pos ou populações no contexto atual,
de unidades portadoras de cultura” seu emprego na Constituição levanta
(:29). Para Barth, “ao se enfocar aquilo uma questão de fundo: quem são os cha-
que é socialmente efetivo, os grupos ét- mados remanescentes de quilombos
nicos passam a ser vistos como uma for- que têm seus direitos atribuídos pelo
ma de organização social” (:31). Nesse dispositivo legal?
caso, “a característica crítica” na defi- Pode parecer paradoxal que os an-
nição desses grupos passa a ser a atri- tropólogos, justamente eles que marca-
buição de uma identidade ou “catego- ram suas distâncias e rupturas com a
ria étnica” (:32) determinada por uma historiografia ao definirem seu campo
origem comum presumida e destinos de estudos por um corte sincrônico no
compartilhados. “presente etnográfico”, tenham sido co-
A organizadora da coletânea, Tom- locados no epicentro dos debates sobre
ke Lask, na apresentação do livro (:7- a conceituação de quilombo e a identifi-
23), faz referência às tomadas de posi- cação daqueles qualificados como re-
ção de Barth, ao seu empenho pessoal manescentes de quilombos para fins de
“em promover o papel do antropólogo aplicação do preceito constitucional.
na vida pública” (:15). Sugere ainda Acontece, porém, que o texto constitu-
que isso se aplicaria ao papel que os an- cional não evoca apenas uma “identida-
tropólogos no Brasil têm assumido em de histórica” que pode ser assumida e
relação ao reconhecimento dos direitos acionada na forma da lei. É preciso, so-
indígenas como grupos étnicos diferen- bretudo, que esses sujeitos históricos
ciados. Pode-se considerar igualmente presumíveis existam no presente. O fato
ilustrativo, no contexto desta resenha, de o pressuposto legal estar referido a
pensar as implicações teóricas e meto- um conjunto possível de indivíduos ou
dológicas do pensamento de Barth atores sociais organizados segundo sua
quando aplicado ao reconhecimento dos situação atual, permite conceituá-los,
direitos constitucionais de outra mino- segundo a teoria antropológica mais re-
ria étnica, os chamados “remanescen- cente, como grupos étnicos que existem
tes de quilombos”, termo de origem ju- ou persistem ao longo da história como
rídica que a princípio parece mais afeito um “tipo organizacional”, através de
às definições historiográficas e compro- processos de exclusão e inclusão que
vações arqueológicas. Afinal, até recen- permitem definir os limites entre os con-
temente, o termo quilombo era de uso siderados de dentro e os de fora.
quase restrito a historiadores e demais A persistência dos limites entre os
especialistas que, através de documen- grupos deixa de ser colocada por Barth
tação disponível ou inédita, procura- em termos dos conteúdos culturais que
vam construir novas abordagens e in- encerram e definem suas diferenças.
terpretações sobre o nosso passado co- No capítulo “Grupos Étnicos e suas
mo nação. A partir da Constituição de Fronteiras” (:25-67), o problema da con-
1988, quilombo adquire uma significa- trastividade cultural passa a não depen-
ção atualizada, ao conferir direitos cons- der mais de um observador externo, que
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contabilize as diferenças ditas objeti- permite questionar a linguagem do es-


vas, mas unicamente dos “sinais diacrí- truturalismo com sua ênfase nas cone-
ticos”, isto é, as diferenças que os pró- xões e o pressuposto de uma coerência
prios atores consideram como significa- lógica generalizada. Para Barth, na me-
tivas. Embora as diferenças possam dida em que “as realidades das pessoas
mudar, permanece a dicotomia entre são culturalmente construídas […], o
“eles” e “nós”, marcada pelos seus cri- que os antropólogos chamam de cultu-
térios de pertencimento. Barth enfatiza ra de fato torna-se fundamental para
“que grupos étnicos são categorias atri- entender a humanidade e os mundos
butivas e identificadoras empregadas habitados pelos seres humanos” (:111).
pelos próprios atores; conseqüentemen- Mas, em vez de focar a análise no inte-
te, têm como característica organizar as rior de universos fechados e de culturas
interações entre as pessoas” (:27). distintivas, é preciso explorar a varie-
A centralidade dos conceitos de gru- dade de fontes dos padrões culturais,
po étnico e de etnicidade na leitura da que podem ser resultado de processos
obra de Barth, não esgota a novidade sociais específicos. Em lugar de descar-
de suas contribuições, que possibilitam tarmos as incoerências observadas à
desnaturalizar o mundo social, mas tam- nossa volta, devemos confrontar o que
bém os instrumentos do fazer antropo- é problemático e realizar a “tradicional
lógico. É o que ocorre com as concep- tarefa naturalista da antropologia de
ções antropológicas convencionais de constituir uma cuidadosa e meticulosa
cultura. No capítulo inicial do livro, ve- descrição de uma ampla gama de da-
mos que os pressupostos implícitos no dos” (:114). A visão da cultura como flu-
uso desse conceito são transgredidos na xo e correntes simultâneas de tradições
relação de não-correspondência esta- culturais (:123) defendida por Barth,
belecida por Barth entre os limites so- não recoloca a questão das culturas
ciais das unidades étnicas e o comparti- “feitas de retalhos e remendos” do di-
lhamento de uma cultura comum, que fusionismo. O que importa nesse argu-
deixa de ser considerada uma caracte- mento são as interpretações e os esque-
rística primária e definitiva na organi- mas de significação que só podem ser
zação de um grupo. A necessidade pa- entendidos corretamente quando rela-
ra a antropologia de “remodelar suas cionados “ao contexto, à práxis e à in-
afirmações” é explicitamente colocada tenção comunicativa” (:131).
no capítulo “A Análise da Cultura nas Ao ziguezaguear entre as seções do
Sociedades Complexas” (:107-139). Os livro, sem obedecer à ordem de sua ex-
“pressupostos do holismo e da integra- posição, seguimos outra possibilidade
ção” (:105) da maioria dos conceitos an- de leitura, sugerida pela própria reu-
tropológicos, como sociedade e cultura, nião dos textos na coletânea, que não
são questionados. O uso equivocado do pedem para ser compreendidos atra-
termo cultura deve ser testado “na aná- vés de uma disposição linear do menos
lise da vida real tal como ela ocorre em ao mais inclusivo. Trata-se, ao contrário,
determinado lugar do mundo” (:108). A de diferentes e variados planos de te-
ilha de Bali passa a ser o local escolhido mas e questões que se entrecruzam na
para refletir sobre a “práxis antropoló- interseção dos seus argumentos e refle-
gica”. A diversidade de atividades, as- xões críticas.
sim como a mistura do novo com o ve- As possibilidades criativas e os usos
lho em um cenário cultural sincrético, inovadores de Barth podem ainda rom-
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per fronteiras entre disciplinas e tra- FAUSTO, Carlos. 2000. Os Índios antes
dições de conhecimento. No posfácio do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
(:239-243), escrito pelo cientista político Editor. 93 pp.
Marco Martiniello, a questão da etnici-
dade como problema social a ser en-
frentado na atualidade, ao reverter a Francisco Noelli
crença de que raça e etnicidade desa- Professor, Universidade Estadual de Maringá
pareceriam no contexto da moderniza-
ção e pós-colonialismo, convida os ci- Este pequeno livro, voltado para a di-
entistas políticos a colocar a obra de vulgação da arqueologia e etnologia
Barth na agenda de sua disciplina. Ou- indígenas, apresenta com brilhantismo
tras fronteiras internas à antropologia, e erudição as linhas gerais da última
que separam o conhecimento produzi- grande síntese do campo, assim como
do de outras formas de saberes aplica- as perspectivas mais contemporâneas
dos, têm sido rompidas através da pro- sobre os povos situados na América do
blemática proposta por Barth – no Bra- Sul e no Brasil. Muito bem redigido, Os
sil, mediante a noção de uma antropo- Índios antes do Brasil não está centrado
logia da ação em que, diferentemente na descrição, mas em modelos e proble-
da chamada “antropologia aplicada”, máticas, proporcionando a interessados
menos comprometida com as popula- e iniciantes um resumo da espinha dor-
ções às quais se refere, o antropólogo sal das teorias e debates que regeram
não perde sua base acadêmica, como a heterogênea comunidade americanis-
portador de sólida formação na discipli- ta nas últimas cinco décadas. Carlos
na, avaliado e reconhecido pelos seus Fausto parte do princípio de que “Tudo
pares da comunidade científica. somado, é possível dizer que vivemos
Em entrevista publicada na coletâ- em uma ilha de conhecimento rodeada
nea (:201-228), Barth concorda que “fa- por um oceano de ignorância. Sabemos
çamos uso de nossos insights para agir menos do que deveríamos, mas feliz-
no mundo e transformá-lo” (:218), mas mente ainda podemos saber mais. Para
adverte que “devemos deixar de enfati- avançar, cumpre fazer as perguntas
zar tanto a etnicidade, pois ela pode re- certas” (:9).
presentar apenas um pequeno setor O livro apresenta as perguntas
da herança cultural de uma pessoa” atualmente consideradas “certas”, con-
(:217). Por outro lado, “participamos de trapostas às perguntas “erradas”. Estas,
outras comunidades de cultura que não em parte, foram formuladas durante o
podem ser descritas como étnicas” período colonial e elaboradas definiti-
(:217). Sobre a politização desmedida vamente no grandioso modelo de Julian
das identidades étnicas, Barth critica os Steward no Handbook of South Ameri-
chamados “empreendedores étnicos”, can Indians, a partir de 1946.
pois “eles utilizam de maneira inade- A obra de Fausto é uma compacta
quada uma idéia excessivamente unidi- história das idéias americanistas, pois
mensional de cultura e de identidade disseca as estruturas teóricas e expõe as
advogando-a para seus próprios fins principais questões em debate nas últi-
políticos” (:219). mas décadas. Revelando como Steward
e seus discípulos formularam hipóteses,
desenvolveram suas pesquisas e chega-
ram a determinadas conclusões, Fausto
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mostra como aqueles que não seguiram suposta (mas não investigada naquele
o determinismo ecológico stewardiano momento) predominância de solos po-
conseguiram, a partir de outras pergun- bres para a agricultura, bem como de
tas, abordagens e metodologias, ques- um imaginário falacioso sobre a escas-
tioná-lo e torná-lo obsoleto ou, pelo me- sez de proteínas longe dos cursos d’água.
nos, expor suas fragilidades, contribuin- Essas deficiências, tal como acredita-
do para barrar diversas simplificações ram erroneamente Steward e muitos
reproduzidas na academia. outros, especialmente Betty Meggers,
Dentre os temas enfocados por Faus- levariam as populações a uma constan-
to, destaca-se a crítica da tipologia evo- te procura por comida em ambientes
lucionista das populações indígenas pouco produtivos e não permitiriam o
desde uma visão continental. É mostra- desenvolvimento cultural, social e polí-
do como Steward elaborou sua classifi- tico, forçando-as a permanecer nos es-
cação de cima para baixo a partir do tágios mais baixos da imaginada cadeia
modelo do império Inca, exemplo do evolutiva das populações da América
“ápice do desenvolvimento no conti- do Sul. Apesar de algumas noções cen-
nente”, definindo as demais populações trais do determinismo ecológico terem
da América do Sul pela “carência, le- sido testadas e criticadas por Robert
vando à caracterização dos povos das Carneiro menos de uma década após o
terras baixas pela negativa” (:15). Des- lançamento do Handbook, em tese de-
sa forma, segundo Fausto, “restringi- fendida em 1957, a influência das idéias
ram-se os problemas a serem enfrenta- de Steward permaneceu forte no Brasil
dos pela arqueologia a duas perguntas até os anos 90. Mesmo com as novas
básicas: será que todos os povos das ter- idéias e fatos de Carneiro, a revisão
ras baixas, de fato, não tinham aquilo do determinismo ecológico só ganhou
que os incas tinham? E por que não ti- adeptos no final dos anos 60, com as pu-
nham?” (:15) blicações nessa linha tornando-se visí-
Baseado em pesquisas recentes, o veis após 1975.
autor apresenta contrapontos às con- Outro aspecto de Os Índios antes do
cepções de Steward no que se refere a Brasil é o debate sobre a expansão dos
demografia, desenvolvimento da agri- povos tupi. Aqui cabe um comentário,
cultura, subsistência, exploração/mane- pois Fausto faz uma discussão em con-
jo dos recursos naturais, criação da cul- traponto a um estudo meu publicado
tura material, tipos de sociedade e de em 1996, na Revista de Antropologia,
organização política. Traça, assim, um intitulado “As Hipóteses sobre os Cen-
panorama sugestivo da variabilidade tros de Origem e as Rotas de Expansão
dos povos indígenas, superando cha- dos Tupi”. Fausto segue parcialmente a
vões em torno de sua falaciosa unifor- argumentação de Eduardo Viveiros de
midade sociopolítica, econômica, cultu- Castro, apresentada em comentário às
ral e demográfica. teses do meu artigo. O foco da discussão
Fausto revela como a relação entre é a validade de certos aspectos da “teo-
ambiente e níveis de “desenvolvimento ria da pinça” de José Brochado, basea-
cultural”, tão cara a Steward, foi trata- da na hipótese de que parte das expan-
da de modo superficial e apriorístico, sões tupi, especificamente as dos povos
através dos simplificados conceitos falantes do tupinambá, teria colonizado
de “área marginal” e “área de floresta a costa brasileira rumo ao Sul, partindo
tropical”, elaborados em função de uma da foz do Amazonas. Fausto e Viveiros
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de Castro entendem, olhando para os tionando conclusivamente a hipótese


dados presentes, que, dada a falta de da origem dos Tupinambá na bacia do
informações arqueológicas entre a foz Paraná-Tietê: 1) o horizonte arqueoló-
do Amazonas e o Rio Grande do Norte, gico nos atuais estados de São Paulo,
bem como a existência de datações an- Mato Grosso do Sul e Paraná, bem co-
tigas no Rio de Janeiro, “fica difícil crer mo no Paraguai, não apresenta deta-
que tenha havido uma expansão do lhes característicos da cerâmica tupi-
Norte para o Sul (a não ser que recue- nambá que são comuns, por outro lado,
mos muito a cronologia desse movi- no baixo Amazonas. Nessa área meri-
mento)” (:74). Fausto reconhece que is- dional só existe, considerando povos tu-
to está “longe de ser resolvido” (:74), pi, evidências históricas e arqueológi-
afirmando contudo que o centro de ex- cas dos Guarani, Guarayo, Xetá e Gua-
pansão “pode ter sido a bacia do rio yaki; 2) é possível e seguro estabelecer
Tietê” (:74). a continuidade histórica entre o registro
Concordo que a questão está “lon- arqueológico e os povos historicamente
ge de ser resolvida”. Quanto à sugestão descritos como tupinambá na costa e in-
de Fausto, porém, há tão poucos dados terior, assim como no caso dos Guarani;
sobre a bacia do Tietê quanto sobre a 3) lingüisticamente, o tupinambá é dis-
região entre a foz do Amazonas e o Rio tinto do guarani. A hipótese da origem
Grande do Norte (sendo que ele não meridional ignora a relação da língua
menciona os dados do interior do Piauí, tupinambá com as línguas faladas por
Pernambuco, Alagoas...). Fausto defen- povos situados apenas na Amazônia,
de a primeira hipótese sobre a expan- assim como desconsidera a área de ori-
são dos Tupi, sugerida por von Martius gem do tronco tupi proposta e, até ago-
na década de 1830 e reciclada várias ra, não questionada.
vezes até a sua mais influente formula- A questão do sentido da rota dos Tu-
ção por Alfred Métraux (1928). Como pinambá será respondida quando exis-
mostrei em 1996, estes veneráveis pes- tirem novos dados arqueológicos entre
quisadores não dispunham dos dados a foz do Amazonas e o Piauí. O desafio
arqueológicos, lingüísticos e etnológi- é realizar isto sem cair em explicações
cos obtidos a partir dos anos 60. Apesar superadas, como aquelas do culturalis-
dessas novidades, muitos pesquisado- mo germânico e do difusionismo aplica-
res atuais, como Fausto, reproduziram dos aos povos indo-europeus. É neces-
acriticamente a hipótese original e as sário banir as conclusões baseadas ape-
reciclagens feitas até Métraux sem rea- nas na lógica ou na tradição estabeleci-
lizar uma síntese complexa e crítica que da por Martius, pois elas apenas consi-
integrasse todos os dados disponíveis. deram deslocamentos no espaço em
Enfim, posso repetir que houve poucas função da posição historicamente de-
pesquisas no Nordeste brasileiro, com- terminada dos povos tupi.
parando-se com a situação no Sudeste Finalmente, há esperança de que
e Sul, resultando em um mapa arqueo- este livro de Carlos Fausto seja a se-
lógico desigual, forçosamente distorci- mente de um atualizado e completo ma-
do, vulnerável à “confirmação” de uma nual em língua portuguesa sobre as po-
expansão do Sul para o Norte. Repeti- pulações indígenas no Brasil, tão neces-
rei, resumidamente, conclusões minhas sário para substituir os clássicos que já
e de outros pesquisadores já publicadas cumpriram sua tarefa e agora merecem
que reforçam a “teoria da pinça”, ques- ir para o rol dos livros úteis à pesquisa
174 RESENHAS

da história da etnologia e da arqueolo- ção contemporânea de políticas cultu-


gia americanista. Sem dúvida, com a es- rais e das identidades como política, no
crita desse outro livro, teremos uma obra contexto das (múltiplas) interseções en-
com os mais novos conhecimentos e, es- tre processos de reestruturação do ca-
pecialmente, a possibilidade de suscitar pitalismo global e reconfigurações da
mais e necessários debates. cultura e da política” (:14). Apesar da
abrangência sugerida nessa definição
de objetivos, os autores, valendo-se de
FELDMAN-BIANCO, Bela e CAPINHA, uma perspectiva comparativa, procura-
Graça (orgs.). 2000. Identidades. Estu- ram apreciar as tensões subjacentes aos
dos de Cultura e Poder. São Paulo: Hu- processos de formação e reconfiguração
citec. 175 pp. de identidades (de raça, de classe, de
gênero etc.), especialmente no contexto
do Estado-nação transnacional, bem co-
Giralda Seyferth mo os significados e limites das políti-
Professora, PPGAS-MN-UFRJ cas identitárias, apontando para formas
de resistência e contestação às ideolo-
Esta coletânea apresenta resultados de gias hegemônicas de dominação.
pesquisas que focalizam populações em O ensaio de Boaventura de Sousa
diáspora, enfatizando as relações entre Santos, “Por uma Concepção Multicul-
processos de globalização e reconfigu- tural de Direitos Humanos”, aparece na
rações de identidade. Alguns dos traba- antologia como introdução de natureza
lhos que a compõem foram original- teórica, por problematizar algumas te-
mente apresentados na mesa-redonda máticas analisadas no demais textos, no-
“Globalização, Estado e Embates de tadamente a questão da globalização e
Identidades” – I Conferência Interna- suas diversas dimensões, o multicultu-
cional sobre Identidade Étnica e Rela- ralismo, os direitos humanos e seu po-
ções Raciais, realizada simultaneamen- tencial emancipatório. Identifica as ten-
te com a XX Reunião Brasileira de An- sões dialéticas que informam a moder-
tropologia (Salvador, abril de 1996). O nidade ocidental – basicamente, a ten-
livro é uma reedição, no Brasil, do volu- são entre regulação social e emancipa-
me temático sobre identidades da Re- ção social, entre o Estado e a sociedade
vista Crítica de Ciências Sociais (no 48, civil, e entre o Estado-nação e a globa-
junho de 1997) – publicação do Centro lização – para chegar a uma proposta
de Estudos Sociais da Faculdade de de reconceitualização multicultural dos
Economia da Universidade de Coimbra direitos humanos, partindo do princípio
(Portugal). Contém uma introdução, in- da incompletude das culturas singula-
titulada “Identidades”, de Bela Feld- res. O autor afasta-se de uma definição
man-Bianco, e cinco textos, resultantes hegemônica de globalização, usando o
do diálogo entre pesquisadores do Bra- termo no plural para afirmar que, como
sil, de Portugal e dos Estados Unidos, processo, nada mais é do que a imposi-
precedidos por um artigo de Boaventu- ção bem-sucedida de um determinado
ra de Sousa Santos dedicado ao tema localismo – localismo globalizado (pro-
dos direitos humanos. Esses textos têm cesso pelo qual um fenômeno local é
em comum, conforme registrado na in- globalizado com sucesso) e globalismo
trodução, “o desafio teórico-metodoló- localizado (o impacto das práticas e dos
gico de examinar criticamente a produ- imperativos transnacionais nas condi-
RESENHAS 175

ções locais). Nesse sentido, os direitos param com a continuidade desse tipo
humanos concebidos como universais de ideologia, presente em muitos con-
são impositivos, daí a sugestão de trans- textos imigratórios desde o século XIX.
formá-los em um projeto cosmopolita No entanto, com base em dados de mi-
que leve em conta o multiculturalismo nuciosa pesquisa realizada em Nova
enquanto “pré-condição de uma rela- Iorque com imigrantes do Haiti, defini-
ção equilibrada e mutuamente poten- ram um modelo de identidade nacional
ciadora entre a competência global e a conformado pela idéia de raça enquan-
legitimidade global” (:26). A dignidade to traço distintivo suficiente na situação
humana condicionadora da transforma- transnacional. Mostram que a reconcei-
ção cosmopolita requer o reconhecimen- tualização do Estado-nação através da
to das incompletudes culturais mútuas. idéia de transnacionalidade – uma
O problema da dominação, subja- construção ideológica da qual partici-
cente à discussão sobre os direitos hu- pam tanto as lideranças dos imigrantes
manos, está presente nos demais textos, na diáspora, quanto políticos e detento-
que abordam construções identitárias res de cargos oficiais – teve como resul-
da perspectiva transnacional. Sob este tado a formulação de uma identidade
aspecto, o trabalho de Nina Glick Schil- nacional especificamente racial, basea-
ler e Georges Fouron, “Laços de San- da em linha de descendência e laços de
gue: Os Fundamentos Raciais do Esta- sangue, na qual outros atributos da na-
do-Nação Transnacional”, aponta para cionalidade, tais como língua comum,
uma identidade racial assente na su- história compartilhada, território ou
posta relação entre raça e nação, elabo- mesmo cultura, desaparecem da simbó-
rada por imigrantes haitianos nos Esta- lica constitutiva da nação. Apesar das
dos Unidos e legitimada em um Haiti possibilidades de construir múltiplas in-
redefinido como Estado-nação transna- ter-relações da vida cotidiana dos imi-
cional. Os autores fazem um estudo do grantes, visto que as redes transnacio-
caso haitiano, mas sugerem que dirigen- nais produzem importantes relações so-
tes políticos de alguns países de emi- ciais entre os que emigram e os que fi-
gração – México, Portugal, Colômbia cam, esse tipo de nacionalismo raciali-
etc. – têm procurado definir os respecti- zado que produz identidade é critica-
vos Estados como transnacionais, para mente analisado como forma problemá-
poder incorporar suas populações da tica de resistência ao preconceito e à do-
diáspora. minação.
O conceito de raça simbolizando a O trabalho de Angela Gilliam, “Glo-
identidade nacional, bem como o seu balização, Identidade e os Ataques à
uso na arena transnacional envolvendo Igualdade nos Estados Unidos: Esboço
populações migrantes, não é novidade de uma Perspectiva para o Brasil”,
da pós-modernidade, conforme mostram aborda alguns aspectos das atuais re-
os numerosos estudos sobre o naciona- presentações sobre raça nos Estados
lismo. O jus sanguinis que embasa a ci- Unidos e no Brasil, bem como as diver-
dadania em muitos Estados nacionais é sas reformulações do conceito de affir-
a contrapartida legal dessa premissa mative action e as tensões relacionadas
biológica de natureza primordialista. A à identidade racial. Explora as implica-
não ser por uma breve incursão históri- ções da globalização da economia so-
ca ao desenvolvimento das idéias de bre o princípio de igualdade, o proble-
nação e raça, os autores não se preocu- ma do trabalho não remunerado nas pri-
176 RESENHAS

sões dos Estados Unidos, a retórica do portugueses aparecem ora como coloni-
“daltonismo cultural” (vinculada à su- zadores (e parte da história formativa
peração do racismo) reapropriada pela do Brasil), ora como imigrantes. Nesse
direita americana para neutralizar a contexto mais propriamente literário, a
questão racial, o debate sobre quem é idéia de raça não tem importância, pre-
negro no Brasil, para mostrar as atuais valecendo a retórica da “irmandade lu-
disputas relacionadas à igualdade de so-brasileira” e da língua compartilha-
direitos e cidadania envolvendo classi- da que, supostamente, deveriam igua-
ficações raciais e o programa de affirma- lar, mas que o sotaque e outros indica-
tive action. No caso brasileiro, enuncia dores da nacionalidade diferenciam na
o “apadrinhamento neoliberal”, contra- configuração do lugar subalterno do
ditório, da affirmative action que, por imigrante na situação pós-colonial.
essa razão, não é identificada com a lu- Conforme registra a autora, na poesia
ta dos negros pela cidadania e contra o são encontradas as “identidades que
racismo. resultam da interseção de culturas que,
A questão da affirmative action ser- mesmo quando definidas pelo ‘Mesmo’
ve de mote para criticar algumas análi- que é a Língua, teimarão sempre em tra-
ses acadêmicas relativas à identidade zer o ‘Outro’ e a Diferença” (:112).
racial, especialmente aquelas que re- O artigo trata da poesia como veícu-
correm às ambigüidades de um sistema lo para externalizar configurações iden-
classificatório “multipolar” vinculado à titárias mutáveis, cujos referenciais são,
mestiçagem. Comete alguns excessos por um lado, a terra pátria, muitas ve-
retóricos – como o uso dos termos “ne- zes definida pela região e não pela na-
grólogos” e “porteiros da academia” ção, a saudade, a grandeza passada de
(:99-100) para referir-se à posição hege- Portugal (a retórica do Império), e, por
mônica de brancos falando de relações outro, a “irmandade”, a integração Por-
raciais nos meios acadêmicos brasilei- tugal-Brasil, a própria identidade luso-
ros – mas, indubitavelmente, sua crítica brasileira eventualmente abalada pelos
à perspectiva multipolar ajuda a pensar estereótipos que desqualificam o “por-
sobre políticas públicas e racismo. tuga” como ambicioso, burro, inculto, e
Em um trabalho extremamente in- a colonização portuguesa como causa
teressante sobre a poesia produzida por do atraso brasileiro. A poesia como for-
imigrantes portugueses no Rio de Ja- ma de expressão da nacionalidade (ou,
neiro e São Paulo, intitulado “A Poesia nos termos de Herder, do “espírito na-
dos Imigrantes Portugueses no Brasil: cional”) é um importante reflexo da
Ficções Críveis no Campo da(s) Identi- questão étnica no âmbito dos processos
dade(s)”, Graça Capinha analisa o pro- migratórios desde os tempos do roman-
cesso de contínua reelaboração da iden- tismo, observável em outras situações
tidade portuguesa na diáspora, em uma históricas. É o caso, por exemplo, da po-
situação subjetivada e contraditória de esia produzida por imigrantes alemães
fronteira cultural indiferenciada. Trata no sul do Brasil desde meados do sécu-
da identidade (cultural) como um pro- lo XIX, através da qual se afirmou uma
cesso de articulação e representação, identidade teuto-brasileira simultanea-
simultaneamente lingüístico e literário, mente a uma vinculação, pela língua e
através da análise textual, para mostrar pelo jus sanguinis, à nação alemã. Co-
as ambigüidades predominantes nas mo no caso dos portugueses, a celebra-
categorizações identitárias em que os ção da língua é o elemento central des-
RESENHAS 177

sa poesia, assim como a nostalgia, não bretudo quando acionado um princípio


propriamente do Estado-nação, mas do nacionalismo cuja premissa é pri-
do local de proveniência (a província, mordialista em um sentido biológico.
a aldeia, a terra no seu sentido mais res- Por outro lado, o multiculturalismo não
trito). está suficientemente problematizado.
No último artigo, “Transidentidades Segundo alguns dos seus críticos, espe-
no Local Globalizado. Não Identidades, cialmente aqueles identificados com os
Margens e Fronteiras: Vozes de Mulhe- interesses de minorias, a distintividade
res Latinas nos E.U.A”, Mary Garcia cultural pode ser transformada em nova
Castro aborda o debate sobre poder e metáfora da desigualdade, através do
subalternidade na situação transnacio- discurso de legitimação da diferença.
nal, enfocando, especialmente, textos As controvérsias são muitas e, certa-
produzidos por mulheres identificadas mente, as contribuições contidas no li-
como “latinas” e/ou “negras” nos Esta- vro ajudam a elucidar os meandros das
dos Unidos. A escolha dessas “vozes” identidades enquanto política, em um
permitiu à autora lidar com subalterni- mundo globalizado onde persiste o lo-
dades múltiplas – de raça, de classe, de cal na forma do Estado-nação.
gênero, de opção sexual –, problemati-
zando o conceito de identidade “latina”
na medida em que a literatura em ques- GOLDMAN, Marcio. 1999. Alguma An-
tão, produzida por escritoras e militan- tropologia. Rio de Janeiro: Relume Du-
tes de diferentes movimentos, algumas mará. 178 pp.
feministas, negras e/ou homossexuais,
vai além das fronteiras identitárias, em
um desafio à discriminação e opressão. Pablo Semán
Investiga temas menos explorados nas Doutor, CONICET/Universidad Nacional
situações de diáspora, presentes nos de General San Martín

textos dessas mulheres: o corpo e a se-


xualidade, por exemplo, ou combina- Os treze artigos que compõem Alguma
ções entre políticas de classe, raça, et- Antropologia recobrem mais de vinte
nicidade, gênero, nacionalismo etc., que anos de uma trajetória diversificada em
levam à recusa do enquadramento em objetos e perspectivas. Por isso, cada
políticas de identidades unívocas. um deles apresenta rendimentos pró-
Os artigos reunidos na antologia prios e específicos. O conjunto, todavia,
dão subsídios importantes para o enten- encadeia um argumento em três nú-
dimento das contradições, subjetivida- cleos: com a discussão das noções de
des, simbolismos e paradoxos subjacen- pessoa e de antropologia das socieda-
tes às concepções de identidade nas si- des complexas, propõe-se a antropolo-
tuações de transnacionalidade marca- gia como história; com a discussão de
das pela redefinição do modelo de Es- certos conceitos-chave nas obras de
tado-nação. São estudos que focalizam Deleuze, Descartes, Foucault, Lévi-
processos atuais de reconfiguração iden- Strauss, e com a identificação de algu-
titária; não obstante, seria útil a compa- mas falácias no raciocínio antropológi-
ração com processos imigratórios de ou- co, elaboram-se as determinações do
tros períodos históricos, sobretudo por- objeto da antropologia; o estudo dos
que o Estado-nação transnacional está processos eleitorais, o terceiro núcleo,
longe de ser um fenômeno recente – so- será um campo de verificação das con-
178 RESENHAS

cepções e debates precedentes. Exami- uma prática, consagra essa constância


narei cada um desses núcleos na ordem na ilusão de correspondência com um
aqui enunciada. objeto. Este constitui especularmente a
No artigo “Uma Categoria do Pen- antropologia como ciência dos objetos
samento Antropológico: A Noção de Pes- de pequena escala. A alternativa é pen-
soa”, afirma-se: “É curioso que os an- sar que qualquer sociedade é, ontológi-
tropólogos aceitem a idéia de um indi- ca e epistemologicamente, história. Não
vidualismo ocidental e, ao mesmo tem- se trata de apostar no conhecimento
po, dediquem todos os seus esforços a idiográfico ou de afiliar-se ao pólo ro-
encontrar entre nós representações que mântico da tensão constitutiva das ciên-
não obedecem a esse modelo suposta- cias sociais, mas sim de distinguir entre
mente dominante” (:25). Tal contradi- o plano da geração social das institui-
ção depende da fusão indevida entre a ções e o plano que configura o conjunto
necessária desnaturalização do agente delas, já instituídas, privilegiando o pri-
e sua concepção em termos da intera- meiro. A distinção refere-se a lógicas de
ção indivíduo-sociedade. Esta, suben- análise diferentes e, se é óbvio que a
tendendo o indivíduo em vez de colocá- geração social de instituições recicla o
lo entre parênteses, duplica o imaginá- previamente cristalizado, também o é
rio ocidental que pretende interpretar. que o dispositivo não é a mesma coisa
Todavia, preservar a problematização que o já disposto, que não será a mes-
do agente não significa buscar, em uma ma coisa estudar criadores e criaturas.
regressão ad infinitum, o efeito de ideo- Essa noção, tributária de Veyne e Fou-
logias constituintes, mas investigar o cault, entende como história o estudo e
plano de articulação contingente de re- a produção de tramas que se tecem
gras, discursos e objetos no qual as aquém da necessidade, do tempo e do
ideologias são derivadas e se tornam espaço transcendentais. Na interseção
eficazes. É por isso que se sustenta que de temporalidades conflitivas que nun-
“às teorias que buscam captar a subs- ca serão a História e de espaços preca-
tância de ideologias englobantes, seria riamente fixados que nunca serão subs-
preciso opor uma analítica dos proces- tância, são decididas e condensadas as
sos imanentes às múltiplas práticas” singularidades: ponto de articulação de
(:35). Abrindo-se à contingência, torna- proveniências e emergências, terreno
se central o elemento histórico que o de engendramento dos universais que
autor tenta realçar na prática e no obje- esses mecanismos de geração tornam
to da antropologia. Essa operação se sempre precários. Assim a antropolo-
prolonga e esclarece com o giro que se gia, prática transversal às ciências for-
efetua em “Antropologia Contemporâ- malizadas, transita em âmbito “sublu-
nea, Sociedades Complexas…”. Socie- nar” que não implica miniaturização,
dade “complexa” é uma noção onipre- mas delimitação de um plano em que
sente na prática dos antropólogos, que operam variáveis diferentes das que
a opõe às “simples”, objeto próprio da reinam no campo em que os objetos são
antropologia, ou a define delimitando engendrados.
as condições e aspirações do exercício Essa mudança de perspectiva, por
antropológico nas sociedades ociden- sua vez, conduz a uma reflexão crucial
tais modernas. Em ambos os casos, a sobre o método. O objeto “sociedades
antropologia clássica e moderna, corpo complexas” ilumina um problema que,
de saberes derivados da constância de já presente nas sociedades simples, era
RESENHAS 179

ativamente desconhecido pela suposi- tes artigos, explora-se a idéia da antro-


ção de que estas últimas eram passíveis pologia como história através do exame
de cognições totais. A complexidade de de obras-chave da antropologia e filoso-
qualquer forma social se impõe a qual- fia. De Lévi-Strauss extrai-se uma lição
quer pretensão de registro total, asso- precisa, pertinente e muitas vezes elu-
ciada ilusoriamente às aspirações da dida com a acusação de anti-historicis-
longa duração das observações e à su- mo. Se a História é nosso mito, é porque
posta imediatez das mesmas. Não se essa tem sido nossa forma de reagir
trata de abandonar o rigor da etnogra- diante da temporalidade. Esse raciocí-
fia: o treinamento próprio da disciplina nio sustenta, mais do que uma relativi-
não caduca, mas suas aspirações se zação do saber histórico, a afirmação da
vêem dimensionadas pela elucidação existência de historicidades diferentes
da ontologia do social que estava sendo junto a distintas formas de refletir sobre
encoberta. elas e de constituí-las. Assim, a separa-
A problematização dessa ontologia ção da historicidade em relação à His-
se realiza de duas maneiras. Primeiro, tória e às filosofias da história não signi-
como crítica das maneiras de conhecer; fica negação da primeira mas sim, pelo
segundo, como elaboração das determi- contrário, abertura de um “caminho pa-
nações teóricas do objeto. A primeira, ra uma reflexão histórica afastada das
desenvolvida em “Como se Faz um armadilhas de todos os evolucionismos
Grande Divisor?” (em co-autoria com e de todas as ideologias celebratórias”
Tânia Stolze), assinala um produto con- (:63). Se a intervenção de Lévi-Strauss
traditório das análises antropológicas: a depura o acontecimento das pré-noções
recusa à oposição “nós/eles” desconhe- que buscam cingi-lo, o recurso a Fou-
ce a lógica que a sustenta e a reproduz cault pode ser introduzido na tentativa
em outros níveis ao postular as separa- de conceitualizá-lo positivamente. As-
ções entre, por exemplo, mundos holis- sim, ressalta da leitura deste último a
tas e individualistas, oralidade e escrita. raridade dos fatos humanos, sua emer-
Em primeiro lugar, é preciso entender gência em um espaço de transformação
que a pergunta “o que, em geral, nos e fratura, sua derivação no cruzamento
aproxima e/ou distingue dos outros” de campos de saber e de normatividade
(:85), supõe a realidade de unidades e e de formas de subjetividade. Neste cru-
diferenças cuja existência deveria ser zamento, o resultante não é o único pos-
objeto de suspeita. Em segundo lugar, sível, porque toda raridade está habita-
chama-se a atenção para as condições da de politicidade, de capacidade de
lógicas sob as quais se realizam os ra- decidir, em um campo de possibilida-
ciocínios comparativos. Como demons- des, por uma atualização que bem po-
tram os autores, um verdadeiro arsenal deria ter sido outra. Essa raridade im-
de falácias pesa sobre os raciocínios an- plica, ademais, o privilégio da singula-
tropológicos e volta a colocar perguntas ridade (como combinatória local de li-
generalizantes sem necessidade de nhas de força difusas à distância de
enunciá-las. qualquer universalidade e não como di-
A segunda linha de análise é desen- ferença irredutível), em vez da oscila-
volvida em “As Lentes de Descartes, ção entre os particularismos insondáveis
Razão e Cultura”, “Lévi-Strauss e os e as universalizações etnocêntricas.
Sentidos da História” e “Objetivação e Essas posições têm conseqüências
Subjetivação no Último Foucault”. Nes- para a definição e a prática do relativis-
180 RESENHAS

mo. De um ponto de vista epistemológi- gência, que abalam a segurança com


co, trata-se de compreender que a su- que praticamos nossas vidas. Na alteri-
bordinação da semelhança à diferença dade pode patentizar-se o que nossas
não supõe uma diferença metafísica, sociedades escondem com relativo su-
absoluta e transcendente. Castoriadis, cesso, o naturalizado ao longo de bata-
entre outros, entendia a instituição mais lhas cujo rastro se perdeu, o que apren-
como verbo que como substantivo. Da demos a deixar de tomar em conta. Se é
mesma maneira, deve entender-se a di- isto o que está em jogo na relação com
ferença: como trabalho de constituição a alteridade, é justo concluir que a ati-
de certas singularidades a partir de ou- vidade da antropologia ganha sentido
tras, como movimento de distinção a ser ético contribuindo para relativizar atua-
estabelecido a cada momento. Para es- lizações ligadas à politicidade que deci-
se objetivo, o criticismo cartesiano cons- de nossa contingência histórica.
titui um modelo de pensamento mais A análise das práticas eleitorais, en-
próximo da antropologia do que se po- focando eleitores e candidatos, consti-
deria supor: mais do que ceticismo cog- tui um excelente campo de teste para
nitivo ou moral, é a atitude que permi- as intenções declaradas e elaboradas
te tornar histórico e singular o que se nos artigos já citados. Tomemos como
apresenta como natural e universal. Do exemplo um dos artigos que desenvol-
ponto de vista ético, as conseqüências vem essa perspectiva. “Teorias, Repre-
não são menos importantes. O relativis- sentações e Práticas” mostra que a su-
mo emergente não surge do contraste posta irracionalidade dos eleitores se
entre parâmetros absolutamente outros dissolve se contemplamos simultanea-
opostos a parâmetros absolutamente mente a dispersão, a integração instá-
próprios. Equivale a contrastar o que vel e a hierarquização de motivações
em um campo de possibilidades é atua- que eles realizam (motivações que in-
lizado com outras atualizações desse cluem uma leitura do jogo eleitoral di-
mesmo campo, a assumir que essas pos- ferente da que sustentam descritiva ou
sibilidades poderiam comutar-se. A in- normativamente as análises científicas).
terpretação de Clastres por Deleuze es- Mas essa demonstração tem um valor
clarece esse ponto: se as sociedades pri- suplementar. Ali onde os desenvolvi-
mitivas não eram sem Estado e sim ca- mentos dominantes da análise política
racterizadas pela presença de podero- supõem correspondências entre sujei-
sos mecanismos contra o Estado, é pre- tos e partidos, ou constatam desajustes
ciso admitir que essas sociedades regis- que incitam a esperar evolução ou a de-
travam o funcionamento de mecanismos mandar pedagogia, se empreende uma
de Estado que foram inibidos, e que as análise que, como se se tratasse do lado
nossas não bloquearam por completo os escuro da lua, dá conta do ponto cego
mecanismos que a ele resistem. Isto é dos conceitos da sociologia eleitoral e
mais que um exercício epistemológico: da ciência política. Ali onde essas disci-
há um valor ético que se agrega ao epis- plinas projetam o cidadão, o partido, a
temológico e o subordina. Vejamos em racionalidade do votante, a análise his-
detalhe: a antropologia como história, tórica desnaturaliza o eleitor e recupera
como ciência de dispositivos, encontra o fato de que é uma “ortopedia social”
nos outros “primitivos”, mais que o pas- o que, no quadro das liberdades da era
sado de nossa contemporaneidade, do individualismo, o institui. Mais que
atualizações, modos de operar a contin- isso, torna manifesto que os atos dos
RESENHAS 181

eleitores não constituem o resultado do lística que combina expressões revolu-


encontro entre essa institucionalização cionárias de 1789, adágios portugue-
e uma tábula rasa, mas um ponto de en- ses, humor apurado e ofensas pessoais.
contro conflitivo entre lógicas culturais Acompanhamos o destino de jornalistas
em disputa em uma equação cujos ter- e de posições políticas por eles abraça-
mos são incertos, mas que, certamente, das com fervor (genuíno ou oportunis-
excluem o partido, o cidadão e a elei- ta); o leitor ainda é bem amparado
ção, como formas universais e como ter- quanto aos detalhes de fatos históricos
mos unívocos. necessários à compreensão do evento
descrito e todos os nomes mencionados
recebem notas biográficas.
LUSTOSA, Isabel. 2000. Insultos Im- O relato de Lustosa descreve com
pressos. A Guerra dos Jornalistas na rara minúcia o enlace entre jornalismo
Independência (1821-1823). São Paulo: e política no período da Independência.
Companhia das Letras. 497 pp. Nesse cenário, é o retrato da vida inte-
lectual brasileira no seu nascedouro,
quando se constitui a figura do intelec-
Candice Vidal e Souza tual compromissado com o lugar onde
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ vive, que sobressai da história contada
pela autora. Homens que se vêem com
A magnífica história dos personagens a missão pedagógica de formar e orien-
vanguardeiros da imprensa no Brasil e tar politicamente o povo, ou melhor, as
de sua presença decisiva nas lutas polí- elites coloniais, daquele Brasil em via
ticas da Independência está recompos- de assumir a condição de nação inde-
ta de modo inédito neste livro de Isabel pendente. Para tanto, “a imprensa foi o
Lustosa. Seu texto distingue-se do esti- meio privilegiado de sua ação” (:33).
lo narrativo tradicional das obras de Trata-se, afinal, de um texto suges-
história da imprensa para o período – tivo além das fronteiras da história da
mais preocupadas com a citação linear imprensa propriamente dita. Nele há
de jornais e publicistas – porque coloca dados para a caracterização sociológica
o leitor no centro dos debates do tempo do jornalismo brasileiro – os atores e as
ao refazer o enredo da interlocução en- posições ideológicas e sociais a partir
tre aquelas figuras notáveis do mundo das quais opinavam – em seu instante
do jornalismo na primeira metade do formativo, aquele em que o público lei-
século XIX. As contendas registradas tor passa a ser pensado como brasileiro
em jornal entre a partida do rei D. João e as posições dos jornalistas se definem
VI (abril de 1821) e o fechamento da em relação a ser ou não ser pelo Brasil.
Assembléia por D. Pedro I (novembro Nesses anos, articulou-se de forma deci-
de 1823) são a marca preservada da- siva o empenho da palavra escrita – e
quela efervescência política. No relato, por extensão, dos intelectuais – com a
ao mesmo tempo em que se mantém o causa da Independência ou da existên-
calor dos discursos, colocando-os no cia do Brasil como nação.
seu contexto original de enunciação, Admiração é o sentimento freqüen-
também se resguarda o vínculo entre os te entre historiadores que se aproxi-
autores e seu estilo de escrita caracte- mam da imprensa contemporânea da
rístico. Esses senhores das artimanhas Independência. Convergem na consta-
retóricas criam uma linguagem jorna- tação de uma transformação nacionalis-
182 RESENHAS

ta aí acontecida. Como diz Lustosa, “era primórdios da imprensa brasileira. Caso


a imprensa brasileira que nascia, com- as escolhas bibliográficas viessem acom-
prometida com o processo revolucioná- panhadas de um mapa básico das opi-
rio, no momento em que, de um dia pa- niões acerca dos “fatos” da imprensa
ra outro, deixávamos de nos considerar na transição da Colônia para o Império,
portugueses para nos assumirmos como teríamos uma indicação satisfatória do
brasileiros” (:25-26). Neste ponto ela co- teor das interpretações disponíveis so-
munga com outras obras de história da bre o período. Como tantas outras his-
imprensa brasileira (para citar apenas tórias, a da imprensa brasileira também
autores renomados atualmente, Nelson é uma narração com efeitos performati-
Werneck Sodré, Barbosa Lima Sobrinho vos, o que resiste à percepção arguta de
e Juarez Bahia) nas quais a adjetivação Lustosa. A meu ver, esta é a razão pela
“brasileira” está condicionada às con- qual a seleção de textos de referência
dições políticas da Independência. É, nessa área – com preferência acentua-
pois, uma premissa interpretativa que da por trabalho de Carlos Rizzini – me-
identifica o surgimento do “timbre bra- receria explicações.
sileiro” (expressão de Nelson Werneck Em que tipo de jornais, afinal, circu-
Sodré) nos jornais circulantes. Por esse lavam os “insultos”? No geral, eram
raciocínio, não é o local de impressão edições fugazes, impressas em tiragens
que define primariamente a condição reduzidas e cujo alcance geográfico de
“gentílica” de um jornal, mas o seu circulação não costumava ultrapassar a
grau de consciência e compromisso na- cidade de publicação. Além disso, a dis-
cional. Não seria descabido dizer que a tribuição se fazia diretamente aos assi-
regra geral nas narrativas em questão é nantes, pois não se usava, ainda, o ex-
a adesão dos autores ao ímpeto nacio- pediente da venda avulsa nas ruas. A
nalista de seus personagens. Insultos quase totalidade das fontes trabalhadas
Impressos mantém esse espírito de ad- pela autora pode ser nomeada como
miração para com nossos antepassados “jornais cariocas da Independência”
intelectuais. Com uma diferença funda- (:32). A qualificação “nacional” dirigida
mental: este livro não possui o tom nor- a essas folhas não se refere propriamen-
mativo das histórias da imprensa, às ve- te à realidade de sua distribuição em
zes indistinguível da sucessão factual praças além-Corte, e sim à “nação” co-
de jornalistas e jornais. mo referente do escritor.
Isabel Lustosa revela desacordos O grupo de redatores que coabitava
pontuais em relação aos argumentos de no Rio de Janeiro raramente dialogou
certos autores da bibliografia de refe- com jornalistas das províncias. Uma ex-
rência e não se intimida ao desconstruir ceção importante foi Cipriano Barata,
opiniões assentadas sobre figuras como jornalista baiano radicado em Pernam-
José Bonifácio. Entretanto, característi- buco, responsável pela Sentinela da Li-
cas reveladoramente “nacionalistas” berdade na Guarita de Pernambuco.
desse acervo de obras sobre história da Protestava contra as ações de governo
imprensa no Brasil passam despercebi- empreendidas “a fim de se tornarem as
das pela autora. A pergunta sobre como províncias colônias do Rio de Janeiro”
aconteceu a imprensa da Independên- (:319). As reações à posição de Barata
cia, certamente, não vem recebendo foram veementes e alguns jornalistas
uma resposta unívoca dos estudiosos de proa, como os Andradas, acusaram-
brasileiros que propuseram versões dos no de pretender amotinar as províncias.
RESENHAS 183

Podemos perceber, nas citações expos- da enunciação das polêmicas na escrita


tas pela autora, que os termos da con- jornalística da Independência, a autora
tenda entre favoráveis e opositores a constrói o ponto de vista analítico do
Barata convergiam para a definição da trabalho, detalhado na conclusão cha-
postura de brasileiro ou de antibrasilei- mada “Injúrias não são razões, nem sar-
ro. Dar existência às diferenças entre casmos valem argumentos”. Assim é
províncias e Corte significou uma nova que em todos os sete capítulos – intitu-
inserção semântica para o nacional no lados com saborosas expressões “nati-
quadro dos debates sobre o Brasil. Con- vas” – há o cuidado com o dito, o autor,
tudo, naquele momento os jornalistas se a forma de locução e os receptores ima-
empenhavam com fervor na querela ginados pelo escritor, sem abdicar da
entre lusitanos e brasileiros. Este foi o exposição minuciosa do contexto políti-
grande alvo das disputas retóricas em co maior do proferimento.
jornal, relegando para depois a virada A conseqüência bem-vinda da preo-
do olhar de jornalistas e políticos para cupação com a retórica em papel é a
dentro do Brasil, já anunciada por Bara- apresentação do léxico político corren-
ta no cenário dos periódicos da Inde- te no período. Epítetos como marotos,
pendência. chumbeiros, marinheiros, pés-de-chum-
É bem demonstrado no trabalho que bo, corcundas e descamisados povoa-
o horizonte de leitores imaginado pelos vam os jornais e compunham um vasto
redatores era restrito a emissários bas- repertório de acusações, também curio-
tante específicos. Os outros colegas de so quanto à descrição de aspectos físi-
ofício do jornalismo e da política e o im- cos e de caráter dos personagens da mi-
perador resumiam bem a composição ra jornalística. As classificações do cam-
do público-alvo dos jornais daquela ho- po da política são localizadas em sua
ra. Somente as folhas que traziam o ser- acepção própria do século XIX, fazen-
viço de anúncios atingiriam a pequena do-nos ver quão compensadora é a his-
classe média do Rio de Janeiro. Daí por- tória das categorias do vocabulário po-
que o livro traz inúmeras situações de lítico. Outros temas jornalísticos são as
interlocução entre jornais, quando se figuras do compadre da roça e do com-
nota que uma das ocupações centrais padre da cidade, ocasião discursiva pa-
dos jornalistas é ler as demais publica- ra que a imprensa vocalize e estabeleça
ções e proferir opinião sobre o que se quadros interpretativos do Brasil para
andou dizendo. sua elite leitora.
A percepção clara da composição e A inexistência de fronteiras entre
das disposições da audiência é uma ca- jornalismo, política e literatura é a mar-
racterística forte dessa imprensa, sobre- ca do contexto oitocentista. Os homens
tudo porque a eficácia retórica depende de jornal se viam como escritores e re-
da correta adequação do discurso às ex- corriam à desqualificação estilística de
pectativas e valores do seu destinatário. seus oponentes – desejando-lhes a ex-
Os redatores queriam persuadir seu lei- clusão da “república das letras” – até
torado, convencendo-o da pertinência mais que à contestação ideológica. Re-
de seus argumentos e juízos sobre pes- side aí uma das facetas instigantes do
soas e conjunturas, mas igualmente pre- trabalho, qual seja, o documento para
tendendo orientar a ação política, mo- uma sociologia do mundo jornalístico
vendo-a numa ou noutra direção. Sobre que só poderá surpreender jornalistas
esses temas das formas de linguagem e tout court muito depois. Carlos Drum-
184 RESENHAS

mond de Andrade já se referiu a um ciências sociais praticadas no Rio de Ja-


“jornal jornalístico”. Poderíamos desig- neiro em meados do século XX.
nar os periódicos lidos por Lustosa, e Na abertura da obra, um texto do
muitos outros que os seguiram, como próprio Costa Pinto em que ele atualiza
“jornais não jornalísticos”. O “jornal sua condição de filho do Iluminismo e
jornalístico” será um produto de outros da Modernidade e reafirma sua crença
desdobramentos de nossa vida intelec- tanto na razão e na ciência como instru-
tual a produzirem autonomia relativa mentos fundamentais para analisar, en-
de três “culturas”: a literatura, as ciên- tender e construir um mundo melhor,
cias universitárias e o jornalismo. Insul- quanto nas idéias de que a ciência so-
tos Impressos, cuidadosa edição de cial é fundamentalmente crítica da so-
uma tese de doutorado defendida em ciedade e de que o cientista social deve
1997 no IUPERJ, clareia o percurso da- desempenhar um papel ativo na cons-
queles interessados na sociologia do trução de uma sociedade mais justa. Pa-
jornalismo brasileiro, na etnografia do ra Costa Pinto o racismo e a guerra são
mundo dos jornalistas ou na história dos lamentáveis características da moderni-
intelectuais no Brasil, e naturalmente dade que não deveriam ter lugar em
regala os historiadores do século XIX. um mundo pós-moderno mais humano.
Na primeira parte, “Depoimentos”,
é abordada a trajetória intelectual de
MAIO, Marcos Chor e VILLAS BÔAS, Costa Pinto por pesquisadoras que con-
Glaucia (orgs.). 1999. Idéias de Mo- viveram com ele em diferentes momen-
dernidade e Sociologia no Brasil. En- tos do seu itinerário intelectual. Maria
saios sobre Luiz de Aguiar Costa Pin- Stella Amorim mostra aspectos relevan-
to. Porto Alegre: Editora da UFRGS. tes do percurso social e da atuação aca-
351 pp. dêmica do sociólogo, entre 1939-1963,
e evidencia traços da sua personalidade
e do estilo de seus trabalhos, que fize-
Héctor Fernando Segura-Ramírez ram dele um pioneiro na pesquisa so-
Doutorando, Unicamp cial brasileira. Josildeth Gomes Consor-
te oferece um testemunho cálido e hu-
Idéias de Modernidade e Sociologia no mano do autor, e descreve brevemente
Brasil contém um rico e variado conjun- o papel por ele desempenhado em al-
to de ensaios organizados em partes te- guns projetos e centros de pesquisa.
máticas, que constituem uma referên- Na segunda parte, “Mudança So-
cia de leitura obrigatória para pensar cial e Idéias de Modernidade”, são dis-
tanto os processos de desenvolvimento cutidas, através da obra de Costa Pinto,
e modernização no Brasil, quanto as questões centrais do pensamento socio-
ciências sociais e sua história e o papel lógico, a saber: as concepções de socio-
destas e do cientista social na constru- logia, crise, mudança social, desenvol-
ção de uma sociedade democrática no vimento e transição. O texto de Glaucia
Brasil contemporâneo. A obra é uma Villas Bôas revisita a pesquisa feita por
tentativa bem-sucedida de “resgatar” a Costa Pinto no Recôncavo, e mostra que
atualidade do pensamento de Luiz de há neste autor uma concepção instru-
Aguiar Costa Pinto, um dos principais mental da sociologia comprometida
personagens da sociologia brasileira e com um paradigma universalista, que
importante liderança acadêmica das privilegia o estudo dos fenômenos so-
RESENHAS 185

ciais em transformação. Leopoldo Waiz- ciedade, e da luta anti-racista contem-


bort reconstrói as concepções e o signi- porânea. Angela Figueiredo focaliza o
ficado dos conceitos de crise, do moder- tratamento dado por Costa Pinto ao pro-
no, da sociologia, da realidade e do pa- blema da ascensão social dos negros no
pel do cientista social, e evidencia algu- Brasil. Enquanto Azevedo (1955), Pier-
mas das mudanças e nuanças termino- son (1971), Fernandes (1971) e Hasen-
lógicas experimentadas no sistema con- balg (1979) teriam percebido negros as-
ceitual de Costa Pinto. José Maurício cendendo individualmente através do
Domingues estabelece um diálogo críti- recurso ao branqueamento, ao casa-
co com Costa Pinto sobre o desenvolvi- mento inter-racial e ao apadrinhamento
mento econômico, a nova dependência, por famílias brancas, Costa Pinto teria
as relações internas à sociedade brasi- distinguido um grupo de negros em as-
leira, a construção da cidadania e o pa- censão, caracterizados por querer as-
pel do intelectual, à luz das discussões cender como “elites negras”. O ensaio
contemporâneas sobre modernidade e de Flávio dos Santos Gomes aborda a
os processos de modernização no Bra- idéia de escravidão nos estudos do pro-
sil. O projeto de Costa Pinto e suas jeto UNESCO realizados por Costa Pinto
idéias de planificação e “ciência do de- e Florestan Fernandes. Tentar explicar
senvolvimento” descansariam sobre a escravidão através da sua herança (a
fundamentos da modernidade: a mobi- desigualdade e a discriminação para os
lização de toda a sociedade e a contri- negros) e a quase denúncia da discrimi-
buição racional e planificadora do Esta- nação racial no Brasil seriam as carac-
do cumprindo papel decisivo. E, Enno terísticas comuns a esses trabalhos. Não
Dagoberto Liedke apreende os concei- obstante, essas explicações sociológicas
tos e as hipóteses utilizadas pelo soció- sobre a escravidão na constituição do
logo baiano no tratamento teórico das racismo contemporâneo teriam feito de-
problemáticas da mudança social, da saparecer uma parte da história, o pe-
modernidade e do desenvolvimento. A ríodo 1888-1950. Já Monica Grin abor-
questão da mudança social teria sido da o tema das relações raciais nos tra-
tratada mediante a distinção conceitual balhos de Costa Pinto e Florestan Fer-
entre desenvolvimento social e moder- nandes, e determina que a diferença
nização, enquanto o problema do de- substantiva entre eles radica nas “for-
senvolvimento social brasileiro teria si- mulações propositivas” para superar o
do explicado utilizando a hipótese da problema racial no Brasil. Costa Pinto,
marginalidade estrutural. A obra do so- diferentemente de Florestan Fernan-
ciólogo teria significado uma tomada de des, previu uma racialização crescente
posição militante em favor da contribui- da sociedade brasileira: a raça transfor-
ção da sociologia para mudanças so- mar-se-ia em critério de organização
ciais democratizantes. social e de expectativas por direitos.
Na terceira parte, “Cor, Discrimina- Mais do que uma “acomodação” ou
ção e Identidade Social”, é discutida uma “desejável democracia racial” de-
uma questão cara ao pensamento social corrente da modernização, ele vê nas
brasileiro: as relações raciais. Os textos relações raciais brasileiras uma tendên-
tratam do papel da escravidão na inter- cia para a “tensão racial” ou o conflito.
pretação das desigualdades raciais, da Maria Angélica Motta-Maués focaliza a
atuação dos movimentos negros, da es- polêmica entre Costa Pinto e a intelli-
tratificação e do lugar dos negros na so- gentsia do Teatro Experimental do Ne-
186 RESENHAS

gro, representada pelo sociólogo Guer- antropologia social na produção inte-


reiro Ramos, e oferece elementos para a lectual de Arthur Ramos. O autor afir-
compreensão da dinâmica e da lógica ma que o projeto UNESCO seria a con-
do campo das relações raciais no Rio de cretização do “programa da antropolo-
Janeiro. Na mesma coletânea há duas gia brasileira” proposto por Arthur Ra-
posições a respeito da interpretação do mos. Bila Sorj defende a idéia de que
“movimento negro” carioca feita por apesar da instabilidade das instituições
Costa Pinto: Flávio dos Santos Gomes universitárias de pesquisa no Rio de Ja-
qualifica-a de desrespeitosa e pre- neiro nos anos 50 e 60, houve nesta ci-
conceituosa, enquanto Maria Angélica dade importantes contribuições para
Motta-Maués considera-a acertada. Dis- estabelecer os parâmetros de uma so-
putas recentes em torno do programa- ciologia moderna. Assim, o esforço de
convênio Fundação Ford/Centro de Es- Costa Pinto em definir as fronteiras da
tudos Afro-Asiáticos também atualizam sociologia tanto em relação às outras
essa polêmica. ciências quanto em relação aos discur-
Na quarta parte, “Pensamento So- sos políticos e ideológicos produzidos
cial Brasileiro: O Debate Intelectual dos por intelectuais nesse período, confere
Anos 50”, os ensaios focalizam o papel ao sociólogo um lugar central como fun-
dos intelectuais e algumas das afinida- dador da sociologia no Brasil. Helena
des e tensões temáticas, metodológicas, Bomeny evidencia as principais carac-
disciplinares e ideológicas que infor- terísticas do pensamento e da trajetória
mam a constituição dos campos disci- intelectual de um importante represen-
plinares das ciências sociais no país. tante da Escola Nova, Fernando de
Maria Laura Viveiros de Castro Caval- Azevedo, no que diz respeito ao seu
canti salienta a relação intelectual e empenho em melhorar o sistema edu-
afetiva entre Donald Pierson e Oracy cacional brasileiro para a construção de
Nogueira, e examina a construção do uma “nação brasileira livre, educada e
conceito de “preconceito de marca”. generosa”. Os escolanovistas teriam se
Importante para a compreensão do ra- servido da sociologia como ferramenta
cismo no Brasil, este conceito teria sido para diagnosticar os problemas educa-
produto de uma rica tradição de pesqui- cionais nacionais e propor reformas. Fi-
sa ligada à Universidade de Chicago, nalmente, Nísia Trindade Lima mostra,
cuja característica seria combinar dados a partir da análise comparativa dos tra-
estatísticos com pesquisa de campo balhos de Costa Pinto e Florestan Fer-
sensível à dimensão simbólica, aquilo nandes, que a abordagem dos temas da
que Pierson denominava “o aspecto hu- mudança social dirigida e das resistên-
mano de nossos dados”. Marcos Chor cias à mudança é a principal referência
Maio aborda o debate entre antropolo- da produção intelectual dos dois soció-
gia e sociologia e determina alguns dos logos entre 1950 e 1960. Além disso,
posicionamentos desses cientistas em eles compartilhariam o otimismo quan-
relação ao enfoque das relações interét- to à capacidade de predição e direção
nicas pelas ciências sociais. As críticas atribuída à ciência em geral e à ciência
contundentes de Costa Pinto aos estu- social em particular.
dos afro-brasileiros teriam como alvo Na quinta parte, intitulada “As Ins-
Nina Rodrigues e Arthur Ramos, não tituições de Ciências Sociais: Persona-
obstante essas críticas não levarem em gens, Trajetórias e Controvérsias”, os
conta os deslocamentos em direção à artigos tratam do processo de institucio-
RESENHAS 187

nalização das ciências sociais no Brasil a concorrência entre vocação política e


e das diversas orientações que ali con- científica na produção de um saber po-
fluíram. Assim, por exemplo, no Rio de liticamente relevante para a comuni-
Janeiro, a dita institucionalização não dade à qual está referido, atuando co-
teria obedecido ao paradigma metódico mo norteadores das políticas públicas
e regular de ensino e pesquisa, mas a nacionais.
um processo no qual várias gerações se Finalmente, na Bibliografia de Cos-
integrariam pelas relações de comuni- ta Pinto aparecem inventariados fatos
cação pedagógica e pelas experiências e relevantes de sua trajetória acadêmica
idéias comuns. As missões culturais fran- e os trabalhos que publicou entre 1943
cesas no Brasil, particularmente aquelas e 1987. Certamente, a publicação deste
que participaram na fundação dos cur- livro constitui uma importante contri-
sos de história no Rio de Janeiro, são fo- buição para o estudo das ciências so-
calizadas por Marieta de Moraes Fer- ciais brasileiras e suas lutas.
reira para mostrar o perfil diferenciado
dos professores, a diversidade de in-
fluências que eles trouxeram e como NAEPELS, Michel. 1998. Histoire de
atuavam como intermediários dos inter- Terres Kanakes: Conflits Fonciers et
câmbios culturais. Segundo a autora, a Rapports Sociaux dans la Région de
influência desses professores se mos- Houaïlou (Nouvelle-Calédonie). Paris:
trou limitada no que diz respeito à nova Éditions Belin. 380 pp.
maneira de fazer história no Brasil. Não
obstante, sua presença teria sido impor-
tante com relação à atualização biblio- David Fajolles
gráfica dos alunos, à forma de estrutu- Doutorando, EHESS
ração dos cursos, ao desenvolvimento
dos canais de intercâmbio entre as co- Para escrever este livro, originalmente
munidades universitárias francesa e bra- uma tese de doutorado em antropologia
sileira e à maior divulgação da cultura defendida na EHESS sob a orientação
brasileira na França. Manuel Palacios de Jean Bazin, Michel Naepels obser-
da Cunha e Melo analisa o campo das vou rigorosamente um princípio meto-
ciências sociais com sofisticadas técni- dológico: nunca usar, no corpo do texto,
cas de análise quantitativa. A partir das o termo “sociedade”. É possível ler nes-
referências bibliográficas de um con- sa aposta a preocupação teórica desen-
junto significativo de teses em antropo- volvida por Jean Bazin e Alban Bensa,
logia, sociologia e ciência política, de- baseada em uma forte crítica do estru-
fendidas em onze centros de ensino e turalismo e do culturalismo, e que tenta
pesquisa do Brasil entre 1991 e 1993, o importar para a pesquisa antropológica
autor constrói um conjunto de diagra- uma postura teórica ligada à filosofia
mas e mapas referidos às linhagens na- analítica da ação.
cionais e estrangeiras e à estrutura das Michel Naepels fez sua pesquisa de
posições dos cientistas nas ciências so- campo no centro-norte da Nova-Cale-
ciais brasileiras. Aparecida Maria Abran- dônia, na costa leste da Grande Terre (a
ches mostra, a partir dos escritos de He- ilha principal). O município de Houaï-
lio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que lou apresenta um condensado de todas
os intelectuais do ISEB se identificavam as características mais óbvias da socie-
com o conceito de intelligentsia, isto é, dade (com perdão pelo uso do termo)
188 RESENHAS

caledoniana: uma terra de colonização história do que como agentes. Uma des-
européia dispersa, baseada na criação colonização dessa história seria possí-
de gado; uma exploração mineira já an- vel? É o que tenta Naepels, tomando em
tiga, dada a riqueza da região em ní- conta fontes orais, e partindo de uma hi-
quel; a presença, desde os anos 1870, pótese que nos faz pensar nos debates
de uma fazenda penitenciária no muni- político-teóricos da escola historiográfi-
cípio; a distância e a importância da es- ca dos subaltern studies: os Kanak não
trada para Nouméa, a capital; a força da permaneceram na postura de coloniza-
implantação das missões. No início do dos passivos, espectadores da história;
século, Houaïlou foi o campo de pesqui- tiveram um papel ativo no processo de
sa privilegiado de Maurice Leenhardt, colonização, seja como intermediários
pastor da religião reformada e etnólo- de acolhimento dos colonos e dos admi-
go, autor do grande clássico etnológico nistradores, seja como os atores princi-
sobre o mundo kanak: Do Kamo. Ape- pais da evangelização da região.
sar do caráter relativamente arbitrário – Para apoiar esta hipótese, Naepels
comentado por Naepels – da escolha do faz referência às análises de A.G. Hau-
campo de pesquisa, em função de limi- dricourt sobre a “civilização do inha-
tes lingüísticos e administrativos, sua ri- me”: segundo Haudricourt, uma das ne-
queza é óbvia. Os conflitos de terra em cessidades da economia kanak pré-co-
Houaïlou não constituem, porém, o ob- lonial era a obtenção da maior varieda-
jeto em si do autor: o que ele nos ofere- de possível de tubérculos (inhame e ta-
ce é uma análise geral das relações so- ro, bases da alimentação kanak) para
ciais kanak, retraçada sob o prisma dos reprodução e clonagem, de modo a pre-
conflitos de terra. venir-se contra as incertezas climáticas.
O livro começa com uma imersão na Essa razão econômica pode ser associa-
história colonial desse município da No- da à freqüência das adoções e dos in-
va-Caledônia. Essa parte não se apre- tercâmbios de crianças na Oceania em
senta como um mero preâmbulo; as geral, assim como à freqüência das nar-
análises históricas retornam regular- rativas kanak do dom da chefia para um
mente até o final do texto, de maneira estrangeiro, configuração que valoriza
tal que torna difícil definir o gênero do muito quem vem do exterior. Seguindo
livro: história ou antropologia? Uma das essa intuição de Haudricourt, e estabe-
características dessa postura teórica é lecendo um vínculo com a famosa inter-
superar esse dilema, que se inscreve, pretação que Marshall Sahlins fez do
afinal, mais na própria história interna contato entre James Cook e os Hawaii,
da academia e das delimitações disci- Naepels propõe a seguinte hipótese: o
plinares do que em diferenças teóricas colonizador e a religião foram integra-
e metodológicas. Histoire de Terres Ka- dos (sem saber) nos caminhos do costu-
nakes pode ser lido também como um me e da aliança kanak.
livro de historiador. A história colonial poderia ser inter-
Como em toda história colonial, a pretada como a passagem do costume à
análise confronta-se com a relatividade lei (e à perspectiva da independência
das fontes disponíveis: sejam estas a kanak socialista). Esses momentos não
administração francesa ou os missioná- são entidades históricas estáveis: são o
rios, o poder do texto escrito está nas que Naepels chama de “épocas subjeti-
mãos dos europeus. Nessas fontes, os vas dominantes”, que servem geral-
Kanak aparecem mais como traças da mente de quadro implícito de análise
RESENHAS 189

nas narrativas orais kanak sobre o fato O caráter “rapsódico” das narrati-
colonial. É essa presença do passado, vas de origem torna impossível preten-
esse papel política e socialmente ativo der reconstituir a verdade sobre a pro-
da história, que Naepels vai investigar. priedade fundiária pré-colonial. Assim,
A importância social do saber histó- o papel do etnólogo deve se restringir a
rico no desenvolvimento dos conflitos compreender as razões sociais e históri-
atuais em Houaïlou deve ser associada cas dessas divergências. Apesar disso,
ao seguinte fato: todos os patronímicos a situação de entrevista e as demandas
kanak são topônimos. Assim, as narra- do etnólogo fazem com que este seja di-
tivas de origem clânica têm um papel retamente envolvido nesse trabalho co-
central na legitimação política e fun- letivo de produção de narrativas, até co-
diária de cada um dos clãs, particular- mo fonte de legitimidade. Disso deriva
mente desde que uma entidade admi- a complexa casuística do anonimato no
nistrativa (a ADRAF ) foi encarregada da texto de Naepels: alguns entrevistados
redistribuição de terras, em 1978. A são citados pelo nome verdadeiro; em
condição que a ADRAF impõe é a ne- outros casos, figuram sob um nome dis-
cessidade de acordo quanto à legitimi- farçado ou um X, para não prejudicar o
dade da pessoa ou da família que vai interlocutor.
reivindicar essa ou aquela terra, donde Todos esses elementos conduzem
as divergências e a concorrência entre Naepels a definir sua posição: o saber
narrativas de origem. Duas caracterís- histórico/etnológico inscreve-se sempre
ticas dessas narrativas devem ser des- em uma conjuntura determinada (tal
tacadas: narrativa foi produzida em tal momen-
A complexidade das reivindicações to, em função da situação social em que
estatutárias possíveis. Trata-se, para o o interlocutor estava envolvido e de
indivíduo diante da ADRAF, do etnólo- seus interesses); o etnólogo está impli-
go ou no quadro de uma preocupação cado nas condições de produção dessas
pessoal, de recuperar as razões históri- narrativas. Conseqüentemente, e con-
cas das alianças ou das tensões atual- tra a antropologia lévi-straussiana, não
mente existentes entre o seu próprio se pode pretender a construção de um
clã e um outro qualquer, de retraçar o saber mitológico descontextualizado. Os
trajeto do seu clã. A guerra, a antropo- mitos de origem devem ser compreen-
fagia e as mudanças freqüentes tor- didos nos seus contextos de produção,
nam-se quase impraticáveis com a or- no seu ser social e político.
dem colonial e a sedentarização força- É a mesma perspectiva que permite
da dos Kanak nas “reserves”; é, prova- a Naepels propor uma análise original
velmente, por isso que as narrativas de do parentesco: a afinidade e a co-resi-
origem se tornaram a forma dominante dência não são mais percebidas como
de formulação e regulação dos confli- princípios estruturantes de uma ordem
tos. Há vários níveis de legitimidade social objetiva, mas como princípios re-
política, inclusive as que foram criadas ferenciais para ações e interpretações
pela administração francesa, como as subjetivas. Do mesmo modo, a segmen-
tribos e seus “chefes administrativos”. taridade deve ser concebida não como
Além disso, depois de 1945, o estabele- uma instituição, mas como uma possibi-
cimento das listas eleitorais enrijeceu a lidade, submetida à ambigüidade da
atribuição dos nomes e criou novas con- identidade política de cada um, em fun-
testações. ção dos vários pertencimentos que se
190 RESENHAS

pode reivindicar: o clã, a casa, a fratria, mento demográfico de alguns linhagens


a tribo, o clã materno etc. Essa indeter- etc.) que fazem com que a reconstrução
minação da ação constitui um dos cen- hipotética dessa ordem pré-colonial se-
tros teóricos da análise antropológica ja inapropriada sem as adaptações ne-
que Naepels propõe; é possível ler em cessárias.
filigrana nos trabalhos dessa linha teó- As medidas de reforma fundiária
rica a distinção, estabelecida por Witt- têm uma outra dimensão: elas possibili-
genstein no Caderno Azul, entre a or- tam aos interessados escapar ao contro-
dem dos motivos (razões) e a ordem das le social local. Como os que migram pa-
causas. Não se pode pressupor os laços ra Nouméa, os que querem instalar-se
que vão ser utilizados por um indivíduo em um sítio próprio podem livrar-se,
em uma determinada situação. Os mo- parcialmente, do peso de relações so-
tivos dos comportamentos conservam ciais tensas que provocam conflitos, bri-
uma dimensão obscura: não se trata de gas, bruxaria, ciúme etc. A recriação do
uma partitura já escrita, nem da reali- costume, com suas finalidades sociais,
zação de uma estrutura por um ator fundiárias e políticas, pode também fun-
mais agido do que agente. A ordem lo- cionar como uma saída individual ou fa-
cal e a ordem do parentesco não for- miliar.
mam princípios estruturantes das rela- A leitura do livro de Naepels pode
ções sociais, mas o quadro de um equi- até deixar uma impressão estranha: a
líbrio de forças, o lugar estrutural do humildade ou o rigor nominalista do au-
desdobramento de interesses divergen- tor (nunca usa entidades essencializa-
tes: poderíamos falar também de uma das como princípios explicativos) fazem
gramática dos conflitos. com que a análise pareça a descrição de
Em 1978, o Estado francês lançou um contexto, mesmo que complexo.
uma política de redistribuição fundiária Sente-se falta de descrições de casos
em favor dos Kanak. Paralelamente, a específicos de conflito ou de criação de
reivindicação fundiária tornou-se tam- consenso, que permitam entender me-
bém uma reivindicação cultural para a lhor como as forças descritas e essa gra-
União Caledoniana e para a Frente de mática dos conflitos se articulam. Mas é
Libertação Nacional Kanak Socialista essa exigência, essa apresentação “ho-
(FLNKS), os dois principais movimentos rizontal” de forças não hierarquizadas,
independentistas kanak. A partir do que permite ao leitor compreender co-
seu estudo da história colonial de Hou- mo se constroem os conflitos sociais ka-
aïlou e das linhas principais de dinâmi- nak. O (re)ordenamento desses fatores
ca social, Naepels oferece um quadro é outra coisa: seria uma tarefa do políti-
geral do que ele chama de “casuística co, que poderia utilizar esse livro, como
fundiária”, da qual se destacam pelo propõe o autor na conclusão, para res-
menos dois elementos: ponder a uma das necessidades atuais
Um dos paradoxos da reivindicação da Nova-Caledônia: criar um direito
fundiária é o seguinte: ela tem por obje- fundiário ad hoc.
tivo o restabelecimento de uma ordem
fundiária que existia antes da criação
colonial das reservas; houve, todavia,
desde então, transformações sociais es-
senciais (desaparecimento de alguns
clãs ou “casas”, ou, ao contrário, cresci-

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