Você está na página 1de 1

Clarice Lispector

(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

O Manifesto da cidade

Por que não tentar neste momento, que não é grave, olhar pela janela? Esta
é a ponte. Este é o rio. Eis a Penitenciária. Eis o relógio. É Recife. Eis o canal.
Onde está a pedra que não sinto? a pedra que esmagou a cidade. Na forma
palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada. Seu último terremoto se
perde em datas. Estendo a mão e sem tristeza contorno de longe a pedra.
Alguma coisa ainda escapa da rosa-dos-ventos. Alguma coisa se endureceu na
seta de aço que indica o rumo de - Outra Cidade.
Este momento não é grave. Aproveito e olho pela janela. Eis uma casa.
Apalpo tuas escadas, as que subi em Recife. Depois a pilastra curta. Estou
vendo tudo extraordinariamente bem. Nada me foge. A cidade traçada. Com
que engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos -
estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa, a
minha, a ponte, o rio, a Penitenciária, os blocos quadrados dos edifícios, a
escadaria deserta de mim, a pedra.
Mas eis que surge um Cavalo. Eis um cavalo com quatro pernas e cascos
duros de pedra, pescoço potente, e cabeça de Cavalo. Eis um cavalo.
Se esta foi uma palavra ecoando no chão duro, qual é o teu sentido? Como
é cavo este coração no peito da cidade. Procuro, procuro. Casa, calçadas,
degraus, monumento, poste, tua indústria.
Da mais alta muralha - olho. Procuro. Da mais alta muralha não recebo
nenhum sinal. Daqui não vejo, pois tua clareza é impenetrável. Daqui não vejo
mas sinto que alguma coisa está escrita a carvão numa parede. Numa parede
desta cidade.

in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.


Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

Você também pode gostar