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Jardins Químicos*

Richard-Emmanuel Eastes1 & Clovis Darrigan2

No começo do século XX, o médico francês Stéphane Leduc pesquisou a


possibilidade de sintetizar seres vivos através da adição de substâncias químicas,
obtendo formas de uma rara variedade. Poderiam elas serem reproduzidas um
século mais tarde? Dois químicos aceitaram o jogo proposto pela La Recherche.

Foto: Stéphane Querbes


As arborescências alaranjadas de cloreto férrico se desenvolvem mais
rapidamente que aquelas de outras substâncias. Este sal deverá, portanto, ser
introduzido por último.

Recriar a vida por adição de sais metálicos: não foi necessário mais do que a
imprensa anglo-saxã para consagrar, em numerosas colunas, Stéphane Leduc.
Este professor de física médica é um verdadeiro toca-em-tudo. Desde do início de
sua carreira, ele dirigiu seus trabalhos sobre os efeitos das correntes elétricas
sobre os organismos, explorou o papel dos íons ... No início do século XX, eis que
ele desenvolve uma teoria sedutora: ele estava convencido que a vida tinha
surgido a partir do encontro de substâncias químicas minerais. No seu laboratório
da escola de medicina de Nantes, ele tenta, então, imitar os seres vivos.
Depositando sais metálicos em soluções de carbonato de potássio, o
“eminente médico francês”, como foi chamado pela Scientific American, obtém
células artificiais “mais reais que as naturais”. Elas são contornadas de uma
membrana semi-permeável (ou osmótica) que deixam passar a água. De um
golpe, as células crescem à olhos nus, podendo alcançar vários centímetros. “E

*
Tradução de Marlise A.V. Araújo
1
Professor de química no Departamento de Estudos Cognitivos da École Normale Superieur,
Paris. Atomes.crochus@ens.fr
2
Mestre de Conferências em química teórica na Universidade de Pau e dos Países d’Adour.
Clovis.darrigan@univ-pau.fr
muito repentinamente [...], explica Leduc, a primeira célula dá origem a uma
segunda [...], esta a uma terceira e assim por diante, gerando um conjunto de
cavidades celulares microscópicas separadas por tabiques osmóticos”. Uma
estrutura análoga, segundo o cientista, a que constitue os seres vivos. “ os
milhões de formas efêmeras devem ter sido formadas assim para gerar a atual
natureza”
Para prová-lo, Leduc se dedicou a misturar todo tipo de sal com soluções
variadas. Suas criações ganharam aspectos de cogumelos, de brotamentos, de
amebas. “Não há, acredito, nenhum espetáculo mais extraordinário e esclarecedor
que este de um crescimento osmótico”, se entusiasma um antigo membro da
Sociedade Real de Medicina, W. Deane Butcher, no seu prefácio para o livro de
Leduc The Mechanisms of Live. “Elas imitam as formas, as cores, as texturas e
mesmo a estrutura microscópica de um crescimento orgânico, de maneira tão
perfeita que derrubam até mesmo os eleitos.”
De fato, para muitos, Leduc esclareceu a natureza e a origem da vida.
“[Seus] modelos, escreveu Evelyn Fox Keller no seu livro Expliquer la vie,
respondendo a uma necessidade amplamente sentida na época, [...]: eles
demonstram que as formas complexas podem ser engendradas por processos
físico-químicos bem identificados.”
Mas seus trabalhos foram rapidamente contestados. Em 1907, Henri Bergson
se contrapôs à Leduc com a sua obra Évolution créatrice. Vinte anos mais tarde,
Édouard Leroy, do Collège de France, escrevia sobre a matéria de suas teorias:
“Não se pode imitar a vida, mesmo de longe. [...] Os efeitos da osmose [não]
agregam mais significação ao problema [do nascimento da vida] que as flores ou
ramos de gelo desenhados sobre as vidraças de uma janela, num dia de inverno.”
As idéias de Leduc foram em seguida varridas por novos conhecimentos sobre a
origem da vida, resultados da química, da astronomia e da genética. Não restaram
que seus estranhos jardins químicos, fotografados em preto e branco.

Quarta-feira, 21 de junho de 2006


No laboratório de Universidade de Pau, nós nos aprontamos para reproduzir,
quase um século depois, as experiências de Leduc. O homem deixou poucas
indicações sobre seu trabalho. De toda a documentação nós nos apoiamos sobre
sua Théorie physico-chimique de la vie et generation spontanées, publicada em
1910.
Nesta obra Leduc conta a forma como ele caracterizou suas primeiras células
osmóticas. É nesta experiência que nós nos atrelamos. Ela consiste em introduzir
numa solução mãe, saturada de silicato de sódio, um sal metálico tal como cloreto
de cálcio. Nós escolhemos utilizar o sal sob sua forma amorfa – Leduc empregou
o termo “fundido” – que nós obtivemos aquecendo o produto comercial hidratado
quase ao seu ponto de fusão, aproximadamente 770oC. Alcançar o ponto da
solução, em contrapartida, é mais árduo: a noção de saturação, assinalada por
Leduc, nos parecia imprecisa. Suas receitas carecem de precisão a qual os
químicos atuais estão acostumados. Quanto às unidades, por vezes, elas não nos
evocam grandes coisas.
Decidimos fazer vários ensaios. Nós introduzimos os sais em uma solução
saturada: ela é muito viscosa, e o crescimento das células se quebra. Numa
solução diluída dez vezes, as células aparecem.... e cedem lamentavelmente.
Finalmente, nós optamos por uma solução saturada diluída cinco vezes e
obtivemos belas células artificiais. Efêmeras, elas findam por progredir, dando
nascimento à arborescências surpreendentes. Nós estamos, ainda, longe dos
“cogumelos” e dos “brotamentos”. É o que nos leva a pensar que Leduc adquiriu,
ao longo de duas décadas, uma maestria prodigiosa para manipular as
substâncias químicas. Será muito difícil para nós adquirir esta sensibilidade em
alguns dias, como será impossível a um pintor iniciante reproduzir a delicadeza de
um véu de Ingres.

Quinta-feira, 22 de junho de 2006


Nós decidimos explorar um segunda faceta do trabalho de Leduc: as
arborescências, tipo de caule que se desenvolve verticalmente. Afim de obter uma
grande variedade de formas e de cores, nós resolvemos testar nossas substâncias
em todas as combinações possíveis. Nós compusemos diferentes variantes da
solução inicial adicionando minerais adjuvantes preconizados por Leduc. Após
indroduzirmos em cada uma delas sais metálicos: cloreto de cobalto, de férro e de
níquel, sulfato de cobre e de manganês, nitrato e acetato de cobre... Nós
obtivemos toda uma gama de resultados, brotamentos negros e contorcidos pelo
cloreto de cobalto multicolorido, e passando com o cloreto de ferro para um laranja
flamejante. Leduc havia compreendido perfeitamente o fenômeno governante das
formações celulares e das arborescentes. Após a introdução do sal metálico na
solução, ele se dissolve e forma uma membrana ao entrar em contato com o
silicato. A célula primordial nascida é minúscula. Semi-permeável, sua membrana
não deixa passar nada além d’água. Ela delimita então dois domínios: uma
solução interior contendo o sal dissolvido, e uma exterior contendo o silicato. Esta
diferença de composição conduz a um fluxo de água do exterior para o interior da
célula, a través da membrana, segundo o fenômeno chamado osmose. A pressão
interna aumenta. A membrana da célula se rompe e depois se refaz rapidamente
um pouco mais longe. A célula cresce. Se a solução exterior é muito diluída, a
célula fica quase esférica e se desenvolve com dificuldade. Dentro de uma
solução mais concentrada, em contrapartida, a célula primordial rapidamente dá
origem a longos prolongamentos:as arborescências.
Por que quase todas elas se projetam rumo ao alto? Porque a célula inicial
tem uma tendência a se romper sobre a parte superior. A solução interna é menos
densa do que a solução externa e a tendência é, então, subir. De outra forma, as
macrografias nos permitem colocar em evidência o papel das bolhas de ar,
formadas sob a influência da luz dos projetores. Elas aceleram o crescimento das
arborescências rumo ao alto, antes de se envergarem algumas vezes brutalmente,
interrompendo o processo. Um parâmetro que Leduc contestava, pois tentava
assentar-se sobre o poder criador da pressão osmótica que “ de todas as forças
físicas, possui o poder de organização mais notável, as faculdades morfogenéticas
mais extensas”.

Sexta-feira, 23 de junho de 2006


O essencial do trabalho está feito mas as variantes ficaram para ser
experimentadas: a adição de substâncias estrangeiras no curso do crescimento,
superposição de “camadas” de solução mãe de diferentes concentrações,
utilização de grânulos formados por diferentes sais metálicos, entre eles ou com
açucar em pó.... Nós abandonamos a idéias de obter o menor pólipo para nos
satisfazer com a infinita diversidade de formas e cores que nós já conseguimos.
Face a este espetáculo efêmero, nós nos interrogamos: o que resta dos
trabalhos de Leduc? A despeito do seus erros e seu entusiasmo ingênuo, nós não
podemos nos impedir de reivindicar para ele uma certa retratação. Pelo tanto que
mostrou formas tão complexas que podem ser sintetizadas por mecanismos físico-
químicos elementares, ele, sem dúvida, contribuiu para fazer avançar o
conhecimento sobre a vida.
Portanto, resta pouco dos traços de sua vida científica. Podemos encontrar o
seu nome em recentes estudos de biomimetismo de materiais inorgânicos, a
coleta de traços de vida fóssil ou extraterrestre. Com conclusões que não lhe
teriam redimido mais! Se apoiando sobre os seus trabalhos, os pesquisadores têm
demonstrado que certas concreções, consideradas até então como fósseis, seriam
provavelmente vestígios de formações minerais osmóticas, de origem....inerte.
R.-E.E. & C.D.

MODO DE FAZER

Para realizar os jardins químicos

Procure uma solução comercial de silicato


de sódio saturada e dilua duas vezes com água
destilada, preferencialmente degaseificada.
Filtre-a sobre um suporte de vidro temperado,
selado e sob aspiração se ela contiver
partículas em suspensão. Depois repasse para
um recipiente de Plexiglas, com altura de 10 a
15 cm.
Deixe repousar a solução por alguns minutos depois introduza nesta solução
pequenos cristais de sais metálicos (CuSO4, Ni(NO3)2, FeCl3, CoCl2, MnSO4), evitando
que eles se depositem muito perto uns dos outros ou que façam mexer o recipiente. Os
cristais dos kits “jardins químicos” comercializados pelos fornecedores de produtos
químicos são perfeitamente convenientes. A natureza dos contra-íons não é determinante
mas as variantes polimórficas e coloridas são obtidas pela substituição de uns pelos
outros. Uma vez o trabalho realizado, contemple.

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