Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
As crises económicas geram dois efeitos. Por um lado, aguçam a criatividade dos
pobres e dos que trabalham para vencer as dificuldades; em contrapartida,
espevitam os neurónios e soltam o verbo dos reaccionários mais convencidos e
fossilizados. Neste último contexto, ouvimos recentemente o bem casado Cavaco
opinar sobre divórcio e o celibatário Dom Policarpo a falar de casamento.
Cavaco e o divórcio
Não nos comove a preocupação do mago das finanças pelos pobres, porque nos
lembramos da sua actuação como primeiro-ministro, quando desbaratou os fundos
comunitários, favoreceu os ricos com as nacionalizações e como incentivou a escola
dos novos-ricos que, agora, vão saltitando, diariamente nas páginas dos jornais
clamando por uma honorabilidade em que só os tansos acreditam.
O brilhante economista dos mercados sabe que existe uma crise económica e que esta
gera desemprego, precariedade (ele até conhece as estatísticas!) mas, talvez não
saiba quantificar a instabilidade emocional, o desgaste psicológico dos milhões de
portugueses que andam por aí, mesmo que empregados.
Como lhe ensinaram que o casamento é um sacramento, custa-lhe perceber que, como
todos os contratos, possa ser tão duradouro quanto o queiram as partes; e talvez
não compreenda que amar e deixar de amar são inerências da natureza humana. Nos
manuais de economia não aprendeu que pode haver mais leviandade na concretização
de um casamento ou união de facto, (que hoje se equiparam) do que no divórcio ou
separação de um casal. Estas separações, por serem normalmente marcadas por
pesados custos emocionais e materiais são objecto de uma ponderação muito maior
que a união de duas pessoas sob um mesmo tecto.
Por detrás do seu sorriso de benevolente superioridade, acreditará Cavaco que uma
família desconhece os impactos económicos decorrentes de um divórcio, no seu tipo
de vida e bem-estar? Qualquer casal conhece esses impactos, independentemente da
conjuntura económica; e conhece-os muito melhor que o professor Aníbal que é
casado com a Dona Maria há décadas!
As pessoas quando decidem divorciar-se fazem aquilo que Cavaco bem conhece, uma
análise custo-benefício, ainda que sem o recurso a modelos matemáticos ou
programas informáticos. Entre esses custos está, sem dúvida, uma perda de bem-
estar e nível de vida, a alteração de uma matriz de relações familiares e
afectivas; e nos benefícios englobam-se (e não é pouco) a finalização de uma vida
de desgaste psicológico ou violência, o poupar dos filhos a essa situação ou, o
início de uma nova vida com outro(a) parceiro(a).
Aliás, o fecundo pensamento cavaquiano não terá alcançado que uma complicação na
potencial obtenção de divórcio constituirá um incentivo para as uniões de facto,
cuja figura não colherá, decerto, o agrado do PR e do estagnado pensamento emanado
da multinacional vaticana.
Ainda dentro da lógica cavaquiana, se o divórcio deve ser combatido para obviar a
situações de miséria, a actuação pro-activa consistirá em fomentar os casamentos.
No âmbito dessa vulgata economicista o casamento seria uma forma de, através da
união de rendimentos e bens, serem aproveitadas as sinergias e ser aumentada a
produtividade de casas, fogões e camas, com o aumento dos seus utilizadores.
Melhor ainda até seria estimular casamentos colectivos, adoptar a poligamia ou a
poliandria para que a produtividade dos equipamentos habitacionais explodisse e
colocasse Portugal em lugares de vanguarda nas estatísticas do Eurostat!
Todos sabemos que nas sociedades maioritariamente muçulmanas (e não é preciso que
vigore a “sharia”) a situação das mulheres não lhes é nada favorável e é
equivalente aquela que as mulheres europeias viveram durante muitos séculos sob o
patrocínio da Igreja Católica e da sua concorrência de raiz cristã. E para que a
situação mude, as mulheres muçulmanas precisam de um desenvolvimento económico que
lhes abra as portas ao trabalho fora de casa e de um menor apoio ocidental aos
regimes autoritários que as regem.
Só que Dom Policarpo não tem autoridade moral para falar dos direitos das
mulheres. As liberdades individuais que as mulheres europeias, por exemplo, hoje
detêm, foram objecto de uma luta secular que se acelerou depois da Segunda Guerra,
com o emprego generalizado fora de casa, a pílula e o acesso à educação. E nessa
luta, a Igreja Católica, em geral e a portuguesa em particular, só estiveram
presentes do outro lado da barricada, contra todas as manifestações de emancipação
das mulheres. E ainda hoje, a Igraja Católica não aceita o divórcio (que existe
legalmente nos países islâmicos), a contracepção, a IVG, as relações pré-
matrimoniais, a masturbação, o sacerdócio das mulheres…
Aliás, o Cristianismo na sua base mais profunda que é a Bíblia considera a mulher
como uma emanação de uma costela do homem, frisando assim o seu papel subalterno
e, (apetece parodiar) fruto da benevolência divina perante um reivindicativo Adão,
cansado de perseguir as peludas macacas… Se Dom Policarpo tivesse vivido antes do
século XVIII defenderia afincadamente que a mulher não tinha alma (o que quer que
isso seja, para homens ou mulheres) e enviaria para a fogueira quem o
contrariasse.
Bem, voltando atrás, o papel das mulheres nas sociedades islâmicas não é
invejável. E na maioria dos outros países? Na África não islâmica as mulheres são
também objecto de um machismo exacerbado, como na América Latina, na Índia, na
Ásia oriental. O problema é que Dom Policarpo se inscreve na histeria anti-
islâmica alimentada pela administração Bush e na senda estratégica definida por
Huntington.
Que um casamento é acto que merece ponderação, qualquer que seja a convicção
religiosa dos pretendentes a esse acto, toda a gente sabe. Até a ancestral
sabedoria popular sintetizou esse concelho de prudência com um “antes que cases,
vê o que fazes”. Dispensam-se, pois os conselhos de Dom Policarpo e da instituição
em que se enquadra.
WWW.ESQUERDA_DESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT