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TV DESTINO

14/04/2008
Central Destino de Produção Cap. 30

FOGO SOBRE TERRA


Novela de
Walter de Azevedo

Inspirada no original de
Janete Clair
Colaboração de
Eduardo Secco

Escrita por
Walter de Azevedo
Likem Queiróz

Direção
Claudio Boeckel e Marco Rodrigo

Direção Geral
Luiz Fernando Carvalho

Núcleo
Luiz Fernando Carvalho
Personagens deste capítulo

CHICA BRISA PADRE LUÍS


PEDRO ANDRÉ HILDA
BÁRBARA JULIANO IVONE
HEITOR ESTRADA DE FERRO VINÍCIUS
LUCENA ÔNIBUS ARTHUR
DIOGO FRIDA LEONOR
EDUARDA ZÉ MARTINS MUNDICA
RITA DONANA

Atenção
“ Este texto é de propriedade intelectual exclusiva da TV DESTINO LTDA e por conter informações confidenciais, não
poderá ser copiado, cedido, vendido ou divulgado de qualquer forma e por qualquer meio, sem o prévio e expresso
consentimento da mesma.No caso de violação do sigilo, a parte infratora estará sujeita às penalidades previstas em
lei e/ou contrato.”
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 2

CENA 01. FAZENDA DE HEITOR. SALA. INTERIOR. TARDE

CONTINUAÇÃO. CHICA OBSERVA BÁRBARA DANDO UM BEIJO NO ROSTO DE


PEDRO. CORTE PARA OS DOIS NO JEEP. PEDRO ESTÁ SEM GRAÇA. BÁRBARA
PERCEBE

BÁRBARA — O que foi? Ficou com vergonha.

PEDRO — Não. Não sei. (p) É que a senhora nem me conhece direito e já me dá
um beijo. Um beijo com todo o respeito, é claro.

BÁRBARA — É claro.

PEDRO — É que aqui em Divinéia a gente... Num tá muito acostumado com


essas coisa.

BÁRBARA — Que coisas? Beijar?! Vocês não beijam ninguém aqui em Divinéia?!
Mas então deve ser muito chato viver aqui.

PEDRO RI E BÁRBARA TAMBÉM.

PEDRO — Não é isso, não, dona Bárbara. É que...

BÁRBARA — Eu sei. Entendi o que você quis dizer. Mas eu sou assim mesmo,
Pedro. Sou expansiva, efusiva. E você mereceu esse beijo de
agradecimento.

PEDRO — Se a senhora tá dizendo?

BÁRBARA — Me ajuda a sair do jeep?

PEDRO — Claro.

PEDRO SAI DO JEEP E AJUDA BÁRBARA A DESCER. COMO ESTÁ MACHUCADA, ELA
VAI SE APOIANDO NELE, ABRAÇADA. CORTE PARA CHICA, PARADA À DISTÂNCIA E
VENDO TUDO. ESTÁ FURIOSA.

CHICA — Mas óia só que sujeitinha sem vergonha! Oferecida! Loira azeda dos
inferno! (p) E dá só uma espiada na cara de bocó do ôtro! Só tá fartando
babá em cima dela!

PEDRO AJUDA BÁRBARA A SUBIR A ESCADARIA DO ALPENDRE DA CASA E OS DOIS


ENTRAM.

CHICA — Mas se eles acha que isso vai ficá assim, tão é muito do enganado!
Inté parece que Chica Martins nasceu pra leva chifre! Tá pra nascê o
hómi que vai fazê uma coisa dessa!
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 3

CHICA AMEAÇA ANDAR NA DIREÇÃO DA FAZENDA, MAS O JEEP TRAZENDO


LUCENA E HEITOR CHEGA.

HEITOR — Pára, Lucena.

LUCENA PARA O JEEP AO LADO DE CHICA, QUE FICA OLHANDO SURPRESA.

HEITOR — Chica Martins.

CHICA ENCARA HEITOR COM ALTIVEZ.

CHICA — Heitor Gonzaga.

HEITOR SORRI NUMA DEMONSTRAÇÃO, PARA O PÚBLICO, DE QUE ACHA


ENGRAÇADA ESSA ALTIVEZ.

CORTA PARA

CENA 02. FAZENDA DE HEITOR. SALA. INTERIOR. TARDE

PEDRO AJUDA BÁRBARA A SENTAR NO SOFÁ. DIOGO, EDUARDA E RITA ESTÃO


PRÓXIMOS.

DIOGO — É melhor você esticar a perna.

EDUARDA — Deixa eu colocar essa almofada.

EDUARDA COLOCA A ALMOFADA NO SOFÁ E BÁRBARA ESTICA A PERNA SOBRE


ELA.

BÁRBARA — Pessoas, eu só torci o pé. Não é pra ficar me paparicando desse jeito.

RITA — Eu vô buscá um suco pra senhora.

BÁRBARA — Isso porque eu disse que não era pra me paparicar.

RITA — Já vorto.

RITA SAI.

DIOGO — Você não quer que eu te leve a outro médico? Deve ter uma cidade
maior aqui por perto. Pedro, qual é a cidade mais próxima?

PEDRO — É Araguaiana.

DIOGO — Amanhã de manhã....

BÁRBARA — Diogo, eu tô ótima. O curandeiro da vila falou que foi só um entorse.


Nem tá doendo tanto. É só ficar um pouco em repouso, o que é
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 4

praticamente impossível para essa loira que vos fala, que vai ficar tudo
bem.

PEDRO — Diogo, ocê póde ficá tranquilo. Dr Pirillo é bom médico.

DIOGO — Eu não estou duvidando.

BÁRBARA — Ele me atendeu muito bem. E o Pedro foi um amor de ter ido até lá
comigo e ainda esperado pra me trazer de volta.

PEDRO — Num fiz nada demais. (p) Agora, se ocês me derem licença, eu tenho
que cuidar da vida.

BÁRBARA — De jeito nenhum! Você vai ficar aqui e tomar um lanche com a gente.

PEDRO — Imagina, dona Bárbara. Num precisa.

BÁRBARA — Claro que precisa! E nem tente recusar!

PEDRO FICA SEM SABER O QUE DIZER.

PEDRO — Bom... Se a senhora faz questão.

BÁRBARA — Eu faço.

PEDRO E BÁRBARA SORRIEM UM PARA O OUTRO. EDUARDA PERCEBE QUE


BÁRBARA ESTÁ INTERESSADA NO PEÃO.

CORTA PARA

CENA 03. FAZENDA DE HEITOR. EXTERIOR. TARDE

CONTINUAÇÃO DA CENA 01. CHICA E HEITOR SE ENCARANDO. LUCENA NO


VOLANTE DO JEEP.

HEITOR — Você é a última pessoa que eu esperava encontrar por aqui, Chica
Martins.

CHICA — Pra ocê vê como a vida surpreende nóis.

HEITOR RI.

HEITOR — Continua a mesma. Não mudou nada. A mesma Chica Martins


desaforada de sempre.

CHICA — E ocê queria o quê? Que eu tivesse virado uma corderinha que fala
amém pra tudo?

HEITOR PARA DE SORRIR E FICA SÉRIO.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 5

HEITOR — O que eu queria mesmo, era que você tivesse encontrado um outro
caminhoneiro qualquer e sumido de vez por esse mundo.

CHICA FICA SEM SABER O QUE DIZER. HEITOR, DE CERTA FORMA, TEM O PODER DE
INTIMIDÁ-LA, APESAR DE ELA FAZER DE TUDO PARA NÃO DEMONSTRAR.

CHICA — Num é tudo que a gente qué nessa vida, que consegue, Heitor
Gonzaga. Nem mesmo ocê.

HEITOR — Isso é o que você pensa, menina. (p) O que você quer aqui na minha
fazenda?

CHICA — Eu... Eu... Eu vim aqui prá falá com Pedro.

HEITOR — Pedro Azulão. O seu namorado.

CHICA — É.

LUCENA — Chica, ocê sabe que aqui é o lugar de trabalho do Pedro, e que...

HEITOR — Deixa, Lucena. Hoje é domingo. É dia de descanso. (p) Você pode ir
procurar o seu namorado, Chica Martins. (p) Eu deixo.

CHICA OLHA PARA HEITOR COM RAIVA E SOBE NA CHARRETE.

CHICA — Eu vô embora que ganho mais. Num me fartava mais nada nessa
minha vida. Tê que agüenta Heitor Gonzaga!

CHICA VAI EMBORA COM A CHARRETE E HEITOR RI.

HEITOR — Essa moça é abusada demais. Sabe que eu me divirto com o jeito
dela? Adoro ficar provocando até ela explodir.

LUCENA — É, mas tem arguma coisa estranha nisso aí.

HEITOR — Por quê?

LUCENA — Chica num costuma aparecê por aqui. Quase nunca vem procurá
Pedro. Deve de tê acontecido arguma coisa.

HEITOR — Lucena, se é ou não importante, pra mim não faz a menor diferença.
Tenho muita coisa na minha cabeça pra perder meu tempo pensando em
Chica Martins. Toca em frente.

LUCENA — Sim senhor, patrão.

LUCENA TOCA O JEEP EM FRENTE.

CORTA PARA
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CENA 04. CASA DE JULIANO. EXTERIOR. TARDE

BRISA VEM CAMINHANDO PELA BEIRA DO RIO, PRÓXIMA À CASA DE JULIANO.


ANDRÉ SAI DA CASA INTEMPESTIVAMENTE, SEGUIDO POR JULIANO.

ANDRÉ — É assim que vai ser daqui pra frente. O senhor aqui e eu bem longe.
Vou esquecer que tive um pai. (p) Vou esquecer que tive o senhor como
pai, até porque, nunca foi. Meu pai é o Pedro! Ele que cuidou de mim!

JULIANO — Ocê faça isso! Faça isso e num me apareça mais por aqui! Na minha
vida num têm mais lugar pra essas coisa.

ANDRÉ — Essas “coisas” sou eu. É isso mesmo que eu sempre fui pro senhor!
Não se preocupe. O senhor nunca mais vai olhar pra minha cara, Beato
Juliano! Nunca mais!

ANDRÉ SAI E PASSA POR BRISA, QUE ESTÁ SURPRESA COM A BRIGA.

BRISA — André, o quê...

ELE PASSA POR ELA E VAI EMBORA. BRISA CORRE ATÉ O CASEBRE, DE ONDE
JULIANO OBSERVA O FILHO IR EMBORA.

BRISA — Beato, mas que doidêra é essa? Por que o André saiu daqui brabo
desse jeito?

JULIANO — Vai atrás dele, Brisa. André tá nervoso. Conversa com ele.

BRISA — Eu?!

JULIANO — É. André tá precisando de um ombro pra desabafá. Vai atrás dele. Faz
isso por mim.

BRISA — Tá. Tá bão. Eu vô.

JULIANO — Me faça mais um favor. (p) Num falá pra ele que eu lhe mandei. Num
quero que ele saiba.

BRISA CONCORDA COM UM MOVIMENTO DE CABEÇA E DEPOIS SAI. JULIANO,


TRISTE, ENTRA NO CASEBRE.

CORTA PARA

CENA 05. CASA DE JULIANO. INTERIOR. TARDE

Sonoplastia: “AI QUEM ME DERA” – CLARA NUNES. JULIANO ENTRA CABISBAIXO


NO CASEBRE. ANDA UM POUCO PERDIDO, DEPOIS OLHA PARA UMA PEQUENA
GRAVURA COM A IMAGEM DE JESUS CRISTO PRESA NA PAREDE. O BEATO ABRE A
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GAVETA, APANHA UMA VELA E A ACENDE EM CIMA DE UMA PEQUENA MESA QUE
FICA DEFRONTE À GRAVURA, DEPOIS AJOELHA-SE.

JULIANO — Me perdôa, meu pai. (p) Eu sei que vivo pedindo isso. Conheço os
meus erro e também sei que esse talvez tenha sido quase tão ruim quanto
o outro. (p) Eu nunca quis fazê o meu André sofrê. Foi por isso que esses
anos todo eu fiquei longe, fiquei distante dele. (p) Acalma o coração do
meu menino. Faz... Faz com que ele esqueça de mim. Faz ele vivê a vida
dele. Faz ele sê feliz. Só num deixa ele sabê. Ele num merece sofrê ainda
mais. Que seja eu que carregue essa dor e não ele. Dá o sofrimento do
meu filho pra mim. Pra mim.

EMOCIONADO, JULIANO COMEÇA A CHORAR. O CHORO, AOS POUCOS, SE TORNA


COMPULSIVO. A CAM VAI SE AFASTANDO, ATÉ SAIR PELA JANELA, AINDA
FOCALIZANDO O BEATO AJOELHADO E CHORANDO.

CORTA PARA

CENA 06. FAZENDA DE JULIANO. SALA. INTERIOR. TARDE

BÁRBARA, EDUARDA, PEDRO E DIOGO CONVERSAM ANIMADOR. RITA ENTRA.

RITA — Dá licença?

BÁRBARA — O que foi, Rita?

RITA — Só pra avisá que tá quase tudo pronto. Se ocês quisé já pode ir pra
sala de jantar pra eu servi a merenda.

BÁRBARA — Se alguém me ajudar a levantar.

DIOGO — Eu ajudo.

DIOGO AJUDA BÁRBARA A SE LEVANTAR. HEITOR E LUCENA ENTRAM.

HEITOR — O que é isso? Vocês fazem uma festa e nem me chamam?

BÁRBARA OLHA ESPANTADA PARA O PAI E SORRI. ELE RETRIBUI. CLOSE NO ROSTO
DE PEDRO, QUE MOSTRA NÃO TER GOSTADO DA CHEGADA DE HEITOR, E NO DE
PREOCUPAÇÃO DE EDUARDA.

CORTA PARA

CENA 07. DIVINÉIA. EXTERIOR. TARDE

Sonoplastia: “TREM DAS SETE” – RAUL SEIXAS. TOMADA AÉREA DAS MONTANHAS
MOSTRANDO O TREM CRUZANDO A PLANICE E SOLTANDO SUA FUMAÇA BRANCA.
O GADO CORRE, ASSUSTADO COM O BARULHO. ALGUMAS MULHERES E CRIANÇAS
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 8

QUE EXECUTAM SUAS TAREFAS DIÁRIAS À BEIRA DO JURAPORI OLHAM E


ACENAM.

CORTA PARA

CENA 08. DIVINÉIA. PRAÇA. EXTERIOR. TARDE

A MÚSICA DA CENA ANTERIOR CONTINUA. ESTRADA DE FERRO PASSEIA PELA


PRAÇA COMENDO PIPOCA JUNTO COM ÔNIBUS. DONA FRIDA SAI DO HOSPITAL E
VÊ OS DOIS.

FRIDA — (Chamando) Estrada! Estrada de Ferro!

A MENINA OUVE E ACENA PARA FRIDA.

FRIDA — Venha cá, por favor,

ESTRADA E ÔNIBUS VÃO ATÉ FRIDA.

ESTRADA — Oi, dona Frida. Tudo bom?

FRIDA — Infelizmente não, minha querida.

ESTRADA — O que foi que aconteceu?

FRIDA — Bem... Será que você poderia me fazer um favor?

ESTRADA — Claro.

FRIDA — Peça para a sua mãe vir até o hospital. Diga que eu preciso muito falar
com ela.

ESTRADA — Quer que eu vá agora?

FRIDA — Por favor.

ESTRADA — Pode deixar, dona Frida. Já tô indo.

FRIDA — Obrigada, meu bem.

FRIDA VOLTA PARA DENTRO DO HOSPITAL.

ÔNIBUS — Aconteceu arguma coisa, Estrada?

ESTRADA — Acho que sim. Nunca vi dona Frida com essa cara. (p) Vamo pra casa.
Tenho que dá o recado pra mãe.

CORTA PARA

CENA 09. FAZENDA DE HEITOR. SALA. INTERIOR. TARDE


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 9

CONTINUAÇÃO DA CENA 06. TODOS AINDA ESTÃO OLHANDO SURPRESOS PARA


HEITOR.

HEITOR — Mas que recepção é essa? Ninguém fala nada?

BÁRBARA — Pai, eu queria fazer uma daquelas cenas bem bregas em que a
mocinha sai correndo e gritando :”Papai! Papai!”. Acontece que o meu
pé não deixa.

HEITOR PERCEBE QUE A FILHA ESTÁ MACHUCADA.

HEITOR — O que aconteceu com você, minha filha?

DIOGO — Bárbara foi andar à cavalo e o bicho disparou.

BÁRBARA — Eu, literalmente, caí do cavalo.

HEITOR SE APROXIMA, PREOCUPADO.

HEITOR — Mas você já foi ao médico? Viu se não aconteceu mais...

BÁRBARA — Pode ficar tranquilo, Dr Heitor. A sua filha está inteira. Já fui ao
médico e ele falou que foi só uma torção.

HEITOR — Que médico?

DIOGO — O médico aqui de Divinéia.

HEITOR — Talvez seja melhor nós irmos até Cuiabá. Eu mando preparar o avião
e logo nós estamos lá.

BÁRBARA — Não precisa, pai. Eu tô bem. Foi mais o susto mesmo. Aliás, o Pedro
foi um herói. Pegou o cavalo dele e sai correndo atrás de mim.

HEITOR OLHA PARA PEDRO SEM GOSTAR DO QUE OUVIU.

HEITOR — O Pedro?

BÁRBARA — É. Me socorreu, levou ao médico. Foi um verdadeiro anjo.

HEITOR — Se é assim... Muito obrigado, Pedro.

PEDRO — Não foi nada, seu Heitor.

BÁRBARA — E na hora que o senhor chegou nós estávamos indo tomar um lanche
pra comemorar a permanência da loira maravilhosa aqui, nesse mundo
tão sem graça.

HEITOR — Tem certeza de que não quer mesmo ir para Cuiabá?


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 10

BÁRBARA — Absoluta.

HEITOR — Então... Vamos ao lanche porque eu também estou com fome por
causa da viagem.

TODOS COMEÇAM A SE ENCAMINHAR PARA A SALA DE JANTAR, MENOS PEDRO,


QUE VAI EM DIREÇÃO À PORTA. BÁRBARA, QUE ESTÁ SENDO AJUDADA POR
HEITOR, PERCEBE.

BÁRBARA — Pedro, aonde você vai?

PEDRO — Eu tô indo pra minha casa, dona Bárbara.

BÁRBARA — Tá doido? Você vai tomar lanche com a gente.

PEDRO — É melhor não. Eu tenho umas coisa pra fazê em casa. Fica pra uma
próxima vez.

BÁRBARA — Mas Pedro...

HEITOR — Deixa ele, Bárbara. Não ouviu o rapaz falando que tem coisa pra
fazer?

PEDRO — Ocês tenham uma boa tarde.

PEDRO SAI.

BÁRBARA — Mas ele tinha concordado.

LUCENA — Pedro é assim mesmo, dona Bárbara. É de veneta.

HEITOR — Vamos tomar o lanche.

SEGUEM PARA A SALA DE JANTAR, MENOS LUCENA.

CORTA PARA

CENA 10. FAZENDA DE HEITOR. EXTERIOR. TARDE

PEDRO SAI DA CASA DA FAZENDA MUITO IRRITADO.

PEDRO — O que esse peste desse homem veio fazê aqui? Devia de tê ficado lá
pra São Paulo. Mais um pra arreliá a minha vida! Mais um!

CORTA PARA

CENA 11. BEIRA DO JURAPORI. EXTERIOR. TARDE

ANDRÉ ANDA RAPIDAMENTE EM DIREÇÃO AO JEEP. BRISA CORRE ATRÁS,


TENTANDO ALCANÇÁ-LO.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 11

BRISA — (Chamando) André! André!

ELE PARA E OLHA PARA TRÁS E ASSIM ELA CONSEGUE CHEGAR ATÉ ANDRÉ. ESTÁ
CANSADA.

BRISA — (Ofegante) Ocê anda rápido demais da conta.

ANDRÉ — Eu não vi que você estava atrás de mim. Desculpe.

BRISA — Num tem pobrema.

ANDRÉ — Aconteceu alguma coisa? Por que você estava atrás de mim?

BRISA — Isso sô eu que lhe pergunto. Ocê saiu desembestado da casa de seu
pai. Ocês brigaram, foi?

ANDRÉ — É. Brigamos sim. Você conhece o beato Juliano, Brisa. É teimoso que
nem uma mula. Empacado! E parece que tá ainda pior! (p) Eu fui até lá
pra ter uma conversa com ele, tentar resolver as pendências que nós
temos, mas como sempre, as coisas acabaram seguindo por outro rumo.
(p) Mas isso é problema que eu mesmo tenho que resolver. Deixa pra lá.

BRISA — André, eu quero ajudá ocê. Conversa comigo. Quem sabe eu num
posso fazê arguma coisa? (p) A gente se conhece há tanto tempo, num é?
Pode confiá em mim.

ANDRÉ SE ACALMA COM AS PALAVRAS DE BRISA.

ANDRÉ — Eu confio em você, Brisa. É melhor a gente ir pro carro. Você ainda
tá cansada de correr atrás de mim. Lá a gente conversa melhor.

BRISA — É bão memo. Eu tô colocano os bofe pra fora.

ANDRÉ E BRISA ANDAM EM DIREÇÃO AO CARRO.

CORTA PARA

CENA 12. CASA DE ZÉ MARTINS. EXTERIOR. TARDE

ZÉ ESTÁ SENTADO NA VARANDA DA CASA FUMANDO UM CIGARRO DE PALHA.


CHICA CHEGA DE CHARRETE E DESCE FURIOSA.

CHICA — Porcaria de vida! Porcaria de gente dessa cidade!

CHICA PASSA POR ZÉ.

ZÉ MARTINS — O que foi que aconteceu, Chica?

CHICA — Tudo, pai! Tudo!


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 12

CHICA ENTRA NA CASA BATENDO A PORTA.

ZÉ MARTINS — Uai! Por que essa menina tá assim?

ZÉ VAI ATRÁS DE CHICA.

CORTA PARA

CENA 13. CASA DE ZÉ MARTINS. SALA. INTERIOR. TARDE

CHICA ENTRA E COMEÇA A JOGAR AS ALMOFADAS NA PAREDE.

CHICA — Loira Vagabunda!

ZÉ MARTINS ENTRA.

CHICA — Peão sonso! Véio mau caráter!

CHICA APANHA O ABAJUR PRA JOGAR NA PAREDE.

ZÉ MARTINS — Pára já com isso, Chica Martins! Vai acaba com a casa toda!

CHICA — Eu preciso quebrá arguma coisa senão eu morro!

ZÉ MARTINS — Então ocê dê com a cabeça na parede pra vê quar das duas quebra
primeiro.

CHICA — Pai!

ZÉ MARTINS — Me dá o abajur.

ZÉ MARTINS TIRA O ABAJUR DA MÃO DE CHICA E O COLOCA NO LUGAR.

CHICA — Isso é coisa que se diga pra uma filha?

ZÉ MARTINS — Pra uma filha que tá querendo quebrá a casa toda, é sim! (p) Será que
ocê póde se acarmá e me dizê o que foi que aconteceu pra lhe deixá
arreliada desse jeito?

CHICA SE SENTA.

ZÉ MARTINS — Quem é o peão sonso mais o véio mau caráter que ocê tava falano?

CHICA — Ainda tem a loira vagabunda.

ZÉ MARTINS — Quem é essa?

CHICA — É uma safada, sem vergonha, que tava agarrano o Pedro! O peão
sonso!
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 13

ZÉ MARTINS — Agarrano o Pedro? Mas agarrano como?

CHICA — Desse jeitinho memo que o senhor tá imaginando! Com direito a


beijinho na bochecha e tudo! E ele lá, com aquela cara de bobo, todo
facêro!

ZÉ MARTINS COMEÇA A RIR.

CHICA — Pai, o senhor não ri que isso é coisa séria!

ZÉ MARTINS — Descurpa. Me conta direito essa história.

CHICA — Fui até a fazenda de Heitor Gonzaga pra vê se encontrava o Pedro e


quando cheguei lá, vi ele com a tal da loira vagabunda no jeep. Aí ela
deu um beijo na cara de pau dele! Eu devia de tê ido inté lá e arrancado
os cabelo dela na unha, pra aprendê a num buli com o namorado das ôtra.

ZÉ MARTINS — E ocê num fez isso?

CHICA — Não.

ZÉ MARTINS — Tô lhe desconhecendo, Chica. Não que eu ache que ocê devia de bate
na moça, mas do jeito que ocê é.

CHICA — Num bati porque chegô o ôtro. O véio mau caráter.

ZÉ MARTINS — E quem é esse?

CHICA OLHA SÉRIA PARA O PAI.

CHICA — Heitor Gonzaga.

REAÇÃO SURPRESA DE ZÉ.

ZÉ MARTINS — Ocê tá quereno me dizê que...que Heitor Gonzaga tá aqui em


Divinéia?

CHICA — Tá. Em carne, osso e ruindade.

ZÉ MARTINS SE SENTA.

ZÉ MARTINS — Mas o que será que esse peste veio fazê aqui?

CHICA — Num é de hoje que tão falano que ele ia passa uns tempo aqui por
Divinéia. Pois é. O hóme chegô.

ZÉ MARTINS — Será que Pedro já sabe disso?

CHICA — Deve de sabê. Tá lá enfiado na casa do peste junto com a piranha.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 14

ZÉ MARTINS — É. Toda vez que esse aí aparece por aqui, acontece um monte de coisa
ruim. Boa coisa ele num veio fazê.

CORTA PARA

CENA 14. DIVINÉIA. SORVETERIA. EXTERIOR. TARDE

BRISA E ANDRÉ SENTADOS NA SORVETERIA DA PRAÇA CONVERSANDO.

ANDRÉ — Brisa, tudo o que eu mais quero é ser amigo do meu pai. Recuperar o
tempo que nós perdemos no passado. Mas ele não deixa, parece que não
quer que a gente se aproxime. (p) Eu sei que somos pessoas diferentes, e
que eu passei muito tempo afastado, só que agora eu estou disposto a
assumir o papel de filho, só que pra isso ele tem que se permitir ser meu
pai, o que não acontece. Nunca aconteceu! E pra completar, ele sente um
carinho muito grande pelo Pedro, um carinho que ele nunca sentiu por
mim. É como se eu fosse o filho adotado, e Pedro fosse o filho dele de
verdade. Não tô querendo culpar o Pedro por isso, mas a verdade é que
eu não consigo mesmo entender.

BRISA — André, eu conheço o beato Juliano. Ele é um pouco cabeça dura.

ANDRÉ — Um pouco?!

BRISA SORRI.

BRISA — Tá certo. Ele é muito cabeça dura, mas no fim acaba cedendo, é só ter
um pouquinho de calma. A verdade é que ele num tava esperano ocê
aparecê por aqui. Nem ele e nem ninguém. De repente ocê chega e tudo
vira de cabeça pra baixo.

ANDRÉ — Mas eu não fiz nada!

BRISA — E nem eu tô falano que fêz. O que eu tô dizeno é que ocê chega, ele
toma aquela surra. É muita coisa aconteceno ao mesmo tempo. Beato já
tem aquele jeitão. É muita coisa pra cabeça dele. (p) Me escuta, André.
Tá tudo muito fresco, muito novo. Daqui a um tempo ocês vão consegui
se entendê. Eu tenho certeza disso. Agora, o que num póde é ocê também
fica bateno de frente com ele o tempo todo. Aí a coisa complica!

ANDRÉ OLHA PARA A BRISA E DEPOIS SORRI.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 15

BRISA — Do que é que ocê tá rino? Eu falei arguma bestêra?

ANDRÉ — Claro que não. É que você não mudou nada.

BRISA — Não?

ANDRÉ — Não. O mesmo jeito doce. A mesma paciência.

BRISA SORRI ENCABULADA.

BRISA — Assim ocê vai me deixá sem graça.

Sonoplastia: “IMPOSSÍVEL ACREDITAR QUE PERDI VOCÊ” – SYMONY. OS DOIS SE


OLHAM POR ALGUM TEMPO, MAS BRISA FOGE DOS OLHOS DE ANDRÉ.

BRISA — Ocê fala de mim, mas eu tenho certeza que também continua sendo o
mesmo bom moço de sempre. Com o coração do tamanho do mundo.

ANDRÉ — O mesmo bobo de coração mole de sempre.

BRISA — Ocê num é bobo.

ANDRÉ — Imagina se fosse.

OS DOIS RIEM E NOVAMENTE OS OLHOS SE CRUZAM. FICAM ASSIM POR UM


TEMPO.

ANDRÉ — A gente até namorou.

BRISA BAIXA A CABEÇA.

BRISA — É. Foi sim.

ANDRÉ — Sabe que voltar pra Divinéia, rever a cidade, rever você. Tudo isso me
fez ver como eu gostava da vida que levava. (p) Foi uma das melhores
épocas da minha vida. A gente só dá mesmo valor às coisas depois que
elas vão embora.

ANDRÉ SEGURA A MÃO DE BRISA CARINHOSAMENTE. ELE FICA PERPLEXA E


TORNA A OLHAR PARA ELE. SEU ROSTO DEVE EXPRESSAR UM MISTO DE
SURPRESA E FELICIDADE.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 16

ANDRÉ — Você é uma pessoa muito especial, Brisa. É muito bom saber que eu
ainda posso contar com a sua amizade.

BRISA SORRI COM CERTA TRISTEZA.

BRISA — É bom sabê que eu também tenho a sua amizade.

ANDRÉ SORRI E DEPOIS OLHA PARA O RELÓGIO.

ANDRÉ — Brisa, nem vi o tempo passando. Preciso voltar pra fazenda. Quer que
eu te deixe em casa?

BRISA — Não. Eu tava ino vê o seu pai. Acho que ainda vô dá uma passada lá.

ANDRÉ — Eu te deixo lá perto.

BRISA — Carece não. Eu vô andano. Num é tão longe.

ANDRÉ — Tem certeza?

BRISA — Tenho sim.

ANDRÉ E BRISA SE LEVANTAM.

ANDRÉ — Bom, então... Então tchau.

BRISA — Tchau procê também.

ANDRÉ VAI ATÉ O CARRO, ENTRA, ACENA E DEPOIS VAI EMBORA. BRISA
ACOMPANHA TUDO. DEPOIS QUE O RAPAZ SAI, O SORRISO DESAPARECE DE SEU
ROSTO.

BRISA — Brisa, sua besta! Quando é que ocê vai tomá coragem e dizê que ainda
gosta dele? Quando?

CORTA PARA

CENA 15. IGREJA. SACRISTIA. INTERIOR. TARDE

DONANA E O PADRE LUÍS CONVERSAM.

DONANA — Padre, o senhor pode passá a semana intêra com esse falatório pra
cima de mim que num vai adiantá de nada.

PADRE LUÍS — Mas Donana...

DONANA — Num têm mais, Padre. Num têm mais. Num adianta que eu num vô
concordá com o que aquela lá tá quereno. Num vô. Num tá certo ela
chegá e querê manda em tudo.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 17

PADRE LUÍS — Mas o projeto dela não é ruim. Têm muitas coisas boas.

DONANA — Pode tê. Num tô duvidano. O poblema é que ela qué manda. Qué bota
o bedelho em tudo e isso num é certo. Num é certo com nenhuma das
muié que a vida intêra ajudaram na quermesse enquanto a baronesa lá
ficava com a bun...

DONANA OLHA PARA A IMAGEM DA SANTA E SE BENZE.

DONANA — Ficava com o trasêro sentado lá na casa dela.

PADRE LUÍS — Eu sei, mas...

DONANA — Padre, será que o senhor num vê que aquela cobra surucucu só tá
quereno aparecê? Ela num tá nem aí pra Santa! O que aquela lá qué é
aparecê! Aparecê e arreliá eu, Chica, Brisa, Nara, Dona Frida e todo
mundo que sempre colocô a mão na massa.

PADRE LUÍS — Donana, eu peço que a senhora use de seu bom senso. Sabe com a
dona Hilda é. Daqui a pouco ela esquece isso. Vamos deixar as coisas do
jeito que estão. Aposto que na semana que vem ela nem se lembra mais
dessa quermesse.

HILDA ENTRA.

HILDA — Por acaso o senhor está me chamando de esclerosada?

O PADRE SE SURPRRENDE COM A CHEGADA DE DONA HILDA.

PADRE LUÍS — Dona Hilda?

HILDA — Eu mesma. Quer dizer que o senhor acha que eu vou me esquecer da
quermesse?

PADRE LUÍS — Não foi bem isso o que eu disse.

HILDA — Foi sim! Eu posso ser velha, mas ainda ouço muito bem. Além de
esclerosada, me chama de surda. Abusado!

PADRE LUÍS — Dona Hilda...

HILDA — Só se eu fosse uma completa beócia pra esquecer da quermesse...e da


Santa!

HILDA OLHA PARA A IMAGEM DA SANTA E SE BENZE. DONANA FAZ UMA


EXPRESSÃO DE QUEM NÃO ACREDITA NA FÉ DE HILDA.

DONANA — Tava demorano pra essa daí chegá.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 18

HILDA — Então quer dizer que a parteira velha já veio até a igreja pra ficar
fazendo fofoquinha? Pra ficar jogando o padre contra mim?

DONANA — E desde quando arguém precisa de fazê isso? Como se as pessoa num
lhe conhecesse.

PADRE — Senhoras...

DONANA — Eu vim aqui só pra alertá o Padre que essas mudança aí que ocê tá
fazeno, vão é transforma a quermesse numa bela duma porcaria!

HILDA — Mas olha que mulambenta invejosa!

PADRE LUÍS — Senhoras...

HILDA — Então eu também quero alertar o Padre!

DONANA — Ah é? E qué alertá ele do quê?

HILDA — De você!

HILDA CHEGA BEM PERTO DE DONANA. CONVERSAM OLHANDO NOS OLHOS UMA
DA OUTRA. DURANTE O DIÁLOGO, PADRE LUÍS É INTERROMPIDO VÁRIAS VEZES,
MAS NUNCA CONSEGUE FALAR.

HILDA — Escute aqui, sua... Piolhenta! Se você pensa que vai acabar com a
minha quermesse, está muito enganada!

DONANA — Minha? Minha quermesse! Mas óia só a bestice dessa daí! Minha
quermesse. Como se a festa fosse pra ela e não pra Santa!

AS DUAS E O PADRE OLHAM PRA IMAGEM DA SANTA E SE BENZEM, RETOMANDO


DEPOIS A BRIGA.

HILDA — Pode ir tirando o seu cavalinho da chuva, porque a quermesse vai ser
exatamente como eu quero, e ninguém vai meter o nariz!

DONANA — Isso é o que ocê pensa! Só uma véia muito abilolada que nem ocê pra
acha que ia fazê o que quisesse e que eu ia ficá com os braço cruzado,
olhano sem fazê nada!

HILDA — Velha abilolada é a vovozinha!

DONANA — Tudo isso só pra dispois falá que a barraca dela foi a que vendeu
mais! Que coisa mais feia! Devia inté de tê vergonha duma coisa dessa!
Imagina! Usa a festa da Santa, uma coisa tão importante, tão bonita, só
pra se aparecê!

HILDA — O que você acha, ou deixa de achar, realmente não me interessa.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 19

DONANA — Interessa! Interessa sim, porque eu num vô deixá as coisa acontecê do


jeito que ocê qué!

HILDA — Quem você pensa que é pra falar assim comigo?

DONANA — Sô a pessoa que sempre cuidô da festa da Santa! E sempre cuidô


muito bem! Ocê pode batê os pé, espernea, mas eu num vô dexá ocê usa
a festa da Santa pra se aparecê! Num vô!

HILDA RI DEBOCHADA E DEPOIS PASSA AANDAR EM VOLTA DE DONANA


ENQUANTO FALA.

HILDA — Mas era só isso que me faltava. Parteira, você acha mesmo que pode
comigo? (pausa) Será que mesmo depois de tantos anos, você não
conseguiu ver o seu lugar? (p) Essas roupinhas que você usa, por
exemplo. Se é que nós podemos chamar isso de roupa.

PADRE LUÍS COMEÇA A FICAR CHOCADO COM AS COISAS QUE HILDA PASSA A
FALAR, MAS DONANA CONTINUA TRANQUILA, NÃO SE IMPORTANDO COM O QUE
OUVE.

HILDA — Uns farrapinhos. Quase um pano de chão.

PADRE LUÍS — Dona Hilda, por favor, pare com isso.

HILDA — Não paro! Não paro porque ela precisa ouvir. Alguém precisa trazer
essa mulher de volta à realidade! Precisa fazer com que ela veja quem é.
Ou seja, precisa fazer com que ela veja que não é nada! Absolutamente
nada! (p) Olha só. Uma matuta. Não fala direito, não se comporta direito.
Não deve nem saber comer. Você usa talheres? Acho que não. Deve
comer com a mão.

PADRE LUÍS — Dona Hilda!

DONANA — Deixa, Padre. Deixa ela falá. (p) Acabô? Terminô de sortá o veneno?

HILDA SORRI

HILDA — Você é tão...tão insignificante, Donana. Eu nem deveria estar


perdendo o meu tempo com você.

DONANA — Não vai mais perdê. (p) Eu posso sê tudo isso aí que ocê falô. Minhas
roupa pode parecê uns farrapo. Eu posso num sabe me comportá nos
lugar chique que nem ocê. Muitas vez eu como memo com as mão. Só
que essas mão aqui serve pra muita coisa. Serve pra ajudá os ôtro. Serve
pra trazê as criança pro mundo. Serve pra ajudá a vida a nasce.

HILDA — Que tocante. Eu estou comovida.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 20

DONANA — Mas também serve pra ôtras coisa.

HILDA — Não me diga.

DONANA — Serve pra isso aqui.

DONANA DÁ UM TAPA FORTE NO ROSTO DE HILDA QUE, PEGA DE SURPRESA,


ACABA SENDO JOGADA CONTRA A MESA DA SACRISTIA. TANTO ELA QUANTO O
PADRE ESTÃO PERPLEXOS.

DONANA — Fazia tempo que ocê tava mereceno e procurano isso. Quem sabe de
agora em diante ocê num pensa duas vez antes de abri essa boca imunda
pra falá dos ôtro. (p) Padre, o senhor me adescurpa por isso.

DONANA SAI. HILDA ESTÁ FURIOSA.

HILDA — Essa... Essa esfarrapada ousou me bater?! Essa desgraçada!

PADRE LUÍS — Calma, dona Hilda!

HILDA — Isso não vai ficar assim! Não vai!

HILDA SAI, COM O PADRE LUÍS ATRÁS.

CORTA PARA

CENA 16. IGREJA. INTERIOR. TARDE

DONANA SAI DA SACRISTIA E VAI ANDANDO PELA NAVE EM DIREÇÃO À PORTA.


HILDA, AINDA FURIOSA, E O PADRE LUÍS ENTRAM.

HILDA — Não dê nem mais um passo, sua velha suja!

DONANA PARA, MAS NÃO OLHA PARA HILDA. A CAM MOSTRA QUE ELA SORRI.

HILDA — Se você pensa que isso vai ficar assim, você está muito enganada!
Ninguém bate na cara de Hilda Maria Gonzaga! Ninguém!

DONANA SE VIRA E ENCARA HILDA.

DONANA — Bati, e se precisá bato de novo.

HILDA — Eu acabo com você, sua...Sua mendiga desgraçada!

DONANA — E ocê acha memo que eu tenho medo de ameaça sua?

HILDA — É bom ter! Você não sabe do que eu sou capaz!

DONANA VAI CAMINHANDO LENTAMENTE EM DIREÇÃO A HILDA, QUE SE MANTÉM


FIRME, MAS PARECE TEMER SER AGREDIDA NOVAMENTE.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 21

DONANA — Há, sei. Seu muito bem das mardade que ocê é capaz de fazê. Eu
posso se velha como ocê disse, mas a memória ainda tá boa.

AS DUAS ESTÃO PRÓXIMAS E DONANA FALA BAIXO, PARA QUE APENAS HILDA
OUÇA.

DONANA — Eu me alembro muito bem do que ocê mandô fazê há quase trinta
anos atrás.

O ASSUNTO DEIXA HILDA INCOMODADA. DONANA OLHA A RIVAL DE ALTO A


BAIXO, COM UM CERTO NOJO.

DONANA — Eu fico olhano pra essa sua cara nojenta e me pergunto como é que
ocê consegue se olha todo dia no espelho. Ocê num tem vergonha, não?

HILDA — Não se atreva...

DONANA — Cala a boca. Cala a boca antes que eu perca a cabeça de novo e lhe dê
outro tapa. (p) Como é que uma pessoa que faz o que ocê faz tem
coragem de entrá numa igreja e querê fazê uma festa pra Santa? Ocê num
devia nem de passá aqui na porta. Vô lhe dizê uma coisa. Escuta bem. A
Santa não qué gente que nem ocê por perto dela. Ocê é má. Ocê num
presta. Ocê é tudo contrário do que a nossa santinha é. (p) Ela num
merece que ocê coloque essas suas mão suja na festa dela.

HILDA ESTÁ PERPLEXA E SURPRESA. SEM SABER O QUE DIZER. DONANA SE VIRA E
CAMINHA EM DIREÇÃO À PORTA. HILDA PARECE SE RECUPERAR.

HILDA — Eu não vou dar ouvidos ao que você está dizendo, velha! Não vou!

DONANA TORNA A PARAR E OLHAR PARA HILDA.

HILDA — Você querendo ou não, eu vou cuidar da quermesse. Se eu já queria


isso antes, agora é ponto de honra. E tem mais! Você e toda a sua corja
estão expulsas!

PADRE — Dona Hilda! Mas... A senhora não pode fazer isso!

HILDA — Posso! Posso e quero ver quem é que vai me impedir! Ouviu bem,
Donana? Eu não quero você, nem Chica, nem Brisa e nenhuma outra
descamisada miserável como você na minha quermesse! E se alguma
aparecer, eu mando colocar pra fora! Entendeu, bem? Eu boto pra fora!

DONANA — Ocê pode ficá tranqüila que nenhuma de nóis vai aparecê.

PADRE — Donana? Como assim? A senhora sempre foi fundamental para a


quermesse.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 22

DONANA — E vô continuá seno.

PADRE — Como assim?

DONANA — O senhor não se preocupa que eu vô dá o meu sangue pela quermesse


da santa.

HILDA — Eu acabei de dizer que...

DONANA — Eu tô dizeno que vô participá da quermesse, não da sua festa.

PADRE — Não entendi.

DONANA — Eu vô fazê uma festa pra Santa como nunca se viu aqui em Divinéia.
Vô junta tanta gente, mas tanta gente, que vão lembrá dela daqui a um
monte de tempo. Mas num vai se a festa que essa aí qué fazê. Só que vai
sê no mêmo dia. Na mêma hora.

HILDA FICA PERPLEXA.

HILDA — Você... Você não ousaria fazer isso!

DONANA — Ocê sabe que eu faço. Sabe que eu vô fazê. Aí nóis vamo vê que festa
a Santa prefere. Que festa que vai tê mais gente. (p) Qual vai sê a festa
da Santa de verdade.

HILDA — Donana, você está brincando com fogo.

DONANA — Num tenho medo de fogo. (p) Também num tenho medo de capanga,
Hilda Maria. As mesma mão que deram na sua cara foram as que
colocaro eles tudo no mundo. Quero vê qual deles vai tê coragem de
acabá comigo.

DONANA SE VIRA E SAI DA IGREJA. HILDA TREME DE ÓDIO ENQUANTO O PADRE,


CAUTELOSO, SE APROXIMA DELA.

PADRE — Dona Hilda, por favor, esqueça isso tudo que aconteceu. Nós estamos
dentro de uma Igreja. Essa história toda não tem o menor cabimento.

HILDA — Me deixe sozinha, Padre.

PADRE — A senhora.

HILDA — Padre!

PADRE LUÍS HESITA UM POUCO, MAS DEPOIS SAI. DONANA SENTA EM UM DOS
BANCOS, PROCURANDO SE RECUPERAR. LÁGRIMAS DE ÓDIO ROLAM POR SUA
FACE.
FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 23

HILDA — Velha desgraçada! Maldita! Você vai me pagar por isso! Eu devia ter
acabado com você há muito tempo. Naquela época. (p) Mas não faz mal.
Nós sempre podemos terminar o que deixamos pela metade. Sempre!

CORTA PARA

CENA 17. IGREJA. EXTERIOR. TARDE

DONANA SAI DA IGREJA, MAS PARECE NÃO SE SENTIR BEM. ESTÁ ABALADA COM A
BRIGA. IVONE E ESTRADA DE FERRO VEM ANDANDO E PERCEBEM. CORREM ATÉ
LÁ PARA AMPARÁ-LA.

IVONE — Donana! Donana, a senhora tá sentino arguma coisa?

DONANA — Eu tô um pôco tonta.

IVONE — Me ajuda aqui, Estrada. Vamo levá ela inté o banco da praça.

ESTRADA — Se apóia em mim, Donana.

IVONE E ESTRADA LEVAM DONANA ATÉ UM BANCO E SE SENTAM.

IVONE — Estrada, vai buscá um pôco de água pra ela.

ESTRADA SAI.

IVONE — O que foi que aconteceu, Donana? Me fala o que a senhora tá sentino.

DONANA — Num é nada. Já vai passá. Eu só me aborreci um pôco. Já passa.

IVONE — Mas se aborreceu com o quê?

DONANA — Com nada. Já vai passá.

IVONE — Achei que a senhora ia caí quando lhe vi. Tá branca que nem papel.
Inda bem que Estrada me deu o recado de dona Frida e eu tava passano
por aqui.

DONANA — Recado da Frida?

IVONE — É. Ela mandô Estrada me chamá lá em casa. Pediu pra eu i inté o


hospital.

DONANA — Mas por quê? Será que aconteceu arguma coisa?

IVONE — Isso eu ainda num sei.

DONANA OLHA PARA O HOSPITAL.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 24

DONANA — Tomara que num seja o que eu tô pensano. (p) Tomara que ninguém
mais tenha...

DONANA PARA DE FALAR, MAS IVONE ENTENDE QUE O MEDO DELA É DE QUE
MAIS ALGUÉM TENHA MORRIDO NA EPIDEMIA.

CORTA PARA

CENA 18. HOSPITAL EM CUIABÁ. QUARTO. INTERIOR. TARDE

VINÍCIUS DORME, SENDO OBSERVADO POR ARTHUR, SENTADO EM UMA


POLTRONA. LEONOR FALA AO TELEFONE.

LEONOR — Amanhã eu explico tudo com calma. (p) Não sei. Eu ainda não sei o
que fazer. (p) Eu espero que sim. Obrigada, Carmem.

LEONOR DESLIGA O TELEFONE.

ARTHUR — Algum problema?

LEONOR — Não. (p) Mais ou menos. Era uma colega minha de trabalho. Queria
saber do Vinícius.

ARTHUR — E é por isso que você tá com essa cara?

LEONOR — Não, Arthur.

LEONOR SE SENTA.

LEONOR — Eu preciso voltar pro trabalho. Amanhã é segunda e eu tenho que


trabalhar. Não sei como eu vou fazer. Não posso deixar o Vinícius aqui
assim, desse jeito.

ARTHUR — Eu estou aqui, Leonor. Ele não vai estar sozinho.

LEONOR — Eu sei que não, mas eu queria ficar ao lado dele. Meu filho precisa de
mim, Arthur. Precisa como nunca precisou antes.

ARTHUR — Você não pode pedir umas férias?

LEONOR — Não. Tirei há dois meses. Mesmo que eu tire uma licença, não sei por
quanto tempo o Vinícius vai ficar assim.

ARTHUR — Então larga o emprego.

LEONOR — Como é?

ARTHUR — Larga o emprego. Fica cuidando do nosso filho.


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 25

LEONOR — E vou viver de quê? Eu não sou rica como você, Arthur. Preciso
trabalhar pra sobreviver. Tenho conta pra pagar.

ARTHUR — Eu sustento vocês, ué. Tenho dinheiro. Também acho que agora é
hora de você ficar do lado dele.

LEONOR — Eu não vou nem responder, Arthur. Você sabe a minha opinião...

ARTHUR — As coisas mudaram, Leonor. Não adianta ocê ficá querendo enfrentar
isso tudo sozinha. (p) Isso que tá acontecendo com a gente vai mudar as
nossas vidas. Tá na hora de a gente botá uma pedra no que passou e
tentar viver daqui pra frente. (p) O Vinícius precisa de você ao lado dele.
Não vai faltar nada pra vocês.

LEONOR — Arthur, eu não aceito. Sei que você tá com as melhores intenções, mas
a minha resposta é não. (p) Eu vou dar um jeito.

LEONOR LEVANTA E SAI DO QUARTO.

ARTHUR — Cabeça dura!

ARTHUR LEVANTA E VAI ATÉ O FILHO. PASSA A MÃO PELOS CABELOS DELE.

ARTHUR — Ocê fica tranquilo, meu filho. O pai vai dá um jeito de ocê ficá do
meu lado.

CORTA PARA

CENA 19. CASA DE HILDA. SALA. INTERIOR. TARDE

HILDA ENTRA BATENDO A PORTA. MUNDICA VEM DA COZINHA.

MUNDICA — Dona Hilda! Ainda bem que a senhora chegô!

HILDA — Saia da minha frente, Mundica! Saia da minha frente ou eu, hoje,
mato você! E eu não estou brincando.

HILDA VAI ANDANDO EM DIREÇÃO A PORTA DO ESCRITÓRIO.

MUNDICA — Mas Dona Hilda...

HILDA — Eu já disse que hoje não! Vou pro escritório e não quero ser
incomodada por ninguém!

HILDA ENTRA NO ESCRITÓRIO, DEIXANDO MUNDICA SEM SABER O QUE DIZER.

CORTA PARA

CENA 20. CASA DE HILDA. ESCRITÓRIO. INTERIOR. TARDE


FOGO SOBRE TERRA Capítulo 30 Pag.: 26

HILDA ENTRA BRAVA E TAMBÉM BATE A PORTA.

HILDA — Essa velha vai aprender! Nunca mais vai fazer o que fez! Ah, Donana,
você não deveria ter me provocado.

HILDA APANHA O TELEFONE.

HILDA — Você diz que nenhum capanga vai ter coragem de lhe matar? Isso é o
que nós vamos ver!

HEITOR — Que bom ver a senhora, mamãe.

HILDA SE VIRA ASSUSTADA E FINALMENTE VÊ HEITOR SENTADO EM UMA


POLTRONA EM UM CANTO DA SALA. PELO OLHAR SÉRIO DELE, PERCEBE-SE QUE
ELE ENTENDEU O QUE A MÃE QUER FAZER.

HEITOR — Pelo jeito a senhora está querendo fazer...Um servicinho.

CLOSE EM HEITOR E LOGO DEPOIS NA EXPRESSÃO PERPLEXA DE HILDA. A


IMAGEM CONGELA E UMA BARRAGEM DE HIDRELÉTRICA SE FECHA SOBRE ELA. A
BARRAGEM SE ROMPE E UMA INUNDAÇÃO TOMA CONTA DA TELA.

FIM DO CAPÍTULO

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