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Estudos Jurídicos

38(3):65-68 setembro-dezembro 2005


© 2005 by Unisinos

Algumas questões acerca dos fundamentos da filosofia civil em


Thomas Hobbes
Some issues related to the foundations of Thomas Hobbes’ civil philosophy

Wladimir Barreto Lisboa1

Resumo: Este artigo procura expor diferentes pontos de vista acerca das possíveis relações
mantidas entre as diversas partes do pensamento filosófico de Thomas Hobbes. Trata-se de
esclarecer se existe ou não uma relação de dependência dedutiva entre a ética e a política, de um
lado, e sua filosofia primeira exposta, sobretudo, no De Corpore de 1655.

Palavras-chave: Thomas Hobbes, sistema de filosofia, ética, política.

Abstract: This article discusses different points of view on the possible relations between the
various parts of Thomas Hobbes’ philosophical thought. It tries do clarify whether there is a
relationship of deductive dependence between ethics and politics, on the one hand, and his
1
Doutor em Filosofia Política pela
early philosophy as presented mainly in De Corpore of 1655.
Université de Paris – I, Panthéon/
Sorbonne. Professor do PPG em Direito
– Unisinos. Advogado. Key words: Thomas Hobbes, system of philosophy, ethics, politics.

Este trabalho investiga as relações existentes entre as dife- Na verdade, segundo esses autores, não apenas o con-
rentes partes da filosofia de Thomas Hobbes e, em especial, junto das ciências não obedeceria a uma estrutura dedutiva
o lugar da filosofia civil na arquitetônica do conhecimento contínua em Hobbes, como também sua suposição implica-
humano. Scholars desenvolvem ainda hoje um intenso debate ria uma falaciosa derivação da estrutura normativa própria
que está bem longe de se ter exaurido acerca de tal tema. à moral e à política a partir de enunciados descritivos das
Em 1936, Leo Strauss publicou um extenso argumento des- ciências naturais. Em resumo, tomando-se como ponto de
tinado a demonstrar de que modo a filosofia política de Hobbes partida seu mecanicismo-materialismo não há como se che-
não poderia estar sustentada sobre sua filosofia natural. Uma gar ao egoísmo psicológico que, por sua vez, é fundamental
tal dependência destruiria a fonte moral de sua filosofia civil. para atingir sua teoria política, e isso pela simples razão de
Segundo Strauss (cf. 1953, p. ix, 28-29), a filosofia política, tal que o desejo não pode ser tomado como uma função do
como reivindicava Hobbes, estaria fundada no conhecimento simples movimento mecânico.
dos homens, isso é, no conhecimento obtido por intermédio Aparentemente, a interpretação contemporânea de
do autoconhecimento e auto-exame do próprio indivíduo e Hobbes parece haver chegado a um consenso acerca da
não em alguma teoria metafísica ou ciência geral. Alguns anos necessária ruptura que deve ser estabelecida entre suas te-
mais tarde, Taylor e, depois, Warrender desenvolveram argu- ses geométricas, físicas, morais e políticas. Ao contrário, a
mentos destinados a consolidar essa posição (cf. Taylor, 1938, e leitura que busca compatibilizar esses diferentes domínios
Warrender, 1957, p. 98). O argumento principal a ser refutado, é classificada de ingênua, inconsistente e desatenta ao texto
segundo os autores, consistiria, em resumo, na idéia segundo mesmo de Hobbes.
a qual a ciência unificada expressa pela trilogia De Corpore, Alguns obstáculos textuais devem, entretanto, ser ultra-
De Homine e De Cive constituir-se-ia a partir de uma dedução passados a fim de que se possa estabelecer a alegada ruptura.
contínua de argumentos: os princípios da moral e da política, No De Corpore, por exemplo, Hobbes afirma :
últimos na ordem da demonstração, seriam deduzidos a partir
das verdades da física, as verdades da física a partir da mecânica, O próprio de uma demonstração metódica é, pois,
1° Que a série de todo raciocínio seja legítimo, isto é, conforme
e as verdades da mecânica a partir da geometria2.

2
Tal parece ser, por exemplo, a posição de David Gauthier (1978, p. 3), quando escreve : “Had Hobbes succeeded in his grand design for a unified science, questions
of morals and politics would be treated in a purely synthetic manner, by derivation from the supreme relations or principles established through an analysis of
body.”

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Wladimir Barreto Lisboa

às regras que fornecemos sobre os silogismos. Para ilustrar a questão, tomemos como objeto de análise a
2° Que as premissas de cada silogismo sejam demonstradas afirmação de Hobbes segundo a qual as verdades da física
primeiramente segundo as primeiras definições.
3° Que depois das definições procedamos pelo mesmo
devem ser deduzias com a ajuda de hipóteses :
método pelo qual aquele que ensina se utilizou para
descobrir cada coisa, isto é, que demonstremos primeiro Os princípios da física não são tão certos como o são as
as coisas que concernem imediatamente às definições as definições e os axiomas em matemática, mas eles são apenas
mais universais (nisto consiste esta parte da filosofia que supostos. [...] E mesmo se eles não provam que a coisa foi
denominamos de filosofia primeira), a seguir as que se realmente engendrada, eles provam que, se a matéria e
podem demonstrar apenas pelo movimento (nisto consiste o movimento estão simultaneamente em nosso poder, a
a geometria) e, finalmente, as que se podem ensinar por coisa pode ser gerada. [...] E mesmo sem as severas leis da
uma ação manifesta, isto é, pela impulsão ou pela atração. demonstração, que encontramos seguidamente nos livros
Após estas preliminares, é preciso chegar ao movimento das de Física, a contemplação da natureza é, quando não tornada
partes invisíveis ou à mudança, à doutrina dos sentidos e à obscura por palavras impróprias e vazias, a mais nobre de
imaginação, às paixões internas dos animais e, sobretudo, todas as ocupações que a alma pode ter quando ela não é
às do homem, nas quais encontramos os primeiros tomada pelos assuntos necessários da vida ordinária.5
fundamentos dos deveres ou da doutrina civil, que é o
coroamento da filosofia. A prova de que isto é o verdadeiro Evidentemente, essas hipóteses da física devem ser con-
arranjo de toda ciência é que as partes que colocamos por
último não podem ser demonstradas apenas quando as
sistentes com os enunciados da mecânica e da geometria,
que as precedem são conhecidas. Não posso citar outros mas isso não significa que elas sejam obtidas a partir da
exemplos deste método senão pelo modo como comecei geometria ou da mecânica tout court. Essas últimas poderiam
estes Elementos de filosofia, e que seguirei em todo o ser consideradas ciências fundamentais no mesmo sentido
restante da obra.3
em que a álgebra, por exemplo, pode ser considerada como
condição de compreensão de determinadas teorias econômi-
O que essa passagem parece sugerir claramente é que a
cas mais complexas. Ninguém diria, todavia, que a economia
ciência unificada, exposta na trilogia De Corpore, De Homine
é deduzida da álgebra (cf. Sorell, 1986, p. 6).
e De Cive, constitui-se de um esquema de dedução contí-
Portanto, se é verdade que, na física, uma prova introduz
nua. Uma demonstração metódica deveria, pois, exibir os
novos princípios não deduzidos a partir de proposições em
argumentos psicológicos e políticos em termos de corpos
uma ciência prévia, então a relação entre as ciências em ques-
em movimento. Assim procedendo, uma tal ciência teria
tão deve ser considerada não dedutivamente dependente.
seus argumentos deduzidos a partir da ciência mecânica e
Mas se isso é assim, então somos levados a admitir também
da física. Estas ciências, por sua vez, devem também ser
uma ruptura definitiva no caráter demonstrativo do sistema
deduzidas de uma ciência ainda mais fundamental cha-
(cf. Talaska, 1988, p. 228).
mada geometria. Desse modo, a geometria deve também
Todavia, apesar da força persuasiva das passagens citadas,
possuir enunciados sobre o movimento em suas definições
diversos outros argumentos podem igualmente ser trazidos
iniciais4.
no sentido de reivindicar, em Hobbes, a existência de um
A passagem citada perde, todavia, muito de sua força
verdadeiro sistema filosófico onde haveria uma relação lógica
probatória caso se faça uma interpretação estrita das pre-
indissociável entre suas diferentes partes6.
posições latina/inglesa post/after presentes no texto. Não se
Para sustentar esta afirmação, evoca-se freqüentemente o
encontra absolutamente afirmado nessa passagem que as
quadro classificatório estabelecido por Hobbes no capítulo
verdades da mecânica são deduzidas a partir das (from) ver-
IX do Leviatã onde são distribuídas as diferentes espécies
dades da geometria, mas sim que elas são deduzidas depois
de ciências segundo o grau de universalidade alcançado por
(after) das verdades da geometria. Tampouco está afirmado
seu objeto. Hobbes ali afirma que as ciências mais universais
que a filosofia civil é demonstrada a partir da física, e sim
precedem as menos universais:
após essa.
O que parece conduzir a esta ambigüidade no texto é a O objeto das ciências sendo constituído pelos corpos, a
significação da expressão composta “dependência dedutiva”. ciência deve ser classificada em espécies do mesmo modo
O que compreendemos nós quando afirmamos que algumas que os corpos eles mesmo são classificados segundo suas
próprias espécies, a saber, de tal modo que as coisas as mais
proposições possuem uma relação de dependência ? A de-
universais precedem as menos universais. Com efeito, as
terminação precisa deste ponto da discussão repousa, assim, coisas universais sendo essenciais às coisas especiais, a ciência
no esclarecimento da expressão “dependência dedutiva”. das coisas universais é essencial à ciência das espécies, a tal
Qual relação dedutiva pode existir entre as proposições ponto que estas não podem ser percebidas de outro modo
senão à luz daquelas.7
da física e os enunciados da mecânica ou da geometria ?

3
De Corpore, OL, I, VI, 17, 77-78; EW, 87. Ver também De Corpore, OL, I, VI, 6 ; EW, 72.
4
Cf. Peters, 1956, p. 87: “Thus, Hobbes saw quite correctly not only that his psychology and politics must describe human action in terms of bodies in motion
in order to be deducible from his science of mechanics and physics, but also that, if his science of mechanics and physics were to be deducible from his basic
science of geometry, then his geometry too must contain statements about motion in its initial definitions.”
5
Problemata Physica. Ad Regem. OL, IV, 300. Seven Philosophical Problems, Ep. Ded., EW, VII, 3-4. Ver também: Decameron Physiologicum or Ten Dialogues of
Natural Philosophy. EW, VII, II, 88 e o De Corpore, EW, I, IV, XXX, 15, 531.
6
Na perspectiva da unidade do sistema, ver também: Ryan, 1970; Watkins, 1965, e Goldsmith, 1966.
7
Leviatã latino, OL, III, IX, 66. Tradução de François Tricaud. O capítulo IX do Leviatã latino afasta-se consideravelmente do modelo inglês.

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Algumas questões acerca dos fundamentos da filosofia civil em Thomas Hobbes

Além disso, visto que o quadro do Leviatã coloca a ética e propriedades gerais;na segunda,do homem e de suas faculdades
a ciência do justo e do injusto sob a filosofia natural, a relação e afecções especiais;na terceira,do governo civil e dos deveres dos
súditos.De modo que a primeira parte conteria a filosofia primeira,
de dependência apresentada aparece claramente8. e certos elementos de física; nela consideraríamos as razões de
Todavia, pode-se contraditar que este diagrama é mais tempo, lugar, causa, poder, relação, proporção, quantidade, figura
um quadro geral de classificação que propriamente um e movimento.Na segunda discutiríamos a imaginação,a memória,
programa de método dedutivo. Hobbes mesmo afirma que o intelecto, o raciocínio, o apetite, a vontade, o bem e o mal, o
que é honesto e desonesto, e coisas parecidas. O que a última
da subdivisão de cada uma destas ciências pode nascer uma parte aborda é o que acabo de vos expor. Porque, enquanto eu
quantidade inumerável de outras ciências, que não é nem reflito, ordeno, e pensativa e vagarosamente componho estes
fácil nem necessário enumerar, o que mostra a ausência tópicos (pois apenas raciocino, não debato), aconteceu, nesse
de uma pretensão de completude própria a todo diagrama ínterim, que meu país, alguns anos antes que as guerras civis se
desencadeassem, já fervia com questões acerca dos direitos de
sistemático construído sobre a idéia de um fio condutor9. O dominação, e da obediência que os súditos devem, questões que
peso de um argumento tão decisivo para a compreensão do são as verdadeiras precursoras de uma guerra que se aproxima;
pensamento de Hobbes não pode, evidentemente, repousar e isso foi a causa para que (adiando todos os demais tópicos)
sobre um esquema classificatório. amadurecesse e nascesse de mim esta terceira parte.Assim sucede
que aquilo que era último na ordem [De Cive] veio a lume primeiro
Mesmo se este argumento não é conclusivo, podemos no tempo, e isso porque vi que esta parte, fundada em seus
sempre evocar outras passagens onde se encontra afirmado próprios princípios suficientemente conhecidos pela experiência,
o laço entre o estudo do homem e a filosofia natural. Nesse não precisaria das partes anteriores. (De Cive, prefácio ao leitor).
sentido, afirma Hobbes:
Lemos acima palavras que parecem incontestáveis. O De
Eis finalizado meu Tratado do Homem. Enfim mantive minha
Cive não tem necessidade, para sua compreensão, das partes
palavra: Nada mais vos falta dos Primeiros Elementos de
minha filosofia. [...] Pois o homem não é apenas um corpo anteriores, uma vez que ele está fundado sobre princípios
natural; ele pertence ainda ao Estado, isso é, se posso assim suficientemente conhecidos pela experiência. Para Hobbes,
me expressar, a um corpo político. O que me obrigava a mesmo aqueles que não conhecem as primeiras partes da
considerá-lo tanto como homem quanto como cidadão, ou
filosofia – a geometria e a física – podem alcançar os prin-
seja, a justapor as últimas partes da física às primeiras da
ciência política, o mais difícil ao mais fácil. (De Homine, Epist. cípios da filosofia civil:
Ded., p. 32).
[...] uma vez que os princípios da política resultam do
conhecimento dos movimentos dos espíritos, e que este
É incontestável que Hobbes afirma aqui a necessidade conhecimento deriva da ciência das sensações e das idéias;
de estudar o homem tanto como corpo natural quanto como mas ainda aqueles que não apreenderam a primeira parte da
corpo político. Não apenas a ciência civil, afirma Hobbes, filosofia, a geometria e a física, podem, entretanto, chegar aos
princípios da filosofia civil pelo método analítico.10
mantém uma estreita relação com a filosofia especulativa, mas
todas as ciências dependem também da philosophia prima.
Creio, todavia, que a idéia de uma filosofia civil autô-
noma, tal como sustentada por diversos autores11, repousa
Existe uma certa philosophia prima da qual toda outra
filosofia deveria depender, e que consiste principalmente sobre um equívoco atribuído à noção de “relação dedutiva”.
na delimitação correta dos nomes e denominações que são, A questão a ser aqui posta é a seguinte: o que significa, com
de todas, as mais universais: essas delimitações servem para efeito, a afirmação segundo a qual existem enunciados de
evitar a ambigüidade e o equívoco no raciocínio; chamamo-la,
uma ciência que são provados por uma ciência mais univer-
comumente, de definições. (Leviatã, XLVI).
sal? O que, de fato, prova uma ciência superior em relação
à ciência subordinada?
Todavia, é extremamente difícil compatibilizar este pro-
Se for possível mostrar que certas teses que discorrem
pósito de trilogia afirmada por Hobbes com suas próprias
sobre a natureza e propriedades dos corpos em geral são
palavras expressas alhures :
condições da verdade de outras afirmações acerca das con-
dições nas quais a paz é possível, então estará justificada a
Haveis visto qual é meu método; acolhei agora a razão que me
moveu a escrever este livro. Estava estudando filosofia por puro existência, em Hobbes, de relações lógicas entre, por exem-
interesse intelectual, e havia reunido o que são seus primeiros plo, a física e a política. Da verdade de certos enunciados da
elementos em todas as espécies e, depois de concentrá-los em ciência natural, seguir-se-á a verdade de outros enunciados
três partes conforme o seu grau, pensava escrevê-los da seguinte
sobre o justo e o injusto12.
forma: de modo que na primeira trataria do corpo, e de suas

8
Neste mesmo capítulo, pode-se ler: “Enfim, da contemplação do homem e de suas faculdades nascem a ética, a lógica, a retórica e, finalmente, a política ou.” Cf.
tradução proposta por Tricaud do capítulo XI do Leviatã, op. cit., p. 66.
9
Cf. Leviatã latino, OL, III, IX, 66.
10
De Corpore, OL, I, I, VI, 7, 65; EW, 65. Sobre este ponto, não podemos esquecer a preciosa informação de Schuhmann (p. 14, n. 2) na introdução a Hobbes, une
chronique:“[...] parece-nos muito provável que foi em grande parte graças à eficácia comercial do homem de negócios holandês Lodewijk Elzevier que a famosa tese
interpretativa Taylor-Warrender pode tomar forma. Com efeito, foi ele quem colocou como condição prévia à impressão do De Cive que todas as referências feitas ao
De Homine, ainda em estado de projeto, fossem eliminadas. Foi esta forma, retomada na edição de Molesworth, que fez autoridade durante mais de um século.”
11
Ver, sobretudo: Hood, 1964, p. 229-30; McNeilly, 1966, p. 193-206; id., 1968, p. 95, e Kavka, p. 16-17.
12
Pela expressão “relações lógicas” entendem-se aqui as relações mantidas entre os valores de verdade das proposições, isso é, duas proposições são ditas
independentes logicamente se, e apenas se, da verdade ou falsidade de um enunciado nada se segue quanto à verdade ou falsidade de um segundo enunciado.

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Wladimir Barreto Lisboa

Como pode perfeitamente ser demonstrado, a justificação Referências bibliográficas


do propósito hobbesiano que busca “reduzir esta doutrina [da
justiça e da política em geral] às regras infalíveis da razão”13 GAUTHIER, D. 1978. The Logic of Leviathan: The Moral and Political
situa-se em um campo conceitual comum às diversas disci- Theories of Thomas Hobbes. Oxford, Blackwell.
plinas passíveis de épistémè, campo esse que constitui o núcleo GOLDSMITH, M. M. 1966. Hobbes’ Science of Politics. New York,
duro de sua filosofia primeira e onde todas as demais teses das Columbia University Press.
ciências particulares encontrarão sua justificação. HOBBES, T. 1966. Problemata Physica. Opera Latina, IV. Londres,
ed. W. Molesworth.
Não é o propósito desse trabalho desenvolver exausti-
HOBBES, T. 1974. De homine. traduction et commentaire par P.-M.
vamente as teses que justificam a dependência da filosofia Maurin, préface par V. Ronchi, Paris, Albert Blanchard.
civil aos enunciados provados na filosofia primeira e na HOBBES, T. 1992. Decameron Physiologicum or Ten Dialogues of
ética. A título de exemplificação, entretanto, avançaremos Natural Philosophy. English Works, v. VII. Londres, ed. W.
aqui apenas um dos pontos de partida. Molesworth.
Como afirma Hobbes no prefácio ao De Cive, trata-se HOBBES, T. 1998. De cive. Tradução de Renato Janine Ribeiro.
de compreender, para corretamente situar o fundamento São Paulo, Martins Fontes.
ético da política, “qual é a natureza humana, em que medi- HOBBES, T. 1999. De Corpore Elementorum philosophiae sectio prima,
da ela é ou não própria ao governo civil e de que modo os édition critique, notes, appendices et index par K. Schuhmann,
homens que desejam se unir devem entrar em acordo uns Paris, Vrin.
com os outros” (OL, II, 146). A fim de fundar a política, HOBBES, T. 2002. Elementos da lei natural e política. São Paulo, ed,
Ícone.
a ética deve se constituir, para Hobbes, em um tratado das
HOBBES, T. 2005. Léviathan latin. Paris, Vrin.
paixões internas dos homens. Este tratado, por sua vez, está HOOD, F. C. 1964. The Divine Politics of Thomas Hobbes. Oxford,
indissociavelmente ligado à física, pois discriminar as paixões Clarendon.
significa variar o modo de consideração de dois movimentos KAVKA, G. S. 1986. Hobbesian Moral and Political Theory. Princeton,
invisíveis, interiores ao corpo humano, a saber, o apetite e Princeton University Press.
a aversão (De Corpore, IV, XXV, 12). Entretanto, e isso é o McNEILLY, F. S. 1966. Egoism in Hobbes. The Philosophical Quar-
fundamental, o conhecimento das paixões não pode residir terly, 16:193-206.
apenas no conhecimento de seus efeitos. As paixões apenas McNEILLY, F. S. 1968. The Anatomy of Leviathan. New York, St.
são conhecidas por suas causas. Como afirma Hobbes em Martin’s.
diferentes lugares de sua obra, apenas o conhecimento das PETERS, R. 1956. Hobbes. Harmondsworth, Penguin Books.
causas produz ciência. Ter ciência significa conhecer as RYAN, A. 1970. The Philosophy of the Social Sciences. London, Pal-
grave Macmillan.
causas de um efeito, o que elas são, em que sujeito elas são
SCHUHMANN. K. 1988. Hobbes, une chronique. Paris, Vrin.
(insunt), em que sujeito elas produzem o efeito e como elas SORELL, T. 1986. The Science of Politics. London, Routledge &
operam. Um tal modo de conhecimento Hobbes denomina Kegan Paul.
de του διοτι. Todo outro conhecimento (cognitio) é ou bem STRAUSS, L. 1953. The Political Philosophy of Hobbes. Oxford,
sensação (sensio), imaginação ou a lembrança resultante Clarendon Press.
da imaginação. Hobbes denomina esse último modo de TALASKA, R. 1988. Analytic and Synthetic Method According to
conhecimento (cognitio) de του οτι14. Hobbes. Journal of the History of Philosophy, XXVI: 207-237.
Segundo Hobbes, os objetos da paixão humana são TAYLOR, A. E. 1938. The Ethical Doctrine of Hobbes. Philosophy,
variáveis e fáceis de ocultar, pois dependem da constituição XIII(52):406-24.
individual e da educação de cada um. O conhecimento das WARRENDER, H. 1957. The Political Philosophy of Hobbes. Oxford,
causas das paixões humanas que conduzem os indivíduos à Clarendon Press.
WATKINS, J. W. N. 1966. Hobbes’ System of Ideas. London. Hutchin-
guerra e à paz apenas pode ser estabelecido, portanto, não
son University Library.
pela determinação de seus efeitos, mas através da determi-
nação dos princípios dos movimentos voluntários humanos.
Ora, as causas das paixões estão na sensação e na imaginação
que, por sua vez, repousam sobre a explicação dos fenô-
menos da natureza (De Corpore, I, VI, 6). Aqui reside, sem
dúvida, a razão pela qual os fundamentos da filosofia civil
residem, em primeiro lugar, no conhecimento das causas
das paixões e, em última análise, na filosofia primeira, que
estabelece o movimento como causa mais universal dos
corpos e, a fortiori, do corpo humano.

13
Elementos do Direito, Ep. Ded., 123/XV: “[...] reduce this doctrine to the rules and infallibility of reason.”
14
Cf. De Corpore, OL, I, I, VI, 2, 59; EW, 66. A edição inglesa do De Corpore traduz a passagem “Itaque scientia sive causarum est; alia cognitio omnis, quae dicitur,
[...] por “And this is the Science of Causes, or as they call it of the All other Science, which is called the [...]. » Essa tradução sugere, incorretamente, que haveria em
Hobbes uma segunda espécie de conhecimento no gênero das ciências, enquanto que, ao contrário, para o filósofo de Malmesbury, o conhecimento dos fatos
não é, absolutamente, uma ciência.

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