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‘aos Itracerais de Catdegaeo na Piao (IP) {Gare Brasiora 0 Uva, 8, ers ‘oosinho Sar, apo de pone, 956450. © twesroivo / Sato Ageia; braduedo, organzact, iodo @ sates Nave hans Cita; revsto Hondo Dabesoo] Sia Pau: Pau, 1865. (Pateea) Ison 05.50.0056 1. Lare-arivie«detemineno 2. Lirearive «determine — Ensine- mena bilan | Olver, Na Ass. Tl. Si ozo con2ss7 indeas para cag stares: ‘Ubedade rene bin“ Dewting crt 288.7 2 Uwe ars Ensno belo = Dovna csi 28.7 Colegio PATRISTICA 1. Paes Aposoios 2 Paares Apoogsiss 5 Sutin de Rom 2 Vou ge Uso Samo Agta, 4 Tondace Sante Agosto, Olea 7 ATandase 8. Roost 2 Olea, © agosinte ‘98; Comantro aoe Saios (Saios 1.50 S. Agostaho 52 Comentine aos Samos (Stes 57-100), 8, Agena 813. Comentin a Samos (Samos 107-10), 8. Mgostaho "0. Conasbes, 8. Agostino. 1 Sonus wt ft, 8. Agestone 12.A Grp) Sato Agosto. 13,4 Gaga. Apo (n el) SANTO AGOSTINHO O LIVRE-ARBITRIO 2 edigao Paulus “Tonga Better ato “radu doc! tino coed com vores em ance @em espanol ‘rae, organzagio esto @notas Tatas sans Olvera Hons Dabesco Diegto Esto Pes ktana! Gua ePAUIUS— 1095 os rancace Cun, 229 bett7 201 to Paci (Gras Fax 011) 709627 ‘al 1) ase9068 Ips sla br Groserakgpaiusone PAULUS ada ce S80 Palo 2885 apearto Porias) Fae (0) 9460078 | Tal on ssras 152 05 19-0558 APRESENTACAO ‘Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Franca, um movimento de interesse voltado para os anti- 4g0s escritores cristaos e suas obras, conhecidos, tradicio- rnalmente, como “Padres da Igreja” ou “Santos Padres”. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, dew origem ts colegdo "Sources Chrétiennes’ ‘hoje com mais de 300 titulos, alguns dos quais com vdrias ‘edigées. Com 0 Coneilio Vaticano II, ativou-se em toda a Igrejaodesejo eanecessidadede renovagao da liturgia, da cexegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontes primitivas. Surgiu a necessidade de “voltar as fontes” do cristianismo, ‘No Brasil, em termos de publicapao das obras destes. autores antigos, pouco se fez. Paulus Bditora procura, ‘agora, preencher este vazio existente em lingua portugue- ssa. Nunca é tarde ou fora de época para rever as fontes da {fécrista, 0s fundamentos da doutrina da Igreja, especial- ‘mente no sentido de buscar nelas a inspiragao atuante, transformadora do presente. Nao se propde uma volta ao pasado através da leitura e estudo dos textos primitivos ‘como remédio ao saudosismo. Ao contrdrio, procura-se oferecer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo Para que leitor as examine, as avaliee colha oessencial, © espirito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a APRESENTACAO 6 tarefa: do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao puiblico de lingua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de titulos, ndo exaustiva, cuidadosamente traduzi- dos e preparados, dessa vasta literatura erista do periodo ristico. Pair ara no sobrecarregar o texto eretardar@ letra, ‘procurou-se evitar anotagdes excessivas, as longas intro- dugées estabelecendo paralelismos de versdes diferentes, ‘com referéncias aos empréstimos da literatura paga, filo: ‘séfica, religiosa, juridica, as infindas controversias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fa~ zercom que resultado desta pesquisa original se tradu: ‘isse numa edigdo despojada, porém séria. Cada autor e cada obra terdo uma introdugdo breve com os dados biograficos essenciais do autor e um comen- ‘rio sucinto dos aspectos literdrios e do contetido da obra suficientes para uma boa compreensao do texto. O que interessa é colocar o leitor diretamente em contato com 0 texto, O leitor deverd ter em mente as enormes diferengas de géneros literdrios, de estilos em que estas obras foram redigidas:cartas, sermées, comentérios btblicos, pardfra- ses, exortasées, disputas com os heréticos, tratados teol6- agicos vazados em esquemas ¢ categorias filoséficas de tendéncias diversas, hinos littirgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforgo de compreensio a um mesmo tema, As constantes, por vezes longas, eitagdes biblicas ou simples transcri- ‘900s de textos escrituristicos devem-se ao fato de que os padres esereviam suas reflexes sempre com a Biblia numa das méos. Julgamos necessério um esclarecimento a respeito dos termos pairolagia,paristiea ¢ padres ou pats da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, 0 estu- do sobre a vida, as obras ea doutrina dos pais da Igreja 7 APRESENTAGAO Ela se interessa mais pela historia antiga incluindo tam- ‘bém obras de escritores leigos. Por patristca se entende 0 estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas de- pendéncias e empréstimos do meio cultural, floscfico ¢ ‘pela evolugéo do pensamento teoldgico dos pais da lgreja Foi no séeulo XVI que se criow a expresséo “teologia atristica” para indicar a doutrina dos padres da Igreja, distinguindo-a da ‘“teologia biblica’, da “teologia escoldstica”, da “teologia simbélica” e da ‘teologia especulativa”. Finalmente, “Padre ou Pai da Igreja" se refere a um leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade crista, onsiderado pela tradigao posterior como testemu- nko particularmente autorizado da fé. Na tentativa de eliminar as ambighidades em torno desta expresstio, 08 ‘estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igre- Ja” quem tivesse estas qualificasées: ortodoxia de doutri- nna, santidade de vida, aprovacaoeclesidsticaeantiguida- de, Mas os préprios conceitos de ortodoxia, santidade ¢ antiguidade so ambiguos. Nao se espere encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas,irrefutdveis. Tudo estava ‘ainda em ebuligdo, fermentando. O conceito de ortodoxia 4 portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemos ‘admitir, sem prejutzo para a compreenséo, a opinido de ‘muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igre- Ja latina, o pertodo que, a partir da geragao apostélica, se ‘estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a antiguidade se estende um pouco mais até a morte de s. Jodo Damasceno (675-748). Os "Pais da Igreja” sao, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, cons- truindo.edefendendo a fe, aliturgia, adisciplina, os costu- ‘mes e 08 dogmas cristaos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussoes, de inspiragdes, de referéncias obrigatérias ao longo detodaa [APRESENTAGKO 8 tradigdo posterior. O valor dessas obras que agora Paulus Editora oferece ao puiblico pode ser avaliado neste texto: “Além de sua importancia no ambiente eclesidstico, 08 Padres da Igreja ocupam lugar preeminente na literatura «, particularmente, na literatura greco-romana. Sado eles ‘osultimos representantes da Antiguidade, cwjaarteliteré- ria, néo raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. For- mados pelos melhores mestres da Antiguidade cldssica, ‘lem suas palavras e seus escritos a servigo do pensamen- to cristdo. Se excetuarmos algumas obras retéricas de cardter apologético, oratorio ou apuradamente epistolar, ‘0s Padres, por certo, ndo queriam ser, em primeira linha, literatose, sim, arautosda doutrinae moral cristas. Aarte adquirida, nao obstante, vem a ser para eles meio para alcangar este fim, (...) Hd de se thes aproximar oleitor com ‘0 coragdo aberto, cheio de boa vontade e bem disposto & verdade crista. As obras dos Padres se the reverteréo, assim, em fonte de luz, alegria e edificagao espiritual” (B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988, pp. 21-22). A Editora “Prometi mostrar que hd um Ser, ‘muito mais sublime do que 8 nots expinto ‘a nose rasdo, Bile: propria Verdade!™ 138,38) “Ser sabedoriaoutra coisa ndo ser "2 Verdade, na qual se contempla es possi ‘sumo Bem? 128) “0 Sabedora! Luz suavissima da ‘mente purificada.® 138,85) INTRODUCAO, 1. Dados e ocasido da obra Apés sua conversio, em Milo, no ano 386, Agostinho viveu alguns meses na feliz tranguilidade da chécara de Cassiciaco, com sua mae, familiaresediminutomtimerode diseipulos. Dedicavam-se ai aos trabalhos campestres, & contemplacio ea reflexiofilossfica. Colhemos os frutos de seus coléquios, nos famosos dislogos: “Contras Académi- 03", “A vida feliz", “A Ordem” e nos “Solildquios”. "Na Pascoa de 387, ele ecebeu a graga do batismo das ios do bispo de Milao, santo Ambrésio. Propunha-se retornara sua terra natal,em Tagaste,na Africa doNorte, para ai consagrar-se com seus amigos a uma vida de oragio e estudo, como monges. Enquanto aguardavam a partida da embareagdo, em Gctia, porto de Roma, no més de outubro, sua santa mie Ménica falece, apés breve enfermidade. Passada a como- cdo do desenlace, Agostinho decide permanecer em Roma 6 inverno de 387 e todo o ano de 388. Preocupado como estava de defender-se do mani- quefsmo e alertar a seus amigos, compés diversos trata- dos, entre outros: “Demoribus Beclesiae Catholicae” e“De moribus maniquaeorum”, e a presente obra: “De libero arbitrio". Aredagdo desta tltima, porém, iniciada em 388, rio péde ser terminada. Apés o regresso a Tagaste, continuou-a, mas naohavia ainda sido concluida, quando, em 391, foi constrangido a ser ordenado padre, por insis- téncia do povo de Hipona. Somente ai, como presbitero, Agostinho conseguiu pér termo ao trabalho, entre 394 € 396. ernopucio 2 Como prova dessa data, temos uma carta sua 20 ‘amigo Paulino, bispo de Nola (carta 31,7), doinfciodoano 396, Junto’ missiva, enviava um exemplardos és livros de“O livre-arbitrio", reeém-terminado, 2. Boédio A obra, em forma dialogada, é em grande parte 0 relato das conversas de Agostinho com Evédio, seu amigo econterriineo. Era este jé homem formado, quando conh ceu Agostino. Fora a principio militar, tendo depois dedicado as Letras. Convertido em Milao, recebeu obat ‘mo pouco antes de Agostinho. Ficou a seu lado, apés a mortedeMénica,em Roma, eem seguida oi para Tagaste, participar da primeira comunidade de monges. Mai tarde, em 396, tornou-se bispo de Upsala, perto de Utica, na Africa proconsular. Neste dialogo como em outro, igualmente mantido com Agostinho, o“De quantitate animae” (Sobre a gran- deza da alma”), vemo-lo sempre ser tratado com muita deferéncia e respeito. Suas insisténcias contribuem a trazer aosdidlogos mais vida, mais igor nas provas e, por vezes, mais complexidade e desenvolvimento. Acontece que no livro II da presente obra, Evédio, a partir do eap. 5,12, aparece apenas brevemente uma \iniea vez, no cap. 12,46, Deverse essa auséncia pelo fato de ele no ter acompanhado seu amigo até Hipona. Entre as epistolas agostinianas, conservam-se 4 car- tas por ele dirigidas a Agostinho. A essas, deve-se acres- centar uma, descoberta hé apenas alguns anos por Dom Bruyne. Saoasdemimeros: 158, 160, 161¢ 163, E dobispo de Hipona a ele, conservaram-se apenas trés cartas: riimeros 159, 162 ¢ 164. Morreu Evédio seis anos antesde seu mestreeamigo, em 424, 13 ntRODUGAO 8. Formagao ideolégica do livro Esta importante obra tem como tema o problema da liberdade humana e o da origem do mal moral. Desde a suaadolescéncia, Agostinho preocupava-secomtais ques- tes, uma das causas de sua adesao a0 maniqueismo foi a esperanca de af encontrar uma solugio para as suas duvidas. Contudo, as fébulasheréticas nao osatisfizeram or muito tempo. Teve que prosseguir a angustiante busca da verdade. Essa fase é bem deserita em suas “Confiasdes". Leia-se 0 . I, caps. 3 ¢ 7. ‘Nao podia Agostinho suportaraidéia de que Deus fosse causa do mal. Enfim, em Miao, enquanto a eloguéncia de Ambrésio trazia-o de volta ao catolicismo, a leitura do neoplaténioo Platine trouxe-Ihe alus tdodesejada. Todavia, ainda ndo uma resposta definitivae plena Bem diregdo a Deus que Plotino condusiu Agosti- ho, para levéclo a certeza de um Criador bom e podero- 40, fonte de toda realidade. Desse modo, o mal nao po- dia ter lugar entre os seres, nem prejudicar a exceléncia 4a obra divina. Tampouco poderia o mal impedir ao ho- mem que quisesse, encontrar em Deus a paze a felicide- de. O problema jé fora por Agostinho tratado em seu didlogo“A Orden". Mas. temiveldificuldade quem Cas- siclaco ele ndo ousara enfrentar, consistia na existéncia do“pecado”. Com efeito, é bastante facil demonstrar que ‘mal fisico resolve-se com a Providéneia divina laso por- que o mal visto no conjunto néo é mais um malefcio, mas sim uma contribuigdo eo bem comum eabeleza da rdem, ‘Atéesse onto, atese neoplatinicaosatisfazia. Mas po- deria ser ditoo mesmo do mal moral, que se opie diretamen- tea vontade de Deus? Plotino dava resposta inadmissivel a essa questio perturbadora.Alegava ser amatériaessencial- ‘mente mé, ea esponsével pelomal. Agostinhonao levouer consideracdotal resposta. Mas, guiadopor seu génioe gragas TRoDUCAO 4 ‘as preciosa retifcagies que af eatlica Ihe proporcionava, ‘le propde, com coragem, uma solugéo racional. Oiintento geral de 0 livre-arbitrio aparece assim com clareza, desse ponto de vista, Segundo os dados da fé, Deus todo-poderoso.e Bem supremo criou todas as coisas por meio deseu Verbo,e nada pode escapar a ordem de sua Providén- cia, Todas as suas obras tio boas. O pecado nao pode lhe ser imputado, nem ficar fora da ordem providencial. Diz. Agos- ‘inho: “B' preciso compreender aquilo em que cremos” (12,4; 1,26). Ble procura explicar pela razao a origem do pecado e seu papel na obra de Deus. Em conclusio, chega a ‘afirmar em sintese a fonte do mal moral, o pecado, est no ‘abuso da liberdade, mas esta é um bem. Insiste nisso com ‘tamanhaforga queospelagianos, mais tarde, invocardo, em ‘azo, suas afirmagSes para sustentar as préprias teses. 4, Breve sintese das idéias fundamentais Antes de tudo, para descobrir a origem do pecado, 6 preciso saber qual a sua esséncia. Ora, cometer omal néo ‘nada mais do que submeter sua vontade as paixdes, ou preferir aos bens propostos pela fé eterna uma satisfagéo pessoal. E isso 86 & posstvel pela livre opgao de nossa vontade (livro I). OlivroIl 6ocoragoda obra. Num método ascensional, ‘Agostinho prova a existéncia de Deus, autor de todo bem. Ea vontade livre, mesmo fraca, nao se pode recusar um lugar honroso entre os bens criados. O livro III é complemento e esclarecimento dos livros anteriores. Trata da Providéncia de Deusem face ao seres, livres. Portanto, sempre louvar a Deus por ter criado a vontade livre, mesmo pecadora, como um elemento da ordem universal. Por certo, 0 pecado no depende da presciéncia divina, e nao é necessério & ordem. Sua pre- senca, porém, ndo consegue tornar aordem atual indigna 6 NTRODUCAO de Deus. A ultima palavra a respeito do pecado, como do ‘mal fisico, sera sempre: “Louvores a Deus!” ‘Tal 6 a trama essencial, simples e poderosa de “O livee-arbitrio’ 5. Andlise do andamento dos trés livros Note-se que a divieio em capitulos e ntimeros est conforme o original latino. Todavia, as divisies em partes, fe seegdes, assim como os titulos dados, para melhor com- preensio da leitura, é de autoria da tradutora. ‘Nas Notas complementares encontrar-se-io sinteses dos assuntos tratados, & medida do decorrer dos temas. 6. O livre-arbitrio e 0 maniquetsmo Sem diivida alguma, este diélogo foi especialmente escrito contra os erros dos maniqueus, sem todavia cons- tituir uma obra polémica. Tendo-se convertidoesentindo- ‘se no caminho da verdade, Agostinho sentia necessidade de recuperar-se, a sie aos amigos. Eis uma breve sintese da teoria maniquéia: Para os ‘maniqueus, havia duas divindades supremas a presidiro universo: 0 prinefpio do Bem eodoMal—aluzeastrevas. ‘Como conseqiiéncia moral, afirmavam ter o homem duas almas. Cada uma presidida por um desses dois prine‘pios. Logo, o mal é metafisico e ontolégico. A pessoa nao é livre nem responsdvel pelo mal que faz. Este lhe é imposto. 7.A solugdo do problema do mat na interpretagao de Agostinho Ao grande problema do mal, conseguiu Agostinho apresentar uma explicagao que se tornou ponto de referés cia durante séculos e ainda hoje conserva a sua validade. muTRoDUCKO 16 —Se tudo provém de Deus, que é 0 Bem, de onde provém o mal? Depois de ter sido vitima da explicagao ualista maniquéia, como vimos, ele encontra em Plotino a chave para resolver aquestio: o mal nio é um ser, mas deficigncia e privagao de ser. B ele aprofunda ainda mais a questio. Examina 0 problema do mal em trés niveis: a) metafisico-ontalégico; ) moral; fisio. — a) Do ponto de vista metafisico-ontoligico, nao existe mal no cosmos, mas apenas graus inferiores de ser, em relagio a Deus, graus esses que dependem da finitude do ser eriado e dos diferentes niveis dessa finitude. Mas mesmo aquilo que, numa consideracao superficial, parece “defeito"(e portanto poderia parecer mal), na realidade, na ética do universo, visto em seu conjunto, desaparece. ‘As coisas, as mais infimas, revelam-se momentos articu- lados de tum grande conjunto harménico. —b) O mal moral é 0 pecado. Esse depende de nossa mé vontade. E'a ma vontade nao tem “causa eficiente’, sim muito mais, “causa deficiente”. Por sua natureza, a vontade deveria tender para o Bem supremo. Mas, como cexistem muitos bens eriadose finitos, a vontade pode vir a tender a eles e, subvertendo a ordem hierérquica, preferiracriatura a Deus, optandopor bens nferiores,em ver dos hens superiores. Sendo assim, omel derivado ato dequeniohé um inicobem, sim muitos bens, con do precisamente o pecado na escalha ineorreta entre es- sos bens. O mal moral, portando, é ‘aversio a Deo” e ‘conversio ad ereaturam”. O fato de se ter recebido de Deus uma vontade live é para nés grande bem. O mal é ‘o mau uso dese grande ber. —€) 0 mal fisico, como as doencas, os sofrimentos ‘¢a morte, tem significado bem preciso para quem reflete na fé: 6 a consequéncia do pecado original, ou seja, 6 conseqiiéncia domal moral. Acorrupsiodo corpoque pesa ” eTmoDuGao sobre a alma no éacausa, masa pena do primeiro pecado (cf.G.Reale,D. Antiseri, “Hist. da Filosofia", Paulus, pp. 455. 456). 8. As “Retractationes” ¢ a resposta aos pelagianos No precioso livro de revisio de suas obras, tio con: cienciosamente elaborado pelo bispo de Hipona, no nal de sua vida, a noticia a respeito de *O livre-arbitrio” 6 das mais longas e importantes. Encontramo-la. no LI,9,16. ‘A posicao de Agostinho é muito clara. Bxplica le que setratavaentdo, naquelaccasiao,derefutaros maniqueus, 8 quais negam o livre-arbitrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a responsabilidade pelo mal e pelo pecado. E contra eles que o tratado insiste,valorizando grandemente 0 papel da liberdade humana. A tal ponto que, na controvérsia pelagiana, advinda anos apés, Pelé- gio nao hesitou em se servir do “De libero arbitrio” para atacar a doutrina eatélica do pecado original. Pretendeu até tirar da obra argumentos de certas férmulas antima- niguéias de Agostinho. O doutor de Hipona assinala 13 passagens das quais os pelagianos poderiam abusar con- tra ele, Mas em ver de responder sucessivamente as dificuldades apresentadas por essas passagens, ele prefe- re lembré-las em bloco. No final, toma resolutamente a ofensiva para explicar em que sentido falou sobre a li berdade. E lembra, vitoriosamente, que, pelo menos em quatro lugares, fez mengio da acio indispensével da graga de Deus. Na verdade, nao se pode argumentar do mesmo ‘modo contra a doutrina dos maniqueus ea dos pelagianos... Leiam-se as notas complementares desta edigdo: —no |. In, 28(12, 26), 30(13,28); 33(14,80); nol In, 20,2); 60(18,47); —no | Il: n. 82(18,50); 84(18,52); 40(20,58). rnopucko 18 Em conclusao, constatamos que se é certo que Agos- tinho, no presente didlogo, ndo fala com insisténeia sobre ‘a graca como medicina e socorro do livre-arbitrio, porém insinua-a vérias vezes. Numa delas, expressamente (11,20,54). O que ele repete, uma e mil vezes, é que 0 ho- mem élivre para fazer obem e que nao ¢forcado.acometer mal por nenhuma necessidade. Se o homem peca, a culpa é sua. Agostinho insiste fortemente na bondade cessencial e infinita de Deus. Sem o livre-arbitrio nao ha- veria mérito nem desmérito, gloria nem vitupério, res- ponsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vicio (cf. BAC III, Introducao, p. 246). Santo Agostinho, na verdade, constituiu-se 0 de- fensor de nossa liberdade e da graca divina, ao mesmo tempo. 9. A vontade, a liberdade e a graca Etienne Gilson resumiu de modo muito eficaz 0 pensamento agostinianosobreasrelagéesentrea liberda- de, a vontade e a graca, da seguinte forma: “Duas condi- es so exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que 6 a graca e o livre-arbitrio. Sem o livre-arbitrio nao haveria problemas; sem a graga, o livre-arbitrio (apés 0 pecado original) nao quereria obem ou, seo quisesse, nao conseguiria realizé-lo. A graca, portanto, nao tem oefeito de suprimir a vontade, mas sim de torné-la boa, pois ela se transformara em ma. Esse poder de usar bem o livre- arbitrio 6 precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer omal 6 inseparével do livre-arbitrio, mas o poder de no fazé-lo 6 a marca da liberdade, E o fato de alguém se encontrar confirmado na graca, a pontode nao poder mais fazer 0 mal, 6 0 grau supremo da liberdade. Assim, 0 homem que estiver mais completamente dominado pela raga de Cristo sera também o mais livre: ‘libertas vera 19 erRoDUGAO est Christo servire” (cf. Gilson, “Introduction a rétude de Saint Augustin’, pp. 202s) 10, Agostinho,fildsofo ou teélogo? A presente obra é considerada como uma das que melhor apresenta o pensamento filoséfico de Agostinko. ‘Mas sabemos que, para ele, o estudo da filosofia sempre {foi caminhada para Deus eno pura ocupacio intelectual. Ea sabedoria, certa posse beatificante de Deus. Dessa maneira, Agostinho foi sobretudo tedlogo, e até os seus trabalhosfiloséficos sao dirigidos para. teologia.“Olivre- arbitrio” 6 exemplotipico disso. Nao obstante, em suas pesquisas racionais, a Revela- so no intervém diretamente. Mostra-se apenas como tum ponto de apoio indireto. teocentrismo agostiniano é fundante. Sera pela idéia de Deus que se estabelece a comunicagaoentrefilosofia eteologia. Inclusive aidéia de Deus, em plano natural, encontra-se necessariamente enriquecida por toda uma contribuigdo sobrenatural, Repousa sobre ela, como em sua base normal. ‘As principais passagens em que Agostinho refere-se expressamente ao plano teoldgico, nesta obra, sio as seguintes: 1125; 6,14; 1 IL: 26; 8,24; 11,30; 14,87; 16,99; 20,54; 1. IIE 9,28; 10,31 e quase toda a 3* Parte: 17,47 a 25,76. 1. Apreciagao geral da obra Este livro é realmente um grande tratado de porte e duragdio. Obra extensa, profunda e decisiva, deimportan- cia excepcional, pelos muiltiplos e graves problemas estu- dados, sobretudo aquele fundamental, a respeitoda natu- ernopucio 20 reza, origem e causa do pecado, assim como a responsabi- lidade humana por seus atos livres (cf. Pe. E. Seijas, BAC II, p. 240). ‘Apresenta Agostinho uma demonstracdo racional da ‘moral, fandamentando-a. Nao seria suficiente, para ele, ‘uma explicagao psicolégica do livre-arbitrio. Tampouco, contenta-se com a contribuigao da f6, pois recorre expres- samente & razdo (II,2,5.6) ‘0 que hé de mais valioso na obra 6 a prova da existéncia de Deus. E ela original de Agostinho. Jé fora exposta de modo abreviado em “A verdadeira religiao” (90,54-56; 31,57), todavia encontra-se aqui exposta de maneira mais extensa. ‘Edenominada a prova pela verdade, pelas idéiaseternas,ou ‘melhor, prova pela via do esptrito. 86 a razao argumenta. Outro ponto de particular valor é a doutrina exposta sobre a Providéneia, no L. II. Ja foi dito ser esse um dos ‘mais possantes fardis a iluminarem constantemente 0 pensamento do genial Agostinho. Essa tese que dominou toda sua vida, dominou também toda a Idade Média. 12, Influéncia exercida por Agostinko, em particular através desta obra ‘Agostinho é considerado, sem contestagio, um dos, ‘maiores génios de todos os tempos. DizB. Altaner na sua Patrologia:“Agostinho 60 mais ceximio fil6sofo dentre os Padres da Igreja e, sem divida, ‘o mais insigne te6logo de toda a Igreja. Jé em vida, suas ‘obras Ihe granjearam numerosos admiradores. Exereeu profunda influéneia na vida da Igreja ocidental, e que perdura até & época moderna. Isso nao s6 na filosofia, dogmética, na teologia moral emistica, masaindana vida social e caritativa, e também na formagio da cultura medieval” (ef. op. cit., p. 415). 21 nTRODUGAO Em particular, foi imensa a influéncia operada por meio deste dialogo filoséfico, no transcurso dos séculos. Nao hé escritor, em toda a Idade Média, que fale ou trate da questi do livre-arbitrio e do pecado que nao tenha ido beber nesta fonte agostiniana. Baaté os nossos dias, os temas debatidos na presente obra permanecem de real atualidade. A leitura refletida fe degustada ser muito enriquecedora a todos os que buscam conhecimento mais aprofundado sobre as te- iticas expostas, LIVROI O PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO INTRODUGAO(,1-2,5) O PROBLEMA DO MAL Capitulo 1 & Deus o autor do mal? 1. Euddio Pego-te que me digas, sera Deus 0 autor do mal?! ‘Agostino Dir-te-i, se antes me explicares a que mal te referes. Pois, habitualmente, tomamos 0 termo “mal” em dois sentidos: um, ao dizer que alguém praticou © mal; outro, ao dizer que sofreu algum mal ‘Ev. Quero saber a respeito de um e de outro, ‘Ag, Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus 6 bom —e nfo nos é permitido pensar de outro modo —, Deus rio pode praticar 0 mal, Por outro lado, se proclamamos ser ele justo — e negé-lo seria blasfémia —, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como eastigos aos ‘aus. E por certo, tais castigos parecem males aqueles que 08 padecem. H porque, visto ninguém ser punido injustamente — como devemos acreditar, ja que, de acor- o.com a nossa fé, 6a divina Providéncia que dirige ouni- ‘verso —, Deus de modo algum seré oautor daquele primeiro ‘género de males a que nos referimos, #6 do segundo Ev, Havers entao algum outro autor do primeiro gé- zero de mal, uma ver estar claro nio ser Deus? "Ag. Certamente, pois o mal no poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja (PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 26 ‘autor, nao o poderia dizer. Com efeito, no existe um 6 «tinico autor. Pois cada pessoa ao cometé-lo é 0 autor de ‘sua mé agao. Se duvidas, reflete noquejé dissemos acima: ‘as mas agdes so punidas pela justiga de Deus. Ora, elas nndo seriam punidas com justica, se‘nao tivessem sido praticadas de modo voluntario# O mal vem por ter sido ensinado? 2. Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido. Mas caso isso seja verdade, pergun- to; De quem aprendemos a pecar? Ag. Julgasa instrucdo (disciplinam) ser algo de bom? Quem se atreveri a dizer que ainstrugio é um ‘Ag. E-caso no for nem um bem nem um mal? Ev. Amim, parece-me que é um bem. ‘Ag. Por certo! Com efeito, a instrugdo comunica-nos ou desperta em nés a ciéneia, e ninguém aprende algo se 1ndo for por meio da instrugdo. Acaso tens outra opiniio? Ev. Pengo que por meio da instrugao nao se pode aprender a no ser coisas boas. Ag. Ves, entéo, que as coisas mas nao se aprendem, postoque o termo “instrucio” deriva precisamente do fato de alguém se instruir. Ev. De onde hio de vir, entao, as mas agdes pratica- das pelos homens, se elas nao sio aprendidas? Ag. Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro ensino, isto 6, dos meios de instru- 40. Mas isso vem a ser outra questo. O que, porém, ‘mostra-se evidente é que a instrugso sempre é um bem, vvisto que tal termo deriva do verbo“instruir”. Assim, serd impossivel o mal ser objeto de instrugio. Caso fosse censinado, estaria contido no ensino e, desse modo, a instrugio nao seria um bem. Ora, a instrugio é um bem, a (OPROBLEMADO MAL ‘como tu mesmo jé 0 reconheceste, Logo, 0 mal nao se aprende. B em vao que procuras quem nos teria ensinado 1 praticé-lo. Logo, se a instrugio falar sobre o mal, sera para nos ensinar a evité-lo endo para nos levar a cometé- lo, De onde se segue que, fazer omal, ndo seria outra coisa doquerenunciar a instrugdo. (Poisa verdadeira instrucéo 86 pode ser para o bem.) 3. Ev, Nao obstante, julgo que ha duas espécies de instrugio: uma que nos ensina a praticar obem, eoutra a praticar o mal. Mas ao me perguntares se a instrucio era ‘um bem, o amor mesmo do bem absorveu-mea atencaode tal modo a me fazer considerar, unicamente, o ensino re- lative as boas ages, motivo pelo qual respondi queele era sempre um bem. Mas dou-me conta, agora, que existe um. outro ensino, que reconhego seguramente ser mau, e de cexjo autor indago. ‘Ag. Vejamos. Admites pelo menos o segui inteligéncia integralmente um bem? Ev, Ala, com efeito, considero de tal modo ser um bem, que nada vejo poder existir de melhor no homem. De ‘maneira alguma posso considerar a inteligéncia como um mal, ‘Ag. Mas quando alguém for ensinado e nao se ser- vir da inteligéncia para entender, poder ser ele con- siderado como alguém que fica instruido? O que te pa- Ey, Parece-me que ele no o pode de modo algum. ‘Ag. Logo, se toda a inteligéneia é boa, e quem nao ‘usa da inteligéncia nao aprende, segue-se que todo aguele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligéncia e todo aquele ‘que usa da inteligéncia procede bem. Assim, procurar 0 autor de nossa instrucao, sem diivida, é procuraro autor de nossas boas agées. Deixa, pois, de pretender descobrir 5 serdia ‘PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBETRIO 28 no sei que mau ensinante, Pois se, na verdade, for mau, ele no seré mestre. £ caso eeja mestre, nao poderd ser. Capitulo 2 Por qual motivo agimos mal? 4, Ev, Sejacomodizes, ja que tao fortemente me obrigas areconhecer que nio aprendemos a fazer o mal, Dize-me, entretanto, qual a causa de praticarmos o mal? * Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questo que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito Jovem. Apés ter-me cansado inutilmente de resolvé-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violéneia que fiquei prostrado. Tao ferido, sob o peso de tamanhas e tio inconsistentes fabulas, que se ndo fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se no tivesse conseguido 0 auxilio divino, nao teria po- dido emergir de 14 nem aspirar & primeira das liber- dades—a de poder buscar a verdade.* Visto que a ordem seguida, entio, atuou em mim com tanta eficécia para resolver satisfatoriamente essa questo, seguirei igual- ‘mente contigo aquela mesma ordem pela qual fui iberta- do. Seja-nos, pois, Deus propicio ¢ faga-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos, assim, bem certos de estar seguindo o caminho tragado pelo profeta que diz: “Se nao acreditardes nao entendereis”* Ora, nés cremos em um s6 Deus, de quem procede tudo aquilo que existe. Nao obstante, Deus nao é 0 autor do pecado. Todavia, perturba-nos o espfrito uma considera- so: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como nio atribuir a Deus os pecados, sendo tio imediata a relagdo entre ambos? 29 ‘PROBLEMA DO MAL. Pontos fundamentais da fé 5. Ev, Acabas de formular, com toda clareza e preciso, a dhivida que cruelmente me atormentou o pensamento,e ‘que justamente me levou a me empenhar nesta reflexao contigo. . ‘Ag. Tem coragem e conserva a fé naquilo que crés. Nada é mais recomendével do que crer, até no caso de estar oculta a razio de por que isso ser assim e nao de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opiniao mais excelente possivel é 0 comeco mais auténtico da piedade.* E ninguém teré de Deus um alto conceito, se nao crer que ele 6 todo-poderoso e que ndo possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudanga. Crer ainda que ele é 0 Criador de todos os bens, aos quais ¢ infinita- ‘mente superior; assim como ser ele aquele que governa com perfeita justiga tudo quanto criou, sem sentir neces- sidade de eriar qualquer ser que seja, como se no fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada. Entretanto, ele gerou, nao o criou, de sua propria esséncia, aquele que Ihe 6 igual, o qual é como professa- ‘mos, o Filho tinico de Deus. E aquele a quem nés denomi- amos, procurando as expresses mais acessiveis: “For- ea de Deus e Sabedoria de Deus” (1Cor 1,24). Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada. ‘Tudo isto tendo sido estabelecido, contando com a ajuda de Deus, procuremos agora, com empenho, compre- ender a questo por ti proposta, seguindo a ordem que se segue. PRIMEIRA PARTE (3,6-6,15) ESSENCIA DO PECADO — SUBMISSAO DA RAZAO AS PAIXOES Capitulo 3 Busca da origem do pecado 6. Ag. Tu me perguntas: Qual a causa de procedermos mal? E preciso examinarmos, primeiramente, o que seja proceder mal. Dize-me o que pensas a esse respeito, Ou, ‘se ndo podes resumir todo o teu pensamento em poucas palavras, pelo menos, dé-me a conhecer tua opinido, ‘mencionando algumas més agées, em especial Ev. Osadultérios, os homicidios eos sacrilégios,’ sem falar de outros maus procedimentos, os quais no poss ‘enumerar, por me faltar tempo e meméria. Quem nao considera aquelas acdes como mas? Ag. Dize-me, primeiro, por que consideras 0 adulté- 40? Nao ser porque a lei o proibe de ser Ev. Porcertoquendo. Blendoéum mal precisamente por ser proibido pela lei, mas, aocontrario, éproibido pela lei por ser mal. Ag. Pois bem! Mas se alguém insistir junto a nés, ‘exagerando os prazeres do adultério e perguntando-nos, ppor que o julgamos mau e condensvel? Seria preciso, na ‘tua opinido, recorrer a autoridade da lei, junto aqueles que desejam nao somente crer, mas também entender? Pois eu também, como tu, ereio inabalavelmente e até 31 [ESSENCIA DO PECADO proclamo que todas as nacdes e povos devem admitir ser © adultério um mal. Agora, porém, a respeito dessas verdades confiadas & nossa fé, esforcamo-nos de ter igual- ‘mente um conhecimento pela razio, mantendo-as com certeza plena.’ Reflete, pois, o quanto puderes, e dize-me por quais motivos erés que o adultério é um mal. Ev. Sei que 6 um mal porque ndo quisera ser eu ‘mesmo vitima dele, na pessoa de minha esposa. Ora, quem quer que faga um maloqual ndoquer que lhefacam, procede mal. ‘Ag. Entao! E se a paixio inspirasse a alguém de centregar sua prépria esposa a outro, ede aceitar volunta- riamente que ela fosee violentada, desejando ele, por sua ‘vez, obter a mesma permissio em relacdo a esposa do ‘outro? Conforme tua opinifo, néo faria ele mal nenhum? Ev. Ao contrério, ele agiria muito mal. ‘Ag. Mas conforme a regra proposta hé pouco por ti, ‘esse homem nao peca, porque néo faz o que nio gostaria de suportar. Procura, por conseguinte, outra razo para me convenceres de que o adultério é mal Razées insuficientes da origem do mal 7. Bv, Parece-me ser o adultério ato mau, porque mui- tas vezes tenho visto homens serem condenados por esse ‘Ag. Ora! Nao se tem condenado também, com fre- 4éncia, a muitos homens, por suas boas agdes? Recorda aquela histéra,ejé nio te envio a outros livros profanos, mas &histéria que é mais excelente que todas as outras, por gozar da autoridade divina (os Atos dos Apéstolos). Encontrards af o quanto deveriamos ter em mé opiniaioos apéstolos e todos os martires, se accitassemos ser a condenagdo de um homem por outros osinal certo de ma aio. Pois todos aqueles eristios foram julgados dignos de (OPECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 32 condenacao por terem confessado a sua fé. De modo que, se for mal tudo o que os homens condenam, segue-se que, naquele tempo, era crime crer em Cristo e confessar a prépria f6, Mas se nem tudo que é condenado pelos homens 6 mal, serd preciso que procures outra razio que te permita me garantir que 0 adultério é mal. Ev. Nada encontro para te responder. 0 mal provém da paixdo interior 8. Ag. Talver seja na paixdo que esteja a malicia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visfvel,cafateem impasse.Para tefazer compreender que 4 paixio é bem aquilo que é mal no adultério, considera umhomem questa impossibilitado de abusar da mulher de seu préximo. Todavia, sefor demonstrado, deum modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se 0 pudesse, segue-se que ele no é menos culpado por ai do que se tivesse sido apanhado em flagrantedelito (Mt 5,28). Ev, Nada 6 tao evidente. Vejo jé nao ser mais preciso longos discursos para me convencares do mesmo respei- todo homicidio, do sacrlégioe, enfim, de todos os outros pecados. Com efeito, ¢ claro que em todas as espécies de ages mas 6 a paixéo que domina. Capitulo 4 Objegdo: ¢ os homicidios cometidos sem paixio? 9. Ag. Sabes que essa paixio 6 também denominada ‘concupiscéncia?"™ Ev. Sei. Ag. E 0 que pensas? Entre essa concupiscéncia ¢ o medo, hé alguma diferenca ou nenhuma? 33 [ESSENCIA DO PECADO Ev. Parece-me haver grande diferenca entre eles. ‘Ag. Acho que és dessa opiniao porque a concupiscén- cia tende para o objeto e que o medo o foge? Ev. E-bem como dizes. ‘Ag Pois bem! Se um homem matar a outro, nao pelo desejo de conseguir alguma coisa, mas pelo temor dde que Ihe suceda algum mal? Nao seria esse homem hhomicida? Ep, Certamente,o seria. Mas nem por isso sua aco deixaria de ser dominada pela concupiseéncia. Pois aque- Je que mata um homem levado pelo medo, deseja, sem duivida, viver sem medo. ‘Ag. E parece-te que viver sem medo é algum bem de somenos? Ey. Ao contrério, parece-me ser um bem muito gran- de, Masde modo algum esse bem deve chegar aohomicida por meio de crime. ‘Ag. Nao pergunto o que pode chegar a esse homem, mas que deseja. Pois, por certo, visa a um bem quem deseja uma vida isenta de medo. Por isso, nao podemos condenar tal desejo. Caso contrario, deveriamos declarar ceulposos todos aqueles que desejam algum bem. Logo, somos forgados a reconhecer que ha uma espécie de hhomicidio no qual nao se pode encontrar a primazia de mau desejo. Portanto, néo seré exato dizer que todo pecado, para que seja mal, nelea paixaodeve dominar. Ou em outras palavras, haveria uma espécie de homicidio que poderia nao ser pecado. Ev. De fato, Se o homicidio consiste no ato de matar ‘um homem, pode acontecer que isso seja, por vezes, sem pecado. Pois o soldado mata o inimigo; o juiz ou seu mandante executa 0 criminoso; e também, talver, o lan- ‘adorde flechas, quando uma delas escapa de suas mos, ‘sem 0 querer ou por inadverténcia, Todas essas pessoas, 1nio me parecem pecar ao matar um homem, ‘OPBCABO PROVES DO LIVRE-ARBITRIO 34 ‘Ag, Concordo, Mas comumente essas pessoas sequer sio chamadas homicidas. Assim, responde agora: se al- gum escravo, temendo graves tormentos, mata o seu se- hor, pensas que ele deve ser incluido ou ndo entre aque- Jes que matam nessas cireunstancias que nio merecem 0 nome de homicidio? Ev, Vejo uma’ grande diferenga entre esse ultimo hhomem, o escravo, ¢os outros. Pois estes, ou bem atuam conforme ale, ou enti nada fazem contra ela. Ao passo ‘que o crime desse ultimo nao tem a aprovagio de lei alguma, 10. Ag. Outra ver, tu me conduzes & autoridade, como rrazio ultima, Nao deves esquecer, porém, 0 que nés nos propusemos neste momento: compreender aquilo a que damos crédito. Ora, quanto & lei, nés cremos nela, mas é preciso tentar, na medida do possivel, compreender este ponto: a lei ao punir tal ato, se assim o faz ou no, com ratio, Eo. De modo algum a lei pune sem razio neste caso. Pois ela pune o escravo que, sabendo e querendo, matou ‘0 seu senhor. O que nao acontece nos outros casos supracitados. ‘Ag. Como? Nao telembras teresdito,hé uminstante, ‘que a paixdo domina em toda mé ago e que essa se torna ma, por isso mesmo? Ev. Recordo-me perfeitamente. ‘Ag. E ainda: ndo concedeste, igualmente, que se alguém deseja viver sem medo nao possui mau desejo? ‘Ev, Também me recordo disso, Ag. Logo, quando aquele senhor émorto pelo eseravo, levadoeste pelo desejo de viver sem temor, ndoomata por desejo culpavel. Por consequéncia, ainda nao compreen- demos qual o motive deesea acdo ser criminosa. Posto que ‘estamos concordesem que todas as ages mas unicamente 35 siomés por causa da paixao pela qui 6, por desejo culpavel. Ev, Agora, aquele escravo parece-m: injustamente. Mas, na verdade, nao ousaria afirmar isso, se pudesse encontrar alguma outra razao a apresentar. Ag. Seré possivel que te tenhas convencido de se dever declarar impune crime tao grande, antes de exami- nares com cuidado se acaso esse escravo nio desejava, no fando, libertar-se do temor de seu senhor, unicamente para satisfazer as suas paixses? Com efeito, desejar vida sem temor, nao s6 6 proprio de homens bons, como tam- bem dos maus. Com esta diferenga, porém: os bons 0 desejam renunciando ao amor daquelas coisas que nao se podem possuir sem perigo de perdé-las. Os maus, 20 contrario, desejam uma vida sem temor, para gozar plena fe seguramente de tais coisas, e para isso esforcam-se de qualquer modo para afastar todos os obstaculos que impegam. Levam entao vida criminosa e perversa— vida que deveria antes ser chamada de morte. Eo. Confesso meu erro, e alegro-me muito de ha- ver compreendido claramente a natureza desse desejo culpavel que se chama paixfo. Agora, vejo com evidéncia em que consiste esse amor desordenado por aquelas coisas terrenas que se podem perder contra a prépria vontade. Outra objegao: ¢ os homicidios cometidos em autodefesa, admitidos pela lei civil 11. Ev. Procuremos pois agora, caso te agrade, se é a paixio que também domina nos sacrilégios, os quais ‘vemos, muitas vezes, serem cometidos por supersti¢ao. (PECADO PROVEN DO LIVRE-ARBITRIO 36 Ag. Considera se nio 6 prematura tal questo. Amim. pparecesme ser preciso examinar, primeiramente, se acaso pode-se matar, sem nenhuma espécie de paixdo, a um inimigo que violentamente nos ataca ou a um assaltante ‘quese langacontra nds demodo traicoeiro. Issoemdefesa, ‘seja da prépria vida, seja da liberdade ou do pudor. Ev. Com poderia pensar que estejam sem paixio aqueles que lutam para salvaguardar essas coisas, as ‘quais 26 poderiam vir a perder contra a propria vontade? Ou entao, caso no as percam desse modo, qual seria a necessidade de as defender a ponto de causar a morte de um homem? ‘Ag. Naoserdoentdojustas as eis que permitemaum vigjante matar a seu assaltante, para que ele mesmo nao seja morto? Ou ainda, ofatode ser permitidoa um homem oa a uma mulher, cuja virtude querem violentar, de exterminarem oseu agressor, antes de serem estuprados? Ora, a propria lei ordena ao soldado de matar o inimigo. Eno caso de ele se recusar a isso, teria punicao por parte de seus chefes. Porventura, ousariamos afirmar que tais, leis sao injustas e mesmo nao serem leis? Porque a mim. ‘me parece que uma lei que nao seja justa no 6 lei." Poder matar um agressor nao significa dever maté-lo 12. Ev. Quantoallei, eu a vejo suficientemente defendida dessa acusagao, pelo fato de ela permitir ao povo, ao qual rege, delitos menores para impedir que se cometam ou- ‘ros piores. Com efeito, a morte de agressor injusto é mal menor do que a de um homem que mata em legitima defesa, E que um homem seja violentado em seu corpo ‘contra sua vontade 6 coisa bem mais horrivel doque ofato de 0 autor de tamanha violéncia ser morto por aquele a quem intentava agredir. Quanto ao soldado ao matar 0 inimigo,éele mesmo oministroda lei, Razao pela qual lhe 37 BSs#Ncta DO PECADO 6 facil cumprir seu dever, sem qualquer paixdo, Além do mais, a prépria lei que foi promulgada para a defesa do povo nio merece acusagao alguma de ser portadora de qualquer paixao. Porque se aquele que fez a lei a decretou para proteger opovo, conforme a ordem de Deus, ito 6, de acordo com as prescrigdes da justica eterna, ele a decretou sem se sentir movido pela paixao. Mas mesmo se tivesse sido movido por alguma paixao ao legislar, nao se seguedai que se devaceder a paixio, ao observé-la, Pois ‘uma boa lei pode ser dada por mau legislador. Por exem- plo, se um tirano, tendo chegado ao poder, recebe uma soma de dinheiro de certo cidadao, a quem isso interessa, para ser decretado que a ninguém seja Ifcito raptar uma ‘mulher—nem mesmopara secasarcomela—,acasoseré mé essa lei, pelo fato de ter sido dada por injusto corrompido tirano? Pode-se portanto, sem paixao, confor- mar-se a lei, a qual, para proteger os cidadios, manda repelir com forga 0 assalto violento do inimigo, E pode-se dizer a mesma coisa acerca de todos aqueles que esto Juridica e hierarquicamente sob as ordens de qualquer autoridade. Entretanto, em relagao aquelas outras pessoas de ue falévamos, nao vejo como, apés termos justificado a ei, possam elas mesmas serem desculpadas. Visto que a lei ndo as obriga a matar. Deixa-lhes somente a possibi- lidade de o fazer. Ficam elas assim livres de nao matar ‘4 ninguém, em defesa daqueles bens que poderiam per~ der contra a prépria vontade e que devido a isso nao deveriam amar com tanto apego. Assim, quanto a vida, alguém se poderd perguntar, talvez, se ela é ou nao tira: da, com a morte do corpo, Caso ela possa ser tirada, entao éumbem menos aprecidvel. Caso no possa,nada ha para se temer. Quanto a0 pudor, quem duvida que ele reside na Prépria alma, visto ser uma virtude? De onde se se- ‘O PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 38 ‘gue que nao poderd ser arrebatado pela profanacao involuntéria do corpo. Por conseguinte, nao esté em rosso poder conservar tudo que aquele injusto agres- sor poderia nos arrebatar, ele a quem se pode infligir a morte. ‘Assim, nao compreendo em que sentido podemos dizer que esse bem, a vida do corpo, ¢ chamado “nosso” Malgrado isso, nao condeno a lei que autoriza matar 08 ‘agressores, Mas nao encontro como justificar aos que de {fato os matam, ‘As paixdes — desculpadas pela lei civil, ‘condenadas pela lei divina 13. Ag. E eu encontro menos motivo ainda, por qual ‘razao procuras defender eases homens aos quais nenhu- ma lei considera como culpados. Ev. Talvez, nao os condene nenhuma dessas leis exteriores que os homens podem ler. Mas nao sei se eles ‘mesmos nao esto sujeitos a outra lei, muito mais rigoro- sa, e bem secreta, jé que a divina Providénca nada deixa de governar neste mundo. Diante dessa lei divina, com feito, como poderiam estar isentos de pecado aqueles que se mancham com sangue humano, para defender coisas dignas de menos aprego? Parece-me, pois, quea leiescrita ‘para governar 08 povos autoriza, com razio, atos que & Providéneia divina pune. Isso porque a lei humana esta encarregada de reprimir crimes, em vista de manter a paz entre homens carentes de experiéncia, eo quanto estiver 120 aleance do governo, constituide de homens mortais. ‘Quanto as outras faltas, é certo que existem para elas penalidades adequadas, as quais, a meu parecer, 36 mes- mo a sabedoria pode libertar."* ‘Ag. Louvoe aprovo esta distingio gue propées, ainda ‘que apenas esbocada e imperfeita. E ela, entretanto, 39 [BSSENCIA DO PECADO romissora em vista de reger a sociedade civil. Parece tolerar e deixar impunes muitas agées que, nao obstante, serio punidas pla Provdéncadivina, com rast, lso 6 verdade, mas sea lei humana nio faz tudo, nao seré por isso motivo de reprovagao pelo que faz. Capitulo 6 Solugao: saber distinguir a lei eterna das leis temporais que ponto as més acies devem ser castigadas pela lei Melee Sas aoa tars de carto ‘modo oculto, mas inevitavel. . “ahi Sti "2 ez! ra canna Steet ents a mt i a ee wanes! ’ciooria dan coisa qe nt poder peer em mar por etem carne nav coro ois sia eat ‘OPRCADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 40 Bo. Quem duvida que aespécie humana seja mutével ce sujeita as vicissitudes do tempo? "Ag. Jogo, quando um povo for de costumes modera- dos e dignos, guardiio diligente da utilidade publica, a ponto de cada um preferir o bem comum ao seu interesse particular, nao seria justo ao dito povo poder promulgar tuma lei que Ihe permitisse nomear para si magistrados encarregados de administrar os seus negécios, isto 6, 08 negécios piblicos? Ee. Seria muito justo, sem diivida ‘Ag, Contudo, no caso de esse mesmo povo ir eaindo ‘aos poucos, depravando-se, e caso ponha o seu interesse particular acima do nteresse ptblico,e viera venderoseu sufrégio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam as honras, confiar o governo ‘a homens malvados e criminosos, nao seria justo — caso ainda se encontrasse um s6 homem de bem, revestido de influéneia excepcional — que esse homem tirasse do povo ‘afaculdade de poder distribuir as honras, para depositar ‘adecisio" nas maos de alguns poucos cidadios honestos ‘ou mesmo de um 26 que fosse?** Ep. Isso também seria muito justo. ‘Ag. Bis, pois, duas leis que parecem estar em con- tradigao entre si. Uma delas confere ao povo 0 poder de cleger os seus magistrados; a outra recusa-Ihe essa prer- rogativa. Ea segunda lei mostra-se expressa em tais, rmoldes que as duas nao podem de modo algum coexis- tirjuntas, na mesma cidade, Assim sendo, haverfamos de dizer que uma delas ¢ injusta e ndo deveria ter sido promulgada? Eo. De modo algum, ‘Ag. Denominemos, pois, se 0 quiseres, de temporal a ‘essa lei que a principio é justa, entretanto, conforme as circunstancias dos tempos, pode ser mudada, sem injustica. Ev. Assim seja, au _BSSBNCIA DO PECADO Nogdo da lei eterna 15. Ag. Mas quanto aquela lei que é chamada a Ra- 20 suprema de tudo," a qual é preciso obedecer sempre em virtude da qual os bons merecem vida feliz! e o8 ‘maus vida infeliz, é ela o fundamento da retidio e das ‘modificagies daquela outra ei quejustamente denomina- ‘mos temporal, como ja explicamos? Poderé a lei eterna parecer, a quem quer quo reflita a esse respeit, nao ser imutével e eterna ou, em outros termos, poderd ela ser alguma vez considerada injusta, quando os maus tor- nam-se desaventurados ¢ os bons, bem-aventurados? Ou tentio, que a um povo de costumes pacificos seja dado 0 direito de eleger os seus préprios magistrados, ao passo que aum povo dissolutoe pervertido seja-lheretiradoesse direito? Ev, Reconhego que tal ei é eterna e imutavel ‘Ag. Reconhecerds também, espero, que na lei tempo- ral dos homens nada existe de justo e legitimo que nao tenha sido tirado da lei eterna. Assim, no mencionado exemplo do povo que, as vezes, tem justamente o direito de eleger seus magistrados e, as vezes, nao menos justa- mente, nao goza mais dese direito, a justiga dessas di- versidades temporais procede da lei eterna, conforme a qual & sempre justo que um povo sensato eleja seus ‘governantes e que um povo irresponsdvel nao o possa. ‘Acaso és de opinio diferente? Ep. Sou dessa mesma opinifo. Ag. Entao, para exprimirem poucas palavras, oquan- to possivel, a nocdo impressa em nosso espirito dessa lei eterna, direi que ela é aquela leiem virtude da qual éjusto que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas.” Se tens, porém, outra opinio, apresenta-a Bv. Nada tenho a te contradizer, pois dizes a ver- dade. (OPRCADO PROVEM DO LIVRE-ARBETRIO 42 Ag. B como tal lei superior 6 a nica sobre a qual todas as leis temporais regulam as mudangas a serem intreduzidas no governo dos homens, poderé ela, por causa disso, variar em si mesma de algum modo? Ev. Compreendo que ndo 0 possa de modo algum. Com efeito, nenhuma forga, nenhum acontecimento, nhuma catastrofe nunea conseguiré fazer com que ndo seja justo que todas as coisas estejam conformes a uma ordem perfeita, SEGUNDA PARTE (7,16-11,22) A CAUSA DO PECADO — © ABUSO DA VONTADE LIVRE Capitulo 7 ‘O homem — superior aos animais pela razio 16. Ag.Prossigamos.e vejamos agora comoo homem esta perfeitamente ordenado em si mesmo. Pois jé vimos que ‘uma nago constitui-se de homens unidos entre si, sob ‘uma tinica lei, que 6, como fo dito, a lei temporal. Mas dize-me, primeiramente, se para ti & certeza absoluta 0 fato de viveres? Eo, Eo que haveria de mais evidente do que isso? Ag. Pois bem! E poderias distinguir o seguinte: uma coisa é viver, e outra coisa saber que se vive? Eo. Porcerto, sei queninguém pode saber que vive, sem ‘estar vivo, Mas se todo ser vivo sabe que vive, eu 0 ignoro. Ag. Como quisera que entendesses isso, tal como acreditas que os animais carecem de razao,” Nossa refle- xo, entdo, haveria de passar rapidamente acima dessa dificuldade, Entretanto, como afirmas ignoré-lo devemos nos estender em longo desenvolvimento. Isso porque néo se trata de assunto cuja omisséo pudesse nos permitir adiantarna obtengio do objeto proposto,comaconexaode raciocinio que sinto ser necesséria. Responde-me, pois, o seguinte: muitas vezes temos visto animais domados pelos homens, isto 6, dominados, (PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO “4 nndo somente em relacdo ao corpo, mas também quan- to a sou prinefpio vital, de tal forma que obedecem & vontade dos homens por uma espécie de instinto ou habito. Ora, o que te parece? Poderia acontecer jamai © caso de um animal feroz, tivesse ele grande corpu- Iéneia © uma prodigiosa forga, ou os sentidos mai penetrantes, a ponto de tentar, por sua vez, dominar homem, esforgando-se por subjugé-lo? Digo isso por- {que muitos animais seriam capazes, por sua ferocidade ou por sua asticia, de esquartejar 0 corpo de qualquer homem. Ev. Estou seguro de que tal possibilidade 6 inteira- ‘mente impossivel de acontecer. Ag. Muito bem! Mas dize-me ainda: Nao é eviden- te que quanto & forea e outras habilidades corporai © homem 6 facilmente ultrapassdo por certo mimero de animais? Assim sendo, qual 6 pois o principio que constitui a exceléncia do homem, de modo que animal algum consiga exercer sobre ele sua forga, ao passo que ‘ohomem exerce seu poder sobre muitos deles? Nao a +ré por aquilo que se costuma denominar razo ou inteli- séncia?™ Ev. Nao encontro outra coisa, Pois é no espirito que reside a faculdade pela qual nés somos superiores aos animais. E se eles fossem seres inanimados, eu diria que ‘nossa superioridade ven do fato de que possuimos uma alma, e eles nao. Mas acontece que também eles 830 animados. Contudo, existe alguma coisa que, nio e tindo na alma deles, existe na nossa, e por isso acham- se submetidos a nds. Ora, é claro para todos que es- sa faculdade nao ¢ um puro nada, nem pouca coisa. E que outro nome lhe dariamos mais correto do que o de Ag. Eis, pois, com que facilidade obtivemos, com a ajuda de Deus, o que podiamos considerar como muito 45 ‘ACAUSA DO PECADO dificil, Pois, quantoa mim, eu teconfesso queessa questo agora esté resolvida. E pensara eu haver de nos reter por muito tempo nela, talvez mais do que tudo 0 que ja diasemos desde o inicio de nossa reflexao, Assim, pois, retém esta verdade com cuidado, para continuarmos 0 encadeamento das idéias, Com efeito, creio que ja néo ignoras: 0 que denominamos saber nao vem a ser nada ‘mais do que se perceber pela razao. Ev, Assim 6 com efeito. ‘Ag. Por conseguinte, aquele que sabe que vive, ndo cesta privado da razao? Eo. Isso se segue. ‘Ag. Ora, 08 animais vivem, como ja nos apareceu com clareza, mas nao slo dotados de razao. Ev. Bvidente, Ag. Bis, entdo, que agora entendes o que me respon- deste ignorar: nem todo ser vivo sabe que vive, ainda que todo aquele que sabe que vive seja necessariamente ser E melhor saber que se vive do que apenas viver 17, Ev, Nao tenho mais dividas, Prossogue no que tens em vista, Com efeito, uma coisa éviver,eoutra coisa saber aue se vive. Jé 0 aprendi suficientemente ‘Ag. Equal dessasduas coisas te parece sera melhor? ie. Aqua, ponsas, senao a conscience (cent) da vide? ‘Ag. A conscitneia da vida parece-te melhor do que a propria vida? Ou talverqueira diner que oconhecimen- to é uma vida mais altae mais pare, a qual ninguém po- de alcancar a nao ser que seja dotado de inteligéncia? Ora, o que ter inteligéncia a nfo ser viver eom mais pereiga eeoplendor, gragas luz mesma da mente? B Porque, se no me engano, ti nbo prefriste alg dstnto O PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 46 da prépria vida, mas sim uma vida melhor do que uma vvida qualquer. Eo. Compreendeste e expuseste meu pensamento de ‘maneira correta. Visto que o conhecimento nunca pode ser mal. ‘Ag. Na minha opiniio, nao pode ser de modoalgum, nao ser quando, por metéfora, falamos de conhecimento para significar experiéncia. Porque experimentar nem ‘sempre é bem, como, por exemplo, experimentar suplici- 08. Mas aquela ciéncia que se denomina pura e propria ‘mente conhecimento, tendo sido adquirida pela razio pela inteligéncia, como poderia ser ela mal? Ev. Percebo também essa distingio. Passa a outro ponto, Capitulo 8 O lugar do homem na escala da perfeicao dos seres 18. Ag. Bis 0 que eu quero te explicar agora: 0 que poe 0 homem acima dos animais, seja qual for o nome com que designemos tal faculdade, seja mente ou espirito, ou com mais propriedade um e outro indistintamente, porque encontramos esses dois vocabulos também nos Livros Sagrados — quando pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que 0 constituem, ele encontra-se perfeitamente ordenado, Com. efeito, vemos que temos muitos elementos comuns, nao ‘somente com os animais, mas também com as érvores & plantas, tis como: ingerir alimento, crescer, gerar, forti- ficar-se. Vemos que todas essas propriedades sdoconcedi- das igualmente as érvores, as quais pertencem a um grau ‘bem infimo, entre os seres vivos. Constatamos ainda, e ar [ACAUSA DO PECADO devemos reconhecer, que os animais podem ver, enten- der e sentir os objetos corporais, por meio do olfato, do gosto, do tato e, freqiientemente, com mais penetracio do que nés. Além do que ha neles forga, vigor, solide dos membros, rapidez e grande agilidade de movimen- tos corporais. Em tudo isso, nés somos superiores a al- guns deles, iguais a outros e, a varios dentre eles, inferi- ores. Sem duivida, possuimos natureza genérica comum ‘comosanimais. Entretanto, a busca dos prazeres docorpo ea fuga dos dissabores constituem atividade da vida animal, Ha ainda outras propriedades que no parecem con- vviraosanimais, sem que todavia sejam nohomem as mais, perfeitas, como, por exemplo, divertir-se e rir, Por certo, sio expresses caracteristicas do homem, mas as menos importantes, no julgamento de quem julga a natureza humana. Vém a seguir, o amor aos elogios e & gléria e 0 desejo de dominar, tendéncias essas que também nao pertencem aos animais. Contudo, nio devemos nos julgar ‘melhores do que eles, por possuirmos essas paixdes. Pois tais inclinagdes, ao se revoltarem contra a razio, nos tornam infortunados. Ora, ninguém jamais se pretendeu superior a outros, por sua miséria, Por conseguinte, 6 quando a razao domina a tados os ‘movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado, Porque no se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores estao subordinadas asmenosboas. Acaso ndo te parece ser assim? Eo. E evidente que é dessa maneira. Ag, Entao, quando a razdo, a mente ou o espirito go- ‘verna 08 movimentos irracionais da alma, é que esté a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna. Ev, Compreendo e sigo teu racioeinio, ‘0 PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 48 Capitulo 9 O homem sibio— aquele que vive submisso & razio 19. Ag. Quando um homem esté assim constituide e ordenado, nao te parece ser ele sébio? Ev. Nao concebo outro tipo de homem que poderia parecer-me sébio, se esse nao o for. Ag. Sabes, também, euo penso, que a maioria dos ho- mens é formada de insensatos (stultos)? Ev. Isso 6 fato bastante comprovado. Ag. Pois bem, o insensato é0 oposto do homem sébio, conforme a idéia que adquirimos a respeito de um sébio. ‘Compreendes, agora, o que seja o insensato? Ev. Aquem nao serd evidente queo insensatoéaque- Je em quem a mente no reina como autoridade su- prema? Ag. Oquedizer entéo quando um homem se eneontra nessa situacdo? E a mente que lhe falta ou, entdo, apesar de ela estar presente, falta-lhe o dominio que Ihe corres- onde? Ev. antes 0 que acabas de dizer por ultimo. Ag. Gostaria de ouvir de ti por quais indicios consta- tas num homem a presenca da mente, mesmo quando nao exerce 0 seu dominio? Ex. Oxalé, queiras tu mesmo assumir esse encargo, Porque nio me é fécil apresentar o que propées. ‘Ag. Podes, pelo menos, te lembrar facilmente do que ddissemos hé pouco (ef 7,16.17), a saber: que os animais, domados e domesticados pelos homens, os domina ppor sua vez — como nos demonstrou a razio —, se os homens nao possufssem sobre eles alguma superioridade. Ora, essa superioridade nao a descobrimos nos corp 49 ‘ACAUSA DO PECADO ‘Assim, como nos pareceu, residena alma. Endo encontra- ‘mos para ela outro nome mais adequado do queoderazio. ‘Ainda que a seguir nés nos lembramos de que ela também pode ser denominada mente ou espirito, Masse é verdade que a mente é uma coisa e a raziio outra, em todo caso é certo que somente a mente pode se servir da razao. Donde a conseqdéncia: aquele que é dotado de razéo nao pode estar privado da mente. Ev. Lembro-me perfeitamente dessas conclusseseas admito, - Ag. Pois bem! E tua opiniao que os domadores de ‘animais ferozes nao podem ser encontrados a ndo ser entre homens sabios? E denomino sdbioaquema verdade ‘manda assim ser chamado. Isto é, aquele cuja vida esta pacificada pela total submisstiodas paixses ao dominioda mente. Ev. Seria ridfeulo considerar como sébio a todos ‘8 que comumente sao chamados domadores. Ou aind: ‘0s pastores, vaqueiros ou cocheiros e todos o8 que v mos dominar 0s animais domesticados ou os que Io- gram submeter a si, por sua habilidade, os animé indomitos. Ag. Agora, tens por af um sinal certissimo pa- ra reconhecer claramente a existéncia no homem de uma mente, ainda que essa mente ndo exerga 0 sett dominio. Os homens, a que te referiste, possuem de fato a mente, pois nao realizariam ages que executam se nao a tivessem, Mas essa mente nio exerce 0 domi- nio sobre eles mesmos, e assim sfo uns insensatos, E é que o reino da mente nao pertence a nao ser aos Ev. espantoso que, esse assunto j4 tendo si- do refletido acima, nao me tenha ocorrido nenhuma resposta conveniente ao me perguntares a esse res- peito.® (PECADO PROVES DO LIVRE-ARBITRIO 50 Capitulo 10 Nada forca a razio a submeter-se as paixdes 20, Ev, Mas passemos agora a outros aspectos. Jé'de- ‘monstramos que no homem osenhorio da mente constitu a sabedoria, entretanto a mente pode nao exercer de fato ‘esse seu senhorio. ‘Ag. Julgas que a paixdo seja mais poderosa do que a ‘mente, & qual sahemos que por lei eterna foiclhe dado o dominio sobre todas as paixies? Quantoamim, naooereio de modo algum, pois, caso 0 fosse, seria a negacio daque- laordem muito perfeita de que o mais forte mande no me- nos forte. Por iss0, 6 necessério, a meu entender, que a ‘mente seja mais poderosa do que a paixioe pelo fato mes- ‘mo sera totalmente ustoe correto que a mente a domine. Ev. Também sou do mesmo parecer. ‘Ag, Entao! Haverds de hesitar em por toda e cada virtude acima de qualquer espécie de vicio, de tal forma que quanto mais uma virtude for nobre e sublime, mais ela sera forte e invencivel? Bv. Quem o poderia duvidar? Ag, Logo, nenhuma alma viciada pode dominar outra munida de virtudes. Ev. Ebem verdade. ‘Ag. E ainda: qualquer espirito ha de ser mais nobre ‘epoderoso do que qualquer ser corporal. Iss0 tampouco 0 nnegarés, espero? Ev, Ninguém o negaré. O que é fil verifcar, a0 ver que se deve preferir um ser vivo a um ser nio vivo; e que a substincia que dé vida vale maisdo que aquela que. recebe. Ag. Com mais forte razdo, por conseguinte, um corpo, seja ele qual for, nio poderia vencer um espirito dotadode virtude? 51 ‘ACAUSA DO PECADO Ey, Bvidentissimo que nao. Ag. Entdo! O espirito justo, e a mente firme em seu direito e conservando seu dominio, poderd afastar-se de sua forca e submeter a paixao outra mente que reina com igual eqiidade e virtude? Ev. De modo algum. Nao somente porque a excelén- cia ¢ igual em uma e outra, mas, também, a primeira mente no poderia obrigara outra ase tornarviciada, sem ela mesma decair de sua justiga tornar-se viciada, ficando por isso mesmo mais fraca. 21a. Ag.Compreendeste-me bem. & porque ndo te resta agora sendo responder a esta questo, se puderes: Existe, na tua opinido, algo mais nobre do que a mente dotada de razio e sabedoria? Ev. A meu ver, nada existe, exceto Deus. Ag. Essa 6 igualmente a minha opinio, Mas por ser © assunto dificil, e 0 momento ainda nao haver chegado para plena compreensao, ainda que af esteja uma das verdades que precisamos crer com fé firmissima, reserve- ‘mos para esse tema uma exposigao completa, diligente e cautelosa, em outro tempo, Capitulo 11a 0 Ser supremo nio constrange a mente humana a ser escrava das paixdes 21b.Ag.Com efeito, por enquanto, baste-nos saber que fesse Ser, seja ele qual for, eapaz de ultrapassar em exceléncia a mente dotada de virtude, nao poderia de ‘modo algum ser um Ser injusto. Tampouco, ainda que tivesse esse poder, ele nio forgaria a mente asubmeter-se as paixses. (© PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 52 Ev, Nao ha ninguém que deixe de admitir essa afir- ‘magio, sem hesitacao alguma, CO responsdvel pela submissdo as paixbes 86 pode ser 0 livre-arbitrio 2c. Ag. Logo, 96 me resta concluir: se, de um lado, tudoo {que ¢ igual ou superior & mente que exerce seu natural senhorio e acha-se dotada de virtude nao pode fazer dela escrava da paixio, por causa da justica, por outro lado, ‘tudo que lhe é inferior tampouco o pode, por causa dessa ‘mesma inferioridade, como demonstram as constatacdes precedentes. Portanto, nio ha nenhuma outra realidade que torne a mente eimplice da paixao a nao ser a prépria vontade e o livre-arbitrio.® Ee. Nao vejoconclusdonenhuma taonecesséria quan- to essa, (0 pecado porta em si muitos males 22. Ag. Logo, deve te parecer também légico que a mente seja punida por ta grande pecado, Bv, Nao o posso negar. ‘Ag. Julgaremos que para a mente poderd ser um pequeno castigo ser dominada pela paixao e despejada dasriquezasda virtude, tomar-se pobre edesgracada, ser puxada por ela em todos os sentidos? As vezes, aprovar a falsidade em ver da verdade;outrasvezes, parecer mesmo defender o erro; outras condenar o que até entao aprova- va; e no obstante, precipitar-se em novos erros? Numa hora, suspendero seu julgamento até temer as razées que aeclareceriam; noutra, esesperar de jamais encontrar Averdade e mergulhar totalmente nas trevas da loucura. ‘Amanha, esforear-se por abrir-se na diregio da luz da inteligéncia, para de novo recair extenuada, Ao mesmo 58 [ACAUSA DO PECADO ‘tempo, o império das paixdes ao Ihe impor sua tirania, perturba todo o espirito e a vida desse homem, pela variedade e oposicao de mil tempestades, que tem de enfrentar. Irdotemor ao desejo; da ansiedade mortal ava « falsa alegria; dos tormentos por ter perdido um objeto que amava ao ardor de adquirir outro que ainda na possui; das irritagdes de uma injtiria reeebida ao insaci vvel desejo de vinganca. E de todo lado a que se volta, a avareza cerca esse homem, a luxtiria 0 consome, a aml gio 0 escraviza, o orgulho o incha, a inveja o tortura, ociosidade o aniquila, a obstinagdoo excita, ahumilhagdo o abate. E finalmente, quantas outras inumeraveis per- turbacées sao o cortejo habitual das paixées, quando elas exercem 0 seu reinado, Enfim, poderemos considerar ‘como pouca coisa essas penas que necessariamente supor- tam todos aqueles que nao aderem a verdadeira sabedo- ria, assim como bem 0 percebes.* ‘TERCEIRA PARTE (11,23-16,95) AATUACAO DA BOA VONTADE PROVA QUE 0 PECADO VEM DO LIVRE-ARBITRIO Capitulo 115 Duividas de Evédio 23, Ev, Por certo, considero que 6 de fato grande essa ppunigéo,emuitojusta, nocasode ser aplicada aalguém que, je achando estabelecido nas alturas da sabedoria, resol. vvease descer de I, para se pdr ao servigo das paixdes. Mas seré possivel encontrar alguém que tenha queride ox que queira realizar tal coisa? Eber incerto. Na verdade,cremos pela f que o homem fi eriado por Deus e formado de modo perfito,e que fo pr s mesmo e por sua prépria vontade que se procpitou de 1d, nas misérias desta vida moral. Entretanto, ‘mesmo guardando essas verdades com uma fé muito firme, eu ainda nao consigo entender tudo iso muito bem. Assim, se julgas,porenquante, ser preciso retardar um examesérioaoerca dessa quest, tuo farés, mas muita contra a minha vontade Capitulo 12 ‘Uma hipétese do platonismo 24, Eo. Mas eis o que me preocupa ainda mais. Por qual ‘motivo padecemos nés todos essas espécies de penas tao cruéis, nés que certamente estamos entre os insensatos, 56 AATUAGKO DA BOA VONTADE, ‘sem que nunca tenhamos sido sibios. Ora, sso seria preciso ‘para que se diga que tais males nos afligem com justica, pelo fato dehavermos desertados da fortalezada virtudeetermo- nos entregues a escravidio da paixao. Se podes me esclare- cer esse ponto por algum arjrumento, nao deixarei de modo algum que isso seja remetido para mais tarde. Ag, Falas comosettivesses a clara conviegdo de nunca termos sido sabios. [ss0, por ndo levares em conta a néo sero tempo a partir do qual nascemos para esta vida. En- tretanto, como a sabedoria reside na alma, pergunto-me se acaso nio tera esta vivido outra vida, antes de ge unir aeste corpo. E assim, tera desfrutado antes algum tempo de posse da sabedoria. Eis uma grande questo, um pro- fundo mistério, o qual sera preciso considerarmos a seu tempo." Apesar disso, alias, nada impede deesclarecermos, ‘© quanto possivel, a questao que no momento nos ocupa. 0 papel da boa vontade 25, Ag. E assim, pergunto-te: Existe em née alguma vontade? Ev. Nao o sei dizer. ‘Ag. E queres sabé-lo? Ev, Também o ignoro, ‘Ag, Entao, nada mais me perguntes de agora em diant. Ev, Por qué? Ag. Porque nao devo responder as tuas perguntas, a no ser que queiras conhecer as respostas, Além do mais, se no queres chegar & sabedoria, ¢ imitil conversar contido sobre tais questies. Enfim, nio mais podera ser ‘meu amigo, se ndome quiseres bem. Pelo menos, conside- rao seguinte, em relagdo a ti mesmo: nfo tens vontade alguma de levar vida feliz? Ev, Vejo que nao se pode negar que todos tenhamos

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