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Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio

Nilo Batista

Índice cada por militante legitimação do (ou, para


usar um termo da moda, “parceria” com o)
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 sistema penal – “parceria” na qual as fórmu-
2 Editoriais . . . . . . . . . . . . . 6 las bisonhas do editorial ou do espaço cedido
3 Especialistas . . . . . . . . . . . . 7 ao “especialista” concorde são menos impor-
4 Vigilantismo . . . . . . . . . . . . 9 tantes do que as mensagens implícitas, que
5 Noticiário . . . . . . . . . . . . . 14 transitam da publicidade às matérias espor-
6 Variedades . . . . . . . . . . . . . 15 tivas – tal vinculação levou Zaffaroni a in-
7 Esportes . . . . . . . . . . . . . . 16 cluir, em seu rol de agências do sistema pe-
8 A executivização em seu nível má- nal, as “agências de comunicação social”, e
ximo: Linha Direta . . . . . . . . 17 os exemplos que ministrou (“rádio, televisão
9 À guisa de conclusão . . . . . . . 19 e jornais”)2 deixam claro que não se referia
aos serviços de relações públicas de tribunais
ou corporações policiais. Uma das consta-
tações do presente trabalho sinaliza para a
ultrapassagem da mera função comunicativa
1 Introdução
por parte da mídia, e nesse sentido falaremos
Uma especial vinculação entre a mídia e o da executivização dessas agências de comu-
sistema penal constitui, por si mesma, im- nicação social do sistema penal.
portante característica dos sistemas penais Não se cometerá a ingenuidade de su-
do capitalismo tardio1 . Tal vinculação, mar- por que a legitimação do sistema penal pela
1
imprensa seja algo exclusivo da conjuntura
Para uma simplificada exposição das demais ca-
racterísticas dos sistemas penais do capitalismo tar-
econômica e política que vivemos. Exis-
dio, remeto o leitor a três artigos meus: “Prezada Se- tem, contudo, certos elementos inéditos, que
nhora Viégas: o anteprojeto de reforma no sistema de não podem ser associados apenas aos recen-
penas” (Discursos Sediciosos – crime, direito e so- tes saltos tecnológicos. Quando a imprensa,
ciedade no 9-10, p. 103 ss), A violência do Estado e no século XVIII, acossada e censurada pelas
os aparelhos policiais” (Discursos Sediciosos – crime,
direito e sociedade no 4, p. 145 ss) e Poder, historia y
burocracias seculares e religiosas do Antigo
sistemas penales (Capitulo Criminológico, vol. 29, no
3, p. 5 ss); para um aprofundamento, David Garland, chez, La expansión del derecho penal, Madri, Civitas,
The Culture of Control, Oxford, 2001, ed. Univ. Ox- 1999.
2
ford, p. 167 ss; Loïc Wacquant, Punir os pobres, Rio Derecho Penal – Parte General, Buenos Aires,
de Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2000; J.M. Silva Sán- Ediar, 2000, p. 18.
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Regime, se engaja na revolução burguesa, em nosso país representado seja pela simul-
participa intensamente do esforço pela des- tânea instalação, em 1808, da Impressão Ré-
legitimação racional das velhas criminaliza- gia e da censura nas atividades de uma junta
ções de linhagem inquisitorial e pela aboli- administrativa que velaria para que “nada se
ção das penas corporais cruéis e despropor- imprimisse contra a religião, o governo e
cionais. Na fundação histórica do direito pe- os bons costumes”4 –, seja pela significa-
nal liberal, portanto, tendia a imprensa – afi- tiva circunstância de Hipólito da Costa ter
nada com o pensamento ilustrado, filosófico de imprimir o Correio Braziliense em Lon-
e jurídico – à limitação e ao controle do po- dres. Sem embargo de órgãos e jornalis-
der punitivo, larga e espetaculosamente exer- tas que, isolada e eventualmente, percebe-
cido pelo absolutismo, e pagava por isso. A ram e profligaram as opressões penais, a im-
primeira edição de Dei delitti e delle pene prensa legitimou intensamente o poder pu-
é a edição de um panfleto apócrifo, cujo ti- nitivo exercido pela ordem burguesa, assu-
morato autor previa problemas que efetiva- mindo um discurso defensivista-social que,
mente se esboçaram quando, provavelmente pretendendo enraizar-se nas fontes liberais
sob encomenda do Conselho de Veneza, in- ilustradas, não lograva disfarçar seu encan-
comodado pelas considerações de Beccaria tamento com os produtos teóricos do positi-
acerca das denúncias anônimas, frei Angelo vismo criminológico, que naturalizava a in-
Fachinei o questionou duramente. Aliás, não ferioridade biológica dos infratores. Quem
seria impróprio assinalar nessa conjuntura se assusta hoje com o “three strikes and
aos panfletos e livros uma função perante os you are out” californiano poderia perfeita-
sistemas penais análoga à das drogas ilícitas mente ter-se assustado há cento e vinte anos,
no último quartel do século XX: não era ne- quando von Liszt propunha o isolamento por
cessário escrevê-los ou traficá-los, sendo su- tempo indeterminado para a terceira conde-
ficiente adquiri-los, guardá-los ou trazê-los nação por certos delitos5 . O controle penal
consigo, para uso próprio. No Rio de Ja- da indisciplina operária, de anarquistas e do
neiro de 1794, Silva Alvarenga – entre ou- lumpesinato urbano – dos “vidas tortas” (va-
tros – permaneceria preso por quase três anos dios, prostitutas, mendigos) – recebeu em
pela posse para uso próprio de obra dos aba- geral da imprensa o mesmo incentivo que,
des Raynal e Mably, pouco lhe aproveitando nos dias atuais, recebem as razzias de guar-
defender-se alegando que “não lera os di- das municipais contra camelôs e flanelinhas,
tos livros”3 , antecipação brasileira do “fumei ou a mesma complacência que merecem hoje
mas não traguei” do candidato Clinton.
Descartemos desde logo a mistificação,
recorrente nas idealizações historiográficas 4
Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no
da imprensa burguesa, de que seus linotipos Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p.
guardaram fidelidade a este difícil começo, 23.
5
La teoria dello scopo nel diritto penale. Milão,
Giuffrè, 1962, p. 57. Para a execução de tal condena-
3
ção, Liszt não descartou como medidas disciplinares
Autos da Devassa – Prisão dos Letrados do Rio de castigos corporais, a cela surda e um “rigorosíssimo
Janeiro. Rio de Janeiro, Arq. Púb. RJ, 1994, p. 147. jejum”.

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as mortes acidentais nas violentas incursões ção econômica, além de contribuir significa-
policiais pelas favelas. tivamente para as próprias agências do sis-
A especificidade da vinculação mídia- tema penal. A acumulação de capital que
sistema penal no capitalismo tardio deve ser os negócios das telecomunicações propiciam
procurada antes de tudo nas condições so- transferiu as empresas de informação para
ciais dessa transição econômica. Não é um lugar econômico central: Pierre Bour-
uma novidade histórica o emprego em escala dieu, em sua aula televisiva, tratou logo de
da intervenção penal por ocasião de transi- lembrar “que a NBC é propriedade da Gene-
ções econômicas, como Rusche e Kirchhei- ral Electric (o que significa dizer que, caso
mer perceberam na dissolução da ordem feu- ela se aventure a fazer entrevistas com os
dal6 : os desajustados daquela conjuntura se- vizinhos de uma usina nuclear, é provável
riam maciçamente executados até que seu que... aliás, isso não passaria pela cabeça
aproveitamento útil, entre as casas de ras- de ninguém), que a CBS é propriedade da
pagem holandesas e os internatos de pobres Westinghouse, que a ABC é propriedade da
ingleses, inventasse a prisão7 . O empreen- Disney”9 . Em termos brasileiros, seria ima-
dimento neoliberal, capaz de destruir par- ginável uma reclamação contra os serviços
ques industriais nacionais inteiros, com con- da Nextel veiculada pelo Jornal Nacional, ou
seqüentes taxas alarmantes de desemprego; contra uma lista classificada da OESP na pri-
capaz de “flexibilizar” direitos trabalhistas, meira página do Estadão?
com a inevitável criação de subempregos; O compromisso da imprensa – cujos ór-
capaz de, tomando a insegurança econômica gãos informativos se inscrevem, de regra, em
como princípio doutrinário, restringir apo- grupos econômicos que exploram os bons
sentadoria e auxílios previdenciários; capaz negócios das telecomunicações – com o em-
de, em nome da competitividade, aniquilar preendimento neoliberal é a chave da com-
procedimentos subsidiados sem considerar o preensão dessa especial vinculação mídia-
custo social de seus escombros, o empreen- sistema penal, incondicionalmente legiti-
dimento neoliberal precisa de um poder pu- mante. Tal legitimação implica a constante
nitivo onipresente e capilarizado, para o con- alavancagem de algumas crenças, e um si-
trole penal dos contingentes humanos que lêncio sorridente sobre informações que as
ele mesmo marginaliza. Paralelamente, não desmintam. O novo credo criminológico da
há comparação possível entre os honestos mídia tem seu núcleo irradiador na própria
ganhos dos editores da Enciclopédia8 e os lu- idéia de pena: antes de mais nada, crêem
cros astronômicos dos grandes negócios das na pena como rito sagrado de solução de
telecomunicações, cuja tecnologia constitui conflitos. Pouco importa o fundamento le-
um dos recursos materiais da própria transi- gitimante: se na universidade um retribu-
cionista e um preventista sistêmico podem
6
Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Frei- desentender-se, na mídia complementam-se
tas Bastos/ICC, 1999, p. 52 ss.
7
Por todos, Dario Melossi e Massimo Pavarini,
9
Cárcel y Fábrica. México, Siglo XXI, 1980.
8
Robert Darnton. O iluminismo como negócio. S. Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997, p.
Paulo, Cia. das Letras, 1996. 20.

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harmoniosamente. Não há debate, não há da plenitude de defesa (o locus da malícia


atrito: todo e qualquer discurso legitimante e da indiferença), da presunção de inocên-
da pena é bem aceito e imediatamente incor- cia (imagine-se num flagrante gravado pela
porado à massa argumentativa dos editoriais câmara!) e outras garantias do Estado de-
e das crônicas. Pouco importa o fracasso his- mocrático de direito, que só liberarão as
tórico real de todos os preventivismos capa- mãos do verdugo quando o delito-processo
zes de serem submetidos à constatação empí- alcançar o nível do delito-sentença (= pena-
rica, como pouco importa o fato de um retri- notícia). Muitas vezes essas tensões são re-
bucionismo puro, se é que existiu, não passar solvidas por alguns operadores – advogados,
de um ato de fé; neste último caso, talvez por promotores ou juízes mais fracos e sensí-
isso mesmo o princípio da negação dialética veis às tentações da boa imagem – medi-
do injusto através da pena nunca tenha alcan- ante flexibilização e cortes nas garantias que
çado um tão desnaturado sucesso. A equação distanciam o delito-notícia da pena-notícia.
penal – se houve delito, tem que haver pena No processo de minimização do Poder Ju-
– a equação penal é a lente ideológica que diciário, o neoliberalismo se vale de instru-
se interpõe entre o olhar da mídia e a vida, mento análogo aos empregados na sua obra
privada ou pública. econômico-social.
A primeira consequência da fé na equa- Bem próximo ao dogma da pena encontra-
ção penal é conduzir a certos hábitos men- mos o dogma da criminalização provedora.
tais que recordam aquela inversão da viola- Agora, na forma de uma deusa alada onipre-
ção tabu, descrita por tantos antropólogos: sente, vemos uma criminalização que resolve
se a desgraça sobreveio, é certo que houve problemas, que influencia a alma dos se-
infração. Os temporais natalinos de 2001, res humanos para que eles pratiquem certas
com um saldo trágico de dezenas de mor- ações e se abstenham de outras – e sempre
tos no estado do Rio de Janeiro, imprimi- com o devido cuidado –, que supera crises
ram a seguinte manchete: “Ministério Pú- cambiais, insucessos esportivos e é mesmo
blico busca responsáveis pelas mortes” (O capaz de semear lavouras, não nos desmin-
Globo, 28.dez.01, p. 11). Se houve mortes, tam as penitenciárias agrícolas. A criminali-
é certo que houve homicídio; do resto se en- zação, assim entendida, é mais do que um ato
carregará uma muito mal digerida teoria da de governo do príncipe no Estado mínimo: é
omissão. muitas vezes o único ato de governo do qual
A segunda conseqüência da fé na equa- dispõe ele para administrar, da maneira mais
ção penal reside no incômodo gerado pe- drástica, os próprios conflitos que criou. Pro-
los procedimentos legais que intervêm para ver mediante criminalização é quase a única
a atestação judicial de que o delito efetiva- medida de que o governante neoliberal dis-
mente ocorreu e de que o infrator deve ser põe: poucas normas ousa ele aproximar do
responsabilizado penalmente por seu come- mercado livre – fonte de certo jusnaturalismo
timento. Tensões graves se instauram en- globalizado, que paira acima de todas as so-
tre o delito-notícia, que reclama imperativa- beranias nacionais –, porém para garantir o
mente a pena-notícia, diante do devido pro- “jogo limpo” mercadológico a única política
cesso legal (apresentado como um estorvo), pública que verdadeiramente se manteve em

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suas mãos é a política criminal. Alguém tude, como supunha Locke). Os problemas
se recorda da última vez – à parte o caso do sistema penal são sempre e sempre con-
da chamada “lei da mordaça”, que preten- junturais, e o melhor exemplo é a peniten-
dia intervir nos canais de comunicação entre ciária. A despeito de todos os relatórios, de
operadores do sistema penal e suas agências John Howard à última inspeção – melhor se
de comunicação – alguém se recorda da úl- diria, ao último motim – apontarem para a ir-
tima vez em que a promulgação de uma lei remediável deterioração do emprisonamento
criminalizante foi objeto de crítica pela im- sobre sua clientela, do que as taxas de rein-
prensa? Também aqui pouco importa que cidência penitenciária são o menos expres-
a criminalização provedora seja uma falácia, sivo sinal, a boa penitenciária nos aguarda,
uma inócua resposta simbólica, com efeitos num futuro eternamente adiado. Especial re-
reais, atirada a um problema real, com efei- levo ganham aqui os discursos que, afinados
tos simbólicos: acreditar em bruxas costuma com as novas tendências, assumem a prisão
ser a primeira condição de eficiência da jus- pós-industrial como lugar de mero confina-
tiça criminal, como os inquisidores Kraemer mento e neutralização do infrator. Em sín-
e Sprenger sabiam muito bem10 . tese, nenhuma das violências penais ultra-
Abaixo destas crenças, e de outras que de- passa a consideração de disfunções momen-
las derivam, temos a Igreja e seus sacerdo- tâneas, desvios ocasionais no mais impor-
tes, ou seja, o sistema penal e seus operado- tante conjunto de repartições públicas que o
res. As imperfeições do sistema penal são Estado ainda detém, embora com crescente
vistas como produtos da corrupção humana participação privada. A importância de um
no trato da fé. A brutalização à qual se ex- fluxo permanente de informações acríticas
põem os integrantes das agências policiais sobre o sistema penal será melhor aferida
não passa de uma questão moral (a chamada quando observarmos que uma de suas mar-
“banda podre” não configura uma constante cas em sociedades de classes, a seletividade,
subcultural com raízes no exercício profissi- pode com êxito ser disputada e manipulada
onal, e sim uma opção ética daquelas ma- pela mídia.
çãs); a advocacia criminal constitui moda- Olhar para as relações entre a mídia e
lidade consentida de cumplicidade ex post o sistema penal no capitalismo tardio im-
facto com o delito; membros do Ministério plica abandonar instrumentos metodológicos
Público vêem-se enaltecidos na razão direta tradicionais, essencialmente interessados no
do desprezo que tenham pela privacidade e que se denominava criminogênese comuni-
outros direitos civis dos acusados; magistra- cacional11 . Sem embargo da contribuição de
dos que levem a sério a tarefa de velar pelas muitos trabalhos assim orientados, cumpre
garantias constitucionais e de conter o po- reconhecer que quando o jornalismo deixa
der punitivo ilegal ou irracional são fracos de ser uma narrativa com pretensão de fide-
e tolerantes (a tolerância já não é uma vir- dignidade sobre a investigação de um crime

10 11
Para uma síntese, Nilo Batista, “Comunicação
Cf. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, Rosa e crime”, em Punidos e mal pagos, Rio de Janeiro,
dos Ventos, 1991, p. 49 ss. Revan, 1990, p. 133 ss.

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ou sobre um processo em curso, e assume opinativas e doutrinais. Há, contudo, dois


diretamente a função investigatória ou pro- bons motivos para abordá-los. Em primeiro
move uma reconstrução dramatizada do caso lugar, sendo o editorial o lugar jornalístico
– de alcance e repercussão fantasticamente da argumentação e da polêmica, concentra-
superiores à reconstrução processual –, pas- se nele a disputa desigual entre o acuado dis-
sou a atuar politicamente. Quem duvida de curso criminológico acadêmico e o discurso
que os infelizes foragidos cujos crimes são criminológico midiático. Se, através da in-
requintadamente exibidos no programa Li- vestigação direta de delitos, da circulação de
nha Direta estão sendo julgados, sem defesa, pautas de interesse criminal, ou da franca in-
naquele momento, e não pelo júri que refe- tervenção sobre processos em andamento as
rendará o veredicto de Domingos Meirelles? agências de comunicação social do sistema
Simplesmente, poderíamos dizer que o tra- penal se aproximam das agências executivas,
tamento do assunto se desloca da estética – precisam de um discurso para fundamentar
recorde-se o interesse do positivismo crimi- sua performance. Mais do que isso, preci-
nológico por literatura – para a ciência polí- sam que seu discurso se imponha aos con-
tica, e portanto os juristas têm algo a dizer e correntes. Neste sentido, toda e qualquer re-
devem dizê-lo. Rigorosamente, o jornalismo flexão que deslegitime aquele credo crimino-
já estaria nesse âmbito a partir do debate, tão lógico da mídia deve ser ignorada ou escon-
escamoteado entre nós, da pioneira privati- dida: nenhuma teoria e nenhuma pesquisa
zação real – através de concessões feudali- questionadora do dogma penal, da criminali-
zantes – da radiodifusão e da televisão12 . O zação provedora ou do próprio sistema penal
método da análise de discurso13 foi empre- são veiculados em igualdade de condições
gado com sucesso num estudo sobre o pro- com suas congêneres legitimantes. Os edito-
grama Linha Direta, ao qual nos referiremos riais, que desconhecem as primeiras e enal-
adiante. tecem as segundas, estariam, dessa forma,
pretendendo escusar-se por uma espécie de
erro que lembra a ignorantia affectata do di-
2 Editoriais
reito canônico. O fato é que a universidade
O método indiciário14 sugeriria que passás- não consegue influenciar o discurso crimino-
semos rapidamente pelos editoriais, onde lógico da mídia, mas a recíproca não é ver-
encontraremos as formulações legitimantes dadeira: a mídia pauta um bom número de
mais explícitas e alvares, assumidamente pesquisas acadêmicas, remuneradas em seu
12
desfecho por consagradora divulgação, que
Sobre tal debate nos Estados Unidos, cf. Noam
Chomsky, Secrets, Lies and Democracy, Tucson,
revela as múltiplas coincidências que as via-
Odonian, 1996, p. 45ss. bilizaram.
13
Eni P. Orlandi. Análise de discurso. Campinas, Em segundo lugar, cabe anotar as contra-
Pontes, 2001; da mesma, As formas do silêncio, Cam- dições e ambigüidades do discurso midiá-
pinas, EdUnicamp, 1997; Paul Henry, A ferramenta tico. Mais de uma vez observamos que uma
imperfeita, Campinas, EdUnicamp, 1992.
14
Cf. Carlo Ginzburg. “Sinais – raízes de um pa- característica dos sistemas penais do capita-
radigma indiciário”, em Mitos, emblemas e sinais, S. lismo tardio reside numa dualidade perversa:
Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 143 ss. para os consumidores, mil expedientes para

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evitar a institucionalização; para os consu- policial que, de Diadema a Cidade de Deus,


midores frustrados, encarceramento neutra- lesse isto, poderia sentir-se incentivado a es-
lizante duradouro. No Brasil, teríamos esses pancamentos; pobre dele, estaria – esteve –
dois eixos bem representados na lei no 9.099, na primeira página.
de 26.set.95, de um lado, e nas leis concer-
nentes aos chamados crimes hediondos, de
outro. Pois bem, o tema da prisonização, dos 3 Especialistas
efeitos deteriorantes da privação de liberdade
A posição estratégica da questão criminal na
sobre o condenado, funciona nos editoriais
mídia está muito distante da suposição ingê-
para o primeiro campo, e desaparece deles
nua – ainda que não necessariamente falsa
para o segundo. Não por acaso, isto se re-
– de que o sangue sempre aumenta as ven-
pete também nos textos dos especialistas que
das. O discurso criminológico midiático pre-
participam da elaboração do discurso midiá-
tende constituir-se em instrumento de análise
tico. Leiamos um pequeno trecho de artigo
dos conflitos sociais e das instituições pú-
de Julita Lemgruber:
blicas, e procura fundamentar-se numa ética
Vamos reservar as prisões para simplista (a “ética da paz”) e numa história
os criminosos violentos e perigo- ficcional (um passado urbano cordial; sau-
sos. Todos os outros podem e de- dades do que nunca existiu, aquilo que Giz-
vem ser punidos com penas alter- lene Neder chamou de “utopias urbanas re-
nativas15 . trógradas”17 ). O maior ganho tático de tal
discurso está em poder exercer-se como dis-
Restaria para a psicologia judiciária a es- curso de lei e ordem com sabor “politica-
tafante construção conceitual do viológrafo, mente correto”. Naturalmente, esse discurso
eis que o fracasso do perigômetro já come- admite aliar-se a outros que não lhe rene-
morou um século. guem o ponto de partida: a modernidade
Não nos deteremos sobre o nível teórico realizou-se plenamente, suas promessas es-
dos editoriais. O âncora Boris Casoy re- tão cumpridas, e se o resultado final é de-
pete sempre o mesmo bordão (“isto é uma cepcionante, tratemos de atenuá-lo pela cari-
vergonha” ou “isto tem que acabar”) sem- dade, pelo voluntariado, por campanhas pu-
pre que não está compreendendo muito bem blicitárias; mas lei é lei. Paralelamente a te-
um assunto criminal. O Jornal do Bra- orias sociais que excluem a conflitividade de
sil afastava do âmbito dos direitos humanos suas costuras, caminham concepções jurídi-
alguns acusados de tráfico de drogas que, cas para as quais a teoria do delito é o mais
“comportando-se como animais selvagens, audacioso limite da reflexão. Os conflitos
não merecem qualquer comiseração”16 . Um sociais podem dessa forma ser lidos apenas
15
“Prisões ou escolas?”. Jornal do Brasil, pela chave infracional: a tragédia fundiária
10.dez.01, p.6. brasileira é reduzida à dogmática do esbulho
16
Editorial, 15.dez.95. Remetermos o leitor aos ro-
17
dapés da revista Discursos Sediciosos – crime, direito “Cidade, identidade e exclusão”, revista Tempo,
e sociedade, onde uma seção – Florilégio – recolhe Rio de Janeiro, Relume-Dumará/UFF, v. 2, no 3,
muitos exemplos similares . 1997, p. 111.

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possessório, ainda que, para honra nossa, al- imediatamente o Iser (Instituto Superior de
guns tribunais tenham, em acórdãos jamais Estudos da Religião) concluiu uma pesquisa
noticiados na plenitude de suas estruturas ar- afirmando que as vítimas de roubo que este-
gumentativas, encontrado no texto constitu- jam armadas são mais suscetíveis de serem
cional a superação desse paradigma medío- mortas – conclusão extraída de duas dezenas
cre. A pena já não interessa tanto como in- de casos, que desconsiderava a substanciosa
flição de sofrimento ou mesmo fórmula de- cifra oculta de reações exitosas por parte de
sastrada de solução de conflitos: a pena in- vítimas armadas, não registradas. À pauta
teressa como recurso epistemológico, como criminológica do FMI (custo do preso, la-
instrumento de compreensão do mundo. Por vagem de dinheiro, responsabilidade fiscal)
outro lado, o desmonte do Estado encontra quase sempre respondem financiamentos ex-
neste discurso uma eficiente picareta, capaz ternos. Verbas da área da saúde ressusci-
de exibir os vícios da burocracia estatal – his- tam o paradigma epidemiológico, cuja ver-
toricamente dominada pelas oligarquias na- são pós-moderna confronta-se com o horror
cionais – como um problema do próprio Es- de que – como na bomba de neutrons – já não
tado e não das classes sociais que quase sem- se cogita de aniquilar os cortiços, mas sim
pre o ocuparam. Trata-se de procedimento seus habitantes, criminalizados pela droga.
análogo à enfática negação de qualquer de- Enunciados secundários do discurso cri-
terminismo nos crimes patrimoniais pratica- minológico da mídia (“a impunidade au-
dos por pobres: a “moralização” do delito é menta o número de crimes”; “nas drogas é
a legítima sucessora de sua “naturalização” como uma escada, passa-se das mais leves
positivista, e os caminhos da responsabiliza- para as mais pesadas”; “penas elevadas dis-
ção penal ficam livre de todo escrúpulo. No suadem”, etc), que não alcançariam jamais
reino do individualismo, só o indivíduo pode constatação empírica, por serem completa-
ser responsável por estar na penitenciária. mente indemonstráveis, precisam de um res-
O discurso criminológico da mídia, cuja paldo “científico”, que os conduza respeita-
importância política dispensa maiores consi- velmente à doutrina dos editoriais. É aí que
derações, não se realiza apenas como noti- entram os especialistas. Como o discurso
ciário, crônica (ainda que muitos cronistas criminológico da mídia não representa o pro-
se dediquem a ele) ou opinião (editoriais): duto de um esforço na direção do saber, mas
àquelas seções científicas, versando da me- sim uma articulação retórico-demonstrativa
dicina à astronomia, vieram juntar-se umas daquele credo a que nos referimos, ele se-
seções criminológicas, regulares ou não. O lecionará os especialistas segundo suas opi-
formato habitual das matérias criminológi- niões coincidam ou dissintam daquelas cren-
cas noticiam resultados, parciais ou finais, ças.
de pesquisas acadêmicas. Freqüentemente, Bourdieu atribuiu-lhes o nome provocante
é possível reconhecer a fonte do financia- de fast-thinkers:
mento a partir do objeto ou do método de
tais pesquisas. Quando o governo do estado Se a televisão privilegia certo
do Rio de Janeiro, dentro da “pedagogia da número de fast-thinkers que pro-
paz”, promovia uma campanha contra armas, põem um fast-food cultural, ali-

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Mídia e Sistema Penal 9

mento cultural pré-digerido, pré- O alimento criminológico do público, por-


pensado, não é apenas porque (...) tanto, são esses hambúrgueres conceituais,
eles têm uma caderneta de endere- servidos em poucas linhas nos jornais e em
ços, sempre a mesma (sobre a Rús- poucos segundos na televisão. Não cabe exa-
sia, o sr. X; sobre a Alemanha, minar seu baixo nível nutricional. Sua re-
o sr. Y): há falantes obrigatórios ciclagem pela crônica é freqüente, como se
que deixam de procurar quem te- pode ver na seguinte passagem:
ria realmente alguma coisa a di-
zer, em geral jovens ainda desco- Como dizem os especialistas
nhecidos, empenhados em sua pes- no assunto, a lavagem de di-
quisa, pouco propensos a freqüen- nheiro através do sistema finan-
tar a mídia, que seria preciso ir ceiro transnacional exige algum
procurar, enquanto que se tem à grau de organização, porque pre-
mão, sempre disponíveis e dispos- cisa de uma rede de apoio fora do
tos a parir um artigo ou a dar uma Brasil19 .
entrevista, os habitués da mídia18 .
Ausente desta passagem todo o questiona-
mento teórico ao conceito de crime organi-
Credenciados pelo exercício profissional zado; bem demarcadas as diferenças entre o
ou acadêmico, pela ocupação de um cargo sistema financeiro transnacional, “limpo” e
público ou mesmo por um episódio de vida “ético”, e o dinheiro que pode sujá-lo, seria
privada (Associação de Vítimas, etc), os es- mesmo preciso um especialista para formu-
pecialistas são chamados à complementação lar sua asserção básica? Se o assunto fosse
do noticiário, quando suas próprias idéias química, alguém invocaria um saber especi-
não sejam a notícia. O caso do “maníaco do alizado para a fórmula da água: como di-
parque” exumou a psiquiatria forense mais zem os especialistas, a água é composta por
rasteira e atrasada; crimes ambientais cha- hidrogênio e oxigênio?! A primeira ora-
mam a opinião de biólogos e militantes ver- ção (“Como dizem os especialistas no as-
des, que ingressam lepidamente em tormen- sunto”) não ultrapassa a função de argu-
tosas questões jurídico-penais; na violência mento de autoridade; poderia ser suprimida
policial contra a classe média, a troupe dos sem qualquer perda semântica. Sua im-
direitos humanos ganha o centro do pica- portância é puramente retórica: o cronista-
deiro, de onde é retirada, meio constrangida, criminólogo está fundamentado nos especia-
quando o motim na penitenciária foi por fim listas, e a coincidência entre suas concepções
controlado; etc. A regra de ouro deste circo, não passa de mera coincidência. René Dotti
embora nem sempre percebida claramente, acertou em cheio quando, arrolando as dez
é que a fala do especialista esteja concorde pragas do sistema penal brasileiro, incluía
com o discurso criminológico da mídia: se entre elas o que denominou de “juízes pa-
algum trecho se afasta do credo, será banido ralelos: determinados profissionais da mídia
na publicação “editada” da fala.
19
Marcelo Beraba. “A bola e a rede”, Folha de
18
Bourdieu, op.cit., p. 41. S.Paulo, 7.dez.01, p. 2.

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10 Nilo Batista

eletrônica e muitos juristas de plantão (...), mente utilizada como pretexto para o exercí-
apóstolos da suspeita temerária e militantes cio de vigilância, e considere-se que no exer-
da presunção da culpa”20 . cício de tal poder a seletividade é muito mais
atenuada do que na criminalização secundá-
ria: após a privatização da telefonia, no Bra-
4 Vigilantismo
sil, os psicanalistas perderam a primazia es-
Sabe-se hoje que a criminalização secundá- tatística da escuta.
ria – realizada seletivamente, e ainda as- O vigilantismo nasceu no capitalismo in-
sim na dependência de fatores aleatórios que, dustrial, e devemos a Bentham sua formula-
dentre outros, vão da iniciativa ou omis- ção mais sincera e alucinada. O panóptico
são da vítima em registrar o delito ao in- não era uma proposta restrita à penitenciária,
teresse ou desinteresse da agência policial mas estendia-se às fábricas, às escolas, aos
em investigá-lo – a criminalização secundá- asilos e hospitais22 . Inteiramente compatível
ria não passa de ser pífia amostragem, cons- com a idéia benthamiana de que os pobres
truída segundo o jogo dos estereótipos cri- também deveriam usar uniforme, o panóp-
minais e das vulnerabilidades sociais, do tico era o princípio básico de uma sociabili-
grande incognoscível da criminologia: a cri- dade da vigilância muito cara ao empreendi-
minalidade real (ou seja, a totalidade dos mento burguês-industrial. A prevenção ex-
fatos que poderiam subsumir-se na progra- tremada e invasiva deste modelo se inviabi-
mação criminalizante primária, nas leis pe- lizou espacialmente, na segunda metade do
nais). Por isso mesmo se afirma que o po- século XIX, com a modernização e o cresci-
der criminalizante secundário é “pouco sig- mento das cidades. Substituído, na vigilân-
nificativo no marco total do controle social”, cia do disperso exército de reserva da mão-
e que a criminalização secundária “é quase de-obra industrial, por um artefato “cientí-
um pretexto” para um “formidável controle fico” do positivismo, a periculosidade pré-
configurador positivo da vida social, que em delitual que poderia ativar um medida de se-
nenhum momento passa pelas agências ju- gurança detentiva, o princípio hibernaria à
diciais”21 ; a vigilância sobre a população. espera das condições tecnológicas que lhe
Detenções breves, esclarecimentos de iden- concederiam um segundo e glorioso ciclo.
tidade, observação das atividades, registros Nessa linha, Arlindo Machado pergunta: “o
oficiais ou paralelos, “grampos” telefônicos que são os modernos sistemas de vigilância
– autorizados ou não –, acesso clandestino senão a atualização e a universalização do
a informações sigilosas bancárias ou fiscais panóptico”?23
são alguns exemplos desse poder de vigi-
lância que o sistema penal, mesmo paralela A transição da subjetividade visual da
ou subterraneamente, exerce. Pense-se em câmera-arte para a objetividade da câmera-
como a criminalização das drogas é diaria-
20 22
“As dez pragas do sistema penal brasileiro”, em Le Panoptique, Paris, P. Belfond, 1977, especi-
James Tubenchlak (org.). Doutrina, Rio de Janeiro, almente as cartas XVIII e subseqüentes (p. 150 ss).
23
ID, 2001, v. 11, p. 288. Máquina e imaginário. S. Paulo, Edusp, 1956,
21
Zaffaroni, op. cit, p. 12. p. 222.

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Mídia e Sistema Penal 11

vigia, de que tratou Paul Virilio24 , acelerada dio sexual”, respondendo em seguida que “o
na guerra (John Ford filmava portos no Pa- assédio causa constrangimento e muita dor”,
cífico; Jean Renoir foi fotógrafo de reconhe- e convocando a participação da enorme au-
cimento aéreo), atingiria o paroxismo na vi- diência: “Você já foi vítima? Ajude-nos com
gilância policial de shoppings, aeroportos, a sua informação”. A seguir, foram apresen-
estradas e logradouros públicos das últimas tados alguns casos. Um alto funcionário mu-
décadas. Para além dos avanços tecnológi- nicipal, de cidade vizinha ao Rio, recebera
cos que aprimoraram seu desempenho e lhe um cartão, exibido e parcialmente lido, com
reduziram os custos, a vigilância eletrônica uma declaração de amor de uma senhora que
se encontrará, nos sistemas penais do capi- lhe mandava flores “até duas vezes por dia”.
talismo tardio, com um personagem novo, Registrou o fato na Delegacia de Mulheres
que da execração e desprezo com que era local. Provocada a pronunciar-se, a delegada
visto nos albores da modernidade passou a afirma à repórter que algumas pessoas lhe
um reconhecimento e respeitabilidade con- perguntaram: “será que ele não é chegado
sagrados em muitas leis: o delator. A vigi- à coisa”? O marido da sedutora, para de-
lância eletrônica é um delator em tempo real cepção geral, nem a matou nem a abando-
que, afora eventuais violações da intimidade, nou. O segundo caso teve como protagonista
dispensa todo o debate moral e jurídico de uma jovem cuja chefe, homossexual, preten-
seus símiles humanos. Era completamente deu conquistá-la. Imagens e a identidade da
natural que tal insumo técnico fosse apro- chefe, que se recusou a falar, foram exibi-
veitado pelo sistema penal, no exercício de das. Entre uma história e outra, o especia-
seu poder de vigilância. Não menos natural, lista (no caso, o indefectível deputado Car-
contudo, seria que as agências de comuni- los Minc) se pronuncia. O último episódio se
cação social do sistema penal, dispondo de passa também na Baixada Fluminense; dessa
equipamentos de última geração, se vissem feita, sequer existe uma relação de poder em
tentadas a empregá-los diretamente, na linha causa. Um empregado de uma pequena fá-
dos reality shows que, como observou Gara- brica teria dito para um colega, certa ocasião,
pon, dispensam a ficção por sua capacidade que ela “estava gostosa”, e teria tentado olhar
de “agir no real, com a participação daqueles seu banho, através de uma janela. A repór-
que estão diretamente envolvidos”25 . Esta- ter bate à porta da fábrica, gravando, e o in-
mos prontos para assistir aos acalorados lití- feliz réu, aterrorizado pela câmera, diz que
gios na vara de família do Ratinho, ou à can- ele não é ele. O patrão confirmará que ele é
did camera criminal do Fantástico. ele, porém os outros empregados negarão os
Em 30 de março de 2001, o programa fatos. Nomes, fisionomias, tudo no ar. Ao
Globo Repórter ocupou-se de assédio se- final, a repórter lembra: “a lei ainda está por
xual. Um Sérgio Chapelin doutrinal inda- vir”. De fato, um mês e meio depois dessa
gava “qual o limite entre a paquera e o assé- matéria, a lei no 10.224, de 15.mai.01, vi-
24
ria a criminalizar o assédio sexual (art. 216-
A máquina de visão. Rio de Janeiro, J. Olympio,
1994, p. 72 ss. A CP). À parte a indigência da reflexão so-
25
Antoine Garapon. O juiz e a democracia. Rio de bre assédio sexual do programa, a mídia teve
Janeiro, Revan, 1999, p. 112. poder suficiente para fazer lançar em docu-

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12 Nilo Batista

mentos oficiais de uma Delegacia de Polícia vocadora “Tráfico retorna a suas atividades
– legíveis na reportagem – a rubrica assédio 24 horas depois da PM deixar o morro X”.
sexual. Ninguém conseguiria tal proeza: in- Toda a gente sabe também onde ficam tais
vestigações policiais formalizadas sobre um pontos, inclusive a polícia, cuja aproxima-
crime que “ainda está por vir”, a repartição ção, saudada por alguns rojões, suspende as
pública como cenário de uma telenovela nu- atividades mercantis ilegais, até sua retirada.
trida pela intimidade sexual de pessoas re- Em agosto de 2001, repórteres da TV Globo
ais26 . O que dizer da exposição da imagem simularam comprar drogas em algumas fa-
dessas pessoas, anunciadas como “acusadas” velas e mesmo em ruas da Zona Sul, natu-
de um delito que não existia? ralmente com uma microcâmera. Numa fa-
Essas “pegadinhas” criminais devem ser vela, surpreenderam ou estimularam uma es-
completamente afastadas do debate acerca pécie de pregão, similar aos das bolsas de
do jornalismo investigativo, até porque não mercadorias. Em todos os locais visitados,
há nada desconhecido nessa investigação; duas dezenas de jovens vendedores foram fo-
aqueles três episódios vulgares, que pode- tografados com clareza suficiente para resul-
riam perfeitamente ter ocorrido nos estúdios tar em algumas indicações, com três prisões.
da TV Globo, só ganharam visibilidade por Nada, absolutamente nada que não fosse co-
causa da tese: precisamos criminalizar o as- nhecido, salvo a fisionomia de alguns dos
sédio sexual que, como lembrou o prof. Cha- milhares de jovens negros e favelados que
pelin, “causa constrangimento e muita dor”. têm neste comércio ilegal sua perigosíssima
Um caso típico de criminalização provedora; estratégia de sobrevivência27 . Nada de novo:
após 15 de maio de 2001, certamente desapa- ganharam o prêmio Esso. Nas comemora-
receu do país o interesse sexual de superiores ções (Bom Dia Brasil, 19.dez.01), além de
hierárquicos por qualquer de seus subordina- frisar que seus colegas entraram “numa das
dos. favelas mais perigosas da cidade”, a jorna-
Há no Rio de Janeiro centenas de pontos lista enfatizava a “ousadia” dos “bandidos”:
de venda de drogas ilícitas, basicamente co- “oferecer drogas”. O merecimento nem sem-
caína e maconha. A prisão de todos os ven- pre provém do que se informa, mas também
dedores de um ponto jamais impediu que, daquilo que se omite: a improvável repor-
tão logo a força policial se ausente do local, tagem sobre o desemprego e a miséria nas
as vendas se restabeleçam, com a imediata favelas.
substituição da mão-de-obra: se os interes- Na mesma linha, sob o logotipo de uma
ses do mercado lograram alterar a Constitui- lupa com a inscrição “O Dia investiga”28 ,
ção, como se deteriam perante uma lei or- temos outra “pegadinha”. É fato tolerado
dinária? Toda a gente já leu a notícia pro- no Rio de Janeiro – durante curto período,
legalizado pela chamada “lei do bico” –
26
Alberto Torón registrou o caso de um Delegado
27
de Polícia Federal que preparou para a mídia o cenário Sobre o assunto, Vera Malaguti Batista, Difíceis
de uma cela ocupada por um preso rico. Cf. “Notas ganhos fáceis, Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC,
sobre a mídia no crimes de colarinho branco e o Judi- 1999.
ciário: os novos padrões”, em Rev. IBCCrim no 36. S. 28
“Acaba a farra na Vila Mimosa”. O Dia,
Paulo, RT, 2001, p. 260-261. 4.dez.01, p. 11..

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Mídia e Sistema Penal 13

que policiais suplementem seus ganhos tra- gião da Boa Vontade, com manchetes diárias
balhando em vigilância patrimonial privada, de primeira página, em março de 2001. O
como ocorre em tantos países. É claro que tal que provavelmente todos ignoram é que a
prática não se restringe às ruas dos mais va- LBV recebera, dias antes, a concessão para
lorizados bairros da cidade: também na Vila exploração de um canal aberto de televisão
Mimosa, o resíduo local da zona de baixo educativa. Não temos qualquer apreço pela
meretrício do Rio, e talvez ali com maiores LBV, nem lhe reconhecemos aptidões espe-
razões, encontraremos policiais no “segundo cíficas para administrar uma televisão edu-
emprego”. Só um olhar muito preconceitu- cativa. A LBV representa a indústria da ca-
oso e conservador, que no limite inabilita- ridade da “velha economia”, como diriam os
ria a prostituta para qualquer ato oneroso da locutores globais; a mesma indústria da cari-
vida civil, farejaria um rufianismo na remu- dade opera hoje por outros métodos, tercei-
neração pelos certamente difíceis serviços de rizados, combinando recursos públicos com
manter a ordem na zona. A grande desco- doações de campanhas “politicamente corre-
berta investigatória de O Dia – com fotos na tas”. Com as matérias publicadas, a LBV
madrugada que imediatamente levaram à pri- foi pautada para o Ministério Público, a Re-
são oito policiais militares – foi essa: na zona ceita Federal, o INSS etc. Festejando, me-
é como no Leblon. ses depois, uma auditoria do INSS, um edi-
Tanto na reportagem “Feira de Drogas” torial afirmava: “O trabalho jornalístico, en-
quanto na “Farra na Vila Mimosa”, o impor- fim, abriu os olhos do Estado para as falca-
tante não é o conteúdo da investigação jorna- truas debaixo do seu nariz”29 .
lística, sabido e ressabido: o importante é a Apesar do álibi de cariz liberal, fica evi-
direta mobilização do sistema penal, o cum- dente que o “trabalho jornalístico” não ape-
primento de uma tarefa própria das agências nas pautou agências do sistema penal e ou-
executivas do sistema penal. Sob tais cir- tras agências públicas, como também que
cunstâncias, nas quais a mídia está não ape- “abriu os olhos do Estado” na escolhida di-
nas pautando as agências executivas do sis- reção da LBV, não das centenas de corpo-
tema penal, como também selecionando en- rações nas quais provavelmente se encontra-
tre candidatos à criminalização secundária riam “falcatruas” similares, tendo em suas
(os repórteres de “Feira de Drogas” foram à mãos portanto a seletividade própria do sis-
Mangueira e à Rocinha: poderiam ter prefe- tema penal.
rido Mineira e Borel; o repórter da “Farra” O vigilantismo não se reduziu aos meios
foi à Vila Mimosa: poderia ter escolhido fotoeletrônicos que lhe concederam esta se-
qualquer das inúmeras “termas” em funci- gunda e gloriosa vida. O princípio subsiste
onamento), cabe falar de uma “executiviza- em inúmeras propostas. O conhecido soció-
ção” das agências de comunicação social do logo Luiz Eduardo Soares, ao expor ao jor-
sistema penal. nal O Globo projetos de seu partido para o
O álibi para disfarçar essa articulação ób- governo do Estado do Rio de Janeiro, men-
via é buscado na tradição liberal do jorna- cionou “a idéia de montar nos batalhões de
lismo investigativo. Todos se recordam da
29
campanha que O Globo moveu contra a Le- O Globo, 27.nov.01, p. 10.

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14 Nilo Batista

Polícia Militar centrais de telemarketing, que dades inquisitoriais de alguma CPI, ou com
ofereceriam mão-de-obra cadastrada nas fa- investigações sobre a própria conduta de par-
velas”. Ouçâmo-lo: lamentares. A questão criminal se politiza
igualmente como descredenciamento de ad-
– Os batalhões podem mon- ministrações locais ou forças partidárias que
tar cadastros desses prestadores. se oponham ao credo criminológico midiá-
ONGs forneceriam pessoas para tico, à expansão da intervenção penal. Todos
trabalhar num serviço de telemar- viram a reação da imprensa quando o então
keting muito simples, anotando os ministro da Justiça José Carlos Dias falou em
pedidos da população. Os bata- direito penal mínimo: era o homem certo no
lhões funcionariam como fiadores lugar certo, porém na ocasião errada.
desses prestadores e checariam, no Na televisão, os âncoras são narradores
fim, se o trabalho foi bem feito – participantes dos assuntos criminais, verda-
explica o sociólogo30 . deiros atores – e atrizes – que se valem te-
atralmente da própria máscara para um jogo
Trabalhadores pobres cadastrados na po-
sutil de esgares e trejeitos indutores de apro-
lícia, e supervisionados pela polícia. Para
vação ou reproche aos fatos e personagens
quem leu Bentham, qualquer comentário se-
noticiados. Este primeiro momento no qual
ria supérfluo. Proposta formulada por um
uma acusação a alguém se torna pública não
especialista do Partido dos Trabalhadores.
é absolutamente neutro nem puramente des-
Tempos confusos.
critivo. A acusação vem servida com seus in-
gredientes já demarcados por um olhar mo-
5 Noticiário ralizante e maniqueísta; o campo do mal des-
tacado do campo do bem, anjos e demô-
O paradoxo de que a um Estado social mí-
nios em sua primeira aparição inconfundí-
nimo corresponda um Estado penal máximo
veis. Para ficar num caso sobre cuja incon-
conduz às conseqüências concomitantes de
sistência há unanimidade, vejam-se os noti-
despolitização dos conflitos sociais e politi-
ciários contemporâneos do inquérito policial
zação da questão criminal. Os faits-divers
da Escola Base.
da antiga página policial migraram para a
Por fim, a observação puramente quantita-
primeira página, e as páginas políticas re-
tiva revela a importância estratégica da cri-
cebem um tratamento policialesco. A gi-
minalização das relações sociais no noticiá-
gantesca transferência de poder e riqueza do
rio. Tomemos a edição de O Globo de sá-
âmbito público para o privado tem no des-
bado, 5 de janeiro de 2002. Deixando de
merecimento de agentes políticos um pode-
lado o caderno que se ocupa de economia,
roso indutor de opinião: serviços públicos
mundo e esportes, restam 16 páginas sobre
são ineficazes, e administrados por gangs-
o país e o Rio, além de colunas, editoriais e
ters. Decisões do Congresso Nacional capa-
artigos. Leiamos essas 16 páginas. Na pri-
zes de afetar milhões de brasileiros obtêm di-
meira, há três chamadas de matérias crimi-
vulgação ínfima se comparada com as ativi-
nais (“Seqüestrador mantém reféns em Porto
30
O Globo, 25.dez.01, p. 3. Alegre”; “Polícia do Rio prende dois chefes

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Mídia e Sistema Penal 15

do tráfico”; “Fernando Pinto apanhou com prende no Paraná ladrões de banco do Rio”,
canos de ferro”) e duas correlatas (“Governo “Bandidos atacam posto da PM e ferem sar-
suspende pílula do dia seguinte” e “Filho de gento”, “Bandidos ferem cinco pessoas na
Cássia Eller já é disputado”): acrescidas à saída do piscinão” e “Traficante que resga-
foto, do episódio de Porto Alegre, somam tou cúmplice de hospital é preso”. Por fim,
70% da centimetragem. A página 2, além na página 16, um imenso anúncio cercado de
de uma coluna econômica, só publica outras seis pequenas notícias, quatro das quais cri-
chamadas: das oito, cinco são criminais. A minais (dois acidentes de trânsito, um bloco
página 3, salvo uma coluna no rodapé, é toda carnavalesco ensaiando em decibéis ilícitos,
dedicada à manchete: “Terror no microôni- e “Homem agarra criança e pula de 7 metros
bus”. Na página 4, além de uma coluna, te- de altura”. Eis aí: quase 80% do noticiário
mos a complementação da matéria sobre o desta edição sobre o país e o Rio é criminal
microônibus e reportagem sob o título “Du- ou judicial. Será ingênua esta leitura do país
tra Pinto apanhou com canos de ferro”. Na e do Rio? Ou servirá para esconder algumas
página 5, além de um anúncio, quatro ma- coisas e alavancar outras?
térias: “Garoto de 13 anos mata amigo de
12 com tiro” (manchete); “Diretor de presí-
dio já tinha sido condenado”, seguida de “Si- 6 Variedades
tuação é tensa no (presídio) Urso Branco”, Bourdieu definiu magistralmente os progra-
e “Feirante que teve o pênis cortado rece- mas de variedades como transmissores de
berá prótese”. A página 6 publica os edi- uma “espécie elementar, rudimentar de in-
toriais e cartas dos leitores: das 17 cartas, formação que é muito importante porque in-
5 têm por objeto um processo civil, 2 a se- teressa a todo mundo sem ter conseqüências
gurança no réveillon, 1 um crime ambiental, e porque ocupa tempo, tempo que poderia
3 a morte de Fernando Dutra Pinto. Na pá- ser empregado para dizer outra coisa”31 .
gina 7, uma coluna e dois artigos. Na pá- Cada vez mais, programas de variedades
gina 8, das sete matérias três estão em nosso adotam formas judiciais. Em nosso país, a
terreno (a pílula do dia seguinte, tramitação televisão aberta do chamado horário nobre
da nova lei de drogas e um crime eleitoral). intoxica o povo com diversos programas de
A página 9 se ocupa inteira do tema de sua variedades: informações inconseqüentes, tri-
manchete: “Começa a briga por Chicão”. As cas e futricas de bastidores, números musi-
páginas 10 e 12, com tradicionais colunas, cais no geral indignos do nível que alcan-
são exceções. Na página 11, de quatro ma- çamos nessa arte, entrevistas bem compor-
térias as duas maiores são “Mosteiro de São tadas, tempo gasto no inócuo e na mesmice.
Bento tem segurança particular depois de so- Já mencionamos a Vara de Família do Ra-
frer 3 assaltos” (manchete) e “Juizado deci- tinho, com aquelas cenas patéticas da mu-
dirá destino de menina”. Na página 13, “bió- lher perseguindo o homem – há momentos
logo denuncia crime ambiental”. A página em que se pode legitimamente suspeitar que
14 é uma propaganda. Na página 15, além do os seguranças do programa deliberadamente
obituário, cinco matérias criminais (“Prisão
31
de Polegar em Fortaleza” – manchete –, “PF Bourdieu, op. cit., p. 23.

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16 Nilo Batista

facultam-lhe um tapinha só, daqueles que desempenho, geralmente árbitros aposenta-


não doem – logo após a revelação do resul- dos, invariavelmente se posicionam pela ex-
tado de um exame de DNA ao vivo e a cores; clusão do atleta (pena máxima, cartão ver-
estará o filho em casa vendo a disputa de seus melho). Advertências verbais, ainda que se-
pais? veras, são mal vistas. Alguém se recorda de
Quem tiver paciência para assistir à longa algum desses comentaristas criticar um ár-
entrevista (40’59”) da cantora e bailarina bitro por excessivamente rigoroso? Imper-
Gretchen à jornalista-modelo Luciana Gime- ceptivelmente, a reportagem esportiva cola-
nez32 terá uma visão de como seria o pro- bora na disseminação das idéias de que o me-
cesso civil de uma ação de reparação de da- lhor juiz é o que opta sempre por penas mais
nos. Gretchen foi ao Recife e, estando pre- severas, e de que as sanções são o instru-
sente numa casa noturna, dispôs-se – ou foi mento mais adequado para manter a ordem
convidada – a dançar num tablado contíguo em campo.
a uma fogueira, resultando-lhe queimaduras. Quando, nas cercanias do esporte, surge
Testemunhas se pronunciaram, as lesões são algum episódio criminal, as coisas ficam
exibidas, não falta a prova pericial – no tele- mais explícitas, tal como se deu no trata-
fonema de um médico –, a família se solida- mento dispensado aos passaportes falsos, ou
riza, enquanto a produção do programa tenta aos “gatos” cujos pais ou treinadores fizeram
em vão obter um pronunciamento da outra um segundo registro civil para viabilizar a
parte. Afora a revelia virtual dos gerentes da participação em competições de faixa etária
casa noturna, são quase três quartos de hora limitada. Casos de doping são especialmente
nos quais uma lide, com todos os condimen- atraentes, porquanto se comunicam com o
tos probatórios, diverte o público e adverte imaginário da droga. Quando um exame na
o infeliz magistrado que dela se ocupará no urina de Júnior Baiano detectou detritos as-
futuro. sociados à cocaína, na primeira transmissão
Estamos fora do modelo convencional do subseqüente de uma partida os telespectado-
trial by media: não se trata aqui de influ- res de Galvão Bueno votaram majoritaria-
enciar um tribunal, senão de realizar direta- mente em favor da pena máxima de suspen-
mente o próprio julgamento. são para ele – e era um zagueiro da seleção
brasileira! Ficou claro que Galvão Bueno
tem seu público na mão, bem como que não
7 Esportes havia nada mais importante a conhecer deste
O desempenho dos juízes de futebol é sem- público além de sua brandura ou severidade
pre avaliado negativamente quando eles ten- penal.
tam, como se diz, “segurar” o jogo valendo- Uma última observação, útil porque nem
se da pena menor (cartão amarelo). Perante sempre a mística liberal pode ser desmentida
uma jogada duvidosa quanto à intenção de com tanta clareza. Uma reportagem espor-
atingir o adversário, os juristas das leis do tiva deveria abranger a incondicional possi-
futebol encarregados da apreciação daquele bilidade de, em casa, o telespectador saber
de tudo o que se passa no estádio. Retratos
32
Rede TV!, programa Superpop, 19.dez.01. de Che Guevara, maciçamente usados por

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Mídia e Sistema Penal 17

uma facção da torcida do Flamengo, nunca 8 A executivização em seu nível


são enfocados. Em compensação, o exibici- máximo: Linha Direta
onismo mais tolo e individual, do tipo “que-
rido Galvão, mostra nós” ou “a gente se vê O interesse do Instituto Carioca de Cri-
por aqui e em Conceição da Roça Grande” minologia pelo programa Linha Direta foi
são o tempo todo mostrados. Também o áu- despertado por uma notícia que relatava a
dio é ciosamente controlado: quem ficou sa- morte, em confronto policial, de um assal-
bendo que o nome de Osama Bin Laden foi tante cuja biografia criminal fora dias antes
gritado no Maracanã, no primeiro jogo das exposta naquele programa (12.ago.99). O
finais da Copa Mercosul de 2001? A prova programa subseqüente (19.ago.99) comemo-
dos nove pode ser obtida numa constatação rava o feito. Examinando os vídeos de ambas
mais simples. Criou-se o hábito de jogadores as edições, solicitamos e obtivemos do Pro-
comemorarem seus gols exibindo, numa se- curador Geral da Justiça do Estado da Bahia,
gunda camisa portada sob a do clube,alguma Fernando Steiger Tourinho de Sá – a quem
inscrição. É também geralmente algo tolo, agradecemos – cópia do procedimento con-
variando de “papai te ama” a “foi Jesus quem cernente ao confronto que vitimara o agora
marcou”. Contudo, é potencialmente peri- famoso Marcos “Capeta”.
goso, porquanto uma inscrição mais irreve- O exame do primeiro programa mostra um
rente pode quebrar o monopólio do discurso: cruel Marcos “Capeta”, chefe de numeroso
quem escolhe o que o telespectador vê é a bando, que maneja uma metralhadora ponto
emissora, não o atleta. No dia em que Ro- 50, instalada na carroceria de uma picape,
mário descobriu essa veia de tantos cronistas contra policiais atônitos, que empunham re-
atuais, a indignação a favor, fez uma inscri- vólveres calibre 38, numa Kombi que ex-
ção de apoio ao presidente Fernando Henri- plode. Desnecessário será dizer que as cha-
que Cardoso. Mal estar na civilização glo- mas da explosão, naquilo que terá parecido
bal: era a favor, porém rompia um princí- ao diretor um grande achado, emolduram o
pio. A solução foi entremostrar a inscrição, rosto cínico de Marcos “Capeta”, cuja alcu-
um pouco rapidamente, sem muitos comen- nha se prestava a uma espécie de demoniza-
tários. O fato é que os goleadores correm di- ção ao pé da letra. Lamentavelmente, os do-
retamente para a câmera atrás da baliza, po- cumentos depõem em outro sentido. Mar-
rém esta câmera é cortada até que os censo- cos “Capeta” foi morto numa casa situada
res se certifiquem da inocuidade do escrito. em local ermo, isolada e portanto facilmente
Aí, sim, a transmissão é autorizada. Naquela sitiável. Seu corpo tinha 22 orifícios de en-
memorável olimpíada, na qual os campeões trada de projéteis de arma de fogo, além de
norte-americanos levantaram o braço com a uma aparentemente desnecessária lesão con-
saudação dos Panteras Negras, as câmeras de tusa na região cervical. Das quatro armas
hoje só enquadrariam até a cabeça. que a polícia disse ter encontrado no local,
uma não disparara (exame negativo para pól-
vora combusta), e as outras três (dois revól-
veres 38 e uma pistola 380) estavam par-
cialmente carregadas: mas a metralhadora

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ponto 50 da encenação do Linha Direta sim- se se Marcos “Capeta” integra este número).
plesmente não existia. O numeroso bando Observa Mendonça que o sucesso do pro-
também estava reduzido a um garoto de 14 grama pode ser explicado na (perigosíssima)
anos, com pelo menos oito lesões de pro- reunião de aspectos de telejornalismo e tele-
jéteis de arma de fogo (o respectivo laudo novela, “os dois produtos de maior audiência
tem passagens ilegíveis). Do depoimento da da emissora”. A partir do “lugar de autori-
irmã de Marcos “Capeta” consta uma sorte dade” do qual o programa se investe, a mis-
de última declaração dele: “Linha Direta só tura de dados reais e dados ficcionais (na dra-
disse mentira”. A festejada secretária de Se- matização de um crime que muitas vezes não
gurança Pública da Bahia, nas colunas so- foi presenciado por ninguém) se encaminha,
ciais freqüentemente apresentada como “a de forma grosseiramente óbvia, a despertar a
blonde Kátia Santos”, declarou ao segundo indignação dos telespectadores, convocados
programa, o comemorativo: “ bandido aqui a informar algo sobre o paradeiro do vilão,
na Bahia não faz carreira longa”. que escapou às conseqüências de seu bár-
Perguntávamo-nos aqui no Instituto: baro cometimento. Mendonça desnuda com
quem matou Marcos “Capeta”? Um grupo maestria as “marcas da verdade” que esta-
de policiais baianos, fascinados pela fama rão afiançando as simulações dramatizadas.
ao alcance do dedo, ou o jornalista Marcelo Cenários e diálogos inventados depõem so-
Rezende – quer dizer, a TV Globo? Parecia- bre a frieza de assassinos, ou sobre os delei-
nos que a agência de comunicação social, tes do estelionatário foragido. Impressiona o
dispondo dramaticamente sobre fatos e fato de que o acusado, quando consegue fa-
personagens reais, inclusive e especialmente lar, tem suas declarações editadas, entrecor-
policiais pautados para aquela caçada, tadas por cenas ou observações destinadas
estava assumindo um papel próprio das a descredenciá-las; como diz Mendonça, “a
agências executivas do sistema penal; pela cada declaração de inocência do acusado, o
primeira vez, cogitava-se da hipótese de programa intercala uma outra ainda mais en-
“executivização” daquelas agências. fática, que não só atesta que ele de fato é um
O grande estudo sobre Linha Direta foi criminoso como ainda reafirma o cinismo do
empreendido por Kleber Mendonça33 , no preso”. Inúmeras deslealdades narrativas do
marco teórico da análise do discurso. Kle- Linha Direta são expostas por Kleber Men-
ber Mendonça revela como a TV Globo se donça, como no caso em que um preso tenta
coloca ali como instância de serviço público dar uma cabeçada na câmera da TV Globo,
que tende a corrigir as insuficiências do sis- e o fato é duplicado: “tentou dar outra ca-
tema penal, “a fazer a justiça funcionar como beçada no cinegrafista”, diz o apresentador,
deveria”. Até abril de 2001, ou seja, em porém, esclarece Mendonça, “o telespecta-
quase dois anos de atividades (o primeiro dor, de fato, via a cena pela segunda vez,
programa é de 27.mai.99), o programa co- já que a edição abriu a reportagem com esta
memorava a prisão de 103 foragidos (ignora- cena”. Paralelamente, as vítimas vivem si-
tuações, reais ou dramatizadas, em que to-
33
A punição pela audiência – um estudo do Linha dos os recursos – Mendonça se deteve sobre
Direta. Rio de Janeiro, Quartet/Faperj, 2002.

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Mídia e Sistema Penal 19

a música de fundo – sinalizam para a inocên- certa forma, um homem procurado pela Jus-
cia e a desproteção. tiça.
O trabalho de Kleber Mendonça é defini-
tivo, e põe a nu as múltiplas violações de ga-
rantias constitucionais semanalmente prati- 9 À guisa de conclusão
cadas naquele sinistro empreendimento. No Desgarrando-se de suas bases estruturais
caso de réus ainda não sentenciados, a pre- econômicas, o credo criminológico da mídia
sunção de inocência e o direito a julgamento constituiu-se como um discurso que impreg-
justo são simplesmente escarnecidos; não fa- nou completamente o jornalismo, das meno-
lemos da imagem. Interessa-nos, contudo, res notas ao obituário35 , abrangendo inclu-
especialmente ressaltar a executivização da sive publicações que se pretendem progres-
comunicação social. Pense-se na coincidên- sistas36 .
cia de que o Linha Direta inicia suas caçadas Este discurso aspira a uma hegemonia,
humanas três anos após o processo penal bra- principalmente sobre o discurso acadêmico,
sileiro ter assumido o princípio de que o acu- na direção da legitimação do dogma penal
sado tem o direito de conhecer real – e não como instrumento básico de compreensão
ficticiamente – a acusação para defender-se dos conflitos sociais. Este discurso habilita
(lei no 9.271, de 17.abr. 96). Linha Direta as agências de comunicação social a pau-
é um processo e um julgamento público que tar agências executivas do sistema penal, e
não devem satisfações à Constituição ou às mesmo a operar como elas (executivização),
leis, porém produzem efeitos reais: o mais disputando, com vantagem, a seletividade
importante não reside na prisão, e sim no com tais agências. A natureza real desse
próprio julgamento que fará, por exemplo, contubérnio é uma espécie de privatização
o júri de uma cidade do interior, perante o parcial do poder punitivo, deslanchado com
qual provavelmente um promotor zeloso exi- muito maior temibilidade por uma manchete
birá uma cópia do programa. que por uma portaria instauradora de inqué-
Encerremos com um episódio ilustrativo. rito policial.
Pouca gente sabe por que Marcelo Rezende Entre as múltiplas omissões desta resenha,
foi substituído por Domingos Meirelles. É está a publicidade. Um importante estadista
que, em 25 de novembro de 1999, a juíza
da 12a Vara de Família do Rio determinara 35
A saudosa Rosa del Olmo notabilizou-se pelo
a intimação de Marcelo Rezende, por edi- pioneirismo e argúcia com os quais seus trabalhos re-
velaram as funções políticas – inclusive a nível in-
tal, para submeter-se a exame de DNA numa ternacional – e sociais da criminalização das drogas.
ação de reconhecimento de paternidade, que Seu obituário no Jornal do Brasil (20.nov.01, p.20)
aliás seria julgada procedente em primeira frisava que na América Latina “não havia ninguém
instância34 : estava ele na situação de “resi- como ela para discorrer sobre tóxicos e seus malefí-
dência incerta e não sabida”, como rezava o cios”, referindo-se ainda ao “notório vigor com que
sustentava a luta contra os tóxicos”.
edital, tal e qual suas vítimas. O implacá- 36
Cf., por exemplo, a cobertura que Cadernos do
vel perseguidor de foragidos também era, de Terceiro Mundo deu à 1a Conferência Executiva de
Segurança Pública para a América do Sul (out-nov.
34
O Dia, 2.dez.99, p. 4, e 10.nov.00, p. 4. 2001, no 236, p. 14 ss).

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do século XX sabia que “quando a propa-


ganda já conquistou uma nação inteira para
uma idéia, surge o momento asado para a or-
ganização, com um punhado de homens, re-
tirar as conseqüências práticas”37 . Linha Di-
reta já retira conseqüências práticas do dis-
curso criminológico único da mídia, da qual
a publicidade não passa de um continuum re-
tórico. Podemos estar nos aproximando do
momento em que certas iniciativas proces-
suais de alguns operadores do sistema pe-
nal que aceitaram este jogo só possam ser
compreendidas através dos manuais de pro-
paganda e marketing, sem que ao mesmo
tempo o cidadão entrevistado por uma repor-
tagem policialesca tenha assegurado seu di-
reito ao silêncio.
Quando da sanção da nova e tão atrasada
lei de drogas (lei n˚ 10.409, de 11.jan.02), o
Presidente da República vetou o artigo 54,
que o Congresso Nacional aprovara: “Os
meios de divulgação manterão sob sigilo os
valores atribuídos a drogas e equipamentos
apreendidos”. Desejo destacar não a incons-
titucionalidade do dispositivo, que represen-
tava uma vedada censura, mas sim a fami-
liaridade com a qual a agência política de
criminalização primária tratou aí as agências
de comunicação do sistema penal. Era como
uma proibição dirigida a uma agência execu-
tiva: as delegacias de polícia judiciária man-
terão sob sigilo... Se as tendências de legiti-
mação e superposição que tentamos descre-
ver neste artigo se incrementarem, talvez o
dispositivo vetado e outros similares tenham
vigência, num futuro não muito distante: por
decreto.

37
Adolf Hitler. Minha luta. S. Paulo, Moraes, p.
363.

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