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Muitos são, hoje, da opinião de que não existem duas

coisas mais dissonantes e incongruentes que a vida


civil e a militar. Pois, vemos diariamente que, quando
um homem ingressa no exército, ele imediatamente
muda não apenas sua indumentária, mas seu compor-
tamento, suas companhias, sua tez, sua maneira de
falar, e este se investe para despojar-se de tudo aquilo
que possa parecer da vida ou das conversas comuns.
Pois o homem almejando estar pronto para qualquer
sorte de violência despreza a indumentária padrão
do civil, e crê que nenhum traje serve ao seu propósito
que não a farda-armadura. E quanto a civilidade e
polidez, como se pode esperar encontrá-las em alguém
que imagina que tais coisas o fariam parecer afemi-
nado e que tais coisas seriam um obstáculo ao seu
serviço, especialmente quando tal sujeito pensa que é
seu dever, ao invés de conversar e comportar-se como
os outros homens, ameaçar qualquer um que encontre
com uma saraivada de pragas e um temível par de
bigodes?

Maquiavel – A arte da guerra


Caetano e Viegas
(organizadores)

Uma Avaliação Crítica das Escolas Militarizadas

2016
Projeto editorial, Preparação dos originais e Revisão
Ian Caetano de Oliveira & Victor Hugo Viegas de Freitas Silva

Capa
Ian Caetano de Oliveira
(sobre desenho de Heitor Aquino Vilela)

Diagramação
Ian Caetano de Oliveira

Coleção Piquete (coordenadores Ian Caetano & Victor Viegas) - Volume I


Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)
Dados fornecidos pelos organizadores

E79

Estado de Exceção Escolar: uma avaliação crítica das escolas militarizadas / Ian
Caetano de Oliveira, Victor Hugo Viegas de Freitas Silva, organizadores.
Aparecida de Goiânia: Escultura produções editoriais, 2016. -(Piquete)

ISBN 978-85-5896-000-7

1. Escola pública. 2. Militarização. 3. Doutrina Militar. 4. Políticas Públicas para


a Educação. 5. Polícia Militar. I. Oliveira, Ian Caetano de, org. II. Silva, Victor Hugo
Viegas de Freitas, org. III. Título

CDU 37.01

Copyleft

Esse livro é publicado em regime copyleft. Pode ser reproduzido para fins
não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição,
sendo mencionada a fonte

Escultura produções editoriais


Rua 13 de Maio, Quadra 148, Lote 10 - Setor Garavelo
Aparecida de Goiânia - Goiás
CEP: 74.930-570 / e-mail: esculturaedicoes@outlook.com

2016
Sumário
Agradecimentos …………………………………………….……..….. 9

Introdução
Ian Caetano de Oliveira & Victor Hugo Viegas de Freitas Silva….........… 11

Sobre o livro …………………………………………………….…..….. 17

Os dilemas de estudar no regime militar: relatos de


uma estudante em uma escola militarizada .............. 21

As escolas militares: o controle, a cultura do medo e


da violência
Dijaci David de Oliveira ............................................................... 41

Quem quer manter a ordem? A ilegalidade da


militarização das escolas em Goiás
Francisco Mata Machado Tavares .................................................. 53

A exclusão dos alunos mais pobres nos Colégios


Militares
Rafael Saddi Teixeira .................................................................. 67

Nós perdemos a consciência?: apontamentos sobre a


militarização de escola públicas estaduais de ensino
médio no estado de Goiás
Ellen Ribeiro Veloso & Natália Pereira de Oliveira ............................. 71

Militarização de escolas públicas: avanços ou


retrocessos?
Joab Júnio Dias Gregório da Silva .................................................. 87

Sobre os autores .............................................................. 99


Agradecimentos
Agradecemos enormemente os autores, que
gentilmente aceitaram o pedido de escrever os textos
contidos nessa obra, todos de grande valia e que expõem
grande conhecimento sobre o tema.
Agradecemos especialmente também o artista e
jornalista Heitor Vilela, que produziu todas as ilustrações
contidas nesta obra, as de capa, 4ª capa e do interior do
livro.
Agradecemos ainda o Programa de Pesquisa
sobre Ativismo em Perspectiva Comparada (PROLUTA)
da UFG; e o Núcleo de Estudos sobre Violência e
Criminalidade (NECRIVI), também da UFG, pelo apoio
à produção e difusão da obra.
Agradecimentos também, e principalmente, aos
pais e mães, estudantes e trabalhadores da educação que
resistiram e continuam resistindo bravamente contra
a militarização e privatização das escolas públicas – e
cuja luta urgiu para que terminássemos esse livro o mais
rápido possível.

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Introdução
Ian Caetano de Oliveira
Victor Hugo Viegas de Freitas Silva

A educação pública – resguardadas algumas


exceções que são tidas como instituições de “excelência
educacional” – é marcada por uma patente má avaliação,
tanto dos exames oficiais que periodicamente avaliam
a qualidade desta educação, quanto, de maneira mais
genérica, por familiares e estudantes que estão nestas
mesmas escolas. Se pegarmos o IDEB, por exemplo,
como indicador, perceberemos que a disparidade em
relação à escola privada é acentuada.
No IDEB de 2013, vejamos, a avaliação do 3º ano
do ensino médio nas escolas públicas teve média de 3,8;
enquanto as particulares fecharam com 5,5.
São diversas as preocupações de estudantes
e familiares quanto ao futuro, uma vez que, sem as
adequadas melhorias na educação, estes estudantes terão
dificuldade de ascender a boas instituições de ensino
superior. Tendo dificuldades de ascender a carreiras
profissionais tidas como “melhores”, o que, na grande
gama dos casos, significa apenas “melhor remuneradas”.
O critério dessa avaliação tem sua base nas notas do
ENEM e do IDEB. Se o colégio vai bem nestes índices,
isso implica que será preferido por pais e estudantes.
De fato, o futuro a todos assombra e não é difícil
se preocupar, quando as “boas oportunidades” parecem
estar distantes. Muitas famílias não têm condição de
arcar com os custos de uma educação em escolas privadas
(que são, supostamente, melhores), então confiam
na educação pública para que esta seja suficiente para
encucar nas crianças e jovens bons valores sociais e éticos
e, também, boa instrução que lhes capacite bons lugares
11
Estado de Exceção Escolar

e possibilidades no mercado de trabalho.


Mesmo escolas particulares tremem ante o ENEM,
já que esta nota consolidou-se como o índice definitivo de
predileção. Então se os alunos de uma escola privada vão
mal nessa prova, ocorre o risco de queda na procura. A
escola, desta feita, arrisca reduzir seus lucros. Algumas,
com trapaças, ainda tentam mascarar a nota com práticas
diversas, como pedir a alunos tidos como “bons” que
façam o cadastro na prova com um documento escolar
e alunos tidos como “ruins” com outro. Este é só um
exemplo, existem vários. Há ainda casos extremos em
que o aluno é simplesmente expulso de escolas por não
atingir os “padrões” exigidos. Quem vai se preocupar com
“educação de qualidade” quando o que vale é o ENEM?
Nas escolas públicas a situação devia ser um pouco
diferente. O aluno não pode ser simplesmente excluído
do processo, pois ali, como assegura a constituição, ele
tem direito a educação. Então a situação tem de ser
tratada com outras soluções.
Compete ao governo do estado cuidar das escolas
estaduais. Compete a ele, portanto, ouvir a população,
entender as demandas e carências gerais e demandas
particulares de cada colégio e região. Depois deste
processo de estudo, cabe ao estado propor melhorias e
debatê-las com a população interessada, para que estas
medidas possam ser revisadas, melhoradas, e para que a
população veja se condizem com suas demandas.
No caso específico de Goiás, a resposta do governo
para a questão da educação tem sido dividida em
basicamente dois blocos: de um lado, o repasse da gestão
escolar para as chamadas Organizações Sociais (OS), e,
por outro, a Militarização Escolar, o repasse de escolas
públicas para a Polícia Militar do Estado de Goiás.
Notem que não falamos “o repasse da administração
12
Introdução

escolar” e sim “o repasse das escolas”. O governo pode


nomear a medida da maneira que quiser, mas a verdade
é que estas escolas não são apenas “administradas” por
quadros da polícia militar, mas são, de fato, remodelas na
imagem e semelhança de um quartel militar, com todas
as imposições, doutrinações e abusos que tal regime
implica.
Não queremos apontar que o problema da escola
pública é simplesmente o fato desta não poder mascarar,
como as escolas particulares, sua nota no ENEM, há
problemas de toda ordem, e graves: falta de investimento,
desestímulo à capacitação de professores, problemas de
estrutura física, problemas na relação entre a comunidade
circundante e a escola… uma gama de problemas a serem
resolvidos para que possamos avançar rumo a uma
educação mais digna e igualitária. A pergunta que este
livro tenta responder é se: “militarização seria de fato
a escolha mais eficiente e viável”? Seria esse o caminho
para reduzir a disparidade no ensino?
Não iremos falar, neste livro, sobre as Organizações
Sociais. Por quê?
Falar das Organizações Sociais e da Militarização
Escolar em um único livro seria algo demasiado extenso,
esta é uma das razões; e a outra é que são temas que,
embora tenham convergências, devem ser analisados
e criticados por caminhos diferentes, de modo que
pretendemos abordar as Organizações Sociais,
eventualmente, em outro livro. Nesta obra trataremos
apenas da militarização escolar.
Em certas escolas, oficialmente, o governo tem
apontado a militarização como uma saída viável para:
I) a melhoria da qualidade do ensino; II) a melhoria da
noção disciplinar de alunos e; III) também – em alguns
colégios onde o convívio com a sensação de insegurança
13
Estado de Exceção Escolar

é mais alarmante – para a maior segurança de alunos


em colégios de regiões mais “inseguras” e, também,
para a maior segurança do bairro/região que abriga a
escola, uma vez que esta região agora contaria com um
“quartel” dentro de si. Porém, como temos visto, a coisa
não corresponde, na realidade, ao discurso oficial.
Em uma fala em um evento, quando da intervenção
de alguns professores protestando por melhorias de
suas condições de trabalho, o governador afirmou que
onde houver baderneiros ele implantará militarização.
É curioso ouvir um governador chamar de baderneiros
não pessoas que estivessem a cometer qualquer tipo de
delito, mas que estavam ali explicitando legitimamente
sua indignação com a patente calamidade que é a atual
situação da educação em Goiás. Mais espantoso ainda
é que o governador passe a impressão que motivos
tão circunstanciais motivam-no a implantar políticas
públicas de tamanho impacto, com o agravante de serem
postas em execução da noite para o dia, sem consulta
com interessados (estudantes, familiares, professores,
etc.)
E nesta toada tem funcionado a implantação da
militarização escolar em Goiás: I) sem consulta prévia
com estudantes, professores, familiares e pessoas da
região da escola; II) sem respeito (como demonstraremos
com os artigos que compõem este livro) tanto às leis que
dispõem sobre educação quanto às leis que dispõem
sobre segurança pública e; III) sem qualquer avaliação
dos impactos psicológicos e sociais de longo e médio
prazo que a militarização pode imputar a crianças e
jovens em estágios de formação.
Embora seja possível pensar em algumas
possibilidade e caminhos para a melhoria do ensino
público, não o faremos neste livro. Mas também não
14
Introdução

consideramos que a crítica a um modelo com claras


mostras de equívoco e de ineficiência – tal qual é o
da Militarização Escolar – seja ilegítima pela falta
da apresentação de um modelo pronto e acabado de
melhoria. Como dissemos anteriormente, tal modelo,
como fórmula última, inexiste, e um bom caminho para
começar a melhoria da educação é a ampliação do debate
democrático e aberto sobre o papel da escola, a estrutura
escolar, os objetivos do ensino, etc.

15
Sobre o Livro
Discorrer mais sobre o tema seria repetir o que já
está tão bem escrito nos artigos que compõem esta obra,
de modo que vamos apenas resumir os temas que cada
um dos artigos expõe. Pois, embora uma ordem tenha
sido pensada para compor este livro, tentamos elaborá-lo
de modo que os artigos possam ser lidos individualmente
e na ordem que o leitor achar mais interessante, segundo
os temas que mais o interessem.
O livro conta com uma entrevista exclusiva os
dilemas de estudar no regime militar, com uma ex-
estudante de colégio militar, dando um panorama geral
do expediente vivido por estudantes e docentes nos
colégios militares, as questões hierárquicas, pedagógicas,
as restrições com relação a aparência, além de diversas
outras questões, muitas vezes desconhecidas por aqueles
que nunca frequentaram um colégio militar.
No artigo As escolas militares: o controle, a
cultura do medo e da violência, as pessoas interessadas
terão acesso a uma análise sobre os argumentos gerais
que, supostamente, legitimam a militarização e uma
réplica a estes argumentos. Tratando da visão social
que paira sobre os jovens, da legitimação cultural da
“sensação de insegurança”, e dos aspectos políticos
implícitos na implantação da militarização escolar.
No artigo Quem quer manter a ordem? A
ilegalidade da militarização das escolas em Goiás,
leitoras e leitores terão acesso a uma robusta, mas
acessível, avaliação da ilegalidade jurídica ocorrente na
Militarização Escolar, tanto no que se refere às leis que
dispõem sobre educação, quanto no que se refere às leis
sobre segurança pública e também leis fiscais (e ainda no
que se refere a leis de direito internacional).

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Estado de Exceção Escolar

No artigo A exclusão dos alunos mais pobres nos


Colégios Militares, é feita uma avaliação dos aspectos de
segregação socioeconômicos implícitos e imbrincados
na Militarização Escolar, que ocorrem desde questões
elementares, como a compra da farda escolar, até
em vácuos jurídicos mais problemáticos, como as
“contribuições voluntárias”.
No artigo Nós perdemos a consciência?:
apontamentos sobre a militarização de escolas públicas
estaduais de ensino médio no estado de Goiás é feito um
balanço geral do Estatuto da Criança e do Adolescente,
sua incompatibilidade com a Militarização Escolar,
além de um panorama amplo sobre os malefícios da
implantação da doutrina militar a nível escolar.
No artigo Militarização de escolas públicas:
avanços ou retrocessos? destrincha-se a hierarquia
militar, suas formas de consolidação, seu impacto a nível
social e individual e sua relação problemática com a
educação. Avaliando o papel da violência na corporação
militar, bem como, em fluxo histórico, o papel da mesma
na consolidação do corpo militar.
Obviamente a obra abarca apenas uma parcela dos
problemas, mas, obviamente, escarafunchá-los de modo
último seria um trabalho que levaria não um único livro,
mas uma obra de dimensões enciclopédicas. A obra que
apresentamos tem o intuito de problematizar algumas
questões mais urgentes e patentes, e também o de abrir
o debate, apresentando argumentos principalmente
à parcela que é mais frágil nessa disputa, que é a de
estudantes, familiares e professores, que são os que
sofrem os arbítrios de modo mais evidente.

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19
Os dilemas de estudar no regime militar:
relatos de uma estudante em uma escola
militarizada
Sobre a entrevista

A entrevista foi realizada oralmente e depois


transcrita. A entrevistada estava ciente do interesse de
publicação da entrevista e com ele concordou. A ordem
das perguntas na transcrição foi ligeiramente alterada
em relação à gravação original para fins de melhor
organização das ideias. A transcrição foi apresentada
à entrevistada antes de sua publicação. Por razão
de a entrevistada almejar a carreira militar e temer
complicações em virtude da publicação deste texto, sua
identidade foi preservada.
Vamos começar pela entrada então:

A entrada é o seguinte, você tem um horário


cronometrado para entrar no colégio. No caso, na parte
da manhã você tem até 06:45 para entrar, 06:46 você
não entra mais. Aí, nesses quinze minutos até as 07:00
você fica “em forma” (se não tiver feito algo de errado).
Por exemplo, pra você entrar no colégio você tem que
estar com a sua agenda, sua agenda tem que estar em
dia. O que é uma agenda em dia, ela tem que estar com
a sua foto, preenchida completamente (se ela não estiver
completamente preenchida você não entra no colégio.
Isso acontece muito no começo do ano, muitos alunos
ficam do lado de fora porque não conseguiram terminar
de preencher a agenda a tempo). E não se pode entrar
no colégio depois da hora, nem no segundo horário. Só
permitem entrar na segunda aula no noturno e, de vez
em quando, no vespertino. Mas isso é raro.

21
Estado de Exceção Escolar

Eu acho que o horário mais rigoroso é o matutino.


Eu não sei, poderiam deixar os estudantes entrarem
na segunda aula, mas é muito difícil eles deixarem. De
vez em quando eles veem que têm muitos alunos que
chegaram atrasados, eles deixam entrar no colégio, mas
só no segundo horário. Até chegar o segundo horário você
terá de ficar “em forma”. Isso é feito da seguinte maneira:
são feitas filas, o padrão são quatro ou cinco filas, e em
formato militar mesmo. Rigorosamente militar. Tem
que ficar em posição de “sentido”, só quando o militar
manda você “descansar” que você vai estar autorizado
a descansar. Descansar é ficar com as mãos para trás
em “postura”. E isso é feito desde o 6º ano do ensino
fundamental, crianças de dez anos têm de fazer isso.
Como eu falava, para entrar no colégio você ter de
estar com a agenda corretamente preenchida. Se houver
alguma coisa, por exemplo, uma anotação de algum
militar mandando você cortar o cabelo e você não cortou,
você não entra no colégio, você leva advertência. Se você
estiver com a xuxinha errada, estiver com a meia errada,
estiver sem o bibico, se você estiver de farda, mas estiver
com o sapato errado, você não entra. O tênis tem que ser
100% preto, se tiver algum destaque de outra cor, eles te
mandam embora trocar. Se o tênis estiver sujo, se a roupa
estiver suja, eles também te mandam embora, para você
lavar. E se, depois disso, você chegar a tempo você entra,
se não… é um aviso, uma aula.
E a questão da rotina dentro do colégio militar?

É a mesma coisa de um quartel, é um quartel


escrito. Quem entra no colégio militar por vontade
própria é porque quer seguir a carreira militar. Igual,
no meu caso, eu entrei porque eu quero seguir a carreira
militar. Porque lá você tem o militarismo como se tem
22
Os dilemas de estudar no regime militar

em um quartel, é uma formação como a que se tem em


um quartel. A formação dos militares é a mesma coisa. O
que eles falam é “nós vamos educar vocês pra vida”, mas
eu não acho certa essa forma. O Colégio é estruturado
como se fosse um quartel. Logo de entrada você vê o
pátio, o pátio que deveria ser para as crianças brincarem,
correrem… ali nesse pátio você tem as marcações, elas
estão ali pra você entrar em “forma”. Tem também a
marcação da marcha. Se na hora da “formação” tiver
algum aluno que esteja sendo punido, ele sempre fica
na frente, nas primeiras fileiras. Se ele está ali na frente,
é porque está sendo punido. Na região mais central do
colégio tem outro espaço, onde é feito o hasteamento da
bandeira. Ai termina o hasteamento da bandeira, os que
estavam lá na frente sendo punidos, vão pra essa área
marchar. No meu colégio, que era em prédio, os menores
ficam nos andares de baixo, em cima ficam os alunos
maiores, os que dão mais trabalho.
Nesse tempo de “formação” as pessoas ficam em
silêncio… como é?

Tem que ficar em silêncio. Se você falar você sai de


“forma” e você vai para uma outra “formação”. Quando
todo mundo for pra sala, você vai ficar lá, porque você
estava conversando. Você vai ficar durante uma aula lá,
45 minutos, em pé. Em “formação” ou “marchando”. A
pior punição pra um aluno no colégio militar é marchar.
A gente, alunos do colégio militar, a gente não gostava
de marchar. Você fica em pé muito tempo, tem que
marchar com “postura”, e com isso você vai pra sala de
aula cansado, com os pés doendo, com as pernas doendo.
E ser moça não importa, não adianta falar que está com
cólica, com as pernas doendo, “não estou nos melhores
dias”, mesmo assim você tem que marchar. Você não tem
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Estado de Exceção Escolar

essa opção do “não”.


E tem alguma diferença entre o tempo de “formação”
de quem entra com advertência e de quem não tem?

Tem. Quem entra no horário certo fica só quinze


minutos em pé, que é o tempo de formação para hastear a
bandeira. Que é aquela coisa, você vai ficar em “sentido”,
vai bater continência para a bandeira. Tem que esperar
hastearem a bandeira. Quando ela chegar lá em cima
você bate continência. Eu fiz isso cinco anos da minha
vida e nem sei por que.
A bandeira vai abaixando conforme os militares
vão mandando os alunos para as salas. Você vai para a
sala em formação, em fila, uma fila por vez. Aí os militares
passam em sala, antes de começar a aula. Eles passam de
sala em sala antes dos professores entrarem, para ver se
está tudo certo, se está todo mundo sentado. Se você não
estiver sentado, você leva advertência, não pode ficar em
pé não. Depois os professores entram.
A maioria das punições é de tipo físico, como colocar
a pessoa para ficar de pé?

A maioria delas são assim. Além de você levar


a punição na agenda, que seu pai tem que assinar.
Também tem essa punição física, onde você tem que ficar
em pé, em “forma”, mais que os outros. Se você for com o
fardamento errado, você vai ter que ficar em formação. A
formação dura em torno de 45 minutos, ou o restante da
aula. Tem também a questão da marcha. Na marcha dos
alunos a sincronização tem que estar perfeita, a parada
tem que estar sincronizada. Se ela não ficar sincronizada
os alunos vão ficar fazendo ali até ela estar.
E se você passar mal dentro do colégio?

24
Os dilemas de estudar no regime militar

Por exemplo, tem muito aluno que passa mal


por ficar muito tempo em “forma”, quando o sol está
muito quente. Quando eu era aluna padrão tive que
ajudar muitos estudantes que desmaiaram ficando em
“forma”. Nesses caso você tem um apoio, tem o corpo de
bombeiros dentro do colégio, eles te dão assistência e,
quando preciso, te levam para o hospital, ligam pros seus
pais. Se os pais não puderem comparecer, um militar vai
te acompanhar. Eu já passei mal, tive que ir pro hospital
e meu pai não podia ir, porque estava no trabalho. Um
militar me levou em casa.
Passando agora pra sala de aula, na organização e nas
práticas em sala, existe diferença entre os alunos?

Sim. Isso varia em cada colégio, mas no que eu


estudava, todo mês você vai mudando de chefe de turma.
Esse chefe de turma tem que fazer as chamadas da sala,
o chefe de turma é responsável por toda a sala, como se
fosse um militar. E, antes do professor começar a aula,
ele vai fazer os outros alunos entrarem em formação. Ele
vai apresentar a turma para o professor. Ele vai ficar na
frente da sala, vai bater continência para o professor, ficar
em posição de “sentido”, vai mandar a sala “descansar”
e alternar entre “sentido” e “descansar” até a sala
inteira estar sincronizada, quando a sala inteira estiver
sincronizada neste movimento, depois disso o chefe de
turma bate continência novamente para o professor, fala
ao professor quantos alunos tem na sala, quantos alunos
faltaram e quantos alunos deveria haver no total em
sala. Esta é a última fala dele. Então ele senta e a aula
prossegue. Isso toma em torno de uns dez minutos de
aula para acontecer.
E o chefe de turma tem alguma outra

25
Estado de Exceção Escolar

responsabilidade, ou é só a de apresentar a
turma?

Tem. Se acontecer alguma coisa dentro de sala,


por exemplo, a sala estiver desorganizada, a sala não
estiver limpa, o professor não conseguir dar a aula por
causa de barulho ou alguma outra coisa, quem vai ser
o responsável vai ser o chefe de turma. Quem vai levar
advertência vai ser o aluno que estava bagunçando e o
chefe de turma. E a punição do chefe de turma é a pior
de todas.
E como é a relação entre o chefe de turma e o restante
da sala?

O chefe de turma manda na sala, você não pode


fazer nada de errado perto do chefe de turma. Por que o
chefe de turma é como se fosse um militar. E isso começa
desde o 6º ano do ensino fundamental.
O Chefe de turma gosta de ocupar essa posição?

Em geral gosta. Porque se você está em um colégio


militar, você aprende a querer mandar. Você não quer ser
mandado, você quer mandar. Porque você ser mandado
é pior. O chefe de turma é visto como maioral entre os
alunos militares, porque ele está com a formação geral
de um militar. Por exemplo, se ele quiser (algo que
acontece muito), você não fez nada, mas o chefe de turma
não gosta de você, ele vai lá e fala alguma coisa de você
para o militar e o militar vai e te dá uma advertência. É
simples assim que funciona. O militar não vai chegar em
você e perguntar “você fez isso?”, não, ele vai te dar uma
punição e vai ligar para os seus pais e falar o que o chefe
de turma falou de você.

26
Os dilemas de estudar no regime militar

E algum aluno pode recusar-se a ser chefe de turma?

Ele não pode recusar. Não existe essa opção.


E como funciona essa coisa do “aluno padrão”?

Aluno padrão só existe no 3º ano do ensino


médio. Tem também uma coisa parecida no 9º ano do
ensino fundamental, mas “aluno padrão” mesmo, que é
o “maior”, que manda em todos como um militar, é só
no 3º ano. Para ser aluno padrão você não precisa ter
uma nota “excelente”, basta o militar gostar de você e
ele vai te premiar como aluno padrão. É simples. Eu fui
premiada como aluno padrão, mas eu fui desclassificada
porque eu não ficava fiscalizando rigidamente os alunos.
Passava uma aluna do meu lado e estava com a franja
solta, o militar brigava comigo, não brigava com a aluna,
porque eu era a aluna padrão e eu tinha que mandar essa
aluna prender a franja que estava solta. Eu tinha que
chegar no aluno e falar pra ele fazer a barba. Como aluno
padrão você tem que punir os outros alunos. Um aluno
que está com algo “irregular”, você tem que falar pra ele
que ele não pode entrar na escola. “Você volta pra sua
casa, pra cortar o cabelo, pra fazer a barba, pra trocar
sua meia...”. O aluno padrão tem que fazer isso, se ele
não fizer ele é punido. O aluno padrão também tem essa
punição, ele é “maior” entre os alunos, mas ele é punido
pelos militares. É como se fosse um serviço sem estarem
te pagando nada. Você é obrigado a comparecer a todos
os eventos do colégio. Em eventos em que tem marcha, o
aluno padrão marcha na frente, porque ele é “maior” que
os outros.
Existe algum privilégio em ser aluno padrão?

Privilégio mesmo é só o de você poder mandar


27
Estado de Exceção Escolar

nos outros. Você sai de sala na hora que você quer… tem
essa vantagem. Eu fui e não vi muita vantagem. Você
tem mais responsabilidades. Apesar disso, todo aluno, o
sonho de todo aluno, desde o 9º ano, é ser aluno padrão.
Pra você não ter essa “pressão” tão grande. Você pode
chegar mais atrasado, se dar uma justificativa o militar
deixa você entrar. Aconteceu alguma coisa com o seu
uniforme, você vai ter um diálogo com o militar, você
sendo aluno padrão ele vai te escutar. Você tendo uma
“cordinha” preta no ombro, que o aluno padrão usa, ele
vai te escutar. Também, por exemplo, na “formação”,
quem manda nos alunos quando eles estão em “forma”,
na entrada do colégio, ou quando acontece algo no recreio
(quando os alunos estão correndo de mais no recreio os
militares mandam todos ficarem em “forma” também.),
são os alunos militares (os alunos padrão) que mandam
em tudo. Eles são como militares no colégio.
E os outros alunos têm que bater continência para o
aluno padrão?

Tem que bater continência. É como se fosse um


militar, tem que bater continência, tem que respeitar
como se fosse um militar mesmo.
Sobre os militares, eles andam armados dentro dos
colégios?

Andam armados. Faz diferença pra muitos alunos,


porque tem estudante que tem medo de militar, e eles
andam todos armados. Eu acho que não havia necessidade
deles portarem armas. Mesmo tendo 3º anos, acho que
não tinha necessidade deles estarem armados. Alguns
não andam armados, mas muitos, a maioria, andam
armados. No meu colégio ficavam sempre dois policiais
na portaria; em cada corredor, ficam, no mínimo, dois
28
Os dilemas de estudar no regime militar

policiais. Nos corredores das turmas com alunos mais


velhos ficam dois ou três militares. Nesses corredores
os militares ficam entrando nas salas, quando viam um
aluno conversando, ou algo assim.

E como é a relação dos alunos com os militares?

É uma relação de medo. Tipo, ficar correndo


de militar. Eu, até hoje, quando eu vejo um militar na
rua eu já desvio. Porque se um militar vê alguma coisa
“errada” em você, se seu cabelo não está preso ou algo
assim, ele vai te punir, vai te dar uma advertência. Aí
os alunos começam a ter esse medo. O militar está em
um corredor, a gente passa por outro corredor, pra não
ter esse contato direto com o militar. Apesar de que,
dentro do colégio militar, você é obrigado a ter esse
contato com o militar. Toda vez que você passa perto de
um militar tem que bater continência. Se você não bater
continência… igual criança, isso acontece demais, elas
não batem continência, a criança não sabe por que ela
tem que bater continência, ela não sabe qual é o motivo.
Elas não batem. Aí o militar adverte elas.
Muitas vezes, quando eu era “aluna padrão”, uma
criança passava correndo por mim, eu tinha que chamar
e dizer “menino, você não me deu continência, agora vou
ter que te punir por isso. Você tem que passar por mim e
tem que me dar continência”, aí eles respondiam: “uae,
mas por que eu tenho que te dar continência?”, ué, eu
não sei, só sei que tem que dar continência.
E isso era preciso só dentro do colégio?

Não. Fora também. Você estando uniformizado,


você tem que bater continência para todos os militares.
Mas é meio que um cumprimento, até. Vai chegando no

29
Estado de Exceção Escolar

8º ano, no 9º ano, você já vai criando esse costume, esse


hábito. Você vê outro aluno… no colégio militar você não
pode ter essa “proximidade”, essa “aproximação”, não
pode beijar no rosto para cumprimentar, não pode ter
contato. Como se fossem militares mesmo. Esse contato
não pode acontecer nem dentro da escola, nem fora se
você estiver uniformizado. Eles não te dão essa liberdade
de ter contato com as pessoas. Aí a gente começa a ter
esse cumprimento, de dar continência. Com o tempo, até
para aluno normal, que não é “aluno padrão”.
E com relação a abuso de autoridade, acontece?

Abuso de autoridade acontece até entre os alunos,


com os próprios alunos. Acontece de aluno padrão se
exaltar com outros alunos, isso acontece muitas vezes.
Militares também. Daí, quando isso acontece a gente tem
que recorrer ao “capitão”. Chegar nele e dizer “houve um
abuso de autoridade, acontecei isso e aquilo…”, porque
existem muitos militares que, do meu ponto de vista,
não estão preparados pra estar lidando com crianças
e adolescentes. Como que você vai se alterar com uma
criança? Quando alguém interfere nessas ocasiões eles
já não gostam, aí acontecem uns “cala a boca”, uns
xingamentos…
Você já teve aula com um militar?

Já. Em todo colégio militar isso acontece, quando


falta um professor ou algo assim. Quando isso acontece,
normalmente ele dá aula de hierarquia, ou coisas sobre
o militarismo.
E a questão da aparência, o aluno, ou aluna, pode,
por exemplo, pintar o cabelo, usar maquiagem?

Tem o padrão do colégio. Seu cabelo tem que


30
Os dilemas de estudar no regime militar

estar na cor natural. Antes meninas não podiam usar


maquiagem, agora parece que o artigo foi atualizado,
você só pode usar maquiagem clara e leve. Esmalte nas
unhas tem que ser claro, não se pode usar esmalte escuro.
E o cabelo não pode ter corte “extravagante”. Pro menino
o corte de cabelo é o corte padrão, na lateral corte de
máquina Nº 1 e em cima Nº 2.E não pode usar barba,
nem quando ela está começando a crescer. O militar
verifica o tamanho do cabelo colocando a mão na cabeça
do estudante, se o cabelo passar da altura do dedo o corte
está fora do padrão, então o aluno não entra no colégio.
Tem que estar indo de duas em duas semanas no salão
cortar o cabelo, é um gasto grande pros pais.
Você falou da questão do contato entre estudantes,
tem mais regras sobre isso?

No colégio você não pode ter contato físico com


outros estudantes, você não pode namorar, não pode
ter contato como beijo no rosto, abraço, essas coisas. O
militar pode te punir.
E com relação a manifestações e atos políticos? O
aluno é livre para participar deles se quiser?

Aluno de colégio militar não pode ir em


manifestação, mesmo sem uniforme. Com uniforme
você é punido, você vai levar advertência direta, pode
até ser expulso do colégio. Se não estiver fardado, você
será repreendido oralmente. Se você fizer “asneira na
rua”, eles chamam de “asneira”, você é punido. Se você
não estiver uniformizado, mas eles souberem que você
é do militar, você é punido. Porque no colégio militar
você tem que manter um “padrão” independente da
roupa, independente de estar no colégio. Pra você ver,
entrou aluno do colégio militar no ônibus, você pode
31
Estado de Exceção Escolar

descer, porque eles são os mais “atentados”. Eles fazem


“asneiras” no ônibus pra ver se alguém vai lá e denuncia.
E tem muita gente que vai no colégio e denuncia.
E a relação com os professores, como é?

Com os professores é uma relação normal. Você


só observa que você perde muito tempo de aula, com as
coisas militares. Por exemplo, no terceiro ano, quando
os alunos são vestibulandos e é uma matéria que você
precisa, você tem que ficar perdendo tempo batendo
continência, fazendo “formação” de turma… e você perde
bastante tempo com isso.
Os professores também têm que seguir regras?

Os professores também têm os artigos que têm


que ser seguidos. A gente vê muito de fora, a gente não
tem oportunidade de ter esse contato direto com essas
regras que os professores seguem, porque o professor
tem uma agenda diferente da nossa. Na nossa agenda tem
os artigos que a gente tem que cumprir e na do professor
também. Professor não pode dar aula de cabelo solto, não
pode mostrar tatuagem, tem que estar com a roupa bem
limpa, unhas bem cortadas. O cabelo dos professores
homens eles nem exigem tanto, mas com as mulheres
esses padrões são mais rígidos. É isso, têm as regras
que eles têm que cumprir também. Questão de atraso:
os professores são punidos quando atrasam. Pra mudar
de uma sala para a outra o professor não pode atrasar
também. O professor não tem uma liberdade direta pra
dar uma aula. Um professor de artes, por exemplo, pra
realizar alguma atividade diferente, se ele precisar mudar
a configuração da sala, fazer um círculo com as carteiras,
ele tem que pedir autorização a um militar. Ele não tem
essa liberdade com a aula, como ele quiser.
32
Os dilemas de estudar no regime militar

Você entende que as aulas nos colégios militares são


diferentes das dos demais colégios?

Se você pega, por exemplo, o 3º ano, tem a questão


da ordem, já que tem os alunos padrões, o chefe de turma
e o professor. O professor está ali para dar a aula, ele
não está ali para dar ordem à turma, quem põe ordem
na turma é o chefe de turma. E tem também a regra de
silêncio durante a aula. Essas são as diferenças. Porque os
alunos, eles são crianças da mesma forma que em outro
lugar, estudantes também da mesma forma. O que muda
é o militar. Porque o objetivo deles, pra colocar ordem
na turma, é colocar o chefe de turma como um militar
dentro da sala. Só que o chefe de turma é um aluno como
os outros. No início, ele quer ser aluno, ele quer brincar
como os outros, ele quer interagir com os outros.
Existe, entre os alunos, algum tipo de diferenciação
por nota?

Sim. Essa diferenciação ela acontece em todas


as séries. Funciona assim, juntam a cada bimestre
todas as suas notas, se você tiver, em um bimestre, o
boletim com todas as notas 10 você ganha um “cordão”
amarelo, chamado alamar (eu já ganhei o alamar, no
7º ano). Ai você usa esse alamar. E também têm as
premiações, as medalhinhas. Muitos alunos se esforçam
pra ganhar as medalhinhas, porque você fica “mais que
os outros”, os militares te tratam melhor, “olha, esse
aqui tem medalhinha, o outro ali não tem. Esse aqui tem
um alamar, o outro não tem”. Entende, aí existe essa
desigualdade. Se você não tem um alamar, o professor, o
militar, já te desconsideram em relação a quem tem.
E com esse alamar o aluno tem algum privilégio
dentro da escola, ou algo parecido?

33
Estado de Exceção Escolar

Não. Quando você ganha o alamar você tem que


pagar por ele. E você fica sendo “mais que os outros”, só.
A única coisa que é de graça são as medalhinhas. Esse
é outro ponto interessante. Igual, por exemplo, no 7 de
Setembro. Vocês já perceberam que no 7 de Setembro
todos os alunos têm alamar? Não tem um aluno que
está sem a “cordinha” na farda, ou sem medalha. Como
funciona, não é a maioria ali que tem alamar, não é a
maioria que tem as medalhinhas também. Eles te
emprestam um dia antes o alamar e as medalhinhas e
você devolve no outro dia. Acabou a formação, você vai
devolver. Porque é o ideal para apresentar pros coronéis,
pros policiais, pros “chefões”, porque eles querem
mostrar que têm muitos alunos com alamar. “Todos os
alunos têm alamar”. Mas, na realidade, o que acontece
é que, em cada sala, no máximo dois alunos têm alamar,
porque é muito difícil você chegar nessa premiação.
Porque no padrão de nota 2,0 pontos são de “disciplina”,
esses são os mais difíceis de tirar, porque quem vai te dar
essa nota é um militar. E nem todo militar vai te dar 2,0.
Como você consegue essa nota de disciplina?

O principal é você não ter nenhuma anotação na


agenda. E isso é muito difícil, chegar em algum aluno no
colégio militar e perguntar “você tem alguma anotação
na agenda?” e ele falar que “não tem nenhuma”. Porque
se você ficar em pé dentro de sala e um militar chegar
na sala, ele vai ter dar uma punição. Se você ir com o
cabelo grande, ele vai te dar uma punição. Se você estiver
com um piercing, ele vai te dar uma punição. Teve uma
vez que eu achei um absurdo. Uma menina estava no 2º
ano do ensino médio e cortou o cabelo, e na época não
podia, ela meio que raspou a cabeça na lateral, e ela levou
punição por isso. Então é difícil conseguir os 2,0 pontos.
34
Os dilemas de estudar no regime militar

Agora, como que funciona a questão das


“contribuições voluntárias”? Elas são voluntárias
mesmo? Como é isso?

Não. Não é voluntário. Se você não pagar… eu


tive um problema no 3º ano do ensino médio. Se eu não
pagasse essa taxa (na época essa taxa era R$50,00 no mês,
eu já devia R$400,00) eu não ia receber meu diploma.
É isso que acontece em todos os colégios militares. Se
você não pagar… você pode esperar acumular, não junta
juros, você pode deixar pra pagar no final do ano, só que
se você não pagar, sua matrícula não é atualizada quando
você passa de ano. Se você não pagar no último ano, você
não tem seu diploma. Então você é obrigado a pagar
essa taxa. Essa taxa aumenta anualmente. Quando eu
comecei a estudar eu pagava R$15,00 ao mês. No final já
estava R$50,00. Como se fosse em um colégio particular.
Eles não sujam seu nome, só que você não continua
estudando, porque sua matrícula não é atualizada. Pra
atualizar a taxa tem que estar paga.
Você conhece estudantes que tiveram de sair
do colégio por não conseguirem bancar estas
“contribuições voluntárias”?

Sim. Tem alunos que tiveram que sair por causa


disso. Se você estiver no 3º ano do ensino médio, você
terminou. Você pode entrar na justiça para pedir seu
diploma. Mas se você estiver no 8º ano, não tem jeito,
você tem que pagar. Ou você paga, ou sai do colégio.
Você conhece alguém que abandonou os estudos,
porque não conseguiu entrar em outro colégio?

Sim. Teve um amigo meu que saiu. Daí não voltou


a estudar mais.

35
Estado de Exceção Escolar

Existe algum tipo de controle, ou fiscalização, sobre


como é gasto esse dinheiro das “contribuições”?

Os alunos não ficam sabendo. Por exemplo,


formatura dos 3º anos, o colégio não ajuda a financiar
a formatura, os alunos têm que bancar tudo. Porque a
escola não gasta verba com essas coisas. Eles falam que
esse dinheiro é gasto com despesas do colégio, mas a
gente não sabe ao certo.
Existe alguma prestação de contas sobre esse
dinheiro?

Não.
Existe algum tipo de consulta, por parte da
administração do colégio, com a comunidade escolar
para a tomada de algumas decisões?

Não. Não tem essa opção de argumentar “eu acho


que isso está errado”, “eu acho que o aluno podia vir com
tênis de outra cor”, eles não dão essa opção de diálogo.
Você vê um colégio militar como um colégio público?

Não. Eu vejo como um colégio conveniado. Eu não


considero como um colégio público. A estrutura dele não
é a de um colégio público. Em colégio público você não
paga. Ali você tem que pagar. Eu acho que isso deveria
ser mudado, acho que não deveria ter que pagar.
E a evasão é grande?

Tem muita gente que sai porque não passa, muita


gente que sai porque não aguenta o militarismo. Eu até
conheço menina que começou a entrar em depressão,
aí por conta disso os pais resolvem tirar. Tem pai que
tá vendo que a escola está fazendo mal pra criança, mas

36
Os dilemas de estudar no regime militar

não tira, até que chega em consequências piores. Porque


tem uns estudantes que querem, outros não. Eu entrei
porque eu quis, mas tem muitos que entram porque são
obrigados, porque não tem outro lugar pra estudar, ou
porque os pais obrigam.
Tem pessoas que sofrem psicologicamente com esse
treinamento militar?

Tem. Tem muitos que começam desde criança


(porque tem colégios que começam desde o 6º ano do
ensino fundamental), eles já começam a adquirir um
medo do militarismo. Daí começa a ter essa paranoia de
“eu tenho que respeitar”, “eu não posso me vestir como
eu quero”, “eu não posso cortar o meu cabelo como eu
quero”, desde cedo colocam isso na cabeça das crianças e
elas vão crescer, elas não vão ter uma vida plena, elas vão
ter só parte dela. Porque não ensinaram ele a desenvolver
esse arbítrio, essa tomada de decisão.
E você entende que o colégio militar te formou como
cidadã?

Ele me formou como militar, na verdade.


E você entende que há diferença entre um “cidadão”
e um “militar”?

Tem diferença. Você vê a diferença entre uma


pessoa que é formada em um colégio militar e uma pessoa
que é formada em um colégio normal. No colégio militar
você é treinado para ter disciplina, em todos os aspectos.
O problema é que eu acho que eles estão ensinando essa
disciplina em uma hierarquia muito forte, eles estão
jogando muito para o lado do militarismo. Eu acho que
eles deveriam jogar mais para o lado da educação mesmo.
Porque o que eu aprendi lá, se eu não for militar, não vai
37
Estado de Exceção Escolar

me servir pra nada. Não vai me servir pra nada as horas


que eu fiquei em pé marchando. Não vai me servir pra
nada as continências que eu dei.

38
ARTIGOS
As escolas militares: o controle, a cultura
do medo e da violência
Dijaci David de Oliveira

Uma pergunta que muitas pessoas têm feito é “qual


o sentido da presença das escolas militares na educação
pública no Estado de Goiás?”. Essa questão se distingue
daquela outra que busca saber sobre quais as razões que
levaram o governador do Estado a implementar novas
unidades de escolas militares. Em relação à primeira,
as respostas têm sido díspares. Para uns, a partir da
experiência das escolas já instaladas, trata-se de um
investimento na qualidade da educação, mas para outros,
a partir da leitura do cenário político e social, trata-se de
mais uma ação nos moldes da agenda conservadora em
busca de consolidar sua hegemonia política.
Se tomarmos a leitura da reação social sobre
o processo de implementação das escolas militares,
observaremos que sua emergência tem se metamorfoseado
em uma moeda eleitoral. Elas emergem como objeto de
desejo para prefeitos que têm muito pouco para oferecer
no campo da educação (ou talvez não saibam ou ainda,
não desejam), mas, ao mesmo tempo as escolas militares
se tornaram uma concessão do Governo em benefício
de aliados, apoiadores (é também como uma forma de
acomodação do excesso de oficiais militares e de política
de fortalecimento de uma instituição desacreditada como
a Polícia Militar, todavia, ainda vista como uma forte
aliada no jogo político) e, por fim, como o Governador
deixou público, uma política de contra-ataque aos
movimentos sociais.
As mais recentes notícias sobre as razões da
militarização das escolas demonstram ambiguidade

41
Estado de Exceção Escolar

(aparentemente) do próprio Governo sobre quais rumos


tomar no cenário da educação e em relação à política
de implementação de novas escolas militares. Isto é,
se elas supostamente se destacam como “boas escolas”
isso não significa que serão generalizadas pela simples
razão de que o que realmente interessa ao Governo é se
“desfazer” da obrigação do gerenciamento das escolas.
Noutras palavras, as escolas militares são parte de uma
estratégia de pequenas trocas e ações políticas, já que o
objeto da política educacional no Estado de Goiás tende
a ser a política de terceirização no modelo clássico ou no
modelo das chamadas Organizações Sociais (OS).
Ainda assim, devemos perguntar “o que
fundamenta a implementação de escolas militares?”. A
despeito da fala pública do Governador, a militarização
é também uma resposta a uma demanda política, mas,
evidentemente, não despontam como uma meta de
médio e longo prazo (pois isso implicaria mais custos e
mais investimentos), ainda que eleitoralmente o Governo
possa se beneficiar com tal política.

Como se fortalece o ideal das escolas militares?

Existem várias razões que favorecem o discurso


em favor das escolas militares. Vou trabalhar aqui com
dois que creio sejam os mais proeminentes. O primeiro
deles está no discurso do medo e da violência, o segundo,
está na visão negativa e preconceituosa de que os
adolescentes são ameaçadores e perigosos. O resultado
disso é que para ampliar ou simplesmente instalar uma
política de controle, na ótica do Estado e de boa parte da
sociedade, nada melhor e mais eficiente que transformar
a escola em um quartel.
O discurso da segurança pública tem se tornado
42
As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

um instrumento importante para muitos governantes.


Por meio dele tem sido possível criar mecanismos que
permitem um maior controle dos movimentos sociais,
a ampliação da capacidade de monitoramento dos
grupos de oposição, assim como de acompanhamento de
setores apontados como socialmente incômodos como,
por exemplo, as pessoas em situação de rua, migrantes
estrangeiros de países considerados pobres ou arrasados,
além dos movimentos sociais de contestação.
A consolidação de um projeto de controle
social com ampla aceitação social demanda, contudo, a
configuração de alguns cenários. Entre eles, podemos
destacar o enfraquecimento dos procedimentos
democráticos (ainda que se fale em seu fortalecimento
e aperfeiçoamento), na criminalização dos movimentos
sociais, assim como na construção de uma cultura do
medo por meio da mídia.
Todas essas práticas já estão em pleno curso.
As evidências podem ser percebidas na unicidade dos
discursos dos gestores, nas ações da elite e na difusão
das agências midiáticas de que a única forma de garantir
a segurança está na ampliação dos mecanismos de
controle. Esses setores afirmam ainda que sem essas
condições (mais aparatos tecnológicos, mais uso da
força, legislação mais duras e maior flexibilidade para as
ações de controle e punição), o cenário da insegurança
prevalecerá.
Este tipo de discurso ocorre tanto em cenários em
que a violência efetivamente cresce, mas também surge
em panoramas em que se observa a queda nos índices
de criminalidade (isso evidentemente ocorre no Brasil e
nos EUA). Todavia, o que deve prevalecer, ao final, é a
cultura do medo, e é isso que tem ocorrido.
O discurso do medo não tem compromisso
43
Estado de Exceção Escolar

com a verdade, mas apenas com o medo e com todos os


mecanismos que supostamente serão necessários para
que possamos enfrentá-lo. Uma observação mais atenta
evidencia que o discurso do medo sobrevive mais por
meio de falácias do que por meio dos fatos. Quando
acompanhamos os noticiários da grande mídia podemos
extrair um repertório significativo que tem sido utilizado
por muitos governantes que desejam ampliar o controle
social e, para além disso, desejam ampliar a submissão
dos cidadãos.

a) Os mitos da sociedade insegura

Todos, hoje em dia, compartilham de uma


certeza, a de que vivemos em uma sociedade insegura.
Essa percepção é tão forte, tão evidente que muitos a
tomam como real, concreta. O mundo é inseguro, logo
devemos nos defender e, para além disso, contra-atacar
ou desejar que alguém faça algo contra todos aqueles que
representam uma ameaça. Mas, como disse o antropólogo
indiano, Arjan Appadurai, o ódio e o medo sempre recai
sobre os mais fracos, contra todos os que são diferentes,
não importa que sejam poucos e vulneráveis (no caso das
minorias), a própria diferença já será o suficiente para
representar uma ameaça.

44
As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

Narrativas
Cultura do medo Uma resposta contra-hegemônica
do Mito
Não estamos em guerra. Tal discurso
Precisamos preparar as
Estamos em fragiliza e vulnerabiliza a pessoa que
polícias para enfrentar o
guerra deixa de ser tratada como cidadã para ser
“inimigo”
apontada como “inimiga”.
Os bandidos não são mais perigosos
que em épocas anteriores. As próprias
Bandidos Eles estão mais investigações policiais demonstram que o
estão cada vez organizados e bem mais crime organizado é “desorganizado” e onde
mais perigosos armados prevalece o domínio do grupo organizado,
em geral, conta com informantes
privilegiados dentro da própria polícia.
Na verdade, na sociedade atual,
estamos mais seguros que em todas
A sociedade
Todos nós corremos as épocas anteriores. Contudo, a forte
atual é mais
risco iminente de morrer e desproporcional exposição de fatos
insegurança
violentos nos faz supor que a sociedade
atual é mais violenta.
As políticas de encarceramento apresentam
A ampliação um efeito irrisório sobre a redução da
Precisamos de leis
das penas criminalidade. Em muitos lugares tem
mais duras e mais
reduz a servido apenas como mais uma forma de
encarceramento
violência exploração pelo capital e mecanismo de
controle social.
Os jovens de hoje não são mais perigosos,
Jovens estão Os jovens estão cada vez
nem a violência produzida por alguns pode
mais violentos mais perigosos
ser apontada como mais letal.
Os
movimentos Precisamos criar leis que O Estado atua de forma violenta contra
sociais são impeçam a ação violenta todos os grupos que são vistos como
perigosos e de grupos radicais oposição aos seus interesses particulares.
violentos
Direitos
humanos Busca assegurar o acesso
devem ser aos direitos apenas aos Todos os seres humanos devem ter acesso
apenas para grupos historicamente pleno aos direitos humanos.
“humanos privilegiados.
direitos”
A sociedade está
Bandido bom cheia de bandidos Todos têm direito ao acesso à justiça, a
é bandido que se aproveitam da julgamento justo e direito a comprovar sua
morto fragilidade das leis e das inocência.
pessoas.

As leis e todo o sistema de justiça sempre


Temos que
Os homens de bem são privilegiaram as pessoas que possuem bens
defender o
as pessoas que precisam em detrimento das pessoas em geral. O
homem de
ser defendidas. que existe não são “pessoas de bem”, mas
bem
pessoas com bens.

45
Estado de Exceção Escolar

Como pudemos observar são vários os mitos.


Poderíamos facilmente ampliar e incluir inúmeros
outros discursos, mas nosso objetivo aqui é indicar alguns
exemplos de mitos que compõem a chamada cultura do
medo e o cenário de violência como fontes no processo
de fortalecimento da ideia de que temos que preparar
nossas instituições para agirem de forma dura contra
as “ameaças”. Mais importante ainda é percebermos o
quanto esse discurso serve de pilar para suprimir setores
vulneráveis, mas nunca para realmente construir uma
política de segurança com base na justiça social.

b) O medo dos adolescentes

Quando observamos aqueles mitos percebemos


que um personagem importante no discurso do medo
está centrado na figura do adolescente. O medo e o ódio
uniram boa parte da sociedade contra os adolescentes.
Não há uma única pesquisa de opinião sobre a proposta
de redução da maioridade penal em que a sociedade
reconheça que os adolescentes não são os responsáveis
pelos dramas da violência brasileira. Isso, mesmo contra
todos os dados em que se demonstra claramente que os
adolescentes são vítimas. Mas como isso ocorre?
O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e
Estatística (Ibope) realizou a Pesquisa Brasileira de
Mídia (PBM 2015) para o Governo Federal. Foram
entrevistados mais de 18 mil pessoas em todo o Brasil. Um
dos objetivos foi saber como os brasileiros se informam
e acessam as fontes midiáticas disponíveis. Os dados são
significativos, “95% dos entrevistados afirmaram ver TV,
sendo que 73% tem o hábito de assistir diariamente. Em
média, os brasileiros passam 4h31 por dia expostos ao
televisor, de 2ª a 6ª-feira, e 4h14 nos finais de semana...

46
As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

(IBOPE, 2015, pág. 7).


Isto nos dá uma dimensão do poder de persuasão
da TV. Somado a isso temos o fato de que boa parte
dos brasileiros não leem. Apenas 7% leem diariamente
jornais (que em geral são dos mesmos donos dos canais
de TV). Logo temos um problema, como se informa a
maior parte dos brasileiros? Os brasileiros se informam
por meio da grande mídia. O que vão discutir com você
amanhã é o que viram hoje na TV. O problema é que a
grande mídia não tem compromisso com a verdade, mas
apenas com o mercado.
Se somando ao discurso dos gestores por mais
investimento em aparatos de segurança, observamos
ostensivamente um “bombardeio” por meio da mídia
televisiva (principalmente) de que vivenciamos uma
“insustentável realidade social no campo da segurança”.
Evidentemente temos uma conjunção de interesses
entre mídia televisiva e gestores focados nas políticas de
mercado. Para o mercado, a cultura do medo mobiliza
recursos (econômicos) e investimentos fundamentais
para estruturar a cadeia do mercado de segurança
(organizações sociais, terceirização, construção de
presídios, fortalecimento das industrias de armamentos,
compras do Estado, prestação de serviços de segurança,
aparatos de controle social e de punição).
Onde entra o adolescente? Em todo discurso
do medo é fundamental que se tenha um “inimigo”.
Durante muito tempo se teve o “morro” carioca como um
emblema de domínio do tráfico de drogas e do perigo.
Contudo, como o modelo servia apenas para alguns
Estados, aos poucos foi se estruturando um discurso
anti-jovem no âmbito nacional. Hoje, em qualquer lugar
do Brasil o jovem é visto como um perigo. Mesmo quando
as estatísticas demonstram claramente que o adulto
47
Estado de Exceção Escolar

representa a maior parcela dos crimes, a adolescentes


aparecem com a principal ameaça na mídia. Na narrativa
cristã o “bode expiatório” representava a figura de alguém
escolhido para curar os pecados da sociedade, o jovem é
o “bode expiatório” em nossa sociedade. Da cultura do
medo nasce o apoio às propostas pedagógicas de mais
controle e mais repressão.

Os riscos da pedagogia militarista

A história grega nos oferece um exemplo clássico


de dois modelos educacionais, duas formas de pensar um
modelo de sociedade. Falamos dos modelos educacionais
espartanos e atenienses. A vitória de Esparta sobre Atenas
permitiu a reprodução, ao longo da historia, de que o
processo disciplinar e a rigidez educacional prevalecem
sobre a formação humanista.
Contudo, a derrota de Atenas não foi por sua opção
de manter uma educação humanista, mas por inúmeros
outros fatores que podem ser facilmente destacados por
qualquer um que saiba recorrer aos livros. Independente
das reais causas da queda de Atenas, o militarismo tem
se sobressaído ao longo da história como uma forma
de prática educativa supostamente eficiente e que se
baseia em treinamentos duros e violentos como forma
de preparação para uma vida.
A cultura do medo e a prática militarista tendem
a vender a ideia de que a militarização é uma solução
para ampliar a segurança, além de servir de combate à
violência. Essa foi uma das teses espalhadas pelo Estado.
Não é verdade. Política de segurança se faz com justiça
social. O processo de militarização das escolas é parte
do processo de ampliação do controle social, e segue a
prática já denunciada pelo pensador Michel Foucault,
48
As escolas militares: o controle, a cultura do medo e da violência

das formas de docilização do corpo e controle da mente.


Por fim, embora a rigor o modelo das escolas
militares não seja uma meta, a presença delas possui um
forte sentido emblemático, a ideia do poder do Estado
como ameaça permanente. Finalmente, cabe reconhecer
que o modelo das escolas militares se torna um ideal para
uma parcela da comunidade também pela ausência de
um modelo consistente de escola que se contraponha aos
modelos atuais e, ao mesmo tempo, sejam acessíveis a
todos. Se queremos uma outra escola, devemos construí-
la.

49
51
Quem quer manter a ordem? A ilegalidade
da militarização das escolas em Goiás
Francisco Mata Machado Tavares

Trataremos de uma questão que eu já estudo


há algum tempo, que é: o regime jurídico da educação
pública no Brasil.
O que me parecia é que abstratamente poderíamos
pensar que, ainda que a escola militar fosse adequada do
ponto de vista didático-pedagógico; ainda que a escola
militar fosse uma boa saída, digamos, para – e essa é
a fórmula coringa para se justificar qualquer política
pública que não obedeça a Constituição – acabar com a
criminalidade; ainda que a escola militar fosse adequada
para alcançar-se o “santo graal” da elevação da nota do
ENEM… parece-me que se é uma política de Estado e,
notadamente, se é uma política de forças de segurança
pública, a primeira indagação que se deve fazer, já que não
estamos falando de uma política de força revolucionária,
não estamos falando de uma política de forças golpistas,
não estamos falando de uma política de fato, mas em
uma política de direito, implementada pelo estado e
pelas forças do estado que manu militari defendem a lei,
a primeira pergunta que se deve colocar é: a escola sob
gestão militarizada é constitucional? Porque se isso não
for lícito, quem gostar de escola militar que proponha
uma PEC, que proponha um golpe de estado, que faça
uma revolução.
Eu, por exemplo, sou contra – por razões pessoais,
políticas, sociais – o direito da propriedade privada, mas
isso não significa que eu entenda que a partir de amanhã
eu possa andar pelas ruas como quem não o reconhece.
Eu sei, inclusive, que eu vou suportar consequências
53
Estado de Exceção Escolar

coercitivas muito graves se eu fizer isso. Portanto, se eu


quero acabar com o direito da propriedade privada, o
que eu posso fazer é: tentar mexer na Constituição, ou
tentar derrubar essa ordem jurídica, mas nessa ordem
jurídica a propriedade privada está assegurada. E se eu
fosse, antes de tudo, um defensor dessa ordem jurídica,
eu não iria, sem modificá-la, violá-la.
Portanto, a primeira pergunta que se deve fazer é:
a militarização de uma escola encontra amparo no nosso
ordenamento jurídico? Pode uma escola ser militar? É
lícita ou não? Essa é a pergunta que pretendo responder.
Para responder essa questão é preciso enquadrar
a escola no âmbito das modalidades de ensino previstas
no artigo 206 da Constituição da República. Isso é uma
escola pública? É uma escola confessional? É uma escola
privada? O que é, afinal, uma escola sob gestão militar?
Bom, isso foi objeto de uma consulta ao órgão que dispõe
sobre estas questões, qual seja: o Conselho Nacional de
Educação. E no âmbito dessa consulta o estado de Goiás e
a sua polícia militar defenderam a seguinte tese jurídica:
a escola militar é uma escola pública. Pública tout
court. Não é pública com um predicado específico. Eles
defenderam, junto ao Conselho Nacional de Educação, a
tese de que ela era uma escola pública. Portanto, como
outra qualquer. Porque a Constituição prevê apenas
“escola pública”, ela não predica isso.
O Conselho Nacional de Educação acatou a tese
do estado de Goiás e de sua polícia militar. E entendeu
que, para todos os efeitos jurídicos, a escola de ensino
médio no estado de Goiás sob gestão militar é uma escola
pública. Bom, se assim é, agora temos de fazer uma
outra pergunta: o que prevê a Constituição quanto às
escolas públicas? Para o que nos interessa, começaremos
pelo artigo 206, inciso VI. Ela prevê a chamada “gestão
54
Quem quer manter a ordem?

democrática do ensino público”. Escola pública deve


ser gerida democraticamente. Caso contrário, não há
licitude.
É verdade que o Supremo Tribunal Federal
entendeu, de um modo diferente daquele que eu, pelo
menos, entendo o direito à educação no Brasil – mas
como bem dizem os mais conservadores no mundo
jurídico, e lamentavelmente é a tese deles que se aplica,
ainda que não seja a mais acertada: as decisões do
Supremo Tribunal Federal não são definitivas por serem
as mais corretas, mas são as mais corretas por serem
definitivas. Retomando, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que uma escola pública não é obrigada a
fazer eleição para diretor. Certo, o Supremo Tribunal
Federal disse isso, mas disse mais. Ela não é obrigada
a fazer eleição para diretor, mas ainda assim ela deve
ser gerida democraticamente. Pergunta-se: como?
O Supremo Tribunal reponde: as políticas didático-
pedagógicas, a relação com a comunidade, as normas
internas, os padrões disciplinares, as escolhas em termos
de conteúdos disciplinares – claro, tudo na moldura
das normas jurídicas gerais para cada disciplina e para
a educação no país – devem ser objeto de participação
(e veja que essa palavra é importante e diferente de
presença. É participação, tomar decisão) de toda a
comunidade. Estudantes, pais, docentes e a comunidade
que circunda a escola.
Então, do ponto de vista abstrato, a questão que
devemos pontuar é: se as polícias militares querem gerir
escolas, elas não podem gerir de qualquer maneira, elas
têm que gerir na forma da lei. E na forma da lei pode, por
exemplo, um conselho de pais e estudantes se reunir e
dizer “ninguém vai usar farda”, e dizer “o aluno vai ter o
cabelo do comprimento, da cor e do jeito que ele quiser”,
55
Estado de Exceção Escolar

e dizer “o nosso projeto disciplinar aqui não prevê chefe


de turma”. E cabe à figura que ocupa a direção da escola,
seja um oficial, seja quem for, cumprir as decisões da
comunidade. Quem conhece tão bem de hierarquia como
um/a policial militar poderia aproveitar para cumprir
bem a decisão daquele que hierarquicamente, segundo
a Constituição da República, dispõe sobre as decisões
didático-pedagógicas, administrativo-gerenciais, de
uma escola. Que são: pais, estudantes e comunidade. De
um modo bem simples: quem decide sobre o regimento
disciplinar, as opções pedagógicas, o vestuário dos
estudantes e todos os detalhes de uma escola pública
é a respectiva comunidade, constituída de pais/mães,
mestres e estudantes. O/a militar que se comportar
em descompasso com esta premissa estará a malferir a
Constituição da República e, portanto, cometerá falta
grave.
Isso é o que diz a constituição, e qualquer forma
de gestão de uma escola pública que não obedeça a isso é
ilícita, antes de qualquer outra coisa.
Mas a Constituição diz mais. Ela prevê o princípio
da gratuidade do ensino em todos os níveis. Ensino em
escola pública é gratuito, e quem diz isso é a Constituição.
Mesmo que se aprove uma lei modificando isso, ela
será inconstitucional. “E se eu pedir uma contribuição
voluntária, pode”? Não.
Existe uma disciplina no Brasil chamada direito
financeiro, que cuida justamente dos processos de
arrecadação (tributação, direito tributário) e dispêndio
(direito financeiro stricto sensu) do poder público nesse
país. Essa é a disciplina mais rigidamente burocratizada
do nosso país (essa é a disciplina que toca questões como
responsabilidade fiscal, sistema tributário nacional,
etc.). E você não pode, como Estado, simplesmente pedir
56
Quem quer manter a ordem?

“contribuições” por aí. O dinheiro do poder público não


funciona assim. Este é um Estado liberal-democrático,
estado liberal-democrático tem “receita originária”,
quando o Estado aluga um terreno, presta um serviço
e isso gera dinheiro, etc. e “receita derivada”, quando
o estado multa alguém, ou arrecada tributos. A grande
receita do Estado vem de tributos. O modo como
esse dinheiro será gasto dinheiro será discutido pelo
Parlamento, e o Poder Executivo irá executar o que o
parlamento decidir, podendo fazer contingenciamentos.
Isso é norma cogente. Para quem não está familiarizado
com esse chatíssimo vocabulário: isso é obrigatório, isso
não tem discussão.
O Estado não vive, portanto, de contribuições
voluntárias. Não existe isso na nossa ordem jurídica. E se
ele está, portanto, recebendo contribuição voluntária, isso
é uma ilegalidade, porque, por via transversa, você está
malferindo o princípio da gratuidade do ensino público.
Em matéria de direito público, não importa o nome
que uma prática possui, mas a sua substância última.
Se uma família, ainda que sob suposta espontaneidade,
repassa valores mensais, por menores que sejam,
para a escola onde suas crianças estudam, então não
se trata de ensino gratuito e, portanto, está violada a
Constituição da República. O Militar que aceita receber
valores informais de particulares, sem que esse dinheiro
integre a contabilidade pública, está a contribuir para o
vilipêndio do princípio da gratuidade do ensino público
e, destarte, comete falta grave. Ademais, deve-se indagar
sobre como se dá a escrituração e a fiscalização, por
órgãos como o TCE e o MP, do dinheiro que segue para
um serviço estatal, como escolas.
Então, do ponto de vista constitucional, se
quisermos uma escola militar, ela terá que dar um
57
Estado de Exceção Escolar

jeito de atender a estas duas possibilidades: gestão


democrática e absoluta gratuidade. Isso é ensino público.
Vai ter, igualmente, que respeitar a legislação ordinária
do Brasil. Por exemplo, a lei 7398/85, a “lei do grêmio
livre”, aqui em Goiás comumente chamada de “lei Aldo
Arantes”, por ter sido quem lutou por sua aprovação no
Parlamento. A “lei do grêmio livre” prevê que o grêmio
estudantil é autônomo. Se o Grêmio, por exemplo,
quiser fazer um ato público em favor do Incidente de
Deslocamento de Competência dos crimes apurados na
Operação Sexto Mandamento, ou se quiser organizar um
jornal para arrecadar fundos para uma campanha em
favor da desmilitarização da PM, é uma prerrogativa que
lhe assiste. Ademais, é ilícita a manutenção de bancos de
dados ou controles, por parte de gestores escolares, sobre
quem são os/as estudantes ativistas ou aderentes ao
Grêmio Estudantil. Em resumo: obstruir, por qualquer
meio, os direitos associativos de estudantes implica
estar fora da lei, implica desprezar a ordem vigente no
país. Assim, temos um debate: quem está ao lado da
legalidade e quem está contra a legalidade? quem está ao
lado da ordem e quem está contra a ordem? quem está ao
lado do direito e quem está contra o direito? Quem quer
cumprir a lei e quem quer fazer “bagunça”, para utilizar
um termo recorrente? Quem são “as pessoas de bem” e
quem são aqueles que desrespeitam as nossas normas
jurídico-sociais?
Quem descumpre, de uma só vez, o artigo
206 inciso IV, artigo 206 inciso VI, e a lei 7398/85 é
“bagunceiro”, não respeita o direito. Esta é uma primeira
parte da explicação.
Mas tem um problema maior. A emenda
constitucional de número 59 modificou a Constituição
da República. Ela dispôs que o ensino até os dezessete
58
Quem quer manter a ordem?

anos de idade, não mais até os quatorze como outrora, é


obrigatório. Aqui surge um problema mais grave.
Se uma escola era civil, não há tantas escolas assim
na mesma região, ou o estudante já está nessa escola e
ela se transforma em militar, se o ensino é obrigatório,
está-se, na verdade, por via transversa, criando um
serviço militar obrigatório para pessoas de quinze anos
de idade. Pode-se fazer isso? Sim, modificando primeiro
a constituição. Em segundo lugar, modifique normas de
direito internacional ou se submeta a sanções da ONU.
Porque existe uma convenção da ONU – e, mais do
que isso, existe o artigo 38 da Convenção dos Direitos
da Criança – que proscreve (ou seja, não permite) o
chamado “soldado criança”. Isso não pode, e o mundo
inteiro se mobiliza contra essa forma. Para que as forças
armadas se adaptassem a essa convenção da ONU foi um
suplício. A primeira cláusula da convenção da ONU é: se
a pessoa com quinze anos for para alguma organização
militar, ela tem que ir voluntariamente.
A lógica é simples: um adolescente de 14 anos
frequenta o ensino médio em determinada escola
pública localizada em seu bairro. Digamos que a escola,
sub-repticiamente, seja convertida em instituição
militar. Ocorre que, como não haverá outra opção viável
de matrícula para esse adolescente em sua vizinhança
e, como o ensino médio é obrigatório, está-se, por
via oblíqua, submetendo-se crianças ou adolescentes
à inserção em uma instituição militar. Inobstante o
nome que se atribua a uma prática desta natureza, sua
substância jurídica é, indubitavelmente, a do Soldado
Criança. Cabe, portanto, uma representação contra a
República Federativa do Brasil no âmbito da ONU. Nós
já não estamos mais falando apenas da ordem jurídica
interna, mais de um estado que não respeita normas
59
Estado de Exceção Escolar

fundamentais de direito internacional público. Isso é


grave.
Então temos aqui um descumprimento do
artigo 206 inciso VI, gestão democrática do ensino;
descumprimento do artigo 206 inciso IV, gratuidade;
descumprimento da “lei do grêmio livre” e ainda
o problema do “soldado criança”, que não é um
problema menor, essa é uma das grandes questões de
direitos humanos e de direito internacional público na
contemporaneidade.
Digamos que a gestão militar das escolas consiga
adequar o seu comportamento a todas essas normas.
Abstratamente é possível. Suponhamos que a gestão,
por algum mecanismo, seja democrática e os militares
passem a obedecer às determinações da Associação de
Pais e Mestres e do Grêmio Estudantil; os estudantes
estejam lá voluntariamente; o grêmio seja respeitado
e a gratuidade esteja assegurada. Digamos, então, que
esta primeira pergunta, depois de muitos ajustes, seja
respondida afirmativamente: pode a escola ser militar. Só
que, constitucionalmente, devemos fazer uma segunda
pergunta: pode militar ser escola?
Essa é uma outra pergunta. Então, saímos do
artigo 206 da Constituição, que dispõe sobre educação,
e vamos para o artigo 144, que dispõe sobre segurança
pública. E o artigo 144 da Constituição é cristalino. No
parágrafo quinto o artigo 144 fala sobre a polícia militar,
e ele fala o que ela pode e o que ela não pode fazer. E
o que ela pode fazer? Duas coisas: I) manutenção da lei
e da ordem e; II) policiamento ostensivo. Mais nada. E
investigação? Polícia Civil e Polícia Federal. E Rodovia
Federal? Polícia Rodoviária Federal. E Ferrovia? Polícia
Ferroviária. A polícia militar só pode fazer estas duas
coisas no nosso ordenamento jurídico.
60
Quem quer manter a ordem?

Pensando na Constituição tal como ela está posta,


o que pode a polícia militar fazer? Manutenção da lei e
da ordem e o chamado policiamento ostensivo. De modo
bem claro, veja-se o que dispõe o parágrafo quinto do
artigo 144 da Constituição: “às polícias militares cabem
a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.
A única função adicional – e de caráter excepcional –
prevista para as PMs no direito brasileiro é aquela que
a própria Constituição, agora no parágrafo 6o do artigo
144, dispõe. O texto é o seguinte: “As polícias militares
e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e
reserva do Exército....”. Fica claro, portanto, que a PM,
licitamente, só pode exercer três tipos de atividade: 1)
Policiamento ostensivo; 2) Manutenção de lei e ordem e;
3) compor as forças auxiliares e a reserva do Exército. Não
cabe à Polícia Militar, portanto, sob nenhuma hipótese,
ministrar, gerir, organizar, fornecer ou lidar, direta ou
obliquamente, com o serviço de educação pública.
Ora, quando uma instituição armada atua sem
respaldo constitucional para exercer uma atividade que
não de sua esfera jurídica de competências, está-se em
uma situação de séria ruptura com a ordem democrática, a
ensejar uma representação contra a República Federativa
do Brasil no âmbito das instituições internacionais
de defesa e proteção dos direitos humanos. Não cabe
à PM gerir escolas públicas e o militar que o faz trai,
diariamente, o seu juramento de cumprir a Constituição.
Ora, como vamos ensinar à nossa juventude que devemos
cumprir as leis e respeitar o nosso direito, se os próprios
dirigentes de suas escolas desprezam a Constituição e
exercem funções, como PMs, que o artigo 144 não lhes
entrega? O exemplo de que a lei deve ser cumprida apenas
por cidadãos desarmados, de modo que os militares não
precisam se preocupar em respeitar as nossas normas, é
61
Estado de Exceção Escolar

o melhor modo de educar as gerações futuras? Insisto:


qual é o artigo da Constituição que permite à PM gerir
escolas? Como qualquer cidadão bem informado sabe, se
a Constituição não autoriza uma instituição a fazer algo,
mas esgota suas atribuições taxativamente ( como faz no
art. 144, parágrafos quarto e quinto), qualquer conduta
excedente ou alheia às determinações constitucionais se
revela abusiva.
Finalmente, é preciso lembrar que, ainda que uma
escola pública de ensino médio regular pudesse ser militar
e; ainda que policiais militares pudessem ser desviados da
sua função para se converterem em gestores escolares, o
que eu admito apenas para fins de argumentação; restaria
imperiosa a motivação do ato legislativo concernente à
militarização das escolas em Goiás. Como se sabe, no
âmbito do direito administrativo brasileiro a finalidade
e o motivo se revelam como requisitos vinculados, ou
seja, alheios à margem de decisão discricionária da
administração pública. Ocorre que, com o escopo de
justificar o ato de militarização das escolas em Goiás, o
atual Governador se referiu a um “remedinho” contra
supostos sindicalistas de extrema esquerda que o teriam
vaiado em uma cerimônia pública. O caso, aliás, ensejou
a aprovação de uma nota crítica por parte do Conselho
Universitário da Universidade Federal de Goiás. Ora,
ao fundamentar uma medida administrativa sobre o
escopo de dirimir conflitos sindicais ou de disciplinar
o comportamento de ativistas, o governador malferiu o
dever de vincular o motivo de uma medida (“remedinho”
para sindicalistas) à sua finalidade jurídica (prestação do
serviço público de educação em grau de eficiência, gestão
democrática, universalidade etc). Este elemento, por si
só, desencadeia duas fundamentais consequências: i)
nulidade das militarizações, em função de vilipêndio
62
Quem quer manter a ordem?

aos requisitos da motivação e da finalidade dos atos


emanados da administração pública e; ii) eventual
responsabilização do Estado de Goiás por conduta
antissindical, a ser apurada na forma da lei e no âmbito da
Organização Internacional do Trabalho, em consonância
com os tratados devidamente ratificados pela República
Federativa do Brasil.
Em suma, repito que não sou educador e nada
posso dizer sobre a qualidade do serviço prestado por
escolas militares. O que, com certeza, como bacharel
em direito e cientista político, eu posso assegurar,
é que este debate sobre a militarização em Goiás só
possui dois lados: o da lei e o da ilegalidade. A lei não
permite a militarização e, muito menos, a chancela
nos termos em que tem ocorrido. Nesta contenda, em
respeito ao juramento que fiz no dia em que recebi o meu
diploma, posto-me ao lado do respeito à Constituição e
contrariamente à militarização.

63
65
A exclusão dos alunos mais pobres nos
Colégios Militares

Rafael Saddi Teixeira

“Eu ganho 01 salário mínimo e tenho três filhos


nesta escola. Se o colégio for militarizado, aonde os meus
filhos vão estudar?”.
Não sei as palavras exatas. Não estava lá. Mas, foi
assim que uma amiga me descreveu a pergunta dolorosa
feita por uma mãe de alunos do Colégio Estadual
Waldemar Mundim (Colégio localizado na Vila Itatiaia,
de Goiânia, que passou desde terça-feira (04-08) a ser
administrado pela Polícia Militar).
Um professor desta escola, o professor Marcelo
Souza, bastante preocupado com a expulsão em massa
das famílias mais pobres, resolveu investigar como é a
situação sócio econômica dos alunos que estudam em
colégios da polícia militar.
Não existem muitas pesquisas a respeito, mas
é possível traçar algumas considerações com base em
dados coletados e disponibilizados pelo INEP. Trata-se
do INSE (Índice Sócio Econômico Escolar), que é medido
a partir de questionários contextuais aplicados a alunos
durante o ENEM.
Segundo estes dados, em 2013, a maioria
esmagadora das escolas de Goiânia apresentava  índice
socioeconômico escolar MÉDIO, enquanto todos os 06
colégios militares do estado de Goiás que participaram
do ENEM da época apresentavam índices MÉDIO ALTO
ou ALTO (o caso do COLEGIO DA POLICIA MILITAR
DE GOIAS UNIDADE CARLOS CUNHA FILHO, da
cidade de Rio Verde).
Fica mais fácil compreender o que isso significa, se
67
Estado de Exceção Escolar

compararmos a maioria das escolas estaduais de Goiânia


com as escolas militares. Veremos que a porcentagem de
alunos cuja renda familiar é entre 5 e7 salários mínimos
aumenta em mais de 100%. De 6% na maioria das escolas
estaduais para 14% nas escolas militares.
Há também uma diminuição em mais de 100%
dos alunos cujas famílias possuem renda de até 1
salário mínimo. O número de alunos nesta condição é
praticamente insignificante: 5% nestes colégios militares
contra 16% nas demais escolas.
A propósito, qual é a porcentagem de alunos
cujas famílias ganham menos de 01 salário mínimo? Nos
colégios militares, 0%. Pode não parecer tão grave, pois
na maioria das outras escolas estaduais o índice é de 1%.
Porém, se traduzirmos isso em números absolutos,
com todo o risco que isso possui, estaríamos dizendo que
dos 1607 alunos dos 06 colégios militares de Goiás que
prestaram Enem em 2013, nenhum aluno afirmou ter
família com renda menor que 01 salário mínimo.
Com a publicação, ontem, dos dados do ENEM
2014, a situação de exclusão das famílias mais pobres
ficou ainda mais evidente. Dos 05 Colégios Militares que
apresentavam, em 2013, o índice sócio econômico Médio
Alto, 04 subiram este índice para Alto, se igualando ao
Colégio da Polícia Militar Carlos Cunha Filho, da cidade
de Rio Verde.
Isso quer dizer que, de um ano para o outro,
ocorreu nestes colégios da polícia militar um aumento de
mais de 100% no índice de alunos oriundos de famílias
que ganham entre 05 e 07 salários mínimos (De 14%, em
2013, para 29%, em 2014) e um aumento ainda maior,
em termos percentuais, no índice de famílias de renda
maior de 07 salários mínimos (De 2%, em 2013, para 5%,
em 2014). Isso sem falar na redução do índice de famílias
68
A exclusão dos alunos mais probres nos colégios militares

que ganham até 2 salários mínimos.


No estado inteiro, somente 06 colégios estaduais
apresentam índice sócio-econômico ALTO. 05 deles são
colégios da polícia militar.
A situação de militarização do Colégio Waldemar
Mundim é, deste modo, bastante preocupante. Mais
ainda se pensarmos que, na região, o outro único colégio
público que atende a comunidade (no ensino médio)
apresentou, na mesma pesquisa, também índice sócio
econômico escolar ALTO. Trata-se do CEPAE (Centro de
Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação) da UFG.
Aqui, a crítica também deve ser feita à UFG
e ao modo pelo qual seu colégio termina por excluir
uma grande parte da comunidade mais necessitada da
região em que atua. Mas, isso, longe de diminuir, faz
ecoar de modo ainda mais forte a pergunta entoada de
modo doloroso pela senhora mãe naquela reunião: “Se
o Colégio Waldemar Mundim for militarizado, aonde os
meus filhos vão estudar?”.

69
Nós perdemos a consciência?:
apontamentos sobre a militarização de
escolas públicas estaduais de ensino
médio no estado de Goiás

Ellen Ribeiro Veloso


Nathália Pereira de Oliveira

Em Goiás, a existência de escolas dirigidas pela


polícia militar remonta ao final dos anos 1990 e é modelo
que apresenta alucinante expansão. Atualmente, são
mais de trinta os colégios militares – o estado é o que
apresenta o maior número de colégios dirigidos por
policiais no país –, tendo nove delas sido militarizadas
recentemente, no segundo semestre de 2015.
A reorientação do ensino à lógica militar, em
que a punição e o castigo são respostas por excelência
à desobediência, revela-se diametralmente oposta ao
sentido emancipatório projetado para a educação. Em
acepção adorniana, é papel da educação evitar a barbárie
e promover a emancipação, em oposição ao retorno do
totalitarismo, do autoritarismo, ou seja, às formas de
dominação que mitigam a identidade e o potencial de
resistência dos indivíduos. O olhar foucaultiano para
a dominação decorrente da disciplina, por sua vez,
aponta nesta uma forma de aumentar as forças do corpo
(em termos econômicos de utilidade) e diminuir essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). A
disciplina, para Foucault, fabrica “corpos submissos
e exercitados, corpos ‘dóceis’” e requer, para o seu
exercício, a distribuição dos indivíduos no espaço –
destacadamente colégios e quartéis.
Partindo do pressuposto de que uma educação

71
Estado de Exceção Escolar

militarizada pode representar distorções à formação


identitária de crianças e adolescentes, este artigo pretende
analisar de que maneira a doutrina militar imposta dentro
dos colégios públicos contraria os preceitos gerais do
Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo 206 da
Constituição Federal/1988. Destacaremos, em especial,
o princípio geral que reconhece a criança e o adolescente
como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.
Buscaremos analisar se o avanço teórico e prático
que caracterizou a transição do antigo Código de Menores
ao atual Estatuto – a respeito dessa condição peculiar e
os direitos que dela derivam – sustenta-se na esteira da
progressiva militarização de escolas públicas estaduais
em Goiás, efetivada sob o pretexto de maior segurança e
melhoria na qualidade do ensino.
Além disso, o artigo pretende questionar, em bases
teoréticas e empíricas, esses dois principais argumentos
que fundamentam a militarização do ensino: a redução
da violência e a melhoria do ensino e estrutura da
escola. Neste ponto, iremos analisar a plausibilidade dos
argumentos e, em caso afirmativo, se é a militarização da
escola que é a verdadeira responsável por esses alegados
resultados positivos.
Aspectos da doutrina militar e o papel da
disciplina

Considerando que os policiais militares são os


responsáveis pela estrutura e organização do Colégio
Militar, faz-se imprescindível analisarmos quem são
esses policiais, com o objetivo de compreender se eles
são formados de modo a lidar harmonicamente com os
desafios do contato com crianças e adolescentes. Para
tanto, abordaremos alguns aspectos dos princípios da
hierarquia e disciplina que informam a doutrina militar.
72
Nós perdemos a consciência?

Silva (2012) é autor de uma etnografia realizada


durante o curso de formação da Polícia Militar do Estado
de Goiás (PM-GO), na qual o processo de socialização por
que passa os policiais militares é relacionado com suas
práticas e representações. O autor entende socialização
como o “processo de interiorização de determinados
valores e formas específicas de pensar e agir partilhados
por um grupo humano” (p.11).
Fundamentando-se nos conceitos de Peter
Berger e Brigitte Berger, o autor explica dois tipos de
socialização: a primária e a secundária. A socialização
primária refere-se à formação da identidade do indivíduo,
é o processo pelo qual uma criança deve passar para ser
considerada um membro da sociedade. A secundária
são “todos os processo posteriores, por meio dos quais
o individuo é introduzido num mundo social específico”
(p. 12). A socialização secundária pode ser superficial ou
conter a mesma natureza e conteúdo da primária. No
caso da PM-GO, a socialização é secundária, mas é tão
profunda quanto à primária, pois não apenas implanta
um novo código de conduta e de valores como também
faz esquecer os hábitos e costumes da vida civil.
A hierarquia militar é tão importante nessa
instituição que, por exemplo, diante de um conflito entre
um superior e um policial de hierarquia inferior, ainda
que este esteja defendo o que consta em regulamento,
caso insista em sua posição, correrá o risco de ser acusado
de insubordinação pelo superior (SILVA, 2012, p. 19). A
prerrogativa de interpretar as regras internas fica a cargo
dos superiores.
Além disso, vale ressaltar que, segundo a
observação desse autor, entre superiores e subordinados
existe um visível descaso: “a visão hierárquica
predominante no seio militar não enxerga o outro como
73
Estado de Exceção Escolar

semelhante, muito menos como igual” (p. 32).


No tocante ao segundo princípio que abordaremos,
Michel Foucault define disciplinas como “métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo,
que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõe uma relação de docilidade-utilidade” (2011, p.
133). A disciplina tem o objetivo de fabricar corpos
submissos, isto é, corpos dóceis. Ressalta o autor que
a disciplina, na medida em que aumenta a utilidade e a
submissão do corpo, também reduz a sua força política.
Na formação militar são utilizadas técnicas
disciplinares que, para além de homogeneizar
comportamentos, visam à anulação acelerada da
individualidade do aluno soldado. Silva (2012) salienta
que é necessário um tempo para que a socialização
e absorção de valores ocorram ou, nas palavras do
sargento, para que os alunos sejam ‘forjados’. “Na PM,
como em qualquer outra instituição total, este processo é
acelerado pela mortificação do eu (...) principalmente na
fase de adaptação” (SILVA, 2012, p. 20).
Importante destacar também a etnografia de
Claudia Vicentini (2014) junto aos policiais militares de
Goiás submetidos à junta médica. A autora estudou a
relação entre o adoecimento mental de policiais militares
e o contexto microssocial no qual estão inseridos, com
destaque para as relações intersubjetivas baseadas na
hierarquia e disciplina entre praças e oficiais. Afirma a
autora que é no processo de supressão da individualidade
em favor de uma coletividade que reside o caráter
totalizador das instituições militares (p. 61).
Hierarquia e disciplina somadas resultam em uma
pronta e quase ilimitada obediência dos subordinados.
A submissão é a principal característica buscada pela
junção desses dois pilares, de modo que os policiais se
74
Nós perdemos a consciência?

acostumam a apenas obedecer e, em inúmeras vezes, a


passar por humilhações verbais e físicas. Um indivíduo
socializado dentro de uma instituição dessa espécie
tende a perder a sua capacidade crítica, tornando-se um
mero cumpridor de ordens.
Diante do que foi exposto e considerando que a
doutrina militar inculcada na formação policial não
difere, na essência, daquela aplicada nos colégios
militares, não nos parece ser esta doutrina adequada ao
desenvolvimento de uma criança ou de um adolescente,
podendo advir da formação militarizada efeitos como
o adoecimento mental e comportamentos violentos em
suas relações sociais.
Ainda que se desconsidere a possibilidade desses
efeitos negativos sobre as crianças e adolescentes, veremos
no desenvolver do artigo que as regras disciplinares
desses colégios – baseadas na doutrina militar – vão de
encontro à doutrina escolhida para fundamentar todo o
arcabouço jurídico de proteção e de garantia de direitos
das crianças e dos adolescentes.
Do Código de Menores ao Estatuto da Criança e
do Adolescente: breve retrospectiva dos avanços
na legislação

O primeiro documento legal que tratava sobre


direitos de crianças e adolescentes foi promulgado em
1927, conhecido como Código de Menores. As suas regras
não eram dirigidas a todas as crianças e adolescentes,
mas apenas àquelas que eram consideradas delinquentes
ou que estivessem em situação de abandono.
No ano de 1979, durante a ditadura militar,
o Código foi revisado pela lei 6.697/79, mas não foi
alterado o seu caráter autoritário e repressivo. Esta
revisão teve como doutrina informadora a do “menor
75
Estado de Exceção Escolar

em situação irregular”, isso porque foram normatizadas


situações em que a infância era considerada perigosa,
por exemplo, quando: o menor não tinha condições para
a sua subsistência, saúde e educação, era vítima de maus
tratos, encontrava-se em perigo moral, privado de pais
ou responsáveis, estava em desvio de conduta de conduta
por inadaptação familiar ou comunitária e quando era
autor de infração penal (artigo 2º).
O Código de Menores tratava a criança e o
adolescente como objeto de proteção, mas não como
sujeitos de direitos, isto é, não havia na lei a previsão de
nenhum direito em favor dos menores de 18 anos. Apenas
trazia as situações em que a infância era considerada
como uma situação de risco.
A abordagem foi consideravelmente alterada
com a promulgação da Constituição de 1988. O artigo
227 estabelece, a nosso ver, os pilares do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA): a responsabilidade de
todos – família, sociedade e Estado – na garantia dos
direitos ali previstos; a universalidade dos direitos, isto
é, todas as crianças e adolescentes estão englobadas
independentemente da condição social; a proteção
integral e a prioridade absoluta dos seus interesses.
A doutrina informadora desse artigo, assim como
a do ECA, é a chamada doutrina da proteção integral.
No âmbito internacional, essa doutrina já embasava a
Carta de Direitos das Crianças e Adolescentes de 1959 e
a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e
Adolescentes de 1989. Essa doutrina defende a ideia de
que a criança e o adolescente devem ser entendidos como
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, de
modo que tanto a família, o Estado e a sociedade devem
trabalhar para propiciar o desenvolvimento integral dos
atributos de sua personalidade (desenvolvimento físico,
76
Nós perdemos a consciência?

mental, moral, espiritual e social), sempre com respeito


à liberdade e dignidade pessoal. Este é um resumo da
doutrina, assim como é a essência do artigo 227 da CF/88
e do ECA.
O ECA estabelece dois princípios fundamentais: o
que reconhece a criança e o adolescente como indivíduos
em condição peculiar de desenvolvimento e a garantia
da prioridade absoluta. Afirmar a condição peculiar
é reconhecer que estamos tratando de pessoas em
formação e, por esse motivo, reconhecemos também a
necessidade de um sistema jurídico e uma tutela especial
dos seus direitos.
Esses dois princípios acarretaram na consolidação
de uma regra hermenêutica aplicada a todo o sistema
relativo à infância e ao adolescente, que consiste no
respeito ao melhor interesse da criança e do adolescente.
Este é considerado um dos grandes princípios da
Convenção sobre os Direitos da Criança, juntamente
com os de não discriminação, direito à sobrevivência
e ao desenvolvimento e respeito à opinião da criança
(ARANTES, 2012).
Os direitos fundamentais previstos no ECA estão
distribuídos em 5 eixos: i) direito à vida e à saúde (artigos
7º ao 14); ii) direito à liberdade, ao respeito e à dignidade
(artigos 15 ao 18); iii) direito à convivência familiar e
comunitária (artigos 19 ao 52); iv) direito à educação, à
cultura, ao esporte e ao lazer (artigos 53 ao 59); v) direito
à profissão e à proteção no trabalho (artigos 60 ao 69).
Para o objetivo desse artigo, interessa-nos salientar
apenas alguns aspectos do segundo e do quarto eixo. O
direito à liberdade compreende dentre outros aspectos,
o direito de opinião e de participação política. O respeito
abrange a preservação da identidade, da autonomia, dos
valores, ideais e crenças da criança e do adolescente.
77
Estado de Exceção Escolar

O direito à dignidade salvaguarda esses sujeitos de


qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor.
O direito à educação visa o pleno desenvolvimento
da criança e do adolescente e contempla a garantia de
condições de acesso e permanência na escola, o direito de
contestar critérios avaliativos, o direito de organização e
participação em entidades estudantis e o acesso à escola
pública e gratuita próxima de sua residência.
No que tange ao direito à educação, cabe ainda
salientar que o parágrafo segundo do artigo 54 do ECA
prescreve a responsabilidade da autoridade competente
no caso de não oferecimento do ensino obrigatório ou
da sua oferta irregular. Nesse particular, entendemos
que um sistema educacional que viole qualquer uma
das garantias prescritas no capítulo referente ao direito
à educação deve ser considerado irregular e passível de
responsabilização.
Um caso concreto para se verificar o efetivo
cumprimento das normas asseguradas a crianças e a
adolescentes é o retratado no modelo de escolas objeto
deste artigo. Os colégios militares possuem regulamentos
disciplinares bastante semelhantes aos regulamentos das
polícias militares. Por exemplo, existem 13 regras no que
tange às transgressões disciplinares do Colégio da Polícia
Militar, unidade Hugo de Carvalho Ramos, semelhantes
ao Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Goiás.
As transgressões disciplinares também são graduadas
da mesma forma em leve, média e grave. No colégio,
as transgressões leves têm como sanção advertência,
as médias ou a reincidência nas leves acarretam
repreensão e tanto as médias como as graves terão como
sanção a suspensão de sala de aula, segundo critério do
Comandante e diretor estabelecimento de ensino. Existe
78
Nós perdemos a consciência?

ainda a punição que acarreta a transferência do aluno


para outro Colégio. Essa sanção pode ser aplicada para
qualquer tipo de transgressão, das leves às graves.

Militarização do ensino: passando em revista os


argumentos

A militarização do ensino no estado de Goiás, seja


pela criação de novas unidades ou pela transformação
de escolas estaduais em colégios militares, desponta
como uma política de vertiginosa expansão e tem sido
uma constante nos últimos três anos. Em 2013, foram
criadas 18 unidades; em 2014, 3 unidades; e, em 2015,
foi criada uma unidade e nove escolas estaduais foram
transformadas em colégios militares.
Um levantamento sobre o tema a partir de notícias
de jornais e publicações na internet e dos projetos de lei
recentes que culminaram no aumento do número de
colégios da Polícia Militar aponta para duas motivações
a subsidiar a progressiva militarização do ensino na rede
pública estadual em Goiás: o combate à violência e a
melhoria da qualidade do ensino.
O argumento do combate à violência é recorrente
em notícias jornalísticas e publicações na internet e
associa a opção pela administração de escolas pela
Polícia Militar ao incremento da sensação de segurança,
à redução da violência em áreas com elevado tráfico
de drogas e prostituição, ao recurso à repressão e ao
autoritarismo como medidas a coibir a violência no
ambiente escolar, tendo em vista os elevados índices
de criminalidade nos territórios onde as escolas estão
inseridas.
Tal argumento não chega a ser oficialmente
sustentado pelas secretarias estaduais de Segurança

79
Estado de Exceção Escolar

Pública e de Educação, que compartilham a gestão


do modelo. Pelo contrário, a Secretaria de Segurança
Pública esquiva-se desta justificativa e atribui a troca de
comando das escolas ao clamor da maioria da população,
“pela qualidade de ensino dos colégios militares e as
aprovações em vestibulares. Não para conter a violência,
como foi divulgado”, consoante fala do coronel Raimundo
Nonato, porta-voz da SSP.
Há que se registrar, contudo, que a instalação
de colégios militares como medida de segurança foi
sustentada pelo chefe do Executivo estadual quando
encaminhou projeto de lei ao Legislativo, em 2013,
propondo a criação das unidades de ensino militar para os
municípios de Goianésia, Anápolis, Valparaíso de Goiás,
Aparecida de Goiânia, Goiás, Jataí e Novo Gama. No
Ofício Mensagem n. 83/2013 da Secretaria de Estado da
Casa Civil, que acompanhou a proposição encaminhada,
consta a seguinte justificativa:

A instalação de colégios militares nas cidades do interior do


Estado, do mesmo modo que na Capital, constitui medida
de segurança preventiva da mais alta eficácia, tendo em
vista que, a par da educação de boa qualidade ministrada,
não se podem desconhecer os valores da disciplina e da
ordem, cultivados no seio dessas unidades escolares,
na formação da juventude, especialmente, nos tempos
atuais, em que a ausência de limites nesse segmento
social responde em grande parte, como se sabe, por seu
lamentável extravio para as hordas do crime, daí, que essa
medida vem sendo reclamada pela própria população, por
meios formais de participação, inclusive, mediante listas
de assinatura1.
1 O documento está disponível para consulta na página eletrônica da
Assembleia Legislativa do Estado de Goiás e pode ser visualizado no seguinte
elo: http://al.go.leg.br/arquivos/processos/2013002330.pdf. Cabe registrar que
os “meios formais de participação, inclusive, mediante listas de assinaturas”
80
Nós perdemos a consciência?

Ainda que o argumento do combate à violência


decorrente da militarização das escolas apareça
timidamente nas falas e posicionamento dos atores
políticos, os dados sobre índices de criminalidade em
Goiás parecem apontar para esta associação. De acordo
com a publicação Mapa da Violência 2015, entre os
cem municípios brasileiros com as maiores taxas de
homicídios de adolescentes de 16 e 17 anos de idade,
considerados os 243 municípios com mais de quatro mil
adolescentes nessa faixa etária, dentre os anos de 2011
e 2013, despontam os seguintes municípios goianos
(com as respectivas posições): Valparaíso de Goiás (17ª),
Luziânia (20ª), Águas Lindas de Goiás (44ª), Goiânia
(59ª), Rio Verde (61ª) e Aparecida de Goiânia (74ª).
Em todos eles foram criados e/ou implantados colégios
militares nos últimos três anos.
Parece evidente, portanto, que, explicitamente
assumido ou não, o argumento do combate à violência
compõe a motivação para a militarização de escolas
públicas no estado de Goiás. Já o que não se sustenta é que
tal medida impacte positivamente na redução de práticas
violentas atribuídas a jovens. Inexistem dados e estudos
que demonstrem a relação entre presença da polícia
militar em escolas e redução da violência nas comunidades
em que foi implementado tal modelo de gestão nas
respectivas escolas. A mudança de comportamento dos
alunos no âmbito escolar em decorrência da imposição
da disciplina militar em nada assegura que a mesma
repercuta em decréscimo na produção da violência, a
menos que um rigoroso levantamento da problemática –
inexistente, até o momento – aponte para tal conclusão.
O segundo argumento para a militarização de

alegados não são explicitados e não há qualquer documentação destes no


projeto de lei encaminhado.
81
Estado de Exceção Escolar

escolas – o da melhoria na qualidade do ensino – é o mais


reiteradamente sustentado por atores políticos, tendo
embasado formalmente as recentes proposições legais
de transformação de unidades de ensino em colégio
militares. Na ocasião em que a Governadoria do Estado
encaminhou à Assembleia Legislativa o projeto de lei
para a militarização de escolas em Goiânia, Aparecida
de Goiânia e Senador Canedo, foram apresentadas como
justificativas “os bons resultados apresentados pelos
colégios militares, que proporcionam rigoroso padrão de
qualidade, primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (Ideb) de Goiás e destaque no Enem” e
que “os colégios militares têm sua eficácia e credibilidade
atestadas pela comunidade, que ressalta, inclusive, os
ensinamentos de cidadania que são ministrados, com
destaque para o respeito ao cidadão”, o que acarretaria
na “ampliação do padrão de qualidade”.
O argumento apresentado também é falacioso
e propõe generalizações que não se sustentam
empiricamente. Primeiro, há que se destacar que o
estado de Goiás alcançou resultados positivos no tocante
ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) do ano 2013 em decorrência da pontuação obtida
pela totalidade das escolas do estado, consideradas
na avaliação. Assim, não só se destacaram colégios da
polícia militar, cujo quantitativo é ínfimo se comparado
ao universo das unidades de ensino públicas, mas se
sobressaiu o conjunto das escolas estaduais avaliadas.
Ademais, ainda que colégios militares tenham atingido
o primeiro lugar no Ideb do ano de 2013, é pouco
contundente e em nada traduz a ideia de educação, na
amplitude que o conceito encerra, atrelar a qualidade do
ensino a um índice que se limita a sintetizar dados sobre
a “aprovação e média de desempenho dos estudantes em
82
Nós perdemos a consciência?

língua portuguesa e matemática”.


Outro ponto a se considerar em se tratando de
qualidade do ensino são as condições de funcionamento
das escolas consideradas de “rigoroso padrão”
comparativamente às demais unidades da rede pública.
Diferentemente da totalidade das escolas estaduais
de ensino básico, os colégios militares, além de serem
custeados com verba pública, contam com recursos extras
arrecadados por meio de “contribuições voluntárias”
estipuladas no âmbito destas, usualmente revertidos para
a melhoria da estrutura física das escolas e investimentos
nas mesmas, de forma geral.
O perfil dos alunos de colégios militares também
é ponto a merecer atenção. É previsão dos editais de
ingresso de novos alunos nos referidos colégios a reserva
de 50% das vagas a dependentes legais de militares –
o que restringe a integralização das vagas por crianças
e adolescentes oriundos das comunidades em que se
situam tais escolas e impacta no perfil sócio-econômico
dos alunos que as integram –, bem como o preenchimento
de 20% das vagas mediante avaliação de conhecimento,
em relação às unidades da Capital.
Portanto, avaliar comparativamente escolas
públicas não militares com colégios militares sem que
tais distinções sejam levadas em consideração não
constitui indicador confiável e efetivo para a mensuração
do grau de qualidade das escolas. Mais ainda, não
autoriza afirmarmos que é a militarização que corrobora
para a melhoria do ensino nos colégios, enquanto o que
se verifica é uma elevação dos investimentos nos mesmos
e ampliação e valorização do quadro de pessoal – o que
decorreria da simples tomada de decisões políticas sobre
o orçamento com este fim, sem qualquer necessidade da
transformação de escolas públicas em colégios militares
83
Estado de Exceção Escolar

(e, consequentemente, semi-privados, porquanto


impelem os alunos ao pagamento de “contribuições
voluntárias”).

Referências bibliográficas

ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Direitos da


criança e do adolescente: um debate necessário. Psicol.
clin., Rio de Janeiro , v. 24, n. 1, p. 45-56, 2012.
FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. 39 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
SILVA, Agnaldo. Praça Velho. Socialização, repre-
sentações e práticas policiais militares. Goiânia:
PUC-GO, 2012.
VICENTINI, Claudia. Corpo fardado: adoecimen-
to mental e hierarquia na Polícia Militar goiana.
Goiânia: UFG, 2014.

84
85
Militarização de escolas públicas:
avanços ou retrocessos?
Joab Júnio Dias Gregório da Silva

O Estado de Goiás vivencia uma conjuntura


delicada no que concerne a educação. Já no início do
ano de 2015, o Governador Marconi Perilo anunciou
a realização de estudos sentido a consolidação de
parcerias público-privadas na pasta educacional,
através de Organizações Sociais (O.S.’s),1 que consistem
em “pessoas jurídicas de direito privado sem fins
lucrativos”.2 O presente modelo é baseado nas Charter
School americanas, na qual determinada fração da rede
de ensino é gerida por organizações sociais com repasse
de dinheiro público. Alega-se uma gestão mais dinâmica
do ensino, sem burocracias licitatórias, estando o
profissional de educação sujeito às regras do mercado,
caso “não atinja as metas ou cumpra os anseios da
sociedade civil na prestação de serviços.”
Conforme apontado por professores/as, alunos/as
e ativistas ligados à área da educação, o repasse da rede
de ensino à organizações sociais não foi transparente. A
Secretaria de Educação e Cultura (SEDUCE) não chegou
a pronunciar-se sobre os critérios para a implantação das
O.S’s e nem tampouco, quais escolas escolas vigorariam
em 2016 com o presente modelo, qual seria o montante
1 VITOR, Frederico. Estado deve implantar OSs na área da Educa-
ção aos moldes das charter schools americanas. Jornal Opção. Jan. 2015
(ed. 2062). Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/reporta-
gens/estado-deve-implantar-oss-na-area-da-educacao-aos-moldes-
-das-charter-schools-americanas-2-25931/>. Acesso: 26 de nov. de 2015.
2 BRASIL. Casa Civil – Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto-
lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades
como organizações sociais e outros dispositivos. <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/LEIS/L9637.htm>. Acesso em: 26 de nov. de 2015.
87
Estado de Exceção Escolar

e a forma de repasse do dinheiro público. Considerando


a dinâmica mercadológica, os/as professores/as não
mais seriam contratados com concursos públicos, o
que poderia proporcionar a desvalorização da carreira
docente. Em caráter experimental cerca de 30% da
rede de ensino trabalhariam com O.S’s, sendo que 7, no
ano de 2015 sofreram o processo de militarização, com
previsão de mais 16 escolas, no ano de 2016, sob controle
da polícia militar.3
Conforme pode ser observado, a atual conjuntura
é extremamente rica no que tange a discussão sobre os
rumos da educação pública em esfera local e nacional,
considerando produções que observam o caráter
neoliberalizante de política públicas educacionais
hodiernas, até trabalhos que buscam melhor elucidar
os impactos psicopedagógicos de gestões privadas em
uma área assegurada pela Constituição enquanto dever
do Estado. O presente artigo busca discutir determinado
espectro da presente conjuntura: a militarização das
escolas.
Conhecendo a polícia militar: hierarquia e
organização

Uma discussão sobre a militarização das escolas


públicas perpassa um debate mais aprofundado sobre o
aparelho do Estado responsável pela gestão das mesmas:
a Polícia Militar. Historicamente, o corpo policial do
Estado de Goiás foi criado em 28 de julho de 1858, através
da resolução nº 13, enviada pelo então Presidente de
Estado, Dr. Francisco Cerqueira, passando por diversas
3 SANTANA, Vitor; BORGES, Fernanda. Grupo abraça Lyceu em
protesto contra O.S.’s na educação. G1 GO. Nov. 2015. Disponível em:
<http://g1.globo.com/goias/noticia/2015/11/grupo-abraca-o-colegio-
-lyceu-em-protesto-contra-oss-na-educacao.html>. Acesso em: 26 de
nov. de 2015.
88
Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

reorganizações internas ao longo da história. Cabe


destacar que o Estatuto da Polícia Militar do Estado de
Goiás (lei nº 8.033 ) foi sancionado somente em 18 de
dezembro de 1975, sob o governo do interventor Irapuan
Júnior. O presente texto define a “Polícia Militar é uma
instituição permanente e regular destinada à manutenção
da ordem pública do Estado, sendo considerada Força
Auxiliar do Exército”.4
No que refere-se ao efetivo policial para o Estado
de Goiás, o projeto Lei nº 17.866, de 19 de dezembro de
2012, prevê cerca 30.741 policiais militares distribuídos
dentre praças e oficiais. A classe de praças segundo o
levantamento de Cláudia Vicentini correspondia, no
presente ano, a cerca de 92% da corporação, ao passo
que a classe de oficiais correspondia a 8% do total.5
Esquematicamente, a polícia militar organiza-se em duas
classes: a de praças e a de oficiais. A classe de praças, que
encontra-se na base da pirâmide, encontra-se dividida
em 8 graduações (praças, soldados, subtenentes, 1º, 2º
e 3º sargentos, aspirantes a oficiais e alunos especiais);
a classe de oficiais, por sua vez, ao invés de graduações,
possui postos, sendo 6 ao todo (1º e 2º tenentes; major,
capitão, coronel e tenente-coronel).
A fim de melhor elucidar as relações de poder
estruturais intra e interclasses no aparelho militar,
cabe discutir, inicialmente, sob uma perspectiva
antropológica, micro estruturas que conformam a polícia
militar enquanto tal, em outras palavras, o que faz a
polícia militar ser a polícia militar.
4 GOIÁS. Gabinete Civil da Governadoria. Decreto Lei nº 8.033,
de 02 de dezembro de 1975. Estatuto da Polícia Militar. <www.Gabine-
tecivil.goias.gov.br/leis_ordinarias/1975/lei_8033.htm>. Acesso em:
26 de nov. de 2015.
5 VICENTINI, Claudia. Corpo fardado: adoecimento mental e
psíquico na Polícia Militar goiana. Goiânia: Editora UFG, 2014.
89
Estado de Exceção Escolar

“O espírito militar” e o “espírito de corpo” da PM

Em seu estudo junto a cadetes da Academia Militar


da Agulhas Negras – AMAN, no município de Resende
– RJ, Celso Castro nota que a Academia Militar é um
caso típico no qual ocorre uma segunda socialização
dos sujeitos. O isolamento do mundo civil proporciona
a interiorização de um universo simbólico próprio da
instituição militar, proporcionando a superação da
condição na qual o cadete encontrava-se anteriormente
inserido. Subsiste um mecanismo denominado “vitória
cultural” no qual o indivíduo passa de um “status civil” a
um “status militar”, através do habitus, um conjunto de
estruturas estruturadas e estruturantes interiorizadas,
adquirindo aquilo denominado por Castro de “espírito
militar”66.
O espírito militar, no entanto, só pode ser
elucidado a partir de pares diferenciais entre aqueles que
encontram-se dentro e aqueles que encontram-se fora
da corporação militar, em outras palavras, a partir das
diferenças entre militares e civis. Em sua obra, Castro
montou três séries que demonstram, no imaginário dos
cadetes, as diferenças postas entre os de dentro e os de fora.
No que refere-se a atributos físicos e comportamentais,
os militares são marcados por uma entonação de voz
clara e firme, densidade corporal equilibrada (peso x
altura), rígida higiene corporal e linguajar próprio; a
série dos atributos morais ressaltam o senso de retidão
e honestidade, preocupação com causas nobres, respeito
à ordem, à disciplina e à hierarquia; a série denominada
de ambiental/ecológica é marcada pela vida ao ar
livre, saudável e natural, o convívio em comunidade e o
constante deslocamento pelo interior brasileiro.
6 CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caser-
na. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
90
Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

De forma similar ao Exército, Cláudia Vicentini,


que etnografou policiais militares (cabos e soldados)
goianos atendidos pelo serviço de psiquiatria do Hospital
da PM, notou a existência de um “espírito de corpo”
dentre os policiais militares, que permite diferenciá-los
não só em relação aos paisanos (termo pejorativo dado
aos civis, sendo similar a milico, pejorativo de militar),
como também ao Exército e à Polícia Civil.
As diferenças postas em relação ao Exército podem
ser abstraídas sob a tríade: legalidade; intensidade de
treinamento/estética militar e atribuições. Legalmente, as
polícias militares estaduais, junto ao Corpo de Bombeiros
são consideradas forças auxiliares do Exército. Qualquer
civil ou policial militar podem ser convocados para as
Forças Armadas, constituindo-se, portanto, enquanto
militares em potencial, não militares propriamente
ditos. No que refere-se a treinamento/estética, observa-
se que o padrão do Exército é mais rígido que o da PM.
Esta por sua vez, é compreendida enquanto um batalhão
de “segunda categoria”. Quanto às suas atribuições, a PM
é vista enquanto uma instituição não pura em relação ao
Exército, tendo em vista o contato direto junto a civis,
compreendidos enquanto “impuros”.
O contraste em relação a Polícia Civil, por sua
vez, se dá geracionalmente pelo caráter disjuntivo da
polícia brasileira. À PM é reservada com exclusividade
o policiamento extensivo fardado com o objetivo de
preservar a ordem pública, ao passo que a Polícia
Civil cabe o registro de ocorrências e investigação do
crime. Distinguem-se em relação à estrutura, normas
administrativas e operacionais, disciplina e salário.
No entanto, é importante notar os mecanismos
estruturais subjacentes à formação do espírito de corpo
da Polícia Militar. A hierarquia e a disciplina são dois
91
Estado de Exceção Escolar

princípios-chave para entender os signos estruturantes


da PM. A hierarquia possui um caráter segmentador e
organizador, ou seja, estrutura as condutas e relações
sociais dos indivíduos; a disciplina, por sua vez, garante
a manutenção da hierarquia, bem como o sentimento
de pertencimento a uma totalidade com o consequente
aviltamento da esfera individual.
A internalização dos princípios da disciplina e
hierarquia dá-se através das relações estabelecidas entre
oficiais e soldados-alunos. Conforme ressalta Celso
Castro, no Exército brasileiro, a hierarquia é quantitativa,
tendo em vista o fato da igualdade formal de condições
ser preconizada durante todo o treinamento dos cadetes
na AMAN, de forma que todos tenham a oportunidade
de chegar ao oficialato. Na hierarquia da Polícia Militar,
além de haver a variável quantificável (tempo de serviço),
subsiste ainda uma variável qualitativa, considerando
a dupla forma de entrada no corpo militar (é possível
prestar concurso para a graduação de praças ou para o
posto de oficiais, sendo que para este último, é necessário
um curso de Direito).
A hierarquia do policiamento brasileiro
possui impactos profundos sobre a vida dos sujeitos,
considerando o fato do “universo simbólico militar”
perpassar todas as esferas da vida dos militares, desde a
esfera profissional enquanto policial, até a esfera pessoal,
fora da corporação. Segundo Vicentini, é possível
reconhecer o policial militar através de sua coporalidade,
ou seja, através da fala, gestos e comportamentos.
O papel da violência na consolidação da disciplina e
da hierarquia

É interessante notar, a partir das linhas


anteriormente expostas, o modo com que a disciplina é
92
Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

consolidada na polícia militar, culminando na submissão


dos indivíduos à hierarquia. Conforme anteriormente
elucidado subsiste uma desigualdade legítima/
simbólica no corpo militar, considerando as variáveis
quantitativas e qualitativas presentes na instituição. A
presente estrutura é estruturada através de dois signos: a
hierarquia e a disciplina. A disciplina é o dispositivo que
permite a manutenção do princípio hierarquizador na
corpo militar. Subsiste, no entanto, um outro dispositivo
que orienta a disciplina e a hierarquia na Polícia Militar:
a violência físico-psicológica imprimida sobre os
sujeitos através de relações desiguais de poder no bojo
institucional entre praças e oficiais. Em seu trabalho,
Cláudia notou que os policiais militares entrevistados
percebem nos Regulamentos Disciplinares (aplicados
por oficiais e responsáveis por prescrever mecanismos
de punição-recompensa) uma forma de humilhação,
rebaixamento e uso desmedido do poder.
Torna-se claro, a partir do elucidado, que a
violência institucional/legítima (porque executada
por uma instituição específica possuindo lastro no
plano jurídico) aplicada sobre os policiais militares
no bojo hierárquico da corporação tende a reproduzir-
se em esfera social de maneira diversa, considerando
os marcadores sociais da diferença que balizam a ação
policial, a exemplo de classe, raça/etnia e gênero. A
violência, historicamente atualizada no Brasil não atinge
as grupalidades da mesma forma. Considerando as
assimetrias de poder em esfera social, a defesa da ordem
preconizada pela polícia militar transfigura-se na defesa
de uma ordem social marcada por desigualdades.
Em perspectiva histórica, os corpos policiais
nasceram mediante a manutenção de interesses
de oligarquias locais, reprimindo qualquer foco
93
Estado de Exceção Escolar

contestatório que colocasse a hegemonia de determinada


classe ou grupo em xeque.
Frente ao exposto, cabe problematizar o impacto
em esfera educacional da gestão do ensino por parte
de uma instituição balizada por assimetrias de poder
fundamentadas na violência. Qual modelo educacional
será preconizado no bojo das instituições de ensino? Quais
serão os impactos psicopedagógicos sobre os adolescente
em formação? Haverá liberdade de contestação por
parte de alunos/as e professores/as frente a qualquer
arbitrariedade posta?

A defesa de uma educação pública voltada ao anseios


dos/as filhos/as da classe trabalhadora

Subsiste um discurso romanesco sobre os Colégios


Militares: “tem bons índices no IDEB”; “proporcionam
ordem e segurança nas escolas”; etc. No entanto, existe
uma faceta pouco discutida sobre a gestão de Colégios
Militares que possui íntima relação com a forma com
que os policiais militares são socializados na corporação:
abusos e perseguições políticas de estudantes e
funcionários/as.
Segundo relatos de estudantes e professores/
as moradores/as do município de Montes Claros (GO),
docentes e funcionários do Colégio Militar Tiradentes
abusavam sexualmente das alunas, e considerando a
estrutura rígida e hierárquica do Colégio, grande parte
dos funcionários ignoravam o que ocorria dentre os
muros da Instituição. As denúncias de abuso e assédio
sexual tendem a ocorrer em diversos Estado do país como
Rio Grande do Sul e São Paulo, acontecendo inclusive
no bojo das corporações militares junto às policiais

94
Militarização de escolas públicas: avanços ou retrocessos?

femininas, frente a figuras de alto posto ou graduação.7


O caráter público das instituições de ensino
militarizadas também podem ser problematizadas
na medida em que “taxas simbólicas” podem ser
cobradas dos/as alunos/as, a exemplo de matrícula e
fardamento militar, impossibilitando que a população
em vulnerabilidade sócio-econômica da região possa
manter seus filhos e filhas na escola.
É de suma importância que a sociedade civil discuta
a situação da educação pública em Goiás, considerando
o fato de que a terceirização/privatização posta através
de O.S.’s e escolas militarizadas podem trazer impactos
profundos sobre a educação de jovens e crianças, tendo
em vista assédios moral e sexual, além da nebulosidade
na celebração de contratos e usos de verbas públicas.
A luta por uma educação pública, de qualidade e
voltada aos anseios da classe trabalhadora deve estar na
linha de frente das mobilizações contra a terceirização
da educação em Goiás e nos demais estados do país.
A ocupação de escolas em São Paulo e em mais de 20
escolas no Estado de Goiás tem mostrado o caminho para
a consolidação de uma gestão realmente democrática
da escola pela comunidade escolar, contrapondo-se a
políticas neoliberalizantes e antidemocráticas.
Por fim, cabe transcrever alguns trechos da música
“Trono de Estudar”, que reúne vários artistas, dentre
eles Chico Buarque, Dani Black, Dado Villa-Lobos, Maria
Gadú, Paulo Miklos e Arnaldo Antunes, em apoio às
ocupações de escolas em São Paulo:

7 SADDI, Rafael. Assédio e abuso sexual em colégios mili-


tares. Diário da Manhã. Julho de 2015. Disponível em: <http://www.
dm.com.br/cotidiano/2015/07/estao-nossas-criancas-seguras.html>.
Acesso em: 27 de nov. de 2015.
95
Estado de Exceção Escolar

“[…] A vida deu os muitos anos de estrutura do humano


À procura do que Deus não respondeu
Deu a história, a ciência, a arquitetura
Deu a arte e deu a cura e a cultura pra quem leu

Depois de tudo até chegar neste momento me negar conhe-


cimento é me negar o que é meu
Não venha agora fazer furo em meu futuro, me trancar
num quarto escuro e fingir que me esqueceu
Vocês vão ter que acostumar porque

Ninguém tira o trono do estudar

E nem me colocando numa jaula


Porque sala de aula
Essa jaula vai virar”

(Trono de Estudar – Dani Black)

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Sobre os autores

Dijaci David de Oliveira é doutor em sociologia e professor


da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), Universidade Federal
de Goiás (UFG). É também coordenador do Núcleo de Estudos
Sobre Violência e Criminalidade (NECRIVI).

Ellen Ribeiro Veloso é bacharel em direito, especialista em


políticas públicas, mestranda no programa de Pós-graduação
em Ciência Política da UFG e pesquisadora do Programa
de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada
(PROLUTA).

Francisco Mata Machado Tavares é bacharel em Direito,


doutor em Ciência Política e professor da Faculdade de
Ciências Sociais da UFG. É também coordenador do Programa
de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada
(PROLUTA).

Heitor Aquino Vilela, que ilustrou este livro, é cartunista,


jornalista, graduando da Faculdade de Informação e
Comunicação da UFG e pesquisador do PROLUTA.

Ian Caetano de Oliveira é graduando em ciências sociais


pela UFG e pesquisador do PROLUTA.
Joab Júnio Dias Gregório da Silva é graduando em
ciências sociais pela UFG e pesquisador do PROLUTA
Natália Pereira de Oliveira é advogada e mestranda do
programa interdisciplinar de pós-graduação em direitos
humanos da UFG.
Rafael Saddi Teixeira é doutor em história e professor da
Faculdade de História da UFG. Tem ênfase nos estudos de
didática da história.

Victor Hugo Viegas de Freitas Silva é graduando em


ciências sociais pela UFG e pesquisador do PROLUTA.
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Esse livro foi impresso em fonte Georgia.
E foi impresso em homenagem a todos aqueles
que não desistem ante a truculência e a opressão
exercidas, autoritárias, neste estado em que
vivemos.

Tiragem de 200 exemplares

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