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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Oscar Manuel Miguelez

LINGUAGEM E ESQUIZOFRENIA:
de coisas e palavras

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

SÃO PAULO
2011
2

I
3

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PUC-SP

Oscar Manuel Miguelez

Linguagem e esquizofrenia:
de coisas e palavras

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Tese apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica, sob orientação do
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

SÃO PAULO
2011
4

II
5

Banca examinadora

_______________________________________________________

_______________________________________________________

_______________________________________________________

_______________________________________________________

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6

III
7

A Nora,
companheira na vida.

A Javier, Alejandro e à turma do barulho:


Pedro, Bruno, Gabriel e Martin.

A Marta, irmã querida, in memoriam.


8

IV
9

RESUMO

A tese aborda a questão da linguagem na esquizofrenia. Depois de caracterizar o


conceito de esquizofrenia, categoria nosográfica derivada de sua antecessora
demência precoce – concebida por Bleuler como conceito da psicopatologia –, e
de situar alguns dos desenvolvimentos do conceito no âmbito da psiquiatria, a tese
focaliza as hipóteses freudianas a respeito da esquizofrenia, surgidas num
momento de aproximação da psicanálise com a psiquiatria, dando especial
destaque à relação estabelecida entre as palavras e as coisas nos textos da
metapsicologia. A tese examina também o fundamento da relação palavra/coisa
freudiana, ligada inicialmente à teoria dos nomes de Stuart Mill, e procura em
Lacan, Foucault, Agamben e autores da psicanálise francesa contemporánea
outras formas de pensar a relação palavra/coisa e os sintomas da esquizofrenia.
Essas e outras questões foram abordadas a partir de três casos, Wolfson, Mané e
Edgar, nos quais as alterações de linguagem apresentam-se de formas muito
diversificadas que vão desde a desconstrução/reconstituição da linguagem inteira
(Wolfson) até a presença apenas de algumas palavras estranhas, chaves na
construção delirante (Mané e Edgar). Apesar das diferenças estabelecidas,
aparece sempre nesses casos uma ruptura, não da relação palavra/coisa, como
pensara Freud, mas sim da função intersubjetiva da linguagem, da capacidade de
fazer dela um modo de laço com o outro, sendo essa a hipótese central que
orientou a pesquisa. Segue-se a essa ruptura a procura de procedimentos,
tentativas, das mais variadas formas, de recuperar a ligação perdida. Assim, os
dois tempos da psicose, propostos por Freud, revelaram-se fecundos.

Palavras chave: esquizofrenia; linguagem e esquizofrenia; palavra/coisa;


psicanálise
10

V
.
11

ABSTRACT
This thesis addresses the issue of language in schizophrenia. First, schizophrenia
is defined, as a nosographic category, derived from its predecessor ‘dementia
praecox’, conceived by Bleuler as a psychopathological concept. This is followed
by a discussion on some developments of this concept in the context of psychiatry.
The thesis finally focuses on Freudian hypotheses about schizophrenia, which
have emerged in a moment of rapprochement between psychoanalysis and
psychiatry. An emphasis is given on the relationship between words and things in
the metapsychological texts. The foundation of the Freudian word / thing relation,
initially linked to Stuart Mill’s theory of names, is examined, as are other ways of
thinking this relation, as well as schizophrenia symptoms, by Lacan, Foucault,
Agamben and contemporary French psychoanalysis authors. These and other
issues were addressed by presenting three clinical cases: Wolfson, Mané and
Edgar. These cases illustrate the diversity of language disorders in schizophrenia,
ranging from deconstruction / reconstruction of the entire language (Wolfson) to the
occasional presence of a few strange words, keys for the delusional construction
(Mané and Edgar). Despite the differences, these cases share a similar rupture.
The central hypothesis of this thesis is that such rupture, unlike what has
previously been postulated by Freud, is not a break in the word / thing relation, but
on the intersubjective function of language, the ability to use language as a way to
bond to each other. This rupture is followed by the search for procedures and all
sorts of attempts to recovering the lost connection. In this sense, the two times of
psychosis, proposed by Freud, have proved fruitful.

Key-words: schizophrenia; language and schizophrenia; word/thing;


psychoanalysis.
12

VI
13

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck, meu orientador e amigo, pelas


contribuições feitas e, fundamentalmente, pelo exemplo de força e de trabalho a
frente do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.

Aos integrantes da Banca de Qualificação e, agora, da Banca Examinadora


Professores Doutores Richard Theisen Simanke, Luiz Cláudio Figueiredo, Caterina
Koltai, Sérgio de Gouvêa Franco, Paulo José Carvalho da Silva, Paulo Endo,
Silvana Rabello, e Ana Cecília Magtaz pela generosa tarefa de leitura e
interlocução.

Aos colegas do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, muito


especialmente a José Waldemar Thiensen Turna, que possibilitou as entrevistas
realizadas no Hospital São João de Deus, e também a Sonia Christina
Thorstensen, Alfredo Simonetti, Ana Cecília Magtaz, Julieta Jerusalinsky, Fani
Hisgail, Ana Irene Canongia, Cybelle Weinberg, José Carlos Zeppelini Júnior e
Teresa Endo, pelo alento e as inúmeras colaborações recebidas.

A Nora Susmanscky de Miguelez, pelo carinho e apoio de tantos anos e também


pelos comentários inteligentes e a permanente troca de ideias.

A Isabel Kahn Marin, que acompanhou todo o percurso da pesquisa com


sugestões decisivas e que, nos momentos de incerteza, pôde conter minhas
angustias.

A Carmen Lucia Montecchi Vadalares de Oliveira pela leitura cuidadosa dos textos
na fase final da tese e por todas as contribuições teóricas e afetivas que
permitiram superar os momentos de desalento.

À equipe clínica das quintas feiras do Hospital do Servidor Publico Estadual,


particularmente, ao Professor Carol Sonenreich e aos Professores Giordano
Estevão e Andres Santos Jr com os quais muito aprendi nesses últimos cinco
anos. Também ao Dr. Durval Mazzei Nogueira Filho e ao Dr. Eduardo Leal que
possibilitaram minha inclusão nessas ricas reuniões clínicas.

À minha família que soube suportar os longos afastamentos.

A Ivone Daré Rabello, que revisou a versão final do texto, em língua e estilo.

VII
14

Sumário

Introdução e notas teórico-metodológicas................................................... 1

Capítulo I.......................................................................................................... 15
Esquizofrenia: entre psiquiatria e psicanálise.............................................. 15
1. Da demência precoce à esquizofrenia.......................................................... 15
O conceito de demência precoce......................................................... 15
O conceito de esquizofrenia................................................................. 19
2. Da esquizofrenia à esquizoidia...................................................................... 27
3. A neuroleptização da esquizofrenia............................................................... 31

Capítulo II......................................................................................................... 40
A esquizofrenia em Freud............................................................................... 40
1. O contexto geral da pesquisa freudiana sobre esquizofrenia....................... 40
2. Psicanálise e psiquiatria................................................................................ 49
3. Freud e Burghölzli.......................................................................................... 52
4. As hipóteses iniciais a respeito da psicose................................................... 58
5. Analise freudiana dos sintomas da esquizofrenia......................................... 60
As alterações da linguagem.................................................................. 62
Sonho e esquizofrenia.......................................................................... 71
A linguagem de órgão........................................................................... 74
Questionamentos.................................................................................. 80
6. O Schreber de Freud e a esquizofrenia......................................................... 82
Homossexualidade e84
paranoia...............................................................
Autoerotismo, narcisismo, paranoia e esquizofrenia........................... 89
7. Realidade e significação na obra d e92
Freud....................................................
A realidade no Projeto e em Interpretação dos sonhos....................... 93
Eu, narcisismo e realidade................................................................... 97
Realidade e Verleugnung..................................................................... 100
A realidade na neurose e na psicose................................................... 104
Verdrängung e106
Verneinung....................................................................
Questionamentos..................................................................................108
..
15

8. Análise das contribuições de Freud à esquizofrenia..................................... 111

Capítulo III........................................................................................................ 119


Os casos clínicos: Wolfson, Mané e Edgar................................................... 119

Wolfson e as línguas....................................................................................... 119


1. Introdução...................................................................................................... 119
2. Um pouco do livro e do caso......................................................................... 120

VIII
3. Considerações............................................................................................... 126
“Exmatriar” a126
língua................................................................................
O 130
procedimento......................................................................................
A apropriação da língua.........................................................................132
De coisas e135
palavras..............................................................................
A linguagem e o s144
outros.........................................................................

Mané e a língua................................................................................................ 147


1. Apresentação do caso................................................................................... 147
2. Considerações............................................................................................... 152
Da religião a o153
delírio...............................................................................
As palavras e m159
Mané.............................................................................
A passagem ao ato................................................................................162
O s164
órgãos...............................................................................................
As surpresas da clinica......................................................................... 167

Edgar e a questão do pai.................................................................................170


1. Apresentação do 170
caso.....................................................................................
2. Considerações............................................................................................... 177
16

A 177
hospitalização......................................................................................
Edgar e sua família................................................................................179
A mãe.................................................................................................... 181
O pai morto............................................................................................182
Lacan e a forclusão do N o m e - d o -183
pai.....................................................
Homossexualidade e184
psicose.................................................................
A forclusão c o n c e i t o185
negativo.................................................................
Críticas: Deleuze e189
Tort..........................................................................
Edgar e a ausência d o194
pai......................................................................
O q u a d r o195
crônico....................................................................................
As palavras e m196
Edgar............................................................................
A transferência.................................................................................... 199
Curar ou acompanhar?..........................................................................201

Considerações finais e conclusão................................................................. 203

Bibliografia.......................................................................................................221
.

IX
1

Introdução e notas teórico-metodológicas

Ainda durante o trajeto percorrido no mestrado, fui progressivamente

atraído pela problemática suscitada pelos fenômenos psicóticos. Com efeito,

sendo o narcisismo o assunto relevante naquele momento, era ineludível pensar

nas psicoses, pois é o narcisismo a principal resposta que deu Freud aos desafios

provocados por elas. Dentre os três grandes grupos de psicoses que Freud ligara

ao narcisismo – paranoias, esquizofrenias e psicose maníaco-depressiva –, a

esquizofrenia cativou profundamente meu interesse. Isso se deveu não apenas

ao fato de ela ser a mais enigmática das psicoses, mas também,

fundamentalmente, à sua profunda ligação com fenômenos que envolvem a

linguagem, desorganizando a fala dos pacientes até o ponto de torná-la

incompreensível.

Acrescente-se que desde os inícios da minha formação, a questão da

linguagem foi um assunto de grande interesse para mim. Com efeito, no final dos

anos 1960, com a chegada à Argentina das ideias de Lacan, fortes discussões

estabeleceram-se em torno do papel da linguagem na psicanálise, do modelo

econômico freudiano e, de maneira geral, da interpretação e da leitura da obra de

Freud. Cruzaram-se, assim, duas linhas de interesse, convergindo num tema de

pesquisa: a linguagem na esquizofrenia.

Quais as determinações daquilo que chamamos esquizofrenia? Qual o

lugar da linguagem nos seus sintomas? Qual a validade do modelo proposto por

Freud para o entendimento das alterações de linguagem na esquizofrenia? O que

a psicanálise tem a dizer a respeito dela? De que modo esse enigmático quadro
2

pode iluminar a discussão em torno da linguagem e da pulsão? Com essa lista de

perguntas e problemas deu-se início à pesquisa.

Paralelamente ao seguimento dos assuntos de caráter teórico ou

metapsicológico, também resolvi fazer acompanhamento de pacientes. Desejava

que a elaboração teórica não fizesse perder de vista o horizonte da clínica, esta

sim meu norte. Em um primeiro momento, e por intermediação de meu orientador,

Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, e de José Waldemar Thiensen Turna, colega do

Programa de pós-graduação da PUC-SP, passei a frequentar por quase dois anos

o Hospital Psiquiátrico São João de Deus e a entrevistar pacientes diagnosticados

como esquizofrênicos. Dessa difícil tarefa resultou o levantamento de várias

histórias clínicas que muito contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho.

Um analista em terreno estrangeiro

Foi no âmbito do hospital e no relacionamento com esses pacientes que

pude entrar em contato com as múltiplas dificuldades envolvidas na tarefa a que

me tinha proposto. Frequentar um hospital psiquiátrico onde as pessoas se

encontram internadas por períodos indefinidos, às vezes curtos, outras longos,

entrevistar pacientes sem saber ao certo se haverá novas oportunidades de

escuta, exigem renúncias. Isso nos obriga a abdicar do conforto e da proteção de

nosso consultório, a repensar o que é fundamental e o que é acessório no

enquadramento da escuta e também – o que seja talvez o mais árduo – a sair do

encastelamento e a enfrentar a existência de abordagens diferentes das nossas:

outras práticas, outras linguagens, outros discursos.


3

É necessário largo tempo para se localizar no espaço hospitalar, para

circular pelos corredores, para se situar nas diferentes alas, para conviver com

fechaduras, trancas, rotinas dos internos, horários, odores, enfim, com aquilo que

faz parte da realidade de um lugar onde os pacientes ficam internados e sua

circulação, restrita. É necessário ainda um tempo mais amplo para entender a

lógica dos procedimentos aplicados. Com efeito, os pacientes foram entrevistados

sob os efeitos de medicamentos consignados nas suas fichas clínicas e que eram

administrados pela equipe médica do hospital com a qual eu não mantinha

contato. Sem que tivesse a intenção de refletir sobre essas intervenções, não era

possível fazer abstração delas no momento em que realizava as entrevistas; elas

se faziam patentes nas atitudes e nas falas dos pacientes durante os encontros

mantidos. Desse modo, fui incitado a atualizar minha informação a respeito da

lógica que sustenta a prática psiquiátrica da atualidade, fortemente influenciada

pelos novos descobrimentos das neurociências e da neurologia. Foi assim que

precisei perder o receio de enfrentar outro campo do saber e arrisquei familiarizar-

me com a lógica que envolve os neurotransmissores, com a diferenciação entre

medicamentos empregados e com a identificação de seus efeitos colaterais;

enfim, lancei-me a uma incursão no terreno da psiquiatria praticada na atualidade

e nos princípios que a fundamentam.

Apesar da riqueza do trabalho no Hospital São João de Deus, com o correr

do tempo senti necessidade de maior interlocução. Por razões práticas ligadas à

ocupação dos consultórios disponíveis, minhas atividades desenvolviam-se em

horários alternativos aos da equipe clínica e, por esse motivo, eu não mantinha
4

nenhum contato com ela. Foi assim que, em um segundo momento, por

intermediação do Dr. Durval Mazzei Nogueira Filho e do Dr. Eduardo Leal,

substituí os encontros no São João de Deus pela participação nas reuniões

clínicas de apresentação de pacientes do Hospital do Servidor Público Estadual, à

época coordenadas pelo Prof. Dr. Carol Sonenreich e no presente momento pelo

Prof. Dr. Giordano Estevão. Com a mudança de meu espaço de atuação, quebrou-

se o isolamento e ampliou-se muito a possibilidade de diálogo, pois essas

reuniões são realizadas com a participação de todos os membros que compõem a

equipe clínica da Psiquiatria do Hospital do Servidor – terapeutas ocupacionais,

assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e residentes em psiquiatria – e nelas

se discute o caso apresentado a partir de várias perspectivas, embora, por se

tratar de atividade de uma residência em psiquiatria, tal ponto de vista seja o

predominante. Da participação nessas apresentações de pacientes surgiram de

modo mais patente os “outros” da psicanálise, e o “outro” da psiquiatria, esse

próximo e distante, ao mesmo tempo familiar e ameaçador.

O discurso da psiquiatria, hoje cada vez mais hegemônico, não costuma ser

objeto de estudo do psicanalista. Certa condescendente ignorância, acompanhada

de cautela e distância, alterna-se muitas vezes com a submissão ou rechaço

radical de seus postulados. O conceito de doença mental, central para a

psiquiatria, encerra uma dualidade que atravessa como dilema sua história. De

fato, como ramo da medicina, a psiquiatria foi impelida a fundamentar seus

achados nos postulados advindos do surgimento da anatomia patológica; no

entanto, devido ao caráter mental de seu objeto e aos fracos achados


5

anatomopatológicos, foi obrigada a tecer hipóteses psicogenéticas e a arriscar-se

em terrenos afastados do âmbito propriamente médico. Na psiquiatria, o discurso

organicista encontrou nos recentes achados das neurociências, na manipulação

de imagens e nas descobertas da genética fortes argumentos para instalar-se

como tendência dominante. A partir do descobrimento, em 1952, dos

neurolépticos, a psiquiatria aproximou-se progressivamente da neurologia, sendo

hoje seu linguajar acentuadamente neurológico.

Em torno da esquizofrenia

Desde o início da pesquisa, percebi que abordar as alterações de

linguagem na esquizofrenia exigiria uma definição do conceito, e tal definição não

poderia ser achada no âmbito da psicanálise. Não existe uma definição

psicanalítica da esquizofrenia. No entanto, não previ adequadamente que a

incursão pelo âmbito da psiquiatria, duplamente motivada, por um lado, pela

procura teórica; por outro, pelas exigências práticas derivadas da minha inclusão

nos hospitais, seria tão trabalhosa, demorada e difícil. A bibliografia psiquiátrica

sobre a esquizofrenia é muito numerosa e abrangente; o trajeto histórico do

conceito corre paralelamente ao surgimento da própria psiquiatria e envolve

questões políticas e epistemológicas complexas. Se não existe definição de

esquizofrenia na psicanálise, na psiquiatria existem muitas. Na psiquiatria, não há

uma definição unívoca do que se entende por esquizofrenia, nem uma única

explicação sobre seus sintomas. Existem quase tantas definições como autores

que se ocuparam dela. Mais ainda, nos últimos anos discute-se até a permanência

dessa categoria na nosografia da psiquiatria. Contudo, na ampla bibliografia


6

existente, Kraepelin, Bleuler, Minkowski e, mais recentemente, Crow e Andreasen

são referências frequentes.

A esquizofrenia – categoria nosográfica surgida da interface da psicanálise

com a psiquiatria, concebida por Bleuler como conceito da psicopatologia,

derivada de sua antecessora demência precoce, e abordada como fenômeno

natural por Kraepelin – alude a um conjunto de manifestações clínicas que, nos

seus mais de 100 anos de história, ordenaram-se das mais variadas maneiras.

Não obstante, apesar da multiplicidade de definições, são recorrentes e

generalizadas as referências a alterações de linguagem, incompreensibilidade da

fala, incoercibilidade das ideias, perda de contato com a realidade, presença de

alucinações e delírios não sistematizados.

Como veremos detalhadamente no percurso deste trabalho, Freud procurou

compreender esses sintomas a partir da perspectiva que foi a sua: o jogo pulsional

no marco do aparelho psíquico, o funcionamento regressivo do aparelho, a perda

da ligação libidinal com os objetos – regressão ao narcisismo –, a Verleugnung da

realidade, a projeção, o fracasso no exame da realidade.

O interesse despertado pela psicanálise nos psiquiatras de Zurique

encoraja Freud a formular uma série de hipóteses polêmicas a respeito da psicose

e da esquizofrenia. Nesse conflituoso diálogo entre diferentes campos do saber,

delimitam-se melhor tanto os campos quanto os saberes envolvidos. Freud

sustenta a existência de um aparelho psíquico, aparelho que tem a linguagem e a

pulsão como os eixos principais de seu funcionamento. A psiquiatria, fiel aos

preceitos propostos por Bichat para a medicina, inclina-se para o orgânico; tende a
7

colocar o cérebro e as faculdades mentais – pensadas como estando alojadas

nele – no centro de suas reflexões.

Já nas primeiras obras de Freud, inclusive as do período pré-psicanalítico,

encontram-se abundantes apontamentos a respeito dos processos psicóticos, da

causalidade das doenças mentais e das diferenças entre o ponto de vista da

psicanálise e o da psiquiatria. É percorrendo as obras do período de 1907 a 1916,

porém, que se encontram as contribuições mais significativas para a construção

de uma concepção psicanalítica tanto da esquizofrenia como da psicose.

Efetivamente, são desse período a clássica análise do livro de Schreber e a

interpretação da onipotência das ideias realizada em Totem e tabu, trabalhos que

antecipam a introdução formal do narcisismo em 1914 – a maior contribuição feita

por Freud ao estudo da psicose. Também desse período são os cinco trabalhos

que constituem a metapsicologia, quando Freud articula o momento narcisista da

pulsão com as hipóteses metapsicológicas da primeira tópica.

No reexame dessas obras de Freud, deparei com a problemática

metapsicológica da coisa e da palavra, articuladas com a do inconsciente, para

pensar a esquizofrenia. De forma condensada e sucinta, Freud apresenta a

fórmula que elaborara: na esquizofrenia “predomina a referência à palavra sobre a

referência à coisa”.1 As palavras ocupam o lugar das coisas. Essa afirmação

mantinha em mim parte do fascínio que a fez tornar-se famosa e frequentemente

invocada pelos analistas. Mesmo assim, perguntava-me qual seria o alcance dela.

Até que ponto, nos dias de hoje, ela continuava a iluminar o obscuro território da

1 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. In: AE, vol. XIV, p. 197.


8

esquizofrenia? Qual seria sua validade e consistência se a ela integrássemos

algumas das contribuições mais atuais extraídas da linguística, da filosofia e da

psicanálise pós-freudiana?

Além disso, como veremos detalhadamente nesta tese, para a elucidação

das “alterações de linguagem” na esquizofrenia, palavra e coisa foram ligadas por

Freud a um intrincado sistema no qual pulsões, lugares do psiquismo e

representações – de palavra, de coisa e de objeto – articulam-se de maneiras

complexas. Para pensar a linguagem, Freud recorre a uma teorização cuja

inspiração encontra-se em sua monografia sobre as afasias de 1891, magnífico

trabalho no qual surge também a referência a Stuart Mill e ao nominalismo inglês.2

Se questionássemos esse fundamento, como poderiam ser pensadas as

alterações de linguagem da esquizofrenia? Qual a relação linguagem/pulsão na

esquizofrenia? O que a esquizofrenia pode trazer à discussão em torno das

relações entre corpo, linguagem e pulsão?

Na relação coisa/palavra situa-se um dos eixos da problemática que me

ocupa. Foi seguindo os elos dessa ligação que, além das freudianas, procurei

outras referências as quais deram fundamento a minhas reflexões.

As palavras e as coisas: referenciais teóricos

Tanto Lacan, na psicanálise, como Foucault, na filosofia, sustentam outras

formas de conceber a relação palavra/coisa. Para ambos, as determinações da

linguagem não advêm da sua ligação com as coisas. No caso de Lacan, inspirado

2 Como afirma Assoun, “é desse nominalismo experimental que Freud faz uso nessa
ocasião”. ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
1993, p. 79. Reminiscências dessa concepção comparecem nos trabalhos da
metapsicologia, fazem-se presentes na concepção de realidade e atravessam a
psicanálise freudiana como um todo.
9

numa concepção estrutural da linguagem apoiada em Saussure, o primado da

palavra, do “significante”, é absoluto; o homem é falasser; o ser do homem é só

linguagem – ao menos na primeira fase de seu pensamento. Para Foucault, na

modernidade a linguagem se independentiza da relação com as coisas que, na

idade clássica, era-lhe garantida pela representação. Na modernidade, as

palavras remetem a outras palavras, num jogo sem fim. Para Foucault, a palavra –

o enunciável – não fundamenta a dimensão do visível; palavra e coisa são

irredutíveis uma á outra.

Dentre as diferentes correntes que fazem parte do universo conceitual da

psicanálise, a francesa, influenciada pela obra de Lacan e, por isso, envolvida com

as discussões que abrangem a linguagem – e diretamente articulada às minhas

próprias questões – oferecia amplo material para desenvolver esta pesquisa. Foi

em autores marcados por esse debate, tais como Perrier, Aulagnier, Leclaire,

Green, Dor, Hassoun, Viderman, Laplanche, Fédida, O. e M. Mannoni, Dolto, entre

outros, que o diálogo sobre a relação da palavra com as coisas encontrou pontos

de articulação para a compreensão das questões suscitadas pelos casos clínicos,

sem que isso significasse adesão incondicional ou filiação a uma ou outra dessas

correntes.

A leitura do livro de Agamben, Infância e história 3 fez-nos lembrar que a

linguagem está no mundo e o infans precisa apropriar-se dela. Essa apropriação

nem sempre é feita com sucesso, porém. Em alguns casos de esquizofrenia, há

eliminação nas falas do pronome pessoal eu, recorrendo-se, então, a modos

3 AGAMBEN, G. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.


10

alternativos de referir-se a si mesmo. Contribuições provindas da linguística

podem iluminar melhor esse fenômeno. Tal é o caso dos pares conceituais língua

e fala (Saussure) ou semiótico e semântico (Benveniste).4 A partir dessas noções

pôde-se formular a existência, na esquizofrenia, de uma linguagem acéfala, uma

língua sem discurso.

Para Foucault5 , a sujeição à linguagem condiciona a própria existência dela,

e é só a partir dessa “obediência” que se abre a possibilidade de o homem utilizá-

la para significar o desejo que o anima. Tal sujeição apresenta na esquizofrenia

conotações trágicas. O peso da submissão à linguagem não dá lugar a nenhuma

liberdade; a linguagem é sentida como um Outro avassalador que ameaça

aniquilar o sujeito.

Para concluir as breves referências teóricas que orientam este trabalho,

cabe afirmar o marco geral no qual ele se realiza: o Laboratório de pesquisa em

Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. A Psicopatologia Fundamental6, proposta

inicialmente por Fédida, hoje sustentada por Manoel Tosta Berlinck e um grande

grupo de pesquisadores que ultrapassa as fronteiras de vários países, tem como

uma de suas determinações conceituais a oposição ao Geral, da Psicopatologia

geral proposta por Jaspers.7 A procura da captação do íntimo da subjetividade,

4Agamben articula ambas as noções na construção dos conceitos de infância e história.


Cf.: op. cit.
5 FOUCAULT, M. Las palabras y las cosas. México: Siglo XXI, 1969. Tradução livre do
espanhol a partir do original em francês.
6 BERLINK, M. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
7 BERLINK, M. O fundamental da Psicopatologia fundamental. Rlatinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, vol. VII, n° 3. São Paulo: Escuta, set. 2004, pp. 7 a 11.
BERLINK, M. Editorial. Revista latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. V, n
°2. São Paulo: Escuta, jun. / 2002, pp. 7 a 11.
11

incluindo nela as determinações inconscientes, é um dos objetivos de existência

de tal Psicopatologia. Para essa orientação, o estudo de casos clínicos

desempenha papel fundamental; cada caso precisa ser pensado como único e

capaz de gerar a metapsicologia que o sustente. Essa visão marcou a elaboração

da presente tese e, por se tratar de casos de psicose, tornou-se decisiva: na

abordagem de pacientes psicóticos, a singularidade transforma-se em condição

sine qua non para dar início a qualquer tarefa. Assim, os casos clínicos têm na

presente tese uma presença marcante.

Os casos clínicos

As questões teóricas abordadas na tese encontram-se tramadas junto com

as clínicas; de fato decidi deixar-me levar pela clínica e quis que alguns casos

suscitassem os problemas. Do conjunto de historiais clínicos levantados no

Hospital São João de Deus escolhi dois: Mané e Edgar.

A primeira escolha deveu-se ao fato de o paciente apresentar uma brutal

passagem ao ato envolvendo o próprio corpo que me produzira grande impacto;

escrever uma experiência é um modo de elaborá-la. Também pesou na escolha o

fato de tratar-se da primeira internação de Mané, seu primeiro surto, e, por isso,

estar ele livre de intervenções desconhecidas. Seu delírio místico foi outro dos

motivos; religião e loucura possuem bordas comuns que desafiam o clínico.

A escolha do segundo caso, Edgar, deveu-se ao fato de envolver o pai

como questão central; além disso, houve o contato com a mãe dele, figura muito

significativa; finalmente, como se tratava de um caso crônico, possibilitava

comparações – aliás, a construção dos casos foi feita num permanente diálogo
12

entre eles. A questão da homossexualidade aparece como central em Edgar,

atravessa sua experiência delirante e está presente na transferência. O fato de ele

apresentar uma transferência delirante possibilitou também tecer algumas

considerações a respeito desse conceito crucial da psicanálise no caso da

psicose.

Por fim, o terceiro caso, Wolfson, apresentado nesta tese em primeiro lugar,

não provém de meus contatos no Hospital São João de Deus, e sim do material

oferecido pelo livro do próprio Wolfson, Le schizo et les langues8 – uma

extraordinária narração do processo esquizofrênico feita pelo seu protagonista.

Esse material permitiu abordar as alterações de linguagem numa das formas mais

extremas. Nenhum dos casos que eu havia entrevistado possuía a mesma

riqueza. O radicalismo da decomposição/reconstrução/destruição da linguagem,

presente em Wolfson, descrita minuciosamente por ele, constitui um material raro,

excepcional; não por acaso inspirou numerosos trabalhos. Esse radicalismo pôde

ser comparado com os modos moderados dos outros casos analisados,

possibilitando discernir semelhanças e diferenças e, assim, permitindo constatar a

diversidade de procedimentos que alteram a linguagem na esquizofrenia.

Assim, os temas suscitados pelos casos acabaram por se constituir como

temáticas fundamentais para esta tese, coluna vertebral deste trabalho. A escuta e

a discussão desses casos de esquizofrenia deslocaram o eixo de minhas

inquietações e deram lugar à hipótese central do trabalho. Se inicialmente

8 WOLFSON, L. Le Schizo et les langues. Paris: Gallimard, 1970. Tradução livre do


original francês.
13

preocupava-me com os modos de conceber a linguagem, com o papel do

percebido em relação com o enunciado – a relação das palavras com as coisas –

o trabalho com pacientes psicóticos obrigou-me a pensar algo axial: a linguagem

na esquizofrenia perde sua razão fundamental, deixa de se constituir em modo de

estabelecimento de laço com o outro. Essa afirmação tornou-se uma hipótese

heurística central das minhas reflexões. Desse modo, os neologismos, as

esquisitices de linguagem apresentaram-se mais ligadas à falta de endereçamento

da linguagem para um outro do que à perda de ligação das palavras com as

coisas. A hipótese freudiana de uma ruptura com o mundo e com os outros na

psicose se encena também no campo da linguagem.

O envolvimento da linguagem na esquizofrenia possui múltiplas formas.

Numa delas procura-se recuperar os laços perdidos – o “segundo tempo” da

psicose proposto por Freud. Para expressar as maneiras extremamente

complexas e variadas dessa religação com o mundo e a linguagem temos usado o

termo procedimento.9 Nos casos analisados há sempre um procedimento, um

método, um caminho, uma forma peculiar e única de tentar a restituição da ligação

com o outro e com o “nós” da linguagem.

Além disso, a esquizofrenia, mais do que outros quadros, testemunha

também a insuficiência da linguagem para o encaminhamento dos fluxos

pulsionais. Os pacientes estão submetidos a fortes impulsões que determinam

“passagens ao ato”, envolvendo muitas vezes o próprio corpo, sem que a

9Termo que tomamos emprestado de Deleuze. DELEUZE, G. Schizologie. In: WOLFSON,


L. Le Schizo et les langues. Op. Cit. Também em DELEUZE, G. Louis Wolfson ou o
procedimento. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2008.
14

linguagem possa exercer qualquer papel moderador. As palavras na esquizofrenia

são subvertidas, corrompidas, pela maciça presença de intensidades à procura de

processamento imperioso, ficando, assim, como à deriva.

Da organização do material

Esta tese se organiza em três capítulos precedidos por esta introdução, e

seguidos por considerações finais que antecipam a conclusão, em que se expõem

as questões conceituais e a sustentação clínica e teórica das hipóteses que

nuclearam o trabalho. No Capítulo I – Esquizofrenia: entre psiquiatria e psicanálise

– apresenta-se parte da longa pesquisa a respeito do discurso psiquiátrico sobre a

esquizofrenia e retomam-se três orientações que nortearam a evolução dos

discursos sobre a esquizofrenia ao longo do século XX. O Capítulo II – A

esquizofrenia em Freud – inclui o conjunto das contribuições freudianas a respeito

da esquizofrenia, especialmente as relacionadas às alterações da linguagem, bem

como as discussões por ele travadas com a psiquiatria da época, e, também, as

inquietações provocadas por esses posicionamentos. Tais inquietações

determinaram a procura de outras ferramentas teóricas para tratar do tema, seja

na filosofia, na linguística ou na psicanálise pós-freudiana. O Capítulo III – Os

casos clínicos: Wolfson, Mané e Edgar – constitui o centro da pesquisa. Como já

dito, a partir deles foram sendo introduzidos instrumentos conceituais que

permitiram aprofundar o tema desta tese. Foi também a partir deles que se tornou

possível apresentar problemas e questionamentos teóricos, bem como diversos

assuntos que considero importantes para a clínica da esquizofrenia.


15

Por fim, uma das questões decisivas da Psicopatologia Fundamental

aponta para o questionamento dos reducionismos e das pretensões hegemônicas

de qualquer um dos saberes ligados ao pathos, sejam eles oriundos da psiquiatria,

da psicanálise, da genética ou das neurociências. A crítica aos reducionismos

orientou e guiou os passos desta tese.


16

CAPÍTULO I

ESQUIZOFRENIA: entre psiquiatria e psicanálise

1. Da demência precoce à esquizofrenia

O universo semântico do termo esquizofrenia é muito amplo e sofreu

variações significativas, em decorrência tanto das descrições clínicas com que foi

associado, como das hipóteses etiológicas que foram sustentadas. Suas

especificações fundamentais pertencem à psiquiatria desenvolvida por Bleuler nos

inícios do século XX na clínica Burghölzli, de Zurique, e tal psiquiatria recebeu

influência, por um lado, da tradição psiquiátrica alemã do século XIX – Kraepelin

em especial –, e, por outro, da psicanálise criada por Freud. Interessa-nos situar

ambas as influências na construção do conceito de esquizofrenia, dando destaque

tanto para as questões que envolvem a linguagem, como para as ligações e

rupturas com a psicanálise.

O conceito de demência precoce

Embora seja frequente atribuir a Morel a primazia do termo dementia

praecox, o sentido a ele atribuído por Kraepelin – entidade mórbida – é

radicalmente diferente e inédito.10 Enquanto categoria nosográfica, dementia

praecox (doravante demência precoce) aparece pela primeira vez em 1893,

10 De acordo com Bercherie (Os fundamentos da clínica: História e estrutura do saber


psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p.117), a assimilação de ambos os
conceitos “baseou-se apenas numa homonímia e num sólido chauvinismo”. Já Berrios
(Historia de los síntomas de los trastornos mentales. México: Fondo de Cultura
Económico, 2008, p. 248) considera a definição de dementia praecox de Morel mais
próxima daquilo que Georget chamou de stupidité do que o sentido proposto por
Kraepelin. Tradução livre do espanhol a partir do original em inglês.
17

quando da publicação da quarta edição do seu Tratado de psiquiatria.11 Em suas

célebres lições de psiquiatria clínica 12, Kraepelin descreve diligentemente o quadro

proposto. Ali afirma que padecem dessa doença pessoas desinteressadas com o

que acontece a seu redor, faltos de desejo e vontade, afetivamente apáticos, com

uma verbalização desordenada e incoerente – evidência de uma debilidade nos

julgamentos –, as quais, apesar de apresentarem esses sintomas de deterioração,

são capazes de compreender o que se fala e manter inalterada sua memória. O

quadro assim descrito é definido como uma entidade mórbida, uma doença mental

e emocional incurável que, por sua semelhança com as demências da velhice foi

11 Elaborado por sugestão de seu mestre Wundt, e inicialmente de proporções modestas,


o Tratado e suas oito edições culminaram não só em volumoso texto, como em referência
obrigatória para a psiquiatria da época, em especial a europeia. No que se refere à
demência precoce, as diferentes edições introduziram modificações substanciais. Na
quarta edição (1893), é concebida na categoria dos processos psíquicos degenerativos e
compreende três formas: a) dementia praecox, subdividida em dois tipos, branda e grave
(hebefrenia); b) catatonia, c) dementia pananoides. Na sexta edição (1899), a dementia
praecox assume o lugar de doença única, compreendendo os três tipos anteriores como
formas clínicas dela: catatonia (originalmente descrita por Kahlbaum); hebefrenia
(inicialmente exposta por Hecker) e dementia pananoides. A forma paranoide tornou-se a
categoria mais controversa, pois confrontava-se com a tradição psiquiátrica francesa,
acostumada a discriminar delírios crônicos de evolução não necessariamente demencial.
Influenciado pelas críticas, Kraepelin separará mais tarde a paranoia e a parafrenia das
formas paranoides da demência precoce. Na oitava (e última) edição do Tratado de
psiquiatria, que se prolongou por cinco anos (1909-1913), a lista de sintomas associados
à doença comporta cerca de 50 itens minuciosamente consignados, incorporando muitos
dos sintomas descritos por Bleuler, assim como acrescentado outros, derivados da crítica
de diversos autores. Uma separata do capítulo dedicado à demência precoce com base
nessa oitava edição foi recentemente republicada: KRAEPELIN. E. La demencia precoz.
Buenos Aires: Polemos, 2008.
12 Introdução à psiquiatria clinica (Einführung in die Psychiatriche Klinik) está organizado
como uma série de aulas magnas de apresentação de pacientes, o que favorece as
descrições. O texto representa uma amostra cabal do modo como a psiquiatria era
transmitida nos hospitais em finais do século XIX. KRAEPELIN, E. Introducción a la clínica
psiquiátrica. Madrid: Ediciones Nieva, 1988. Há também uma versão em português da
terceira lição dedicada à demência precoce: KRAEPELIN, E. Introdução à psiquiatria
clínica (1905) Terceira lição: Demência precoce. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia fundamental, vol. IV, n°4. São Paulo: Escuta, dez./2001.
18

denominada demência precoce.13 Em sua forma paranoide, um conjunto de ideias

delirantes, quixotescas e absurdas, acompanhado de maciça produção de

neologismos, dão forma ao quadro clínico que pode manter-se inalterado por

longos períodos, até mesmo décadas. Além disso, os delírios, quando aparecem,

carecem de coerência e não evoluem para formas sistematizadas, caracterizando-

se por sua pobreza.

Junto ao transtorno da afetividade e do raciocínio, destacam-se também os

inícios insidiosos e imprecisos da doença, sua longa evolução e o desenlace final

para um estado demencial. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a descrição

sintomática e o curso da doença – particularmente os aspetos evolutivos – são os

critérios que orientam a nosologia kraepeliana.14 Foi esse o caso em relação à

demência precoce; um dos elementos definidores para seu diagnóstico é a fase

terminal demencial que, na opinião de Kraepelin, se ainda não está presente, pode

ser prevista antecipadamente.15

Discípulo de Wundt, Kraepelin sempre sustentou, como seu mestre, o

pressuposto de um paralelismo psicofísico. Também assim, e nos passos da

tradição psiquiátrica alemã da época, considerava a doença mental, e a dementia

praecox em particular, decorrentes de perturbações de ordem cerebral, sendo

esse o norte que fundamentou suas pesquisas.

13 Cf.: KRAEPELIN, E. Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit., pp. 42 e 43. Tradução
livre do espanhol a partir do original em alemão.
14 Ver a respeito: BERCHERIE, P. Op. cit., p. 165.
15 Paralelamente à demência precoce e à paranoia, e em oposição a elas, apesar das
inúmeras modificações efetuadas no Tratado, Kraepelin manteve sempre a categoria
loucura maníaco-depressiva, caracterizada pelos transtornos do humor; essa oposição
ficou conhecida como dicotomia kraepeliana.
19

A paralisia geral progressiva (PGP) é o modelo que inspira Kraepelin para

pensar todos os estados demenciais, inclusive os de aparecimento precoce.

Apesar de reconhecer diferenças entre os diversos estados de demência16, as

alterações orgânicas cerebrais se apresentaram para Kraepelin como o caminho

certo a investigar na etiologia da demência precoce. A despeito do reconhecimento

daquelas diferenças, considerou possível “individualizar sinais repetidos e

características que conservam certa peculiaridade nosotáxica”.17

Concebeu a doença como tendo existência real e natural, passível de ser

desvendada pelo médico com independência de si mesmo e com o mesmo status

ontológico daquilo que outros cientistas pesquisavam como objetos do mundo

físico. A doença, assim concebida, apoderava-se do doente, transformando-o.

As alterações da linguagem são claramente descritas por Kraepelin entre os

sintomas da demência precoce: frases ininteligíveis, fala insubstancial, confusão

na linguagem, profusão de neologismos. Contudo, se a linguagem altera-se, isso

ocorre como decorrência do processo mórbido e, assim, não comportaria

nenhuma tentativa de expressão sob formas não reconhecidas. Esse será um dos

pontos de ruptura das posições sustentadas em Burghölzli, tanto por Bleuler como

por Jung. Porém, foi tomando como base as elaborações de Kraepelin, que

Bleuler introduziu o termo esquizofrenia, denominação que acabou eclipsando a

de demência precoce.

16 A título de exemplo, pode-se apontar diferenças entre o estado terminal da PGP, que
apresenta uniformidade dos sintomas decorrentes de alterações anatômicas no córtex
cerebral, e os estados terminais dos diversos tipos de demência precoce, com sua
diversidade de sintomas e riqueza muito variada de formas.
17 KRAEPELIN, E. Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit., p. 217.
20

A figura de Bleuler é bem conhecida pelos psicanalistas por sua longa

interlocução com Freud na primeira década do século XX. Poder-se-ia dizer que

sua influência, junto com a de Jung – na época jovem médico interno na clínica

helvécia –, tiveram grande peso para que Freud se aproximasse dos fenômenos

psicóticos. Freud acompanhou com interesse as mudanças surgidas em Zurique,

ficando particularmente atraído pela consideração dos fenômenos de linguagem.

Nas reuniões das quartas feiras, concretamente na de 6 de fevereiro de 1907, o

ensaio de Jung A psicologia da demência precoce foi lido e comentado por

Freud.18 No centro da discussão esteve a questão do sentido ou sem sentido dos

sintomas e sua relação com as “privações impostas pela vida” nos pacientes. Na

ocasião, Freud sustentou que demência precoce não era uma denominação

moderna, e que os pacientes não eram nem dementes nem precoces – questões,

como veremos, cruciais para Bleuler.

O conceito de esquizofrenia

Demência precoce. O grupo das esquizofrenias é o título de uma

monumental monografia 19 escrita por Eugen Bleuler em 1908 e publicada pela

primeira vez em 1911. Nas primeiras páginas do trabalho, e já no título, Bleuler, ao

apresentar sua obra, reconhece que ela dá continuidade às elaborações feitas por

Kraepelin em anos anteriores; sua proposta a respeito da esquizofrenia,

entretanto, representa muito mais do que uma mudança terminológica. Com efeito,

18Ver a respeito: NUNBERG, H. e FEDERN, E. (org.), Actas de la Sociedad Psicoanalítica


de Viena, Las reuniones de los miércoles, tomo I: 1906-1908. Buenos Aires: Ediciones
Nueva Visión, 1979, pp.124 a131.
19 BLEULER, E. Demencia precoz. El grupo de las esquizofrenias. Buenos Aires: Hormé,
1993. (As citações em português são de tradução livre a partir da versão ao espanhol do
original alemão.)
21

sua definição da esquizofrenia como “um grupo de psicoses cujo desenvolvimento

é às vezes crônico e às vezes marcado por ataques intermitentes, que pode deter-

se ou retroceder em qualquer etapa, embora não permita uma completa restitutio

ad integrum,20 marca diferenças fundamentais com relação à definição

kraepeliana.

Um dos pontos substanciais dessa diferença refere-se à demência. Disse

Bleuler: “Em nenhuma outra afecção designa-se mais inadequadamente a

perturbação da inteligência com os termos ‘demência’ e ‘imbecilidade’ que na

esquizofrenia”.21 Efetivamente, Bleuler não vê na esquizofrenia traços

característicos da demência orgânica: “não há perda definida das imagens da

memória”.22 Também não vê idiotice congênita – a inteligência é conservada

apesar da pobreza geral dos estados avançados da doença. O desenlace, tão

patognomônico na concepção kraepeliana de demência precoce, também não

está garantido: a doença pode deter-se ou retroceder, mesmo que a recuperação

nunca seja total e completa. O início precoce é igualmente questionado: há casos

de começo tardio. Na definição, Bleuler fala no plural, “um grupo de psicoses”,23 e

elas são definidas como conceitos psicopatológicos, não mais como entidades

mórbidas de existência concreta.

20 BLEULER, E. Op. cit., p. 15.


21 BLEULER, E. Op. cit., p. 80.
22 BLEULER, E. Op. cit., p. 80.
23 Para Bleuler, a esquizofrenia constitui um grupo que pode subdividir-se em: 1.
paranoide, com predominância de alucinações e ideias delirantes; 2. catatônica, com
predomínio de sintomas catatônicos; 3. hebefrênica, de escassa sintomatologia acessória;
e 4. esquizofrenia simples. Diferencia-se das psicoses orgânicas (PGP, demência senil,
Korsakow), dos estados epilépticos, da idiotia, da paranoia, da psicose maníaco-
depressiva e de outras.
22

A esquizofrenia é caracterizada, então, por um tipo especial de alteração do

pensamento, dos sentimentos, da relação com o mundo, e por um desdobramento

das funções psíquicas que pode chegar até à perda da unidade da personalidade

como um todo. Essa clivagem – Spaltung – da personalidade é diacrítica e, por

isso, comparece na nova denominação adotada: esquiz(o) significa fender,

separar, clivar.

Uma das determinações mais importantes do conceito de esquizofrenia de

Bleuler foi a divisão dos sintomas em fundamentais e acessórios. Fundamentais

são os que estão presentes em todos os casos e em todos os períodos da

doença, apesar de, nos estágios iniciais, serem de difícil reconhecimento.

Acessórios são sintomas tais como delírios, alucinações ou catatonia, que podem

estar completamente ausentes ou serem tão presentes que tingem por completo o

quadro, apagando em parte os que são patognomônicos.

Entre os sintomas fundamentais, figuram os transtornos da associação, da

afetividade, da atenção, do contato com a realidade, da vontade, da

personalidade, da atividade e do comportamento.

Bleuler enfatiza o que chama “perturbações da associação”. As ideias

perdem sua continuidade, o pensamento torna-se ilógico, extravagante. Duas

ideias que se encontram casualmente se combinam, formando uma lógica

baseada nas circunstâncias, ou condensam-se, ou ainda uma delas torna-se

prevalente obstruindo as outras. O pensamento não é dirigido por uma ideia geral,

por um conceito unificador de finalidade ou de objetivo, e com isso se soltam os

elos que fazem inteligível o discurso. Disse a esse respeito Bleuler: “Só o conceito
23

dirigido a uma meta solda os elos da cadeia associativa em um pensamento

lógico”.24 As representações meta, aqui invocadas, também fazem parte do

vocabulário freudiano; no entanto, para Freud, representação meta é aquela que

possibilita a manutenção do desejo, que orienta a ação na procura da satisfação, e

está, por isso, ligada ao inconsciente. Para Bleuler, a representação meta é o que

permite manter a coerência e a lógica.

São muitas as ilustrações clínicas 25 das perturbações da associação

incluídas na monografia de Bleuler; em todas, acentua-se o fato de as ideias

surgirem pelo mero fato de terem aparecido na consciência, perdendo-se, então,

por caminhos laterais dos mais irrelevantes. Note-se, porém, que é a linguagem o

terreno privilegiado em que se desenvolvem os exemplos propostos. Há várias

indicações disso: a fala orientada pelo som das palavras ( Witz-ein Nix-ein

Nietzsche, “sou um engenhoso, uma ondina, um Nietzsche”); as condensações de

ideias (“vela a vapor” como junção de barco a vela e barco a vapor); aquilo que o

24 BLEULER, E. Op. cit., p. 23.


25 Dos tantos exemplos fornecidos selecionamos a seguinte carta: “Querida mãe: hoje me
sinto melhor. Realmente não tenho muita vontade de escrever. Mas gosto de te escrever.
Depois de tudo, posso tentá-lo duas vezes. Ontem, domingo, teria me sentido melhor se
tivesse podido ir com você e com Luísa ao parque. Há uma bonita vista a partir do castelo
Stephan. Verdadeiramente fica-se muito bem em Burghölzli. Luísa escreveu Burghölzli em
suas duas últimas cartas, quero dizer nos envelopes , não, nos “couverts”, que recebi.
Porém, escrevi Burghölzli no lugar onde coloquei a data. Também há em Burghölzli
pacientes que o chamam Holzliburg. Outros falam de uma fábrica. Também pode ser
considerado lugar de cura. Estou escrevendo sobre papel. A pena que estou usando é de
uma fábrica chamada Perry & Co. Essa fábrica fica na Inglaterra. Presumo isso. Atrás do
nome Perry & Co. está escrito o da cidade de Londres, mas não a cidade. A cidade de
Londres fica na Inglaterra. Sei isso desde meus dias escolares. Então sempre gostei de
geografia. Meu último professor nessa matéria foi Augusto A. Era um homem de olhos
pretos. Também gosto dos olhos pretos. Também há olhos azuis, e cinzas, e de outras
cores. Ouvi dizer que as cobras têm olhos verdes. Todas as pessoas têm olhos. Há
algumas que são cegas. Esses cegos são guiados por crianças. Deve ser muito terrível
não poder ver. Há pessoas que não podem ver nem ouvir”. BLEULER, E. Op. cit., pp. 24
e 25.
24

autor denomina “tocar e nomear” (o paciente simplesmente nomeia os objetos

listando o que vê ou toca: “espelho”, “mesa”, “este é um barômetro”); a nomeação

de atividades (“agora ele se senta”, “agora ele quer escrever”); o uso frequente da

terceira pessoa para referir-se ao próprio indivíduo. Mesmo assim, Bleuler insiste

em pensar esses sintomas como forma de associação reconhecível e distingue

cuidadosamente os transtornos de associação dos de linguagem. Como

característica desses últimos, assinala uma gradação que vai da fala continuada

ou excessiva, muitas vezes desligada do contexto ambiental, até o mutismo.

Aponta serem abundantes os neologismos que podem chegar a constituir uma

“linguagem artificial”. Mas o que de fato descreve de forma impressionante os

transtornos da linguagem é a “salada de palavras”: frases que resultam

completamente ininteligíveis apesar de estarem constituídas por palavras de uso

comum.

Na apreciação do conteúdo das falas, a questão da significação acaba se

impondo: “As palavras e frases chamativas que utilizam nossos pacientes não

podem ser consideradas como cascas vazias,26 e sim como conchas que ocultam

um conteúdo diferente do usual”.27 O paciente fala numa língua diferente da do

médico. Nesse ponto, fica patente que Bleuler se distancia da tradição psiquiátrica

alemã da época e se aproxima da psicanálise: há nas palavras dos doentes uma

significação, senão inconsciente, ao menos cifrada.

26 “Cascas de palavras” foram os termos propostos por Kraft-Ebbing para definir essas
alterações da linguagem. BLEULER, E. Op. cit., p. 160.
27 BLEULER, E. Op. cit., p. 160.
25

A significação oculta da linguagem também é protagonista no que Bleuler

chama complexos: conjuntos de ideias fortemente carregadas de afetividade. Os

complexos são invocados para justificar bloqueios; participam na construção das

ideias delirantes, determinam alucinações e fazem parte de diferentes aspetos da

vida sexual dos pacientes.

A consideração dos complexos é outro ponto de grande aproximação e

diálogo com a psicanálise. Como se verá, a vida afetiva foi posta em destaque por

Freud como via de reconhecimento do peso do anímico sobre o somático. É por

meio dos afetos que Freud consegue vencer a tendência, marcante na época, de

pensar o psíquico como derivado do somático. A significação afetiva deslocou nele

o eixo da procura: não o cérebro, mas os conflitos de ordem afetiva. Embora

complexo não tenha a mesma significação na obra de Freud que na de Bleuler, e

seja mais ligado à de Jung, é pela revalorização do papel patogênico da vida

afetiva contida nos complexos que se pode constatar a influência do vienense

sobre os autores da escola de Zurique.

Além da presença dos complexos, no campo da afetividade, a deterioração

emocional dos esquizofrênicos aparece descrita em primeiro plano. Os rostos

tornam-se inexpressivos, abatidos e indiferentes. Os afetos, quando aparecem,

são incongruentes. O riso é imotivado, inoportuno. São comuns as mudanças

bruscas do humor, bem como a capacidade inusitada de conservar emoções

passadas com grande vivacidade. Irritabilidade, cólera e fúria, junto com

negativismo, tornam difícil o trato com esses pacientes. Às vezes aparece grande

resistência a fome, sede, frio, à falta de sono ou a fenômenos como a visão direta
26

do sol, evitada em situações normais. A ambivalência é outro dos traços

fundamentais considerados por Bleuler; ela transcende o campo afetivo e invade a

vontade e o intelecto.28

A psicanálise também se faz presente na consideração de Bleuler a

respeito da relação entre a vida interior e o mundo exterior. No esquizofrênico,

afirma ele, a vida interior assume preponderância patológica, originando

desinteresse pelo mundo e abulia. Essa preponderância é chamada autismo. O

afastamento da realidade, característica do autismo, converge com alguns dos

traços do autoerotismo e o narcisismo freudianos, não obstante ser divergente a

consideração da sexualidade. O autismo bleureriano é autismo sem Eros. Como

veremos, a consideração do sexual será um dos pontos de maior resistência da

escola de Zurique; tanto Jung como Bleuler a excluíram de suas concepções.

Na descrição de Bleuler, os sintomas acessórios são bastante variados.

Destacam-se as alucinações – preponderantemente auditivas,29 ou ligadas a

28“Quando a gente expressa um pensamento sempre vê o pensamento oposto. Isso fica


tão intenso e rápido que a gente não sabe qual foi o primeiro”, relata-lhe um paciente.
BLEULER,E. Op. cit., p. 62.
29 Os pacientes “escutam sopros, zumbidos, rangidos, tiros, trovões, matracas, música,
gritos, risadas, sussurros, conversas” (BLEULER, E. Op. cit., p. 105), embora a mais
assídua das manifestações seja a escuta de falas. As escutas de “vozes” são expressão
patognomônica e costumam ser contraditórias: do bem e do mal, afirmativas ou negativas,
vozes que ordenam, criticam, ofendem. O pensamento pode ser escutado como um eco
falado. O que se escuta é sempre breve, algumas palavras nem sempre claras, mas o
sentido atribuído a elas não deixa dúvidas.
27

sensações corporais 30 –; os delírios 31 – sem unidade lógica nem detalhes

organizados num sistema – constituem uma massa amorfa de ideias incoerentes

entre si sem que isso ocasione conflitos ou gere contradições na visão do

paciente.

Depois de analisar os diferentes subgrupos, de dedicar-se aos critérios

diagnósticos, ao curso habitual da doença e a seu prognóstico, Bleuler muda de

rumo. Propõe, então, nova subdivisão da sintomatologia: sintomas primários e

sintomas secundários.32

Sintomas primários são considerados os fenômenos necessários para que

se produza a doença e, apesar de Bleuler afirmar “não conhecer ainda com

30 “Os pacientes sentem que batem neles, queimam-nos; atravessam-nos com agulhas
incandescentes, com punhais ou com lanças; retorcem-lhes os braços; dobram-lhe para
trás a cabeça; encurtam-lhes as pernas, arrancam-lhes os olhos, de modo que no espelho
lhes parece tê-los fora das órbitas; prensam-lhe a cabeça; esticam ou alongam seu corpo
como um acordeão.” BLEULER, E. Op. cit., p. 110.
31 As ideias delirantes expressam tudo que o paciente deseja e teme. Mas é
particularmente presente o delírio de perseguição. Trata-se de injúrias, calúnias,
difamações das quais o paciente é vítima. Exercem-se complôs contra ele. O dano
causado atinge com frequência o corpo, os olhos, os órgãos sexuais. Injetam-lhes
substâncias prejudiciais pelos orifícios corporais, tentam envenená-lo. Também são
comuns ideias de grandeza. A nobreza e outras posições de poder, a inteligência superior,
a realização de grandes inventos, a posse de poderes especiais combinam-se com ideias
persecutórias de roubo, acossamento, complôs que se armam contra o paciente em
decorrência de sua superioridade. Forças opositoras impedem-no de obter o
reconhecimento e a fama que merece. Estão também presentes as ideias delirantes de
cunho religioso: Deus, Jesus, conversam com ele; ele próprio é Deus ou tem uma missão
salvadora. Delírios eróticos combinam-se às vezes com os de grandeza e perseguição.
Ideias hipocondríacas ganham coloridos persecutórios: roubo de órgãos, transformação
do conteúdo corporal, excrementos que preenchem a cabeça, petrificação de partes do
corpo. Ainda aparece a ideia de estar possuído por forças, entidades ou pessoas.
32O modelo empregado para explicitar a lógica da divisão proposta é a osteomalacia. Diz
Bleuler: “[na osteomalacia] os processos químicos e fisiológicos, incluindo a
descalcificação dos ossos, constituem o processo patológico. A fragilidade dos ossos é
uma consequência direta das mudanças que se produzem neles. Em troca, uma fratura
ou um encurvamento ósseo só poderá produzir-se devido à ação direta de forças
exteriores. Essas manifestações subsequentes à doença não são o resultado de um
mesmo processo patológico, e sim da resposta alterada dos ossos frente a influências
acessórias”. BLEULER, E. Op. cit., p. 361.
28

certeza os sintomas primários da doença cerebral da esquizofrenia”,33 considera

“a perturbação da associação como primária”34 . O “ainda” expressa claramente a

crença que anima Bleuler: os sintomas primários da doença esquizofrênica são de

natureza orgânica cerebral. “Sentimo-nos tentados a crer que são a expressão de

graves processos cerebrais”.35 O restante da sintomatologia, praticamente a maior

parte dos sintomas elucidados, em sua pesquisa, com a intervenção dos

“mecanismos freudianos”, é de caráter secundário. A significação cifrada ligada

aos complexos, o autismo, o papel dos afetos trazem os conteúdos, o recheio

concreto de uma transformação que se encontra alhures, escondida “ainda” nos

meandros das circunvoluções cerebrais. Fica evidente que, nessa nova divisão, o

peso da tradição psiquiátrica da época falou mais forte que a psicanálise. Mesmo

assim, a obra de Bleuler é referência obrigatória para o estudo da esquizofrenia, e

sua visão psicodinâmica, embora restrita aos sintomas secundários, inaugura uma

polêmica que se alongou por muitos anos.

2. Da esquizofrenia à esquizoidia

Ainda nos limites do discurso psiquiátrico, a noção de esquizoidia marca

uma mudança, operada também na psicanálise por outras vias. Com efeito, como

se verá, na obra de Freud as psicoses foram pensadas como quadros

inabordáveis pela psicanálise. Apesar da existência de uma gênese comum na

neurose e na psicose, e de uma visão integrada dos processos psíquicos válida

33 BLEULER, E. Op. cit., p. 362.


34 BLEULER, E. Op. cit., p. 363.
35 BLEULER, E. Op. cit., p. 365.
29

tanto para uma como para outra, a retração narcisista, postulada por Freud para

os processos psicóticos, traz como consequência a impossibilidade de fazer

transferência e, assim, torna a psicanálise inoperante para o tratamento da

esquizofrenia. Entre neurose e psicose postula-se uma separação, uma

descontinuidade.

A consideração do caráter no discurso da psiquiatria – para a esquizofrenia

o caráter esquizóide ou esquizotímico – fará parte de uma corrente preocupada

com questões dinâmicas e psicológicas. Introduzida por Kretschmer,36 continuada

por Kurt Schneider37 e presente também em Minkowski,38 as tipologias (de

temperamentos, caráter ou personalidade), apesar de serem pensadas como

constitucionais, incluem na sua descrição estados afetivos, traços psicológicos e

modos de relacionamento. Os tipos caracterológicos apoiaram-se inteiramente na

interação das tendências de personalidade do individuo com as experiências

36 Claramente posicionado contra o nazismo, Ernst Kretschmer (1888-1964) fez parte da


corrente psicodinâmica alemã que, apoiada em Moebius e influenciada por Freud,
questionou a noção de entidade mórbida de Kraepelin. Em trabalhos que tiveram ampla
repercussão, tentou correlacionar formas normais de temperamento (esquizotímico,
ciclotímico) com as duas grandes psicoses endógenas (demência precoce e psicose
maníaco depressiva) e com tipos particulares de estrutura corporal (pícnico, leptossômico,
atletico, etc.). cf. : BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da clínica: História e estrutura do
saber psiquiátrico, cit., p. 246.
37 Aluno de Jaspers, deve-se a K. Schneider um novo ordenamento dos sintomas da
esquizofrenia baseado exclusivamente em manifestações clínicas. Trata-se dos sintomas
de primeira ordem e dos segunda ordem. SCHNEIDER, K. Psicopatologia geral. São
Paulo: Mestre Jou, 1968, pp. 204-205.
38 Polonês de nascimento, francês por opção depois de um período de permanência na
clínica Burghölzli, Minkowski familiarizou-se profundamente com as ideias de seu diretor e
foi o principal responsável pela introdução de Bleuler no meio francês. Ver a respeito:
Costa Pereira M. E. A noção da perda de contato vital com a realidade na esquizofrenia
segundo Eugène Minkowski. Revista Latinoamericana de Psicopatologia fundamental,
vol. VII, n°4. São Paulo: Escuta, dez. 2005. Em 1927 Minkowski publica um livro A
esquizofrenia. Psicopatologia dos esquizoides e dos esquizofrênicos, referência
importante para o estudo da esquizofrenia. (MINKOWSKI, Eugène. La esquizofrenia.
Psicopatología de los estados esquizoides y los esquizofrénicos. México: Fondo de
Cultura Economica, 2000.)
30

vividas por ele.39 A distribuição das características em opostos facilita uma leitura

que inclui o conflito, embora só se trate de conflitos de disposições do caráter.

Essa visão trouxe uma nova forma de pensar a esquizofrenia. Dedicou-se

mais atenção às formas leves e aos traços comuns entre normalidade e patologia.

Ficou assim estabelecida uma série contínua entre estados normais de

temperamento e os desenvolvimentos graves e doentios dessas mesmas

predisposições latentes.40

É notável a coincidência dessa posição com os desenvolvimentos da

psicanálise posteriores a Freud. A escola inglesa de psicanálise, ao postular a

teoria das posições – esquizo-paranoide e depressiva – e fundamentar os quadros

psicóticos – esquizofrenia, paranoia e psicose maníaco depressiva – na

elaboração dos conflitos e defesas ligados a essas posições, propõe também uma

linha de continuidade entre normalidade, psicose e neurose. Embora sem apoiar-

se nos postulados de Kretschmer, a psicanálise de orientação kleiniana adere

também à ideia da existência de uma esquizoidia (uma posição esquizoide) como

fundamento da esquizofrenia.

Embora Minkowski não seja o inventor do termo esquizoidia, foi ele quem

melhor o articulou com as propostas de Bleuler, acrescentando contribuições

provindas da filosofia de Bergson. Preocupado com a questão das estruturas

psicopatológicas, Minkowski destacará da obra de Bleuler o aspecto clínico

39 BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da clínica: História e estrutura do saber


psiquiátrico, cit., p. 239.
40 A ideia de um estado esquizoide teve ampla difusão e participa de algum modo da
existência, no Código Internacional de Doenças (CID 10), tanto da categoria “Transtorno
esquizotímico” (F21) – uma espécie de “esquizofrenia leve ou latente” –, como da
categoria “Transtorno de personalidade esquizóide” (F60-1).
31

estrutural e questionará as hipóteses de cunho psicanalítico. Nesse sentido, a

obra de Minkowski encerra um período de grande influência da psicanálise no

discurso da psiquiatria a respeito da esquizofrenia, relegando suas contribuições

para um plano mais que secundário.41

Seguindo a clássica diferenciação kraepeliana das psicoses em dois grupos

– demência precoce e psicose maníaco-depressiva –, e acrescentando a essa

distinção a tipologia de Kretschmer – esquizoides e cicloides –, Minkowski retoma

as ideias de Morel para quem “a loucura não é mais do que a exageração do

caráter habitual”. Assim, a esquizofrenia teria como condição para sua produção a

existência de um caráter de base esquizoide, em si mesmo não patológico. Trata-

se, então, de “projetar no passado do indivíduo, além do começo manifesto da

doença, os traços essenciais dela”.42

Apesar de Minkowski ter-se apoiado no caráter esquizoide como

fundamento da esquizofrenia, para ele, a característica nodal dessa afecção é a

perda do contato vital com a realidade. A noção provém do vitalismo de Bergson; o

filosofo francês é, sem duvida, quem mais o influenciou. A dificuldade do

esquizofrênico para assimilar o movimento e a duração da vida decorreria da

41 Os complexos, tão caros a Bleuler, carecem de verdadeira importância para Minkowski.


Buscar decifrar o sentido das manifestações incoerentes do paciente, colocando-as em
relação com acontecimentos de forte carga afetiva do passado, pode ser uma tarefa
difícil, mas não impossível; entretanto, para Minkowski, o encontro desses laços –
conteúdos ideativos sobredeterminados – não significa que eles sejam a causa, sequer a
psicogênese da doença; pelo contrário, são o efeito de uma falha fundamental que se
encontra alhures, no contato vital com a realidade. Nesse sentido, o seguimento
pormenorizado dos conteúdos mentais dos pacientes não tem, na opinião de Minkowski,
valor heurístico e muito menos etiológico. Essa será a leitura de boa parte dos trabalhos
psiquiátricos posteriores; “as conchas que escondem sentidos”, “os complexos”, podem
constituir o conteúdo da psicose, algo assim como o “estofo” da doença, mas nada além
disso.
42 MINKOWSKI, E. Op. cit., p. 35.
32

perda do contato vital com a realidade. Como resultado dessa deficiência surge a

tendência a orientar-se com base na lógica ou nas matemáticas; Minkowski chama

a isso, racionalismo e geometrismo mórbidos e ilustra com profusão de exemplos

o que considera um dos sintomas mais representativos do pensar esquizofrênico.

Devemos também a ele a recopilação das metáforas com as quais

diferentes autores tentaram aproximar-se dos mistérios da esquizofrenia:

“orquestra sem diretor” (Kraepelin), “máquina sem combustível, que pode voltar a

funcionar” (Chaslin), “livro sem encadernar cujas páginas encontram-se

misturadas e não arrancadas” (Anglade), “edifício que desmorona” (Minkowski).

Na opinião de Minkowski, essas aproximações conotativas põem em evidência um

fato: a demência esquizofrênica, quando acontece, difere profundamente das

demências orgânicas. O eu-aqui-agora, o dinamismo mental, o conjunto de fatores

referentes à duração da vida, todos estão preservados na PGP e ausentes na

esquizofrenia.

3. A neuroleptização da esquizofrenia

Até 1952, a questão da causalidade das doenças mentais foi tema de

discussão permanente dentro da psiquiatria. A psicanálise participou dessas

discussões. O colóquio organizado por Henri Ey43 em Bonneval, em 1946, teve

como assunto central a questão psicogênese/organogênese; ali se enfrentaram

43Vários colóquios foram organizados por Henri Ey em Bonneval contando sempre com a
participação de psiquiatras e psicanalistas. Destaca-se entre eles o acontecido em 1960,
dedicado ao conceito de inconsciente. EY, H. (Director) El inconsciente: coloquio de
Bonneval. México: Siglo XXI, 1970.
33

ambas as posições cabendo nada menos que a Lacan44 a defesa da psicogênese,

e a Henri Ey a proposta do que seria uma tendência marcante da psiquiatria

francesa da segunda metade do século XX: o organo-dinamismo.45

Mas o ano de 1952 tem o valor de símbolo de uma nova era, um ícone que

marca o início de um capítulo decisivo, uma virada na concepção da

esquizofrenia: trata-se do ano da descoberta da clorpromazina por Laborit.46 Isso

porque as alterações cerebrais, sempre supostas e almejadas no discurso da

psiquiatria, pareciam ter alcançado confirmação efetiva. A introdução da

clorpromazina – descoberta por acaso –, e o primeiro de uma longa lista de

neurolépticos, inaugura um ângulo novo: a via bioquímica de abordagem da

esquizofrenia. Essa linha de pesquisa altera radicalmente a linguagem (e a

concepção de linguagem) empregadas pela psiquiatria até então. Surge, assim,

uma série de termos ligados aos neurotransmissores 47 ou a localizações

cerebrais 48 que aproximam a psiquiatria da neurologia, quase a ponto de confundi-

las. Abandonam-se as referências à linguagem ligadas à significação oculta das

palavras, tão caras a Bleuler.

44LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro:


Zahar, 2010.
45 Ver a respeito: EY, H. Principios de una concepción órgano-dinamista de la psiquiatria.
In: Estudios psiquiátricos vol. I. Buenos Aires: Polemos, 2008, pp. 161 a 191.
46 Garrabé, com euforia desmesurada, compara 1952 com 1492, ano do descobrimento
da América. GARRABÉ, J. La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia.
México: Fondo de Cultura Económico, 1996, p. 183. Tradução livre do espanhol a partir do
original em inglês.
47 Receptores pré e pós sinápticos; neurotransmissores monoaminérgicos (serotonina,
dopamina, noradrenalina, acetilcolina e histamina); aminoácidos (glutamato, GABA),
neuropeptídeos; receptores D1, D2, D3, D4 e D5 etc.
48 Sistema nigroestriado, mesolímbico, mesocortical etc.
34

A bioquímica da sinapse, estreitamente ligada à ação dos neurolépticos, é

hoje largamente estudada através das mais sofisticadas e modernas técnicas.49 O

princípio lógico que anima esses trabalhos, porém, pode ser considerado de início

como relativamente simples. Com efeito, diz Baud, “se o efeito terapêutico de uma

substância farmacológica se produz por inibição da atividade de um

neurotransmissor, é que este se encontra em excesso no cérebro dos doentes”.50

Mas, como afirma Serpa Júnior, essa simplicidade é aparente e muito relativa; há

constantes e progressivas complexidade e sofisticação no domínio da

neuroquímica.51

Não é o caso aqui, nem seria de minha competência fazê-lo, apresentar em

detalhes o que tem sido descrito como “modelo sináptico da esquizofrenia”.52

Entretanto, é no circuito neuronal da captação da dopamina (sistemas neuronais

dopaminérgicos) que se pensa a ação antipsicótica dos neurolépticos. A terapia

49 Desde dosagens de dopamina e derivados nos mais diversos meios, até o uso de
neuroimagens por emissão de pósitrons, a tecnologia tem dominado o campo,
introduzindo discretamente pressupostos involucrados nas máquinas, que, por vezes
tornam o dito campo complexo, por vezes obscurece-o.
50 BAUD, Patrick. Contribution à l’histoire du concept de schizophrenie. Tese de
doutoramento. Université de Genève, Faculté de Médicine, 2003, p. 66.
51 “A complexificação do domínio da neuroquímica não decorre apenas do número
crescente de diferentes substâncias [monoaminérgicos, aminoácidos ou neuropeptídeos],
pertencentes sobretudo às duas ultimas classes, reconhecidas como envolvidas com a
neurotransmissão central, mas da identificação de subtipos de receptores, pré e pós
sinápticos, com diferentes localizações nas diversas vias cerebrais e podendo
desempenhar papel específico na fisiopatologia das perturbações neuropsiquiátricas,
assim como na ação de psicofármacos”. SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na
natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em Psiquiatria. Belo Horizonte: Te
Corá, 1998, p. 261.
52 No cap. IX, da obra de Garrabé (“La sinápsis y las esquizofrenias”), encontra-se tal
descrição. GARRABÉ, J. Op. cit., pp. 183-204. Também em: SERPA JUNIOR, Octavio
Domont. Mal-estar na natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em
Psiquiatria. Op. cit. p. 239 a 283.
35

por essa via é hoje amplamente difundida e dá lugar a uma indústria poderosa que

marca sua presença, influência e, por que não dizer, interferência nos mais

diversos âmbitos, tanto científicos como culturais. Desde a descoberta casual da

clorpromazina, com seus molestos efeitos extrapiramidais, até os atuais

neurolépticos atípicos, isentos dessas reações, tem havido grande profusão das

hipóteses neurológicas que fundamentam o arsenal farmacológico existente. Essa

linha de pesquisa tem protagonizado os trabalhos sobre a esquizofrenia até o

ponto de se verem quase reduzidos a ela.

A revolução terapêutica impulsada pela psicofarmacologia repercute na

definição e na caracterização da esquizofrenia. Esse é o caso de autores como T.

J. Crow, na Inglaterra, e Nancy C. Andreasen, em Iowa, nos Estados Unidos,

frequentemente mencionados.

Para o primeiro, a esquizofrenia, concebida como síndrome, deveria ser

dividida em dois tipos distintos: a esquizofrenia Tipo I53, e a esquizofrenia Tipo II.54

A classificação visa a questões práticas ligadas à maior ou à menor eficácia dos

neurolépticos.55 Segundo Garrabé, a distinção feita por Crow assenta-se “na

53No tipo I, predominam os sintomas positivos (ligados aos sintomas acessórios descritos
por Bleuler: alucinações, delírios etc.). Caracteriza-se “por um início brutal, uma
conservação das funções intelectuais, uma boa resposta aos neurolépticos clássicos, um
aumento provável dos receptores dopaminérgicos D2 (...) e ausência de signos
deficitários”. Cf.: GARRABÉ, J. Op. cit., p.191.
54 No tipo II, predominam os sintomas negativos (ligados aos sintomas fundamentais de
Bleuler: embotamento afetivo, autismo etc.). Caracteriza-se por “um início insidioso,
deterioração intelectual, um alargamento dos ventrículos laterais, uma má resposta aos
neurolépticos clássicos e predomínio de signos deficitários”. Cf.:GARRABÉ, J. Op. cit., p.
192.
55 A ação dos neurolépticos tem se mostrado pouco eficaz na melhoria dos assim
chamados sintomas negativos da esquizofrenia. Seu uso indefinido por longos anos,
prática corrente, trouxe não apenas o perigo da temida discinesia tardia, hoje contornada
pelos neurolépticos atípicos, mas também a penosa impressão de uma droga-adição
assistida.
36

hipótese patogênica de que os sintomas chamados positivos, que caracterizam o

tipo I, traduzem uma perturbação das transmissões dopaminérgicas, enquanto os

sintomas chamados negativos correspondem a uma perdida celular no nível das

estruturas cerebrais”.56 O fato de Crow ter postulado que o tipo I pode evoluir para

o tipo II, não parece trazer conflito para a diferente patogenia proposta, e faz

lembrar de Kraepelin – já que privilegia o fator evolutivo no diagnóstico dos tipos.

No caso de Nancy Coover Andreasen, o que a autora procura é uma

definição do “transtorno” esquizofrênico baseado nos mecanismos cognitivos.57

Para os clássicos sintomas de associação, descritos por Bleuler, propõe o termo

misconnections e a criação de marcadores neurocognitivos, como o que ela

nomeia dismetria cognitiva. À tradicional fenomenologia, a autora opõe o que

chama latomenologia. O neologismo de obscura significação (mecanismos

cerebrais subjacentes à fenomenologia) aponta para um outro, a

“esquizoencefalia”. 58

56 GARRABÉ, J. Op. cit., p. 192.


57 Em um livro de divulgação – e por isso revelador da ideologia que a inspira –
(ANDREASEN, Nancy Um cerebro feliz, Barcelona: Ars Médica, 2006), a autora-escritora
expõe, para leigos, sua visão da esquizofrenia. Ela é pensada como um transtorno
produzido por conexões cerebrais erradas, dificuldades na transmissão de sinais e no
transporte da informação de um lugar a outro do cérebro. Num diálogo imaginário com o
leitor – e, eu diria, com uma versão grosseira da psicanálise –, responde de modo
contundente à pergunta a respeito das causas da esquizofrenia: “Quando uma pessoa
jovem desenvolve uma doença mental, a pergunta típica costuma ser: ‘O que fizeram os
pais de errado?’ A esquizofrenia não é uma doença causada pelos pais. Tampouco é uma
doença que os pais possam prevenir ou deter (...) Apesar do cuidado e do amor da
família, essa doença ataca, lastima e deixa as vítimas que dela sofrem bem com suas
famílias mergulhadas na dor. A esquizofrenia é uma doença cerebral e mental. Na maioria
dos casos, são diversas as causas que contribuem a trazer danos ao desenvolvimento
cerebral e mental, mas a desatenção por parte dos pais não é nenhuma delas”.
ANDREASEN, Nancy. Op. cit., p. 196. Tradução livre do espanhol a partir do original em
inglês.
58 Apud : BAUD. P. Op. cit., p. 67.
37

A escola de Iowa, liderada por Andreasen, elaborou escalas de avaliação de

sintomas tanto negativos 59 como positivos 60 da esquizofrenia. Trabalhos como

esses inauguram o que Garrabé denomina “psicopatologia quantitativa” que, em

sua opinião, “nada tem em comum com o que até aqui se entendia por

psicopatologia”. Contudo, essas escalas foram traduzidas para inúmeras línguas e

são utilizadas em muitos países, inclusive o Brasil.

Sem desmerecer a importância do volumoso arsenal farmacológico surgido

nos últimos trinta anos, sem o qual os “asilos” não teriam se esvaziado e os

tratamentos ambulatoriais ficariam mais difíceis, a esquizofrenia continua

desafiando os modelos com que se pretende apreendê-la. Apesar da euforia inicial

sobre as descobertas dos neurolépticos, Baud afirma: “(...) hoje [2003] a ideia de

que um excesso de atividade dopaminérgica constitui o mecanismo fisiopatológico

único ou o principal fator etiológico [da esquizofrenia] está abandonada”.61

Também diz:

A despeito de sua grande diversidade, esses trabalhos [os que


procuram as causas biológicas da esquizofrenia] ilustram a persistência, na
investigação das causas da esquizofrenia, de um problema amiúde
claramente exposto: não há uma definição biológica da esquizofrenia, não

59 SANS: Scale for the Assessment of Negative Symptoms.


60 SAPS: Scale for the Assessment of Positive Symptoms.
61 BAUD. P. Op. cit., p. 67. Na opinião de Garrabé, as hipóteses de cunho neurológico
referem-se a investigações básicas e “por enquanto a terapêutica por neurolépticos deve
continuar fundamentando-se na comprovação empírica de seus efeitos sobre a
manifestação clínica ou sobre explorações paraclínicas indiretas”. GARRABÉ,J. Op. cit.,
pp. 189-190. Também afirma: “Ainda não sabemos nada sobre o que provoca esse
desarranjo de um ou dois dos principais sistemas de transmissão dopaminérgica”.
GARRABÉ,J. Op. cit., p.191.
38

há um “marcador”, para utilizar a terminologia atual, quer dizer, um índice


confiável que permita definir precisamente seus contornos.62

Concomitantemente à revolução dos neurolépticos, criam-se os primeiros

manuais de diagnóstico dos distúrbios mentais. A partir de 1980, as novas

versões, tanto do DSM63 como do CID64, foram elaboradas com a pretensão de

constituir descrições de condutas objetiváveis, isentas das tendências teóricas que

dividiram a psiquiatria desde seu surgimento. Tudo isso em prol de suprimir

ambiguidades de um saber marcado pela pluralidade de pontos de vista e por

teorias psicopatológicas contrastantes. Os idealizadores dos diferentes códigos

explicitamente aspiram à procura de estabilidade e homogeneidade, e o fato de

que os códigos sejam vários (DSM III, DSM IV, DSM IV-TR, CID 9, CID 10 – e

seguramente virão outros) denuncia a utopia a que visam.65 Tanto a psicanálise

como a psiquiatria dinâmica, incluídas nas primeiras versões dos manuais (DSM

I), foram completamente excluídas deles a partir de 1980.

62 BAUD, P. Op. cit., p. 62.


63Manual diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais da Associação Americana de
Psiquiatria (APA).
64Classificação Internacional das Doenças (Classificação de transtornos mentais e de
comportamento) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
65 G. Lantéri-Laura, num derradeiro trabalho (LANTÉRI-LAURA, G. Principales théories
dans la psychiatrie contemporaine. In: Encyclopédie Médico-Chirurgicale. Paris: Elsevier,
37-006-A-10, 2004.), aborda, entre outros assuntos, esse período da psiquiatria – de 1977
até nossos dias – chamado, a contragosto por ele, de “pós-moderno”. Nesse período,
apoderou-se do campo da psiquiatria, em escala planetária, uma orientação “(...)
pretensamente desprovida de toda teorização, ignorando deliberadamente que o
empirismo é uma filosofia entre outras (...), reduzindo nossa disciplina a uma justaposição
de síndromes sem nenhuma unificação possível”. LANTÉRI-LAURA, G. Op. cit., p. 2. Para
uma crítica atual dos sistemas classificatórios, veja-se também o trabalho de Giordano
Estevão: ESTEVÃO, G. Uma análise crítica das classificações das doenças mentais,
Revista Temas, vol. 36, n° 70-71. São Paulo, jan-jul./2009, pp. 12 a 27.
39

Nunca psicanálise e psiquiatria estiveram tão afastadas uma da outra como

hoje. Esse afastamento é tido por Serpa Junior66 como reação ao predomínio que

a psicanálise conseguiu ter nos Estados Unidos da América do Norte nos anos

1950 e 1960, o que originou um movimento de rebote, uma remedicalização da

psiquiatria.67 A psiquiatria remedicalizada tornou-se hegemônica, e assistimos a

uma progressiva acomodação de seu campo e de seus objetos aos padrões de

cientificidade dominantes.68

No século XXI, parece perdida a possibilidade de interlocução entre

psicanálise e psiquiatria, tal a distância alcançada entre ambos os discursos e

saberes. O conceito de esquizofrenia, nascido desse diálogo, tende inclusive a

desaparecer na psiquiatria. Assistimos hoje ao que se poderia chamar uma

esquizofrenização da esquizofrenia, como tentativa extrema de que ela caiba no

modelo de ciência empírica com a qual se pretende apreendê-la. Seus sintomas,

muitas vezes de sutil captação subjetiva, resultam demasiadamente amplos ou

demasiadamente específicos como que para obter versões operacionais

objetiváveis, em sintonia com o modelo de cientificidade proposto.

66 SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na natureza.. Cit. pp. 239 a 241
67 Serpa Junior chama “remedicalização da psiquiatria” ao que ele entende como reação
ao predomínio da psicanálise, devido à maciça migração de psiquiatras psicanalistas
vindos da Europa que fugiam do nazismo e da miséria ocasionada pela guerra. A
pressuposição central dessa orientação é a de que o cérebro é o “órgão da mente”, e sua
estrutura e funções são as únicas bases sólidas para uma psiquiatria que aspire a
chamar-se científica. SERPA JUNIOR, O. D. Mal-estar na natureza. Op. cit. p. 240.
68 Disse a esse respeito Serpa Jr: “Não se trata, neste caso, de oferecer uma descrição
alternativa, mas de prescrever uma forma descritiva que, por pretender-se mais científica,
acredita-se mais próxima da verdade e em condição da avaliar pejorativamente quaisquer
abordagens dos fenômenos mentais não adequadas aos seus cânones, indicando que o
único lugar destinado a estas é o lixo do esquecimento”. SERPA JUNIOR, O. D. Mal-
estar na natureza. Op. cit. p. 239.
40

São frequentes os embates contra a psicanálise. Cada novo achado da

bioquímica comumente é usado para fazer daquela disciplina e seus conceitos

fundamentais – inconsciente, pulsão, subjetividade – noções ultrapassadas pelos

novos descobrimentos. Se alguma vez a psicanálise teve, como terapêutica, um

predomínio, hoje ele parece perdido. Reducionismos dos mais variados estilos

caíram na moda. Contudo, a psicanálise resiste à condenação de ser considerada

como “um remédio ultrapassado relegado ao fundo das farmácias”, como

ironicamente Derrida a ela se referiu.69

Embora seja óbvio dizê-lo, psicanálise e psiquiatria, apesar de uma

terminologia comum, recortam de modo diferente seus objetos e possuem

discursos próprios. Não é o caso de pretender assimilar um ao outro. Trata-se, em

todo caso, de poder aceitar a existência do “outro”, modo diferente de concepção

de um problema, evitando reducionismos esterilizantes.

Independentemente desse confronto de discursos, o que se pode constatar

ainda é que, com o correr do tempo, a esquizofrenia não perdeu seu poder

desagregador. Primeiramente em quem dela padece, depois nas famílias que

acompanham o sofrimento dos doentes e, finalmente, nos especialistas que a

estudam. Velhas metáforas – “orquestra sem diretor”, “livro sem encadernar cujas

páginas encontram-se misturadas” – ainda figuram o que resiste à precisão e ao

logos da linguagem.

69 A frase foi recolhida Elizabeth Roudinesco, defensora calorasa da psicanálise na


atualidade. Cf.: RODINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
41

CAPÍTULO II

A ESQUIZOFRENIA EM FREUD

1. O contexto geral da pesquisa freudiana sobre esquizofrenia

Desde o surgimento da psicanálise, Freud empenhou-se em defini-la como

pertencendo ao campo da cientificidade e procurou afastá-la de qualquer

proximidade com o âmbito especulativo filosófico. A análise dos sistemas ou

cosmovisões (animista, religiosa e científica), feita em Totem e tabu70, é uma

amostra do compromisso de Freud com o ambiente positivo reinante à época e da

clara intenção de incluir seu trabalho no âmbito da cientificidade. Vale lembrar que

seu Projeto de psicologia inicia-se com o propósito de oferecer aos neurologistas

uma psicologia científica, baseada na ciência natural, que apresente os processos

psíquicos como estados quantificáveis de partes materiais comprováveis.71 A

metapsicologia, nome com o qual Freud batizou essa psicologia científica,

entrevista já desde o Projeto, tem o inconsciente, a linguagem e a pulsão como

eixos principais, e compõe-se de três pontos de vista gerais – tópico, econômico e

dinâmico – que configuram um edifício, nem sempre integrado e coeso.

Influenciado por sua formação médica, Freud, para compor a metapsicologia,

utiliza o arco reflexo e o modelo dos aparelhos de funcionamento fisiológico –

respiratório, digestivo etc. – para conceber o psiquismo também como um

70 FREUD, S. (1913) Totem y tabu. In: AE, vol. XIII.


71 ”A intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os
processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas
materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição.”
FREUD, S. (1895) Proyecto de psicologia. In: AE, vol. I, p. 339.
42

aparelho cuja função seria o processamento de excitações provenientes tanto do

exterior como do interior do organismo.

Exercendo a medicina como neurologista, num período que se

convencionou qualificar como pré-psicanalítico, Freud já atribuiu importância e

interesse ao aparelho de linguagem e aos fatores psicológicos. Na monografia

sobre as afasias, 72 apoiado no evolucionismo de J. Hughlings Jackson e na teoria

dos nomes de J. S Mill – autor que Freud traduzira para o alemão em 1880, como

informa Jones 73 –, critica a teoria localizacionista da linguagem de Meynert e

Wernicke. Contrapõe a ela uma visão funcional centrada num “aparelho de

linguagem” que responde frente à presença de uma lesão como um todo e não de

maneira pontual, local, como Meynert e Wernicke tinham proposto. Segundo

Forrester, Freud desvia o foco da anatomia para a psicologia na compreensão das

afasias.74 Essa concepção contém em gérmen o que serão constantes no seu

pensamento: a preocupação pelo anímico, pela linguagem, e o questionamento

dos reducionismos organicistas. O conceito de “aparelho de linguagem”, surgido

nessa monografia, constitui-se em precursor do que depois será chamado

“aparelho psíquico”, central na metapsicologia.

Embora preocupado com o anímico, Freud não deixou de aderir à tendência

geral da medicina clínica de seu tempo. A clínica que, segundo Foucault, só surgiu

72 FREUD, S (1891) A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1977.


73 JONES, E. Vida y obra de Sigmund Freud. Barcelona: Anagrama, 1970, tomo I, p. 74.
74 “Freud desviou a nosologia da afasia, da Anatomia para a Psicologia. Usou, porém,
uma psicologia tradicional. O esquema de Wernicke unia a anatomia, a filosofia e a
psicologia, ocultando uma identitidade implícita entre a psique e o corpo. Freud desviou a
identidade, de fato rejeitou-a, dissociando a anatomia da psicologia”. FORRESTER, J. A
linguagem e as origens da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1983, p. 53.
43

no final do século XVIII,75 já tinha dado o passo fundamental que permitiu inserir a

medicina no campo da cientificidade: a ligação da prática médica com os estudos

anatômicos e fisiológicos. Efetivamente, é com Bichat e o método anátomo-clínico

que a medicina encontrara nos tecidos seu objeto. A clínica médica subordinou-se,

então, à pesquisa anátomo-patológica, e junto ao leito do doente instalou-se a

figura do seu cadáver. O morto recompôs o campo da medicina e lhe assinalou um

norte, que se mantém ainda em nossos dias.

Ora, o que representou um avanço significativo no campo da patologia geral

criou dificuldades no caso das assim chamadas “doenças da alma”, perturbações

mentais sem lesão orgânica, nas quais o jovem Freud estava muito interessado.

As doenças da alma constituíram-se no obstáculo para a conversão definitiva da

psiquiatria aos preceitos gerais enunciados por Bichat. Como se viu, a maioria dos

psiquiatras da época aderiu, apesar dos fracos achados orgânicos, a um

organicismo, mais de princípios que de constatações. Freud participou ativamente

nessas questões, trazendo um ponto de vista original que rompeu com a

tendência majoritária da psiquiatria da época.

Num artigo hoje pouco visitado, Tratamento psíquico (Tratamento da alma),

76 Freud elogia os avanços da medicina em decorrência da anatomopatologia e da

microbiologia, mas também denuncia o peso excessivo atribuído aos fatores

75 FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.


76 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (Tratamento da alma). In: AE, vol. I.
44

orgânicos.77 O temor de perder o terreno seguro da cientificidade é situado, nesse

trabalho, como um dos motivos que levaram aos médicos a enfatizar

demasiadamente o vinculo entre o físico e o anímico, descuidando das relações

inversas, do anímico sobre o somático. Esse temor, afirma Freud, levou a pensar

que o “funcionamento intelectual estaria ligado à existência de um cérebro

normalmente desenvolvido e suficientemente nutrido”78 e que qualquer

adoecimento mental seria decorrente de falências no funcionamento desse órgão.

A esse ponto de vista, Freud contrapõe o papel dos afetos:

O exemplo mais corriqueiro de atuação anímica sobre o corpo,


observado regularmente e em todas as pessoas, é fornecido pela chamada
“expressão das emoções”. (...) Os afetos, num sentido mais estrito,
distinguem-se por um vínculo muito especial com os processos físicos,
mas, a rigor, todos os estados anímicos, inclusive aqueles que estamos
acostumados a considerar como “processos de pensamento” são “afetivos”
numa certa medida, e nenhum deles carece de manifestações físicas e da
capacidade de modificar os processos corporais. Mesmo enquanto se está
tranquilamente pensando por meio de “representações”, correspondem ao

77 (...) “sob a influência propícia das ciências naturais, [a medicina] fez seus maiores
progressos (...) desvendou a composição do organismo a partir de unidades
microscopicamente pequenas (as células), aprendeu a compreender física e
quimicamente cada um dos processos (funções) vitais, distinguiu as modificações visáveis
e palpáveis das partes do corpo em consequência dos diferentes processos patológicos, e
descobriu, por outro lado, os indícios pelos quais se revelam os processos patológicos
entranhados a fundo no organismo vivo; desvendou ainda um grande número dos
micróbios patogênicos e, com a ajuda dos conhecimentos recém-adquiridos, reduziu
extraordinariamente os perigos das intervenções cirúrgicas mais graves”. ”Todos esses
progressos e descobertas diziam respeito ao aspecto físico do ser humano, e assim, em
consequência de uma linha de raciocínio incorreta, mas facilmente compreensível, os
médicos passaram a restringir seu interesse ao corporal e de bom grado deixaram aos
filósofos, a quem menosprezavam, a tarefa de se ocuparem do anímico”. FREUD, S.
(1890) Tratamento psíquico (Tratamento da alma). Op. cit., pp. 115 e 116.
78 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (tratamento da alma). Op. cit., p. 116.
45

conteúdo dessas representações várias excitações constantes, desviadas


para os músculos lisos e estriados (...).79

É valorizando o poder dos afetos, sobre o corpo e sobre a mente – os

pensamentos e as representações – que Freud encontra o “tratamento anímico”;

tratamento realizado com o instrumento da palavra. As “meras” palavras

recuperam, no tratamento anímico, seu antigo poder mágico. Essa seria a

abordagem mais antiga empregada pela medicina em toda sua história, afirma

Freud. O poder das palavras está no centro do “tratamento da alma”:

É que as palavras são o mediador mais importante da influência que


um homem pretende exercer sobre o outro; as palavras são um bom meio
de provocar modificações anímicas naquele a quem são dirigidas, e por
isso já não soa enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar
os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente nos
estados psíquicos.80

Se a magia é trazida à discussão, isso não ocorre para aderir a seus

fundamentos esotéricos, e sim para encontrar dentro do campo da cientificidade,

mais precisamente no papel desempenhado pelos afetos sobre o corpo e a mente,

modos de justificação apurada do poder exercido pela palavra. Nesse sentido, os

trabalhos de Bernheim e da escola de Nancy abrem para Freud o caminho do

estudo da hipnose com finalidades terapêuticas. No processo hipnótico torna-se

patente o poder de sugestão da palavra do hipnotizador sobre o hipnotizado;

79 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (tratamento da alma). Op. cit., p. 119.


80 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (Tratamento da alma). Op. cit., pp. 123-124.
46

reconhecer e estudar as características desse poder da palavra permite a Freud

direcioná-lo para obter resultados no caso da histeria, já definida por Charcot

como doença e separada da mera simulação. Nasce, assim, a primeira ferramenta

terapêutica da abordagem psicanalítica: a utilização da hipnose para o tratamento

da histeria. Essa abordagem, central na concepção da histeria das primeiras fases

da psicanálise (1800-1895), ligada ainda ao método catártico, e ao mecanismo de

abrreação, evidencia o poder patogênico dos afetos represados por efeito de

traumas sexuais, bem como a dissociação psíquica decorrente do mecanismo do

recalque – germe do conceito de inconsciente – e o poder terapêutico de falar e

ser escutado por um outro. Esse poder da fala e da escuta derivará mais tarde no

que será o método característico da psicanálise: a associação livre.

Dessa forma, pode-se dizer que o valor afetivo das palavras e esses

empréstimos teóricos ao mesmo tempo de Charcot e Bernheim contribuíram para

a elaboração não só da teoria sobre a histeria, como também deram fundamento

às reflexões de Freud a respeito da psicose.

Para o vienense, afetos e palavras são essenciais desde o início até o final

de sua obra. Contudo, com a introdução do conceito de pulsão, em 1905, e o

relativo abandono da teoria traumática, o lugar protagonista dos afetos nas

primeiras épocas (o quantum de afeto) fica deslocado e dependente do papel

central atribuído à pulsão, em especial a sexual. A pressão ou a força pulsional, a

aleatoriedade de seus objetos, as barreiras que se erguem contra seus alvos, vão

constituir-se em fundamento de uma energética – o modelo econômico – na qual

só prazer e desprazer parecem contar. É com a metapsicologia, em 1915, que


47

Freud encontra para os afetos um lugar específico em relação à pulsão. Havendo

definido a pulsão como conceito limite entre o psíquico e o somático – fonte

somática, ligação psíquica –, o autor pensa os afetos como um dos modos nos

quais as excitações endossomáticas pulsionais encontram representatividade no

psiquismo. Junto com a representação (Vorstellung), o afeto é um dos “delegados”

da pulsão no psiquismo. Em continuidade com os estudos iniciais sobre a histeria

o destino das representações e dos afetos é concebido separadamente: a

representação pode ser recalcada (Verdrängung); o afeto, só deslocado ou

suprimido81 (Unterdrückung).82 Dirá no texto da Metapsicologia: “A rigor, então, e

ainda que não se possa criticar o uso linguístico [da expressão afetos

inconscientes], não existem afetos inconscientes da mesma forma que existem

ideias inconscientes”.83

É a partir das Vorstellungsrepräsentant – representações/representativas da

pulsão – que Freud vai pensar a linguagem; como veremos em detalhes

posteriormente, para analisar as espetaculares alterações de linguagem da

esquizofrenia precisou recorrer à terminologia empregada no texto sobre as

afasias.84 Surgem, então, os conceitos de representações de coisa e da palavra

articulados com o de representação de objeto. Freud relaciona esse jogo de

81 Laplanche e Pontalis propõem traduzir Unterdrückung por “repressão”. Preferimos


“supressão” para evitar a confusão com a frequente tradução de Verdrängung (recalque)
por “repressão” devida à influência das traduções de Freud ao espanhol, nas que
Verdrängung é vertido como represión.
82André Green em “O discurso vivo”, apoiado num levantamento minucioso da obra de
Freud, questiona o radicalismo dessa oposição. GREEN, A. O discurso vivo. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1982.
83 FREUD, S. (1915) El inconciente. In: AE, vol. XIV, p. 174.
84 FREUD, S (1891) A interpretação das afasias. Op. cit.
48

Vorstellung com as instâncias psíquicas. Ao consciente-pré-consciente é

associada a linguagem – as representações de palavra; ao inconsciente, as

representações de coisa. Na obra de Freud, pulsão, afeto e linguagem estão

profundamente imbricados, envolvendo considerações tanto tópicas como

econômicas e dinâmicas.

À nosografia, Freud dedicou só uma pequena parte de sua obra, pois

estava mais interessado na psicogênese, no achado dos mecanismos psíquicos e

do sentido do sintoma do que na sua organização em quadros descritivos,

frequentes na psiquiatria de seus contemporâneos. Freud utilizou categorias

psicopatológicas – neuroses atuais, psiconeuroses de defesa, psiconeurose

narcísica, neurose de transferência etc. – que carregam mais a marca dos

mecanismos que ele próprio descobrira – defesa, narcisismo, transferência – do

que o rigor classificatório de seus contemporâneos.

Como já foi visto, interessou-se mais pela etiologia, destacando sempre os

fatores anímicos e o papel da sexualidade. Contudo, numa única oportunidade,

nas Conferências introdutórias sobre psicanálise85, respondeu a questão da

etiologia de uma forma mais apurada e direta com a elaboração das séries

complementares – herança e infância como predisposição; fatores acidentais

(traumas) como fatores desencadeantes. Embora herança e infância tenham sido

colocadas em pé de igualdade nesse esquema, sem dúvida foi o infantil, a

sexualidade iniciada desde a infância, que recebeu mais importância nos estudos

do autor.

85FREUD, S. (1916-17) Conferencias de introducción al psicoanálisis. Conferencia 23:


Los caminos de la formación de síntomas. In: AE, vol. XVI.
49

Apesar de dar pouca importância à classificação das doenças, Freud deixou

muito clara sua posição no que diz respeito à representação da doença em si

mesma. Considerando-se a análise feita por Canguilhem das concepções de

doença na medicina 86 – ontológica e dinâmica –, Freud enquadra-se muito bem

numa visão dinâmica da doença. Na tentativa de manter sua homeostase, o ser

humano como um todo é quem fica doente. Os sintomas são uma formação de

compromisso entre as diferentes instâncias do psiquismo, que reage como um

todo. Freud também afirma que entre doença e saúde existem apenas diferenças

quantitativas. Porém, nele, a referência à quantidade talvez seja apenas uma

forma de rejeitar a ideia da heterogeneidade radical da doença em relação à

saúde, expressa na noção de degenerescência. Freud nunca se interessou por

estabelecer medições numéricas das quantidades, sequer na época em que o

traumático fez do modelo econômico um dos eixos mais significativos de sua

produção.

Central para nossa pesquisa, outro ponto no qual se manifesta a concepção

dinâmica da doença é o tratamento dado por Freud aos fenômenos psicóticos,

acentuando o caráter terapêutico da produção delirante. O fenômeno essencial

nessas afecções é atribuído à ruptura da ligação do sujeito com o mundo que o

86 Segundo Canguilhem (CANGUILHEM, George. O normal e o patológico. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2006), não são unívocos a representação nem o conceito
de doença que a medicina e os médicos têm construído. Duas são as visões que
predominaram. Primeiramente, sob a influência das classificações da botânica, a doença
foi abordada como tendo uma natureza ontológica, uma existência ou realidade –
micróbio ou parasita nas versões mais positivas. No dizer de Canguilhem, ela foi
considerada como algo que “entra e sai do homem como por uma porta”. (Op.cit., p. 9.)
Outra das visões sobre a doença é fundamentalmente dinâmica: a doença não é
localizável; consiste em uma perda de equilíbrio do homem como um todo e representa o
esforço da natureza para retomar o equilíbrio perdido; o organismo desenvolve a doença
para se curar.
50

circunda e com as representações libidinais que dele faz. Tal ruptura o leva a uma

regressão narcisista, sendo então a interpretação delirante um modo ou tentativa

de religação, uma forma de restituição, de cura. Os delírios de grandeza e de fim

de mundo expressam a distribuição das quantidades, o engrandecimento do eu

provocado pela regressão libidinal ao narcisismo, no caso do primeiro, e à ruptura

com o mundo dos objetos, no do segundo.

2. Psicanálise e psiquiatria

Já desde os primeiros trabalhos de Freud, perfila-se a necessidade de

delimitação de campos e pontos de vista: psicanálise por um lado, psiquiatria por

outro. Esse é o caso do manuscrito H:

Na psiquiatria, as ideias delirantes situam-se ao lado das ideias


obsessivas como distúrbios puramente intelectuais, e a paranoia situa-se ao
lado da loucura obsessiva como uma psicose intelectual. Se as obsessões
já foram atribuídas a uma perturbação afetiva e se já se encontraram
provas de que elas devem sua força a um conflito, então a mesma opinião
deve ser válida para os delírios; e também estes devem ser consequência
de distúrbios afetivos e sua força deve estar radicada num processo
psicológico. Os psiquiatras aceitam o contrário desse fato, ao passo que os
leigos tendem a atribuir a loucura delirante a eventos mentais
desagregadores. “Um homem que não perde a razão diante de
determinadas coisas não tem nenhuma razão a perder”.87

87FREUD, S. (1892-1899) Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Manustrito H. In:


AE, vol. I, 1976, p. 246.
51

O fragmento citado reitera o que já fora expresso por Freud em outros

textos 88 a respeito das perturbações de cunho afetivo. Ao distúrbio intelectual, do

pensamento, das ideias, opõe-se o peso das alterações causadas pelos afetos e

pelo conflito psíquico. Essa será a primeira óptica com a qual Freud abordará a

questão da psicose; será também o ponto que mais o distanciou da psiquiatria de

sua época e, ao mesmo tempo, a questão a partir da qual mais conseguiu

influenciá-la. De fato, como já se discutiu, a desrazão da psicose foi considerada

pela psiquiatria déficit do funcionamento cerebral; produção demencial mórbida na

abordagem da demência precoce empreendida por Kraepelin. No entanto, a

perturbação criada pela significação afetiva das ideias foi a particularidade que

mais atraiu a atenção dos psiquiatras de Burghölzli. Bleuler incorpora essa visão

na sua monografia, especialmente na consideração dos complexos; Jung também

adere a ela nos trabalhos psiquiátricos da primeira fase da sua extensa

produção.89

Ora, embora seja um tanto óbvio dizê-lo, é a postulação do aparelho

psíquico o ponto axial que marcou a diferença com a psiquiatria. Ali onde os

psiquiatras viam o cérebro, paradoxalmente o neurologista Freud, enxergava o

aparelho psíquico. Ali onde a psiquiatria via déficit de funcionamento cerebral

(alteração da percepção, do juízo, do pensamento), Freud enxergava o

funcionamento regressivo do aparelho psíquico motivado pelo conflito – esse,

aliás, foi o ponto central de ruptura. Mesmo assim, Freud manteve diálogo com a

88 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (Tratamento da alma). Op. cit.


89
JUNG, K. A psicologia da dementia praecox: um ensaio. In: Psicogênese das doenças
mentais. Petrópolis: Vozes, 1999.
52

psiquiatria da sua época, à qual mais influenciou do que por ela foi influenciado, e

também utilizou categorias comuns no meio psiquiátrico que frequentou – histeria

(Charcot), demência precoce, paranoia (Kraepelin), esquizofrenia (Bleuler) etc., e

outras, não tão comuns, como a amentia de Meynert, que destacou pelas

consequências que conseguiu extrair dela.90

A preocupação de Freud com a nosografia vigente não se pautou pelo rigor;

paranoia crônica, demência precoce, esquizofrenia, parafrenia, amência,

melancolia, mania e outros quadros foram mencionados sem muita precisão

conceitual. Como simples exemplo dessa pouca precisão, lembre-se que em seus

escritos é frequente a assimilação de demência precoce, de Kraepelin, com

esquizofrenia, de Bleuler, como se fossem simples sinônimos, desconsiderando as

diferenças conceituais já analisadas. Contudo, essas categorias não foram

redefinidas nem discutidas por ele. Não há na obra de Freud uma definição

desses quadros. Não há uma definição de esquizofrenia; só encontramos ali a

elucidação de alguns dos sintomas considerados patognomônicos que foram

aceitos como válidos sem questionamentos.

Apesar de aceitar as descrições psiquiátricas, Freud manteve relações

conturbadas com a psiquiatria, especialmente na consideração dos fenômenos

psicóticos. Com efeito, a psicose é o campo específico da psiquiatria – isso não

tem se modificado muito com o correr do tempo – e, quando a psicanálise se

aventura no terreno dos fenômenos psicóticos, ela é intrusa que questiona, critica

90Amência ou confusão alucinatória define-se bem no exemplo clássico citado por Freud:
a mãe que perdeu seu filho embala um objeto substituto do filho morto como se ele
estivesse ainda vivo.
53

e põe em dúvida o discurso e o saber estabelecidos pela psiquiatria. Que nos

anos de seu surgimento, a psicanálise freudiana tenha tido pretensões modestas,

isto é, a de simplesmente criar um lugar a partir do qual pudesse tecer suas

hipóteses, não quer dizer que sua aspiração também o fosse. Como já apontado,

com o passar dos anos Freud produziu uma nosografia que lhe é própria, ligada a

mecanismos e etiologias que foi descobrindo e postulando.

A incursão de Freud, neurologista, no terreno próprio à psiquiatria foi

marcada por um obstáculo do qual se queixou reiteradas vezes: falta de

casuística. Nesse sentido, é certo que o apoio de Abraham, Ferenczi, Jung e

fundamentalmente, Bleuler, impulsionou suas reflexões a respeito dos fenômenos

psicóticos. O conceito de narcisismo, principal resposta dada por Freud à questão

da psicose, foi sendo gestado durante o período de maior contato com a clínica

Burghölzli. 1900 a 1917 foram os anos em que as psicoses receberam a maior

atenção por parte de Freud e, nos artigos escritos nessa época, encontra-se uma

parte importante das indicações sobre o tema.

3. Freud e Burghölzli

A respeito de Burghölzli, são interessantes os comentários de Freud, em

Contribuição à história do movimento psicanalítico, escrito em 1914, depois da

ruptura com a Escola de Zurique. Vejamos:

Mais importante (...) foi outra realização da Escola de Zurique, ou de


seus líderes, Bleuler e Jung. O primeiro mostrou que se poderia esclarecer
grande número de casos, puramente psiquiátricos, reconhecendo neles os
mesmos processos reconhecidos pela psicanálise presentes nos sonhos e
54

nas neuroses (mecanismos freudianos); e Jung [1907] aplicou com êxito o


método analítico de interpretação às manifestações mais estranhas e
obscuras da demência precoce (esquizofrenia), de modo a trazer à luz suas
fontes, presentes na história da vida e nos interesses do paciente. Depois
disso, foi impossível aos psiquiatras ignorarem por mais tempo a
psicanálise. A grande obra de Bleuler sobre a esquizofrenia (1911), na qual
o ponto de vista psicanalítico foi colocado em pé de igualdade com o
clínico-sistemático, completou esse sucesso.91

É patente a satisfação de Freud com a repercussão de suas ideias em

Zurique. Maior é seu contentamento com o reconhecimento, por parte da

psiquiatria, do valor dos “mecanismos freudianos” e, sobretudo, com o fato de

Bleuler ter colocado “em pé de igualdade” o ponto de vista psicanalítico com o

clínico. Há que lembrar a vontade de Freud em estender a psicanálise fora de

Viena e do círculo de médicos judeus com os quais se cercara. Bleuler e Jung

preenchiam ambas as aspirações.

Teria também dúvidas a respeito da aplicabilidade de sua teoria no campo

estritamente psiquiátrico? Será por isso que foi tão importante para ele o apoio de

Burghölzli? Em relação a isso, vale a pena lembrar que o lema Fluctuat nec

mergitur, no escudo de armas da cidade de Paris” 92, encabeça o trabalho que

estamos focalizando. A frase alude aos múltiplos soçobros em que se processou

a história da psicanálise e o ânimo de seu criador. Nas cartas a Fliess, muitas

vezes Freud confessa incerteza, insegurança, a sensação de estar perdido, o

91FREUD, S. (1914) Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. In: AE, vol.
XIV, 1979, p. 27.
92 Flutua [com as ondas) mas não afunda.
55

temor de não ter seguido o caminho correto. Exemplo disso encontra-se na carta

69, aquela na que revela a descoberta da mentira da “sua neurótica”.93 Em

Contribuição à história do movimento psicanalítico, porém, defende a originalidade

de sua concepção e deixa muito claro ser ele quem influenciou Jung, e não o

contrario.94 Também afirma que sua concepção da psicose difere da de Zurique no

papel atribuído à sexualidade; a psicose teria afinidade com os mecanismos da

histeria, especialmente na consideração da etiologia e por isso considera:

(...) eu ainda visava a uma teoria da libido nas neuroses que iria
explicar todos os fenômenos neuróticos e psicóticos como procedentes de
vicissitudes anormais da libido, isto é, como desvios do seu emprego
normal.95

O “ainda” de “eu ainda visava” tem a ver com o conceito de narcisismo, ou

melhor, com a falta dele. É certo que Freud nunca renunciara à libido como fator

fundamental no campo psicopatológico presente nos Três ensaios; entretanto, foi

só com a introdução do conceito de narcisismo que conseguiu alcançar uma teoria

da sexualidade unificada, aplicável tanto à neurose como à psicose. Mesmo

assim, nas épocas anteriores à introdução de tal conceito, “ainda” dava

93FREUD, S. (1892-1899). Fragmentos de la correspondencia com Fliess: Carta 69. In:


AE, vol. I, 1982.
94 “Já em 1897 [refere-se a Análise de um caso de paranoia crônica, apêndice III das
Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, artigo já mencionado] eu
publicara a análise de um caso de esquizofrenia, o qual, contudo, era de natureza
paranóide, de modo que a solução dele não podia ser influenciada pela impressão
causada pelas análises de Jung”. FREUD, S. (1914) Contribución a la historia del
movimiento psicoanalítico. In: AE, vol. XIV, 1979, p. 27.
95FREUD, S. (1914) Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. Op. cit., p.
27.
56

prevalência à sexualidade na consideração dos fatores etiológicos – este um

ponto de ruptura fundamental com a escola de Zurique. Continua a dizer Freud:

Esse ponto de vista [o da etiologia sexual] escapou aos


pesquisadores suíços. Que eu saiba, até hoje Bleuler defende o ponto de
vista de que as várias formas de demência precoce têm uma causação
orgânica; e no Congresso de Salzburg, em 1908, Jung, cujo livro sobre
essa doença surgiu em 1907, apoiou a teoria tóxica de sua causação, que
não leva em conta a teoria da libido, embora, é verdade, não a exclua.96

O fragmento acima é precedido de um franco agradecimento à Escola de

Zurique e às contribuições vindas de Burghölzli. No texto também se evidencia o

motivo pelo qual a esquizofrenia ocupara tanto as preocupações de Freud naquele

tempo. Com efeito, interessado na interlocução com Bleuler e Jung, e em

estabelecer pontes com a psiquiatria, viu-se incentivado a elaborar hipóteses e a

refletir a respeito da esquizofrenia, principal assunto da clínica Burghölzli à época.

Assim, a introdução do conceito de narcisismo é, sem dúvida, o maior fruto do

contato com Burghölzli, ao mesmo tempo que é também o desenlace, a ruptura,

desse longo período de colaboração.

Parte importante do trabalho de 1914 é confrontação, refutação, oposição a

Jung. A primeira delas aparece no início do texto Introdução ao narcisismo. Trata-

se do conceito de introversão. Sabe-se que Jung tinha feito da introversão uma

peça fundamental em seus estudos sobre a psicose, a ponto de defini-la como

96FREUD, S. (1914) Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. Op. cit., p.


27.
57

uma “neurose de introversão”. Freud, que já havia adotado o termo anteriormente,

restringe-o. A introversão da libido refere-se apenas ao neurótico no qual

(...) a análise demonstra que [o neurótico] de modo algum corta suas


relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia,
isto é, tem substituído os objetos reais por objetos imaginários de sua
memória ou mistura os primeiros com os segundos, e (...) renuncia à
iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos
relacionados àqueles objetos. Essa é a única condição da libido a que
podemos legitimamente aplicar o termo “introversão” da libido, empregado
por Jung indiscriminadamente. Com o parafrênico a situação é diferente.97

Um dos eixos das diferenças entre Freud e Jung gira em torno da questão

da libido. O caráter sexual da libido e seu papel na compreensão dos fenômenos

psicóticos são os temas centrais da disputa. É sabido que Jung assimila a libido

freudiana ao conceito de “vontade” de Schopenhauer e ao de “energia” de Mayer.

Com isso, questiona também o dualismo pulsional. Consequentemente, por trás

da questão da introversão, está em jogo o papel da sexualidade na psicose.

Quando Freud afirma que a regressão do parafrênico 98 é ao narcisismo, e que o

narcisismo é uma fase da libido, sustenta com isso que a perda da realidade

constatada nas psicoses é o resultado de uma função sexual. Jung contesta a

hipótese, pois, para ele, a psicose é a expressão de uma simbólica arcaica que

97 FREUD, S. ¡1914) Introducción al Narcisismo. In: AE, 1976, vol. XIV p. 72.
98Termo emprestado de Kraepelin. Mesmo que essa nomenclatura não prospere em sua
obra, é curiosa a insistência de Freud na busca de algum termo que englobe as doenças
mentais, em especial esquizofrenia e paranóia. Podemos perguntar-nos hoje sobre a
conveniência dessa junção, assim como sobre a pertinência do conceito de narcisismo
para dar conta de todos os fenômenos psicóticos.
58

pode ser reencontrada nos mitos. A fantasia psicótica é a “matriz do espírito”99 e

nada tem de sexual. O mito é, para Jung, o elemento “interpretante” que carrega

os símbolos, os quais possibilitam a leitura do sexual. Esse é também outro dos

pontos axiais da disputa.

Freud está francamente incomodado com Jung, o que exprime diretamente

em trecho de Introdução ao narcisismo: (...) “é por causa disso [o questionamento

da teoria da libido por Jung] que me vi obrigado a entrar nessa última discussão,

da qual gostaria de ter sido poupado”.100 Em Metamorfoses e símbolos da

libido,101 Jung apoia suas propostas na tese freudiana do narcisismo e na

consequente extensão da teoria da libido que ela comporta. Dá a entender que,

com o narcisismo, Freud renunciara ao dualismo e à hegemonia do sexual.

Justifica sua tese da equiparação da libido ao conceito de energia nos trabalhos

de Freud. Isso irritou e deixou furioso o mestre. Freud afirma: “Ferenczi, numa

crítica exaustiva à obra de Jung, já disse tudo o que é necessário a título de

correção dessa interpretação errônea”.102 Ferenczi não dissera pouco. Entre

outras coisas, acusara Jung de falsear as afirmações freudianas em prol da

construção de uma nova Weltanschauung filosófica, sustentada numa série de

impressões e de crenças.103

99 FREUD, S. e JUNG C. Carta 261. In: Correspondência completa. Op. cit., p. 438.
100 FREUD, S. (1914) Introducción al Narcisismo. Op. cit., p. 77.
101Incluído com outro título em: JUNG, C. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes,
1999.
102 FREUD, S. (1914) Introducción al narcisismo. Op. cit., p. 72.
103FERENCZI, S. Crítica de “Metamorfoses e símbolos da libido”, de Jung. In: Obras
completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, vol. II.
59

Freud não fica atrás de Ferenczi e conclui:

Podemos, então, repudiar a asserção de Jung, segundo a qual a


teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a demência
precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras
neuroses.104

Em verdade a ruptura tinha-se efetivado meses antes, quando Jung

renunciara à direção do Jahrbuch, junto com Bleuler.

Uma vez marcada a ruptura com a Escola de Zurique, Freud estabelece as

bases que possibilitarão uma análise dos sintomas da loucura. Suas reflexões

incorporam, no entanto, muitos aspectos e conceitos de Bleuler; assim como

contribuições vindas de Mill, como veremos a seguir.

4. As hipóteses iniciais a respeito da psicose

Já em Narcisismos105 , procurei demonstrar quão relativa é a ideia de que a

obra freudiana está centrada na consideração das neuroses, com especial

destaque para a histeria, e a de que as psicoses foram objeto de trabalhos

psicanalíticos aprofundados apenas após Freud, em obras de autores como M.

Klein, Bion, Lacan e outros. Trabalhos como As neuropsicoses de defesa,

Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, bem como o Projeto

de psicologia, os manuscritos e as cartas a Fliess já contêm abundantes

referências aos fenômenos psicóticos que denotam a preocupação pelo assunto, a

104 FREUD, S. (1914) Introducción al narcisismo. Op. cit., p. 72.


105 MIGUELEZ, O. Narcisismos. São Paulo: Escuta, 2007.
60

intenção clara de separar fronteiras e, ao mesmo tempo, de encontrar pontes que

permitam as correspondências entre os princípios descobertos no campo das

neuroses e no das psicoses. Esse é o caso do apêndice III das Observações

adicionais sobre as neuropsicoses de defesa,106 intitulada “Análise de um caso de

paranoia crônica”: trata-se do primeiro relato de uma paciente paranoica

minuciosamente descrito por Freud. O fato de nele o autor ter procurado aplicar o

conceito de defesa e de ter pretendido encontrar as cenas sexuais infantis, como

já fizera a propósito da histeria, não implica que as diferenças deixassem de ser

percebidas. Tanto é assim que, nesse texto, a “projeção” é invocada para elucidar

o particular mecanismo paranoico, seguindo as indicações expostas um ano antes

no manuscrito H, onde o termo fez sua primeira aparição, ligada também à

elucidação do mecanismo da paranoia. Disse Freud: “A paranoia tem, portanto, o

propósito de defender-se de uma representação incompatível para o eu projetando

ao mundo exterior o sumário da causa que a própria representação estabelece”.107

A ideia de “fuga para a psicose” ou “desligamento da realidade” como

formas de defesa, assim como a existência de fatos traumáticos com poder de

desencadear processos psicóticos, alucinações ou delírios, pertencem a essas

primeiras aproximações.

Dentre o grupo das psicoses, a paranoia foi o primeiro quadro abordado por

Freud. Se, para os delírios de perseguição, ele encontrou nos mecanismos da

106 FREUD, S. (1896) Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa (1896)
In: AE, vol. III.
107 FREUD, S. (1895) Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Manuscrito H.(1895)
In: AE, vol. I, p. 249.
61

histeria – defesa, cenas sexuais infantis etc. – o ponto de comparação e

referência, para as alucinações, foram os fenômenos oníricos que serviram de

modelo.

O capítulo VII de A interpretação dos sonhos está inteiramente voltado à

construção de uma metapsicologia do fenômeno onírico. O conceito de

figurabilidade (Darstellbarkeit) ocupa papel decisivo na construção desse

arcabouço teórico. O que Freud pretende desvendar nesse escrito é a construção

das imagens do sonho, que ele propõe interpretar como “realização alucinada de

desejos infantis reprimidos”. A questão central é a alucinação: Freud se pergunta

como se criam as imagens oníricas. A suposição de um aparelho que

originalmente só trabalhe alucinando caracteriza a construção “ficcional” que

pretende sustentar as hipóteses de que o sonho é uma alucinação e de que a

alucinação de desejos do sonho supõe regressão a um modo de funcionamento

primitivo. Processo primário, processo secundário; princípio de prazer, princípio de

realidade; identidade de percepção, identidade de pensamento; energia livre,

energia ligada – esses são os termos empregados no texto, que formam, por

assim dizer, o reticulado conceitual que sustenta a teoria dos sonhos e a divisão

dos “sistemas”: inconsciente, por um lado, consciente/pré-consciente, por outro.

O fenômeno da alucinação, inerente ao sonho, é diretamente transportado

para os processos alucinatórios patológicos. Tanto é assim que o próprio sonho é

descrito como uma psicose normal. Os mesmos mecanismos regressivos

responsáveis pela produção do sonho estariam presentes nos processos


62

psicóticos que seriam, então, abordados como o resultado da regressão a

estágios iniciais do aparelho mental.

5. Analise freudiana dos sintomas da esquizofrenia

Da monumental descrição feita por Bleuler, vários foram os pontos que

Freud recolheu. Dentre eles destacamos: a presença de alucinações e delírios, o

afastamento da realidade, as alterações da linguagem e o embotamento afetivo.

Para a alucinação e o delírio, o modelo do sonho oferecia sustentação

metapsicológica bastante consistente: o funcionamento regressivo do aparelho

para a primeira; a realização de desejos projetados fora do aparelho, para o

segundo.

Foi, porém, o estudo sobre o afastamento da realidade que recebeu a maior

contribuição de Freud, por meio do conceito de narcisismo. Em Narcisismos,108

ocupei-me desse assunto extensamente; procurei mostrar que um dos rostos

desse conceito – que preferi pôr no plural para melhor refletir a diversidade de

seus usos e sentidos – está ligado aos fenômenos psicóticos. Ora, é a regressão

da libido ao narcisismo, fase intermediária entre o autoerotismo e a escolha de

objeto, que vai ser pensada como a responsável pelo afastamento do mundo.

Como se afirmou anteriormente, o delírio de fim de mundo e o de grandeza,

frequentes nas descrições feitas por Bleuler, encontrariam no narcisismo uma

forma de elucidação. O primeiro expressa a fase – considerada a mais patológica

– de abandono da libido dos objetos; o segundo é o produto da afluência maciça

108 MIGUELEZ, O. Narcisismos. Op. cit.


63

da libido vinda dos objetos e depositada no eu (narcisismo secundário), o qual,

assim, fica sobreinvestido e supervalorizado, megalômano. O narcisismo também

permitiria compreender o retraimento, o devaneio, aquilo que Bleuler nomeara

“autismo”.

Entretanto, restava ainda elucidar um dos sintomas mais espetaculares da

esquizofrenia: a alteração da linguagem que encontra na “salada de palavras” sua

forma mais extrema. Para essa finalidade, a metapsicologia do sonho parecia

insuficiente, pois, de fato, o que conta no sonho é a percepção, em especial a

visual. As palavras, no sonho, são submetidas ao processo de figurabilidade e são

“alusão a um acontecimento”109 , símbolo de uma cena, de uma imagem. As

palavras são tão estranhas à natureza do sonho que o relato falado sobre ele

constitui uma deformação, fazendo parte da elaboração secundária.

As alterações da linguagem

A resposta à questão sobre alterações de linguagem demorou alguns anos

para produzir-se e encontra-se no texto O inconsciente, escrito em 1915. Também

nele há apontamentos de grande importância para a consideração da

esquizofrenia:

Nos esquizofrênicos, observamos — especialmente nas etapas


iniciais, tão instrutivas — grande número de alterações da linguagem,
algumas das quais merecem ser consideradas a partir de um ponto de vista
particular. Frequentemente, o paciente devota especial cuidado a sua
maneira de se expressar, que se torna “afetada” e “preciosa”. A construção
de suas frases passa por uma desorganização sintática, que as torna

109 FREUD, S. (1900) La interpretación de los sueños. In: AE, vol. IV, p. 319.
64

incompreensíveis para nós, a ponto de suas observações parecerem


disparatadas.110

As alterações da linguagem observadas na esquizofrenia foram a

motivação maior que levou Freud a mudanças terminológicas na trama conceitual

do aparelho psíquico proposta em O inconsciente. Nesse magnífico texto, a

oposição de sistemas consciente/pré-consciente/inconsciente segue, em linhas

gerais, aquilo que se afirmara a respeito do sonho: processo primário/ processo

secundário; princípio do prazer/princípio de realidade; energia livre/energia ligada;

mas, no lugar do par de opostos identidade de percepção/identidade de

pensamento, presentes no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, Freud propõe

representação de coisa (Sachvorstellung ou Dingvorstellung), representação de

palavra (Wortvorstellung), conceitos articulados também com representação de

objeto (Objektvorstellung). É verdade que os “novos” termos desempenham

funções semelhantes; a mudança, porém, é significativa e remete ao escrito de

1891 sobre as afasias.

A referência às palavras e à linguagem, preocupação que data dos

primórdios da fundação da psicanálise, é tomada da monografia sobre as afasias,

de 1891 sem que a ela Freud faça menção expressa em O inconsciente. O fato é

descrito por Assoun como um efeito de “intratextualidade”:

Por um efeito estranho, Freud parece como metapsicólogo, citar a si


mesmo de certa forma clandestinamente, ao introduzir, como se fosse nova,
uma distinção [Wortvorstellung, Objektvorstellung, Sachvorstellung]

110 FREUD, S. (1915)Lo inconciente. Op. cit., p. 193 e 194.


65

edificada anteriormente num outro contexto. Existe aí, um verdadeiro efeito


de “intratextualidade”, que nos vai obrigar a tratar tanto da função discursiva
dessa oposição conceitual quanto de seu conteúdo conceitual. 111

Embora não fique explicitado no texto de 1915, é evidente que se retomam

os mesmos termos bem como as mesmas hipóteses a respeito do funcionamento

da linguagem do trabalho de 1891.

Vejamos em detalhes que Freud apresenta na sua monografia:

Para a psicologia, a unidade da função de linguagem é a “palavra”,


uma complexa representação que se apresenta composta de elementos
acústicos, visuais e cinestésicos (...). Geralmente são mencionadas quatro
componentes da representação palavra: a ”imagem acústica”, a “imagem
visual de uma letra”, a “imagem motora da linguagem” e a “imagem motora
do escrever”.112

A seguir, Freud descreve longamente a gênese da aquisição da linguagem,

o que inclui a leitura e a escrita. Também constrói uma longa concatenação de

imagens (acústicas, visuais e motoras) que, sobredeterminadas, constituem a

função da fala e garantem que eventuais falhas possam ser compensadas pela

redundância na determinação. O ponto mais cativante do texto surge ao se

considerar a denotação da palavra: ela é pensada como produto de sua ligação

com Objektvorstellung, ou representação-objeto, pelo menos quanto aos

substantivos. Tal representação-objeto constitui

111 ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Op. cit. p. 79.


112 FREUD, S. (1891) A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 67.
66

(...) um complexo associativo das mais diversas representações visuais,


acústicas, táteis, cinestésicas etc. Da filosofia aprendemos que a
representação objectual (Objektvorstellung) não compreende senão isso e
que a aparência de uma “coisa”, de cujas diferentes propriedades falam
aquelas impressões sensoriais, surge apenas à medida que, no leque das
impressões sensoriais obtidas por um objeto, incluirmos também a
possibilidade de uma longa sucessão de novas impressões na mesma
cadeia associativa (J. S. Mill). Em suma, a representação objectual
aparece-nos como uma representação não fechada e dificilmente
susceptível de fecho, ao passo que a representação de palavra nos
aparece como algo fechado embora susceptível de ampliação.113

Aqui se trata da relação das palavras e das coisas, e a solução freudiana

segue as linhas do utilitarismo de J. S. Mill, expressamente citado no texto. Apesar

disso, como assinala Assoun, é notável a coincidência dessas observações com

as concepções saussurianas do signo, contemporâneas às pesquisas de Freud.

Em ambos, trata-se do encontro de duas “nebulosas complexuais” 114 , palavra e

coisa. O tratamento que cada um fará de ambas as “nebulosas” marca a distância

que os separa. Em Freud, palavra e coisa abrem-se para uma teoria da

constituição do inconsciente e para o jogo de representatividade da pulsão. Em

Saussure, palavra e coisa desembocam na oposição significante/significado

constitutiva do signo, que dá início à linguística moderna.

113 FREUD, S. (1891) A interpretação das afasias. Op. cit., p. 70 e 71.


114 ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Op. cit., p.80.
67

J. S. Mill 115 influenciou Freud na investigação da gênese da aquisição da

linguagem. Com efeito, é na associação das percepções do objeto com os nomes,

seguindo a teoria dos nomes de Mill, que vai ser pensado o surgimento da

linguagem. A esse respeito afirma Assoun:

Freud toma emprestados os elementos de um nominalismo – que


fornece, via nomeação, a linhagem das Wortvorstellungen – e de um
realismo – que fornece via objeto da experiência, a linhagem das
Objektvorstellungen. (...) É desse nominalismo experimental que Freud faz
uso nessa ocasião. 116
.

A problemática aqui exposta foi a que deu inicio à presente pesquisa. Pela

óptica do utilitarismo inglês, partindo de sensações organizadas em percepções

de objetos, as palavras são nomes que, colocados arbitrariamente às coisas

percebidas, facilitam o pensamento. Como afirmou Giannotti na sua tese de

doutoramento, para Stuart Mill

Exceto essa substituição da sensação pela palavra, nada haverá no


pensamento concreto que o distinga da percepção. Em suma, não
pensamos as palavras, mas, graças a elas, pensamos as próprias coisas
denotadas. Perceber identifica-se finalmente a pensar e conhecer.117

Essa visão choca-se com a complexidade que a questão da significação e

da linguagem ganhou tanto no campo da linguística (Saussure), como na própria

115MILL, John Stuart . Um exame da filosofia de Sir William Hamilton. In: Os Pensadores:
Stuart Mill e Bentham . São Paulo: Abril Cultural, 1984.
116 ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Op. cit., p. 83.
117GIANNOTTI, A. John Stuart Mill: O psicologismo e a fundamentação da lógica.(tese de
doutoramento) In: Boletim n°269. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, 1964, p. 109.
68

psicanálise (Lacan). Reconhecer uma filiação, porém, não obriga a endossá-la. Se

a teoria dos nomes de Mill está presente nas obras iniciais de Freud, pelo menos

no que se refere aos substantivos, a articulação que o vienense fez dela

ultrapassa em muito a simplicidade dessa concepção, como se verá a seguir.

No entrelaçamento da questão da esquizofrenia com a linguagem, Freud

em O inconsciente, depois de afirmar que a oposição eu/objeto pareceu de

particular importância para a elucidação dos sintomas da esquizofrenia, hipótese

compartilhada com Abraham, também afirma:

No caso da esquizofrenia (...) fomos levados à suposição de que,


após o processo de recalque, a libido que foi retirada não procura um novo
objeto e refugia-se no eu; isto é, que aqui os investimentos de objeto são
abandonados, restabelecendo-se uma primitiva condição de narcisismo de
ausência de objeto.118

Trata-se da hipótese da regressão ao narcisismo: a libido volta ao eu

tomando-o como objeto da pulsão e assim, rompe a ligação libidinal com o mundo

que fica, por isso, desinvestido. A regressão ao narcisismo possibilitaria entender

a incapacidade de fazer transferência, a repulsa ao mundo exterior e a frequente

apatia, características atribuídas à esquizofrenia. Ficam por resolver, porém, os

comprometimentos da linguagem e a tópica do processo de retirada da libido dos

objetos. Com relação à linguagem Freud acrescenta:

118FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 193. Apesar da clara afirmação, desde o
Projeto, de um desamparo radical do ser humano e da necessidade de um auxílio alheio
para produzir a ação específica (presença obrigatória do outro para a vida e o psiquismo),
a frase “primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto” possui um ranço de
anobjetalidade que paira na obra de Freud tanto em relação ao autoerotismo como ao
narcisismo. Retomaremos depois essa questão.
69

Na esquizofrenia, as palavras estão sujeitas a um processo igual ao


que, a partir dos pensamentos oníricos latentes, cria as imagens do sonho –
que chamamos de processo psíquico primário. Passam por uma
condensação e, por meio de deslocamento, transferem integralmente seus
investimentos de uns para os outros. O processo pode ir tão longe que uma
única palavra, se for especialmente adequada devido a suas numerosas
conexões, assume a representação de todo um encadeamento de
pensamento. As obras de Bleuler, de Jung e de seus discípulos oferecem
grande quantidade de material que apoia particularmente essa assertiva.119

Na esquizofrenia, o processo primário dita as regras que regulam a

circulação das palavras: elas são livremente condensadas e deslocadas

transferindo seus investimentos entre si. Fica anulada sua conexão com o

processo secundário, e as palavras perdem, por isso, a capacidade de adiar, de

fazer os rodeios que caracterizam o pensar.

Se perguntarmos o que é que empresta o caráter de estranheza à


formação substitutiva e ao sintoma na esquizofrenia, compreenderemos
finalmente que é a predominância da referência à palavra sobre a
referência à coisa. (...) O que dita a substituição não é a semelhança entre
as coisas denotadas, mas a uniformidade das palavras empregadas para
expressá-las.120

Essa maneira de conceber os sintomas na esquizofrenia questiona a

fórmula da retirada dos investimentos sobre os objetos, inicialmente postulada. De

119 FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 196.


120 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 197.
70

fato, Freud vê-se obrigado a afirmar que as representações de palavra dos objetos

são preservadas na esquizofrenia, e a desdobrar a representação de objeto:

O que livremente denominamos de representação-objeto


(Objektvorstellung) consciente pode agora ser dividido em representação-
palavra (Wortvorstellung) e em representação-coisa (Sachvorstellung); a
última consiste na investidura, se não das imagens diretas da memória da
coisa, pelo menos de traços mnêmicos mais remotos derivados delas.121

Com algumas diferenças, a terminologia empregada remete ao texto das

afasias.122 Contudo, a articulação realizada em O inconsciente é muito mais

complexa e organiza as várias Vorstellung – de objeto, de coisa e de palavra – em

torno da divisão de sistemas: inconsciente, pré-consciente e consciente: a

representação de coisa pertence ao inconsciente; a representação de palavra ao

pré-consciente; a junção de representação de coisa com a de palavras, ao

consciente. Essa distribuição choca-se com o que se afirmou anteriormente a

respeito da sujeição das palavras na esquizofrenia. O processo primário,

característico do funcionamento dos processos inconscientes, domina a circulação

das palavras na esquizofrenia. As palavras são tratadas como a coisa

inconsciente. Essa incongruência leva Freud a algumas peripécias conceituais.

121 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 198.


122 O que ele denomina de “representação do objeto” no texto sobre as afasias, em O
inconsciente, chama de “representação de coisa”; ao passo que aquilo que em O
inconsciente é denominado ‘‘representação de objeto” denota um complexo formado pela
“representação de coisa”’ e pela “representação de palavra” combinadas — um complexo
que não recebeu nome algum no texto sobre as afasias. FREUD, S. (1915) Lo
inconciente. Apéndice C: Palabra y cosa, In: AE, vol. XIV, p. 207.
71

Em primeiro lugar, põe em questão a teoria do recalque no caso da

esquizofrenia, em especial sua definição como processo que acontece entre os

sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente. Essa afirmação aponta para a

ideia de ruptura da divisão dos sistemas e de um inconsciente a “céu aberto”, no

caso da esquizofrenia, em sintonia com a observação de que muito do que é

expresso pelos pacientes esquizofrênicos de forma direta e consciente só aparece

nas neuroses como produto de intenso trabalho analítico.

Em segundo lugar, Freud ratifica, tanto para neuroses como para psicoses,

a existência de uma tentativa pelo eu, de fuga da realidade, que consiste na

retirada do investimento libidinal consciente. O tema será amplamente abordado

em O problema da realidade na neurose e na psicose, de 1924. Porém, em O

inconsciente, afirma-se que, na esquizofrenia, o recolhimento dos investimentos é

muito mais radical e profundo que nas neuroses de transferência, atinge o

investimento pulsional dos lugares que representam à representação objeto

inconsciente e é seguido de um sobreinvestimento, muito intenso também, das

representações palavra de tal representação objeto. Esse sobreinvestimento é

assim explicado:

Acontece que o investimento da representação-palavra não faz parte


do ato de recalcamento, mas representa a primeira das tentativas de
recuperação ou de cura que tão manifestamente dominam o quadro clínico
da esquizofrenia. Essas tentativas são dirigidas para a recuperação do
objeto perdido e pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem
por um caminho que conduz ao objeto através de sua parte verbal, vendo-
se então obrigadas a se contentar com palavras em vez de coisas.123

123 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 200.


72

A primazia da palavra expressa a tentativa de restituir o mundo perdido pela

regressão e pelo desinvestimento. A palavra apresenta-se como substituto da

coisa, no lugar da coisa, e, nesse sentido, a linguagem, separada das coisas, fica

privada da ancoragem que torna possível articular abstrato e concreto. Por isso

Freud afirma:

Quando pensamos em abstrações, há o perigo de que possamos


negligenciar as relações de palavras com as representações inconscientes
da coisa, devendo-se externar que a expressão e o conteúdo do nosso
filosofar começam então a adquirir uma desagradável semelhança com
essa modalidade de operação nos esquizofrênicos. Podemos, de outro
modo, tentar uma caracterização da modalidade de pensamento do
esquizofrênico dizendo que ele trata as coisas concretas como se fossem
abstratas.124

Vários são os planos que Freud pretende articular em torno das palavras e

das coisas. Por um lado, coisa é referente da palavra, o que liga linguagem e

mundo, mas também é coisa inconsciente – representação coisa inconsciente –

materialidade inconsciente, sujeita ao processo primário. Ainda mais:

representação-coisa é representante pulsional, modo pelo qual a pulsão existe no

psiquismo. O mesmo poderia dizer-se de objeto. Objeto é “objeto do investimento

pulsional”, perdido na esquizofrenia, mas também é “coisa”, “representação de

coisa”, materialidade da “representação de palavra”.

124 FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 200 e 201.


73

Sonho e esquizofrenia

Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos traz novas contribuições

para a elucidação da esquizofrenia e de sua relação com os processos oníricos. A

comparação impõe-se por se tratarem ambos, sono e esquizofrenia, de

regressões ao narcisismo. Com efeito, aquele que se encontra adormecido retira-

se do mundo e cessa seu interesse para com ele, processo normal, não

patológico, mas semelhante ao proposto para a esquizofrenia. A regressão,

descrita na Interpretação dos sonhos como de três tipos – temporal, formal e

tópica –, recebe naquele texto novas contribuições que incluem o narcisismo. A

regressão temporal é subdividida em dois tipos: do eu e da libido. A regressão do

eu é ligada ao narcisismo; a da libido, à satisfação alucinatória do desejo.

Descreve-se assim a formação do sonho: a. o desejo de dormir pressiona

para recolher os investimentos que partem do eu e, assim, estabelecer o estado

narcisista; a tarefa cumpre-se só em parte, devido ao fato de o recalcado não

obedecer totalmente ao desejo de dormir; b. alguns dos pensamentos pré-

conscientes do dia podem também ser refratários a ceder sua investidura em

função de sua conexão com o recalcado inconsciente; c. forma-se, então, um

desejo onírico pré-consciente que se liga ao recalcado, ameaçando o sono; d. o

destino mais frequente desse desejo pré-consciente, reforçado a partir do

inconsciente, é seguir um caminho contrário do normal, regressivo; partindo do

pré-consciente, chega até a percepção e consegue, assim, por meio de uma

regressão tópica – no caso coincidente com a temporal –, uma alucinação do

desejo que garanta o sono. Acrescenta Freud:


74

Nesse processo, os pensamentos são transformados em imagens,


principalmente de natureza visual; isto é, as representações-palavra são
levadas de volta às representações-coisa que lhes correspondem, como se,
em geral, o processo fosse dominado por considerações de figurabilidade.
(...) Somente quando as representações-palavra que ocorrem nos resíduos
do dia são resíduos recentes e costumeiros de percepções, e não a
expressão de pensamentos, é que são tratadas como representações-
coisa, e sujeitas à influência da condensação e do deslocamento. (...)
É notável quão pouco a elaboração do sonho obedece às
representações de palavra; ela está sempre pronta a trocar uma palavra por
outra até encontrar a expressão mais conveniente para a figuração
plástica.125

Impõe-se comparar o processo descrito com a esquizofrenia:

É nesse sentido que a diferença essencial entre o trabalho do sonho


e a esquizofrenia se torna clara. Na última, o que se torna objeto de
modificação pelo processo primário são as próprias palavras nas quais o
pensamento pré-consciente foi expresso; nos sonhos, o que está sujeito a
essa modificação não são as palavras, mas a representação coisa à qual as
palavras foram reconduzidas. Nos sonhos há uma regressão tópica; na
esquizofrenia, não. Nos sonhos existe livre comunicação entre investiduras
de palavra (Pcs.) e investiduras de coisa (Ics.), enquanto é uma
característica da esquizofrenia que essa comunicação seja interrompida.126

A diferença é significativa e sutil. O que circula livremente deslocado e

condensado na esquizofrenia são representações-palavra que perderam sua

125FREUD, S. (1917) Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. In: Ae,


1976, vol. XIV, p. 226 e 227.
126FREUD, S. (1917) Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p.
227.
75

conexão com as representações-coisa; no sonho, as palavras foram reconduzidas

a sua expressão tópica primeira e circulam deslocadas e condensadas como

coisa. No sonho, o comércio entre as palavras e as coisas fica aberto; na

esquizofrenia não. Por isso, no sonho é possível o trabalho interpretativo de

recondução da imagem aos elos de linguagem que a elaboração onírica desfez; já

na esquizofrenia, isso não é possível.

As diferenças também aparecem no que concerne à alucinação. Em outras

psicoses, como, por exemplo, na amência de Meynert, a premissa geral de

“alucinação de desejo” é claramente reconhecida; na esquizofrenia não: nela a

alucinação é uma tentativa de restituição. Freud dirá a respeito:

A fase alucinatória da esquizofrenia tem sido estudada com menor


aprofundamento; parece ser, em geral, de natureza mais complexa, mas em
sua essência poderia corresponder a uma nova tentativa de restituição,
destinada a devolver às representações-objeto seu investimento libidinal.127

Embora uma vez mais Freud se desculpe por não possuir uma casuística

suficiente de quadros alucinatórios para poder ampliar suas conclusões, arrisca-

se, no caso da esquizofrenia, a afirmar:

Quanto à psicose alucinatória da demência precoce, inferiremos de nosso


exame que essa psicose não pode estar entre os sintomas iniciais da
afecção. Só se torna possível quando o eu do paciente se acha de tal forma
desintegrado que o teste da realidade não atrapalha mais a alucinação.128

127FREUD, S. (1917) Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p.


227.
128FREUD, S.(1917) Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p.
233.
76

O tema do “teste de realidade” ligado à questão da Verleugnung vai ser

amplamente desenvolvido em outros textos; entretanto, é aqui afirmada com

clareza a ideia de um eu que se desintegra na esquizofrenia. Fica, então, em parte

questionada a regressão ao narcisismo na esquizofrenia. A dispersão do

autoerotismo parece mais adequada para pensar os “sintomas” dessa complexa

afecção. Voltaremos a esse assunto a propósito de Schreber.

Com as mudanças na tópica, implementadas a partir dos anos 1920, altera-

se o peso que a complexa articulação das representações tem na metapsicologia.

A relação do registro inconsciente com a representação coisa é substituída.

Já em outro lugar adotei a suposição de que a diferença efetiva entre


uma representação (um pensamento) inconsciente e uma pré-consciente
consiste em que a primeira se consuma em algum material que permanece
não conhecido, ao passo que, no caso da segunda (a pré-consciente),
acrescenta-se a conexão com representações-palavra.129

Em troca, mantém-se a relação do pré-consciente com a representação de

palavra.

A linguagem de órgão

A consideração do corpo é essencial nos trabalhos de Freud; o que mais

lhe interessou dele, porém, foi sua propriedade erógena. A possibilidade de

qualquer parte do corpo ser objeto do investimento libidinal faz parte da extensão

do conceito de sexualidade inaugurado nos Três ensaios. Essa nova concepção

rompe com a noção de corpo/organismo sustentada pela biologia. O conceito de

129 FREUD, S. (1923) El yo y el ello. In: AE, vol. XIX, p. 22.


77

zona histerógena, ligado depois ao de zona erógena, é pedra fundamental na

concepção de histeria já nas primeiras épocas.

A proposta de uma sexualidade inicialmente autoerótica – característica da

primeira infância – apoiada nas pulsões de autoconservação, ligada a pulsões

parciais e ao prazer de órgão, constitui um dos alicerces da teoria freudiana sobre

a sexualidade. Tal teoria foi formulada antes da introdução do conceito de

narcisismo. Com a introdução, em 1914, desse conceito, o corpo volta à cena na

consideração da hipocondria e da doença orgânica; ambas as afecções foram

abordadas como caminhos de acesso ao estudo do narcisismo. Com a frase que

tomara de Busch, “na estrita cavidade do seu dente encerra-se sua alma toda”,

Freud pretendeu expressar quanto uma doença do corpo pode atrair para si todo o

interesse antes voltado para o mundo. Sendo a regressão ao narcisismo retorno

da libido ao eu, um pressuposto implícito fundamenta a regressão na doença

orgânica: eu e corpo formam uma unidade; a cavidade do dente é a do eu. Só em

1923, esse pressuposto explicitar-se-á: “O eu é, primeiro e acima de tudo, um eu

corporal”130, dirá em O ego e o id.

Freud encontrará na propriedade erógena do corpo o elo para a elucidação

da hipocondria. Nessa afecção, o corpo são é sentido “dolorosamente” pelo

massivo investimento produzido pela regressão libidinal que o erogeniza. A

regressão vem primeiro; a “doença”, depois.

Seguindo a trilha dos trabalhos desenvolvidos por Freud a respeito da

histeria e do narcisismo, o papel protagonista do corpo na esquizofrenia vinha

130 FREUD, S. (1923) El yo y el ello. Op. cit., p. 27.


78

sendo desenvolvido por algum de seus discípulos vienenses. Esse é o caso de

Victor Tausk.131 Como psiquiatra, Tausk trabalhou na clínica universitária de von

Jauregg, considerada uma das melhores de Viena,132 fato que Freud deve ter

valorizado muito, tanto em decorrência da falta de casuística própria, como da

maior independência que Viena permitia às contribuições vindas de Zurique.

Interessado pelas psicoses, especialmente pela esquizofrenia, Tausk desenvolve

uma concepção particular do corpo, da libido, do eu e do narcisismo na

esquizofrenia. Apesar das reservas expressas posteriormente,133 é de um caso de

Tausk que Freud se valera em O inconsciente para exemplificar a linguagem de

órgão na esquizofrenia:

No conteúdo dos enunciados [dos pacientes], as referências a


órgãos ou a inervações do corpo quase sempre ganham proeminência. A
isso se pode acrescentar o fato de que, em tais sintomas da esquizofrenia,
em comparação com as formações substitutivas da histeria ou da neurose
obsessiva, a relação entre o substituto e o material reprimido exibe

131 Victor Tausk foi um dos discípulos pioneiros de Freud. Frequentador do grupo das
quartas feiras, participou ativamente do movimento psicanalítico de 1908 a 1919, ano no
qual cometeu suicídio. Nascido em Zsilina, na Eslováquia, estudou primeiramente Direito
para depois, em Viena, fazer formação médica com o objetivo específico de tornar-se
psicanalista. Seu suicídio, cuidadosamente planejado de maneira a tornar infalível sua
morte, foi rodeado de circunstâncias abafadas durante muito tempo da memória da
psicanálise. Esse fato deu lugar a análises e especulações, algumas das quais foram
recolhidas por Joel Birman (BIRMAN, J. Memória, silêncio e esquecimento. Sobre Tausk e
a história da psicanálise. In: Tausk e o aparelho de influência na psicose. São Paulo:
Escuta, 1990) num artigo incluído no livro que apresenta a tradução ao português da sua
obra mais importante: Da gênese do “aparelho de influenciar” na esquizofrenia (TAUSK, V.
Da gênese do “aparelho de influenciar” na esquizofrenia. In: Tausk e o aparelho de
influência na psicose. São Paulo: Escuta, 1990).
132 BIRMAN, J. Memória, silêncio e esquecimento. Sobre Tausk e a história da psicanálise.
In: Tausk e o aparelho de influencia na psicose. Op. cit., p. 20.
133Freud reconheceu a originalidade e ousadia do pensamento de Tausk, mas também,
considerou sua pessoa uma “ameaça para o futuro”, o que ficou registrado em carta a Lou
Andreas-Salomé (ROUDINESCO E PLON. Verbete Tausk. Dicionário de psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 748).
79

peculiaridades que nos surpreenderiam nessas duas formas de


neuroses.134

O comentário é ilustrado com Emma A., paciente de Tausk – o famoso caso

“dos olhos tortos”. A tradução obscurece o sintoma apresentado pela paciente, já

que para a compreensão dele são essenciais a literalidade das palavras e sua

polissemia em alemão. Trata-se de uma moça que, brigada com o namorado,

queixa-se de ter os olhos tortos. Surpreende-se Freud pelo fato de a própria

paciente esclarecer sua queixa: seu namorado é um “torcedor de olhos”, “ele lhe

torceu os olhos”, “ela vê o mundo agora com outros olhos”. Ele apresenta-se de

formas muito cambiantes; cada vez é diferente: é um enganador, um simulador

(Augenverdrehen: literalmente “torcedor de olhos”; figuradamente “simulador”,

palavra composta: de Augen, “olho” e verdrehen, “torcer”). O que seria esperado

do produto do trabalho analítico surge nela espontaneamente, conscientemente.

Disse Freud:

Concordo com Tausk quando ressalta nesse exemplo que a relação


da paciente com o órgão corporal (o olho) arrogou-se a si a representação
de todo o conteúdo [dos pensamentos dela]. Aqui o dizer esquizofrênico
exibe uma característica hipocondríaca: tornou-se “linguagem de órgão”.135

A concordância, porém, é relativa. Nos comentários feitos a respeito do

caso, Tausk não se interessa pelas palavras; focaliza a identificação com o

perseguidor, dando à identificação o sentido de uma forma prévia à escolha de

134 FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 194.


135 FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 195.
80

objeto.136 A identificação, assim definida, expressa indiscriminação e aponta para

um narcisismo primevo,137 ainda sem a participação do eu nem da representação.

A linguagem de órgão, proposta por Tausk, tem pouco de linguagem; os órgãos –

o corpo – são os primeiros “objetos” a descobrir por identificação; eles mesmos

são os protagonistas.

Para Freud, o elo de elucidação passa pelo parentesco entre a hipocondria

e a esquizofrenia; ambas dependem da libido do eu. Neuroses dependem da libido

de objeto; expressam conflitos com o objeto. A respeito da jovem dos “olhos

tortos”, uma histérica faria uma conversão, torceria os olhos como símbolo,

formação substitutiva de sua desavença, e nada poderia explicar do acontecido; a

significação do sintoma permaneceria inconsciente.

O dizer esquizofrênico é marcado pela hipocondria e pela “linguagem de

órgão” porque a regressão libidinal, atribuída a essa afecção, encontra no corpo

um objeto substituto dos investimentos de objeto relegados, recebendo deles

maciços investimentos que o colocam no centro das atenções. A erogenização do

corpo, assim consumada, é a base da concepção freudiana da hipocondria e

136Tal como Freud definirá a identificação primária em 1921, no capítulo VII de Psicologia
do grupo e análise do ego.
137O conceito de narcisismo freudiano é dividido por Tausk em dois estágios: o primeiro é
denominado estádio de “narcisismo inato”, ao qual opõe um segundo, chamado
“narcisismo adquirido”. O narcisismo inato é caracterizado por um estado de “pura
satisfação consigo mesmo”, período no qual “não há objeto do mundo exterior (...) não
existe ego nem consciência do sujeito” (TAUSK, V. Da gênese do “aparelho de influenciar”
na esquizofrenia. In: Tausk e o aparelho de influencia na psicose. Op. cit. p. 56). Trata-se
de uma anobjetalidade radical onde as estimulações sensoriais são vistas como
“endógenas e imanentes”, sem “distância espacial e temporal entre objeto estimulante e
sensação percebida” (idem p. 57). Não há corpo; o próprio corpo “ainda é considerado
como mundo exterior” e precisa ser descoberto como objeto. Como resultado de uma
primeira projeção encontram-se o corpo e os órgãos, sem serem eles ainda
“representações do corpo”, como será depois no narcisismo adquirido, no qual a presença
do eu e da representação do corpo permitem nova reorganização.
81

sustenta o papel protagonista do corpo, tanto na hipocondria como na

esquizofrenia. O corpo é um território invadido pelas intensidades pulsionais, o

que permite entender a ruptura tanto com a lógica do organismo como com a da

linguagem.

Simanke e Caropreso em um recente trabalho 138 vão mais longe.

Procurando no Projeto e na monografia sobre as afasias elos de elucidação para a

linguagem de órgão esquizofrênica, recolhem algumas indicações nesses textos

que lhes permitem afirmar:

Se, em sua origem, (...) as representações de objeto adquirem


significado a partir da sua associação com representações corporais (as
representações dos estados internos do organismo, como Freud sustenta
no “Projeto...“) e se as representações de palavra adquirem significado a
partir da sua associação com os objetos (tal como consta no ensaio sobre
as afasias), pode-se inferir que, na esquizofrenia, quando as palavras
passam a se referir diretamente ao corporal, elas estão, na verdade,
resgatando o sentido originário das palavras.139

Na análise feita pelos autores, a questão da significação permanece central.

O significado original das palavras desvendado por eles, ligado a enunciados do

Projeto, permite constatar quão forte foi a atração de Freud pelos modelos

filológicos, as genealogias de significado, o sentido arcaico das palavras – por

vezes antitético –, as etimologias, enfim, o estilo da linguística dominante à época,

muito ligada à filologia.

138CAROPRESO, F., SIMANKE, R. T. A linguagem de órgão esquizofrênica e o problema


da significação na metapsicologia freudiana, Revista de filosofia: Aurora, vol. 18, n° 23.
Curitiva, jul/dez. 2006, pp. 105-128,.
139 CAROPRESO, F., SIMANKE, R. T. Op. cit., p. 116-117.
82

No caso Emma A., tomado de Tausk, a questão da materialidade das

próprias palavras – o Augenverdrehen – segue a linha do proposto para a

esquizofrenia: a primazia da palavra em relação à coisa. Pelo caminho das

palavras, o sujeito tenta reinvestir o mundo perdido pela regressão narcisista; elas,

porém, estão muito ligadas ao corporal, perdem sua ligação com o processo

secundário que auxilia o pensar, são capturadas pelo processo primário e,

livremente condensadas e deslocadas, tornam-se incompreensíveis.

Questionamentos

Muitas questões ficam em aberto. O conceito de representação de coisa,

quase sinônimo de inconsciente na metapsicologia, permanece problemático. Não

por acaso, no final da obra, Freud desiste de determinar a materialidade do

inconsciente. A definição da representação-coisa, em ligação com as ”imagens

diretas da memória da coisa”, ou, “pelo menos de traços mnêmicos mais remotos

derivados delas” 140, é igualmente incerta e duvidosa. É verdade que Freud

empenha-se em pensar a linguagem como uma produção tardia, algo que chega

ao sujeito com posterioridade, como obra da inibição produzida pelo eu – no

Projeto –, e como ação do processo secundário – no Projeto, na Interpretação dos

sonhos e na Metapsicologia. Mesmo assim, é difícil pensar o percebido sem estar

atravessado pela significação produzida pela linguagem. Que essa significação

esteja primeiro no outro, e não no infans, não quer dizer que ela não participe de

140 “O que livremente denominamos de representação-objeto (Objektvorstellung)


consciente pode agora ser dividido em representação-palavra (Wortvorstellung) e em
representação-coisa (Sachvorstellung); a última consiste na investidura, se não das
imagens diretas da memória da coisa, pelo menos de traços mnêmicos mais remotos
derivados delas.” FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 197 e 198.
83

algum modo. Para que a imagem de um livro, de perfil ou de frente, constitua-se

como imagens do mesmo livro, é necessário algo mais que o olho aberto do

infans. Há a manipulação, mas também há o auxilio alheio, a presença de um

outro para o qual o livro já está incluído no sentido, e por isso o apresenta, dá-lo a

ver. A memória, direta ou remota, também não é “a coisa”; ela supõe um trabalho

que muitas vezes nos engana. Contudo, o maior problema da representação coisa

freudiana radica na pluralidade de articulações que ela suporta: a coisa é o

investido, o pulsional; a coisa é o inconsciente – e pulsional –; a coisa é o mundo.

Muitos jogos complexos de representação permanecem escondidos numa

aparência de clara inteligibilidade.

Podemos até concordar, seguindo Freud, com o papel da figurabilidade nos

primórdios da vida, com a propensão a alucinar como tendência geral do aparelho

psíquico nos começos. Contudo, a linguagem está no mundo antes mesmo do

infans apropriar-se dela, e ela conforma o mundo. Nosso mundo é um mundo

atravessado pela linguagem. Tomamos contato com o inconsciente e com o

mundo através da linguagem, e é na palavra que eles se fazem presentes. O

inconsciente é conformado pela linguagem, tanto como o mundo o é. É só graças

à linguagem que o inconsciente alcança existência. Como já disse S. Viderman,

“(...) a linguagem o informa [ao inconsciente] e nos dá uma tradução em termos

linguísticos daquilo que, alhures, teria uma estrutura diferente – e completamente

inimaginável”. Assim:

A linguagem não nos diz o que se passa alhures; não desvenda uma
verdade ocultada alhures; nomeando o desejo, dá-lhe uma existência que,
se recebe suas virtualidades energéticas de outra parte, ainda além da
84

nomeação, é vazado na forma da palavra que ele passa da potência


simplesmente virtual, in-forme, ao ato próprio de uma existência
formulada.141

É no terreno das “virtualidades energéticas” – tal como se expressa

Viderman –, ou seja, no campo da pulsão, que se encontra a mais importante

contribuição feita por Freud aos enigmas da psicose. Nesse sentido, é possível

afirmar que o narcisismo – articulado com o autoerotismo e a escolha de objeto –

conceito plural, complexa articulação nascida da interlocução de Freud com os

psiquiatras da clínica Burghölzli – Jung e Bleuler em especial –, é a resposta mais

sólida, mais profunda e mais original feita aos desafios da psicose.

6. O Schreber de Freud e a esquizofrenia

As memórias do presidente Schreber,142 escritas em 1900 e publicadas em

1903, foram muito comentadas e divulgadas nos âmbitos psiquiátricos da época;

já eram famosas quando, em 1910, Freud escreve suas Notas,143 pouco antes da

morte de Schreber em 1911. Apesar da fama previamente conquistada pela obra,

sem dúvida foi o trabalho de Freud quem imortalizou Schreber e suas memórias.

O texto de Freud sobre Schreber promoveu, por sua vez, uma série de pesquisas

sobre a vida do Presidente, pouco conhecida no momento da escrita. Vieram à luz

141 VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta, 1990, pp. 60 e
61.
142SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
143 FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia
(Dementia paranoides). In: AE, vol. XII, 1980.
85

a composição da família, registros de internações, fotografias, gráficos dos

aparelhos ortopédicos criados pelo pai de Schreber – enfim, um copioso material

que poderia constituir em si mesmo uma tese.144 Além disso, o texto sobre

Schreber tornou-se referência obrigatória para os psicanalistas quando o assunto

abordado fosse paranoia ou psicose.145

O quadro clínico apresentado por Schreber foi definido como paranoia

(dementia paranoides). A análise de Freud inclui, além do delírio de perseguição,

outras formas de delírio, como o de ciúmes, o erotomaníaco e o de grandeza. O

caráter delirante da produção de Schreber não apresenta dúvidas nem

questionamentos; entretanto, a delimitação diagnóstica do delírio abre-se a

algumas controvérsias. Na tradição psiquiátrica francesa,146 a categoria delírio

crônico é muito ampla e inclui formas fantásticas que parecem melhor ajustar-se

às características apresentadas por Schreber que as da paranoia. Como foi uma

constante na sua obra, Freud não parece, porém, muito preocupado com a

nosografia. Referenda o diagnóstico dementia paranoides, proposto por Flechsig,

sem questioná-lo. Acrescenta só que dementia assinala a abundante presença de

alucinações e o parentesco com a esquizofrenia; já paranoides aponta para

projeção. O parentesco, porém, é muito relativo. Nem alucinações nem delírios

144BAUMEYER, F. , KATAN, M., y outros. Los casos de S. Freud: El caso Schreber.


Buenos Aires: Nueva Visión,1972.
145Esse foi a caso de M. Klein e também o de Lacan, que apoiou nele conceitos como o
de forclusão, eixo de sua concepção da psicose, ou, também, nas últimas obras, o
empurre à mulher, relacionado com a forclusão do nome do pai.
146 EY, H. Tratado de psiquiatria. Barcelona: Toray-Masson, 1965. Cap. VII.
86

foram assinalados como sintomas fundamentais da esquizofrenia e Freud devia

saber disso, pois a monografia de Bleuler já era bem conhecida.

Embora existam claras referências à esquizofrenia, ela não constitui o

centro das elaborações de Freud sobre o caso e comparece pouco no trabalho. O

que o autor pretende desvendar é o determinante do delírio na paranoia. Os

delírios na demência precoce – sempre pouco estruturados –, ou o conceito de

esquizofrenia paranoide, proposto por Bleuler na sua obra sobre a esquizofrenia,

não comparecem no texto e diferem em muitos pontos das características

apresentadas por Schreber; mesmo assim, a patologia de Schreber abre-se para

comparações e para o estabelecimento de parâmetros diferenciais realizados no

percurso da análise feita.

Homossexualidade e paranoia

É conhecida a concepção freudiana da paranoia surgida a partir da análise

do texto de Schreber: a paranóia é uma defesa contra a homossexualidade.

A simplicidade dessa afirmação oculta uma complexidade que a vasta

literatura psicanalítica escrita a esse respeito não tornou mais transparente. Um

dos pontos obscuros diz respeito ao termo homossexualidade. Como tantos outros

que a psicanálise utiliza, ele adquire significações diferentes dependendo das

articulações metapsicológicas em que é incluído. Embora pareça óbvio dizê-lo, na

psicanálise freudiana homossexualidade é algo muito mais abrangente do que

comumente se pensa hoje como “opção sexual”. Vou tentar esquematizar algumas
87

das determinações do termo homossexualidade, já analisadas em outro

momento.147

A “bissexualidade”, hipótese central nas teorizações de Fliess, assentadas

em considerações fundamentalmente biológicas e embriológicas, é uma das suas

primeiras determinações. Com efeito, Freud retém e faz sua a ideia de uma

bissexualidade originária ou hermafroditismo psíquico, até praticamente o fim da

sua obra. Nos Três ensaios, a bissexualidade – ou hermafroditismo psíquico –

participa da análise da inversão, embora as conclusões desse estudo apontem

para uma indeterminação muito abrangente do objeto pulsional que ultrapassa em

muito a disposição bissexual. Contudo, a ideia de uma organização bipolar da

sexualidade é uma decorrência da sua adesão à hipótese da bissexualidade.

O erotismo anal, associado à polaridade passividade/atividade, é outra das

determinações do termo homossexualidade. No caso do homem dos ratos, escrito

um pouco antes do caso Schreber, depois de afirmar que a punição com ratos

incitara o erotismo anal, Freud aponta o simbolismo do rato como pênis, bem

como o equipara ao de lombrigas, aquelas que haviam penetrado no ânus de seu

paciente quando criança. O prazer anal descrito está longe de significar escolha

de um parceiro do mesmo sexo. No caso do homem dos ratos, apenas encena as

tribulações da relação passiva frente ao pai. Quando se fala de erotismo anal, fala-

se de uma erótica que se desenvolve com relativa independência da diferença

sexual, não só porque o ânus é patrimônio de todos os humanos e, nesse sentido,

não marca diferença, senão também porque masculino-feminino é uma polaridade

147 MIGUELEZ, O. Narcisismos. Op. cit.


88

que lhe é alheia. A essência do que foi denominado “fase anal” poderia resumir-se

ao antagonismo entre submissão passiva e rebeldia ativa, alternando-se em

perpétua ambivalência.

Em relação à homossexualidade, pouco a pouco, o “complexo paterno”, a

relação de autoridade e obediência ao pai, vai tornando-se central. Isso acontece

tanto na abordagem da neurose obsessiva do homem dos ratos, como nas

considerações tecidas em torno do delírio do presidente Schreber. É conhecida a

sequência de substituições apontada por Freud na análise do caso Schreber: de

Deus/Sol a Flechsig, de Flechsig ao irmão, do irmão ao pai. Essa sequência que

“a paranóia fragmenta”148 é desvendada por ele e constitui um dos pilares de a

hipótese da paranoia ser uma defesa contra a homossexualidade. Em relação a

Deus, existia em Schreber uma mistura de blasfêmia e devoção; essa

ambivalência estava presente também em relação a seu pai. Enfim, a

homossexualidade da qual Schreber se defende está por inteiro amarrada à libido

que o liga a seu pai e comporta a mesma ambivalência fundamental constitutiva

da relação pai-filho. Poder-se-ia dizer que, segundo Freud, é a relação de

passividade homossexual do homem com seu pai o elemento central na paranoia.

Contudo, soa abusivo pensar em homossexualidade antes mesmo da

determinação das diferenças sexuais. É por isso que o mais relevante da

homossexualidade na paranoia se reduz, em última instância, ao papel do pai – a

passividade/atividade em relação a ele – na construção do psiquismo.

148 “A paranóia fragmenta assim como a histeria condensa.” FREUD, S. (1911)


Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia... op. cit., p. 47.
89

Ora, o pai receberá, com Totem e Tabu, aprofundamentos decisivos, que

faltam na análise de Schreber. Efetivamente, a postulação, de cunho darwiniano,

de uma horda primitiva dominada por um pai despótico, dono e senhor de todas as

mulheres, que é assassinado e devorado pelos filhos, assinala uma mudança no

terreno no qual se inscrevem as vicissitudes da relação pai-filho. Do âmbito restrito

do desenvolvimento individual passa-se ao da constituição da cultura e do social.

O assassinato do pai da horda vai marcar, pela obediência retrospectiva, o

surgimento “das organizações sociais, as limitações éticas e a religião”.149 O

complexo paterno ganha um perfil antropológico que define de um só golpe – a

figura do pai morto – tanto a organização de uma tópica psíquica como a

constituição de um contrato que fundamenta o simbólico social.

Contudo, a virada maior no tema da homossexualidade na paranoia ainda

pertence ao texto sobre Schreber: trata-se do narcisismo. Diz Freud:

Indagações recentes dirigiram nossa atenção para um estádio da


história evolutiva da libido, entre o autoerotismo e o amor objetal. Esse
estádio recebeu o nome de narcisismo. O que acontece é o seguinte: chega
uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne suas
pulsões sexuais (que até aqui haviam estado empenhadas em atividades
autoeróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a
si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas
subsequentemente que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa
que não ele mesmo, como objeto. Essa fase equidistante entre o
autoerotismo e o amor objetal pode, talvez, ser indispensável normalmente;
mas parece que muitas pessoas se demoram por tempo inusitadamente

149 FREUD, S. (1913) Tótem y tabú. In: AE, 1976, vol. XIII, p. 144.
90

longo nesse estado e que muitas de suas características são por elas
transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento.

Ainda acrescenta:

Visto nossas análises demonstrarem que os paranoicos se esforçam


por proteger-se contra esse tipo de sexualização de suas investiduras
pulsionais-sociais, somos levados a supor que o ponto fraco em seu
desenvolvimento deve ser procurado em algum lugar entre os estádios de
autoerotismo, narcisismo e homossexualismo, e que sua disposição à
enfermidade (que talvez seja suscetível de definição mais precisa) deve
estar localizada nessa região. Uma disposição semelhante teria de ser
atribuída aos pacientes que sofrem da demência precoce de Kraepelin ou
de (como Bleuler a denominou) esquizofrenia; e esperamos,
posteriormente, encontrar pistas que nos permitam remontar as diferenças
entre os dois distúrbios (com referência tanto à forma que assumem quanto
ao curso que seguem) a diferenças correspondentes nas fixações
disposicionais dos pacientes.150

Como se vê, desloca-se o eixo da homossexualidade para o narcisismo. A

escolha homossexual obtém aqui seu sentido no narcisismo. No trabalho sobre

Schreber, a escolha homossexual faz parte da escolha narcisista: amar-se a si

mesmo inclui o investimento nos próprios genitais, e esse investimento arrasta

para a escolha seguinte – objetal – objetos de amor com os mesmos genitais.

Esboça-se, assim, um caminho normal que, a partir do narcisismo, chega à

heterossexualidade, passando pela homossexualidade. Daí em diante, será o

150FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia Op. cit.,


pp. 57 e 58.
91

aprofundamento do conceito de narcisismo que renderá frutos e permitirá a Freud

aperfeiçoar a metapsicologia da psicose.

A homossexualidade, por sua vez, encontra outros rumos, quando Freud

analisa uma lembrança infantil de Leonardo – texto escrito um ano antes do caso

Schreber – que a ligam à identificação com a mãe. Não cabe aqui aprofundar-se

nesses desenvolvimentos, embora valha a pena salientar que as identificações e o

Édipo serão o caminho privilegiado nas análises posteriores no que diz respeito à

homossexualidade, tal como foram desenvolvidas em Um caso de

homossexualidade feminina, Dostoievski e o parricídio ou O ego e o id.

Autoerotismo, narcisismo, paranoia e esquizofrenia

Como se sabe, a sequência de mudanças realizadas sobre a frase “eu o

amo” levaram a Freud a elucidar os tipos de delírios paranoicos mais frequentes:

no de perseguição, “eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue”; no

erotomaníaco, “eu não o amo, eu a amo, porque ela me ama”; no de ciúmes, “não

sou eu quem ama o homem, ela o ama”; no de grandeza, “eu não amo ninguém

eu amo somente a mim”.151 Nessa série de transformações a projeção cumpre

papel fundamental.

Ora, é o mecanismo de projeção, surgido já no Manuscrito H como ligado à

paranoia, que recebe determinações específicas. Ele é pensado como central na

construção do delírio: “A formação de sintomas na paranoia exige que as

percepções internas – sentimentos – sejam substituídas por percepções

151 FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op.


cit., pp. 58 e 59.
92

externas”,152 isto é, projetadas. Também dirá: “Foi incorreto dizer que a sensação

sufocada (unterdrükte) internamente é projetada para o exterior; entendemos

melhor que aquilo que foi internamente cancelado (Aufgehobene) retorna desde

fora”.153

A partir da análise da convicção de Schreber da existência de uma grande

catástrofe mundial (fim de mundo), da ideia delirante de ele ser o único homem

real que restaria, Freud vai formular a hipótese central de sua concepção da

psicose:

O doente retirou das pessoas de seu ambiente e do mundo externo


em geral, o investimento libidinal que até então havia dirigido a elas; com
isso, tudo se tornou indiferente e irrelevante para ele, o que tem de ser
explicado através de uma racionalização secundária, como coisa de
“milagre improvisado às pressas”. O sepultamento do mundo é a projeção
dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim, desde que ele
lhe retirou seu amor. (...) A formação delirante, que presumimos ser o
produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um
processo de reconstrução.154

A ideia de uma regressão narcisista será a hipótese que regerá a

compreensão da psicose de modo geral, não só da paranoia, também da

esquizofrenia.155 Contudo, paranoia e esquizofrenia não se confundem no texto

152 FREUD, S. (1911)Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op. cit.


p. 59.
153 FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op. cit.
p. 66.
154 FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op. cit.
p. 65.
155 Em “Luto e melancolia”, a psicose maníaco-depressiva também será incluída.
93

sobre Schreber. Depois de propor parafrenia para substituir tanto “demência

precoce” como “esquizofrenia”, termo que não prosperou, Freud afirma que a

projeção não está presente na esquizofrenia do mesmo modo que na paranoia; a

reconstrução na esquizofrenia utiliza-se da alucinação. Também o desenlace

desfavorável da última assinala um grau de regressão maior, na direção do

autoerotismo infantil, o que faz com que a corrente homossexual, por ser mais

restrita, mais próxima do objeto, não tenha maior participação.

Algumas dessas afirmações serão modificadas por Freud posteriormente. A

relação do autoerotismo com a esquizofrenia, claramente afirmada no texto sobre

Schreber, será omitida no texto de 1914 e nos trabalhos da metapsicologia. É

verdade que o termo narcisismo acabara de ser inaugurado – em Schreber fez

sua primeira aparição – e seus contornos encontravam-se ainda muito imprecisos.

O mesmo poderia ser dito sobre os artigos escritos em 1908 por Abraham,156

ambos publicados antes de Freud ter introduzido o termo narcisismo, nos quais

também aparece o autoerotismo ligado à esquizofrenia. Mesmo assim, o modelo

da dispersão autoerótica parece mais ajustado que o do narcisismo para dar conta

dos traços essenciais dessa complexa afecção. Não se pode esquecer que Freud

afirma que o eu na esquizofrenia pode desintegrar-se.157

156ABRAHAM, K Sobre o significado de traumas sexuais juvenis para a sintomatologia da


demência precoce. A tradução desse trabalho foi cedida por meu orientador Manoel
Berlinck e será publicada em breve pela editora Escuta. ABRAHAM, K. Las diferencias
psicosexuales entre la histeria y la demencia precoz. In: Psicoanálisis clínico. Buenos
Aires: Hormé, 1994.
157
FREUD, S. (1915) Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p.
233.
94

Em relação às alucinações, colocadas de modo central no texto que

acompanhamos, ocupam um papel lateral na metapsicologia, quando o acento se

desloca para as alterações da linguagem; as alucinações vão ser pensadas como

uma fase pouco estudada, seguramente não inicial, decorrente da progressiva

desintegração do eu, que deixa de testar a realidade e com isso facilita a

alucinação. Esse deslocamento da percepção para a linguagem evidencia a

centralidade que Freud atribuiu a essa questão na esquizofrenia; o texto de 1915

está fortemente marcado pelo modelo psicopatológico da esquizofrenia, assim

como pelo conceito de narcisismo ligado a ela. A questão do teste de realidade, a

concepção da realidade em Freud será o tema que desenvolveremos logo a

seguir.

Antes disso, mais uma questão. Um toque de genialidade encerra a análise

de Schreber: Freud observa a semelhança de sua teoria da libido com alguns

elementos do delírio dos “raios de Deus”. Essa semelhança o leva a dizer:

Compete ao futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do


que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do
que outras pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar.158

Essa reflexão, coerente com os perigos da abstração e do filosofar,

anteriormente expostos a respeito da esquizofrenia, rompe as fronteiras

pretensamente nítidas entre loucura, saber e verdade. Efetivamente, pode haver

uma verdade a desvendar no interior de uma formulação louca, assim como pode

haver loucura no instrumento utilizado para desvendar a loucura, seja no sentido

158 FREUD, S. (1917) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op, cit.
p. 72.
95

de afirmar a existência de um delírio ou de supor uma verdade contida nele. O

próprio saber, o querer saber, a pretensão de saber constituem uma forma de

loucura, e a paranoia tem muito disso. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que

a produção esquizofrênica continua hoje desafiando com seus enigmas a

capacidade e os limites dos homens para desvendá-los.

7. Realidade e significação na obra de Freud

Por fim, um último elemento fundamental para a compreensão da

esquizofrenia em Freud é a noção de realidade. Em diversos textos e em

momentos decisivos e bem delimitados de sua produção Freud a aborda ao

discutir a alucinação. Parte da ideia de que quando as alucinações aparecem,

fazem-no como consequência da deterioração do eu que, ao desintegrar-se, deixa

de testar a realidade, abrindo caminho para alucinar. Um primeiro momento

constitutivo dessa noção corresponde à diferenciação representação/percepção

presente nos textos iniciais – o Projeto e a Interpretação dos sonhos. Um segundo

momento está ligado às mudanças decorrentes da introdução do conceito de

narcisismo (a postulação de eu prazer e do eu realidade paralelamente aos

princípios – de prazer e de realidade – e à prova de realidade). Por último, um

terceiro momento está centrado no conceito de Verleugnung, fundamental na

separação neurose/psicose e na articulação com o conceito de negação

(Verneinung). São esses momentos que passaremos agora a analisar.

A realidade no Projeto e em Interpretação dos sonhos


96

Desde o Projeto para uma psicologia científica, Freud se viu frente à

necessidade de pensar quais seriam os caminhos que conduziriam ao

reconhecimento da realidade. Havendo postulado para o aparelho psíquico um

funcionamento que, graças ao auxílio alheio, é capaz de registrar uma vivência de

satisfação e, a partir dela, desejar, foi obrigado a pensar num modo de discriminar

a lembrança de um objeto de satisfação da presença real dele. Se essa

discriminação não fosse possível, produzir-se-ia uma descarga inadequada

(alucinatória) que ocasionaria aumento da quantidade de excitação e, como

corolário, desprazer. Também seria necessária alguma indicação que permitisse

evitar os caminhos que conduziriam ao desprazer. Ambas as situações obrigam a

distinguir percepção de representação ou ideia. No esquema proposto no Projeto,

são os neurônios ω os encarregados de fornecer a indicação de realidade

necessária e permitir

(...) a inibição pelo eu, que possibilita um critério de diferenciação


entre a percepção e a lembrança. A experiência biológica ensinará, então, a
não iniciar a descarga antes da chegada da indicação da realidade e, tendo
essa finalidade em vista, a não levar o investimento das lembranças
desejadas além de certa quantidade.159

Essas considerações levaram Freud a propor a existência de processos

psíquicos primários, que conduzem à alucinação, e processos psíquicos

secundários, nos quais a ação inibitória do eu possibilita a espera e, com isso, o

êxito. Para que o modo secundário de funcionamento mental aconteça, e para que

159 FREUD, S. (1895) Proyecto de psicologia In: AE, vol. I, p. 371.


97

o pensar observador possa levar a discernir, orientando a descarga da excitação,

uma complexa rede de ligações será necessária. A principal delas é a associação

linguística, ou seja, a possibilidade de utilização da linguagem para conseguir

registro na consciência – assunto sempre problemático no Projeto –, e a

velocidade de procedimento. A associação linguística consistiria, então, na

vinculação “de neurônios Ψ com neurônios utilizados nas representações sonoras,

que, por sua vez, encontram-se intimamente associadas com as imagens verbais

motoras”.160 Dessa maneira, uma mínima descarga será produzida na inervação

motora da linguagem provocando indicações (signos) de descarga verbal;

equiparam-se, assim, “os processos de pensamento com os processos

perceptivos, conferindo-lhe [ao pensamento] realidade e possibilitando a sua

lembrança”.161 A associação linguística descrita serve secundariamente para a

comunicação, orientando o auxiliador externo a respeito do estado de necessidade

do bebê e, por isso, termina sendo incluída na ação específica.

O modo como está expresso o problema da consideração da realidade no

Projeto marca o que será uma tendência no conjunto da obra de Freud:

primariamente estamos mais preparados para alucinar. A linguagem cumpre um

papel importante na discriminação da realidade, mas, esse papel é

secundariamente alcançado e é o resultado de complexos procedimentos

associativos. À realidade submetemo-nos depois de longos processos e muito

esforço.

160 FREUD, S. (1895) Proyecto de psicología. Op. cit. p. 413.


161 FREUD, S. (1895) Proyecto de psicología. Op. cit. p. 414.
98

No capítulo VII de Interpretação dos sonhos, considerado a primeira

metapsicologia, mesmo que não nomeada como tal, os neurônios são deixados de

lado. Em linhas gerais, Freud repete o já esboçado no Projeto: processo primário,

identidade perceptiva, energia livre, princípio de desprazer (assim é denominado);

processo secundário, identidade de pensamento, energia ligada, princípio de

desprazer modificado. A realidade emerge da intervenção do rodeio do

pensamento,

(...) contudo, esse objetivo [orientar a ação pelo pensamento]


raramente é atingido por completo, mesmo na vida anímica normal, e nosso
pensar está sempre exposto a um falseamento por interferência do princípio
do desprazer.162

O pensamento ocupa o lugar da associação linguística do Projeto e, como

naquele, é um processo secundário; primariamente só contamos com a

alucinação. Mais ainda: a tendência ao prazer pode falsear a leitura que o

pensamento fará da realidade, mesmo na vida psíquica normal.

Quando, no texto de 1911,163 Freud retoma o tema dos princípios, haverá

uma pequena mudança de denominação: falará de princípio de prazer e princípio

de realidade – e abandona as denominações princípio de desprazer e princípio de

desprazer modificado pela ação da realidade. A tarefa de discernimento da

realidade será resultado da ação do princípio de realidade, destacando-se tanto a

correta leitura da realidade como a importância do mundo externo. Por isso afirma:

162 FREUD, S. (1900) La interpretación de los sueños. In: AE vol. V, p. 592.


163FREUD, S. (1911) Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico. In: AE,
vol. XII..
99

“A consciência aprendeu então a abranger qualidades sensórias, em acréscimo às

qualidades de prazer e desprazer que até então lhe haviam exclusivamente

interessado”.164 Com essas capacidades, uma série de registros da realidade será

consignada, constituindo um acervo mnêmico que orientará o percurso a seguir. A

realidade será sistematicamente checada, e essa tarefa é (surpreendentemente)

desempenhada pela atenção. Mas, apesar disso, ocorre que

(...) a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade


não implica a deposição do primeiro, mas apenas sua proteção. Abandona-
se um prazer momentâneo, mas inseguro nas suas consequências, só para
ganhar, por um novo caminho, um prazer seguro que virá depois.165

Isso significa que o comando final do processo está nas mãos da obtenção

de descarga que redunde em prazer. Interessante destacar que, como parte do

andaimado conceitual do princípio de realidade, figure a substituição do recalque

pelo julgamento (ou veredito) imparcial, questão que, com raízes no Projeto, Freud

retomará, como veremos, no texto sobre a negação.

Eu, narcisismo e realidade

O texto sobre os dois princípios inaugura uma nova linha de abordagem da

questão da realidade que desloca sua análise da discriminação percepção/

alucinação, para considerações a respeito do eu e do narcisismo. O conceito de

narcisismo já havia sido informalmente introduzido no texto sobre Schreber, escrito

164 FREUD, S. (1911) Formulaciones... Op. cit., p. 225.


165 FREUD, S. (1911) Formulaciones ...Op. Cit., p. 228.
100

um ano antes, e, com ele, o eu se torna objeto de investimentos libidinais,

complicando consideravelmente seu papel discriminatório, inibitório, inicialmente

proposto. O eu investido de libido – supervalorizado por isso – não parece ser um

bom encarregado para discernir a realidade, o que demanda algumas manobras

conceituais.

Acompanhando a ação dos princípios, no texto de 1911 aparece também

uma dupla de eus: o eu prazer e o eu realidade, ambos ligados às pulsões do eu

ou de autoconservação. Ao primeiro cabe trabalhar para obter prazer; ao segundo,

procurar o útil para assim evitar danos. Esse interjogo de eus é mais bem

trabalhado e reaparece, com algumas modificações, em Os instintos e suas

vicissitudes166 e em A negação.167 Apesar de serem textos de épocas muito

diferentes (1911, 1915 e 1925 respectivamente) a problemática do eu, do

narcisismo e da realidade tem, neles, continuidade terminológica e conceitual.

Como já afirmado, o eu narcisizado torna-se um obstáculo para o fiel

reconhecimento da realidade; em função disso, Freud introduz a existência de um

eu anterior ao momento narcisista. Nos inícios da vida, dirá ele, o reconhecimento

do interno e do externo dependerá de uma ação muscular. Dos estímulos internos

não se pode fugir; surge então um primeiro eu: o eu de realidade inicial. Postula-

se com ele a existência de uma primeira discriminação realista do mundo que

permitiria distinguir estímulos externos de internos. Pelo investimento narcisista, o

eu oferece-se como fonte de prazer dando lugar ao eu prazer. Esse eu prazer traz

166 FREUD, S. (1915) Pulsiones y destinos de pulsión. In: AE, vol. XIV.
167 FREUD, S. (1925) La negación. In: AE, vol. XIX.
101

para si o prazeroso (introjeção), afasta de si o desagradável (projeção); o eu assim

constituído é um eu de prazer purificado pela ação da projeção e da introjeção.

No trabalho sobre a negação vai ser proposta uma variante do eu realidade

já apresentada no texto de 1911. Trata-se do eu realidade definitivo. Colocado por

último, a esse eu realidade definitivo cabe uma tarefa altamente complexa, crucial

no caso das psicoses: saber se uma representação que pertence ao eu (interior)

pode reencontrar-se também na realidade (no exterior). Trata-se de discernir no

mundo exterior a presença do objeto de desejo. Essa complexa função será

desempenhada pelo exame da realidade. Mas, em que consiste esse exame?

Como se realiza? O que garante a ligação do eu com a realidade? Não há

respostas a essas interrogações.

A sucessão de eus – eu realidade inicial, eu prazer, eu prazer purificado e

eu realidade definitivo – descreve a relação do eu com a realidade, nomeia os

momentos da constituição desse conceito central na teoria, em decorrência da

introdução do narcisismo, mas nada informa a respeito da realidade em si mesma.

Postula uma progressiva superação do narcisismo como obstáculo na construção

da realidade, mas deixa indeterminada a forma como essa superação é

conseguida; tampouco informa os caminhos que devem ser percorridos para que a

realidade se instale como exame feito pelo eu. Fica claro o destino final – o eu

liga-se à realidade definitivamente; obscuro é o meio de atingir esse objetivo.

O narcisismo se fará presente também nos sentimentos de amor e ódio do

eu para com os objetos, complicando ainda mais a ligação do eu com a realidade.

O sentido originário do odiar pode significar “a relação entre o eu e o mundo


102

externo hostil, provedor de estímulos”, dirá Freud em As pulsões e seus destinos.

Acrescentará também:

Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, os objetos e o


que é odiado teriam sido idênticos. Se depois o objeto se revela como fonte
de prazer, ele é amado, mas é também incorporado ao eu, de modo que
para o eu prazer purificado mais uma vez os objetos coincidem com o que é
estranho e odiado.168

Em decorrência do conceito de narcisismo, os obstáculos para o eu ligar-se

com a realidade são muitos; são descritos detalhadamente. O conceito de

realidade fica indeterminado, porém, bem como os caminhos para chegar a ela;

enfim, fica evidente que, por motivos diversos, a realidade é continuamente

distorcida ou pelo narcisismo, ou pela projeção, ou pela introjeção, ou por todos

eles – esse é o ponto mais bem esclarecido.

Realidade e Verleugnung

Por ser o conceito de realidade um elemento fundamental para a elucidação

da problemática desta tese, deter-nos-emos mais de perto na maneira pela qual

esse conceito evoluiu em Freud com a introdução do conceito de Verleugnung.

Já no caso da amência de Meynert, quadro clínico com pouca significação

no contexto da psiquiatria, sempre muito mencionado por Freud, ele viu

concretizada a ideia da psicose e de o delírio ser uma realização de desejo. Com

efeito, por tratar-se de uma negativa de admitir uma perda – o exemplo clássico é

168 FREUD, S. (1915) Pulsiones y destinos de pulsión. Op. cit. p. 131.


103

a mãe que embala um objeto substituto do filho morto, como se ele estivesse

ainda vivo –, a premissa da realização de desejo parecia-lhe evidenciada de forma

quase direta. Contudo, o que acontecera com a realidade não era tão fácil de ser

descrito em termos metapsicológicos. A realidade fora recalcada?

Sabemos a importância que tinha para Freud estabelecer paralelos entre os

fenômenos psicóticos e os descobertos a propósito das neuroses. Para o

mecanismo psíquico da neurose, Freud concentrou-se no recalque, desde que

tomou contato com os fenômenos psicóticos, tentou aplicá-lo à nova realidade

clínica. Já nos primeiros escritos sobre a paranoia, porém, surgiram dificuldades

para concretizar essa tarefa; tanto é assim que o eixo na elucidação da paranoia é

construído a partir da projeção. Mesmo assim, toda a descrição do funcionamento

do mecanismo da projeção na paranoia foi empreendida seguindo-se os passos

enunciados para o recalque. Para ilustrar esse conflito de interesses – manter os

princípios gerais da psicanálise e ao mesmo tempo acolher os novos desafios da

clínica – tomaremos um fragmento extraído do Suplemento metapsicológico à

teoria dos sonhos, de 1915:

A amência é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que


deve ser renegada (Verleugnung) pelo eu por achá-la insuportável.
Portanto, o eu rompe sua relação com a realidade; subtrai o investimento
ao sistema Cs. das percepções. (...) Com esse estranhamento da realidade,
o teste da realidade é posto de lado, as fantasias carregadas de desejo
(não recalcadas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão
avançando para dentro do sistema, sendo admitidas como uma realidade
melhor. Tal retirada pode ser colocada na mesma categoria que os
processos do recalque. A amência apresenta o interessante espetáculo de
104

uma ruptura entre o eu e um dos seus órgãos — talvez o que tivesse sido o
seu servidor mais fiel e estivesse mais intimamente vinculado a ele. O que
na amência é realizado por esse “recalque”, nos sonhos é realizado pela
renúncia voluntária. O estado de sono não deseja conhecer coisa alguma
do mundo externo; não se interessa pela realidade, ou só se interessa à
medida que o abandono do estado de sono — o despertar — acha-se em
causa.169

No fragmento, fica patente o uso forçado do termo recalque. Freud o coloca

entre aspas, evidenciando com isso pelo menos a existência de uma peculiaridade

no recalque na amência. Verleugnung, termo de tradução difícil – desmentido,

recusa, repúdio, renegação170 – motivo pelo qual é usado frequentemente no

original alemão, parece mais adequado para pensar o desafio criado para a

compreensão da amência. Contudo, Verleugnung da realidade, associado em

alguns textos, como o que comentamos, a um mecanismo próprio da psicose, no

final da obra será mais ligado à castração, à perversão fetichista e à cisão do eu,

como veremos a seguir.

Não sabemos com clareza se Freud procurou encontrar um mecanismo que

desempenhasse nas psicoses o papel que o recalque desempenhara nas

neuroses. No entanto, sabemos que, se esse foi seu objetivo, não se cumpriu.

Verwerfung, termo também de difícil tradução – rejeição, repúdio, rechaço –,

cumpre a função de rejeição de um significante primordial e desempenha papel

fundamental nos processos psicóticos, mas apenas na teoria de Lacan, não na de

169 FREUD, S (1915) Complemento metapsicológico... Op. cit. p. 232.


170 Doravante utilizarei renegação.
105

Freud. Essa afirmação, contrária à leitura que Lacan fizera de Freud, é hoje mais

facilmente admitida, como é o caso de Simanke que a corrobora afirmando:

A Verleugnung foi o único mecanismo investigado sistematicamente


[por Freud] em relação ao problema da origem da psicose e o único a ser
alvo de evidentes esforços de inclusão no quadro geral da teoria
psicanalítica, até a última tentativa de síntese no Esboço...(...) em nenhum
momento, o emprego do termo Verwerfung ou dos verbos e adjetivos
correspondentes assumiu em Freud um uso que se poderia chamar de
técnico.171

A partir dos anos de 1920, o termo Verleugnung vai ser associado ao

complexo de castração. Esse é o caso do artigo A organização sexual infantil, de

1923. Nele, a descoberta da falta de pênis na mulher leva as crianças a negarem

(leugnen) o fato e a “verem um membro apesar de tudo”.172 A angústia de

castração está na base da renegação e afeta particularmente a percepção. No

texto de 1925173, também em relação à castração, Freud comenta que

(...) renegação (Verleugnung) processo que parece não ser nem raro
nem muito perigoso na vida psíquica da criança, mas que, no adulto, seria o
ponto de partida para uma psicose.174

A oposição criança/adulto como critério de distinção da gravidade ou

periculosidade da Verleugnung será modificada quando Freud retomar o assunto

171SIMANKE, R. A formação da teoria freudiana das psicoses. Rio de Janeiro: Editora 34,
1994, p. 229.
172 FREUD, S. ( 1923) La organización sexual infantil. In: AE, vol. XIX, p. 147.
173 FREUD, S. (1925) Algunas consecuencias psíquicas de las diferencias sexuales
anatómicas. In: AE, Vol XIX.
174 FREUD, S. Algunas consecuencias... Op. cit. p. 271, 272.
106

no trabalho sobre o fetichismo. Afirma ali que na Verleugnung fetichista só uma

corrente da vida mental renega a realidade; outra corrente a percebe; e ambas

convivem lado a lado. A respeito da Verleugnung na psicose, a situação “parece”

diferente. Cautelosamente o autor diz: “(...) posso ater-me à expectativa de que,

numa psicose, uma daquelas correntes — a que se ajustava à realidade — esteja

realmente ausente”.175

Dez anos mais tarde, em 1937-38, e já completamente imbuído das

hipóteses elaboradas a respeito do eu, em O ego e o id, retoma o tema da

Verleugnung e do fetichismo para fornecer seu correlato tópico: o eu divide-se

nessas ocasiões; ele é capaz de clivar (Spaltung). 176 Mais uma vez, a instância

encarregada de garantir a integração do psiquismo sucumbe a outros poderes que

perturbam a leitura da realidade.

A realidade na neurose e na psicose

Em 1924, Freud escreve Neurose e psicose e A perda da realidade na

neurose e na psicose.177 No primeiro artigo, a amência é novamente convocada

para exemplificar a potência das moções de desejo do Id e selar seu parentesco

com o sonho. Da esquizofrenia, destaca-se a falta de ligação com o mundo

exterior e a apatia afetiva, ambas pensadas como provindas da frustração. Já em

175 FREUD, S. (1927) Fetichismo. In: AE, vol. XXI, p. 151.


176 FREUD, S. ( 1940 [1938]) La escisión del yo en el proceso defensivo. In: AE, vol. XXIII.
177 Esses trabalhos são dedicados mais a oferecer uma descrição da psicose na
terminologia da segunda tópica do que a avançar no tema da realidade nos processos
psicóticos. Os termos utilizados são neurose e psicose e suas diferenças são descritas da
seguinte forma: “a neurose é o resultado de um conflito entre o eu e o id, ao passo que a
psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o
mundo externo” FREUD, S (1924) Neurosis y psicosis. In: AE, vol. XIX, p. 155.
107

relação à melancolia, surgem novidades. A terminologia nosografia empregada em

todos os textos anteriores para separar neurose de psicose – psiconeurose de

transferência, psiconeurose narcisista – sofre uma modificação: psiconeurose

narcisista é reservada unicamente à melancolia. Disse Freud: “As neuroses de

transferência correspondem a um conflito entre o eu e o id; as neuroses

narcísicas, a um conflito entre o eu e o supereu; e as psicoses, a um conflito entre

o eu e o mundo externo”178.

A perda da realidade... parece escrito em diálogo com aquele destinado a

discriminar neurose de psicose. A quem pudesse pensar que só na psicose há

perda de realidade, Freud o corrige, mostrando que na neurose também há

perdas. O id nunca aceita restrições com facilidade. Contudo, “a neurose não

renega a realidade, limita-se a não querer saber nada dela; a psicose a renega e

procura substituí-la”.179 A reação salutar combinaria ambas as reações: não

renegaria a realidade, como na neurose; procuraria modificá-la, como na psicose.

A oposição de mecanismos renegado/recalcado é claramente afirmada; no

entanto, a comparação neurose/psicose segue no texto o modelo em dois tempos

do recalque, o que indica quanto o modelo da neurose ainda pesa na apreciação

dos processos da psicose.

Outro ângulo da questão da realidade surge no texto ao se considerar a

Phantasie. A fantasia oferece à neurose a oportunidade de construir uma nova

realidade, mas no limite de seu campo, de sua “reserva”. Pode-se então afirmar:

178 FREUD, S. Neurosis y psicosis. Op. cit. p.158.


179FREUD, S (1924) La pérdida de la realidad en la neurosis y la psicosis. In: AE, vol.
XIX, p. 195.
108

na neurose há também uma substituição da realidade. Essa realidade da fantasia

não é menos importante que a material, mas não se confunde com ela. A realidade

da fantasia, ou realidade psíquica, tema de importância já nos primeiros trabalhos

sobre a histeria, ganha significados especiais no caso das psicoses. A

preocupação, no caso da psicose, não é a eficácia simbólica do realmente vivido

comparado com o fantasiado – cena traumática real ou fantasiada. O ponto crítico,

na psicose, parte da renegação, da perda da possibilidade de discriminação e

reconhecimento da realidade como tal. Mais precisamente: uma coisa é saber

discriminar percepção de representação, ideia de percepto; outra, poder saber

qual a correspondência do mundo representacional com o mundo real. Essa

polêmica capacidade de diferenciação, Freud a incluiu na prova de realidade,

como Laplanche e Pontalis afirmam no verbete “prova de realidade” do

Vocabulário da Psicanálise.180

Em lugar nenhum, porém, ficou detalhada a forma pela qual a tarefa se

realiza. Será algo realizável? A materialidade do mundo não está constituída nas

formas de representá-lo? A linguagem, e seus enunciados não conformam o

visível, a ponto de variar o que vemos em função do modo como o simbolizamos?

Verdrängung e Verneinung

180 “Na expressão prova de realidade ainda parecem estar confundidas duas funções
bastante diferentes; uma, fundamental, que consistiria em diferenciar o que é
simplesmente representado do que é percebido (...) e outra, que consistiria em comparar
o objetivamente percebido com o representado, de forma a retificar as eventuais
deformações deste. O próprio Freud incluiu essas duas funções no mesmo capítulo de
prova de realidade”. LAPLANCHE E PONTALIS, Verbete: Prova de realidade, In:
Vocabulário de psicanálise. Lisboa: Morais, 1979, pp. 490 a 494.
109

O artigo A negação,181 apesar de ter como tema central o recalque e as

formas de burlá-lo utilizando a linguagem – especificamente o uso da partícula

“não” –, deriva em considerações a respeito do juízo de existência – afirmar ou

negar a existência de algo –, ligadas ao tema da realidade que estamos

desenvolvendo. Também articulados a essa questão são retomados no trabalho a

série de eus proposta em Os instintos e suas vicissitudes (1915) assim como os

mecanismos de projeção e introjeção, assuntos em parte já abordados neste

capítulo.

O “não” permite a emergência do recalcado sem necessidade de aceitá-lo.

Mas negar é emitir um juízo, um juízo adverso. A emissão de um juízo adverso “é

o substituto intelectual do recalque”.182 O interesse de Freud recairá sobre o

“substituto intelectual”, ou seja, o uso da linguagem no julgamento. Julgar supõe

atribuir propriedades, boas ou ruins, e, também, admitir ou impugnar a existência

de algo. Nesse sentido, a partir do juízo de existência a atribuição de realidade

liga-se a um ato de linguagem. Mesmo assim, como antecedente do julgar, como

bom ou como ruim, Freud recorre à “linguagem” da pulsão oral: engolir é aceitar;

cuspir é rejeitar. Engolir faz par com “pôr para dentro do eu”, com interior e com

subjetivo; cuspir, com “pôr para fora”, com exterior e com objetivo. Combinando

essas alternativas ao funcionamento dos princípios de prazer e de realidade

181 De pouco mais de quatro páginas, A negação, de 1925 (In: AE, vol. XIX) ocupa um
lugar de destaque na obra de Freud, devido em parte ao fato de ter servido de apoio para
desenvolvimentos teóricos posteriores a ele. Melanie Klein soube explorar bem alguns
conceitos dessa obra para a construção da objetologia bom/mau, o conceito de mundo
interno/externo e a projeção/introjeção como mecanismos estruturantes do psiquismo.
Lacan apoiou-se na partícula “não” para definir afirmação e negação como operações
centrais na fundação da linguagem.
182 FREUD, S. (1925) La negación. Op. cit. p. 254.
110

aplicados ao eu obtêm-se: o eu realidade inicial, o eu de prazer e o eu realidade

definitivo, já abordados anteriormente.

Recobremos sucintamente parte da análise feita. Para o “eu realidade

inicial”, a atribuição de realidade é imediata, pois “originalmente a mera existência

de uma representação constituía uma garantia da realidade daquilo que era

representado”, uma vez que “todas as representações se originam de percepções

e são repetições delas”.183 O “eu prazer” introjeta o bom e projeta para fora o ruim.

A realidade, para esse eu, coincide com o desprazer, pois “aquilo que é mau, que

é estranho ao eu, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos”. O “eu

realidade definitivo” vai estar ligado diretamente à prova de realidade ou exame da

realidade. Dirá Freud: “O que é irreal, meramente uma representação e subjetivo,

é apenas interno; o que é real está também lá fora”. A tarefa principal da prova de

realidade é reencontrar o objeto; “convencer-se de que ele está lá”.184 A

simplicidade das palavras não desvenda os mistérios ocultos na noção freudiana

de prova de realidade. Como já afirmaram Laplanche e Pontalis, a noção

comporta uma confusão imanente que pode levar a “tomar realidade por aquilo

que vem a pôr à prova, medir, avaliar o grau de realismo dos desejos e das

fantasias do sujeito”,185 o que seria contraditório com a essência mesma da

psicanálise. Retomaremos essa e outras questões a seguir.

183 FREUD, S. (1925) La negación. Op. cit., p. 255.


184 FREUD, S. (1925) La negación. Op. cit., p. 255.
185 LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. Op. cit. p. 384.
111

Questionamentos

Acompanhamos o percurso realizado por Freud até chegar à ideia do teste

de realidade. A dupla percepção/representação está no centro das reflexões já

desde Projeto e continua central na metapsicologia construída para pensar o

sonho. Os modos de funcionamento (processo primário; processo secundário)

ajustam-se à divisão tópica do aparelho (inconsciente; pré-consciente/consciente)

e, junto ao mecanismo da regressão, permitem pensar o sonho como realização

alucinada de desejos recalcados inconscientes. Contudo, a captação da realidade

é algo mais complexo e sutil, e depende de outras variáveis além da discriminação

percepção/representação. Para que se possa a emitir um juízo de existência (isto

existe, é real), Freud observa que é necessária uma série de discriminações. A

primeira delas é a constituição de um eu a partir do qual seja possível tanto

afirmar como negar. O eu, presente desde o Projeto, é, em 1914, elevado a objeto

do investimento libidinal. A postulação do narcisismo vai ter consequências

importantes para a apreciação da realidade. Com efeito, o mundo, a realidade, o

outro vão entrar em um jogo de oposição e interdependência com o eu objeto de

libido. Sujeito/objeto (subjetivo/objetivo), interno/externo, eu/não eu, eu prazer/eu

realidade são discriminações que participam da construção da realidade. A

realidade vai estar do lado do objetivo, do externo, do não eu, do eu realidade,

mas não se identifica inteiramente com nenhum deles. Com a mudança de tópica

é a instância Eu, no interjogo Id Supereu, a encarregada de examinar a realidade.

Como isso se realiza, porém? Em que consiste esse exame? O que se entende
112

por realidade? Essas perguntas ficam sem resposta. Tudo transcorre como se o

enunciado “examinar a realidade” possuísse uma clareza intrínseca ao sentido das

palavras empregadas e dispensasse a descrição mais detalhada dos processos

envolvidos, ou, também, como se as referências aos primórdios da constituição do

aparelho – diferenciação percepção/representação – lançassem luz suficiente para

elucidar o percurso de uma vida inteira e fossem o bastante para garantir a

intelecção do reconhecimento da realidade no aparelho completamente

constituído. Mais ainda: a noção de realidade, embora pouco definida, parece

excessivamente sensualista, esquecendo-se que realidade é também sentido,

significação, linguagem. A realidade, então, parece demasiadamente apoiada na

percepção, especialmente na visual. Lembre-se a respeito o destaque sempre

dado à amência, escolhida como modelo na compreensão da ruptura com a

realidade na psicose. Isso porque nela, a percepção – ou a falha dela – cumpre

um papel fundamental 186. Melhor definida está a realidade psíquica; contudo, ela

opõe-se à realidade material, ambígua e indeterminada.187

Em relação à Verleugnung da realidade, a dupla ligação, por um lado com a

psicose, por outro com a perversão fetichista, é mantida até o final da obra de

Freud, reaparecendo no Esboço de psicanálise, de 1938. Essa ambiguidade

choca-se com a ideia de estruturas clínicas nitidamente separadas, preconizada

por Lacan e muito presente na escola francesa de psicanálise. No obstante, esse

186 “A amência apresenta o interessante espetáculo de uma ruptura entre o eu e um dos


seus órgãos — talvez o que tivesse sido o seu servidor mais fiel e estivesse mais
intimamente vinculado a ele [o olho]”. Fragmento já citado.
187 Lacan, ciente disso, separando Real de realidade, avançou pelo caminho oposto: a
realidade é só linguagem, significação, significante. A virada, como se depreende, é
expressiva.
113

cuidado com as estruturas parece não ocupar lugar central nas preocupações do

criador da psicanálise. Excetuando Verleugnung, no sentido antes analisado, não

há, na obra de Freud, nenhum mecanismo especificado com exclusividade para a

psicose. Projeção, inicialmente proposto para elucidar o mecanismo da paranoia,

vai ser fartamente empregado como recurso defensivo geral, sendo grande sua

participação na construção dos sintomas das fobias e na constituição do aparelho

psíquico.

A respeito do teste de realidade ou prova de realidade, tão ambiguamente

definido, cabe acrescentar-se que, quando fracassa, ele é bem mais especificado

por Freud do que quando cumpre sua tarefa com sucesso. Uma vez mais se

reafirma: os recursos disponíveis no ser humano para o reconhecimento fiel da

realidade são facilmente falseados pelo desejo que o anima.


114

7. Análise das contribuições de Freud à esquizofrenia

A contribuição de Freud para a compreensão da esquizofrenia deve ser

procurada em numerosos trabalhos espalhados ao longo de sua obra; nenhum

artigo foi dedicado com exclusividade a ela, como foi o caso da melancolia ou da

paranoia. Depois de realizado o levantamento nas páginas precedentes, pode-se

afirmar que, apesar de a esquizofrenia não ser um assunto central na sua obra,

Freud não se furtou de emitir opiniões precisas, nem de delinear caminhos que

foram aprofundados pelos psicanalistas que o sucederam.

Da mesma forma que na obra de Freud não existe uma definição de

esquizofrenia, também não existe de paranoia nem de melancolia ou mania,

embora tenha dedicado artigos específicos às três últimas. Ao longo deste capítulo

afirmamos a pouca importância dada por Freud à nosografia; entretanto, o

pensamento psicopatológico de Kraepelin, o que foi chamado “dicotomia

kraepeliana” – paranoia/demência precoce versus psicose maníaco depressiva –,

atravessa a obra de Freud; também nela comparecem descrições de sintomas

feitos pela psiquiatria da época aceitos sem discussão como válidos.

As psicoses, incluindo a esquizofrenia, foram pensadas por Freud como

“doenças da alma”; o que mais lhe interessou a respeito delas foi o descobrimento

dos mecanismos psíquicos envolvidos, inicialmente destacando o papel dos

afetos. Esse ponto de vista marcou uma das fronteiras com a psiquiatria,

predominantemente organicista à época. Apesar de ter proposto um termo único


115

(parafrenia) que englobasse paranoia e esquizofrenia, ambas as afecções não

foram confundidas. Uma vez introduzido por Bleuler o “grupo das esquizofrenias”,

Freud não discriminou seus tipos, referendo-se à esquizofrenia no singular, como

se fosse um quadro único.

Em relação à etiologia da esquizofrenia, Freud colocou a sexualidade no

centro das causas patogênicas, aliás, como foi feito para o conjunto dos quadros

psicopatológicos. O conceito de narcisismo, a regressão ao narcisismo, fase

intermediaria entre autoerotismo e escolha de objeto, foi a contribuição central da

teoria freudiana para a compreensão das psicoses; também aquela a que a

psiquiatria, incluída a desenvolvida em Burghölzli (muito influenciada por Freud),

mais resistiu.

Pontos obscuros rodeiam a regressão ao narcisismo na esquizofrenia,

porém. Um deles parte da diferenciação dos conceitos de autoerotismo e

narcisismo. Com efeito, a clara distinção feita no texto de 1914 – dispersão

pulsional, prazer de órgão, para a fase de autoerotismo; unificação das pulsões

em torno do eu, para a fase de narcisismo – perde nitidez em trabalhos

posteriores, chegando até a desarranjar-se.188 O autoerotismo parece obter sua

determinação do modo como a pulsão encontra a satisfação: sem necessidade de

um objeto externo. A falta de objeto remete-nos à complicada questão da

anobjetalidade.

188 Em Conferências introdutórias sobre psicanálise, encontra-se a seguinte frase: “O


auto-erotismo seria, pois, a atividade sexual do estádio narcísico da distribuição da libido”.
FREUD, S. (1917) Conferencias de introducción al psicoanálisis. Conferencia 26: La
teoría de la libido y el narcisismo. In: AE, 1976, vol. XVI, pp. 378 e 379.
116

Desde o Projeto (1895) Freud afirmou a condição de desamparo inicial do

ser humano e sua dependência do “auxílio externo”. Esse ponto de vista nunca foi

modificado, em 1915 dirá:

(...) o estado narcisista primordial não poderia seguir aquele


desenvolvimento se todo indivíduo não houvesse passado por um período
no qual se encontra desvalido, necessitando de cuidados e durante o qual
suas necessidades prementes são satisfeitas por um agente externo, sendo
assim impedidas de se tornarem maiores. 189

O papel do outro, do “agente externo”, da mãe, na constituição do

psiquismo, na experiência autoerótica e no narcisismo primordial foram sempre

claramente afirmados embora nem sempre conceitualizados. Por isso mesmo,

existem diferentes interpretações sobre o modo pelo qual Freud considerou o

autoerotismo e o narcisismo primordial, e algumas afirmações dele deram margem

a dúvidas, mesmo assim, acreditamos insustentável a existência de um solipsismo

radical, tanto na obra de Freud como na constituição do sujeito psíquico.

Essas questões são cruciais no caso das psicoses, particularmente da

esquizofrenia. Efetivamente, é difícil pesar a regressão a um estado de falta

absoluta de objeto, inclusive em graves casos de catatonia.190 Note-se também

que Freud pensou o narcisismo, para todos os casos de psicose, como uma

regressão, secundária à escolha de objeto – narcisismo secundário. Nas psicoses,

189 FREUD, S. Pulsiones y destinos de pulsión. Op. cit., p. 129.


190 Lembre-se que esses estados podem interromper-se bruscamente ou, como relata
Bleuler, ter curta duração: “Uma catatônica bastante inteligente tinha que permanecer
sentada e quieta durante horas ‘para voltar a encontrar seus pensamentos’”. BLEULER,
E. Op. cit., p. 42.
117

assiste-se sempre a tentativas de restituição, modos mais ou menos tortos de

religação com o mundo. O conceito de restituição, a concepção da loucura em

dois tempos – um primeiro tempo, considerado mais patológico, de regressão, de

ruptura da ligação libidinal com o outro e com o mundo, seguido de um segundo

momento de religação, pensada como tentativa de cura –, constitui uma das

grandes contribuições de Freud à compreensão da psicose.

A suposta indiferenciação autoerotismo/narcisismo também dificulta o modo

como é pensada a regressão no caso da esquizofrenia. Como foi visto, no texto de

1914 a esquizofrenia está incluída no conjunto das psicoses como regressão

narcisista; apesar disso, em Schreber (1911), a regressão é considerada mais

intensa e profunda do que a da paranoia, e é ligada ao autoerotismo. Se

autoerotismo e narcisismo deixassem de se constituir como fases diferenciadas,

as ricas determinações apontadas por Freud para esquizofrenia perderiam grande

parte de sua fundamentação. Consideramos indispensável manter as diferenças,

como também o fazem a maioria dos dicionários.191 A regressão ao autoerotismo

na esquizofrenia apresenta-se mais adequada a seus sintomas e fundamenta

algumas características que Freud não deixou de assinalar. Essa adequação está

presente particularmente na consideração do eu na esquizofrenia, a possibilidade

191 Nos dicionários mais conhecidos da psicanálise – Laplanche- Pontalis, Roudinesco-


Plon, Kaufmann, Chemama – tem prevalecido a tendência de manter a idéia do auto-
erotismo como uma forma de organização libidinal, anterior e diferente do narcisismo, tal
como Freud o sustentara no trabalho mais exaustivo dedicado ao assunto em 1914.
LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
ROUDINESCO E. e PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998; KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996; CHEMAMA, R. (org.) Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas,
1995.
118

de esse eu se desintegrar é claramente afirmada.192 Lembremos que a presença

do eu é a “nova ação psíquica” que define o narcisismo; então, o eu cindido ou

fragmentado aponta mais para o autoerotismo. Essa desintegração corre

paralelamente à ruptura dos sistemas e à ideia de um inconsciente a “céu aberto”

no caso da esquizofrenia, como ilustrado na paciente de Tausk. Freud também

afirma que a projeção e a corrente homossexual possuem pouca participação na

esquizofrenia; tanto projeção como homossexualidade são mais próximas do

objeto, e a regressão da esquizofrenia é mais distante e profunda, se dirige ao

autoerotismo, afirma Freud. A questão da linguagem de órgão, do prazer de órgão,

ligado à hipocondria e à esquizofrenia, também encontram melhor fundamentação

no autoerotismo.

As alterações da linguagem da esquizofrenia, assunto central nesta tese,

foram objeto de um estudo cuidadoso por parte de Freud. Como já foi dito, a

primazia da palavra em relação à coisa constitui a fórmula geral da interpretação

freudiana das alterações de linguagem na esquizofrenia. As representações de

coisa da representação de objeto são desinvestidas pela ação da regressão

operada na fase mais doentia da esquizofrenia, após a qual sucede uma tentativa

de recuperação do objeto, encontrando na representação de palavra o substituto

do objeto perdido, devendo, assim, conformar-se com palavras em lugar de

coisas. A fórmula proposta por Freud, como já se assinalou, apoia-se numa

concepção de linguagem extraída da teoria dos nomes de Mill, na qual a

192 FREUD, S. Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p. 233.
119

percepção cumpre um papel central. Mesmo assim, como Joel Birman afirma193, o

ensinamento de Brentano imprime aos movimentos textuais de Freud certa lógica

holística que o coloca como crítico da concepção elementarista e sensorialista da

linguagem, embora seja a terminologia utilitarista inglesa a que de fato empregue.

Temos questionado o conceito freudiano de representação de coisa,

apontando os complexos jogos de representação – da pulsão, do inconsciente, do

mundo – escondidos numa aparência de clara inteligibilidade. Temos também

posto em evidência o excessivo sensualismo que comporta a representação de

coisa, e o fato de o conceito ter sido abandonado por Freud no final da sua

obra.194

Outro dos pontos problemáticos da compreensão freudiana da psicose tem

a ver com o exame ou teste de realidade. Talvez seja esse o ponto mais débil de

sua concepção. Um halo de mistério rodeia sua determinação. A realidade parece

por momentos ser algo que dispensa definição; outras, algo que se resolve na

diferenciação representação/percepção. O mundo externo, o mundo real, parece

pouco configurado pela significação contida na linguagem ou pelas formas de

representá-lo. O papel da percepção permanece central. Contudo, essa realidade

193 BIRMAN, J. A linguagem na constituição da psicanálise. In: Ensaios de teoria


psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 58.
194 Como se afirmou na introdução desta tese, a escuta de pacientes esquizofrênicos nos
levou a outro caminho e, assim, evitar os escolhos da teoria da denominação, fortemente
entremeada na proposta freudiana. Com efeito, a regressão narcisista faz que a
linguagem na esquizofrenia perca sua razão essencial; ela deixa de ser a base para o
estabelecimento de laços com o outro. Liberada da necessidade de ser compreendida por
um outro, a fala fica livre da coerção de um código compartilhado que garanta
inteligibilidade; a linguagem fica à deriva, vira jogo; emergem então os neologismos, as
esquisitices, a livre associação significante. É mais nessa “liberdade” produzida pela falta
de endereçamento para um outro do que na perda da referência das palavras com as
coisas que nos parecem estar fundadas as extravagâncias da linguagem na
esquizofrenia. Desenvolveremos essa hipótese nos historiais clínicos apresentados.
120

“evidente per se”, paradoxalmente, é constantemente falseada ou pelo desejo, ou

pelo narcisismo, ou pela projeção, ou por todos de uma vez. Como afirmou A.

Green, a única realidade em que acreditamos verdadeiramente é a realidade de

nosso inconsciente.195

Na obra de Freud, não há para as psicoses um equivalente do papel

desempenhado pelo recalque nas neuroses; não há um mecanismo específico

responsável pelos conflitos e sintomas das psicoses. O mais próximo dessa

função foi ocupado pela Verleugnung; mesmo assim, porém, no final da obra, ela

também desempenha um papel importante na compreensão do fetichismo. Nesse

período final diluem-se também as fronteiras e as discriminações de quadros,

frequentes no período de 1900 a 1917. Freud falará de psicose em sentido amplo,

englobando todos os quadros; além disso, relacionará a psicose a um conflito

específico, válido para todas as psicoses: o conflito do eu com a realidade externa.

Como exceção, a melancolia é colocada em separado e vinculada a conflitos do

eu com o supereu, tendência que será seguida pela maioria dos psicanalistas.

Embora fala e linguagem ocupem um lugar central na construção teórica de

Freud, a linguística, sem duvida, não foi sua ciência favorita; 196 ele se encantou

mais pela arqueologia, pelo arcaico, pelo que emerge das profundezas da alma.

Talvez por isso a filologia, o sentido arcaico das palavras, tenha tanta presença na

sua obra. O autor também foi muito atraído pela biologia, pelos modelos de

funcionamento biológicos. Os processos de pensamento igualmente receberam

195 GREEN, A. La metapsicología revisitada. Buenos Aires: Eudeba, 1996, p. 144.


196FORRESTER, J. A linguagem e as origens da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago,
1983.
121

uma atenção especial, muitas vezes em ligação com a lógica; esse foi o caso do

artigo A negação, último trabalho focalizado, onde aparece a questão do juízo, do

juízo adverso, substituto intelectual do recalque. Poder-se-ia ver aí a participação

da linguagem na constituição do mundo; tanto afirmação como negação, ligadas

ao juízo de existência e de atribuição, são operações só possíveis na linguagem.

Não foi esse o caminho seguido por Freud, porém. Cuspir e engolir foram

colocados no lugar de antecedentes biológicos arcaicos em que se funda tanto a

afirmação como a negação da linguagem. A alimentação, processo biológico,

serve de modelo para a libido oral e fundamenta também a afirmação e a negação

intelectual. O modelo de cunho biológico se sobrepôs ao linguístico.


122

CAPÍTULO III

OS CASOS CLÍNICOS: WOLFSON, MANÉ E EDGAR

WOLFSON e as línguas

1. Introdução

“O estudante de línguas esquizofrênico”, “O estudante mentalmente

doente”, “O estudante de idiomas demente”, “Le jeune óme sqizofrène”, na grafia

por ele inventada: todas essas formas de referir-se a si mesmo são de um

americano de Nova Iorque, Louis Wolfson, que, em finais dos anos 1960, escreve,

em francês, um livro intitulado Le Schizo et les langues e o envia para a editora

Gallimard em Paris. J. B. Pontalis, à época diretor da coleção Connaissance de

l’inconscient, fica impressionado com o texto e decide publicá-lo solicitando o

prefácio a G. Deleuze. O livro,197 um relato impressionante do pensar

esquizofrênico a partir do interior de si mesmo, foi amplamente citado e tornou-se

objeto de numerosos comentários e estudos, dentre os quais se poderiam

destacar, pela importância, “Schizologie”, prefácio de Deleuze solicitado por

Pontalis – incluído com modificações em Critica e clínica198 –; O sentido perdido,

de Piera Aulagnier199; e Sete proposições sobre o sétimo anjo, de M. Foucault.200

197WOLFSON, Louis. Le Schizo et les langues. Paris: Gallimard, 1970. (As citações em
português são traduções livres a partir do original francês)
198 DELEUZE, G. Louis Wolfson ou o procedimento. In: Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34, 2008.
199
AULAGNIER, P. O sentido perdido ou o “esquizo” e a significação. In: Um intérprete em
busca de sentido II. São Paulo: Escuta, 1990.
200FOUCAULT, M. Sete proposições sobre o sétimo anjo. In: Ditos e escritos. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, vol. III.
123

Le Schizo et les langues faz parte de um tipo de produção que, apesar de

pouco frequente, tampouco é incomum em psicóticos: a escrita, a redação de

artigos, a elaboração de livros. À diferença do famoso Memórias de um doente

dos nervos201, escrito com a finalidade de obter a suspensão judicial da curatela

provisória que pesava sobre Schreber, o livro de Wolfson não tem objetivo

explícito nem persegue qualquer finalidade utilitária. Difícil é também sua

classificação: autobiografia? exposição de um método? produção delirante?

descrição de uma práxis? Seja de que gênero for, a obra nos toca, e sua leitura é

uma experiência extraordinária, devido ao evidente esforço de um sujeito que, a

despeito de sequer conseguir nomear-se diretamente como eu, realiza uma tarefa

árdua, exaustiva e desesperadora para fazer da vida e da linguagem um lugar

possível à sua existência.

2. Um pouco do livro e do caso

Nascido em 1931 no seio de uma família de imigrantes judeus de Nova

Iorque, le jeune homme schizophrénique apresenta-se como muito magro, pouco

musculoso, de olhos esbugalhados, devido a um permanente sentimento de

medo, tristeza e dor. Desde jovem, esteve internado em diferentes hospitais de

alienados, sempre a instâncias de sua mãe, que se encarregava de fazer os

arranjos necessários à sua admissão. Todas as internações foram feitas à sua

revelia e empregando-se medidas coercitivas. Foi diagnosticado como

esquizofrênico, e assim permaneceu, apesar de implementados todos os recursos

da psiquiatria biológica da época. Houve eletrochoques, “que duravam um quinto

201 SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Op. cit.
124

de segundo mas que o deixavam instantaneamente inconsciente por 20 ou 30

minutos”; centenas de choques de insulina, “menos violentos mas que duravam

cada um quase duas boas horas”,202 e vários tratamentos aplicados sem muita

participação ativa dele.

De sua família, sobressai a figura da mãe, mulher de caráter forte, com

presença ruidosa e marcante. Ela guardara em segredo uma deformidade: por

causa de uma infecção (rubéola), fora-lhe amputado um olho e, no lugar, colocada

uma prótese de vidro, que para seu conforto retirava durante a noite. Seu pai,

caracterizado pelo “estudante” como uma figura “fluídica”, permaneceu junto de

sua mãe poucos anos. O casal separou-se quando “o esquizofrênico” tinha quatro

ou cinco anos. Um dos motivos da separação foi o pai ter-se sentido enganado: “a

deformidade estética” da mãe, ocultada durante o período anterior ao matrimônio,

só foi descoberta depois de o casamento ter sido consumado.

Pelo acordo de divórcio, o pai tinha o direito de passar umas horas com “o

rapaz”, aos sábados, e a obrigação de pagar uma pensão até que completasse a

maioridade. O fato de o pai não concordar com as internações compulsórias

empreendidas pela mãe é salientado pelo “esquizo”, que também destaca que o

pai, mesmo não concordando com aquelas medidas, não as impediu. Os

encontros entre pai e filho são descritos pelo jovem como burocráticos e

monótonos. O pai sempre evitava fazer gastos, e sua figura é pensada como a de

alguém que ocupa um “papel secundário [sic] em relação ao filho”.203

202 WOLFSON, L. Op. cit., p. 34.


203 WOLFSON, L. Op. cit., p. 32.
125

Posteriormente, a mãe voltou a casar-se, desta vez com um homem mais

velho para quem também ocultara seu problema. Ele fugiu tempos depois levando

uma valiosa joia. Após a denúncia do roubo, foi preso num aeroporto e

extraditado. Pelo fato de a denunciante ser a própria esposa, ela obteve grande

poder sobre seu segundo marido, que lhe implorava sua clemência “lhe

prometendo não importa quase o quê”.204

A limitação visual dessa senhora, frequentemente invocada por ela como

impedimento e justificativa para seus atos, não convencia “o estudante de

línguas”. Ele sempre pensou que sua mãe usava a deficiência para desculpar a

preguiça; além disso, mesmo sendo verdadeira a limitação, a mãe se encontrava

amplamente compensada pela capacidade especial dos seus “órgãos da palavra”:

estridentes, agudos e em atividade permanente. Apesar de sua voz ser tão

poderosa, se lhe conviesse era capaz de “sussurrar ao telefone quando queria

clandestinamente conseguir a admissão de seu filho em algum hospital

psiquiátrico à sua revelia”, sempre justificando sua atitude pelo próprio bem “do

jovem” e pelo amor e interesse que sentia por ele. Outras das “habilidades”

maternas eram a música e o canto; praticava em um órgão elétrico canções e

músicas de diferentes fontes. Queixava-se também, ao telefone, da vida que

levava, criando, com dotes de “teatralidade”, situações de constrangimento para o

filho.

204 N’importe quoi, no original. Op. cit., p. 31.


126

No intervalo entre uma internação e outra, “o jovem doente esquizofrênico”

“apaixona-se subitamente pelo estudo de línguas”.205 Havendo iniciado a

aprendizagem de uma língua latina, o francês, e outra germânica, o alemão,

acrescenta a elas uma semita, o iídiche, e outra eslava, o russo. O interesse pelo

estudo das línguas é avassalador e tem objetivo explícito: não escutar mais sua

língua materna, o inglês. Como não seria possível eliminar completamente de seu

entorno a língua local, a procura do “estudante” dirigiu-se à criação de um

procedimento206 tal que permitisse converter, quase instantaneamente, uma

palavra do inglês em outra de língua estrangeira. O procedimento integrava uma

série de outros, tais como tampar os ouvidos com os dedos, direcionar o olhar

para um livro escrito em língua estrangeira evitando a leitura de cartazes, usar

aparelho portátil de rádio sintonizado em estações étnicas, frequentes em Nova

York, emitidas em línguas estranhas, como modo de bloqueio do som casual etc.

No caso de uma palavra penetrar igualmente na sua consciência, apesar dos

esforços realizados para que isso não acontecesse, entrava em ação o

procedimento.

O procedimento consistia na transformação da palavra escutada em outra

estrangeira. Contudo, a mudança está longe de ser a simples tradução de um

vocábulo da língua inglesa para outro, pertencente a alguma das línguas

estudadas pelo jovem. A transformação precisava conservar algum dos sons da

205 WOLFSON, L. Op. cit. p. 33.


206Tomei emprestado o termo de Deleuze. Ele aparece em Schizologie, prefácio ao livro
de Wolfson. Utilizo-o no sentido de “método de execução de alguma coisa”, próximo de
seu sentido jurídico: “formas a que está subordinado o cumprimento dos atos e trâmites
de um processo”.
127

palavra original; para isso, o conjunto das línguas em estudo poderia trazer

equivalências sílaba por sílaba, fonema por fonema, dando lugar, assim, à criação

de uma língua híbrida, resultado da junção de fragmentos das várias línguas

estudadas. Where? (com pronúncia de ueer) – palavra muito usada por sua mãe

em decorrência do frequente esquecimento do lugar onde deixava as coisas –

será transformado em Wo (vo) e Hier (ir), provindos do alemão, ou Woher (voer),

de sentido um pouco diferente. Dessa forma, neutralizava-se a ação perturbadora

da língua materna e ao mesmo tempo se conservava algo do som da palavra

original. A metamorfose é descrita minuciosamente em todos os seus passos:

primeiramente, o termo da “maldita língua”, o inglês, é decomposto em unidades

fonéticas, separando-se vogais de consoantes; a seguir, procuram-se possíveis

equivalências semânticas e sonoras em outras línguas, sempre tentando

conservar as consoantes constitutivas da ossatura da palavra; como resultado

desse trabalho, surge a palavra substituta imediatamente utilizada como obturador

da palavra original. A descrição disso pode ocupar longas páginas do livro: no

caso de Where, quase sete; para a frase Don’t trip over the wire, Deleuze conta

em torno de quarenta.

Também é meticulosa a exposição da mecânica que faz da língua materna

inglesa um fenômeno tão perturbador. A fala produz a vibração das cordas vogais

da mãe; a vibração das cordas faz trepidar o ar; o ar entra pelos ouvidos e atinge

o tímpano; seus movimentos transformam-se em impulsos que entram

diretamente no cérebro ocasionando desarranjos e profunda alteração mental. A

palavra invade a mente de um modo fisicamente concreto.


128

Algo parecido acontece com os alimentos. Toda semana, a mãe vai ao

supermercado à procura de mantimentos e retorna dele carregada de caixas e

produtos contendo inscrições em inglês. Com o jeito espalhafatoso que a

caracteriza, faz bastante barulho quando chega; comenta com o estudante os

itens de suas compras para só depois arrumá-las nas prateleiras. Essa atividade

deixa Wolfson particularmente perturbado. Anoréxico, muito preocupado com o

que come e temeroso de ingerir ovos, larvas, micróbios, enfim, alimentos

contaminados, bem como, também, gorduras e substâncias não saudáveis, monta

um complicado esquema para lidar com a comida. Em relação às inscrições das

embalagens em inglês segue regras semelhantes às utilizadas para neutralizar as

palavras escutadas. Como a composição dos produtos possui termos parecidos

nas diferentes línguas que maneja, a formulação passa a ser então privilegiada,

em detrimento da descrição macroscópica do tipo de alimento. Contudo, nem

sempre isso é possível; é o caso de vegetable shortening (gorduras). O vocábulo

problemático para ser “neutralizado” é shortening de difícil equivalência no magma

de línguas à sua disposição, além de possuir mais de uma significação (breve,

curto, gordura). Essa situação o leva a certo relaxamento do método de

transformação inicial, permitindo uma versão mais livre – a semelhança fonética

torna-se menos obrigatória – e, ao mesmo tempo, mais estranha, com repetições

de fonemas (shshshshortening) ou inversão da sequência de sons. Mesmo com

esse “relaxamento” com relação ao método do procedimento, as complicações

para lidar com os alimentos são muitas. Um produto qualquer, como “batatas

fritas”, é transformado em quantidade de calorias, carboidratos, gorduras, fibras,


129

sódio, potássio etc., e comparado com outras fórmulas, resultantes de

transformações semelhantes, sempre potencialmente causadoras de doenças e

contaminações. Na hora da ingestão propriamente dita, a atitude do jovem oscila

entre: rápidas comilanças bulímicas, justificadas como modo de evitar deixar

restos de fácil deterioração nas embalagens e assim resguardar-se de doenças; e

restrições anoréxicas, fundamentadas na necessidade de dedicar-se aos estudos

linguísticos. A mãe aparece sempre como pano de fundo de sua atitude alimentar.

Ela é vista querendo enfiar “sua” comida, preocupada, como diz estar, com a falta,

por parte de seu filho, de uma alimentação nutritiva e regular.

3. Considerações

Dentre as diferentes questões que o caso suscita, as escolhidas, foram

subdivididas em alguns temas: “exmatriar” a língua; o procedimento; a apropriação

da língua; de coisas e palavras; a linguagem e os outros. Mesmo assim, o texto

possui unidade e pode ser lido sem necessidade de levar em consideração as

divisões realizadas. Aliás, em alguns momentos, esses temas entrelaçam-se e,

portanto, devem ser considerados como referências não exaustivas.

“Exmatriar” a língua

É mais do que evidente que Wolfson apresenta as alterações de linguagem

que, em várias perspectivas teóricas, são apontadas como um dos eixos centrais

da esquizofrenia. O modo pelo qual essas alterações se fazem presente nele, a

centralidade que a questão da linguagem possui no seu caso, foi um dos motivos

de tê-lo incluído no presente trabalho. Como bem disse Freud, muito do que na
130

neurose aparece encoberto e só vem à luz pelo trabalho analítico, na

esquizofrenia encontra-se manifestamente expresso, sem disfarce, “a céu aberto”.

A intenção de Wolfson de destruir a língua materna, o inglês, é colocada por

ele de modo explícito. Também é explícito que os artifícios linguísticos

empregados para operar tal destruição destinam-se a neutralizar uma intrusão

atribuída à língua inglesa que tem na figura de sua mãe o principal operador. É por

meio da mãe que o inglês chega a constituir-se numa fonte de perturbação

insuportável, mobilizando no jovem os complicados manejos já descritos.

Essas afirmações desprendem-se da literalidade do texto de Wolfson; não

comportam nenhuma interpretação psicanalítica. Contudo, é verdade que, nos

longos tratamentos por ele realizados, a psicanálise possa ter-se infiltrado na frágil

mente do estudante de línguas, e a centralidade que a mãe possui na descrição

por ele feita esteja contaminada por uma visão enxertada, mais do que vivenciada

– mas não há, porém, como dirimir essa questão. O fato é que, no texto de

Wolfson, a língua materna, combatida com tanto esforço e afinco, deve ser

entendida no sentido literal: a língua da mãe, a língua da qual a mãe é

proprietária, detentora, possuidora, e com a qual, ao modo dos conquistadores,

procura dominar e submeter. O literal refere-se também aos “órgãos da palavra”

com os quais a mãe perpetra algo assim como um estupro auditivo-cerebral.

É através do procedimento – caminho torto, drama obsessional – que

Wolfson procura safar-se desse domínio avassalador que ameaça sua existência.

Por meio dele, a língua da mãe é revirada, como se reviram os dedos de uma luva
131

ao retirá-la da mão, ficando então neutralizada, estrangeirada, exmatriada, no feliz

neologismo cunhado por Foucault.207

O sentido habitual atribuído aos termos língua materna resulta insuficiente

para expressar o que acontece a Wolfson com o Inglês. Com efeito, costuma-se

pensar “língua materna” como a língua falada na infância – ou pela mãe ou pelos

seus substitutos –, a língua de origem – do lugar ou do país do qual se é oriundo –

tendo como oposto, a “língua estrangeira”, aquela que apreendemos como

segunda língua ou como consequência de uma migração. Para Wolfson o inglês

não é a língua da infância; é literalmente a língua da mãe. Ele não consegue

independentizar o idioma inglês da presença intrusiva, terrificante e incestuosa da

mãe.

Em relação à imagem assustadora da mãe – o temor da menina de ser

assassinada pela mãe –, ela foi descrita por Freud no texto Sobre a sexualidade

feminina.208 Nesse trabalho Freud chega até a sustentar que as fantasias de

devoração, atribuídas pelo menino ao pai, poderiam ser produto de um

deslocamento da figura da mãe para a do pai.209

207 FOUCAULT, M. Sete proposições sobre o sétimo anjo. Op. cit. p. 307.
208 “Encontramos os desejos orais agressivos e sádicos da menina sob uma forma a eles
forçada pela repressão precoce, como angústia de ser assassinada pela mãe, temor que,
por sua vez, justifica seu desejo de morte contra a mãe, se este se torna consciente”.
FREUD, S. (1931) Sobre la sexualidad femenina. In: AE, vol. XXI, p. 239.
209 “(Até aqui, foi apenas em homens que encontrei o temor de ser comido. Esse medo se
refere ao pai, mas provavelmente constitui o produto de uma transformação da
agressividade oral dirigida para a mãe. A criança deseja comer a mãe, de quem recebe
seu alimento; no caso do pai, não existe um determinante assim tão óbvio para o desejo.)”
FREUD, S. (1931) Sobre la sexualidad femenina. Op. cit. p. 239. Entre parêntesis no
original.
132

Jacques Hassoun, em L’exil de la langue,210 vai complementar essa linha de

pensamento freudiana com contribuições provenientes de Lacan. Afirma que o

lugar ocupado pela mãe em relação ao infans pode comportar uma violência

superior à que Freud descrevera em Totem e tabu em relação ao pai, sobretudo

porque a violência materna não é em grande parte simbolizável. A violência

materna se joga no corpo, numa junção, num corpo a corpo que, potencialmente,

tem o poder de aniquilar a possibilidade de uma existência separada. A separação

da mãe, a morte da mãe, afirma Hassoun, diferencia-se da morte do pai. A figura

do pai morto é ligada, tanto em Freud como em Lacan, à constituição do

simbólico. A morte da mãe, “jamais completamente consumada”,211 é a garantia do

estabelecimento de uma distância entre corpos. Nesse sentido, a presença

perturbadora do corpo materno só é suportável na diferença e na possibilidade de

vê-lo como estrangeiro. Para Hassoun, a simpatia define a relação com a mãe,

entendendo-se por simpatia a definição dada por Littré: “relação existente entre

dois ou múltiplos órgãos mais ou menos afastados um do outro e que faz que um

deles participe das sensações percebidas ou das ações executadas pelo outro”.212

A língua materna seria a língua ligada à simpatia, à fusão dos corpos; um corpo a

corpo no qual as palavras só referem o “entre dois”, sem referência terceira. A

língua materna é também lugar de gozo, um gozo difícil até de imaginar. Desse

210 HASSOUN, J. L’exil de la langue: fragments de la langue maternelle. Paris: Point Hors
ligne, 1993.
211 “Podemos postular que se o sujeito realiza sua existência em torno de uma separação
d’ Ela [da mãe], essa operação deve ser diferenciada da morte do pai; essa separação d’
Ela, a morte da mãe jamais completamente consumada, mas que não deixa de ser-lo,
tende a sustentar toda forma de engano, constitutivo da paixão ou da crença mística na
divindade.” HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51.
212 HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51
133

lugar precisamos exilar-nos; somos exilados, no melhor dos casos. A linguagem, o

estabelecimento da linguagem, exige separação, diz Hassoun:

A primeira língua falada que distinguimos da materna seria aquela


língua que, embora veiculada pela mãe, permite à criança separar-se d’ Ela.
A língua permite endereçar-se a um “primeiro Outro – a mãe em espécie” –,
mas a garantia de possibilidade desse endereçamento reside na distância
necessária que vai permitir à criança demandar, sem medo de ser engolido
em um sim, que antecipe seu desejo, ou de um não, que seja escutado
como a repelindo nas trevas exteriores de uma rejeição radical.213

Falta em Wolfson qualquer distância que separe a língua inglesa da língua

da mãe, a língua permanece materna, no sentido proposto por Hassoun, lugar de

fusão e do gozo que impede a existência separada. Não há exílio, não há uma

língua que garanta a discriminação. Contudo, o que outorga a seu caso

características tão espetaculares é sua luta: a desesperadora batalha para

recuperar – ou para criar – o estrangeiro na língua, para encontrar nas línguas

estrangeiras um lugar de exílio.

O procedimento

Caberia pensar o caso em estudo a partir de uma das contribuições

maiores de Freud ao estudo das psicoses: o esquema em dois tempos da

psicose? Será possível discriminar em Wolfson um processo francamente

patológico e uma tentativa de cura?

Pouco se pode saber do início do processo patológico, pois o livro foi

escrito em pleno desenvolvimento da psicose, na fase mais produtiva e por isso

213 HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51. (Tradução livre do original Francês.)
134

mais ligada ao segundo tempo proposto por Freud. Entretanto, o que a leitura de

Le Schizo et les langues permite entrever, o que impressiona sobremaneira, é o

fato de ser a partir do procedimento, tão espetacularmente insano, que Wolfson

consegue uma circulação que, na língua de sua mãe – literalmente d’ Ela,

adotando a grafia de Hassoun 214 –, não lhe era possível. Estrangeirar a língua

aparece então como uma alternativa. Poder-se-ia ver nisso a procura de autocura,

uma forma de restituição da ligação com o mundo.

Sempre choca observar casos em que o aberrante, o disparatado, o mais

absurdo, coincide, ao mesmo tempo, com a única forma possível de conexão com

o outro e com a vida. Esse fato deveria ser cuidadosamente investigado quando

se planeja a administração de neurolépticos. Lembro-me de uma paciente

querelante que escreveu, por anos, longas e loucas cartas aos órgãos públicos

reivindicando reparação por um erro médico imaginariamente acontecido com ela;

essa atividade era o seu tema, a única “razão” (ou desrazão) de sua existência, o

único modo de manter-se ligada com o mundo. O caso de Estamira,

magistralmente retratado no filme que leva seu nome, é outro bom exemplo disso.

O procedimento garante a Wolfson um lugar possível na vida e na

linguagem. Mas não só: o procedimento é também, e sobretudo, luta, defesa,

guerra. Se o filho sente e vê a mãe como a encarnação ditatorial da violência da

linguagem, ele não se entrega a ela nem a seu gozo; ele combate. É a partir

dessa luta que surge a possibilidade de manter-se longe dos hospícios e até de

vislumbrar um futuro, como ficará patente no capítulo final do livro, onde o

214 Nessa grafia fica acentuada a indiscriminação de sujeitos e lugares.


135

ceticismo abre espaço à esperança – esperança de algum dia poder voltar a usar,

sem constrangimentos, o “famoso” idioma inglês.215 Sua saída assenta-se na

resistência e no combate; contudo, tal resistência só vale para ele; não é padrão a

ser seguido, não é caminho que deva ou possa ser trilhado por nenhum outro.216

Há, porém, circunstâncias nas quais essa presença avassaladora só permite

obediência cega e submissão completa. Veremos algo dessa ordem nos casos de

Mané e de Edgar.

A apropriação da língua

Com as línguas estrangeiras, Wolfson pode ir além de onde foram as

numerosas internações, as dezenas de eletrochoques e de choques insulínicos;

nem por isso, porém, deixou de continuar a ser “o esquizo”. Os múltiplos nomes

com os quais se refere a si mesmo permitem-lhe objetivar-se, ocupar um lugar no

mundo, mas não conseguem situá-lo como sujeito ativo, como agente concreto de

pensamentos ou de ações.

A introdução de noções oriundas da linguística moderna enriquece a

compreensão dos sintomas da esquizofrenia. Giorgio Agamben num de seus

primeiros livros, Infância e história,217 utiliza-as para forjar seu conceito de história.

215 Em relação ao “famoso” idioma inglês, uma curiosa coincidência, se é que podemos
chamá-la assim: o Inglês, na cultura da qual fazemos parte, foi progressivamente
adquirindo força, peso e poder, infiltrando-se no tecido social, fazendo-se presente nas
vitrines, invadindo as subjetividades, impondo-se como a língua do poder em escala
planetária. A loucura de Wolfson não teria também a ver com isso? Sua obsedante defesa
das outras línguas, as estrangeiras, os recursos por ele empregados para obstruir o Inglês
sintonizando rádios das comunidades étnicas minoritárias de Nova Iorque não teriam
nada a ver com isso? Há sempre um fundo de verdade na loucura, porém pouco sabemos
dela.
216 A singularidade é uma das características essenciais da psicose; os caminhos
percorridos e as “soluções” encontradas são sempre únicas e próprias.
217 AGAMBEN, G. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
136

Nesse livro, propõe pensar o que significa o enunciado “existe linguagem” e o que

significa “eu falo”. Sua indagação assinala uma duplicidade, marca uma dicotomia:

“existe linguagem”, aponta para o fato da existir a língua, sistema de signos de

uma comunidade; “eu falo” direciona-se para fala, discurso, expressão individual,

apropriação subjetiva da língua. O interesse de Agamben situa-se na intersecção

de ambas as questões, no reconhecimento da existência de um hiato entre língua

e a possibilidade de um locutor apropriar-se dela como eu. Entre língua e discurso,

não há simultaneidade; no homem, há infância; ele não é desde sempre já falante;

o homem precisa entrar na língua. Os animais não entram na “língua” – ou o que

eles possuam; estão desde sempre nela. Há no homem experiência 218 da

linguagem. Essa experiência está aberta ao acaso e caracteriza-se pela

singularidade, pela imprevisibilidade, pela incerteza e pela subjetividade. A

utilização de eu é para Agamben, em concordância com Benveniste,219 citado no

texto, o que marca a passagem do semiótico para o semântico, ou de língua para

fala, na terminologia inaugurada por Saussure, também citado no trabalho. Ora, o

218 A experiência da linguagem diferencia-se de experimento tal como concebido nas


ciências: modo de verificação de variáveis controláveis.
219Para Benveniste, eu e tu, como pronomes, pertencem às “instâncias de discurso” – o
que Morris chama pragmático, aquilo que inclui com os signos a quem os utiliza. “A forma
eu só tem existência linguística no ato de fala de quem a profere”. Essas partículas
servem para resolver o problema da comunicação intersubjetiva: “A linguagem resolveu
esse problema [da comunicação intersubjetiva] criando um conjunto de signos ‘vazios’,
não referenciais em relação à ‘realidade’, sempre disponíveis e que ficam ‘preenchidos’ no
momento que um locutor os assume em cada instância de discurso”. Como alternativa, a
“terceira pessoa”, é uma “não-pessoa”, “um modo de enunciação possível para as
instâncias de discurso que não devam remeter a elas mesmas”. BENVENISTE, E. La
naturaleza de los pronombres. In: Problemas de lingüística general. Madrid: Siglo XXI,
1991, vol. I., cap. XIV. (tradução livre a partir do espanhol do original francês).
137

pensamento de Agamben vai mais longe; para ele a existência de infância é

condição de subjetividade no devir da história, é o que possibilita a história.220

Como fora descrito por Bleuler, uma das características da fala dos

esquizofrênicos é a frequente ausência do pronome pessoal eu nas suas

formulações. No lugar onde encontraríamos na fala comum eu, surgem, nos

esquizofrênicos, fórmulas alternativas: “ele”, “o jovem”, “o estudante de línguas” –

para mencionar algumas das empregadas por Wolfson.

Como pensar essa particularidade da fala dos esquizofrênicos? Bleuler a

atribui à despersonalização provocada pela Spaltung do eu. Utilizando as

contribuições provindas da linguística, essas esquisitices da fala esquizofrênica

parecem mais bem compreendidas se remetidas à impossibilidade de apropriação

da língua, ou seja, à assunção subjetiva da língua numa fala, num discurso. Não

se trata, em Wolfson, da perda do sentido das palavras; o que falta nele é a

possibilidade de assunção subjetiva da linguagem, a apropriação da língua numa

fala, a passagem do semiótico para o semântico. A ausência da partícula eu, do

shifter, como têm denominado os linguistas essas partículas, expressa tal

impossibilidade.

A partir desses apontamentos surge uma série de questões: se a linguagem

chega a nós tardiamente, tal como pensa Freud; se existe infância – no sentido

que Agamben a toma; se para todos os seres humanos existe a necessidade de

apropriação da língua – preexistente ao surgimento do infans; quais seriam os

220 “E é sobre essa diferença, sobre essa descontinuidade que encontra o seu
fundamento a historicidade do ser humano. Somente porque existe uma infância do
homem, somente porque a linguagem não se identifica com o homem e há uma diferença
entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isso o homem é um ser
histórico”. AGAMBEN, G. Infância e história. Op. cit. p. 64.
138

processos que se opõem a isso? o que faria possível perder a inserção subjetiva

da linguagem ou nunca chegar a alcançá-la?

Não há uma resposta universal para essas indagações; só podemos

alinhavar algumas hipóteses ligadas ao caso exposto. Na leitura que fizemos do

caso, apareceu em destaque a figura da mãe. Para Wolfson, a língua inglesa foi

percebida como uma intrusão avassaladora que ameaçava sua existência. A

linguagem foi sentida como uma propriedade d’ Ela; em Wolfson parece não ter se

efetivado a morte da mãe, seguindo os termos propostos por Hassoun. Na mente

do jovem, as palavras pronunciadas pela mãe efetivavam um estupro auditivo

cerebral descrito com prolixidade: as vibrações do corpo materno, transformadas

em vibrações acústicas, invadiam-no corporalmente. Nenhum lugar restou para

ele; nenhum sujeito capaz de assumir-se no discurso como eu. Seu pai, visto

como figura “fluídica”, burocrática, que apesar de discordar consente, tampouco

conseguiu servir-lhe de anteparo ou resguardo 221 frente à presença sentida como

excessiva e inquietante da mãe. Tampouco encontrou resguardo em seu padrasto,

desastrado ladrão que, depois de fugir, ser preso e deportado, voltou implorando

clemência, “prometendo não importa quase o quê”, para não ser punido pelo furto.

Ambas as figuras paternas são vistas como personagens fracas, fugitivas, sem

estar claro do que fogem: se do fato de terem sido enganadas ou do espanto

provocado por esse olho faltante, imagem mítica da castração.

De coisas e palavras

221Quanto aos anteparos, a questão do Nome-do-pai e a da forclusão, serão tratadas


separadamente no caso Edgar.
139

Não se pode dizer que Wolfson ficou com as palavras no lugar das coisas,

ou que as palavras nele perderam sua relação com o mundo das coisas. Tanto

coisas como palavras encontram-se afetadas. A excentricidade, termo caro a

Binswanguer,222 invade o mundo prático. Vejam-se a respeito os complicados

manejos da alimentação no caso de Wolfson. Larvas, ovos de parasitas e todo tipo

de germens ameaçam penetrar no seu corpo junto com os alimentos. Os temores

hipocondríacos, a angústia hipocondríaca – na opinião de Freud, tão significativa

da regressão libidinal e da linguagem de órgão – levam-no a longos períodos de

anorexia. A intensidade dessa angústia é avassaladora, impossível de ser contida

na linguagem. Essas intensidades alimentam as ações e o empurram a vários

tipos de atos compulsivos. Wolfson precisa, assim como faz com as palavras

inglesas, remanejar as provisões trazidas do mercado por sua mãe. Para além de

sua aparência macroscópica, a comida é transformada em fórmulas químicas,

atomizada e quantificada, metamorfoseada em elementos purificados que só

dessa maneira podem ser ingeridos. Assim como a linguagem, o mundo das

coisas exige transformação.

A ideia de que a ligação com as coisas seja a garantia de uma linguagem

bem constituída precisa ser revisada. Foucault, em As palavras e as coisas,223 fez

contribuições valiosas que ajudam na análise da relação palavras/coisas na

linguagem e na esquizofrenia. A primeira delas diz respeito à existência de uma

heterogeneidade radical entre coisas e palavras. Com efeito, como testemunhará

222BINSWANGER, L. Três formas de la existência frustrada. Buenos Aires: Amorrortu,


1956.
223 FOUCAULT, M. Las palabras y las cosas. México: Siglo XXI, 1969. (As citações em
português são traduções livres a partir da versão ao espanhol do original francês)
140

Deleuze,224 Foucault afirmou que o título do seu livro deve ser entendido

ironicamente: palavras e coisas pertencem a mundos diferentes, o visível e o

enunciável são dois polos irredutíveis um ao outro. A propósito da célebre análise

do quadro Las meninas, de Velázquez, Foucault dirá:

(...) a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. (...) por
mais que se diga o que se viu, o visto não reside jamais no que se diz, e
por mais que se queira fazer ver, por meio de imagens, de metáforas, de
comparações, o que se está dizendo, o lugar em que elas resplandecem
não é o que se descortina à visão e sim o que define as sucessões da
sintaxe. 225

O que se vê não fundamenta o que se diz; também não se esgota no que

pode ser dito. Linguagem e percepção, palavras e coisas, não se fundamentam

umas nas outras; igualmente não se subordinam nem se substituem: são

irredutíveis umas à outras.

Essa heterogeneidade de coisas e palavras está presente também na

análise feita por Foucault das heterotopias: 226 formas de expressão literária nas

que a proximidade do que não convém e a ruptura dos sistemas de classificação

inquietam, minam a linguagem, provocando um deleite especial, rompendo com a

224 DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 61.


225 FOUCAULT, M. Op. cit., p. 19.
226 O exemplo analisado por Foucault é extraído de um livro de Borges: “En sus remotas
páginas [de la enciclopedia china: Emporio celestial de conocimientos] está escrito que los
animales se dividen en a) pertenecientes al Emperador, b) embalsamados, c)
amaestrados, d) lechones, e) sirenas, f) fabulosos, g) perros sueltos, h) incluidos en estas
clasificación, i) que se agitan como locos, j) innumerables, k) dibujados por un pincel
finísimo de pelo de camello, l) etcétera, m) que acaban de romper el jarrón, n) que de
lejos parecen moscas”. BORGES, J.L. El idioma analítico de John Wilkins. In: Obras
completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 708.
141

sintaxe, fazendo perder o “comum” do lugar e do nome. Há certa proximidade

desse desarranjo com as “alterações de linguagem” frequentes na esquizofrenia.

Também a fala esquizofrênica pode provocar inquietação e ter um efeito cômico,

tal a estranheza da junção desordenada de coisas e palavras. Para Foucault, o

desarranjo das heterotopias é produzido na própria linguagem. Se coisas e

palavras parecem encontrar-se – ou desencontrar-se, como nas heterotopias –

esse lugar pertence à própria linguagem, é um efeito da sintaxe, uma sintaxe

menos evidente talvez, mas é graças a ela – e nela, no campo fechado da

linguagem – que coisas e palavras encontram um lugar onde podem permanecer

juntas. Esse fechamento da linguagem sobre si mesma tem a ver com outra

grande contribuição de Foucault ao tema das palavras e das coisas: a linguagem

na modernidade perde a relação com as coisas que lhe era garantida pela

representação na época clássica; as palavras, na modernidade, remetem a outras

palavras numa série infindável.227 A teoria da representação que, na época

clássica, garantia continuidade entre mundo e signos, entre pensamento e

227 Um propósito amplo guiará Foucault em As palavras e as coisas: a partir da


investigação arqueológica encontrar a episteme que torna possível o surgimento de
conhecimentos e teorias. A arqueologia, porém, não é uma história; ela é um estudo das
condições históricas da possibilidade do saber. A episteme é o campo epistemológico no
qual os conhecimentos assentam sua positividade, a configuração que tem permitido as
diferentes formas de conhecimento empírico. Duas são as grandes descontinuidades
estabelecidas em As palavras e as coisas: a Clássica e a Moderna. Em relação à
linguagem, o exame de Foucault inicia-se no século XVI, quando a linguagem era
pensada como dádiva de Deus depositada no mundo e fazendo parte dele como coisa
natural. A partir do século XVII, desfaz-se o profundo pertencimento da linguagem e do
mundo. Na Idade Clássica trata-se de perguntar como um signo pode estar ligado ao que
significa. Às palavras cabe o papel de representar o pensamento. A cargo da linguagem
fica a tarefa e o poder de dar signos adequados a todas as representações, nomeá-las e
de estabelecer entre elas os laços possíveis. A linguagem deve recolher a totalidade do
mundo nas suas palavras e o mundo deve poder converter-se, no seu conjunto, numa
enciclopédia. Com a Modernidade profundas modificações se produzem na concepção da
linguagem. O que caracteriza uma língua é sua estrutura interna, certa arquitetura que lhe
é própria. A linguagem fica isolada, tratada como uma organização autônoma.
142

linguagem, entra em colapso na modernidade e, com isso, perdem-se os elos que

a linguagem possuía com o mundo das coisas. A linguagem adquire autonomia e

um ser que lhe é próprio. Os homens podem até utilizar-se dela, expressar seu

pensamento em palavras, mas eles não são mais os donos delas; escapam-lhes

as dimensões históricas do que dizem; submetem-se a exigências que

desconhecem, ditadas por regras internas da constituição da linguagem.

Na modernidade, a interpretação parte do homem 228 para chegar às

palavras que tornam possível o conhecimento. Mas o que se descobre com elas é

que, antes de qualquer palavra nossa, estamos dominados e transidos pela

linguagem. No entanto, se a linguagem perdeu suas raízes nas próprias coisas,

encontra outras nas ações dos falantes. Fala-se porque se atua. A linguagem

expressa, manifesta e traduz o querer fundamental dos que falam, expressa o

espírito do povo que a fez nascer e pode reconhecer-se nela. O homem encontra

na linguagem não apenas o que o constringe e o subjuga, mas também sua

liberdade plena, a possibilidade de uma significação sempre aberta ao desejo que

o anima.

No caso da esquizofrenia, porém, assistimos à encenação dramática do

domínio e do poder avassalador da linguagem. O aprisionamento, a subjugação,

ocupa o espaço todo, não deixando lugar algum à liberdade. O sujeito sente-se

constrangido, forçado, preso, à mercê de forças poderosas que dominam sua

existência, obrigado à obediência sem contrapartida, sem nada em troca. O caso

228O homem, tal como o conhecemos hoje, é uma construção moderna, afirma Foucault.
“O que fala numa língua e não cessa de falar num murmúrio que não se entende, mas do
qual provém todo seu fulgor, é o povo”. FOUCAULT, M. Op. cit., p. 284.
143

Wolfson é um exemplo claro dessa vivência avassaladora. Também assistimos na

esquizofrenia à impossibilidade de fazer parte da modernidade, de poder utilizar o

fluxo do discorrer significante, para expressar a própria subjetividade sem perder-

se nele. Em alguns casos, esse temor de perder-se no fluxo das palavras faz

aparecer um pensamento concreto, rigidez ao falar e profusão de rituais, como se

a falta de poder encontrar na linguagem o lugar das coisas, as próprias coisas

precisasse ser abraçada. A sintomatologia da esquizofrenia mostra igualmente a

existência de um recurso extremo: a fala pode desaparecer; não são raros os

mutismos, o silêncio – os temidos sintomas negativos.

Para Lacan, a relação com as coisas também não fundamenta a linguagem

bem constituída. Em sua perspectiva, a fórmula da relação palavra/coisa pode ser

invertida: a palavra é alicerce para a ligação com a coisa. De fato, sua visão

estrutural da linguagem, apoiada em Saussure, rompe com a noção de referente e

coloca o significante bem como a relação entre significantes, como paradigmas

estruturantes da subjetividade e do mundo. A primazia da palavra em relação à

coisa fica patente quando afirma: “A palha da palavra só aparece à medida que

separemos dela o grão das coisas, e é primeiro essa palha que levou a esse

grão”.229 Também quando sustenta: “É muito evidente que as coisas de um mundo

humano são coisas de um universo estruturado em palavra; que a linguagem, que

os processos simbólicos dominam, governam tudo”.230

229 LACAN, J. Seminario 7: La ética del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1988, p. 59.
230 LACAN, J. Seminario 7: La ética del psicoanálisis. Op.cit., p. 59.
144

No começo da sua extensa obra, Lacan dedicou várias aulas de seus

lendários seminários ao tema da coisa, Das Ding, como é o caso do Seminário VII,

A ética da psicanálise, no qual propõe diferenciar Sache de Ding, o que lhe serve

de apoio para reafirmar a primazia da palavra. Fica evidente que, na a perspectiva

de Lacan, “as coisas” estão perdidas para todo ser humano, que as palavras ficam

separadas das coisas pela existência mesma da linguagem e que o problema das

alterações de linguagem na esquizofrenia deve ser pensado a partir de outros

parâmetros.231

Uma das formas pelas quais Lacan pensou a questão da linguagem foi

introduzindo o termo Outro – diferente do outro semelhante da relação imaginária

– uma ordem radicalmente anterior e exterior ao sujeito, da qual ele depende, ou

como dirá no Seminário III, (...) “o Outro é um lugar, o lugar onde se constitui a

palavra”.232 Se repensássemos a partir desses termos a situação de Wolfson, o

Outro, tal como foi definido, parece estar excluído nele; aliás, essa exclusão do

Outro na psicose é reiteradamente afirmada por Lacan.233

A ordem da linguagem aparece em Wolfson encarnada na figura da mãe;

ela é vista como a detentora de um poder absoluto e avassalador que em nada

231Embora Lacan tenha se dedicado mais a paranoia do que à esquizofrenia, é a partir da


materialidade significante, da letra inscrita no corpo e, fundamentalmente, a partir do
conceito de forclusão do Nome-do-pai que vai cercar os problemas suscitados pela
psicose. Retomaremos algumas dessas questões em outro momento da tese.
232LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Buenos Aires: Paidós, 1984, p. 391. Essa é uma
das acepções que Outro tem na produção de Lacan. O conceito de Outro, introduzido em
1955, tem múltiplas determinações na sua obra;.a que escolhemos nos pareceu suficiente
para os fins propostos.
233 “O Outro está verdadeiramente excluído na palavra delirante(...) LACAN, J Seminario
3: Las psicoses. Op. Cit., p. 81; (...) “soubemos reconhecer que há na psicose exclusão
do Outro onde o ser se realiza na palavra que confessa”. Idem p. 231; “O Outro, com
maiúscula, tenho dito, estava excluído como portador do significante”. Idem p. 277.
145

alude a essa ordem anterior e exterior que caracteriza o Outro, para Lacan. Se o

Outro existe para Wolfson, ele está encarnado na figura de sua mãe. Para ele, a

linguagem deixa de ser um acordo transindividual; transforma-se num imperativo

despótico de alguém do qual é necessário fugir. Desse modo, a violência própria à

aquisição da linguagem torna-se insuportável, obstaculizando o jogo identificatório,

a constituição tanto do outro como do eu. A linguagem não consegue estruturar-

se como acordo mínimo que torne possível o estabelecimento de laços com o

outro nem a expressão da subjetividade; por isso, o sujeito é mais falado do que

fala, como apontou Lacan.234

As contribuições extraídas da linguística (Saussure, Benveniste), da filosofia

(Agamben e Foucault) e da psicanálise pós-freudiana (Lacan) podem enriquecer a

análise de Wolfson. Poder-se-ia afirmar que Wolfson sente-se mais dominado,

subjugado, transido pela linguagem do que partícipe de um jogo no qual possa

obter qualquer esperança de expressão ou liberdade. As palavras transformam-se,

então, em perigosas armas, potencialmente destrutivas, carregadas de poderes

capazes de corromper e de enganar. Por isso precisam ser descontaminadas,

neutralizadas, por um procedimento.

Na complicada mecânica do seu procedimento, as palavras das várias

línguas estudadas foram transformadas numa espécie de farelo de sons, letras e

significações, constituindo um material a partir do qual poderia surgir, quiçá, a

234 “Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a
liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo que
chamamos obstáculo à transferência” (...) “A ausência da fala manifesta-se nela [na
loucura] pelas estereotipias de um discurso em que o sujeito, pode-se dizer, é mais falado
do que fala” LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In:
Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 281.
146

possibilidade, fugaz ou duradoura, de construção de uma linguagem. Mas a

linguagem, tal como ela está constituída em nós, não está presente em Wolfson; o

que há nele é um simulacro de linguagem, uma prótese linguística, um precário

arranjo que possibilita uma circulação restrita.

Conheci vários outros Wolfsons, alguns até mais limitados do que ele.

Lembro-me do caso de um jovem de 19 anos cujo procedimento consistia na

elaboração compulsiva de uma espécie de acróstico; cada palavra era

decomposta em outras a partir de suas letras. O seu mundo estava restrito à

obsessiva tarefa de preencher cadernos e folhas nos quais era realizada, ao

contrário, a brincadeira da sopa de letras: em vez de, a partir das letras, construir

palavras, debulhava letras a partir das palavras. Nesse caso, tratava-se mais da

desconstrução/destruição da linguagem do que de uma reconstrução. Lembro

também de Pedro, menos restrito do que Wolfson, mas também adepto do uso

das palavras estrangeiras, no interessante caso relatado por Berlinck-Koltai-

Canongia em Esquizofrenia e miscigenação.235

Em algumas obras literárias encontramos exemplos de procedimentos

parecidos com os de Wolfson, como relata Deleuze. Tal é o caso dos escritos de

Raymond Roussel e Jean-Pierre Brisset, também esquizofrênicos. Em todos há

um procedimento; a língua materna precisa um exílio, necessita sofrer

estrangeirização, estranhamento.

235 BERLINCK-KOLTAI-CANONGIA. Esquizofrenia e miscigenação, Revista


Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. IV, n°4. São Paulo: Escuta, dez./
2001, pp. 11 a 29.
147

A literatura, na particular acepção que Foucault lhe deu na modernidade –

terreno de expressão do ser da linguagem –, aproxima-se daquilo que Freud

descreveu como próprio da esquizofrenia: um mundo de palavras que remetem a

outras palavras sem nada que detenha o discorrer significante. Essa vizinhança,

embora seja apenas descritiva, presta-se a comparações e metáforas. A

esquizofrenia como metáfora da modernidade tem sido muito usada como modo

de refletir os tempos atuais, tão confusos e carentes de eixos que organizem a

vida dos sujeitos. Contudo, como já se afirmou, são os recursos da modernidade

os que não podem ser aproveitados na esquizofrenia. Por mais que uma

proximidade aparente ligue modernidade e esquizofrenia, seus processos e

determinações não se confundem. Por mais que a obra literária – seja a de

Borges, Mallarmé, Artaud, Joyce, Roussel ou Kafka, para citar alguns dos autores

mais prezados por Foucault – aproxime-se da experiência da linguagem na

loucura, não se confunde com ela, porém. Conservam-se fronteiras entre os

campos, embora mais tênues do que muitos gostariam.

Mas o que separa essas produções de linguagem das nossas não jaz

essencialmente na falta de ligação palavras/coisas, como pensara Freud, e sim na

ligação da linguagem com os outros, com o Outro, como propôs Lacan.

A linguagem e os outros

A esse respeito, vale lembrar o ainda atual, embora antigo, trabalho de F.

Perrier,236 em que o autor afirma que o fato de o esquizofrênico falar “é a primeira

236 PERRIER, F. Fundamentos teóricos para uma psicoterapia da esquizofrenia. In: A


formação do analista. São Paulo: Escuta, 1993.
148

armadilha que coloca para o analista”. O fato de ele falar não quer dizer que algo

seja dado a compreender através da fala, e muito menos que esse algo seja

oferecido a nós. Afirma Perrier:

Nos neologismos, nos jogos de palavras, nos trocadilhos, que jogam


a nota discordante na partitura verbal que gostaríamos, amiúde em vão, de
orquestrar para responder ao solilóquio paranoide – supondo-lhe uma
função determinada em sua aberração –, podemos procurar, mais que as
virtualidades de uma significação não assumida, a prova de uma
adulteração, de uma perversão, de um repúdio à palavra enquanto
mensagem fundadora de uma relação.237

Depreende-se do anteriormente exposto o que se constituiu em hipótese

central da minha pesquisa: o que a palavra perde na esquizofrenia, o que nela

está profundamente adulterado, “pervertido”, seguindo a proposta de Perrier, é a

dimensão intersubjetiva da linguagem. A falta de referência ao Outro – utilizando a

terminologia de Lacan – impossibilita a constituição tanto do eu como do tu,

fracassam os recursos existentes na linguagem, gerados para facilitar a

comunicação intersubjetiva (Benveniste); perde-se a instância do discurso e a

apropriação da língua numa fala; perdem-se também os laços com os outros. A

incompreensibilidade das falas deriva mais desse impedimento do que da perda

da capacidade de denominação ou de relação das palavras com as coisas. É a

esse desligamento fundamental que Freud tentou aludir com o conceito de

narcisismo; Bleuler, com o de autismo; Minkowski, com o de perda do contato vital

com a realidade. Isenta da obrigação imposta pelo código da língua, a palavra

237 PERRIER, F. Op. cit., p. 259.


149

liberta-se da tirania que possibilita a significação. Mas, rompido esse

assujeitamento cerceante, a linguagem esvazia-se, torna-se simulacro, jogo.

Aparecem então os neologismos, a esquizofasia, as contaminações, a confusão.

Sem a obrigatoriedade desse assujeitamento, o deslizamento significante – que na

modernidade garante o surgimento do sentido (Foucault) – ganha características

estranhas, carregadas de excentricidade. As construções se tornam enigmáticas,

esquisitas; as palavras perdem consistência, pendem mais e mais para o

solipsismo.

Acompanhando tais processos, sentimos fortemente o desejo de

“orquestrar os neologismos”, os jogos de palavras, as esquisitices, encontrar-lhes

uma “significação não assumida” (inconsciente talvez?). Desse modo, porém, não

penetraríamos naquilo que Garrabé chamou “a noite obscura do ser”;238 apenas

compensaríamos nosso isolamento, sentir-nos-íamos menos impotentes. Mesmo

assim, e apesar das dificuldades, os enigmas da psicose nos instigam, chamam-

nos para um desafio. Benedetti, que muito trabalhou na terapia da esquizofrenia,

afirma:

A alma humana está a tal ponto construída de acordo com uma


dimensão de comunicação que, a despeito das distorções autísticas, há
sempre recursos, possibilidades marginais, caminhos de atravessamento,
experiências que permitem que a mensagem circule segundo a via do
diálogo.239

238GARRABÉ, Jean. La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia. México:
Fondo de Cultura Económico, 1996.
239 BENEDETTI, G. La mort dans l’âme. Psychoterapie de la schizophrénie: existence et
transfert. Ramonville Saint-Agne: Erès, 1995, p. 20. (A citação em português é uma
tradução livre a partir do original francês)
150

Contudo, considero que, na tentativa de atingir esse objetivo proposto por

Benedetti, a psicanálise precisa ampliar suas fronteiras. É preciso aventurar-se,

criar enquadramentos singulares. O trabalho com pacientes psicóticos não é um

trabalho de tradução, muito menos de hermenêutica; exige participação,

posicionamento por vezes, e se afasta da neutralidade proposta no trabalho com

neuróticos.

Por enquanto deixemos Wolfson e nos ocupemos de Mané. Alguns dos

desafios acima assinalados estiveram presentes nos meus encontros com ele.

Antes disso, porém, mais um adendo em relação a Foucault. Uma das

questões que mais me marcaram de seu livro é, como já foi formulado páginas

atrás, que a linguagem, o que se diz, esse “murmúrio que não se entende” – mais

do que estrutura –, não domina tudo. O que se vê, o visível, não é o que ancora o

que se diz, pelo menos na modernidade, e também não se confunde com ele.

Literatura e pintura, linguagem e percepção, palavra e coisa, visível e enunciável

não se fundamentam um no outro, também não se subordinam nem se

substituem; são irredutíveis um ao outro; por isso sua relação é infindável.


151

MANÉ e a língua

1. Apresentação do caso

Mané é um rapaz de 28 anos, franzino, de estatura baixa e pele morena. De

origem pernambucana, seu sotaque é ainda muito carregado, apesar de morar em

São Paulo há mais de 8 anos. Quando o convido a entrar na sala onde vou

atendê-lo, mostra-se colaborador e interessado, atitude que mantém durante as

entrevistas feitas. Conta-me com alegria momentos da sua infância, suas

brincadeiras com bilas – que aqui são chamadas de gude, esclarece –, outras com

palitos e terra, que explica com detalhes, sempre com disposição e bom humor. A

“rodinha do prefeito” era, segundo seu relato, a turminha de vizinhos que se

juntava em torno do aparelho de TV localizado na prefeitura, onde a garotada

“filava” a programação da Globo: as novelas, o Sítio do Pica-pau.

– Porque – sabe, doutor – lá a gente era muito pobre e não tinha um

aparelho em cada casa como aqui. A vida era muito dura. Fome não passava,

fome não, necessidade sim.

Seus relatos são tão vívidos e divertidos que, por breves momentos, a

realidade é deixada de lado; quase esquecemos que estamos em um hospital

psiquiátrico e que fatos muito graves tinham ocorrido dias atrás. Posteriormente

me lembrei de que a vividez de fatos do passado, contrastando com a falta de

importância de acontecimentos do presente, conta-se como uma das

características distintivas da esquizofrenia descritas na monografia de Bleuler.240

240 Ver a respeito o Capítulo I desta tese.


152

Também algo da ordem do incongruente se presentificava: Mané me falava com a

intimidade de quem me conhecia desde sempre, e nada fazia pensar que minutos

antes éramos ilustres desconhecidos. Igualmente fazia-se palpável certa falta de

inibição e de pudor.

Resumindo sua história: Mané passou sua infância na roça de Pernambuco

e, como tantos outros retirantes nordestinos, foi empurrado pela seca, inicialmente

para Araripina e depois para São Paulo, aonde chegou com uma mão atrás e

outra na frente, acompanhado de uma irmã. Logo encontrou emprego em uma

indústria química na qual permanece até hoje. É o irmão mais velho de uma

extensa prole. Hoje, pode-se dizer que realizou o sonho de todo retirante

nordestino: tem emprego fixo, casa própria e dinheiro no bolso. Namoradas...?

Alguma no Nordeste, outras aqui. Sexo? Só de vez em quando, com prostitutas de

boate. Tudo parecia correr satisfatoriamente até que uma das suas namoradinhas

daqui o convidou para participar de um culto evangélico onde conheceu “a

Palavra”.

– Tudo já estava traçado por “Ele”, a gente só cumpre seu destino, não é,

doutor?

O relato que se segue é mais ou menos o conhecido: aquilo que começou

sendo uma visita por curiosidade transformou-se aos poucos em um fervor que foi

tomando conta da vida de Mané, que preenchia seu tempo e sua existência.

Nunca mais prostitutas, nunca mais lazer; só rezas e leitura da Bíblia, dos

profetas, da “Palavra”, da “Verdade”.


153

Mané não lembra quando começaram os problemas. Só sabe que alguma

coisa atrapalhava suas orações. Dispunha-se a ler ou a rezar, mas algo interferia.

Uma força muito intensa queria empurrá-lo para o abismo e impedir sua salvação.

Algo muito poderoso o lançava às trevas e ameaçava impedi-lo de cumprir sua

missão.

Sua língua não lhe obedecia. Ela se movia “ao contrário” como se “alguma

coisa” tivesse se apoderado dela e quisesse desviá-lo do caminho da Palavra.

– Mas que coisa? O capeta? – pergunto-lhe.

– É – assente, sem repetir a palavra “capeta”.

Abaixa a vista, e certa tremedeira toma conta de suas pernas. Está nervoso

e temeroso. O desembaraço inicial perde-se por completo.

– Então...?

Então relata o que eu já sabia. Em um ato de desespero e de loucura, Mané

pegara uma lâmina de barbear e tentara cortar sua língua. Por sorte, não

consumara seu ato e realizara apenas um corte no músculo. Depois de ser

atendido no pronto-socorro, foi encaminhado ao hospital psiquiátrico onde está

internado faz 8 dias, medicado com neurolépticos.

Ele descreve sua tentativa de mutilação como forma de livrar-se da

dominação exercida por uma força maligna que se apoderava da língua,

obrigando-o a articular palavras ofensivas para com “Ele” (Deus?, Jesus?).

Passado esse momento da confissão, tenso, trêmulo, retoma o desembaraço

inicial.

– Já estou bem da língua.


154

Pondo a língua para fora disse:

– Quer ver?

Algo da ordem do horror apoderou-se de mim e apressei-me a responder:

– Não. Prefiro continuar conversando. Você falou de uma missão. Que

missão é essa?

A essa pergunta, Mané muda sua atitude de colaboração. As respostas

tornam-se exploratórias, evasivas, como: “O que o senhor diria – até aqui

tínhamos combinado que usaríamos você – se eu lhe dissesse que...”, “O que o

senhor pensaria se...”, “O que o senhor acharia se eu dissesse ao senhor que...”.

É assim, a conta-gotas, que relata a tarefa que o profeta Isaías lhe

encomendara: “uma profecia”, que ele “profetizasse”, que levasse “a palavra”. Se

ele “realizasse a profecia”, isso iria beneficiar muita gente. É o próprio Deus quem

fala com ele. Leva um susto quando eu lhe pergunto:

– Como fazia com Jesus?

Depois de reposto desse momento de perplexidade, pergunta-me:

– O senhor acredita que o que estou dizendo é verdade?

Nessa hora, quem ficou perplexo fui eu. Não sei bem como nem por quê,

pus-me a dizer-lhe que eu acreditava que, para ele, tudo que havia me contado

era verdade, que tinha sido muito sincero comigo. E acrescentei:

– Só que a verdade é um assunto complicado; pode haver mais de uma,

como há mais de uma religião.


155

Com essa resposta ficou mais calmo, voltou ao “você” combinado, e

perguntou-me a respeito da minha origem, meu sotaque, minha “língua”. Eu

respondi, e ele então me perguntou:

– O que você diria se eu lhe dissesse que a minha missão pode ajudar

muita gente na Argentina?

Devolvi sua pergunta com outra:

– Como você faria para ajudar a Argentina?

Mané ficou um pouco atrapalhado. Havia ali algo de óbvio que eu parecia

não ter captado bem: “a profecia”, “profetizar”, “falando com esse povo”, terminou

por dizer.

– Então, para isso, você teria que aprender espanhol – eu disse.

– E se eu amanhã falasse espanhol sem ter estudado nada, por obra Dele,

o que você pensaria?

– Quer que eu seja sincero? Se você amanhã começasse a falar espanhol

sem ter aprendido, eu não pensaria nada; ficaria muito confuso, morreria de medo,

ficaria morto de medo, porque, se isso fosse possível, muitas das coisas nas quais

eu acredito já não seriam verdade.

Mané esboçou uma risadinha de satisfação. Parecia sentir-se poderoso. E

eu fiquei preocupado. Tive medo de ter confirmado sua onipotência.

Por esse motivo, apressei-me em dizer-lhe que o tinha percebido

apreensivo, receoso, com medo do que eu poderia pensar dele, da sua missão.

Dísse-lhe também que considerava bom ele ter medo das coisas nas quais ele

acreditava, porque, de fato, tinham sido essas coisas nas quais ele acreditava,
156

esses poderes que ele sentia possuir, que o haviam levado a fazer algo muito

perigoso; ele tinha se ferido, cortado sua língua, seu corpo, e isso não era bom

para ele. Mané pareceu concordar; disse-me que agora estava bem, sua ferida

tinha cicatrizado. Contou-me também que seus pais estavam em São Paulo,

sentia-se aliviado e contente por isso. Perguntou-me se eu não queria falar com

eles. Eu disse que voltaria a vê-lo na semana seguinte. Percebi nesse momento

que ele achava que já não estaria lá na semana posterior e que a perspectiva de

uma internação prolongada estava fora dos seus planos. Tive também a

impressão de que imaginava voltar a Pernambuco com seus pais.

2. Considerações 241

Ainda que o diagnóstico de esquizofrenia constante na ficha clínica abra-se

a questionamentos dentro da nosografia psiquiátrica (esquizofrenia ou delírio

agudo?), haver tentado decepar a língua em decorrência de um delírio místico/

religioso faz de Mané um caso que convida à reflexão. O fato de ser a primeira

internação e de as entrevistas terem sido feitas durante os primeiros dias permite

ter uma versão sem a interferência de procedimentos desconhecidos.

A prática de furos, queimaduras, cortes, inclusive a autocastração, faz parte

dos sintomas descritos na esquizofrenia. Esses atos, muitas vezes impulsivos,

como o de Mané, exigem refletir a respeito do lugar do corpo, da linguagem e da

pulsão na psicose, bem como situar o lugar das ações nesses quadros. Os limites

entre crença e delírio encontram-se na base da construção do conceito de delírio,

241Do mesmo modo que em Wolfson, as diferentes questões que o caso suscitou foram
divididas em alguns temas – da religião ao delírio, as palavras em Mané, a passagem ao
ato etc. – O texto, porém, foi elaborado de modo a poder ser lido seqüencialmente, com
independência da divisão feita.
157

e, em muitos casos, essas fronteiras apresentam-se de modo impreciso. Religião

e loucura possuem bordas difíceis de definir nitidamente, constituindo um desafio

para a clínica.

Em oposição a Wolfson, a vida de Mané parece ter se desenvolvido em um

ambiente comunitário, onde a TV do prefeito e os colegas de rua faziam-se mais

presentes até do que os próprios pais. De fato, ele pouco falou de sua família, sua

mãe, seu pai ou seus irmãos. Contudo, a “grande família” da pequena

cidadezinha do interior pernambucano, como é sabido, não garante a subsistência

de seus cidadãos, expulsos ciclicamente, ao ritmo da intensidade das secas que

assolam essas regiões. É assim que Mané “aterrissa” em São Paulo, não porque

venha de avião, e sim porque chega à grande cidade sem transições, diretamente

de uma pequena cidade – que nem sequer está no mapa –, o que provoca nele o

mesmo efeito perturbador das primeiras viagens aéreas: em pouco tempo, tudo

muda tão radicalmente que o psiquismo não consegue acompanhar a velocidade

das alterações. O desamparo humano acentua-se com as migrações; o efeito

perturbador das mudanças costuma ser muito intenso; certa despersonalização

acompanha frequentemente o processo de readaptação.

Da religião ao delírio

A questão do desamparo ocupa um lugar central na concepção freudiana

da religião. Em O futuro de uma ilusão,242 as ideias religiosas são pensadas como

engendradas pela necessidade de tornar mais suportável a solidão humana, e

construídas com parte do acervo de lembranças da dependência infantil. É através

242 FREUD, S. (1927) El porvenir de una ilusión. In: AE, 1976, vol. XXI.
158

de um “cabedal de representações” – assim chama Freud ao arcabouço conceitual

das religiões –, variável de religião a religião, que é oferecida uma dupla proteção,

por um lado “contra os perigos da natureza e do Destino”, por outro “contra os

danos que o ameaçam [ao homem] por parte da própria sociedade humana”.243 É

com esse cabedal que cada religião pretende congregar os homens tornando-os

fiéis aos dogmas e deles difusores.

A contribuição freudiana à questão da religião articula o conceito de

desamparo com o de narcisismo. Efetivamente, o desamparo fundamenta a

existência de uma longa fase de dependência dos pais na qual a criança é

atendida, cuidada e tratada como uma “majestade”, utilizando o termo empregado

em Introdução ao narcisismo. A existência desse cuidado alheio, a

complementaridade entre a mãe e seu bebê, possibilitam tanto o autoerotismo

como o narcisismo. Uma vez que os pais são escolhidos como objetos, eles são

vistos como fontes de segurança e proteção, e a onipotência decorrente das fases

anteriores é depositada neles. É seguindo o padrão infantil de proteção e amparo

recebido dos pais, com o acervo dessas lembranças, que a religião constrói seu

“cabedal de representações”. A religião supõe, então, a relação entre o real do

desamparo, intolerável, e o desejo que, seguindo esses padrões, procura figuras

protetoras todo-poderosas. Nesse sentido, a religião é uma ilusão, sustentada pela

força do desejo de proteção e ajuda de uma figura superior. A superioridade

dessas figuras é decorrente do narcisismo projetado nelas; a religião como

243 FREUD, S. (1927) El porvenir de una ilusión. Op. Cit., p. 18.


159

cosmovisão supõe a projeção do narcisismo e o reconhecimento do objeto, dirá

Freud em Totem e tabu.244

Dessa perspectiva, o desamparo constitui matéria prima de grande valia

para o estabelecimento de religiões, e seu aumento, um incentivo maior para o

credo quia absurdum245 do qual Freud fala no texto de 1927. A convicção religiosa

costuma intensificar-se especialmente naquelas religiões de opção adulta, menos

sujeitas às críticas decorrentes da revolta adolescente. A Igreja – sobretudo as

evangélicas – costuma apresentar-se como “outra família”, “outra vida”, mudança

simbolizada no ritual do batizado pela imersão completa do corpo: morte do

pecado, ressurreição para uma vida de luz.

Mané fez esse percurso. De extração católica, fez conversão a uma religião

evangélica sendo batizado com o ritual antes descrito. Lentamente passou a

encontrar na religião e na comunidade religiosa a proteção que perdera com a

migração. Também passou de fiel seguidor a ativo difusor dos dogmas cristãos.

Até aí, seu caminho não difere muito do percorrido por milhares de outros fiéis que

encontram na fé consolo para encarar as misérias deste mundo e,

concomitantemente, uma comunidade de irmãos, uma “grande família”, que serve

de anteparo à violência de uma sociedade cada vez mais cruel. Contudo, no seu

caso, o fervor religioso adquiriu intensidade e proporções inusitadas.

Importante ressaltar que, na sociedade atual, nas sociedades modernas, a

religião, embora possua presença significativa, deixou de ser o centro organizador

244 FREUD, S. (1913) Totem y tabu. Op. Cit., p.93.


245 Acredito porque é absurdo.
160

da vida social, e seus dogmas coexistem lado a lado com uma série de outras

categorias próprias da modernidade, como “o científico”, “o econômico”, “o

político” etc. Já as atitudes e crenças fundamentalistas operam de outro modo. O

dogma está no centro e a ele se apela para julgar e condenar as práticas sociais

que o contradizem ou questionam. Exemplo disso são os frequentes embates

entre o “saber médico” e seitas ou grupos fundamentalistas religiosos.

No caso de Mané, suas convicções foram se acirrando até chegar ao

fanatismo. Suas atividades progressivamente se articularam às atividades de sua

igreja, quase até o ponto de se verem reduzidas por completo a elas. As rezas e a

leitura da Bíblia ocuparam todo seu tempo. Não havia mais espaço nem direito

para sexo ou lazer. A Igreja, Deus, foram para ele como uma mãe/pai todo-

poderosos aos quais quis entregar-se de forma absoluta e total. Porém, existia um

empecilho para a “felicidade” completa: o capeta, o mal.

Em Uma neurose demoníaca do século XVII,246 Freud traz contribuições

interessantes ao tema da possessão demoníaca. Trata-se do caso do pintor

Christoph Haizmann que, em 1669, assina um pacto com o diabo – em verdade

dois: um com tinta; outro com sangue – do qual é exorcizado no santuário de

Mariazell, em 1677. Já na introdução desse texto, Freud traz subsídios

importantes à questão da possessão diabólica: “A nossos olhos, os demônios são

desejos maus e repreensíveis, derivados de pulsões que foram rechaçadas,

reprimidas. (...) encaramo-las como tendo surgido na vida interna do paciente,

246 FREUD, S. (1923) Una psicosis demoníaca del siglo XVII, In: AE, 1979, vol. XIX.
161

onde têm sua morada”.247 É dessa perspectiva, e como se fosse um caso passível

de elucidação, que Freud analisa o pacto do pintor Haizmann. O primeiro ponto

destacado pertence à biografia do pintor: uma profunda depressão o acometera

logo após a morte de seu pai. O pacto firmara-se nesse período de grande tristeza

e desânimo. O texto do pacto – “Eu Christoph Haizmann, subscrevo-me a este

Senhor como seu filho carnal” – fornece a Freud a pista para o desvendamento do

caso. O sentimento de orfandade derivado da morte de seu pai pôde mitigar-se

erigindo o diabo como substituto do pai, ao qual se subscreve como filho carnal. A

filiação diabólica é preferível ao desamparo da orfandade. Contudo, e esse é um

ponto relevante para o caso Mané, por que representar o pai nessa figura tão

nefasta? Depois de mostrar a duplicidade Deus/Diabo na própria religião – o diabo

como anjo caído –, Freud remete à relação ambivalente do filho com seu pai para

afirmar que tanto Deus como o Diabo são figuras surgidas da projeção dessa

relação ambivalente. O pai primordial, o despotismo do pai da horda primitiva,

também é invocado para reforçar a imagem negativa tanto do pai mítico como a

do diabo na religião.

Um fato curioso. Na análise de Freud, o exorcismo realizado no santuário

de Mariazell, dedicado a Maria, mãe de Cristo, mãe de Deus, não recebeu

nenhuma interpretação centrada na mãe. Bem poderia ter sido associada uma

analogia como: apelo à mãe para libertar-se do pai. Só em um momento,

referindo-se aos peitos com que o diabo foi desenhado pelo pintor, depois de vê-

los como projeção da própria feminilidade no substituto paterno, eles são

247 FREUD, S. (1923) Una psicosis demoníaca del siglo XVII, Op.cit. p. 73.
162

relacionados à ternura de uma mãe na qual teria o pintor uma forte fixação,

anterior ao pai.

Voltemos a Mané. Sua situação difere bastante do caso analisado por

Freud. Efetivamente, não há nele nenhum pacto com o diabo. O diabo, o capeta, é

uma figura terrificante que é preciso eliminar. A própria palavra lhe inspira pavor,

nem sequer conseguiu repeti-la quando eu a propus. Contudo, só podemos

pensar sua aparição como provinda de pulsões rechaçadas pertencentes ao

interior de Mané, como propõe Freud. O capeta não é outro senão ele mesmo; um

aspecto rebelde, díscolo, que resiste à submissão. O capeta figura sua própria

oposição ao desejo de obediência e sujeição. No capeta vive um Wolfson que

resiste, mas, diferentemente do “jovem esquizofrênico”, Mané deseja suprimir

esse lado opositor. Seu desejo, seu anseio, é de amálgama com Cristo, com

Deus, com aquilo que Lacan chamou, no seminário sobre as psicoses, Outro

absoluto.248

Contudo, não só o capeta é um obstáculo à submissão. Pouco a pouco se

opera uma passagem, central na construção do delírio. Como Cristo, no

arcabouço da religião que Mané adota, ele se sente chamado para uma missão

salvadora, sente-se escolhido para representar o Pai. Há um poder que se

transfere, mais por amálgama que por identificação, como no mistério da

248 “O que diferencia alguém que é psicótico de alguém que não o é? A diferença deve-se
a que é possível para o psicótico uma relação amorosa que o elimine como sujeito, ao
admitir uma heterogeneidade radical do Outro” LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op.
cit., Lição de 31 de maio de 1956, p. 363. (A citação em português é uma tradução livre a
partir da versão ao espanhol do original francês)
163

dualidade Deus pai/Deus filho no cristianismo. Essa junção o engrandece.249 Os

profetas também parecem haver jogado um papel importante. Os poderes e

missões de Mané ligaram-se inicialmente a eles. Porém, nos encontros que tive

com ele, esse ponto fez parte de uma área obscura, sem justificativas, distante de

nossa compreensão.

Seja qual for o caminho percorrido, o resultado final foi o já relatado: Mané

foi sentindo-se muito carregado de poderes. A onipotência projetada no Pai da

religião não conseguiu ser mantida nesse lugar. O Outro absoluto de que fala

Lacan250 acabou por encarnar-se nele próprio, falar através dele, utilizando sua

voz; assim, Mané viu-se investido do poder que Ele lhe delegara. Por obra d’ Ele,

seria capaz de falar qualquer língua, seria capaz de “profetizar”. Mesmo assim,

manifestou certo incômodo quando o comparei com Jesus, algo de blasfemo foi

registrado, como se precisasse manter certa distância entre ele, Deus filho e Deus

pai.

As palavras em Mané

249É tentador fazer relações com o próprio trajeto de vida de Mané: ele cresce em São
Paulo, tem sucesso, realiza o sonho do retirante nordestino, tem emprego, casa e
dinheiro, passa de uma situação de extremo desamparo a outra de bastante conforto,
também obtém reconhecimento na igreja que frequenta.
250 LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op. cit. p. 362.
164

Mané não se refere a si mesmo através de perífrases do eu, como Wolfson.

Além disso, sua linguagem está isenta de transformações radicais; ele fala como

nós. A não ser por algumas expressões carregadas – “missão”, “profecia”,

“falação”, palavras que não teria certeza absoluta de serem as realmente

pronunciadas por ele –, seu discurso transcorre dentro dos limites dos códigos

compartilhados. Bem poderia ser o caso de haver-se operado um

arredondamento, um completamento do escutar, como ocorre com as imagens

dos sonhos ao traduzi-las em palavras. É provável que esses termos, centrais na

montagem do delírio místico/religioso, hajam sofrido transformação na escuta.

Amiúde, é difícil reproduzir um neologismo, uma distorção. Contudo, a coerência

do discurso de Mané se rompe exatamente nessas palavras. A profecia encerra

um enigma distante de nós. Lacan já apontara o fato de, no contexto de uma fala

sem alterações, surgirem certas palavras que “cobram uma ênfase especial, uma

densidade que se manifesta às vezes na própria forma mesma do significante,

dando-lhe esse caráter francamente neológico tão impactante nas produções da

paranoia”.251 Essas “palavras-chave”, – Venho do salsicheiro; Marrana;

Galopinar252 –, como as denominara nos exemplos célebres do Seminário 3,

poderiam aqui ser equiparadas a “professar”, “profecia”, “falação”, chaves na

articulação da vivência delirante mística. Nesse ponto, uma particularidade: a

familiaridade excessiva do contato inicial comigo transforma-se, assim que remete

a esse eixo delirante, em desconfiança, reticência. “O que o senhor acharia se...”

251 LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op. cit. p. 51.


252 LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op. cit., pp. 51, 75 e 77.
165

“o que pensaria se...”, são frases que evidenciam que Mané sabe ser difícil

encontrar de quem o escuta credibilidade no que diz.

Lembrando mais uma vez Perrier, essa reticência “perverte” de um outro

modo a possibilidade de fazer da linguagem base para o estabelecimento de uma

relação. Há coisas que necessitam ser omitidas. Esse fato ultrapassa os limites da

desconfiança da paranoia; os delírios são convicções subjetivas e dispensam a

anuência do outro, mas, em muitos casos, o conteúdo delirante é ocultado de

propósito, mantido em segredo, só revelado depois de esforços do entrevistador.

O paciente prefere não falar dessas coisas. As internações, muitas vezes feitas

em lugares diferentes, com interrogatórios parecidos e reações semelhantes frente

às respostas dadas, enfim, a medicalização da doença favorece a já pouca

colaboração. Essa característica aumenta com o correr dos anos e favorece o

isolamento, os mutismos, os sintomas que, tanto Crow como Andreasen,

chamaram negativos.253

O caso Mané ilustra claramente um traço típico: as alterações de linguagem

na esquizofrenia são muito diversificadas. Podem limitar-se a uma palavra ou

afetar a linguagem inteira; podem parecer inexistentes, como efeito da ocultação

proposital, ou eclodir ruidosamente de forma incontornável. A linguagem também

está afetada sutilmente no delírio. O delírio não deixa de ser um ato de fala.

Dentre as múltiplas definições de delírio, em finais do século XIX, prevaleceu a

ideia de ele ser uma fala destinada a expressar uma crença patológica sobre si

253 Ver Capítulo I, ponto 3 desta tese.


166

mesmo e sobre o mundo, inamovível e excêntrica.254 A alteração da linguagem no

delírio não precisa modificar as palavras e pode conservar também a gramática –

esse é o caso de Mané. O que ele diz é perfeitamente compreensível, sua fala

conserva a estrutura da língua, porém, está afastada do “nós”.

A variabilidade de formas está presente na sintomatologia da esquizofrenia

em seu conjunto e procurou ser normalizada, classificando-se, hierarquizando-se

seus sintomas, separando-se o fundamental do acessório. Mesmo assim, a

singularidade dos casos aparece no primeiro plano, o que dificulta sistematizações

que simplifiquem o diagnóstico e obstaculiza a construção de “protocolos”

objetiváveis que possam ter aplicação universal. A longa lista de sintomas

observados e a necessidade de apreciação subjetiva de alguns deles –

contratransferenciais, talvez? – incomodam os ideais de cientificidade dominantes

na psiquiatria.255 Em função da grande quantidade de características associadas à

esquizofrenia tende-se a um uso excessivo do termo; ou, para não incorrer nessa

banalização, evita-se seu emprego. A multiplicidade de seus traços levou a pensar

a esquizofrenia como síndrome; entretanto, a aceitação da pluralidade de causas

não resolve a delimitação das fronteiras, sempre imprecisas. Religiosidade

extrema, religiosidade privada – como Freud denominara a neurose obsessiva – e

psicose possuem margens comuns; em alguns casos, podem ser de difícil

254 “(...) em finais de século XIX já se tinha cristalizado a definição de delírio, segundo a
qual ele era fundamentalmente um ato de fala (embora ocasionalmente pudesse
expressar-se numa conduta não linguística) que empregava o interlocutor para expressar
uma crença (patológica) a respeito de si mesmo e do mundo”. BERRIOS, G. Historia de
los síntomas de los trastornos mentales. México: Fondo de Cultura Económico, 2008, p.
164.
255 Ver Capítulo 1, item 3.
167

delimitação. Com efeito, o fanatismo religioso beira a experiência delirante, e

certos rituais obsessivos neuróticos confundem-se com manejos compulsivos

psicóticos, como os de Wolfson.

A passagem ao ato

O fanatismo religioso faz parte do quadro de Mané, acredito, porém, que

ninguém duvidaria da natureza psicótica de sua problemática, não só pela

experiência delirante, mas também pelo fato de ele ter tentado decepar a própria

língua. É pelo bizarro e espetacular de sua atuação que já no pronto socorro se

precipitou a demarcação psicopatológica e ficou patente a necessidade de

intervenção psiquiátrica.

Poder-se-ia dizer que Mané também emprega um procedimento que, mais

do que linguístico, é de língua. Literalmente propõe-se a eliminar o mal pela raiz.

Se a língua move-se à revelia da vassalagem a Deus, ela deve ser eliminada. Ora,

esse procedimento opera no sentido oposto ao praticado por Wolfson; não visa à

obtenção de nenhuma autonomia; ao contrário, é realizado para garantir a

submissão completa e total. A blasfêmia, a interrupção das rezas, os palavrões

são o obstáculo que impede consumar a fusão, o amálgama com Deus – ou com o

Outro absoluto, como propôs Lacan 256 – e é isso que Mané procura. De todo

modo, como já se afirmou, no capeta expressa-se outra corrente oposta dele

mesmo, um resto de rebeldia indomada que resiste à vassalagem.

Sabe-se que, em certas ocasiões, o sistema representacional simbólico não

é capaz de conter o avanço de moções pulsionais muito intensas; em decorrência

256 LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op. cit. p. 262.


168

disso, a motilidade, a ação muscular – segundo os termos empregados no Projeto

– oferecem-se como via de descarga do excesso pulsional resultante. Como já foi

descrito no capítulo dedicado a Freud, esse fato desempenha papel fundamental

na constituição do aparelho psíquico nos primórdios da vida. Também sabemos

que, sob a denominação de acting out, a psicanálise tem pensado um tipo de

atuação, contraposta à ideia de lembrança e elaboração, que desempenha papel

importante na conceituação e na condução do tratamento psicanalítico. O que se

denomina acting out liga-se, assim, ao processo de transferência, especificamente

ao que Freud denominara “resistência à transferência”.

Nenhuma dessas aproximações, porém, ajusta-se ao relato de Mané. Nele,

angústia e desespero alcançam níveis intoleráveis e o conduzem à necessidade

premente de fazer alguma coisa já. A força e a intensidade dos impulsos

apresentam-se nele de forma arrasadora. A integridade do corpo e a preservação

da vida não são levadas em conta. A peremptoriedade do fazer é uma

característica de muitos processos psicóticos: os pacientes desatam a correr,

cortam-se, queimam-se com cigarros, gritam. No caso de Mané, a

desconsideração pela integridade de seu corpo foi possível devido especialmente

ao fato de uma parte do corpo, no caso a língua, passar por um processo de

estranhamento, de estrangeirização; ela não era mais percebida nem sentida

como própria; estava tomada, possuída, como a casa do famoso conto de

Cortazar.257 O maligno apoderou-se dela. Em Mané não houve um pacto feito com

o diabo, houve, porém, possessão demoníaca, a língua não mais lhe pertencia. O

257 CORTAZAR, J. Casa tomada. In: Bestiário, Buenos Aires: Sudamericana, 1977.
169

estranhamento de partes do corpo é também um sintoma frequente na

esquizofrenia. Bleuler consignara na sua monografia o roubo de órgãos, a

petrificação de partes do corpo, a ideia de estar possuído por forças, entidades ou

pessoas.

A urgência de fazer, a passagem ao ato, na consagrada denominação

proposta por Lacan no Seminário 10 dedicado à angústia,258 constitui um dos

sintomas de maior impacto para quem o testemunha, especialmente quando tem

como objeto o próprio corpo. Mutilações, cortes, furos, queimaduras evidenciam a

possibilidade de existência de um corpo “outro”, orientado por princípios “outros”

que não os postulados pela biologia. Choca o fato de os pacientes tornarem-se

insensíveis ao frio, à dor. A monografia de Bleuler também contém muitos

exemplos desse tipo. Eu mesmo acompanhei, no início da minha formação, o caso

de uma mulher, da qual me lembro ainda com espanto, que com um grampo de

cabelo perfurou o peritônio, fazendo movimentos estereotipados no percurso de

uma noite. O mais curioso do caso foi a ausência de queixa: ela não teve dor; o

episódio inteiro foi acompanhado por completa anestesia.

Os órgãos

O corpo, cuja saúde, segundo Leriche, equivale ao silêncio dos órgãos,259

apresenta-se na esquizofrenia de formas ruidosas e estranhas. Nada de silêncio, e

sim muita presença e barulho. Como foi visto, já em O inconsciente, Freud

afirmara, em concordância com Tausk – referindo-se ao célebre exemplo dos

258LACAN, J. O seminário: Livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 128 a
145.
259CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1998, cap. IV, pp. 57 a 66.
170

“olhos tortos” –, que o dizer esquizofrênico é marcado pela hipocondria e pela

“linguagem de órgão”.260 Trata-se da hipótese da regressão libidinal que toma

primeiramente o corpo como suporte, recebendo este, então, maciços

investimentos oriundos dos objetos. A hipótese de uma erogenização do corpo

sustenta para Freud o lugar protagonista do corpo na esquizofrenia e permite

entrever a ruptura com a lógica da biologia.

Como já foi mencionado 261, Simanke e Caropreso fiéis à coerência da

lógica representacional freudiana, veem nessa referência ao corpo o retorno ao

sentido original das palavras; elas seriam reconduzidas, após a perda da sua

ligação com as representações de objeto, às representações dos estados internos

do organismo.

O corpo – a língua – é protagonista no caso que nos ocupa. Mas, qual seria

a participação da palavra língua nesse processo?

No exemplo tomado de Tausk, Augenverdrehen condensava tanto “olhos

tortos” como “simulador”, e, como Freud afirmou, “a relação da paciente com o

órgão corporal (o olho) arrogou-se a si a representação de todo o conteúdo dos

seus pensamentos”.262 Mané expressa-se em Português e, nesse idioma, língua é

significante tanto do órgão anatômico, de idioma, quanto de estilo e até da própria

linguagem. Embora o detalhamento das ideias que o conduziram a cortar sua

língua faça parte dessa área obscura a que nos referimos antes, no

260FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit. Ver também o item “A linguagem de órgão” incluído
no Cap. II, item 5 da tese.
261 Ver Capítulo II, item 5 da tese.
262 FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 195.
171

estranhamento que nele se operou, a língua que precisava ser neutralizada era a

de Satanás, provinham dele as palavras blasfemas, os insultos, os termos

grosseiros que o impediam de rezar. Como no caso de Tausk, também em Mané,

o órgão língua arrogou-se a si a representação de todos os seus pensamentos. A

língua do maligno, suas palavras, encontraram na sua própria língua – nos vários

sentidos da palavra – uma localização concreta e, a partir disso, surgiu o

procedimento. Algo poderia ser feito: livrar-se dela, arrancá-la de si. A língua

possuída poderia ser decepada e Satanás eliminado. Contudo, as blasfêmias de

Satanás só correspondiam a uma parte renegada de si mesmo.

Chamou minha atenção que o relato de Mané sobre sua tentativa foi feito

sem constrangimentos, quase como quem trata de um fato banal. Os ferimentos

não foram profundos, e quando me mostrou sua língua, parecia assinalar algo

assim como “já estou bem”, “não foi nada”. O horror à castração ficou comigo.

Talvez por isso tenha acentuado na despedida a gravidade do fato e não tenha

querido examinar o estado de seus ferimentos. Como, para Mane, as

consequências benignas fizeram que ele considerasse benigno o próprio fato,

fiquei preocupado e me empenhei em lhe mostrar a gravidade do que tinha

acontecido.

Na entrevista que tive com ele, suas perguntas foram diretas e procurei

responder a elas do mesmo modo, sem deixar muito espaço para silêncios, o que

trouxe algumas dificuldades. Não queria perder a lógica de meus pensamentos

nem questionar a dele. Delírios não se discutem; não iria referendá-los, porém.

Tentei responder intuitivamente o que no momento me pareceu convincente para


172

mim mesmo, sem ocultar minha perplexidade quando ela surgiu. No seu caso, pus

em jogo minha própria subjetividade; por isso, não hesitei em expressar

preocupação diante os cortes. Na abordagem de casos como o de Mané tenho

achado preferível esse caminho. O saber do clínico, tanto teórico como técnico,

opera nesses pacientes como uma barreira que dificulta o já difícil contato.

As surpresas da clínica

Os psicanalistas costumam pensar a psicanálise como um processo, um

longo processo garantido por um enquadramento de sessões continuadas.

Encontros isolados ou pontuais não costumam ser vistos nem considerados como

tendo grande valor. Eu próprio poderia enquadrar-me nesse esquema. Por isso

pensei que o fugaz encontro com Mané, que tinha me deixado tão tocado, iria se

perder para ele no maremoto da crise psicótica. Talvez por isso tinha precisado

escrever. Não queria que a experiência se perdesse totalmente.

Quase dois meses depois: surpresa! Vejo o nome dele escalado em minha

lista de entrevistas. Grande expectativa. Não esperava reencontrá-lo novamente.

Pulei a ordem dos pacientes e o atendi primeiro. Reconheceu-me na hora.

Voltaram à tona as “bilas” e os “palitos”, a profecia na Argentina, que motivou o

comentário irônico: “Queria salvar a humanidade na época”.

Estava lúcido, crítico. O registro que ele tinha de nossos fugazes encontros

era muito nítido, muito cheio de detalhes. Lembrava das palavras, do nosso

acordo do “você”, de tudo. A alegria do reencontro ficou turvada quando lhe

perguntei o motivo da sua reinternação.

– Fiquei mal de novo. Tinha ideias ruins.


173

Sua voz ficou cortada, seu rosto obscureceu e com dificuldade foi falando

das “idéias ruins”: “fazer mal a pessoas da minha família”, “fazer mal a alguém”.

Parecia não querer lembrar, embora dissesse: “Eu tenho que falar a verdade aqui

com você”. Nessa hora acrescentou, para meu total espanto: “Você já me disse

que a verdade é algo complicado, não me disse?”.

Balbuciando, terminou por narrar que teve o “impulso” – ideia, ordem, voz

que mandava – de “pegar uma faca e cortar o filhinho da minha irmã”. Desolado,

acrescentou que também pensou em fazer algo ruim a si mesmo: “se matar”.

– Eu estava mal mesmo. Tive medo e pedi para minha tia me internar.

– Às vezes é bom ter medo, não é? – disse-lhe.

– Você me disse isso da outra vez, não disse?

Novamente fiquei espantado: como podem encontros isolados ter deixado

tantas marcas?

Perguntei-lhe se havia tido o impulso ou o desejo de se matar?

– Aí você me pegou doutor – reflete longamente e diz: “Não sei, não sei”.

– O doutor X me disse que eu tinha uma doença, uma doença da cabeça,

esquizo... não sei o quê, não lembro o nome, que era por essa doença que eu

pensava todas essas coisas. O que eu mais quero é me curar, me curar e

trabalhar. Tenho sentido muita falta do trabalho. O que eu mais quero agora é

sarar, virar a página e trabalhar.

O diagnóstico – doença na cabeça que o fazia pensar coisas ruins –

obturou qualquer possibilidade de pergunta a respeito do que tinha acontecido.


174

Assim como “antes” “Ele” tinha lhe encomendado uma missão, agora se submetia

a um saber dos homens que não chegava a compreender.

Fiquei preocupado com as ideias suicidas de Mané. Pareceram-me

emergidas da consciência do perigo que a sua loucura representava para os

outros. Na semana seguinte voltei a procurá-lo. Novamente tinha sumido.

Mesmo assim fiquei animado. Achei que deveria reavaliar o valor dos

encontros fugazes. A crise, a emergência, a clínica do excesso criam situações

nas quais um pequeno detalhe, uma palavra, um gesto de interesse possuem

efeito inusitado. Algo disso aconteceu com Mané. Nem sempre é assim. Lembro-

me de José, um dos muitos casos que escutei no São João de Deus. Dele só

destaco um fato: tive com José vários encontros. Em nenhum deles me

reconheceu. Não guardava registro algum dos encontros anteriores. No máximo,

ele percebia que eu o conhecia porque sabia do seu “desponsório místico”, da

“teologia mística”, mas ele não lembrava de mim. Cada encontro inaugurava outra

“relação”, diferente a cada vez.


175

EDGAR e a questão do pai

1. Apresentação do caso

Conheci Edgar numa reunião de grupo. Na ocasião, o terapeuta que

atende regularmente os membros do grupo e os conhece mais de perto estava me

apresentando a eles.

– O doutor Oscar, psicanalista, hoje nos acompanhará e...

Percebi na hora que “psicanalista” soou para Edgar de modo particular.

Diferentemente do restante dos internos, que não deram importância ao “título” e

na sua grande maioria nem sabiam o que aquilo queria dizer, ele fez um gesto,

uma expressão que denotava algo como uma inquietação. Logo pediu para falar

comigo e contou-me que fizera terapia com um psicanalista, muitos anos atrás.

Também disse que “estava muito fraco na época” e que, como fizera “regressão”,

essa terapia lhe tinha feito muito mal.

– Meu cérebro “gravou” errado as coisas que ele falava e eu fiquei tão mal

que levei anos para me recuperar.

Sua verbalização era ordenada e rica, o que contrastava com o grupo.

Postura e aparência também eram cuidadas, “normais”. Se fosse feita abstração

da história da “gravação” e de certo despudor com o qual falava de si mesmo

frente a, de fato, um desconhecido, sua atitude não seguia os padrões

“esperados” da psicose – se é que eles existem. Manteve-se o tempo todo atento

e insistiu bastante em falar. Fez-me várias perguntas, uma delas referente ao

papel que eu atribuía à sexualidade, “porque, sabe, doutor, na época em que eu

estava muito mal teve até coisas de homossexualidade, viu?”


176

O tempo acabara, a reunião do grupo estava no fim e, nessa mesma hora,

soube que ele seria um dos pacientes que iria entrevistar. Agradeci a oportunidade

e então falei para todos da curiosidade que minha presença tinha despertado e

também do receio, do temor. Ele riu, sentindo-se mencionado, e na saída

aproximou-se e me deu um aperto de mãos.

Na semana seguinte procurei-o e tivemos a primeira entrevista individual.

Estava bem disposto, colaborador, ávido por falar. Imediatamente, me

disse:

– Veja, doutor, todos os meus problemas começaram quando morreu meu

pai. Eu fiquei muito abalado com a morte dele, sofri muito com isso.

Seu rosto repentinamente obscureceu. Estava visivelmente emocionado.

Percebi que seus olhos muito claros brilharam demais, como quem está a ponto

de chorar. Fiquei chocado, não sabia bem o que dizer. Perguntei algo a respeito

de quanto tempo fazia que seu pai havia morrido e sua resposta deixou-me mais

perplexo:

– Ele morreu em 14 de outubro de 1988.263

De um modo lento e entrecortado continuou:

– Eu tinha uns 22 anos na época. Para mim foi muito terrível. Ele fumava

muito, também bebia bastante. Eu sempre falava para ele parar, mas... ele fumava

às escondidas. Morreu de câncer na garganta e não era da parte da frente, era da

parte de trás. Não podia operar. Sabe, doutor? Ficou muito tempo doente.

263 Data modificada, assim como o nome e outros detalhes do caso.


177

Fez um longo silêncio e com a voz quebrada, chorando copiosamente em

alguns momentos, disse:

– Me lembro do dia que fizeram a biópsia. [Aos prantos] Estava eu e minha

mãe. Eu estava esperando, minha mãe veio e disse: “É câncer”. Para mim foi

terrível.

Não é fácil transmitir o que aconteceu nessa entrevista. É pouco afirmar

que tinha se produzido algo da ordem da revivescência. Quando ele disse “minha

mãe veio e...”, parecia que ela retornara naquele momento e que a cena estava

acontecendo no próprio instante do relato. É sempre chocante constatar a

atualidade que fatos do passado podem conservar apesar dos anos transcorridos

– neste caso, mais de quinze.

– Depois que ele morreu começaram os problemas. Eu fiquei mal. Tomei

uma injeção que me deixou pior. Para mim foi algo assim: o mundo apagou. Não

tinha mais vontade de nada. Só pensava nele. Ia ao cemitério todo dia, teve uma

hora que senti uma vontade enorme de abrir o túmulo. Queria abrir o caixão e vê-

lo, mesmo que fosse uma única vez.

Assim que tanto ele como eu pudemos nos recuperar, foi crescendo em

mim uma pergunta: onde estava a esquizofrenia paranoide que constava no

prontuário do paciente? O relato que acabara de escutar correspondia muito mais

a outros já ouvidos de pacientes melancólicos ou de casos de luto muito graves.

Mesmo assim, a clínica sempre oferece surpresas, e não era o caso de deixar-se

levar por uma primeira impressão.


178

– Começaram depois os problemas com a minha irmã; ela fazia coisas

erradas. Tinha muita implicância comigo.

Aproveitei então a deixa para saber algo mais sobre sua família. Edgar é o

único filho homem de uma prole de cinco; ele está no meio. Não retive a ordem

certa, só “gravei” que, com a morte de seu pai, ficou sozinho no meio de um

batalhão de mulheres. E a implicância? Essa irmã trabalhava com dinheiro e ia

para a mesa sem lavar as mãos. Depois de contar uma série de rituais

compulsivos de limpeza, diz:

– Eu sempre fui muito limpo; agora aqui, não dá muito.

Olha para suas mãos e fala:

– Mesmo assim, eu sempre tenho as mãos limpas.

Não deixei de entrever uma questão de autoridade. Quem mandava

naquela casa, ele ou a irmã? As “mãos limpas” também me remeteram a seu pai.

Teria ele as mãos limpas em relação à morte de seu pai? No fim, seu pai também

não obedecia a ele, “fumava às escondidas”, “bebia”.

– Depois disso, só piorou. Começaram os problemas de percepção. Eu

tenho alterações na percepção, muito “relance”.

Inútil tentar saber o que era exatamente esse “relance”; tratava-se de algo

parecido a ficar mais atento ao campo lateral da visão que ao campo central, mas

“sabe, doutor, difícil é explicar para quem não tem”.

– Eu às vezes me pergunto: Cadê? Cadê o Edgar que eu era, cadê ele? Eu

antes gostava de futebol, me divertia... Agora... eu ando perdido, não sei mais

quem sou, ando sem vontade. Não tenho autonomia. Estou com 36 e sou
179

completamente dependente da minha mãe. O que vai ser da minha vida quando

ela faltar? Eu gostaria de trabalhar, mas não consigo me concentrar pelas

alterações da percepção, tenho muito “relance”.

– Doutor, será que o excesso de adrenalina pode desorganizar as

sinapses? Eu li isso numa revista.

Só consegui dizer que “hoje aqui teve muita adrenalina”, que ele “ficou

muito emocionado e que estava esgotado” e que “eu também estava exausto”.

Marquei, então, um novo encontro.

Na vez seguinte encontrei-o mais apreensivo. Outro tema parecia pesar:

sua mãe estava adiando o retorno dele para casa. Teoricamente poderia voltar, “a

doutora me deu alta”, mas “a mãe está querendo ter certeza de que eu não vou

aprontar”.

Fico sabendo, assim, que a internação fora motivada pelas brigas com a

mãe. Ficara violento, “respondia muito”, e “ela então me internou”. É sua segunda

internação no hospital. Mora em uma cidade do interior de São Paulo e se interna

aqui porque “por lá só tem clínicas evangélicas”, e sua mãe, que já foi crente, mas

agora é católica, não quer saber de ele estar nas mãos dos evangélicos. Tento,

com cautela, perguntar sobre o tema da psicanálise que ele havia mencionado no

grupo; surge, então, o relato angustiado de uma relação delirante de domínio e

tortura. O terapeuta “lia” seus pensamentos, dominava-o, torturava-o, submetia-o

a “regressão” e controlava sua vontade a ponto de ele ter sofrido uma “lavagem

cerebral”.
180

– Ele fundiu minha cuca. Eu não estava maduro para as coisas que ele me

dizia, e ele me fez muito mal.

Da homossexualidade, a que ele se referira sem pudor no grupo, não quis

lembrar.

–Eu não sou homossexual. Eu olho para mulher na rua e... Eu fiz “coisas”

homossexuais porque estava mal.

De fato, Edgar não tem experiência sexual alguma, nem heterossexual nem

homossexual. Com muita dificuldade, deixa entrever que o que ele chama de

“coisas homossexuais” têm a ver com masturbação anal.

A respeito da mãe me diz:

– Eu sou muito ligado a minha mãe. Quando escuto a voz dela, sossego.

Só perto dela tenho paz. Até minhas manias com a sujeira melhoram.

O encontro seguinte foi uma surpresa. Sua mãe tinha vindo visitá-lo.

Estavam passeando pelos jardins do hospital e rapidamente aceitaram conversar

juntos.

– Hoje, quando mamãe chegou, estava muito “fissurado”. Depois foi

passando.

– Ele quer dizer “impregnado” – corrige a mãe. Ele está aqui bem cuidado,

os padres aqui são muito bons. Estávamos vendo a capela dos fundos, ficou muito

boa. Eu confio muito nos padres daqui. Vou ficar até amanhã, para falar com o

médico. Eu não quero que deem a ele Haldol; se for necessário a gente paga por

fora. Eu já falei para os médicos, ele se deu muito bem com o Risperdal, é bem

melhor para ele.


181

Foi nesse tom autoritário, fazendo o tempo todo correções ao filho, aos

médicos e aos tratamentos, que essa mulher pequena, de não mais de metro e

meio de altura, tomou conta da entrevista de mais de uma hora. Edgar limitou-se a

assentir com a cabeça e só interveio quando sua mãe lhe deu uma chance, ou

quando eu lhe pedi diretamente uma opinião. Uma cumplicidade secreta os une.

Várias vezes respondem em uníssono a minhas perguntas, como quem tem um

roteiro estudado de cor, até os mínimos detalhes. Isso se acentua quando é

abordado o tema da “psicanálise” que Edgar fizera na sua cidade de origem. Os

dois coincidem quanto ao “mal que isso fez”. Também se inflamam nas críticas,

mencionando “detalhes” dos poderes maléficos do suposto analista.

– Ele mencionava frases e palavras de conversas que tínhamos, nas quais

não estava presente – diz a mãe, dando a entender algo de sobrenatural. Tinha

sobre ele um poder absoluto – acrescenta. Ele estava muito fraco na época e

essas coisas ficaram gravadas.

Como se depreende, o tema da “gravação” parecia mesmo “gravado”,

embora fosse difícil saber a quem pertencia o original e a quem a cópia do

enunciado.

Ficaram um pouco surpresos quando lhes disse que “pareciam um casal

bem afinado”. Ele concordou rapidamente, rindo. Ela não gostou do “casal” e com

ligeireza corrigiu por “dupla”, adicionando, porém, o cansaço que isso lhe trazia:

“são muitos os anos que vivo em função dele, estou cansada”, “não tenho uma

vida própria”. Fico sabendo então que o “cansaço” a levara também à internação

para “recuperar-se”. Foi assim que descobriu “o mal que faz o Haldol”, na ”própria
182

carne”, e talvez do mesmo modo tinha conquistado sua vasta cultura em

neurolépticos.

– Vou ser-lhe sincera: não confio em médicos. Ele está aqui pelos padres.

Eu só confio nos padres. Se não fosse pela minha fé em Deus, não sei o que seria

de mim.

Em vários momentos insinuou-se nessa mãe um misticismo delirante,

embora no limiar de uma religiosidade fervorosa, matizada com animosidade

contra os grupos evangélicos e crentes.

O tema final foi o da volta para casa. Com artes de mestre, essa senhora

diminuta acenava às vezes para um retorno imediato, para depois recuar e deixar

em suspenso a decisão. “Vamos ver o que diz o médico amanhã”. Se o Edgar se

agitava, ela retomava o tema da volta. Era evidente que não tinha em mente levá-

lo com ela naquele momento, mas também era evidente que percebia que seu

filho não iria aceitar tão docilmente permanecer internado por mais tempo. Aliás,

lembre-se que era a “revolta” de Edgar, sua “desobediência”, sua hostilidade para

com a mãe que haviam motivado sua internação.

2. Considerações 264

A hospitalização

Diferentemente de Mané, Edgar tem um percurso de internações,

tratamentos e uso de diversas medicações que se alongaram por mais de 15

anos, sem muito sucesso. Nesse sentido, lembra mais Wolfson, embora não tenha

264Do mesmo modo que nos casos que precedem este, as diferentes questões ligadas a
seu caso foram divididas em alguns temas – a hospitalização, a família, o pai morto etc. O
texto, contudo pode ser lido sequencialmente, com independência da divisão feita.
183

sido submetido a choques insulínicos, nem a ECT (eletro-convulso-terapia) – na

época de Edgar, já em desuso para o tipo de patologia que ele apresenta –, nem

jamais ter sido internado compulsoriamente.

Seu caso trouxe à minha memória aquilo que apontara Foucault: a

psiquiatria nasce ligada à higiene pública e esperam-se dela medidas de proteção

social.265 Essa lembrança surgiu depois de conhecer a mãe de Edgar e, nesse

único encontro, ter percebido quanto a procura pela internação do filho bem como

o prolongamento dela deviam-se mais à necessidade de exercício de poder dessa

diminuta senhora sobre ele do que a qualquer intenção terapêutica ou paliativa

que ela pudesse almejar. Esgrimindo argumentos sobre a periculosidade de Edgar

contra ela, tinha conseguido interná-lo – afinal, esses argumentos costumam ser

ouvidos. Na ficha de admissão estava registrada a queixa de agitação e aumento

de agressividade do paciente, sendo a mãe o alvo principal, embora nada

figurasse de concreto a respeito do que constituía seu estado habitual, nem quais

as novas atitudes apresentadas. Acredito que, depois de longos anos de

aprendizado percorrendo hospitais psiquiátricos, sua mãe sabia empregar as

palavras certas para implementar seus propósitos, do mesmo modo que

conseguira induzir a troca de neurolépticos típicos por atípicos, ou que obtivera,

sem ter de recorrer a intervenção judicial, consentimento de seu filho para as

internações. Também acredito que, no momento da internação, a agitação de

Edgar devia ser tal que constituiria prova suficiente para justificar a hospitalização.

265 “Em linhas gerais, a psiquiatria, por um lado, fez funcionar toda uma parte da higiene
pública como medicina, e, por outro, fez o saber, a prevenção, e a eventual cura da
doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente necessária para se
evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da
loucura.” FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fortes, 2002, p. 149.
184

Não queria internar-se nem permanecer internado; no fim, ainda lhe restava um

resto de rebeldia: “respondia muito”, não obedecia.

A implementação de medidas de proteção, à sociedade e às famílias,

continua sendo assumida como tarefa pela psiquiatria e pelos psiquiatras.

Saber quando uma internação se torna necessária é sempre difícil, e seus

resultados, nem sempre promissores.266 A dificuldade aumenta pelo fato de ser

frequentemente a família quem faz o pedido. Internar, ou não, é uma questão que

não se pode responder apelando a protocolos estandardizados, nem pode

constituir uma ação burocrática. Trata-se de um ato personalizado que precisa ser

cuidadosamente avaliado. Há sempre prós e contras. No caso de Edgar, o efeito

que a internação teve sobre ele foi o de aumentar a sensação de estar sob o

poder absoluto de sua mãe. Também foi interpretada como um castigo. Mas como

saber de antemão? É fácil avaliar os efeitos de uma ação depois de acontecida; o

difícil é tentar prevê-los.

Edgar e sua família

266Lembro-me do caso de uma escriturária de uma repartição qualquer que, psicótica por
anos – para não dizer desde sempre –, encontrou formas de manter laços com o mundo,
ou, como hoje está em voga dizer, encontrou uma forma de estabilização que lhe permitiu
manter-se longe de hospitais, internações e neurolépticos. Vivia de seu emprego,
desempenhando tarefas burocráticas que a mantinham em contato com colegas, e tinha
uma vida de relação relativamente autônoma. No entanto, sua extravagância se
expressava na sua mesa de trabalho, carregada de objetos bizarros que se acumulavam,
dando a nota discordante que tornava evidente sua condição. Por causa de uma mudança
de chefia, a tolerância mantida por longos anos se quebrou. Encaminhada pelos seus
chefes “para psiquiatria”, foi feito o diagnóstico que apontou o que já era sabido de todos.
Depois de uma internação (medicalização?) sem resultados “positivos” no seu quadro, foi
primeiramente licenciada por longos períodos e posteriormente aposentada por invalidez.
Apesar de implementados os recursos terapêuticos existentes, a paciente nunca mais
recuperou o frágil equilíbrio, nem os laços mantidos por anos. A intervenção, feita a
pedido da sociedade, embora realizada com o intuito de obter melhoras no estado da
paciente, e com boas intenções por parte dos envolvidos, teve um resultado paradoxal.
Exigências sociais e necessidades subjetivas individuais costumam ser pouco
compatíveis, ainda mais nos casos de esquizofrenia. O que privilegiar?
185

A imagem que Wolfson transmite de sua mãe coincide em vários pontos

com a que tive da de Edgar nessa única e longa entrevista, não obstante as

atitudes de ambos diferirem radicalmente. Wolfson combate; Edgar se entrega,

como Mané: “só perto dela tenho paz”, “só a voz dela me sossega”. Contudo,

assim como Mané tem seu capeta, Edgar fica “capeta” de um modo infantil:

responde, não obedece, apronta. Foi essa “desobediência” que motivou sua mãe

a procurar os padres, únicos em quem acredita. Quando ela falou de seu cansaço,

da falta de vida própria, embora não o tenha dito diretamente, tive a impressão de

que pensava a internação mais como um descanso longe de seu filho, algo

parecido com “férias dele”, do que como uma ação que ela imaginasse trazer

alguma melhora concreta do quadro. De fato, há que se reconhecer, não é fácil a

convivência diária com a loucura, por mais gozo que se possa obter dela.

Em relação ao pai, o de Edgar é um pai morto. Duplamente morto. Por um

lado, porque faleceu de câncer e numa época importante da vida; por outro,

porque com sua morte nada ficou dele que pudesse servir para Edgar como

anteparo à onipotência materna. A descrição que Edgar fez da morte do pai, tão

vívida e sentida, tão desesperadora, o luto impossível que narra tão

comovedoramente – e que me fez pensar num processo melancólico –, assinalam

uma solidão que parece mais ligada à impossibilidade de alojá-lo na linguagem do

que à viscosidade libidinal que resiste ao abandono de suas posses.

Edgar situa o começo de seu processo na morte do pai; não sabemos ao

certo se foi realmente assim. Contudo, o que ele descreve como perda aproxima-

se mais de uma vivência de fim de mundo do que a um luto. A presença física do


186

pai garantia alguma coisa que se perdera com sua desaparição. O apego ao

cadáver, a vontade de “abrir o caixão”, a necessidade de proximidade física com

os restos mortais assinalam uma falta anterior à perda. Faltou em Edgar constituir

uma ausência na presença, no sentido que a ausência tem em Fédida: aquilo que

dá conteúdo ao objeto e assegura o pensamento, ausência que poderia permitir o

luto, a elaboração da perda física e concreta de seu pai. 267

A mãe

Muito se tem falado em psicanálise a respeito da mãe do psicótico,268 tanto

quanto se fala do pai, da falha do pai, da forclusão do Nome-do-pai. Edgar provê

material para ambos os assuntos. No caso da mãe, a de Edgar bem poderia

figurar como exemplo do que observou nas mães de psicóticos Piera Aulagnier.269

A autora descreveu o “lado fora da lei” dessas mulheres: “elas são a lei”, nada

reconhecem como lei além do que elas próprias instituem. A onipotência narcisista

materna encontra no filho um objeto de posse que alimenta seu gozo.

Indiscriminadas deles, nada são capazes de reconhecer nos filhos, além do que

elas próprias projetam neles, desejam ou aquilo a que aspiram. Isso inclui a

negação e a falta de reconhecimento de qualquer presença do pai no corpo do

filho, como se elas fossem genitoras únicas e proprietárias. No entanto, para

267 FÉDIDA, P. L’absence. Paris: Gallimard, 1978, p. 7.


268 Cf. Entre outros, MANNONI, M. L'enfant arriéré et sa mère. Paris: Seuil, 1981. DOLTO
F. Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
269AULAGNIER, P. Observações sobre a estrutura psicótica. In: Um intérprete em busca
do sentido II. São Paulo: Escuta, 1990.
187

Aulagnier, elas não seriam psicóticas. Desenvolvem em relação a seus filhos um

manejo perverso, resultado de uma descompensação que se produz

especificamente em relação a eles. Afirma Aulagnier:

(...) se clinicamente elas [as mães dos psicóticos] não são psicóticas,
se suas defesas lhes permitem um tipo de aparente adaptação ao real, não
é menos verdade que a própria ahistoricidade delas, sua má inserção,
senão sua exclusão na ordem da lei, é algo que encontramos sempre. Além
do mais, é possível e provável que o filho seja, nesse caso, ao mesmo
tempo fator desencadeante de uma brusca descompensação ao nível das
defesas (o que explicaria por que é justamente nas relações com seus
filhos que se concretiza aquilo que nelas é da ordem de uma perversão ao
nível da lei) e, de outro lado, aquilo que lhes permite colmatar essa mesma
brecha, fazendo do corpo da criança o escudo que acolhe e fixa qualquer
irrupção de um recalcado mal contido.270

Poder-se-ia discutir a generalidade dessas afirmações, até porque sustento

ser a singularidade a característica axial nos processos psicóticos. Entretanto,

muitas das características apontadas por Aulagnier combinam plenamente com a

mãe de Edgar.

O pai morto

O pai de Edgar é um pai morto. O pai morto é uma figura cara a Freud. Em

Totem e tabu, o autor define como obediência de efeito retardado (nachträglich) a

consequência do assassinato do pai da horda primitiva. O poder do pai morto é

270 AULAGNIER, P. Observações sobre a estrutura psicótica, op. cit. p.17.


188

maior do que o pai vivo, afirma.271 Aquilo que era assegurado externamente pelo

poder despótico do pai é operado, com ele morto, a partir do interior, pela culpa e

pelo amor. A ficção antropológica da horda primordial é utilizada por Freud, ao

modo de uma pré-história mítica, para pensar a ambivalência edípica e a

constituição do supereu dos homens singulares e atuais. O pai, simbolicamente

morto, precipita a identificação com ele, consolida a proibição do incesto e permite

a entrada na cultura.

Esse percurso, esboçado em grandes traços, não parece ter sido o de

Edgar. Com efeito, a morte concreta de seu pai deixa perceber algo que o pai vivo

mascarara: as dificuldades para consumar uma identificação propiciatória com ele.

À sua morte, Edgar reage mais como uma esposa, uma viúva. Como uma viúva

penalizada, vai todo dia ao cemitério; como amante necrófilo, ao estilo de um

romântico do século XIX, quer “vê-lo embora seja uma única vez”. (Assinalo que

assim que completei a frase precedente, percebi que talvez tenha sido por isso

que decidi chamá-lo Edgar, como Poe.)

Lacan e a forclusão do Nome-do-pai

Lacan, dando continuidade à problemática freudiana em relação ao pai,

mas, sobretudo, centrado na linguagem, no significante, elabora o que será tema

central na sua concepção da psicose: a forclusão do Nome-do-pai no lugar do

Outro. O Nome-do-pai é “o significante que no Outro, enquanto lugar do

271“O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo; isso tudo, tal como continuamos a
ver, ainda hoje, nos destinos humanos. O que até então fora interdito por sua existência
real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento
psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência de efeito
retardado’ (nachträglich).” FREUD, S. (1913) Totem y tabu. Op. cit., p. 145.
189

significante, é o significante do Outro enquanto lugar da lei”,272 dirá no texto Sobre

uma questão preliminar ao tratamento possível da psicose. Esse lugar, “posição

terceira de onde é chamado o significante da paternidade”,273 reorganiza em torno

da linguagem e do simbólico as relações mãe/pai/filho, próprias do Édipo

freudiano. A lei, lei de proibição do incesto, lei primordial que “ao reger a aliança

superpõe o reino da cultura ao reino da natureza”,274 numa clara alusão de Lacan

a Lévi-Strauss, encontra no nome do pai (com essa grafia no original) o suporte da

função simbólica “que desde a orla dos tempos históricos, identifica sua pessoa [a

do pai] à figura da lei”.275 É por obra do significante Nome-do-pai – ou metáfora

paterna, como também dirá Lacan – que o pai realiza sua função: interdita a mãe,

resgata o filho da mortífera relação dual imaginária e o introduz na ordem da

linguagem e o simbólico.

Homossexualidade e psicose

A partir da perspectiva de Lacan, a “homossexualidade”, de presença

incontornável em Schreber, e também no caso de Edgar, é pensada como

decorrência da falta de inscrição no simbólico do significante Nome-do-pai,

articulado com significante fálico, significante da falta. Nesse sentido, Lacan falará

de “homossexualidade delirante” e dirá, a propósito de Schreber: “à falta de poder

ser o falo que falta à mãe, lhe resta ainda a solução de ser a mulher que falta aos

272LACAN, J. De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis. In:


Escritos II. México: Siglo XXI, 1975, p. 267.
273 LACAN, J. De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis. Op.
cit., p. 266.
274LACAN, J. Função de campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos II.
São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 142.
275 LACAN, J. Função de campo da fala e da linguagem em psicanálise. Op. cit. p. 143.
190

homens”.276 Passados quinze anos dessa afirmação, com as mudanças teóricas

introduzidas pelo conceito de gozo, as fórmulas da sexuação e a caracterização

do gozo feminino como gozo Outro – além do falo –, surge nova distinção da

feminização de Schreber: o empurre à mulher, esse ser que goza além do falo.

Já assinalamos quanto o tema da moção homossexual na paranoia é

controverso.277 A escola inglesa, centrada na mãe, no seio materno, no bom e no

mau objeto – na ansiedade paranoide concebida como primária –, inverte os

termos: a homossexualidade é defesa frente à paranoia.278 A libido suposta na

homossexualidade expressa a pulsão de vida; une, liga, defende do aniquilamento

do mau objeto, ligado à pulsão de morte.

A partir de uma perspectiva freudiana, a posição de Edgar em relação ao

pai é feminina, homossexual. Embora o termo “homossexual” tenha algo de

abusivo, pois antecipa resultados na elucidação dos momentos prévios de um

processo, ele se fez presente de modo explicito no relato de Edgar. Não parece

estranho, então, que essa temática paire com tanta intensidade desde nosso

primeiro encontro, ou que paire como dúvida no conjunto da sua vida, nem que

participe de modo tão direto no relato das relações com o tal “psicanalista”. Mas

sua problemática dista muito de estar ordenada sob a égide de uma opção

homossexual de objeto. Aproxima-se mais, sem coincidir, do que Freud descreve a

276 LACAN, J. De uma cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis. Op.
cit. p. 251.
277 MIGUELEZ, O. Narcisismos. Op. cit.
278ROSENFELD, H. Observações sobre a relação da homossexualidade masculina com
a paranoia, a ansiedade paranoide e o narcisismo. In: Os estados psicóticos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968, pp. 41 a 61.
191

propósito do caso Schreber: o fracasso na sublimação dos impulsos eróticos

provenientes do complexo paterno – complexo negativo –, a defesa frente à

irrupção desses impulsos, o peso da regressão libidinal narcisista.

Qualquer que seja a caracterização que se faça da homossexualidade na

psicose, ligada aos objetos primários, como em Freud, ou aos significantes, como

em Lacan, trata-se sempre de algo diferente do que ordena a perversão e a

neurose.

A forclusão conceito negativo

Para Lacan, o que foi proposto inicialmente como divisor de campos –

neurose, por um lado; psicose, por outro – foi a forclusão desse significante

fundamental (Nome-do-pai) que, em decorrência da sua falta de inscrição, retorna

no Real na forma de delírio. Nos grupos de orientação lacaniana, por longos anos

e, em alguns casos, ainda hoje, o sintagma “forclusão do Nome-do-pai” pareceu a

fórmula final do desvendamento dos obscuros enigmas da psicose. O conceito de

forclusão ou foraclusão, como alguns preferem traduzir, ligado por Lacan ao termo

Verwerfung, utilizado por Freud sem significação articulada na teoria, circulou

como a revelação definitiva daquilo que, no vienense, aparecia em forma bruta,

ainda não lapidada. Joël Dor fornece uma explicação para esse fenômeno:

Se a forclusão do Nome-do-pai apresentou-se como uma explicação


radical – para não dizer totalitária – dos processos psicóticos, isso se
deveu, sobretudo, à existência do imperialismo de certa fidelidade de
Escola, essencialmente alimentada ao redor de alguns pontos cegos. Para
citar só um, o que parece ter atuado com a maior das violências,
192

mencionaremos o culto de uma forma de ontologismo mantido tanto em


relação à forclusão, como ao Nome-do-pai em si.279

Os analistas ligados à Escola de Lacan tiveram grande entusiasmo com

esses termos, esquecendo-se de que tanto forclusão como Nome-do-pai são

hipóteses metapsicológicas que podem ser alteradas – como de fato foram. Elas

assinalam, fundamentalmente, a insuficiência do mecanismo do recalque para dar

conta dos processos psicóticos e o envolvimento obrigatório da linguagem e do

registro Simbólico na etiologia da psicose. Com a primazia outorgada ao Real, no

final da obra de Lacan, e a introdução do conceito de gozo, essa visão totalitária,

tanto da forclusão, como do Nome-do-pai, foi minorada. O gozo ganhou destaque

na concepção lacaniana da psicose.

O que não foi simbolizado faz furo no Simbólico e reaparece no Real foi a

frase chave que parecia encerrar tanto a articulação de registros – Simbólico e

Real – como o achado do mecanismo geral do funcionamento psicótico. Contudo,

já no Seminário III, datado de 1955-56, o furo foi proposto por Lacan como

presente em momentos anteriores ao surgimento de uma crise. O surto, a crise,

desencadeia-se só quando circunstâncias da vida do sujeito convocam a presença

desse significante em falta, e a “significância mesma do significante”280 fica em

xeque. Algumas questões podem formular-se: Qual a consequência da presença

desse furo na vida do sujeito sem crise? Como caracterizar a psicose nesses

casos?

279 DOR, J. El padre y su función en psicoanálisis. Buenos Aires: Nueva Visión, 1991, p.
96.
280 LACAN, J. El seminário III, Las psicosis. Barcelona: Paidós, 1984, p. 289.
193

Para Calligaris, o Lacan dos anos desse lendário seminário estaria

principalmente interessado no desencadeamento das crises, o que faria que o

conceito de forclusão nascesse ligado a essa preocupação fundamental. Sustenta,

também, que a injunção feita ao sujeito psicótico para reportar-se a essa

amarração paterna inexistente, forcluída, provoca a crise; nada informa, porém, a

respeito do que a psicose teria de próprio. A forclusão do Nome-do-pai, na opinião

de Calligaris, e também na minha, “é um conceito negativo”; define o que não é, o

que não está presente no psicótico e está presente no neurótico.281

A existência de uma forclusão dá início a uma história; não é o fim dela. É o

ponto de partida, não o de chegada. Só pensada desse modo pode ser fecunda. A

falta dessa amarração significante, que norteia o neurótico, faz com que o

psicótico procure um procedimento, uma forma de orientar-se, outras maneiras de

sujeitamento com o mundo, a vida e a linguagem. Essa procura o empurra muitas

vezes para a errância, central na esquizofrenia – vagabundagem a partir da qual

se abre a esperança de encontrar algo que o norteie e o sustente na linguagem.

Se o encontrar, esse algo será absolutamente pessoal e próprio, válido

unicamente para ele. Também profundamente instável. Essa instabilidade faz com

que, para neutralizá-la, recorra muitas vezes a rituais, formas sempre iguais de

fazer as coisas, modos de controle próximos de quadros obsessivos. Wolfson

tinha muito disso – no manejo dos alimentos, no processamento das palavras

inglesas. Edgar também: sempre ordenado, arrumado, limpinho, modo de

controlar uma mente confusa e em desordem.

281
CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1989, p. 20.
194

Mais uma volta em relação a Lacan. Com as constantes mudanças em que

se desenvolve sua obra, o significante Nome-do-pai vai deixar de ser pensado

com a centralidade dos primeiros tempos; pluraliza-se. Lacan falará dos Nomes-

do-pai, dos significantes do Nome-do-pai. Como assinalara Dor, o que importa é a

existência de “um lugar aberto à substituição metafórica; o significante Nome-do-

pai é um significante qualquer que virá a ocupar esse lugar decisivo”.282 Nas suas

últimas obras, Lacan, dando destaque ao Real, introduziu na tópica borromea um

quarto nó, associado à grafia sinthoma; com isso, é postulada a ideia de uma

suplência possível do Nome-do-pai. Em relação a James Joyce dirá: “O nome que

lhe é próprio; eis o que Joyce valoriza à custa do pai”.283 Também dirá: “A

psicanálise, ao ser bem sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-pai.

Podemos prescindir com a condição de nos servirmos dele”.284 As mudanças

foram batizadas como a segunda clínica de Lacan,285 nome que, obviamente, não

se encontra nas obras de Lacan, pois surge da exegese de seus atuais “leitores”.

Críticas: Deleuze e Tort

Em psicanálise, o peso das relações com os pais, sejam elas pensadas

como objetos primários (Freud) ou como jogo de funções significantes (Lacan), é

sempre ligado às manifestações psicopatológicas. Esse peso deu lugar a

polêmicas. Nos anos 1970, Deleuze e Guattari286 empreenderam uma crítica feroz

282 DOR, J. El padre y su función en psicoanálisis. Op. cit. p. 96.


283 LACAN, J. Seminário 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 86.
284 LACAN, J. Seminário 23. Op. cit., p. 132.
285Ver a respeito: COELHO DOS SANTOS, T. Quem precisa de análise hoje? Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
286 DELEUZE, G. e GATTARI, F. El antiedipo. Barcelona: Barral, 1973.
195

ao “familiarismo” psicanalítico, muito especialmente quando aplicado aos

fenômenos psicóticos. Quando, nos anos 1990, Deleuze reescreve Schizologie,

prefácio feito para o livro de Wolfson em 1970, Deleuze afirma:

A psicanálise só tem um defeito, o de reconduzir as aventuras da


psicose a uma ladainha, o eterno papai-mamãe, ora representado por
personagens psicológicos, ora elevado a funções simbólicas. Mas o
esquizofrênico não se insere nas categorias familiares, ele deambula por
categorias mundiais, cósmicas, razão pela qual está sempre em via de
estudar alguma coisa.287
.

O questionamento de Deleuze visa a relevar o papel dos fluxos pulsionais

na psicose, em detrimento das ligações que esses fluxos tenham feito tanto com

os objetos primários (Freud), quanto com funções simbólicas, materna ou paterna

(Lacan). É verdade que o esquizofrênico deambula por outras categorias

diferentes das familiares – concordamos com isso –, mas, se isso acontece, é por

ter fracassado sua inserção nas constelações familiares. A errância

esquizofrênica, a que nos referimos antes, é produzida pela falta de amarração

nessas categorias, coisa possível na neurose (ideia essa da qual, sabemos,

Deleuze discordaria).

Também complexa é a critica recente feita por Michel Tort, num livro

instigante embora carregado de comentários irônicos e corrosivos.288 O que Tort

questiona é a presença da declinante instituição patriarcal na concepção que a

287 DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento. In: Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34, 2008, p. 27.
288
TORT, Michel Fin du dogme paternel. Paris: Aubier, 2007. Ou também em espanhol:
TORT, M. Fin del dogma paterno. Buenos Aires, Paidós, 2008.
196

psicanálise tem-se feito do acesso do sujeito à linguagem e ao simbólico. De fato,

tanto a função do pai morto (Freud), como o papel atribuído ao Nome-do-pai

(Lacan) fizeram recair demasiadamente na figura do pai o acesso do sujeito à

linguagem e ao simbólico. Por mais que sejam diferentes - como Lacan não

cansou de afirmar – o pai concreto de cada um, o pai Imaginário, da função

paterna, o pai Real do pai Simbólico, o próprio conceito de função paterna, ao ser

chamada assim, paterna, carrega esse significante e recoloca o pai no centro do

acesso do sujeito ao mundo simbólico, o que o conceito de função pretendia diluir.

Diante do fato de que o pai patriarcal, na modernidade e na cultura de nossos

dias, está cada vez mais posto em xeque, a própria função paterna é vista como

ameaçada. Há quem fale de perversão generalizada (Melman289), ou adolescência

generalizada (Rassial290), até mesmo de forclusão generalizada (Miller291), como

males da atualidade, numa certa confusão entre declínio do patriarcado e declínio

da função que garante a existência de um mundo simbólico. É o Pater familiae, o

patriarcado, como instituição, o que está cada vez mais cambaleante. Se por

função paterna entendemos o que sustenta a existência da linguagem, com a

queda do pai patriarcal, outras vias de sustentar a proibição do incesto, diferentes

da via paternal, serão e já estão sendo arroladas. Nora Susmanscky de

Miguelez292 defende essa linha de pensamento e assinala, apoiada em Foucault,

289
MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: Editora
CMC, 2003.
290 RASSIAL, J. J. O sujeito em estado limite. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
291MILLER J. A. Breve introducción al más allá de Édipo. In: Del Edipo a la sexuación.
Buenos Aires: Paidós, 2005.
292SUSMANSCKY DE MIGUELEZ, Nora. Complexo de Édipo: novas patologias, novas
mulheres, novos homens. São Paulo: Casa do psicólogo, 2007.
197

alguns dos novos poderes surgidos: a escola, a empresa, a higiene pública o

poder intersticial das sociedades disciplinares. Concordamos com isso. Teríamos,

talvez, de encontrar outros nomes menos carregados da tradição paternal, do

patriarcado, para renomear o que foi pensado como Nome-do-pai e função

paterna.

Indiferentes a essas questões teóricas, nossos analisandos continuam e

provavelmente continuarão a falar dos pais e das famílias na suas sessões, sejam

neuróticos, sejam psicóticos. Edgar é um deles. Também, a partir das mais

diferentes perspectivas, os analistas continuam e continuarão a escrever sobre os

pais e suas funções. Aliás, “função paterna” é um desses conceitos que romperam

o cerco da escola que os criou.

Muito se tem escrito a respeito do pai de Schreber, esse ‘’pedagogo’’ tão

cruel que, como muito bem o descreveu O. Manonni,293 encarna perfeitamente o

antiEmílio de Rousseau, incapaz de reconhecer em seu filho qualquer liberdade,

qualquer desejo, atento só a sua “pedagogia” totalitária.

Não sabemos como era o pai de Edgar; tivemos apenas impressões sobre

sua mãe, mas não é possível concluir ser ela quem enlouqueceu o filho. Mesmo P.

Aulagnier, quando descreve a mãe dos psicóticos, faz isso a título de observação,

"muito longe de qualquer resposta exaustiva ou de uma conceituação que

ultrapasse o estado de uma hipótese de trabalho".294 Anos antes, em 1959, Harold

293MANONNI, O. President Schreber, professeur Flechsig. Les temps modernes, n° 341.


Paris: dez/ 1974.
294 AULAGNIER, P. Observações sobre a estrutura psicótica. Op. cit. p. 11.
198

Searles escreveu um artigo cujo título – O esforço por deixar o outro louco295–

ilustra bem essa linha de trabalho que atravessa a psicanálise desde seu

nascimento. Com efeito, como se viu, Freud toma partido da psicogênese e da

busca, também para as psicoses, de fatores que apontem o conflito, as pulsões,

os objetos primários como suas determinantes principais. Contudo, há na obra de

Freud argumentos suficientes para desencorajar qualquer causalidade

mecanicista desses fatores. O próprio conceito de aparelho psíquico evidencia

que, se sua construção é feita na dependência do outro, ele também constitui um

anteparo ao que a partir do outro e do mundo o influencia. O próprio conceito de

trauma, hoje reciclado nas reações pós-traumáticas, é concebido como interação

estímulo-aparelho: o que é traumático para uns não o é para outros. Lacan,

centrando na linguagem, no Outro, muitas das variantes que, em Freud, foram

pensadas como relações com os objetos primários, e separando as figuras

concretas dos pais de seus discursos, de sua função na constituição do sujeito na

linguagem, contribuiu ainda mais para desencorajar qualquer interpretação

mecanicista.

Mesmo assim, percebe-se nos analistas, qualquer que seja sua linha, certa

tendência à culpabilização subreptícia dos pais e das famílias dos psicóticos, sem

considerar que a loucura, uma vez instalada, enlouquece a todos, principalmente

quem cuida dos que dela padecem, incluído nisso psiquiatras e psicanalistas. Na

psiquiatria, um exemplo dessa loucura “contagiada” a encontramos no próprio

Flechsig. Como informa Manonni, com o objetivo de “melhorar seus pacientes”,

295SEARLES, H. L’effort pour rendre l’autre fou. In: L’effort pour rendre l’autre fou. Paris:
Gallimard, 1977.
199

praticava em alguns deles a castração real como terapêutica.296 Outro exemplo se

verifica nas experiências realizadas na Universidade de Tulane, nos Estados

Unidos. O programa multidisciplinar, que contou com a participação de

neurocirurgiões, propôs um ensaio de estimulação elétrica em um pequeno grupo

de pacientes com esquizofrenia, “cuidadosamente” escolhidos – “vinte pacientes

ao todo foram ‘beneficiados’ com essa abordagem”.297 A técnica consistiu na

colocação de eletrodos de estimulação no septo basal, de início apenas no ato

cirúrgico e depois deixando-os de forma definitiva, de modo a renovar a

estimulação. A experiência, menos invasiva que as lobotomias frontais da época,

foi minuciosamente protocolada e publicada em 1954, festejada por especialistas

que viam nas equipes multidisciplinares e na via cirúrgica a abertura de um

caminho inovador no tratamento das perturbações mentais. Garrabé298 descreve

algumas outras tentativas feitas nessa mesma linha, com efeitos igualmente

infaustos.

Edgar e a ausência do pai

Retomemos Edgar e a dramática relação com seu pai. Na escuta que fiz

dele, o que parece patente é que a morte de seu pai foi antecipada a partir do

momento trágico em que sua mãe pronunciou as fatídicas palavras “é câncer”; que

o fato de a localização do câncer impedir qualquer operação, e nada poder ser

296“Seguramente, desde 1895, lia [Schreber] suas publicações científicas [as de Flechsig]
e em duas delas, expunha casos em que tinha feito praticar a castração (ablação de
ovários e testículos), do que deveria obter-se melhora do estado dos doentes mentais.”
MANONNI, O. President Schreber, professeur Flechsig. Op. cit.
297 BAUD, Patrick. Contribution à l’histoire du concept de schizophrenie. Op. cit., p. 54.
298GARRABÉ, Jean. La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia. Op. cit.,
pp. 100 a 104.
200

feito, deixou-o impotente: o pai não poderia salvar-se (nem ele salvá-lo?); enfim, a

lenta e progressiva morte de seu pai provocara nele um vazio existencial que

perdurou bastante tempo e que, passados longos anos, ainda estava presente na

memória como um trauma de elaboração impossível. Também é patente que, na

óptica de Edgar, a presença física e concreta do pai garantia uma estabilidade que

ele viu comprometida com sua morte. Nada sabemos, porém, de como eram as

coisas antes dessa morte. Contudo, uma falha anterior a ela parece existir.

Preferimos falar da constituição de uma “ausência na presença”, seguindo Fédida,

aludindo com isso à impossibilidade de garantir na linguagem um lugar aos

objetos de apego. Invertendo a fórmula de Freud, Edgar necessita ficar com as

coisas no lugar das palavras; as palavras não garantem presença suficiente para a

permanência da relação com o outro. Falham os processos que sustentam na

linguagem tanto a discriminação como a relação com o outro. Mesmo assim, não

há como ter certeza do que aconteceu.

Poder-se-ia pensar a morte do pai como uma injunção, no sentido antes

apontado por Calligaris, obrigando-o a referir-se a uma amarração simbólica

inexistente ou precária? Poderia. Contudo, a desestruturação é situada por Edgar

num momento posterior, naquele de grande implicância com a irmã. De fato,

Edgar afirma que seus problemas começaram só depois da morte do pai. Também

dá a entender que se havia instalado uma luta sucessória: quem dava as ordens,

quem obedecia a quem. O fato de a irmã trabalhar com dinheiro assinala ser ela

possuidora de emblemas fálicos poderosos que ele não conseguiu superar. Difícil

é saber se a partida estava perdida de antemão ou se foi perdida na contenda; o


201

certo é que ele sai perdedor. Assim permaneceu, perdedor e perdido, sem

vontade, sem autonomia, a encarnação do fracasso e da castração.

O quadro crônico

Chama atenção quando Edgar descreve a si mesmo, o esboço de uma

criança pequena, quase um bebê, em dependência absoluta da sua mãe: quando

escuta sua voz, sossega; com a presença dela, tudo corre bem. Até o fato de

referir-se a “aprontar” conserva esse traço infantil. A falta de iniciação sexual

também indica o mesmo caminho. Há, nele, uma puerilidade acentuada e o

sentimento de hoje ser uma ruína de si mesmo.

Tenho escutado outras histórias parecidas. Recentemente vi um “rapaz”, de

42 anos, ex-estudante de física da USP, esquizofrênico há mais de 20 anos, com a

mesma puerilidade, a mesma dependência familiar; tendo cursado uma das

carreiras mais difíceis da USP, hoje é uma ruína de si mesmo. A cronificação da

esquizofrenia costuma derivar nesses estados de embotamento e puerilização.

Quiçá seja pensando nesses desenlaces que tenha surgido a ligação com

demência, embora, como já Bleuler precisou, haja grandes diferenças entre

ambos os processos. O que prima na esquizofrenia é a regressão, o estreitamento

da relação com o mundo, a dependência infantil, a criação de relações simbióticas

ou parasitárias com as quais se pretende manter um mínimo de estabilidade.

No caso de Edgar, a mãe é vista como a encarnação do Outro absoluto da

dependência mãe-bebê. Eles constituem um casal perfeito – perdão, uma “dupla

perfeita” – onde não é possível entrar, nem é possível perceber quem alimenta

mais tamanha simbiose. É a regressão de Edgar que arrasta, exige da mãe


202

ocupar esse lugar, como ela sustenta? É a onipotência materna, o ”sem lei”

apontada por Aulagnier, que não deixa espaço para a existência autônoma do

filho? Inútil responder. Descobrir a origem de certas alianças, se fosse possível

fazer isso, não permite mudá-las. Elas, porém, não são eternas. Edgar explicitou

angústia frente à possibilidade da morte da sua mãe. Ele disse: “O que será da

minha vida quando ela faltar?” A simbiose com sua mãe funciona como

“procedimento”, forma limitada de ligação com o mundo e com a vida. Ela lhe

garante uma estabilidade instável, ameaçada pela própria rebeldia e pela morte.

Porém, nem a morte concreta de sua mãe poderia trazer luz ao dilema exposto;

duvido também que comporte grandes avanços. Lembro-me do caso de um rapaz,

de idade parecida à de Edgar, esquizofrênico por anos, como ele, que, com a

ruptura de uma longa simbiose com sua mãe, cometeu suicídio. Já no caso

Wolfson, sua mãe finalmente morreu e ele não se matou, tampouco parece ter-se

libertado dela; mudou-se para o Canadá e escreveu um segundo livro, cujo título é

por si mesmo ilustrativo: Ma mère, mucisienne, est morte de maladie maligne

mardi à minuit au milieu du mois de mai mille977 au mouroir Memorial à

Manhatan.

As palavras em Edgar

Edgar, como Mané, não apresenta gritantes alterações de linguagem, como

Wolfson. Mesmo assim há coisas que são difíceis de explicar para quem “não

tem”, e isso não está limitado só a “relance”, termo da língua comum usado por ele

num sentido novo, neológico. A forma pela qual expressa a relação com o suposto

psicanalista também é difícil de explicar. Na apresentação de seu caso talvez eu


203

tenha abreviado demais as dificuldades surgidas nesse ponto. A narração de uma

transferência delirante de dominação, a explicitação de um delírio, costumam ser

assuntos complicados para quem tem, e sabe que o outro não tem, e para si

mesmo. A ruptura com o outro – ou com o Outro, como propõe Lacan – fica em

evidência. O código compartilhado da língua resulta insuficiente. Esse foi o caso

do termo “gravação”. Explicitamente a referência era ao gravador, aparelho

conhecido por todos, utilizado como registro de memória; por momentos, porém, a

gravação parecia ter sido feita a cinzel; e o objeto gravado, seu cérebro. “Ele

fundiu minha cuca”. Aqui, o “fundir” ficava aquém do uso metafórico, parecia literal:

derreter o cérebro. As palavras do tal psicanalista pareciam ter o poder de agir no

seu corpo, em seu cérebro, com efeitos devastadores. A adrenalina e seu efeito

desorganizador das sinapses faziam parte dessa visão de um cérebro danificado.

A explicação dada por Edgar de “falta de madureza para escutar o que ele

dissera”, embora verdadeira sob certo ângulo, não me convenceu. Pareceu-me a

conversão de uma experiência intransponível para uma versão atenuada, que eu

pudesse aceitar. Lembrei da carta de Schreber a Flechsig,299 também enganosa.

O termo “fissurado” me fez pensar em drogas, embora nada tenha surgido

sobre esse tema nas entrevistas. Pensei também que ele cabia na situação da

alta: estava fissurado por sair, não pensava em outra coisa. “Fissurado” também

estava no delírio, ele participava de todas as explicações dos problemas de sua

299 “Sou, por conseguinte obrigado a admitir como possibilidade que tudo o dito nos
primeiros capítulos das minhas Memórias a respeito de acontecimentos relacionados com
o nome de Flechsig, só se refere à alma Flechsig, que há que distinguir do homem do
mesmo nome, cuja existência separada não encontra explicação em nenhuma base
natural.” FREUD, S. (1911 [1910]) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de
paranoia (Dementia paranoides). Op. cit. p. 39.
204

vida. Freud já apontara esse apego do delirante a seu delírio: “amam seus delírios

como a si mesmos”, 300 disse ele. A rápida tradução que sua mãe fizera de

“fissurado” por “impregnado” alertou-me para um fato já sabido. Na esquizofrenia,

as palavras apresentam formas estranhas que incitam em quem as escuta

traduções rápidas, arredondamentos, deformação dos neologismos; também

incitam a pensar que tudo o que o paciente diz é estranho e nada está no lugar

que deveria; enfim, que essas pessoas “não sabem o que dizem”, e nós é que

sabemos. No caso de “fissurado”, achei que o termo estava no lugar certo,

adequado à situação vivida; “impregnado” é que não estava: não havia nos seus

movimentos sinais concretos de impregnação. Mas como saber ao certo? Na

leitura de uma situação sempre pesa a apreciação subjetiva, e ninguém está livre

de loucuras, muito menos, como foi visto, quem tem que lidar com elas. O que terá

pesado mais na discordância de interpretação de “fissurado”: a loucura de sua

mãe ou a minha? Com isso, voltam a surgir os temas do saber sobre a loucura, e

do saber contido na loucura. Dar espaço a esses questionamentos preserva de

um mal pior: a loucura de saber, central na paranoia.

300 FREUD, S. Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Manuscrito H. In: AE, vol. I,
p. 246.
205

A transferência

A questão da transferência na psicose percorreu na psicanálise um caminho

tortuoso. Como é sabido, desde a introdução do conceito de narcisismo, Freud

sustentou a impossibilidade de o psicótico fazer transferência, e, portanto, a

inviabilidade da psicanálise no caso da psicose. Com efeito, antes de adotar o

termo psicose, Freud propõe inicialmente a denominação psiconeurose (ou

neurose) narcísica, que vai opor a psiconeurose (ou neurose) de transferência,

dando destaque, até no nome, ao vetor do narcisismo na determinação da

sintomatologia psicótica. A possibilidade de fazer transferência fica, para Freud, do

lado da neurose; do lado da psicose, o narcisismo, ou seja, a libido voltada para o

eu, o afastamento da relação com o outro, a impossibilidade de fazer transferência

e, consequentemente, a impraticabilidade da abordagem psicanalítica.

Essa classificação, junto com as restrições que comporta, perdeu o vigor

inicial e tende a ser abandonada. O próprio Freud limita sua abrangência e, em

1924,301 conserva o termo neurose narcísica exclusivamente para as afecções de

caráter melancólico. Nos seguidores de Freud, tanto ingleses como franceses, há

consenso a respeito da validade do conceito de transferência na psicose.

Contudo, na psicose, ela possuiria peculiaridades próprias que a diferenciam da

transferência na neurose.

É na esquizofrenia que aparece com maior intensidade a ruptura com o

outro; em alguns casos, a transferência parece não existir – essa é sua

301 FREUD, S (1924) Neurosis y psicosis. Op. cit., p. 155.


206

modalidade. Nesses casos, depende dos esforços do analista sustentar a

esperança de uma transferência potencial. A transferência sustentada, procurada,

desejada, pelo analista, apresenta-se como tentativa (nem sempre coroada pelo

êxito) de encontrar uma via de acesso ou de contato com esses pacientes.

Essa visão não corresponde em nada ao que observamos em Edgar. Ao

contrário. Nele a transferência encontra-se em intensidade máxima. A dificuldade

de contato com o outro permanece, porém, do lado oposto. O relato que fez da

relação com seu psicanalista (?) é marcado pela indiscriminação e a perda de

fronteiras. Existia entre eles uma proximidade que se torna invasiva, persecutória.

Falamos já da “gravação” e do caráter intrusivo dela. A transferência de Edgar é

uma transferência delirante, persecutória, mas seu fundamento está na confusão,

na impossibilidade da demarcação de lugares distintos. Nela se encena o domínio

absoluto sobre ele, a impossibilidade de encontrar anteparos que permitam a

existência conjunta e independente de “um” e de “outro”.

Decorrente dessa transferência delirante, o interesse que a psicanálise e os

psicanalistas continuavam despertando nele constitui um fato significativo. Com

efeito, tendo relatado uma vivência tão terrificante e ameaçadora, é surpreendente

que, em relação à psicanálise, procure aproximação, e não afastamento ou

distância. O fato de eu ter sido apresentado como psicanalista favoreceu nossos

encontros e apenas em poucos momentos gerou tensões. Certamente a

psicanálise – e seus inúmeros prejuízos – constituiu uma via de acesso, um modo

de conexão com o outro e com mundo. Permitiu também encontrar explicações,

ainda que delirantes, para seu estado. Freud sempre sustentou o caráter
207

restaurador do delírio. Já relatamos o caso de uma mulher cuja reivindicação

delirante, constituía a razão de sua existência.

A empolgação de Edgar com a psicanálise era evidente. Havia um gozo

envolvido. Quando se referia às diversas formas de domínio que o tal sujeito

utilizara, ficava aceso, desatava a falar. Na presença de sua mãe, o tema foi o que

mais cumplicidade gerou. Poder-se-ia dizer que esse assunto está na base da

simbiose com ela. Há um delírio compartilhado. Ambos concordaram amplamente

na existência de “poderes” maléficos, embora tenha sido a mãe quem deu um

sentido religioso, diabólico, à figura do psicanalista, que era culpado de tudo:

submetia-o à regressão (regressão a vidas passadas?), lia seus pensamentos,

fazia-lhe “lavagem cerebral”.

A transferência na psicose percorre ambos os extremos: às vezes parece

não existir; outras adquire um caráter massivo, excessivo. Com frequência torna-

se persecutória, delirante. Há casos em que ambos os extremos se combinam.

Lembro-me de um rapaz que chegava a sua consulta horas antes do horário

combinado; alguns dias o encontrava pela manhã, bem cedo, dando voltas nas

proximidades do consultório, tudo para, no momento mesmo do encontro,

permanecer em absoluto silêncio por toda a sessão.

Curar ou acompanhar?

O tratamento da psicose requer inventividade, inútil é tentar aplicar ipsis

litteris as estratégias eficazes na neurose, pois, ao fazê-lo, elas transformam-se

em “procedimentos” ao contrário, modos de o analista neurotizar/neutralizar os

efeitos perturbadores da loucura, impondo ao outro, ao radicalmente outro,


208

formatações que lhe são alheias. Fazer isso não deixa de ser uma forma de

violência, efeito da violência que sentimos frente a alguém que desafia, contesta,

desacata o modo que nos estrutura. Temos proposto a disponibilidade de todos os

esforços e todas as ferramentas na tarefa de sustentar a presença do analista

como outro. Mas o que esperar desses esforços? A cura?

As tentativas de neurotização geralmente conduzem ao fracasso. Hoje se

emprega muito o termo estabilização. De fato ele é muito melhor que

normalização. Prefiro, porém, acompanhamento. Acompanhar o caminho, sempre

singular, de um sujeito psicótico permite às vezes, não sempre, contribuir para que

encontre uma forma, uma “outra” forma, de inserir-se na linguagem e na vida.

Aliás, aceitar que seja “outra” é o ponto mais difícil da abordagem; tendemos a ver

a loucura com os olhos da neurose, a nossa, a que nos constitui na linguagem e

nos insere no mundo.

Laplanche, no prefácio ao livro de Gisela Pankow, um exemplo de

inventividade e criatividade na abordagem da esquizofrenia, afirma: “Ao avançar

no campo da psicose, todo psicoterapeuta, se seus esforços são autênticos,

demonstra a ousadia, a originalidade e, devemos acrescentar, a generosidade do

pioneiro”.302

Passados muitos anos dessa afirmação, ela continua válida.

302
LAPLANCHE, J. Prefácio a PANCOW, G. O homem e sua psicose. Campinas:
Papirus, 1989, p. 7.
209

Considerações finais e conclusão

Psicanálise e psiquiatria organizam seus discursos e saberes com a

pretensão de fazer parte do campo da cientificidade. Ambas as disciplinas

possuem um objetivo comum: direcionam seus achados para o exercício de uma

prática – a prática clínica – com a qual procuram enfrentar o pathos, sofrimento

sentido por aqueles que as procuram. As duas disciplinas utilizam uma

terminologia que por vezes as aproxima – delírio ou alucinação, por exemplo –

outras vezes as separa – inconsciente, pulsão, narcisismo etc.

Como foi assinalado ao longo deste trabalho, a esquizofrenia, categoria

nosográfica criada por Bleuler nos inícios do século XX, nasceu num momento de

proximidade entre ambas as disciplinas: as ideias de Freud estão presentes em

muitos pontos da caracterização feita por Bleuler; em correspondência, Freud

interessou-se pela esquizofrenia, elaborando ricas hipóteses com as quais

procurou desvendar os sintomas descritos em Burghölzli. Essa proximidade,

porém, foi encarada com desconfiança pela psiquiatria. As hipóteses de cunho

psicanalítico foram logo questionadas, como foi o caso de Minkowski, discípulo de

Bleuler, que se encarrega na França de despsicanalizar a noção de esquizofrenia.

As relações psicanálise/psiquiatria foram sempre conturbadas. Um dos

eixos da controvérsia passa pela consideração dos fatores orgânicos. Fiel a sua

inserção no campo médico, a psiquiatria defende a primazia da organogênese,

como constatação ou como ideologia. Freud, embora ciente dos avanços

alcançados na medicina pela inclusão da anatomopatologia, denuncia o


210

reducionismo organicista; propõe considerar os afetos, o aparelho psíquico, as

pulsões, as relações familiares, os acontecimentos vividos, como fatores

determinantes nas perturbações mentais. Essa controvérsia acirra-se a cada dia.

O que mais alimenta a disputa, porém, é a pretensão de hegemonia. Como

denunciado por Serpa Júnior,303 cada novo achado das neurociências é esgrimido

como um modo de cientificidade mais apurado e, por isso, mais próximo da

verdade, em condições de condenar ao esquecimento qualquer outra aproximação

anteriormente realizada.

Temos feito a propósito do tema desta tese uma trabalhosa incursão no

âmbito da “velha” e da “nova” psiquiatria – tão marcada pela neurologia. O

percurso permitiu desfazer preconceitos, enriquecer nossa escuta e manter-nos

afastados de reducionismos sempre à espreita – eles também habitam o lado da

psicanálise. Aliás, a atual força da organogênese na psiquiatria já foi pensada

como reação à hegemonia da psicanálise nos anos 1950/60.304

Depois de feito esse percurso, cujo recorte compõe o Capítulo I desta tese,

pode constatar-se que, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, sempre

festejados, e dos muitos esforços realizados, a elucidação das causas orgânicas

da esquizofrenia ainda não foi alcançada, e esse “ainda” já completou 100 anos. A

esquizofrenia resiste a ser desvendada, e essa resistência é oferecida tanto a

psiquiatrias como a psicanalistas. As abordagens psicanalíticas da esquizofrenia

são sempre feitas estendendo suas fronteiras, renunciando a enquadramentos

303 SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na natureza...Op. cit.


304 SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na natureza...Op. cit.
211

tradicionais e reduzindo pretensões. Desde que Freud formulou as primeiras

hipóteses, a psicanálise aprendeu muito com a esquizofrenia; apesar disso,

“ainda” é muito que resta aprender.

A rigidez e a onipotência que caracterizam alguns de seus sintomas são

mais fortes do que qualquer pretensão de dissolvê-la, seja pela via bioquímica ou

biológica, seja pelo recurso à palavra. A elucidação dessa onipotência liga-se à

peça central das contribuições freudianas a respeito da psicose: o narcisismo –

principal ferramenta teórica forjada para o entendimento das psicoses. A regressão

ao narcisismo, fase intermediaria entre autoerotismo e escolha de objeto, proposta

por Freud para todos os processos psicóticos, encontra no caso da esquizofrenia

alguns obstáculos, porém. Com efeito, a fragmentação do eu comparece até no

nome dessa afecção, e Freud, ciente disso, propõe para ela uma regressão mais

profunda e radical: ao autoerotismo. Mesmo assim, embora a dispersão

autoerótica pareça adequar-se mais às características de alguns casos de

esquizofrenia, há oscilações na obra de Freud a respeito disso. Até a própria

sequência autoerotismo/narcisismo parece desarmar-se a partir de 1917.

Temos defendido a necessidade de manter diferenciada a série de fases na

constituição da sexualidade propostas em 1914, e continuamos a fazê-lo.

Contudo, o que achamos mais essencial da conceituação freudiana do narcisismo

na psicose é a proposta de ruptura com o outro, a retirada da libido das

representações que ligam o sujeito com o mundo e com os outros. Consideramos

essa ruptura mais importante que o destino final encontrado para esses

investimentos. É partindo dessa ruptura que Freud constrói a hipótese mais audaz
212

a respeito das alterações da linguagem na esquizofrenia. Havendo postulado o

rompimento com as representações de coisa da representação do objeto –

primeiro tempo da psicose –, propõe a existência de um movimento que procura

restituir a ligação perdida – segundo tempo da psicose; assim sendo, pela falta

das representações de coisa, a libido é investida nas representações de palavra,

ficando então com as palavras no lugar das coisas. Como tentamos mostrar no

Capítulo II, a concepção da psicose nesses dois tempos é outro dos pontos

relevantes da contribuição freudiana ao estudo das psicoses e também da

esquizofrenia.

Também procuramos ao longo deste trabalho questionar diversos conceitos

freudianos. A começar pelo de representação de coisa – termo extraído da

Monografia sobre as afasias numa intratextualidade não explicitada –, ou ainda a

concepção de linguagem empregada na época, fortemente influenciada pela teoria

dos nomes de Stuart Mill. Questionamos, em particular, a ambiguidade que rodeia

o tema da realidade na psicose, juntamente com o excessivo sensualismo que

carrega essa noção nos escritos de Freud. Contudo, definir a realidade é sem

dúvida uma questão intrincada, até mesmo para os filósofos; Freud, mais do que

defini-la, tentou mostrar os mecanismos e formas com que se costuma falseá-la:

introjeção, projeção, Verleugnung, narcisismo etc. Ora, reconhecer uma influência,

neste caso a de Mill, não obriga a endossá-la; tampouco deveria ser necessário

ocultá-la ou apagá-la.305

305 Gabbi Jr, que pesquisou as ligações Freud/Mill, revela a existência da uma tendência
ao apagamento dessa influência. GABBI JR., O.F. Notas a Projeto de uma psicologia: as
origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003. GABBI JR, O. F. Freud:
racionalidade, sentido e referência. Campinas: Unicamp, 1994.
213

Inconformado com o sensualismo assinalado, e descrente das teses

utilitaristas que permeiam a relação coisa/palavra freudiana, procurei em Foucault,

Lacan, Agamben e autores da psicanálise francesa contemporánea (Perrier,

Aulagnier, Green, Dor, Hassoun, Viderman, Laplanche, Fédida etc.) outros

subsídios, além dos freudianos, outros modos de pensar a linguagem, a relação

coisa/palavra e os problemas suscitados pela esquizofrenia.

Entre os autores consultados, para ampliar os fundamentos e a concepção

de linguagem, demos importância a Foucault e a Lacan. O primeiro trouxe um

ponto de vista longitudinal, histórico, epistêmico – utilizando a terminologia de

seus textos iniciais. O segundo, uma visão vertical, estrutural. Para ambos, porém,

as palavras remetem a outras palavras, e não às próprias coisas. Para Foucault, o

deslizamento constante das palavras é característico da Modernidade, produto da

queda da teoria da representação que imperou na Idade Clássica; para Lacan,

apoiado inicialmente nos trabalhos da linguística moderna inaugurada por

Saussure, a primazia do significante sobre a coisa é estrutural, produto da

estrutura da linguagem em si mesma; nele, porém, o que possibilita a significação

é a referência ao Outro, tesouro dos significantes, e a existência de alguns pontos

de ancoragem – os pontos de capitonê – que detêm o discorrer significante.

Ligado a Foucault, e a uma visão ao mesmo tempo longitudinal e estrutural

da linguagem, o conceito de infância de Agamben – no qual o autor fundamenta o

de história –auxiliou-nos na leitura dos casos. Efetivamente, apoiando-se também

nas contribuições da linguística de Saussure e Benveniste, Agamben destaca a

existência de uma infância do homem, um momento no qual, embora exista


214

linguagem, ainda não há fala. Para Agamben, há no homem necessidade de fazer

experiência da linguagem e, a partir dela, apropriar-se subjetivamente da língua

num discurso, numa fala. Essa visão trouxe subsídios preciosos para o tema que

nos ocupa. Entretanto, as contribuições desses autores foram analisadas a partir

da clínica.

Com Wolfson surgiu a necessidade de rever a relação estabelecida por

Freud entre coisas e palavras. Efetivamente, no seu caso, o procedimento

precisava ser aplicado tanto às palavras inglesas como aos alimentos. Exmatriar,

termo que tomamos de Foucault,306 estava no âmago do procedimento e do

mundo restrito do “estudante de línguas”. Assinalamos que a “coisa materna”, a

presença intrusiva e incestuosa d’Ela, seguindo a grafia proposta por Hassoun,

perturbava-o e o enlouquecia, mas nada fazia pensar que ficasse com palavras no

lugar das coisas. Nos outros casos, tanto em Mané como em Edgar, a linguagem

estava pouco afetada, não apresentava mudanças radicais como as de Wolfson.

Poder-se-ia dizer que eles “falavam como nós”. No contexto de uma fala bem

construída, porém, surgiam algumas palavras, alguns termos estranhos, sentidos

diferentes dos conhecidos, que evidenciavam uma ruptura, não da relação com as

coisas, senão da existência desse “nós”.

Incitado pelos casos, e por um trabalho de Perrier307 , vi surgir o que seria

um dos eixos de nossa reflexão: o que na esquizofrenia a palavra perde, o que

nela está profundamente adulterado, é a dimensão intersubjetiva da linguagem, a

306 FOUCAULT, M. Sete proposições sobre o sétimo anjo. Op. cit.


307 PERRIER, F. Fundamentos teóricos para uma psicoterapia da esquizofrenia. Op. cit.
215

possibilidade de utilizar o código da língua para fazer da linguagem um modo de

estabelecer ou manter laços com o outro. Contudo, o grau dessa ruptura

apresentou-se muito variável, tanto como o são as alterações da linguagem na

esquizofrenia. A linguagem altera-se de formas e em graus muito diferentes que

vão da espetacular “salada de palavras”, descrita por Bleuler, a “neolíngua” de

Wolfson, o “relance” de Edgar, a “missão” de Mané, até a mudanças apenas

perceptíveis, como foi o caso da palavra “gravação” em Edgar. Algumas delas

podem passar despercebidas por anos; outras são tão gritantes que ficam

patentes no primeiro minuto. Apesar da diversidade, porém, encontramos sempre

a ruptura com o outro, assim como tentativas, das mais variadas formas, de

recuperar essa ligação. Aqui, os dois tempos da psicose propostos por Freud

revelaram-se fecundos.

Um outro elemento importante a ser destacado quanto às alterações de

linguagem no caso de Wolfson, diz respeito à utilização da terceira pessoa para

referir-se a si mesmo e à falta de emprego do pronome pessoal “eu”. As

considerações feitas por Agamben, e as contribuições da linguística,

especialmente de Benveniste, permitiram ir além da constatação da esquisitice ou

da extravagância: essas maneiras indiretas de referir-se a si mesmo podem ser

lidas como formas de utilizar a língua sem implicar-se nela, ou seja, elas revelam a

existência de uma linguagem acéfala, um pensamento sem sujeito que o assuma.

Novamente, não se tratava da perda do sentido das palavras. Acompanhando o

texto de Wolfson, assistimos à desesperadora procura de reconstrução da

linguagem e à construção de uma língua a partir de um magma delas. Percebe-se,


216

no seu livro, que ele até consegue circular dentro dessa língua estrangeirada,

exmatriada, porém não consegue habitá-la. Nele, há língua, mas não há discurso,

não há uma apropriação subjetiva da linguagem.

Apoiados em Fédida, compreendemos que o excessivo apego de Edgar ao

pai morto apontava para outra forma mais sutil de alterar a linguagem: faltou nele

a construção de uma “ausência na presença”, um lugar na linguagem para os

objetos de apego. Já no célebre exemplo do carretel, narrado por Freud, a

linguagem apresenta-se como modo de simbolizar a ausência; a linguagem é uma

ausência que garante presença e, assim, possibilita perdas. Invertemos, no caso

de Edgar, a clássica fórmula de Freud; dizemos: ele necessita ficar com as coisas

no lugar das palavras, as palavras não lhe garantem presença suficiente para a

permanência de laços com o outro. Na nossa leitura, o pai de Edgar estava

duplamente morto.

Outro aspecto a ser assinalado refere-se ao lugar das figuras parentais.

Nas mais diversas orientações da psicanálise, elas foram consideradas como

participantes da construção da subjetividade, seja como objetos primários (Freud),

seja como significantes (Lacan). Em relação ao pai, tanto Freud como Lacan

ligam-no aos processos psicóticos.

Para Freud, a ligação homossexual com o pai está na base do delírio

paranoico de Schreber; a paranoia é para ele, uma defesa contra a

homossexualidade. No Capítulo II, questionamos a homossexualidade na

paranoia, que, de fato, pouco tem a ver com “opção sexual”, como se pensa fora

da psicanálise – o que pode levar a alguns equívocos. Na psicanálise freudiana, a


217

homossexualidade na psicose expressa fundamentalmente a relação ambivalente

amor/ódio que liga o filho com seu pai, e a passividade frente a ele. Ainda para

Freud, a figura do pai morto, ligada ao assassinato do pai da horda primitiva, faz

dele uma peça crucial da entrada do sujeito na cultura.

Para Lacan, a psicose foi pensada inicialmente como forclusão do Nome-

do-pai; a inscrição desse significante – Nome-do-pai – é a garantia de entrada no

Simbólico, e sua forclusão provoca um furo no Real que dá início à psicose.

No conjunto dos casos apresentados houve, direta ou indiretamente,

referência aos pais. A mãe é figura central em Wolfson; o pai comparece como

ausente. Em Edgar, o pai morto ocupa o lugar central do seu discurso, porém a

mãe é objeto de uma dependência quase absoluta. Em Mané, há desamparo; os

pais apenas aparecem; em troca, a religião, a igreja, Deus e o Diabo estão

presentes o tempo todo.

Em Wolfson e Edgar, porém, o lugar ocupado pelas mães surge no primeiro

plano. Para Wolfson, a presença intrusiva e incestuosa de sua mãe mobilizou os

complicados passos de seu procedimento. Nele, a língua materna, o Inglês,

permanecia materna, no sentido que tomamos de Hassoun: lugar de fusão de

corpos e de gozo que impede a existência separada de um e outro. Em Wolfson,

faltou – parafraseando Freud – a “figura da mãe morta”, embora, como afirma

Hassoun, essa seja uma morte que, necessária, nunca está completamente

consumada. Edgar mantinha com sua mãe uma dependência que beirava a

simbiose. Mas, diferentemente de Wolfson, que lutava por alcançar alguma

autonomia, Edgar entregava-se voluntariamente ao domínio da sua mãe. Essa


218

entrega nos pareceu fazer parte do seu procedimento. Assim como o delírio em

relação à psicanálise fornecia uma explicação para o estado em que se

encontrava sua vida, o circuito fechado da relação com sua mãe garantia que essa

justificativa fosse compartilhada e, por isso, adquirisse certa plausibilidade.

Através desses recursos conseguia alguma circulação limitada ao âmbito da

família e, como foi o caso dos encontros comigo, com a psicanálise e os

psicanalistas. Contudo, certa rebeldia infantil ameaçava esse precário equilíbrio, o

que derivou na internação.

Havendo conhecido a mãe de Edgar, foi Aulagnier quem veio à minha

memória. A escuta que fiz daquela pequenina senhora coincidia bastante com as

descrições que Aulagnier fizera das mães de psicóticos. Mesmo assim, o achado

de uma correlação não é o encontro de uma causa; consideramos importante

estar atento a isso para evitar reducionismos culpabilizantes.

Mané quase não falou de seus pais; falou mais das brincadeiras de sua

infância, do ambiente familiar comunitário na pequenina cidade do interior

pernambucano. Porém, se sua família não se fez presente, a Sagrada Família

esteve no primeiro plano, especialmente Ele – Deus Pai – e os profetas, figuras

centrais na construção do delírio.308 Assim como na religião Deus Pai desdobra-se

em Deus Filho – Jesus – e transfere seus poderes, no delírio de Mané, os poderes

também lhe foram transferidos, eram obra d’Ele; mas, uma vez feita a

transferência, era Mané quem os possuía. A questão de Deus pai/ Deus filho é

central no seu caso, como foi visto no Capítulo III. Para pensá-la valemos-nos da

308Curiosamente na religião adotada por ele, o lugar de Maria, mãe de Cristo, difere do
ocupado na religião católica.
219

concepção freudiana da religião e da significação atribuída ao Diabo no artigo de

1923 sobre o pintor Haizmann.

Por diversos caminhos, tanto Hassoun como Aulagnier realçam o perigo de

fechamento da relação mãe/filho. Esse encerramento se fez patente tanto em

Wolfson como em Edgar. Poder-se-ia dizer que neles o pai não cumpriu sua

função; no primeiro, por sua presença fluídica; no segundo, por estar duplamente

morto. Porém, uma das vantagens do conceito de função paterna, proposto por

Lacan, é o de independentizar o pai, aquele de todos nós – o pai imaginário –, da

função de separação e interdição que possibilita habitar a linguagem, criar laços

com os outros e fazer parte da cultura. Como função, a interdição circula por

diferentes âmbitos, passa por múltiplas mãos, encarna-se em muitas personagens

– no pai, e também na mãe. Sendo assim, questionamos o termo “paterna” da

denominação “função paterna” – consideramos que há nele rastros da instituição

do patriarcado cada vez mais em decadência. Mesmo assim, porém, não

propusemos outra denominação; em verdade não encontramos outra que nos

convencesse.

A linguagem, produção coletiva sustentada pelo “nós”, pré-existe ao sujeito.

O homem quando nasce não está nela, precisa entrar nela; no homem há infância,

como bem nos lembrou Agamben. Essa entrada, porém, não está garantida e

depende de longos trajetos. A dependência do recém nascido de um outro que

dele cuide é absoluta, mas demora a ser reconhecida. Esse retardamento é

central na constituição da onipotência infantil que caracteriza o autoerotismo e o


220

narcisismo inicial. A mãe, no melhor dos casos, responde a essa dependência, faz

do bebê sua majestade, como disse Freud, narcisiza-o. Nesse sentido, o

narcisismo pode ser visto como ilusão, a primeira e a mais poderosa de todas, a

que sustenta as outras. As pulsões do infans acabam por se ligar em quem o

ampara e o alimenta. A mãe, escolhida como objeto, corresponde. Ambos formam

uma dupla; estabelece-se entre eles uma relação de “simpatia’, no sentido que

Hassoun deu à palavra: participação de um corpo nas sensações e ações

executadas por outro. Contudo, o desejo do infans precisa não se preencher

totalmente nessa correspondência e apontar para o circuito mais amplo dos outros

e do “nós”. A primeira amarração do infans com o “nós” da linguagem, parte da

mãe, da existência nela tanto de correspondência como de interdição:

correspondência para o bebê ser suficientemente acolhido; interdição para não ser

rejeitado ou engolido na indiferenciação. Assim sendo, a interdição na mãe, a

“função paterna” operando nela, dispara o desejo de integrar seu filho no mundo e

na linguagem nos quais ela própria está inserida. Também dispara o desejo dele.

Com efeito, a proibição instaura o desejo de possuí-la, mas deseja-se essa posse

a partir de um lugar de discriminação e de subjetivação que antes não existia.

Para entrar na linguagem e fazer parte do “nós”, é necessária a construção dessa

separação, embora ela não seja suficiente: o desejo incestuoso assim constituído

também precisa ser abandonado, ser objeto de renúncia, entrando-se, então, num

jogo de substituições que não tem fim. Freud pensou essa renúncia ligada ao pai,

à identificação secundária edípica; Lacan, à inscrição de um significante, o


221

significante Nome-do-pai. Seja qual for o modo de pensar esse processo, ele

parece falho na psicose.

O Nome-do-pai está forcluído na psicose, dirá Lacan. Ora, pensemos em

forclusão ou em fracasso da fórmula edipiana de entrada no “nós” da linguagem,

os processos psicóticos iniciam-se aí. Esse é o ponto de partida, não o de

chegada – como procurei apontar no capítulo dedicado a Edgar.

O que os casos levaram-me a reconhecer, e constituiu outro eixo da

pesquisa, é que, por falta da amarração que norteia o neurótico, o psicótico é

obrigado a procurar um procedimento, uma forma de orientar-se, outras maneiras

de sujeitar-se no mundo, na vida e na linguagem. Às vezes as encontra; outras

não. Seja qual for o resultado dessa busca, fortes angústias o acompanharão; seu

mundo estará sujeito sempre a cataclismos, terremotos, que podem desfazer em

um minuto o que levou anos construir. A procura, quando se instala – e no caso de

instalar-se –, pode ser premente, desesperadora, avassaladora. Pode-se passar

dias sem dormir ou circulando a esmo, pode o sujeito cair numa errância da qual

seja difícil sair. Contudo, há alternativas piores. Temos acompanhado alguns

casos em que se instala algo assim como um crepúsculo, uma renúncia quase

completa e total a fazer parte do mundo, da linguagem e dos outros. Em certos

casos, como é notadamente o de Edgar, instala-se uma puerilidade, um

abobamento, uma infantilização que prevalece e tende a estabelecer-se quase

permanentemente. Mesmo assim, impulsos podem desencadear-se

repentinamente, e a docilidade habitual transformar-se em violência, como parece

ter acontecido com Edgar. Esses impulsos podem ser muito fortes e levar à
222

necessidade de descarga imediata ou de execução de atos perigosos, como

ocorreu com Mané.

Mané possibilitou aproximar-nos de outro viés da esquizofrenia, aquele que

se liga às intensidades, ao fluxo irrefreável da pulsão. Sem encontrar na

linguagem formas de encaminhamento que favoreçam o pensar, a pulsão empurra

à ação. Chamamos, seguindo a denominação proposta por Lacan, passagem ao

ato a tentativa de Mané de decepar a própria língua. Nem sempre, porém, o agir

limita-se a um ato pontual, como foi o de Mané; são frequentes também atos

compulsivos efetuados com urgência e, em alguns casos, tão repetidamente que

ocupam o primeiro plano.309 A presença desses atos exige cuidado do clínico, pois

há semelhanças fenomênicas com processos neuróticos que podem enganar. Na

esquizofrenia predomina a descarga, não a simbolização inconsciente do ato.

Com a aparência de rituais, são comuns formas sempre iguais de fazer as

coisas, passos que devem ser seguidos à risca. Poder-se-ia pensar em alguma

finalidade simbólica envolvida nesse proceder; não consideramos, porém, que

esteja aí o essencial. Se os gestos e os caminhos são repetidos, se tudo é feito da

mesma maneira, isso se deve ao fato de que é essa a única possível, fora dela há

risco de se perder. Não há liberdade de escolher dentre múltiplos caminhos. O

ritual é só aparente, ele expressa a rigidez que costuma acompanhar o modo

próprio e pessoal de religar-se com o mundo e com a vida. Temos considerado

309Lembro de um rapaz que conheci na mesma reunião de grupo em que entrei em


contato com Edgar. Ele saia do grupo de minuto em minuto para ir ao banheiro. Fez isso
umas 20 ou 30 vezes.
223

que esses rituais fazem parte do procedimento, efeitos da precária e instável

amarração conseguida.

A primazia do fazer também aparece na relação pensar/fazer. Efetivamente,

muito do que nós só temos o atrevimento de pensar ou fantasiar pode ser

rapidamente encaminhado para as vias de fato na esquizofrenia; a distância entre

pensamento e ação costuma ser pequena em alguns casos. A linguagem perde

parte de sua função de adiar a ação.

O conceito de delírio já foi pensado pela psiquiatria como crença subjetiva

inabalável – delimitação ainda imprecisa, como se depreende. No caso das

crenças religiosas, de fato elas não são abaláveis pela lógica; acredita-se nelas

apesar de absurdas. A questão do subjetivo ou coletivo também é relativa, pois

cada sujeito tem seu modo pessoal de assumir crenças especialmente as

religiosas, e nem por isso enlouquece. Aliás, Freud já pensou a neurose obsessiva

como religião particular. O fanatismo religioso aproxima-se mais ainda da certeza

absoluta que caracteriza o delírio; contudo, embora em nome dele possam fazer-

se muitas loucuras, ainda há frágeis demarcações mantidas com a psicose.

Em Mané, a questão da religião apresentou-se central. Crença religiosa,

fervor religioso, fundamentalismo e delírio místico estão separados por fronteiras

de difícil discriminação. Mané foi atravessando cada uma delas até chegar à

instalação do delírio místico descrito. Consideramos não haver dúvidas sobre o

caráter delirante da construção místico/religiosa de Mané; ela envolvia tanto a

Deus como ao Diabo. Ora, o narcisismo gerado na infância, projetado nos pais,

está no fundamento da religião, o que por sua vez nos remete ao conceito
224

freudiano de desamparo. O desamparo humano encontra na religião uma ilusão

que é sentida como proteção. Porém, um resto de dúvida acompanha todo crente,

e o poder onipotente é atribuído sempre a Deus, não está no próprio eu.

Diferentemente da cosmovisão animista, na religiosa há um narcisismo

renunciado, delegado. No caso de Mané, ligamos ao desamparo provocado pela

migração a força de suas crenças religiosas, e nele a crença transformou-se em

convicção delirante, em desejo de submissão ao Outro absoluto, só rompido pela

presença do capeta, que interpretamos como resto de rebeldia não assumida

como própria. Essa submissão a Ele pouco a pouco foi fazendo “dele”, Mané, um

ser tão poderoso como Ele, carregado de poderes transferidos, assim como no

cristianismo Deus pai e Deus filho perfazem um único Deus.

O lugar do corpo na esquizofrenia foi considerado, com apoio em Freud,

ligado ao narcisismo. Com efeito, a propriedade erógena do corpo, surgida nos

primórdios da vida, faz do corpo reduto narcisista por excelência. Já no texto de

1914, Freud mostra que as doenças orgânicas, quando se instalam, testemunham

o valor narcisista do corpo, o mundo e os outros perdem importância.

Reciprocamente, quando o mundo e os outros são desinvestidos, quando se

rompe com eles, quando a linguagem perde a propriedade de ligar os falantes uns

aos outros, o corpo ganha valor, a linguagem liga-se ao corpo, a linguagem torna-

se “linguagem de órgão”. Na esquizofrenia, o corpo ocupa o lugar do outro

perdido; é com ele que se estabelecem curiosos intercâmbios: pode-se senti-lo

invadido, tomado, como em Mané, ou roubado, petrificado, esticado, como relata

Bleuler.
225

Por fim, assinala-se que um último elemento considerado neste trabalho, e

que se originou da escuta, refere-se à questão da transferência. Ela surgiu com

força em Edgar e nos pegou de surpresa em Mané. De fato, não acreditávamos

que os encontros mantidos nos primeiros dias da internação deixassem tantos

rastros em Mané. Costuma ser assim, porém. Há casos em que a transferência

parece não existir; outros em que aparenta depender só dos esforços do analista;

outros em que surge em “intensidade máxima”, como vimos em relação a Edgar.

Há transferência na psicose – discordamos nisso de Freud –, mas, ela segue por

caminhos diferentes dos percorridos na neurose. Na psicose há constante

oscilação entre fusão e isolamento, e pouco de lugar simbólico.

Como num processo de análise, uma pesquisa termina apesar de não ter

fim. Muitas coisas acontecem nesse intervalo entre começo e fim, também como

na análise. Iniciamos esta pesquisa com uma série de interrogações gerais que

nos conduziram tanto para a escuta de pacientes com diagnóstico de

esquizofrenia, como para a procura teórica, no âmbito da psiquiatria e da

psicanálise, das determinações e esclarecimentos do conceito e dos sintomas da

esquizofrenia. Além dessas questões gerais, desde o início da pesquisa tínhamos

uma interrogação específica. Conhecendo as hipóteses freudianas a respeito das

alterações da linguagem na esquizofrenia, queríamos conferir à luz da atualidade

a validade daquelas proposições, queríamos saber até que ponto elas

continuavam a iluminar o obscuro terreno da esquizofrenia. Fizemos isso e

concluímos que aquelas hipóteses carregam o peso de uma visão sensualista da


226

linguagem em que o problema da significação se liga excessivamente à relação

com as coisas. Não encontramos nos casos analisados fundamentos para mantê-

las. Chegamos a até inverter os termos de Freud no caso de Edgar: “ficar com as

coisas no lugar das palavras”.

Fomos convencidos por Foucault. Aprendemos com ele que coisas e

palavras pertencem a mundos diferentes; um não fundamenta o outro. Nesse

sentido, a linguagem recria o mundo, enuncia-o, e, ao fazê-lo independentiza-se

dele, cria um mundo de palavras que nos determina e nos liberta; a linguagem é

sujeição e liberdade ao mesmo tempo. A sujeição ao código da língua – ao “nós”

da linguagem – liga entre si os falantes e permite que se expresse nessa língua o

desejo que anima o sujeito, a própria subjetividade. Para isso, porém, temos de

fazer parte da linguagem; a linguagem está no mundo e o infans ainda não esta

nela; precisa entrar nela, habitá-la.

Se a proposta freudiana referente à ligação palavra/coisa não se revelou

fecunda, a da existência, na psicose, de uma regressão narcisista, sim, o foi. Nela

se postula uma ruptura com o mundo e com os outros – primeiro tempo da psicose

– e a existência de tentativas de religação – segundo tempo da psicose. A ruptura

inicial envolve a linguagem, a que deixa de ser um modo de estabelecer laços com

os outros. Liberada dessa finalidade, as palavras perdem inteligibilidade; surgem

os neologismos e as formas sutis de evidenciar na linguagem a ruptura com o

outro, com o “nós” que a sustenta. Pensamos ser esse um bom caminho para

pensar as alterações de linguagem.


227

A psicanálise pensou a entrada na cultura e na linguagem de diferentes

formas. Seja qual for a perspectiva utilizada, há sempre postulada uma falha: na

psicose, algo falha na constituição do “nós” da linguagem; podemos até nomeá-la,

nem sempre, porém, podemos remediá-la. A existência de impedimentos para o

seguimento do caminho marcado não impede ao sujeito psicótico de encontrar

outros caminhos, empregar outro procedimento – palavra que tomamos de

Deleuze –, diferente do nosso. Os caminhos encontrados, porém, serão singulares

e próprios, e parte da possibilidade de encontro com os outros na linguagem

estará perdida. Tentar acompanhar esse processo, aceitando a existência do

radicalmente outro, parece-nos um caminho temerário e fascinante a ser seguido,

uma alternativa possível de abordagem.


228

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