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Tese Oscar Miguelez PDF
Tese Oscar Miguelez PDF
PUC-SP
LINGUAGEM E ESQUIZOFRENIA:
de coisas e palavras
SÃO PAULO
2011
2
I
3
Linguagem e esquizofrenia:
de coisas e palavras
SÃO PAULO
2011
4
II
5
Banca examinadora
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
6
III
7
A Nora,
companheira na vida.
IV
9
RESUMO
V
.
11
ABSTRACT
This thesis addresses the issue of language in schizophrenia. First, schizophrenia
is defined, as a nosographic category, derived from its predecessor ‘dementia
praecox’, conceived by Bleuler as a psychopathological concept. This is followed
by a discussion on some developments of this concept in the context of psychiatry.
The thesis finally focuses on Freudian hypotheses about schizophrenia, which
have emerged in a moment of rapprochement between psychoanalysis and
psychiatry. An emphasis is given on the relationship between words and things in
the metapsychological texts. The foundation of the Freudian word / thing relation,
initially linked to Stuart Mill’s theory of names, is examined, as are other ways of
thinking this relation, as well as schizophrenia symptoms, by Lacan, Foucault,
Agamben and contemporary French psychoanalysis authors. These and other
issues were addressed by presenting three clinical cases: Wolfson, Mané and
Edgar. These cases illustrate the diversity of language disorders in schizophrenia,
ranging from deconstruction / reconstruction of the entire language (Wolfson) to the
occasional presence of a few strange words, keys for the delusional construction
(Mané and Edgar). Despite the differences, these cases share a similar rupture.
The central hypothesis of this thesis is that such rupture, unlike what has
previously been postulated by Freud, is not a break in the word / thing relation, but
on the intersubjective function of language, the ability to use language as a way to
bond to each other. This rupture is followed by the search for procedures and all
sorts of attempts to recovering the lost connection. In this sense, the two times of
psychosis, proposed by Freud, have proved fruitful.
VI
13
AGRADECIMENTOS
A Carmen Lucia Montecchi Vadalares de Oliveira pela leitura cuidadosa dos textos
na fase final da tese e por todas as contribuições teóricas e afetivas que
permitiram superar os momentos de desalento.
A Ivone Daré Rabello, que revisou a versão final do texto, em língua e estilo.
VII
14
Sumário
Capítulo I.......................................................................................................... 15
Esquizofrenia: entre psiquiatria e psicanálise.............................................. 15
1. Da demência precoce à esquizofrenia.......................................................... 15
O conceito de demência precoce......................................................... 15
O conceito de esquizofrenia................................................................. 19
2. Da esquizofrenia à esquizoidia...................................................................... 27
3. A neuroleptização da esquizofrenia............................................................... 31
Capítulo II......................................................................................................... 40
A esquizofrenia em Freud............................................................................... 40
1. O contexto geral da pesquisa freudiana sobre esquizofrenia....................... 40
2. Psicanálise e psiquiatria................................................................................ 49
3. Freud e Burghölzli.......................................................................................... 52
4. As hipóteses iniciais a respeito da psicose................................................... 58
5. Analise freudiana dos sintomas da esquizofrenia......................................... 60
As alterações da linguagem.................................................................. 62
Sonho e esquizofrenia.......................................................................... 71
A linguagem de órgão........................................................................... 74
Questionamentos.................................................................................. 80
6. O Schreber de Freud e a esquizofrenia......................................................... 82
Homossexualidade e84
paranoia...............................................................
Autoerotismo, narcisismo, paranoia e esquizofrenia........................... 89
7. Realidade e significação na obra d e92
Freud....................................................
A realidade no Projeto e em Interpretação dos sonhos....................... 93
Eu, narcisismo e realidade................................................................... 97
Realidade e Verleugnung..................................................................... 100
A realidade na neurose e na psicose................................................... 104
Verdrängung e106
Verneinung....................................................................
Questionamentos..................................................................................108
..
15
VIII
3. Considerações............................................................................................... 126
“Exmatriar” a126
língua................................................................................
O 130
procedimento......................................................................................
A apropriação da língua.........................................................................132
De coisas e135
palavras..............................................................................
A linguagem e o s144
outros.........................................................................
A 177
hospitalização......................................................................................
Edgar e sua família................................................................................179
A mãe.................................................................................................... 181
O pai morto............................................................................................182
Lacan e a forclusão do N o m e - d o -183
pai.....................................................
Homossexualidade e184
psicose.................................................................
A forclusão c o n c e i t o185
negativo.................................................................
Críticas: Deleuze e189
Tort..........................................................................
Edgar e a ausência d o194
pai......................................................................
O q u a d r o195
crônico....................................................................................
As palavras e m196
Edgar............................................................................
A transferência.................................................................................... 199
Curar ou acompanhar?..........................................................................201
Bibliografia.......................................................................................................221
.
IX
1
nas psicoses, pois é o narcisismo a principal resposta que deu Freud aos desafios
provocados por elas. Dentre os três grandes grupos de psicoses que Freud ligara
incompreensível.
linguagem foi um assunto de grande interesse para mim. Com efeito, no final dos
anos 1960, com a chegada à Argentina das ideias de Lacan, fortes discussões
lugar da linguagem nos seus sintomas? Qual a validade do modelo proposto por
a psicanálise tem a dizer a respeito dela? De que modo esse enigmático quadro
2
que a elaboração teórica não fizesse perder de vista o horizonte da clínica, esta
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, e de José Waldemar Thiensen Turna, colega do
circular pelos corredores, para se situar nas diferentes alas, para conviver com
fechaduras, trancas, rotinas dos internos, horários, odores, enfim, com aquilo que
sob os efeitos de medicamentos consignados nas suas fichas clínicas e que eram
contato. Sem que tivesse a intenção de refletir sobre essas intervenções, não era
se faziam patentes nas atitudes e nas falas dos pacientes durante os encontros
horários alternativos aos da equipe clínica e, por esse motivo, eu não mantinha
4
nenhum contato com ela. Foi assim que, em um segundo momento, por
época coordenadas pelo Prof. Dr. Carol Sonenreich e no presente momento pelo
Prof. Dr. Giordano Estevão. Com a mudança de meu espaço de atuação, quebrou-
O discurso da psiquiatria, hoje cada vez mais hegemônico, não costuma ser
psiquiatria, encerra uma dualidade que atravessa como dilema sua história. De
Em torno da esquizofrenia
procura teórica; por outro, pelas exigências práticas derivadas da minha inclusão
uma definição unívoca do que se entende por esquizofrenia, nem uma única
explicação sobre seus sintomas. Existem quase tantas definições como autores
que se ocuparam dela. Mais ainda, nos últimos anos discute-se até a permanência
seus mais de 100 anos de história, ordenaram-se das mais variadas maneiras.
compreender esses sintomas a partir da perspectiva que foi a sua: o jogo pulsional
preceitos propostos por Bichat para a medicina, inclina-se para o orgânico; tende a
7
por Freud ao estudo da psicose. Também desse período são os cinco trabalhos
invocada pelos analistas. Mesmo assim, perguntava-me qual seria o alcance dela.
Até que ponto, nos dias de hoje, ela continuava a iluminar o obscuro território da
psicanálise pós-freudiana?
ocupa. Foi seguindo os elos dessa ligação que, além das freudianas, procurei
linguagem não advêm da sua ligação com as coisas. No caso de Lacan, inspirado
2 Como afirma Assoun, “é desse nominalismo experimental que Freud faz uso nessa
ocasião”. ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
1993, p. 79. Reminiscências dessa concepção comparecem nos trabalhos da
metapsicologia, fazem-se presentes na concepção de realidade e atravessam a
psicanálise freudiana como um todo.
9
palavras remetem a outras palavras, num jogo sem fim. Para Foucault, a palavra –
psicanálise, a francesa, influenciada pela obra de Lacan e, por isso, envolvida com
próprias questões – oferecia amplo material para desenvolver esta pesquisa. Foi
em autores marcados por esse debate, tais como Perrier, Aulagnier, Leclaire,
outros, que o diálogo sobre a relação da palavra com as coisas encontrou pontos
sem que isso significasse adesão incondicional ou filiação a uma ou outra dessas
correntes.
podem iluminar melhor esse fenômeno. Tal é o caso dos pares conceituais língua
aniquilar o sujeito.
inicialmente por Fédida, hoje sustentada por Manoel Tosta Berlinck e um grande
desempenha papel fundamental; cada caso precisa ser pensado como único e
sine qua non para dar início a qualquer tarefa. Assim, os casos clínicos têm na
Os casos clínicos
as clínicas; de fato decidi deixar-me levar pela clínica e quis que alguns casos
fato de tratar-se da primeira internação de Mané, seu primeiro surto, e, por isso,
estar ele livre de intervenções desconhecidas. Seu delírio místico foi outro dos
como questão central; além disso, houve o contato com a mãe dele, figura muito
comparações – aliás, a construção dos casos foi feita num permanente diálogo
12
psicose.
Por fim, o terceiro caso, Wolfson, apresentado nesta tese em primeiro lugar,
não provém de meus contatos no Hospital São João de Deus, e sim do material
Esse material permitiu abordar as alterações de linguagem numa das formas mais
excepcional; não por acaso inspirou numerosos trabalhos. Esse radicalismo pôde
temáticas fundamentais para esta tese, coluna vertebral deste trabalho. A escuta e
Da organização do material
permitiram aprofundar o tema desta tese. Foi também a partir deles que se tornou
CAPÍTULO I
variações significativas, em decorrência tanto das descrições clínicas com que foi
proposto. Ali afirma que padecem dessa doença pessoas desinteressadas com o
que acontece a seu redor, faltos de desejo e vontade, afetivamente apáticos, com
quadro assim descrito é definido como uma entidade mórbida, uma doença mental
e emocional incurável que, por sua semelhança com as demências da velhice foi
neologismos, dão forma ao quadro clínico que pode manter-se inalterado por
longos períodos, até mesmo décadas. Além disso, os delírios, quando aparecem,
terminal demencial que, na opinião de Kraepelin, se ainda não está presente, pode
13 Cf.: KRAEPELIN, E. Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit., pp. 42 e 43. Tradução
livre do espanhol a partir do original em alemão.
14 Ver a respeito: BERCHERIE, P. Op. cit., p. 165.
15 Paralelamente à demência precoce e à paranoia, e em oposição a elas, apesar das
inúmeras modificações efetuadas no Tratado, Kraepelin manteve sempre a categoria
loucura maníaco-depressiva, caracterizada pelos transtornos do humor; essa oposição
ficou conhecida como dicotomia kraepeliana.
19
nenhuma tentativa de expressão sob formas não reconhecidas. Esse será um dos
pontos de ruptura das posições sustentadas em Burghölzli, tanto por Bleuler como
por Jung. Porém, foi tomando como base as elaborações de Kraepelin, que
de demência precoce.
16 A título de exemplo, pode-se apontar diferenças entre o estado terminal da PGP, que
apresenta uniformidade dos sintomas decorrentes de alterações anatômicas no córtex
cerebral, e os estados terminais dos diversos tipos de demência precoce, com sua
diversidade de sintomas e riqueza muito variada de formas.
17 KRAEPELIN, E. Introducción a la clínica psiquiátrica, op. cit., p. 217.
20
interlocução com Freud na primeira década do século XX. Poder-se-ia dizer que
sua influência, junto com a de Jung – na época jovem médico interno na clínica
helvécia –, tiveram grande peso para que Freud se aproximasse dos fenômenos
sintomas e sua relação com as “privações impostas pela vida” nos pacientes. Na
ocasião, Freud sustentou que demência precoce não era uma denominação
moderna, e que os pacientes não eram nem dementes nem precoces – questões,
O conceito de esquizofrenia
apresentar sua obra, reconhece que ela dá continuidade às elaborações feitas por
entretanto, representa muito mais do que uma mudança terminológica. Com efeito,
é às vezes crônico e às vezes marcado por ataques intermitentes, que pode deter-
kraepeliana.
elas são definidas como conceitos psicopatológicos, não mais como entidades
das funções psíquicas que pode chegar até à perda da unidade da personalidade
separar, clivar.
Acessórios são sintomas tais como delírios, alucinações ou catatonia, que podem
estar completamente ausentes ou serem tão presentes que tingem por completo o
prevalente obstruindo as outras. O pensamento não é dirigido por uma ideia geral,
elos que fazem inteligível o discurso. Disse a esse respeito Bleuler: “Só o conceito
23
está, por isso, ligada ao inconsciente. Para Bleuler, a representação meta é o que
por caminhos laterais dos mais irrelevantes. Note-se, porém, que é a linguagem o
indicações disso: a fala orientada pelo som das palavras ( Witz-ein Nix-ein
ideias (“vela a vapor” como junção de barco a vela e barco a vapor); aquilo que o
de atividades (“agora ele se senta”, “agora ele quer escrever”); o uso frequente da
terceira pessoa para referir-se ao próprio indivíduo. Mesmo assim, Bleuler insiste
característica desses últimos, assinala uma gradação que vai da fala continuada
comum.
impondo: “As palavras e frases chamativas que utilizam nossos pacientes não
podem ser consideradas como cascas vazias,26 e sim como conchas que ocultam
médico. Nesse ponto, fica patente que Bleuler se distancia da tradição psiquiátrica
26 “Cascas de palavras” foram os termos propostos por Kraft-Ebbing para definir essas
alterações da linguagem. BLEULER, E. Op. cit., p. 160.
27 BLEULER, E. Op. cit., p. 160.
25
diálogo com a psicanálise. Como se verá, a vida afetiva foi posta em destaque por
meio dos afetos que Freud consegue vencer a tendência, marcante na época, de
negativismo, tornam difícil o trato com esses pacientes. Às vezes aparece grande
resistência a fome, sede, frio, à falta de sono ou a fenômenos como a visão direta
26
vontade e o intelecto.28
paciente.
sintomas secundários.32
30 “Os pacientes sentem que batem neles, queimam-nos; atravessam-nos com agulhas
incandescentes, com punhais ou com lanças; retorcem-lhes os braços; dobram-lhe para
trás a cabeça; encurtam-lhes as pernas, arrancam-lhes os olhos, de modo que no espelho
lhes parece tê-los fora das órbitas; prensam-lhe a cabeça; esticam ou alongam seu corpo
como um acordeão.” BLEULER, E. Op. cit., p. 110.
31 As ideias delirantes expressam tudo que o paciente deseja e teme. Mas é
particularmente presente o delírio de perseguição. Trata-se de injúrias, calúnias,
difamações das quais o paciente é vítima. Exercem-se complôs contra ele. O dano
causado atinge com frequência o corpo, os olhos, os órgãos sexuais. Injetam-lhes
substâncias prejudiciais pelos orifícios corporais, tentam envenená-lo. Também são
comuns ideias de grandeza. A nobreza e outras posições de poder, a inteligência superior,
a realização de grandes inventos, a posse de poderes especiais combinam-se com ideias
persecutórias de roubo, acossamento, complôs que se armam contra o paciente em
decorrência de sua superioridade. Forças opositoras impedem-no de obter o
reconhecimento e a fama que merece. Estão também presentes as ideias delirantes de
cunho religioso: Deus, Jesus, conversam com ele; ele próprio é Deus ou tem uma missão
salvadora. Delírios eróticos combinam-se às vezes com os de grandeza e perseguição.
Ideias hipocondríacas ganham coloridos persecutórios: roubo de órgãos, transformação
do conteúdo corporal, excrementos que preenchem a cabeça, petrificação de partes do
corpo. Ainda aparece a ideia de estar possuído por forças, entidades ou pessoas.
32O modelo empregado para explicitar a lógica da divisão proposta é a osteomalacia. Diz
Bleuler: “[na osteomalacia] os processos químicos e fisiológicos, incluindo a
descalcificação dos ossos, constituem o processo patológico. A fragilidade dos ossos é
uma consequência direta das mudanças que se produzem neles. Em troca, uma fratura
ou um encurvamento ósseo só poderá produzir-se devido à ação direta de forças
exteriores. Essas manifestações subsequentes à doença não são o resultado de um
mesmo processo patológico, e sim da resposta alterada dos ossos frente a influências
acessórias”. BLEULER, E. Op. cit., p. 361.
28
meandros das circunvoluções cerebrais. Fica evidente que, nessa nova divisão, o
peso da tradição psiquiátrica da época falou mais forte que a psicanálise. Mesmo
sua visão psicodinâmica, embora restrita aos sintomas secundários, inaugura uma
2. Da esquizofrenia à esquizoidia
uma mudança, operada também na psicanálise por outras vias. Com efeito, como
tanto para uma como para outra, a retração narcisista, postulada por Freud para
descontinuidade.
vividas por ele.39 A distribuição das características em opostos facilita uma leitura
mais atenção às formas leves e aos traços comuns entre normalidade e patologia.
predisposições latentes.40
elaboração dos conflitos e defesas ligados a essas posições, propõe também uma
fundamento da esquizofrenia.
Embora Minkowski não seja o inventor do termo esquizoidia, foi ele quem
caráter habitual”. Assim, a esquizofrenia teria como condição para sua produção a
perda do contato vital com a realidade. Como resultado dessa deficiência surge a
“orquestra sem diretor” (Kraepelin), “máquina sem combustível, que pode voltar a
esquizofrenia.
3. A neuroleptização da esquizofrenia
43Vários colóquios foram organizados por Henri Ey em Bonneval contando sempre com a
participação de psiquiatras e psicanalistas. Destaca-se entre eles o acontecido em 1960,
dedicado ao conceito de inconsciente. EY, H. (Director) El inconsciente: coloquio de
Bonneval. México: Siglo XXI, 1970.
33
Mas o ano de 1952 tem o valor de símbolo de uma nova era, um ícone que
princípio lógico que anima esses trabalhos, porém, pode ser considerado de início
como relativamente simples. Com efeito, diz Baud, “se o efeito terapêutico de uma
Mas, como afirma Serpa Júnior, essa simplicidade é aparente e muito relativa; há
neuroquímica.51
49 Desde dosagens de dopamina e derivados nos mais diversos meios, até o uso de
neuroimagens por emissão de pósitrons, a tecnologia tem dominado o campo,
introduzindo discretamente pressupostos involucrados nas máquinas, que, por vezes
tornam o dito campo complexo, por vezes obscurece-o.
50 BAUD, Patrick. Contribution à l’histoire du concept de schizophrenie. Tese de
doutoramento. Université de Genève, Faculté de Médicine, 2003, p. 66.
51 “A complexificação do domínio da neuroquímica não decorre apenas do número
crescente de diferentes substâncias [monoaminérgicos, aminoácidos ou neuropeptídeos],
pertencentes sobretudo às duas ultimas classes, reconhecidas como envolvidas com a
neurotransmissão central, mas da identificação de subtipos de receptores, pré e pós
sinápticos, com diferentes localizações nas diversas vias cerebrais e podendo
desempenhar papel específico na fisiopatologia das perturbações neuropsiquiátricas,
assim como na ação de psicofármacos”. SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na
natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em Psiquiatria. Belo Horizonte: Te
Corá, 1998, p. 261.
52 No cap. IX, da obra de Garrabé (“La sinápsis y las esquizofrenias”), encontra-se tal
descrição. GARRABÉ, J. Op. cit., pp. 183-204. Também em: SERPA JUNIOR, Octavio
Domont. Mal-estar na natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em
Psiquiatria. Op. cit. p. 239 a 283.
35
por essa via é hoje amplamente difundida e dá lugar a uma indústria poderosa que
marca sua presença, influência e, por que não dizer, interferência nos mais
neurolépticos atípicos, isentos dessas reações, tem havido grande profusão das
frequentemente mencionados.
dividida em dois tipos distintos: a esquizofrenia Tipo I53, e a esquizofrenia Tipo II.54
53No tipo I, predominam os sintomas positivos (ligados aos sintomas acessórios descritos
por Bleuler: alucinações, delírios etc.). Caracteriza-se “por um início brutal, uma
conservação das funções intelectuais, uma boa resposta aos neurolépticos clássicos, um
aumento provável dos receptores dopaminérgicos D2 (...) e ausência de signos
deficitários”. Cf.: GARRABÉ, J. Op. cit., p.191.
54 No tipo II, predominam os sintomas negativos (ligados aos sintomas fundamentais de
Bleuler: embotamento afetivo, autismo etc.). Caracteriza-se por “um início insidioso,
deterioração intelectual, um alargamento dos ventrículos laterais, uma má resposta aos
neurolépticos clássicos e predomínio de signos deficitários”. Cf.:GARRABÉ, J. Op. cit., p.
192.
55 A ação dos neurolépticos tem se mostrado pouco eficaz na melhoria dos assim
chamados sintomas negativos da esquizofrenia. Seu uso indefinido por longos anos,
prática corrente, trouxe não apenas o perigo da temida discinesia tardia, hoje contornada
pelos neurolépticos atípicos, mas também a penosa impressão de uma droga-adição
assistida.
36
estruturas cerebrais”.56 O fato de Crow ter postulado que o tipo I pode evoluir para
o tipo II, não parece trazer conflito para a diferente patogenia proposta, e faz
“esquizoencefalia”. 58
sua opinião, “nada tem em comum com o que até aqui se entendia por
nos últimos trinta anos, sem o qual os “asilos” não teriam se esvaziado e os
sobre as descobertas dos neurolépticos, Baud afirma: “(...) hoje [2003] a ideia de
Também diz:
que os códigos sejam vários (DSM III, DSM IV, DSM IV-TR, CID 9, CID 10 – e
como a psiquiatria dinâmica, incluídas nas primeiras versões dos manuais (DSM
hoje. Esse afastamento é tido por Serpa Junior66 como reação ao predomínio que
a psicanálise conseguiu ter nos Estados Unidos da América do Norte nos anos
cientificidade dominantes.68
66 SERPA JUNIOR, Octavio Domont Mal-estar na natureza.. Cit. pp. 239 a 241
67 Serpa Junior chama “remedicalização da psiquiatria” ao que ele entende como reação
ao predomínio da psicanálise, devido à maciça migração de psiquiatras psicanalistas
vindos da Europa que fugiam do nazismo e da miséria ocasionada pela guerra. A
pressuposição central dessa orientação é a de que o cérebro é o “órgão da mente”, e sua
estrutura e funções são as únicas bases sólidas para uma psiquiatria que aspire a
chamar-se científica. SERPA JUNIOR, O. D. Mal-estar na natureza. Op. cit. p. 240.
68 Disse a esse respeito Serpa Jr: “Não se trata, neste caso, de oferecer uma descrição
alternativa, mas de prescrever uma forma descritiva que, por pretender-se mais científica,
acredita-se mais próxima da verdade e em condição da avaliar pejorativamente quaisquer
abordagens dos fenômenos mentais não adequadas aos seus cânones, indicando que o
único lugar destinado a estas é o lixo do esquecimento”. SERPA JUNIOR, O. D. Mal-
estar na natureza. Op. cit. p. 239.
40
predomínio, hoje ele parece perdido. Reducionismos dos mais variados estilos
ainda é que, com o correr do tempo, a esquizofrenia não perdeu seu poder
estudam. Velhas metáforas – “orquestra sem diretor”, “livro sem encadernar cujas
logos da linguagem.
CAPÍTULO II
A ESQUIZOFRENIA EM FREUD
clara intenção de incluir seu trabalho no âmbito da cientificidade. Vale lembrar que
dos nomes de J. S Mill – autor que Freud traduzira para o alemão em 1880, como
linguagem” que responde frente à presença de uma lesão como um todo e não de
geral da medicina clínica de seu tempo. A clínica que, segundo Foucault, só surgiu
no final do século XVIII,75 já tinha dado o passo fundamental que permitiu inserir a
que a medicina encontrara nos tecidos seu objeto. A clínica médica subordinou-se,
mentais sem lesão orgânica, nas quais o jovem Freud estava muito interessado.
psiquiatria aos preceitos gerais enunciados por Bichat. Como se viu, a maioria dos
inversas, do anímico sobre o somático. Esse temor, afirma Freud, levou a pensar
77 (...) “sob a influência propícia das ciências naturais, [a medicina] fez seus maiores
progressos (...) desvendou a composição do organismo a partir de unidades
microscopicamente pequenas (as células), aprendeu a compreender física e
quimicamente cada um dos processos (funções) vitais, distinguiu as modificações visáveis
e palpáveis das partes do corpo em consequência dos diferentes processos patológicos, e
descobriu, por outro lado, os indícios pelos quais se revelam os processos patológicos
entranhados a fundo no organismo vivo; desvendou ainda um grande número dos
micróbios patogênicos e, com a ajuda dos conhecimentos recém-adquiridos, reduziu
extraordinariamente os perigos das intervenções cirúrgicas mais graves”. ”Todos esses
progressos e descobertas diziam respeito ao aspecto físico do ser humano, e assim, em
consequência de uma linha de raciocínio incorreta, mas facilmente compreensível, os
médicos passaram a restringir seu interesse ao corporal e de bom grado deixaram aos
filósofos, a quem menosprezavam, a tarefa de se ocuparem do anímico”. FREUD, S.
(1890) Tratamento psíquico (Tratamento da alma). Op. cit., pp. 115 e 116.
78 FREUD, S. (1890) Tratamento psíquico (tratamento da alma). Op. cit., p. 116.
45
abordagem mais antiga empregada pela medicina em toda sua história, afirma
ser escutado por um outro. Esse poder da fala e da escuta derivará mais tarde no
Dessa forma, pode-se dizer que o valor afetivo das palavras e esses
Para o vienense, afetos e palavras são essenciais desde o início até o final
aleatoriedade de seus objetos, as barreiras que se erguem contra seus alvos, vão
somática, ligação psíquica –, o autor pensa os afetos como um dos modos nos
ainda que não se possa criticar o uso linguístico [da expressão afetos
ideias inconscientes”.83
econômicas e dinâmicas.
etiologia de uma forma mais apurada e direta com a elaboração das séries
sexualidade iniciada desde a infância, que recebeu mais importância nos estudos
do autor.
humano como um todo é quem fica doente. Os sintomas são uma formação de
todo. Freud também afirma que entre doença e saúde existem apenas diferenças
produção.
circunda e com as representações libidinais que dele faz. Tal ruptura o leva a uma
2. Psicanálise e psiquiatria
pensamento, das ideias, opõe-se o peso das alterações causadas pelos afetos e
pelo conflito psíquico. Essa será a primeira óptica com a qual Freud abordará a
perturbação criada pela significação afetiva das ideias foi a particularidade que
mais atraiu a atenção dos psiquiatras de Burghölzli. Bleuler incorpora essa visão
produção.89
psíquico o ponto axial que marcou a diferença com a psiquiatria. Ali onde os
aliás, foi o ponto central de ruptura. Mesmo assim, Freud manteve diálogo com a
psiquiatria da sua época, à qual mais influenciou do que por ela foi influenciado, e
outras, não tão comuns, como a amentia de Meynert, que destacou pelas
conceitual. Como simples exemplo dessa pouca precisão, lembre-se que em seus
redefinidas nem discutidas por ele. Não há na obra de Freud uma definição
aventura no terreno dos fenômenos psicóticos, ela é intrusa que questiona, critica
90Amência ou confusão alucinatória define-se bem no exemplo clássico citado por Freud:
a mãe que perdeu seu filho embala um objeto substituto do filho morto como se ele
estivesse ainda vivo.
53
hipóteses, não quer dizer que sua aspiração também o fosse. Como já apontado,
com o passar dos anos Freud produziu uma nosografia que lhe é própria, ligada a
da psicose, foi sendo gestado durante o período de maior contato com a clínica
atenção por parte de Freud e, nos artigos escritos nessa época, encontra-se uma
3. Freud e Burghölzli
estritamente psiquiátrico? Será por isso que foi tão importante para ele o apoio de
Burghölzli? Em relação a isso, vale a pena lembrar que o lema Fluctuat nec
91FREUD, S. (1914) Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. In: AE, vol.
XIV, 1979, p. 27.
92 Flutua [com as ondas) mas não afunda.
55
temor de não ter seguido o caminho correto. Exemplo disso encontra-se na carta
de sua concepção e deixa muito claro ser ele quem influenciou Jung, e não o
(...) eu ainda visava a uma teoria da libido nas neuroses que iria
explicar todos os fenômenos neuróticos e psicóticos como procedentes de
vicissitudes anormais da libido, isto é, como desvios do seu emprego
normal.95
melhor, com a falta dele. É certo que Freud nunca renunciara à libido como fator
Um dos eixos das diferenças entre Freud e Jung gira em torno da questão
psicóticos são os temas centrais da disputa. É sabido que Jung assimila a libido
narcisismo é uma fase da libido, sustenta com isso que a perda da realidade
hipótese, pois, para ele, a psicose é a expressão de uma simbólica arcaica que
97 FREUD, S. ¡1914) Introducción al Narcisismo. In: AE, 1976, vol. XIV p. 72.
98Termo emprestado de Kraepelin. Mesmo que essa nomenclatura não prospere em sua
obra, é curiosa a insistência de Freud na busca de algum termo que englobe as doenças
mentais, em especial esquizofrenia e paranóia. Podemos perguntar-nos hoje sobre a
conveniência dessa junção, assim como sobre a pertinência do conceito de narcisismo
para dar conta de todos os fenômenos psicóticos.
58
nada tem de sexual. O mito é, para Jung, o elemento “interpretante” que carrega
da teoria da libido por Jung] que me vi obrigado a entrar nessa última discussão,
de Freud. Isso irritou e deixou furioso o mestre. Freud afirma: “Ferenczi, numa
impressões e de crenças.103
99 FREUD, S. e JUNG C. Carta 261. In: Correspondência completa. Op. cit., p. 438.
100 FREUD, S. (1914) Introducción al Narcisismo. Op. cit., p. 77.
101Incluído com outro título em: JUNG, C. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes,
1999.
102 FREUD, S. (1914) Introducción al narcisismo. Op. cit., p. 72.
103FERENCZI, S. Crítica de “Metamorfoses e símbolos da libido”, de Jung. In: Obras
completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, vol. II.
59
bases que possibilitarão uma análise dos sintomas da loucura. Suas reflexões
minuciosamente descrito por Freud. O fato de nele o autor ter procurado aplicar o
percebidas. Tanto é assim que, nesse texto, a “projeção” é invocada para elucidar
primeiras aproximações.
Dentre o grupo das psicoses, a paranoia foi o primeiro quadro abordado por
106 FREUD, S. (1896) Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa (1896)
In: AE, vol. III.
107 FREUD, S. (1895) Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Manuscrito H.(1895)
In: AE, vol. I, p. 249.
61
modelo.
das imagens do sonho, que ele propõe interpretar como “realização alucinada de
energia ligada – esses são os termos empregados no texto, que formam, por
assim dizer, o reticulado conceitual que sustenta a teoria dos sonhos e a divisão
segundo.
desse conceito – que preferi pôr no plural para melhor refletir a diversidade de
seus usos e sentidos – está ligado aos fenômenos psicóticos. Ora, é a regressão
objeto, que vai ser pensada como a responsável pelo afastamento do mundo.
“autismo”.
palavras são tão estranhas à natureza do sonho que o relato falado sobre ele
As alterações da linguagem
esquizofrenia:
109 FREUD, S. (1900) La interpretación de los sueños. In: AE, vol. IV, p. 319.
64
de 1891 sem que a ela Freud faça menção expressa em O inconsciente. O fato é
função da fala e garantem que eventuais falhas possam ser compensadas pela
seguindo a teoria dos nomes de Mill, que vai ser pensado o surgimento da
A problemática aqui exposta foi a que deu inicio à presente pesquisa. Pela
115MILL, John Stuart . Um exame da filosofia de Sir William Hamilton. In: Os Pensadores:
Stuart Mill e Bentham . São Paulo: Abril Cultural, 1984.
116 ASSOUN, Paul-Laurent. Metapsicologia freudiana. Op. cit., p. 83.
117GIANNOTTI, A. John Stuart Mill: O psicologismo e a fundamentação da lógica.(tese de
doutoramento) In: Boletim n°269. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, 1964, p. 109.
68
a teoria dos nomes de Mill está presente nas obras iniciais de Freud, pelo menos
tomando-o como objeto da pulsão e assim, rompe a ligação libidinal com o mundo
118FREUD, S. (1915) Lo inconciente. Op. cit., p. 193. Apesar da clara afirmação, desde o
Projeto, de um desamparo radical do ser humano e da necessidade de um auxílio alheio
para produzir a ação específica (presença obrigatória do outro para a vida e o psiquismo),
a frase “primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto” possui um ranço de
anobjetalidade que paira na obra de Freud tanto em relação ao autoerotismo como ao
narcisismo. Retomaremos depois essa questão.
69
transferindo seus investimentos entre si. Fica anulada sua conexão com o
fato, Freud vê-se obrigado a afirmar que as representações de palavra dos objetos
Em segundo lugar, Freud ratifica, tanto para neuroses como para psicoses,
assim explicado:
coisa, no lugar da coisa, e, nesse sentido, a linguagem, separada das coisas, fica
privada da ancoragem que torna possível articular abstrato e concreto. Por isso
Freud afirma:
Vários são os planos que Freud pretende articular em torno das palavras e
das coisas. Por um lado, coisa é referente da palavra, o que liga linguagem e
Sonho e esquizofrenia
se do mundo e cessa seu interesse para com ele, processo normal, não
Embora uma vez mais Freud se desculpe por não possuir uma casuística
palavra.
A linguagem de órgão
qualquer parte do corpo ser objeto do investimento libidinal faz parte da extensão
tomara de Busch, “na estrita cavidade do seu dente encerra-se sua alma toda”,
Freud pretendeu expressar quanto uma doença do corpo pode atrair para si todo o
Jauregg, considerada uma das melhores de Viena,132 fato que Freud deve ter
órgão na esquizofrenia:
131 Victor Tausk foi um dos discípulos pioneiros de Freud. Frequentador do grupo das
quartas feiras, participou ativamente do movimento psicanalítico de 1908 a 1919, ano no
qual cometeu suicídio. Nascido em Zsilina, na Eslováquia, estudou primeiramente Direito
para depois, em Viena, fazer formação médica com o objetivo específico de tornar-se
psicanalista. Seu suicídio, cuidadosamente planejado de maneira a tornar infalível sua
morte, foi rodeado de circunstâncias abafadas durante muito tempo da memória da
psicanálise. Esse fato deu lugar a análises e especulações, algumas das quais foram
recolhidas por Joel Birman (BIRMAN, J. Memória, silêncio e esquecimento. Sobre Tausk e
a história da psicanálise. In: Tausk e o aparelho de influência na psicose. São Paulo:
Escuta, 1990) num artigo incluído no livro que apresenta a tradução ao português da sua
obra mais importante: Da gênese do “aparelho de influenciar” na esquizofrenia (TAUSK, V.
Da gênese do “aparelho de influenciar” na esquizofrenia. In: Tausk e o aparelho de
influência na psicose. São Paulo: Escuta, 1990).
132 BIRMAN, J. Memória, silêncio e esquecimento. Sobre Tausk e a história da psicanálise.
In: Tausk e o aparelho de influencia na psicose. Op. cit., p. 20.
133Freud reconheceu a originalidade e ousadia do pensamento de Tausk, mas também,
considerou sua pessoa uma “ameaça para o futuro”, o que ficou registrado em carta a Lou
Andreas-Salomé (ROUDINESCO E PLON. Verbete Tausk. Dicionário de psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 748).
79
que para a compreensão dele são essenciais a literalidade das palavras e sua
paciente esclarecer sua queixa: seu namorado é um “torcedor de olhos”, “ele lhe
torceu os olhos”, “ela vê o mundo agora com outros olhos”. Ele apresenta-se de
Disse Freud:
são os protagonistas.
tortos”, uma histérica faria uma conversão, torceria os olhos como símbolo,
136Tal como Freud definirá a identificação primária em 1921, no capítulo VII de Psicologia
do grupo e análise do ego.
137O conceito de narcisismo freudiano é dividido por Tausk em dois estágios: o primeiro é
denominado estádio de “narcisismo inato”, ao qual opõe um segundo, chamado
“narcisismo adquirido”. O narcisismo inato é caracterizado por um estado de “pura
satisfação consigo mesmo”, período no qual “não há objeto do mundo exterior (...) não
existe ego nem consciência do sujeito” (TAUSK, V. Da gênese do “aparelho de influenciar”
na esquizofrenia. In: Tausk e o aparelho de influencia na psicose. Op. cit. p. 56). Trata-se
de uma anobjetalidade radical onde as estimulações sensoriais são vistas como
“endógenas e imanentes”, sem “distância espacial e temporal entre objeto estimulante e
sensação percebida” (idem p. 57). Não há corpo; o próprio corpo “ainda é considerado
como mundo exterior” e precisa ser descoberto como objeto. Como resultado de uma
primeira projeção encontram-se o corpo e os órgãos, sem serem eles ainda
“representações do corpo”, como será depois no narcisismo adquirido, no qual a presença
do eu e da representação do corpo permitem nova reorganização.
81
que permite entender a ruptura tanto com a lógica do organismo como com a da
linguagem.
Projeto, permite constatar quão forte foi a atração de Freud pelos modelos
palavras, o sujeito tenta reinvestir o mundo perdido pela regressão narcisista; elas,
porém, estão muito ligadas ao corporal, perdem sua ligação com o processo
Questionamentos
diretas da memória da coisa”, ou, “pelo menos de traços mnêmicos mais remotos
empenha-se em pensar a linguagem como uma produção tardia, algo que chega
esteja primeiro no outro, e não no infans, não quer dizer que ela não participe de
como imagens do mesmo livro, é necessário algo mais que o olho aberto do
outro para o qual o livro já está incluído no sentido, e por isso o apresenta, dá-lo a
ver. A memória, direta ou remota, também não é “a coisa”; ela supõe um trabalho
que muitas vezes nos engana. Contudo, o maior problema da representação coisa
inimaginável”. Assim:
A linguagem não nos diz o que se passa alhures; não desvenda uma
verdade ocultada alhures; nomeando o desejo, dá-lhe uma existência que,
se recebe suas virtualidades energéticas de outra parte, ainda além da
84
contribuição feita por Freud aos enigmas da psicose. Nesse sentido, é possível
já eram famosas quando, em 1910, Freud escreve suas Notas,143 pouco antes da
sem dúvida foi o trabalho de Freud quem imortalizou Schreber e suas memórias.
O texto de Freud sobre Schreber promoveu, por sua vez, uma série de pesquisas
141 VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta, 1990, pp. 60 e
61.
142SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
143 FREUD, S. (1911) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia
(Dementia paranoides). In: AE, vol. XII, 1980.
85
que poderia constituir em si mesmo uma tese.144 Além disso, o texto sobre
crônico é muito ampla e inclui formas fantásticas que parecem melhor ajustar-se
constante na sua obra, Freud não parece, porém, muito preocupado com a
Homossexualidade e paranoia
dos pontos obscuros diz respeito ao termo homossexualidade. Como tantos outros
comumente se pensa hoje como “opção sexual”. Vou tentar esquematizar algumas
87
momento.147
primeiras determinações. Com efeito, Freud retém e faz sua a ideia de uma
um pouco antes do caso Schreber, depois de afirmar que a punição com ratos
incitara o erotismo anal, Freud aponta o simbolismo do rato como pênis, bem
paciente quando criança. O prazer anal descrito está longe de significar escolha
tribulações da relação passiva frente ao pai. Quando se fala de erotismo anal, fala-
que lhe é alheia. A essência do que foi denominado “fase anal” poderia resumir-se
perpétua ambivalência.
de uma horda primitiva dominada por um pai despótico, dono e senhor de todas as
149 FREUD, S. (1913) Tótem y tabú. In: AE, 1976, vol. XIII, p. 144.
90
longo nesse estado e que muitas de suas características são por elas
transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento.
Ainda acrescenta:
analisa uma lembrança infantil de Leonardo – texto escrito um ano antes do caso
Schreber – que a ligam à identificação com a mãe. Não cabe aqui aprofundar-se
Édipo serão o caminho privilegiado nas análises posteriores no que diz respeito à
erotomaníaco, “eu não o amo, eu a amo, porque ela me ama”; no de ciúmes, “não
sou eu quem ama o homem, ela o ama”; no de grandeza, “eu não amo ninguém
papel fundamental.
externas”,152 isto é, projetadas. Também dirá: “Foi incorreto dizer que a sensação
melhor que aquilo que foi internamente cancelado (Aufgehobene) retorna desde
fora”.153
catástrofe mundial (fim de mundo), da ideia delirante de ele ser o único homem
real que restaria, Freud vai formular a hipótese central de sua concepção da
psicose:
precoce” como “esquizofrenia”, termo que não prosperou, Freud afirma que a
autoerotismo infantil, o que faz com que a corrente homossexual, por ser mais
O mesmo poderia ser dito sobre os artigos escritos em 1908 por Abraham,156
ambos publicados antes de Freud ter introduzido o termo narcisismo, nos quais
da dispersão autoerótica parece mais ajustado que o do narcisismo para dar conta
dos traços essenciais dessa complexa afecção. Não se pode esquecer que Freud
seguir.
uma verdade a desvendar no interior de uma formulação louca, assim como pode
158 FREUD, S. (1917) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia. Op, cit.
p. 72.
95
loucura, e a paranoia tem muito disso. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que
satisfação e, a partir dela, desejar, foi obrigado a pensar num modo de discriminar
necessária e permitir
êxito. Para que o modo secundário de funcionamento mental aconteça, e para que
que, por sua vez, encontram-se intimamente associadas com as imagens verbais
esforço.
metapsicologia, mesmo que não nomeada como tal, os neurônios são deixados de
pensamento,
correta leitura da realidade como a importância do mundo externo. Por isso afirma:
Isso significa que o comando final do processo está nas mãos da obtenção
pelo julgamento (ou veredito) imparcial, questão que, com raízes no Projeto, Freud
conceituais.
procurar o útil para assim evitar danos. Esse interjogo de eus é mais bem
não se pode fugir; surge então um primeiro eu: o eu de realidade inicial. Postula-
eu oferece-se como fonte de prazer dando lugar ao eu prazer. Esse eu prazer traz
166 FREUD, S. (1915) Pulsiones y destinos de pulsión. In: AE, vol. XIV.
167 FREUD, S. (1925) La negación. In: AE, vol. XIX.
101
último, a esse eu realidade definitivo cabe uma tarefa altamente complexa, crucial
conseguida; tampouco informa os caminhos que devem ser percorridos para que a
realidade se instale como exame feito pelo eu. Fica claro o destino final – o eu
Acrescentará também:
realidade fica indeterminado, porém, bem como os caminhos para chegar a ela;
Realidade e Verleugnung
efeito, por tratar-se de uma negativa de admitir uma perda – o exemplo clássico é
a mãe que embala um objeto substituto do filho morto, como se ele estivesse
quase direta. Contudo, o que acontecera com a realidade não era tão fácil de ser
para concretizar essa tarefa; tanto é assim que o eixo na elucidação da paranoia é
uma ruptura entre o eu e um dos seus órgãos — talvez o que tivesse sido o
seu servidor mais fiel e estivesse mais intimamente vinculado a ele. O que
na amência é realizado por esse “recalque”, nos sonhos é realizado pela
renúncia voluntária. O estado de sono não deseja conhecer coisa alguma
do mundo externo; não se interessa pela realidade, ou só se interessa à
medida que o abandono do estado de sono — o despertar — acha-se em
causa.169
entre aspas, evidenciando com isso pelo menos a existência de uma peculiaridade
original alemão, parece mais adequado para pensar o desafio criado para a
final da obra será mais ligado à castração, à perversão fetichista e à cisão do eu,
neuroses. No entanto, sabemos que, se esse foi seu objetivo, não se cumpriu.
Freud. Essa afirmação, contrária à leitura que Lacan fizera de Freud, é hoje mais
(...) renegação (Verleugnung) processo que parece não ser nem raro
nem muito perigoso na vida psíquica da criança, mas que, no adulto, seria o
ponto de partida para uma psicose.174
171SIMANKE, R. A formação da teoria freudiana das psicoses. Rio de Janeiro: Editora 34,
1994, p. 229.
172 FREUD, S. ( 1923) La organización sexual infantil. In: AE, vol. XIX, p. 147.
173 FREUD, S. (1925) Algunas consecuencias psíquicas de las diferencias sexuales
anatómicas. In: AE, Vol XIX.
174 FREUD, S. Algunas consecuencias... Op. cit. p. 271, 272.
106
realmente ausente”.175
nessas ocasiões; ele é capaz de clivar (Spaltung). 176 Mais uma vez, a instância
o eu e o mundo externo”178.
renega a realidade, limita-se a não querer saber nada dela; a psicose a renega e
realidade, mas no limite de seu campo, de sua “reserva”. Pode-se então afirmar:
não é menos importante que a material, mas não se confunde com ela. A realidade
Vocabulário da Psicanálise.180
realiza. Será algo realizável? A materialidade do mundo não está constituída nas
Verdrängung e Verneinung
180 “Na expressão prova de realidade ainda parecem estar confundidas duas funções
bastante diferentes; uma, fundamental, que consistiria em diferenciar o que é
simplesmente representado do que é percebido (...) e outra, que consistiria em comparar
o objetivamente percebido com o representado, de forma a retificar as eventuais
deformações deste. O próprio Freud incluiu essas duas funções no mesmo capítulo de
prova de realidade”. LAPLANCHE E PONTALIS, Verbete: Prova de realidade, In:
Vocabulário de psicanálise. Lisboa: Morais, 1979, pp. 490 a 494.
109
capítulo.
bom ou como ruim, Freud recorre à “linguagem” da pulsão oral: engolir é aceitar;
cuspir é rejeitar. Engolir faz par com “pôr para dentro do eu”, com interior e com
subjetivo; cuspir, com “pôr para fora”, com exterior e com objetivo. Combinando
181 De pouco mais de quatro páginas, A negação, de 1925 (In: AE, vol. XIX) ocupa um
lugar de destaque na obra de Freud, devido em parte ao fato de ter servido de apoio para
desenvolvimentos teóricos posteriores a ele. Melanie Klein soube explorar bem alguns
conceitos dessa obra para a construção da objetologia bom/mau, o conceito de mundo
interno/externo e a projeção/introjeção como mecanismos estruturantes do psiquismo.
Lacan apoiou-se na partícula “não” para definir afirmação e negação como operações
centrais na fundação da linguagem.
182 FREUD, S. (1925) La negación. Op. cit. p. 254.
110
e são repetições delas”.183 O “eu prazer” introjeta o bom e projeta para fora o ruim.
A realidade, para esse eu, coincide com o desprazer, pois “aquilo que é mau, que
é estranho ao eu, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos”. O “eu
é apenas interno; o que é real está também lá fora”. A tarefa principal da prova de
comporta uma confusão imanente que pode levar a “tomar realidade por aquilo
que vem a pôr à prova, medir, avaliar o grau de realismo dos desejos e das
Questionamentos
afirmar como negar. O eu, presente desde o Projeto, é, em 1914, elevado a objeto
mas não se identifica inteiramente com nenhum deles. Com a mudança de tópica
Como isso se realiza, porém? Em que consiste esse exame? O que se entende
112
por realidade? Essas perguntas ficam sem resposta. Tudo transcorre como se o
um papel fundamental 186. Melhor definida está a realidade psíquica; contudo, ela
psicose, por outro com a perversão fetichista, é mantida até o final da obra de
cuidado com as estruturas parece não ocupar lugar central nas preocupações do
vai ser fartamente empregado como recurso defensivo geral, sendo grande sua
psíquico.
definido, cabe acrescentar-se que, quando fracassa, ele é bem mais especificado
por Freud do que quando cumpre sua tarefa com sucesso. Uma vez mais se
artigo foi dedicado com exclusividade a ela, como foi o caso da melancolia ou da
afirmar que, apesar de a esquizofrenia não ser um assunto central na sua obra,
Freud não se furtou de emitir opiniões precisas, nem de delinear caminhos que
embora tenha dedicado artigos específicos às três últimas. Ao longo deste capítulo
“doenças da alma”; o que mais lhe interessou a respeito delas foi o descobrimento
afetos. Esse ponto de vista marcou uma das fronteiras com a psiquiatria,
foram confundidas. Uma vez introduzido por Bleuler o “grupo das esquizofrenias”,
centro das causas patogênicas, aliás, como foi feito para o conjunto dos quadros
mais resistiu.
anobjetalidade.
ser humano e sua dependência do “auxílio externo”. Esse ponto de vista nunca foi
que Freud pensou o narcisismo, para todos os casos de psicose, como uma
algumas características que Freud não deixou de assinalar. Essa adequação está
no autoerotismo.
foram objeto de um estudo cuidadoso por parte de Freud. Como já foi dito, a
operada na fase mais doentia da esquizofrenia, após a qual sucede uma tentativa
192 FREUD, S. Complemento metapsicológico a la teoría de los sueños. Op. cit., p. 233.
119
percepção cumpre um papel central. Mesmo assim, como Joel Birman afirma193, o
coisa, e o fato de o conceito ter sido abandonado por Freud no final da sua
obra.194
a ver com o exame ou teste de realidade. Talvez seja esse o ponto mais débil de
por momentos ser algo que dispensa definição; outras, algo que se resolve na
pelo narcisismo, ou pela projeção, ou por todos de uma vez. Como afirmou A.
nosso inconsciente.195
função foi ocupado pela Verleugnung; mesmo assim, porém, no final da obra, ela
eu com o supereu, tendência que será seguida pela maioria dos psicanalistas.
Freud, a linguística, sem duvida, não foi sua ciência favorita; 196 ele se encantou
mais pela arqueologia, pelo arcaico, pelo que emerge das profundezas da alma.
Talvez por isso a filologia, o sentido arcaico das palavras, tenha tanta presença na
sua obra. O autor também foi muito atraído pela biologia, pelos modelos de
uma atenção especial, muitas vezes em ligação com a lógica; esse foi o caso do
Não foi esse o caminho seguido por Freud, porém. Cuspir e engolir foram
CAPÍTULO III
WOLFSON e as línguas
1. Introdução
americano de Nova Iorque, Louis Wolfson, que, em finais dos anos 1960, escreve,
197WOLFSON, Louis. Le Schizo et les langues. Paris: Gallimard, 1970. (As citações em
português são traduções livres a partir do original francês)
198 DELEUZE, G. Louis Wolfson ou o procedimento. In: Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34, 2008.
199
AULAGNIER, P. O sentido perdido ou o “esquizo” e a significação. In: Um intérprete em
busca de sentido II. São Paulo: Escuta, 1990.
200FOUCAULT, M. Sete proposições sobre o sétimo anjo. In: Ditos e escritos. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, vol. III.
123
provisória que pesava sobre Schreber, o livro de Wolfson não tem objetivo
descrição de uma práxis? Seja de que gênero for, a obra nos toca, e sua leitura é
despeito de sequer conseguir nomear-se diretamente como eu, realiza uma tarefa
201 SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Op. cit.
124
cada um quase duas boas horas”,202 e vários tratamentos aplicados sem muita
uma prótese de vidro, que para seu conforto retirava durante a noite. Seu pai,
sua mãe poucos anos. O casal separou-se quando “o esquizofrênico” tinha quatro
ou cinco anos. Um dos motivos da separação foi o pai ter-se sentido enganado: “a
Pelo acordo de divórcio, o pai tinha o direito de passar umas horas com “o
rapaz”, aos sábados, e a obrigação de pagar uma pensão até que completasse a
empreendidas pela mãe é salientado pelo “esquizo”, que também destaca que o
encontros entre pai e filho são descritos pelo jovem como burocráticos e
monótonos. O pai sempre evitava fazer gastos, e sua figura é pensada como a de
velho para quem também ocultara seu problema. Ele fugiu tempos depois levando
uma valiosa joia. Após a denúncia do roubo, foi preso num aeroporto e
extraditado. Pelo fato de a denunciante ser a própria esposa, ela obteve grande
poder sobre seu segundo marido, que lhe implorava sua clemência “lhe
línguas”. Ele sempre pensou que sua mãe usava a deficiência para desculpar a
psiquiátrico à sua revelia”, sempre justificando sua atitude pelo próprio bem “do
jovem” e pelo amor e interesse que sentia por ele. Outras das “habilidades”
filho.
acrescenta a elas uma semita, o iídiche, e outra eslava, o russo. O interesse pelo
estudo das línguas é avassalador e tem objetivo explícito: não escutar mais sua
língua materna, o inglês. Como não seria possível eliminar completamente de seu
série de outros, tais como tampar os ouvidos com os dedos, direcionar o olhar
York, emitidas em línguas estranhas, como modo de bloqueio do som casual etc.
procedimento.
palavra original; para isso, o conjunto das línguas em estudo poderia trazer
equivalências sílaba por sílaba, fonema por fonema, dando lugar, assim, à criação
estudadas. Where? (com pronúncia de ueer) – palavra muito usada por sua mãe
caso de Where, quase sete; para a frase Don’t trip over the wire, Deleuze conta
em torno de quarenta.
inglesa um fenômeno tão perturbador. A fala produz a vibração das cordas vogais
da mãe; a vibração das cordas faz trepidar o ar; o ar entra pelos ouvidos e atinge
itens de suas compras para só depois arrumá-las nas prateleiras. Essa atividade
nas diferentes línguas que maneja, a formulação passa a ser então privilegiada,
para lidar com os alimentos são muitas. Um produto qualquer, como “batatas
linguísticos. A mãe aparece sempre como pano de fundo de sua atitude alimentar.
Ela é vista querendo enfiar “sua” comida, preocupada, como diz estar, com a falta,
3. Considerações
“Exmatriar” a língua
que, em várias perspectivas teóricas, são apontadas como um dos eixos centrais
centralidade que a questão da linguagem possui no seu caso, foi um dos motivos
de tê-lo incluído no presente trabalho. Como bem disse Freud, muito do que na
130
atribuída à língua inglesa que tem na figura de sua mãe o principal operador. É por
longos tratamentos por ele realizados, a psicanálise possa ter-se infiltrado na frágil
por ele feita esteja contaminada por uma visão enxertada, mais do que vivenciada
– mas não há, porém, como dirimir essa questão. O fato é que, no texto de
Wolfson, a língua materna, combatida com tanto esforço e afinco, deve ser
Wolfson procura safar-se desse domínio avassalador que ameaça sua existência.
Por meio dele, a língua da mãe é revirada, como se reviram os dedos de uma luva
131
para expressar o que acontece a Wolfson com o Inglês. Com efeito, costuma-se
pensar “língua materna” como a língua falada na infância – ou pela mãe ou pelos
mãe.
assassinada pela mãe –, ela foi descrita por Freud no texto Sobre a sexualidade
207 FOUCAULT, M. Sete proposições sobre o sétimo anjo. Op. cit. p. 307.
208 “Encontramos os desejos orais agressivos e sádicos da menina sob uma forma a eles
forçada pela repressão precoce, como angústia de ser assassinada pela mãe, temor que,
por sua vez, justifica seu desejo de morte contra a mãe, se este se torna consciente”.
FREUD, S. (1931) Sobre la sexualidad femenina. In: AE, vol. XXI, p. 239.
209 “(Até aqui, foi apenas em homens que encontrei o temor de ser comido. Esse medo se
refere ao pai, mas provavelmente constitui o produto de uma transformação da
agressividade oral dirigida para a mãe. A criança deseja comer a mãe, de quem recebe
seu alimento; no caso do pai, não existe um determinante assim tão óbvio para o desejo.)”
FREUD, S. (1931) Sobre la sexualidad femenina. Op. cit. p. 239. Entre parêntesis no
original.
132
lugar ocupado pela mãe em relação ao infans pode comportar uma violência
materna se joga no corpo, numa junção, num corpo a corpo que, potencialmente,
vê-lo como estrangeiro. Para Hassoun, a simpatia define a relação com a mãe,
entendendo-se por simpatia a definição dada por Littré: “relação existente entre
dois ou múltiplos órgãos mais ou menos afastados um do outro e que faz que um
deles participe das sensações percebidas ou das ações executadas pelo outro”.212
A língua materna seria a língua ligada à simpatia, à fusão dos corpos; um corpo a
língua materna é também lugar de gozo, um gozo difícil até de imaginar. Desse
210 HASSOUN, J. L’exil de la langue: fragments de la langue maternelle. Paris: Point Hors
ligne, 1993.
211 “Podemos postular que se o sujeito realiza sua existência em torno de uma separação
d’ Ela [da mãe], essa operação deve ser diferenciada da morte do pai; essa separação d’
Ela, a morte da mãe jamais completamente consumada, mas que não deixa de ser-lo,
tende a sustentar toda forma de engano, constitutivo da paixão ou da crença mística na
divindade.” HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51.
212 HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51
133
fusão e do gozo que impede a existência separada. Não há exílio, não há uma
O procedimento
213 HASSOUN, J. L’exil de la langue. Op. cit. p. 51. (Tradução livre do original Francês.)
134
mais ligada ao segundo tempo proposto por Freud. Entretanto, o que a leitura de
adotando a grafia de Hassoun 214 –, não lhe era possível. Estrangeirar a língua
aparece então como uma alternativa. Poder-se-ia ver nisso a procura de autocura,
absurdo, coincide, ao mesmo tempo, com a única forma possível de conexão com
o outro e com a vida. Esse fato deveria ser cuidadosamente investigado quando
querelante que escreveu, por anos, longas e loucas cartas aos órgãos públicos
essa atividade era o seu tema, a única “razão” (ou desrazão) de sua existência, o
magistralmente retratado no filme que leva seu nome, é outro bom exemplo disso.
linguagem, ele não se entrega a ela nem a seu gozo; ele combate. É a partir
dessa luta que surge a possibilidade de manter-se longe dos hospícios e até de
ceticismo abre espaço à esperança – esperança de algum dia poder voltar a usar,
resistência e no combate; contudo, tal resistência só vale para ele; não é padrão a
ser seguido, não é caminho que deva ou possa ser trilhado por nenhum outro.216
obediência cega e submissão completa. Veremos algo dessa ordem nos casos de
Mané e de Edgar.
A apropriação da língua
nem por isso, porém, deixou de continuar a ser “o esquizo”. Os múltiplos nomes
mundo, mas não conseguem situá-lo como sujeito ativo, como agente concreto de
pensamentos ou de ações.
primeiros livros, Infância e história,217 utiliza-as para forjar seu conceito de história.
215 Em relação ao “famoso” idioma inglês, uma curiosa coincidência, se é que podemos
chamá-la assim: o Inglês, na cultura da qual fazemos parte, foi progressivamente
adquirindo força, peso e poder, infiltrando-se no tecido social, fazendo-se presente nas
vitrines, invadindo as subjetividades, impondo-se como a língua do poder em escala
planetária. A loucura de Wolfson não teria também a ver com isso? Sua obsedante defesa
das outras línguas, as estrangeiras, os recursos por ele empregados para obstruir o Inglês
sintonizando rádios das comunidades étnicas minoritárias de Nova Iorque não teriam
nada a ver com isso? Há sempre um fundo de verdade na loucura, porém pouco sabemos
dela.
216 A singularidade é uma das características essenciais da psicose; os caminhos
percorridos e as “soluções” encontradas são sempre únicas e próprias.
217 AGAMBEN, G. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
136
Nesse livro, propõe pensar o que significa o enunciado “existe linguagem” e o que
significa “eu falo”. Sua indagação assinala uma duplicidade, marca uma dicotomia:
uma comunidade; “eu falo” direciona-se para fala, discurso, expressão individual,
Como fora descrito por Bleuler, uma das características da fala dos
da língua, ou seja, à assunção subjetiva da língua numa fala, num discurso. Não
impossibilidade.
chega a nós tardiamente, tal como pensa Freud; se existe infância – no sentido
220 “E é sobre essa diferença, sobre essa descontinuidade que encontra o seu
fundamento a historicidade do ser humano. Somente porque existe uma infância do
homem, somente porque a linguagem não se identifica com o homem e há uma diferença
entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isso o homem é um ser
histórico”. AGAMBEN, G. Infância e história. Op. cit. p. 64.
138
processos que se opõem a isso? o que faria possível perder a inserção subjetiva
caso, apareceu em destaque a figura da mãe. Para Wolfson, a língua inglesa foi
linguagem foi sentida como uma propriedade d’ Ela; em Wolfson parece não ter se
ele; nenhum sujeito capaz de assumir-se no discurso como eu. Seu pai, visto
desastrado ladrão que, depois de fugir, ser preso e deportado, voltou implorando
clemência, “prometendo não importa quase o quê”, para não ser punido pelo furto.
Ambas as figuras paternas são vistas como personagens fracas, fugitivas, sem
De coisas e palavras
Não se pode dizer que Wolfson ficou com as palavras no lugar das coisas,
ou que as palavras nele perderam sua relação com o mundo das coisas. Tanto
tipos de atos compulsivos. Wolfson precisa, assim como faz com as palavras
inglesas, remanejar as provisões trazidas do mercado por sua mãe. Para além de
dessa maneira podem ser ingeridos. Assim como a linguagem, o mundo das
Deleuze,224 Foucault afirmou que o título do seu livro deve ser entendido
(...) a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. (...) por
mais que se diga o que se viu, o visto não reside jamais no que se diz, e
por mais que se queira fazer ver, por meio de imagens, de metáforas, de
comparações, o que se está dizendo, o lugar em que elas resplandecem
não é o que se descortina à visão e sim o que define as sucessões da
sintaxe. 225
análise feita por Foucault das heterotopias: 226 formas de expressão literária nas
juntas. Esse fechamento da linguagem sobre si mesma tem a ver com outra
na modernidade perde a relação com as coisas que lhe era garantida pela
um ser que lhe é próprio. Os homens podem até utilizar-se dela, expressar seu
pensamento em palavras, mas eles não são mais os donos delas; escapam-lhes
palavras que tornam possível o conhecimento. Mas o que se descobre com elas é
encontra outras nas ações dos falantes. Fala-se porque se atua. A linguagem
espírito do povo que a fez nascer e pode reconhecer-se nela. O homem encontra
o anima.
ocupa o espaço todo, não deixando lugar algum à liberdade. O sujeito sente-se
228O homem, tal como o conhecemos hoje, é uma construção moderna, afirma Foucault.
“O que fala numa língua e não cessa de falar num murmúrio que não se entende, mas do
qual provém todo seu fulgor, é o povo”. FOUCAULT, M. Op. cit., p. 284.
143
se nele. Em alguns casos, esse temor de perder-se no fluxo das palavras faz
invertida: a palavra é alicerce para a ligação com a coisa. De fato, sua visão
coisa fica patente quando afirma: “A palha da palavra só aparece à medida que
separemos dela o grão das coisas, e é primeiro essa palha que levou a esse
229 LACAN, J. Seminario 7: La ética del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1988, p. 59.
230 LACAN, J. Seminario 7: La ética del psicoanálisis. Op.cit., p. 59.
144
lendários seminários ao tema da coisa, Das Ding, como é o caso do Seminário VII,
A ética da psicanálise, no qual propõe diferenciar Sache de Ding, o que lhe serve
de Lacan, “as coisas” estão perdidas para todo ser humano, que as palavras ficam
separadas das coisas pela existência mesma da linguagem e que o problema das
parâmetros.231
Uma das formas pelas quais Lacan pensou a questão da linguagem foi
como dirá no Seminário III, (...) “o Outro é um lugar, o lugar onde se constitui a
Outro, tal como foi definido, parece estar excluído nele; aliás, essa exclusão do
alude a essa ordem anterior e exterior que caracteriza o Outro, para Lacan. Se o
Outro existe para Wolfson, ele está encarnado na figura de sua mãe. Para ele, a
outro nem a expressão da subjetividade; por isso, o sujeito é mais falado do que
234 “Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a
liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo que
chamamos obstáculo à transferência” (...) “A ausência da fala manifesta-se nela [na
loucura] pelas estereotipias de um discurso em que o sujeito, pode-se dizer, é mais falado
do que fala” LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In:
Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 281.
146
linguagem, tal como ela está constituída em nós, não está presente em Wolfson; o
Conheci vários outros Wolfsons, alguns até mais limitados do que ele.
contrário, a brincadeira da sopa de letras: em vez de, a partir das letras, construir
palavras, debulhava letras a partir das palavras. Nesse caso, tratava-se mais da
também de Pedro, menos restrito do que Wolfson, mas também adepto do uso
parecidos com os de Wolfson, como relata Deleuze. Tal é o caso dos escritos de
estrangeirização, estranhamento.
outras palavras sem nada que detenha o discorrer significante. Essa vizinhança,
esquizofrenia como metáfora da modernidade tem sido muito usada como modo
os que não podem ser aproveitados na esquizofrenia. Por mais que uma
Borges, Mallarmé, Artaud, Joyce, Roussel ou Kafka, para citar alguns dos autores
Mas o que separa essas produções de linguagem das nossas não jaz
A linguagem e os outros
armadilha que coloca para o analista”. O fato de ele falar não quer dizer que algo
seja dado a compreender através da fala, e muito menos que esse algo seja
solipsismo.
uma “significação não assumida” (inconsciente talvez?). Desse modo, porém, não
afirma:
238GARRABÉ, Jean. La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia. México:
Fondo de Cultura Económico, 1996.
239 BENEDETTI, G. La mort dans l’âme. Psychoterapie de la schizophrénie: existence et
transfert. Ramonville Saint-Agne: Erès, 1995, p. 20. (A citação em português é uma
tradução livre a partir do original francês)
150
neuróticos.
desafios acima assinalados estiveram presentes nos meus encontros com ele.
questões que mais me marcaram de seu livro é, como já foi formulado páginas
atrás, que a linguagem, o que se diz, esse “murmúrio que não se entende” – mais
do que estrutura –, não domina tudo. O que se vê, o visível, não é o que ancora o
que se diz, pelo menos na modernidade, e também não se confunde com ele.
MANÉ e a língua
1. Apresentação do caso
São Paulo há mais de 8 anos. Quando o convido a entrar na sala onde vou
brincadeiras com bilas – que aqui são chamadas de gude, esclarece –, outras com
palitos e terra, que explica com detalhes, sempre com disposição e bom humor. A
aparelho em cada casa como aqui. A vida era muito dura. Fome não passava,
Seus relatos são tão vívidos e divertidos que, por breves momentos, a
psiquiátrico e que fatos muito graves tinham ocorrido dias atrás. Posteriormente
intimidade de quem me conhecia desde sempre, e nada fazia pensar que minutos
inibição e de pudor.
e, como tantos outros retirantes nordestinos, foi empurrado pela seca, inicialmente
para Araripina e depois para São Paulo, aonde chegou com uma mão atrás e
indústria química na qual permanece até hoje. É o irmão mais velho de uma
extensa prole. Hoje, pode-se dizer que realizou o sonho de todo retirante
boate. Tudo parecia correr satisfatoriamente até que uma das suas namoradinhas
Palavra”.
– Tudo já estava traçado por “Ele”, a gente só cumpre seu destino, não é,
doutor?
sendo uma visita por curiosidade transformou-se aos poucos em um fervor que foi
tomando conta da vida de Mané, que preenchia seu tempo e sua existência.
Nunca mais prostitutas, nunca mais lazer; só rezas e leitura da Bíblia, dos
coisa atrapalhava suas orações. Dispunha-se a ler ou a rezar, mas algo interferia.
Uma força muito intensa queria empurrá-lo para o abismo e impedir sua salvação.
missão.
Sua língua não lhe obedecia. Ela se movia “ao contrário” como se “alguma
Abaixa a vista, e certa tremedeira toma conta de suas pernas. Está nervoso
– Então...?
pegara uma lâmina de barbear e tentara cortar sua língua. Por sorte, não
inicial.
– Quer ver?
missão é essa?
ele “realizasse a profecia”, isso iria beneficiar muita gente. É o próprio Deus quem
Nessa hora, quem ficou perplexo fui eu. Não sei bem como nem por quê,
pus-me a dizer-lhe que eu acreditava que, para ele, tudo que havia me contado
– O que você diria se eu lhe dissesse que a minha missão pode ajudar
Mané ficou um pouco atrapalhado. Havia ali algo de óbvio que eu parecia
não ter captado bem: “a profecia”, “profetizar”, “falando com esse povo”, terminou
por dizer.
– E se eu amanhã falasse espanhol sem ter estudado nada, por obra Dele,
sem ter aprendido, eu não pensaria nada; ficaria muito confuso, morreria de medo,
ficaria morto de medo, porque, se isso fosse possível, muitas das coisas nas quais
apreensivo, receoso, com medo do que eu poderia pensar dele, da sua missão.
Dísse-lhe também que considerava bom ele ter medo das coisas nas quais ele
acreditava, porque, de fato, tinham sido essas coisas nas quais ele acreditava,
156
esses poderes que ele sentia possuir, que o haviam levado a fazer algo muito
perigoso; ele tinha se ferido, cortado sua língua, seu corpo, e isso não era bom
para ele. Mané pareceu concordar; disse-me que agora estava bem, sua ferida
tinha cicatrizado. Contou-me também que seus pais estavam em São Paulo,
sentia-se aliviado e contente por isso. Perguntou-me se eu não queria falar com
eles. Eu disse que voltaria a vê-lo na semana seguinte. Percebi nesse momento
que ele achava que já não estaria lá na semana posterior e que a perspectiva de
uma internação prolongada estava fora dos seus planos. Tive também a
2. Considerações 241
religioso faz de Mané um caso que convida à reflexão. O fato de ser a primeira
pulsão na psicose, bem como situar o lugar das ações nesses quadros. Os limites
241Do mesmo modo que em Wolfson, as diferentes questões que o caso suscitou foram
divididas em alguns temas – da religião ao delírio, as palavras em Mané, a passagem ao
ato etc. – O texto, porém, foi elaborado de modo a poder ser lido seqüencialmente, com
independência da divisão feita.
157
para a clínica.
presentes até do que os próprios pais. De fato, ele pouco falou de sua família, sua
assolam essas regiões. É assim que Mané “aterrissa” em São Paulo, não porque
venha de avião, e sim porque chega à grande cidade sem transições, diretamente
de uma pequena cidade – que nem sequer está no mapa –, o que provoca nele o
mesmo efeito perturbador das primeiras viagens aéreas: em pouco tempo, tudo
Da religião ao delírio
242 FREUD, S. (1927) El porvenir de una ilusión. In: AE, 1976, vol. XXI.
158
das religiões –, variável de religião a religião, que é oferecida uma dupla proteção,
danos que o ameaçam [ao homem] por parte da própria sociedade humana”.243 É
com esse cabedal que cada religião pretende congregar os homens tornando-os
como o narcisismo. Uma vez que os pais são escolhidos como objetos, eles são
recebido dos pais, com o acervo dessas lembranças, que a religião constrói seu
credo quia absurdum245 do qual Freud fala no texto de 1927. A convicção religiosa
Mané fez esse percurso. De extração católica, fez conversão a uma religião
migração. Também passou de fiel seguidor a ativo difusor dos dogmas cristãos.
Até aí, seu caminho não difere muito do percorrido por milhares de outros fiéis que
de anteparo à violência de uma sociedade cada vez mais cruel. Contudo, no seu
da vida social, e seus dogmas coexistem lado a lado com uma série de outras
dogma está no centro e a ele se apela para julgar e condenar as práticas sociais
igreja, quase até o ponto de se verem reduzidas por completo a elas. As rezas e a
leitura da Bíblia ocuparam todo seu tempo. Não havia mais espaço nem direito
para sexo ou lazer. A Igreja, Deus, foram para ele como uma mãe/pai todo-
poderosos aos quais quis entregar-se de forma absoluta e total. Porém, existia um
246 FREUD, S. (1923) Una psicosis demoníaca del siglo XVII, In: AE, 1979, vol. XIX.
161
onde têm sua morada”.247 É dessa perspectiva, e como se fosse um caso passível
logo após a morte de seu pai. O pacto firmara-se nesse período de grande tristeza
Senhor como seu filho carnal” – fornece a Freud a pista para o desvendamento do
erigindo o diabo como substituto do pai, ao qual se subscreve como filho carnal. A
ponto relevante para o caso Mané, por que representar o pai nessa figura tão
como anjo caído –, Freud remete à relação ambivalente do filho com seu pai para
afirmar que tanto Deus como o Diabo são figuras surgidas da projeção dessa
também é invocado para reforçar a imagem negativa tanto do pai mítico como a
do diabo na religião.
nenhuma interpretação centrada na mãe. Bem poderia ter sido associada uma
referindo-se aos peitos com que o diabo foi desenhado pelo pintor, depois de vê-
247 FREUD, S. (1923) Una psicosis demoníaca del siglo XVII, Op.cit. p. 73.
162
relacionados à ternura de uma mãe na qual teria o pintor uma forte fixação,
anterior ao pai.
Freud. Efetivamente, não há nele nenhum pacto com o diabo. O diabo, o capeta, é
uma figura terrificante que é preciso eliminar. A própria palavra lhe inspira pavor,
interior de Mané, como propõe Freud. O capeta não é outro senão ele mesmo; um
aspecto rebelde, díscolo, que resiste à submissão. O capeta figura sua própria
esse lado opositor. Seu desejo, seu anseio, é de amálgama com Cristo, com
Deus, com aquilo que Lacan chamou, no seminário sobre as psicoses, Outro
absoluto.248
arcabouço da religião que Mané adota, ele se sente chamado para uma missão
248 “O que diferencia alguém que é psicótico de alguém que não o é? A diferença deve-se
a que é possível para o psicótico uma relação amorosa que o elimine como sujeito, ao
admitir uma heterogeneidade radical do Outro” LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op.
cit., Lição de 31 de maio de 1956, p. 363. (A citação em português é uma tradução livre a
partir da versão ao espanhol do original francês)
163
missões de Mané ligaram-se inicialmente a eles. Porém, nos encontros que tive
com ele, esse ponto fez parte de uma área obscura, sem justificativas, distante de
nossa compreensão.
Seja qual for o caminho percorrido, o resultado final foi o já relatado: Mané
religião não conseguiu ser mantida nesse lugar. O Outro absoluto de que fala
Lacan250 acabou por encarnar-se nele próprio, falar através dele, utilizando sua
voz; assim, Mané viu-se investido do poder que Ele lhe delegara. Por obra d’ Ele,
seria capaz de falar qualquer língua, seria capaz de “profetizar”. Mesmo assim,
manifestou certo incômodo quando o comparei com Jesus, algo de blasfemo foi
registrado, como se precisasse manter certa distância entre ele, Deus filho e Deus
pai.
As palavras em Mané
249É tentador fazer relações com o próprio trajeto de vida de Mané: ele cresce em São
Paulo, tem sucesso, realiza o sonho do retirante nordestino, tem emprego, casa e
dinheiro, passa de uma situação de extremo desamparo a outra de bastante conforto,
também obtém reconhecimento na igreja que frequenta.
250 LACAN, J Seminario 3: Las psicoses. Op. cit. p. 362.
164
Além disso, sua linguagem está isenta de transformações radicais; ele fala como
pronunciadas por ele –, seu discurso transcorre dentro dos limites dos códigos
um enigma distante de nós. Lacan já apontara o fato de, no contexto de uma fala
sem alterações, surgirem certas palavras que “cobram uma ênfase especial, uma
“o que pensaria se...”, são frases que evidenciam que Mané sabe ser difícil
relação. Há coisas que necessitam ser omitidas. Esse fato ultrapassa os limites da
O paciente prefere não falar dessas coisas. As internações, muitas vezes feitas
chamaram negativos.253
está afetada sutilmente no delírio. O delírio não deixa de ser um ato de fala.
ideia de ele ser uma fala destinada a expressar uma crença patológica sobre si
esse é o caso de Mané. O que ele diz é perfeitamente compreensível, sua fala
esquizofrenia tende-se a um uso excessivo do termo; ou, para não incorrer nessa
254 “(...) em finais de século XIX já se tinha cristalizado a definição de delírio, segundo a
qual ele era fundamentalmente um ato de fala (embora ocasionalmente pudesse
expressar-se numa conduta não linguística) que empregava o interlocutor para expressar
uma crença (patológica) a respeito de si mesmo e do mundo”. BERRIOS, G. Historia de
los síntomas de los trastornos mentales. México: Fondo de Cultura Económico, 2008, p.
164.
255 Ver Capítulo 1, item 3.
167
A passagem ao ato
experiência delirante, mas também pelo fato de ele ter tentado decepar a própria
intervenção psiquiátrica.
Se a língua move-se à revelia da vassalagem a Deus, ela deve ser eliminada. Ora,
esse procedimento opera no sentido oposto ao praticado por Wolfson; não visa à
são o obstáculo que impede consumar a fusão, o amálgama com Deus – ou com o
Outro absoluto, como propôs Lacan 256 – e é isso que Mané procura. De todo
Cortazar.257 O maligno apoderou-se dela. Em Mané não houve um pacto feito com
o diabo, houve, porém, possessão demoníaca, a língua não mais lhe pertencia. O
257 CORTAZAR, J. Casa tomada. In: Bestiário, Buenos Aires: Sudamericana, 1977.
169
pessoas.
de uma mulher, da qual me lembro ainda com espanto, que com um grampo de
uma noite. O mais curioso do caso foi a ausência de queixa: ela não teve dor; o
Os órgãos
258LACAN, J. O seminário: Livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 128 a
145.
259CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1998, cap. IV, pp. 57 a 66.
170
sentido original das palavras; elas seriam reconduzidas, após a perda da sua
do organismo.
O corpo – a língua – é protagonista no caso que nos ocupa. Mas, qual seria
língua faça parte dessa área obscura a que nos referimos antes, no
260FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit. Ver também o item “A linguagem de órgão” incluído
no Cap. II, item 5 da tese.
261 Ver Capítulo II, item 5 da tese.
262 FREUD, S. Lo inconciente. Op. cit., p. 195.
171
estranhamento que nele se operou, a língua que precisava ser neutralizada era a
língua do maligno, suas palavras, encontraram na sua própria língua – nos vários
procedimento. Algo poderia ser feito: livrar-se dela, arrancá-la de si. A língua
Chamou minha atenção que o relato de Mané sobre sua tentativa foi feito
não foram profundos, e quando me mostrou sua língua, parecia assinalar algo
assim como “já estou bem”, “não foi nada”. O horror à castração ficou comigo.
Talvez por isso tenha acentuado na despedida a gravidade do fato e não tenha
acontecido.
Na entrevista que tive com ele, suas perguntas foram diretas e procurei
responder a elas do mesmo modo, sem deixar muito espaço para silêncios, o que
nem questionar a dele. Delírios não se discutem; não iria referendá-los, porém.
mim mesmo, sem ocultar minha perplexidade quando ela surgiu. No seu caso, pus
achado preferível esse caminho. O saber do clínico, tanto teórico como técnico,
opera nesses pacientes como uma barreira que dificulta o já difícil contato.
As surpresas da clínica
Encontros isolados ou pontuais não costumam ser vistos nem considerados como
tendo grande valor. Eu próprio poderia enquadrar-me nesse esquema. Por isso
pensei que o fugaz encontro com Mané, que tinha me deixado tão tocado, iria se
perder para ele no maremoto da crise psicótica. Talvez por isso tinha precisado
Quase dois meses depois: surpresa! Vejo o nome dele escalado em minha
Estava lúcido, crítico. O registro que ele tinha de nossos fugazes encontros
era muito nítido, muito cheio de detalhes. Lembrava das palavras, do nosso
Sua voz ficou cortada, seu rosto obscureceu e com dificuldade foi falando
das “idéias ruins”: “fazer mal a pessoas da minha família”, “fazer mal a alguém”.
Parecia não querer lembrar, embora dissesse: “Eu tenho que falar a verdade aqui
com você”. Nessa hora acrescentou, para meu total espanto: “Você já me disse
Balbuciando, terminou por narrar que teve o “impulso” – ideia, ordem, voz
que mandava – de “pegar uma faca e cortar o filhinho da minha irmã”. Desolado,
acrescentou que também pensou em fazer algo ruim a si mesmo: “se matar”.
– Eu estava mal mesmo. Tive medo e pedi para minha tia me internar.
tantas marcas?
– Aí você me pegou doutor – reflete longamente e diz: “Não sei, não sei”.
esquizo... não sei o quê, não lembro o nome, que era por essa doença que eu
trabalhar. Tenho sentido muita falta do trabalho. O que eu mais quero agora é
Assim como “antes” “Ele” tinha lhe encomendado uma missão, agora se submetia
Mesmo assim fiquei animado. Achei que deveria reavaliar o valor dos
efeito inusitado. Algo disso aconteceu com Mané. Nem sempre é assim. Lembro-
me de José, um dos muitos casos que escutei no São João de Deus. Dele só
“teologia mística”, mas ele não lembrava de mim. Cada encontro inaugurava outra
1. Apresentação do caso
apresentando a eles.
na sua grande maioria nem sabiam o que aquilo queria dizer, ele fez um gesto,
uma expressão que denotava algo como uma inquietação. Logo pediu para falar
comigo e contou-me que fizera terapia com um psicanalista, muitos anos atrás.
Também disse que “estava muito fraco na época” e que, como fizera “regressão”,
– Meu cérebro “gravou” errado as coisas que ele falava e eu fiquei tão mal
soube que ele seria um dos pacientes que iria entrevistar. Agradeci a oportunidade
e então falei para todos da curiosidade que minha presença tinha despertado e
disse:
pai. Eu fiquei muito abalado com a morte dele, sofri muito com isso.
Percebi que seus olhos muito claros brilharam demais, como quem está a ponto
de chorar. Fiquei chocado, não sabia bem o que dizer. Perguntei algo a respeito
de quanto tempo fazia que seu pai havia morrido e sua resposta deixou-me mais
perplexo:
– Eu tinha uns 22 anos na época. Para mim foi muito terrível. Ele fumava
muito, também bebia bastante. Eu sempre falava para ele parar, mas... ele fumava
parte de trás. Não podia operar. Sabe, doutor? Ficou muito tempo doente.
mãe. Eu estava esperando, minha mãe veio e disse: “É câncer”. Para mim foi
terrível.
que tinha se produzido algo da ordem da revivescência. Quando ele disse “minha
mãe veio e...”, parecia que ela retornara naquele momento e que a cena estava
atualidade que fatos do passado podem conservar apesar dos anos transcorridos
uma injeção que me deixou pior. Para mim foi algo assim: o mundo apagou. Não
tinha mais vontade de nada. Só pensava nele. Ia ao cemitério todo dia, teve uma
hora que senti uma vontade enorme de abrir o túmulo. Queria abrir o caixão e vê-
Assim que tanto ele como eu pudemos nos recuperar, foi crescendo em
Mesmo assim, a clínica sempre oferece surpresas, e não era o caso de deixar-se
Aproveitei então a deixa para saber algo mais sobre sua família. Edgar é o
único filho homem de uma prole de cinco; ele está no meio. Não retive a ordem
certa, só “gravei” que, com a morte de seu pai, ficou sozinho no meio de um
para a mesa sem lavar as mãos. Depois de contar uma série de rituais
naquela casa, ele ou a irmã? As “mãos limpas” também me remeteram a seu pai.
Teria ele as mãos limpas em relação à morte de seu pai? No fim, seu pai também
Inútil tentar saber o que era exatamente esse “relance”; tratava-se de algo
parecido a ficar mais atento ao campo lateral da visão que ao campo central, mas
antes gostava de futebol, me divertia... Agora... eu ando perdido, não sei mais
quem sou, ando sem vontade. Não tenho autonomia. Estou com 36 e sou
179
completamente dependente da minha mãe. O que vai ser da minha vida quando
Só consegui dizer que “hoje aqui teve muita adrenalina”, que ele “ficou
muito emocionado e que estava esgotado” e que “eu também estava exausto”.
sua mãe estava adiando o retorno dele para casa. Teoricamente poderia voltar, “a
doutora me deu alta”, mas “a mãe está querendo ter certeza de que eu não vou
aprontar”.
Fico sabendo, assim, que a internação fora motivada pelas brigas com a
mãe. Ficara violento, “respondia muito”, e “ela então me internou”. É sua segunda
aqui porque “por lá só tem clínicas evangélicas”, e sua mãe, que já foi crente, mas
agora é católica, não quer saber de ele estar nas mãos dos evangélicos. Tento,
com cautela, perguntar sobre o tema da psicanálise que ele havia mencionado no
a “regressão” e controlava sua vontade a ponto de ele ter sofrido uma “lavagem
cerebral”.
180
– Ele fundiu minha cuca. Eu não estava maduro para as coisas que ele me
lembrar.
–Eu não sou homossexual. Eu olho para mulher na rua e... Eu fiz “coisas”
De fato, Edgar não tem experiência sexual alguma, nem heterossexual nem
homossexual. Com muita dificuldade, deixa entrever que o que ele chama de
– Eu sou muito ligado a minha mãe. Quando escuto a voz dela, sossego.
Só perto dela tenho paz. Até minhas manias com a sujeira melhoram.
O encontro seguinte foi uma surpresa. Sua mãe tinha vindo visitá-lo.
juntos.
passando.
– Ele quer dizer “impregnado” – corrige a mãe. Ele está aqui bem cuidado,
os padres aqui são muito bons. Estávamos vendo a capela dos fundos, ficou muito
boa. Eu confio muito nos padres daqui. Vou ficar até amanhã, para falar com o
médico. Eu não quero que deem a ele Haldol; se for necessário a gente paga por
fora. Eu já falei para os médicos, ele se deu muito bem com o Risperdal, é bem
Foi nesse tom autoritário, fazendo o tempo todo correções ao filho, aos
médicos e aos tratamentos, que essa mulher pequena, de não mais de metro e
meio de altura, tomou conta da entrevista de mais de uma hora. Edgar limitou-se a
assentir com a cabeça e só interveio quando sua mãe lhe deu uma chance, ou
quando eu lhe pedi diretamente uma opinião. Uma cumplicidade secreta os une.
dois coincidem quanto ao “mal que isso fez”. Também se inflamam nas críticas,
não estava presente – diz a mãe, dando a entender algo de sobrenatural. Tinha
sobre ele um poder absoluto – acrescenta. Ele estava muito fraco na época e
enunciado.
bem afinado”. Ele concordou rapidamente, rindo. Ela não gostou do “casal” e com
ligeireza corrigiu por “dupla”, adicionando, porém, o cansaço que isso lhe trazia:
“são muitos os anos que vivo em função dele, estou cansada”, “não tenho uma
vida própria”. Fico sabendo então que o “cansaço” a levara também à internação
para “recuperar-se”. Foi assim que descobriu “o mal que faz o Haldol”, na ”própria
182
neurolépticos.
– Vou ser-lhe sincera: não confio em médicos. Ele está aqui pelos padres.
Eu só confio nos padres. Se não fosse pela minha fé em Deus, não sei o que seria
de mim.
O tema final foi o da volta para casa. Com artes de mestre, essa senhora
diminuta acenava às vezes para um retorno imediato, para depois recuar e deixar
agitava, ela retomava o tema da volta. Era evidente que não tinha em mente levá-
lo com ela naquele momento, mas também era evidente que percebia que seu
filho não iria aceitar tão docilmente permanecer internado por mais tempo. Aliás,
lembre-se que era a “revolta” de Edgar, sua “desobediência”, sua hostilidade para
2. Considerações 264
A hospitalização
anos, sem muito sucesso. Nesse sentido, lembra mais Wolfson, embora não tenha
264Do mesmo modo que nos casos que precedem este, as diferentes questões ligadas a
seu caso foram divididas em alguns temas – a hospitalização, a família, o pai morto etc. O
texto, contudo pode ser lido sequencialmente, com independência da divisão feita.
183
época de Edgar, já em desuso para o tipo de patologia que ele apresenta –, nem
único encontro, ter percebido quanto a procura pela internação do filho bem como
contra ela, tinha conseguido interná-lo – afinal, esses argumentos costumam ser
figurasse de concreto a respeito do que constituía seu estado habitual, nem quais
Edgar devia ser tal que constituiria prova suficiente para justificar a hospitalização.
265 “Em linhas gerais, a psiquiatria, por um lado, fez funcionar toda uma parte da higiene
pública como medicina, e, por outro, fez o saber, a prevenção, e a eventual cura da
doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente necessária para se
evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da
loucura.” FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fortes, 2002, p. 149.
184
Não queria internar-se nem permanecer internado; no fim, ainda lhe restava um
frequentemente a família quem faz o pedido. Internar, ou não, é uma questão que
constituir uma ação burocrática. Trata-se de um ato personalizado que precisa ser
que a internação teve sobre ele foi o de aumentar a sensação de estar sob o
poder absoluto de sua mãe. Também foi interpretada como um castigo. Mas como
266Lembro-me do caso de uma escriturária de uma repartição qualquer que, psicótica por
anos – para não dizer desde sempre –, encontrou formas de manter laços com o mundo,
ou, como hoje está em voga dizer, encontrou uma forma de estabilização que lhe permitiu
manter-se longe de hospitais, internações e neurolépticos. Vivia de seu emprego,
desempenhando tarefas burocráticas que a mantinham em contato com colegas, e tinha
uma vida de relação relativamente autônoma. No entanto, sua extravagância se
expressava na sua mesa de trabalho, carregada de objetos bizarros que se acumulavam,
dando a nota discordante que tornava evidente sua condição. Por causa de uma mudança
de chefia, a tolerância mantida por longos anos se quebrou. Encaminhada pelos seus
chefes “para psiquiatria”, foi feito o diagnóstico que apontou o que já era sabido de todos.
Depois de uma internação (medicalização?) sem resultados “positivos” no seu quadro, foi
primeiramente licenciada por longos períodos e posteriormente aposentada por invalidez.
Apesar de implementados os recursos terapêuticos existentes, a paciente nunca mais
recuperou o frágil equilíbrio, nem os laços mantidos por anos. A intervenção, feita a
pedido da sociedade, embora realizada com o intuito de obter melhoras no estado da
paciente, e com boas intenções por parte dos envolvidos, teve um resultado paradoxal.
Exigências sociais e necessidades subjetivas individuais costumam ser pouco
compatíveis, ainda mais nos casos de esquizofrenia. O que privilegiar?
185
com a que tive da de Edgar nessa única e longa entrevista, não obstante as
como Mané: “só perto dela tenho paz”, “só a voz dela me sossega”. Contudo,
assim como Mané tem seu capeta, Edgar fica “capeta” de um modo infantil:
responde, não obedece, apronta. Foi essa “desobediência” que motivou sua mãe
a procurar os padres, únicos em quem acredita. Quando ela falou de seu cansaço,
da falta de vida própria, embora não o tenha dito diretamente, tive a impressão de
que pensava a internação mais como um descanso longe de seu filho, algo
parecido com “férias dele”, do que como uma ação que ela imaginasse trazer
convivência diária com a loucura, por mais gozo que se possa obter dela.
lado, porque faleceu de câncer e numa época importante da vida; por outro,
porque com sua morte nada ficou dele que pudesse servir para Edgar como
anteparo à onipotência materna. A descrição que Edgar fez da morte do pai, tão
certo se foi realmente assim. Contudo, o que ele descreve como perda aproxima-
pai garantia alguma coisa que se perdera com sua desaparição. O apego ao
os restos mortais assinalam uma falta anterior à perda. Faltou em Edgar constituir
uma ausência na presença, no sentido que a ausência tem em Fédida: aquilo que
A mãe
figurar como exemplo do que observou nas mães de psicóticos Piera Aulagnier.269
A autora descreveu o “lado fora da lei” dessas mulheres: “elas são a lei”, nada
reconhecem como lei além do que elas próprias instituem. A onipotência narcisista
Indiscriminadas deles, nada são capazes de reconhecer nos filhos, além do que
elas próprias projetam neles, desejam ou aquilo a que aspiram. Isso inclui a
(...) se clinicamente elas [as mães dos psicóticos] não são psicóticas,
se suas defesas lhes permitem um tipo de aparente adaptação ao real, não
é menos verdade que a própria ahistoricidade delas, sua má inserção,
senão sua exclusão na ordem da lei, é algo que encontramos sempre. Além
do mais, é possível e provável que o filho seja, nesse caso, ao mesmo
tempo fator desencadeante de uma brusca descompensação ao nível das
defesas (o que explicaria por que é justamente nas relações com seus
filhos que se concretiza aquilo que nelas é da ordem de uma perversão ao
nível da lei) e, de outro lado, aquilo que lhes permite colmatar essa mesma
brecha, fazendo do corpo da criança o escudo que acolhe e fixa qualquer
irrupção de um recalcado mal contido.270
mãe de Edgar.
O pai morto
O pai de Edgar é um pai morto. O pai morto é uma figura cara a Freud. Em
maior do que o pai vivo, afirma.271 Aquilo que era assegurado externamente pelo
poder despótico do pai é operado, com ele morto, a partir do interior, pela culpa e
a entrada na cultura.
Edgar. Com efeito, a morte concreta de seu pai deixa perceber algo que o pai vivo
À sua morte, Edgar reage mais como uma esposa, uma viúva. Como uma viúva
romântico do século XIX, quer “vê-lo embora seja uma única vez”. (Assinalo que
assim que completei a frase precedente, percebi que talvez tenha sido por isso
271“O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo; isso tudo, tal como continuamos a
ver, ainda hoje, nos destinos humanos. O que até então fora interdito por sua existência
real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento
psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência de efeito
retardado’ (nachträglich).” FREUD, S. (1913) Totem y tabu. Op. cit., p. 145.
189
freudiano. A lei, lei de proibição do incesto, lei primordial que “ao reger a aliança
função simbólica “que desde a orla dos tempos históricos, identifica sua pessoa [a
paterna, como também dirá Lacan – que o pai realiza sua função: interdita a mãe,
linguagem e o simbólico.
Homossexualidade e psicose
articulado com significante fálico, significante da falta. Nesse sentido, Lacan falará
ser o falo que falta à mãe, lhe resta ainda a solução de ser a mulher que falta aos
do gozo feminino como gozo Outro – além do falo –, surge nova distinção da
feminização de Schreber: o empurre à mulher, esse ser que goza além do falo.
processo, ele se fez presente de modo explicito no relato de Edgar. Não parece
estranho, então, que essa temática paire com tanta intensidade desde nosso
primeiro encontro, ou que paire como dúvida no conjunto da sua vida, nem que
participe de modo tão direto no relato das relações com o tal “psicanalista”. Mas
sua problemática dista muito de estar ordenada sob a égide de uma opção
276 LACAN, J. De uma cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis. Op.
cit. p. 251.
277 MIGUELEZ, O. Narcisismos. Op. cit.
278ROSENFELD, H. Observações sobre a relação da homossexualidade masculina com
a paranoia, a ansiedade paranoide e o narcisismo. In: Os estados psicóticos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968, pp. 41 a 61.
191
psicose, ligada aos objetos primários, como em Freud, ou aos significantes, como
neurose.
neurose, por um lado; psicose, por outro – foi a forclusão desse significante
no Real na forma de delírio. Nos grupos de orientação lacaniana, por longos anos
forclusão ou foraclusão, como alguns preferem traduzir, ligado por Lacan ao termo
ainda não lapidada. Joël Dor fornece uma explicação para esse fenômeno:
hipóteses metapsicológicas que podem ser alteradas – como de fato foram. Elas
O que não foi simbolizado faz furo no Simbólico e reaparece no Real foi a
já no Seminário III, datado de 1955-56, o furo foi proposto por Lacan como
desse furo na vida do sujeito sem crise? Como caracterizar a psicose nesses
casos?
279 DOR, J. El padre y su función en psicoanálisis. Buenos Aires: Nueva Visión, 1991, p.
96.
280 LACAN, J. El seminário III, Las psicosis. Barcelona: Paidós, 1984, p. 289.
193
ponto de partida, não o de chegada. Só pensada desse modo pode ser fecunda. A
falta dessa amarração significante, que norteia o neurótico, faz com que o
unicamente para ele. Também profundamente instável. Essa instabilidade faz com
que, para neutralizá-la, recorra muitas vezes a rituais, formas sempre iguais de
281
CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1989, p. 20.
194
com a centralidade dos primeiros tempos; pluraliza-se. Lacan falará dos Nomes-
pai é um significante qualquer que virá a ocupar esse lugar decisivo”.282 Nas suas
quarto nó, associado à grafia sinthoma; com isso, é postulada a ideia de uma
lhe é próprio; eis o que Joyce valoriza à custa do pai”.283 Também dirá: “A
foram batizadas como a segunda clínica de Lacan,285 nome que, obviamente, não
se encontra nas obras de Lacan, pois surge da exegese de seus atuais “leitores”.
polêmicas. Nos anos 1970, Deleuze e Guattari286 empreenderam uma crítica feroz
na psicose, em detrimento das ligações que esses fluxos tenham feito tanto com
diferentes das familiares – concordamos com isso –, mas, se isso acontece, é por
Deleuze discordaria).
Também complexa é a critica recente feita por Michel Tort, num livro
287 DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento. In: Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34, 2008, p. 27.
288
TORT, Michel Fin du dogme paternel. Paris: Aubier, 2007. Ou também em espanhol:
TORT, M. Fin del dogma paterno. Buenos Aires, Paidós, 2008.
196
linguagem e ao simbólico. Por mais que sejam diferentes - como Lacan não
paterna, o pai Real do pai Simbólico, o próprio conceito de função paterna, ao ser
dias, está cada vez mais posto em xeque, a própria função paterna é vista como
patriarcado, como instituição, o que está cada vez mais cambaleante. Se por
289
MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: Editora
CMC, 2003.
290 RASSIAL, J. J. O sujeito em estado limite. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
291MILLER J. A. Breve introducción al más allá de Édipo. In: Del Edipo a la sexuación.
Buenos Aires: Paidós, 2005.
292SUSMANSCKY DE MIGUELEZ, Nora. Complexo de Édipo: novas patologias, novas
mulheres, novos homens. São Paulo: Casa do psicólogo, 2007.
197
paterna.
provavelmente continuarão a falar dos pais e das famílias na suas sessões, sejam
pais e suas funções. Aliás, “função paterna” é um desses conceitos que romperam
Não sabemos como era o pai de Edgar; tivemos apenas impressões sobre
sua mãe, mas não é possível concluir ser ela quem enlouqueceu o filho. Mesmo P.
Aulagnier, quando descreve a mãe dos psicóticos, faz isso a título de observação,
Searles escreveu um artigo cujo título – O esforço por deixar o outro louco295–
ilustra bem essa linha de trabalho que atravessa a psicanálise desde seu
mecanicista.
Mesmo assim, percebe-se nos analistas, qualquer que seja sua linha, certa
tendência à culpabilização subreptícia dos pais e das famílias dos psicóticos, sem
quem cuida dos que dela padecem, incluído nisso psiquiatras e psicanalistas. Na
295SEARLES, H. L’effort pour rendre l’autre fou. In: L’effort pour rendre l’autre fou. Paris:
Gallimard, 1977.
199
algumas outras tentativas feitas nessa mesma linha, com efeitos igualmente
infaustos.
Retomemos Edgar e a dramática relação com seu pai. Na escuta que fiz
dele, o que parece patente é que a morte de seu pai foi antecipada a partir do
momento trágico em que sua mãe pronunciou as fatídicas palavras “é câncer”; que
296“Seguramente, desde 1895, lia [Schreber] suas publicações científicas [as de Flechsig]
e em duas delas, expunha casos em que tinha feito praticar a castração (ablação de
ovários e testículos), do que deveria obter-se melhora do estado dos doentes mentais.”
MANONNI, O. President Schreber, professeur Flechsig. Op. cit.
297 BAUD, Patrick. Contribution à l’histoire du concept de schizophrenie. Op. cit., p. 54.
298GARRABÉ, Jean. La noche obscura del ser: una historia de la esquizofrenia. Op. cit.,
pp. 100 a 104.
200
feito, deixou-o impotente: o pai não poderia salvar-se (nem ele salvá-lo?); enfim, a
lenta e progressiva morte de seu pai provocara nele um vazio existencial que
perdurou bastante tempo e que, passados longos anos, ainda estava presente na
óptica de Edgar, a presença física e concreta do pai garantia uma estabilidade que
ele viu comprometida com sua morte. Nada sabemos, porém, de como eram as
coisas antes dessa morte. Contudo, uma falha anterior a ela parece existir.
coisas no lugar das palavras; as palavras não garantem presença suficiente para a
linguagem tanto a discriminação como a relação com o outro. Mesmo assim, não
Edgar afirma que seus problemas começaram só depois da morte do pai. Também
dá a entender que se havia instalado uma luta sucessória: quem dava as ordens,
quem obedecia a quem. O fato de a irmã trabalhar com dinheiro assinala ser ela
possuidora de emblemas fálicos poderosos que ele não conseguiu superar. Difícil
certo é que ele sai perdedor. Assim permaneceu, perdedor e perdido, sem
O quadro crônico
escuta sua voz, sossega; com a presença dela, tudo corre bem. Até o fato de
Quiçá seja pensando nesses desenlaces que tenha surgido a ligação com
perfeita” – onde não é possível entrar, nem é possível perceber quem alimenta
ocupar esse lugar, como ela sustenta? É a onipotência materna, o ”sem lei”
apontada por Aulagnier, que não deixa espaço para a existência autônoma do
fazer isso, não permite mudá-las. Elas, porém, não são eternas. Edgar explicitou
angústia frente à possibilidade da morte da sua mãe. Ele disse: “O que será da
minha vida quando ela faltar?” A simbiose com sua mãe funciona como
“procedimento”, forma limitada de ligação com o mundo e com a vida. Ela lhe
garante uma estabilidade instável, ameaçada pela própria rebeldia e pela morte.
Porém, nem a morte concreta de sua mãe poderia trazer luz ao dilema exposto;
de idade parecida à de Edgar, esquizofrênico por anos, como ele, que, com a
ruptura de uma longa simbiose com sua mãe, cometeu suicídio. Já no caso
Wolfson, sua mãe finalmente morreu e ele não se matou, tampouco parece ter-se
libertado dela; mudou-se para o Canadá e escreveu um segundo livro, cujo título é
Manhatan.
As palavras em Edgar
Wolfson. Mesmo assim há coisas que são difíceis de explicar para quem “não
tem”, e isso não está limitado só a “relance”, termo da língua comum usado por ele
num sentido novo, neológico. A forma pela qual expressa a relação com o suposto
assuntos complicados para quem tem, e sabe que o outro não tem, e para si
mesmo. A ruptura com o outro – ou com o Outro, como propõe Lacan – fica em
conhecido por todos, utilizado como registro de memória; por momentos, porém, a
gravação parecia ter sido feita a cinzel; e o objeto gravado, seu cérebro. “Ele
fundiu minha cuca”. Aqui, o “fundir” ficava aquém do uso metafórico, parecia literal:
seu corpo, em seu cérebro, com efeitos devastadores. A adrenalina e seu efeito
A explicação dada por Edgar de “falta de madureza para escutar o que ele
sobre esse tema nas entrevistas. Pensei também que ele cabia na situação da
alta: estava fissurado por sair, não pensava em outra coisa. “Fissurado” também
299 “Sou, por conseguinte obrigado a admitir como possibilidade que tudo o dito nos
primeiros capítulos das minhas Memórias a respeito de acontecimentos relacionados com
o nome de Flechsig, só se refere à alma Flechsig, que há que distinguir do homem do
mesmo nome, cuja existência separada não encontra explicação em nenhuma base
natural.” FREUD, S. (1911 [1910]) Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de
paranoia (Dementia paranoides). Op. cit. p. 39.
204
vida. Freud já apontara esse apego do delirante a seu delírio: “amam seus delírios
como a si mesmos”, 300 disse ele. A rápida tradução que sua mãe fizera de
incitam a pensar que tudo o que o paciente diz é estranho e nada está no lugar
que deveria; enfim, que essas pessoas “não sabem o que dizem”, e nós é que
adequado à situação vivida; “impregnado” é que não estava: não havia nos seus
leitura de uma situação sempre pesa a apreciação subjetiva, e ninguém está livre
de loucuras, muito menos, como foi visto, quem tem que lidar com elas. O que terá
mãe ou a minha? Com isso, voltam a surgir os temas do saber sobre a loucura, e
300 FREUD, S. Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Manuscrito H. In: AE, vol. I,
p. 246.
205
A transferência
transferência na neurose.
desejada, pelo analista, apresenta-se como tentativa (nem sempre coroada pelo
de contato com o outro permanece, porém, do lado oposto. O relato que fez da
fronteiras. Existia entre eles uma proximidade que se torna invasiva, persecutória.
ainda que delirantes, para seu estado. Freud sempre sustentou o caráter
207
utilizara, ficava aceso, desatava a falar. Na presença de sua mãe, o tema foi o que
mais cumplicidade gerou. Poder-se-ia dizer que esse assunto está na base da
não existir; outras adquire um caráter massivo, excessivo. Com frequência torna-
combinado; alguns dias o encontrava pela manhã, bem cedo, dando voltas nas
Curar ou acompanhar?
formatações que lhe são alheias. Fazer isso não deixa de ser uma forma de
violência, efeito da violência que sentimos frente a alguém que desafia, contesta,
singular, de um sujeito psicótico permite às vezes, não sempre, contribuir para que
Aliás, aceitar que seja “outra” é o ponto mais difícil da abordagem; tendemos a ver
pioneiro”.302
302
LAPLANCHE, J. Prefácio a PANCOW, G. O homem e sua psicose. Campinas:
Papirus, 1989, p. 7.
209
nosográfica criada por Bleuler nos inícios do século XX, nasceu num momento de
eixos da controvérsia passa pela consideração dos fatores orgânicos. Fiel a sua
denunciado por Serpa Júnior,303 cada novo achado das neurociências é esgrimido
anteriormente realizada.
Depois de feito esse percurso, cujo recorte compõe o Capítulo I desta tese,
pode constatar-se que, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, sempre
da esquizofrenia ainda não foi alcançada, e esse “ainda” já completou 100 anos. A
mais fortes do que qualquer pretensão de dissolvê-la, seja pela via bioquímica ou
nome dessa afecção, e Freud, ciente disso, propõe para ela uma regressão mais
essa ruptura mais importante que o destino final encontrado para esses
investimentos. É partindo dessa ruptura que Freud constrói a hipótese mais audaz
212
restituir a ligação perdida – segundo tempo da psicose; assim sendo, pela falta
ficando então com as palavras no lugar das coisas. Como tentamos mostrar no
Capítulo II, a concepção da psicose nesses dois tempos é outro dos pontos
esquizofrenia.
carrega essa noção nos escritos de Freud. Contudo, definir a realidade é sem
dúvida uma questão intrincada, até mesmo para os filósofos; Freud, mais do que
neste caso a de Mill, não obriga a endossá-la; tampouco deveria ser necessário
ocultá-la ou apagá-la.305
305 Gabbi Jr, que pesquisou as ligações Freud/Mill, revela a existência da uma tendência
ao apagamento dessa influência. GABBI JR., O.F. Notas a Projeto de uma psicologia: as
origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003. GABBI JR, O. F. Freud:
racionalidade, sentido e referência. Campinas: Unicamp, 1994.
213
seus textos iniciais. O segundo, uma visão vertical, estrutural. Para ambos, porém,
num discurso, numa fala. Essa visão trouxe subsídios preciosos para o tema que
da clínica.
precisava ser aplicado tanto às palavras inglesas como aos alimentos. Exmatriar,
perturbava-o e o enlouquecia, mas nada fazia pensar que ficasse com palavras no
lugar das coisas. Nos outros casos, tanto em Mané como em Edgar, a linguagem
Poder-se-ia dizer que eles “falavam como nós”. No contexto de uma fala bem
diferentes dos conhecidos, que evidenciavam uma ruptura, não da relação com as
podem passar despercebidas por anos; outras são tão gritantes que ficam
a ruptura com o outro, assim como tentativas, das mais variadas formas, de
recuperar essa ligação. Aqui, os dois tempos da psicose propostos por Freud
revelaram-se fecundos.
lidas como formas de utilizar a língua sem implicar-se nela, ou seja, elas revelam a
no seu livro, que ele até consegue circular dentro dessa língua estrangeirada,
exmatriada, porém não consegue habitá-la. Nele, há língua, mas não há discurso,
pai morto apontava para outra forma mais sutil de alterar a linguagem: faltou nele
de Edgar, a clássica fórmula de Freud; dizemos: ele necessita ficar com as coisas
no lugar das palavras, as palavras não lhe garantem presença suficiente para a
duplamente morto.
seja como significantes (Lacan). Em relação ao pai, tanto Freud como Lacan
paranoia, que, de fato, pouco tem a ver com “opção sexual”, como se pensa fora
amor/ódio que liga o filho com seu pai, e a passividade frente a ele. Ainda para
Freud, a figura do pai morto, ligada ao assassinato do pai da horda primitiva, faz
referência aos pais. A mãe é figura central em Wolfson; o pai comparece como
ausente. Em Edgar, o pai morto ocupa o lugar central do seu discurso, porém a
Hassoun, essa seja uma morte que, necessária, nunca está completamente
consumada. Edgar mantinha com sua mãe uma dependência que beirava a
entrega nos pareceu fazer parte do seu procedimento. Assim como o delírio em
encontrava sua vida, o circuito fechado da relação com sua mãe garantia que essa
memória. A escuta que fiz daquela pequenina senhora coincidia bastante com as
descrições que Aulagnier fizera das mães de psicóticos. Mesmo assim, o achado
Mané quase não falou de seus pais; falou mais das brincadeiras de sua
também lhe foram transferidos, eram obra d’Ele; mas, uma vez feita a
transferência, era Mané quem os possuía. A questão de Deus pai/ Deus filho é
central no seu caso, como foi visto no Capítulo III. Para pensá-la valemos-nos da
308Curiosamente na religião adotada por ele, o lugar de Maria, mãe de Cristo, difere do
ocupado na religião católica.
219
Wolfson como em Edgar. Poder-se-ia dizer que neles o pai não cumpriu sua
função; no primeiro, por sua presença fluídica; no segundo, por estar duplamente
morto. Porém, uma das vantagens do conceito de função paterna, proposto por
com os outros e fazer parte da cultura. Como função, a interdição circula por
convencesse.
O homem quando nasce não está nela, precisa entrar nela; no homem há infância,
como bem nos lembrou Agamben. Essa entrada, porém, não está garantida e
narcisismo inicial. A mãe, no melhor dos casos, responde a essa dependência, faz
narcisismo pode ser visto como ilusão, a primeira e a mais poderosa de todas, a
uma dupla; estabelece-se entre eles uma relação de “simpatia’, no sentido que
totalmente nessa correspondência e apontar para o circuito mais amplo dos outros
correspondência para o bebê ser suficientemente acolhido; interdição para não ser
“função paterna” operando nela, dispara o desejo de integrar seu filho no mundo e
na linguagem nos quais ela própria está inserida. Também dispara o desejo dele.
Com efeito, a proibição instaura o desejo de possuí-la, mas deseja-se essa posse
separação, embora ela não seja suficiente: o desejo incestuoso assim constituído
também precisa ser abandonado, ser objeto de renúncia, entrando-se, então, num
jogo de substituições que não tem fim. Freud pensou essa renúncia ligada ao pai,
significante Nome-do-pai. Seja qual for o modo de pensar esse processo, ele
não. Seja qual for o resultado dessa busca, fortes angústias o acompanharão; seu
dias sem dormir ou circulando a esmo, pode o sujeito cair numa errância da qual
casos em que se instala algo assim como um crepúsculo, uma renúncia quase
ter acontecido com Edgar. Esses impulsos podem ser muito fortes e levar à
222
ato a tentativa de Mané de decepar a própria língua. Nem sempre, porém, o agir
limita-se a um ato pontual, como foi o de Mané; são frequentes também atos
ocupam o primeiro plano.309 A presença desses atos exige cuidado do clínico, pois
coisas, passos que devem ser seguidos à risca. Poder-se-ia pensar em alguma
mesma maneira, isso se deve ao fato de que é essa a única possível, fora dela há
amarração conseguida.
crenças religiosas, de fato elas não são abaláveis pela lógica; acredita-se nelas
religiosas, e nem por isso enlouquece. Aliás, Freud já pensou a neurose obsessiva
absoluta que caracteriza o delírio; contudo, embora em nome dele possam fazer-
de difícil discriminação. Mané foi atravessando cada uma delas até chegar à
Deus como ao Diabo. Ora, o narcisismo gerado na infância, projetado nos pais,
está no fundamento da religião, o que por sua vez nos remete ao conceito
224
que é sentida como proteção. Porém, um resto de dúvida acompanha todo crente,
como própria. Essa submissão a Ele pouco a pouco foi fazendo “dele”, Mané, um
ser tão poderoso como Ele, carregado de poderes transferidos, assim como no
rompe com eles, quando a linguagem perde a propriedade de ligar os falantes uns
aos outros, o corpo ganha valor, a linguagem liga-se ao corpo, a linguagem torna-
Bleuler.
225
parece não existir; outros em que aparenta depender só dos esforços do analista;
Como num processo de análise, uma pesquisa termina apesar de não ter
fim. Muitas coisas acontecem nesse intervalo entre começo e fim, também como
na análise. Iniciamos esta pesquisa com uma série de interrogações gerais que
com as coisas. Não encontramos nos casos analisados fundamentos para mantê-
las. Chegamos a até inverter os termos de Freud no caso de Edgar: “ficar com as
dele, cria um mundo de palavras que nos determina e nos liberta; a linguagem é
desejo que anima o sujeito, a própria subjetividade. Para isso, porém, temos de
fazer parte da linguagem; a linguagem está no mundo e o infans ainda não esta
se postula uma ruptura com o mundo e com os outros – primeiro tempo da psicose
inicial envolve a linguagem, a que deixa de ser um modo de estabelecer laços com
outro, com o “nós” que a sustenta. Pensamos ser esse um bom caminho para
formas. Seja qual for a perspectiva utilizada, há sempre postulada uma falha: na
BIBLIOGRAFIA
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Buenos Aires: Nueva Visión,1972.
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