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Essa repetição histórica proporciona uma estranha sensação de déjà vu, de já ter
assistido ou presenciado os mesmos eventos, é bem verdade que em outros espaços, com
outros sujeitos, e, às vezes, com o mesmo ator (de papel trocado ou não). Dessa maneira, a
análise inevitavelmente relembra Karl Marx, quando afirmou, n’O 18 Brumário de Luís
Bonaparte, que “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de
grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-
se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Á luz da história
regional dos últimos sessenta anos, até a observação de Marx pareceria insuficiente. Pois,
como qualificar a conjugação pela 3 a vez? Senão, vejamos:
II) 31 de janeiro de 1966, segunda feira. A cidade de São Luiz acordou em festas com a
posse do novo governador, José Sarney, eleito pela Frente de Libertação do Maranhão,
num processo que contou com o apoio da ditadura militar. Os jornais da oposição saudaram a
data: seria o “Dia da Independência do Maranhão”, o “nosso 7 de Setembro”, o “Dia da
Queda da Bastilha”, a “Hora da Libertação”, em que a Ilha Rebelde, receberia o governador
para dar início a um “Maranhão Livre e Progressista”, o “Maranhão Novo”.
III) 29 de outubro de 2006, domingo. A cidade de São Luiz passou a noite em festas com a
eleição do novo governador, Jackson Lago, pela Frente de Libertação do Maranhão. Nas
ruas, fogos de artifício, carreatas, buzinas e bandeiras. Trios elétricos repetiam sem cessar o
hit de campanha: “É 12, é 12, é 12, é 12, é 12 neles”. No palanque improvisado, o locutor
bradava, “agora nós encerramos com a oligarquia, então viva o Maranhão”, apresentando “o
seu, o meu, o governador do Maranhão, de todas as famílias”.
Déjà vu. Repetição em três tempos, com a mesma estrutura básica de enredo: “fim da
oligarquia” e festa popular na Ilha Rebelde; produção de “lugares de memória” e de
identidade regional; cinema-documentário e narrativa épica. Contudo, é bom ressaltar, há
inúmeras diferenças entre as três conjunturas, as quais, embora oriundas de crises internas da
oligarquia e fluentes na mesma linguagem, tiveram resultados distintos em função da
correlação de forças existente em cada momento (tema que não poderemos aprofundar em
virtude dos limites deste artigo). Assim, nem tudo é mera repetição ou um eterno retorno.
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Entretanto, são exatamente estes elementos de média duração ou de permanência em
meio às descontinuidades históricas que denominamos de cultura política da Libertação,
com o peso da tradição herdada, a reivindicação da identidade regional (a proeminência da
cultura ou maranhensidade, na fórmula mais recente), a obsessão pela história e pela memória
social (em permanente disputa e reinvenção), além de um dialeto maniqueísta particular (“eu
liberto, tu escravizas, ele...”, ou ainda, “tu libertastes ontem, hoje escravizas”) cuja
inteligibilidade só existe no interior mesmo do regime discursivo em que funciona,
especialmente entre as elites estaduais. Em outras palavras, a cultura política poderia ser
definida como “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado
por determinado grupo, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do
passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”
mobilizando utopias, mitos, esperanças e sentimentos (Rodrigo Patto Sá Motta).
Nestes termos, pode-se ponderar, com alguma razão, se essa cultura política não seria
apenas cinismo dos políticos (cada qual a seu tempo e modo), os quais a instrumentalizam
demagogicamente para se legitimar, evidenciando seus aspectos de farsa e manipulação. Eis
uma argumentação cética que ilumina aspectos da (ausência de) vida político-ideológica (o
oportunismo e adesismo tão freqüentes), mas, infelizmente, simplifica outros elementos, por
não ensaiar compreender as múltiplas motivações da mobilização de elites e de setores
populares, nem a dinâmica cíclica do processo político, em vista das várias encenações da
saga maranhense, em sua épica de tradição e revolta.
Em chave de leitura similar, poder-se-ia pensar nos conflitos em torno dos imaginários
sociais, em que os grupos elaboram estratégias simbólicas disputando a legitimidade do
exercício do poder. Desse modo, a permanência do dialeto da Libertação corresponderia à
continuidade da estrutura oligárquica patrimonialista, em que o dialeto seria uma necessidade
do teatro do poder, sendo um ritual parricida a reafirmar periodicamente os fundamentos da
identidade regional, evocando-os no contexto das querelas políticas e na constante reinvenção
de uma tradição de liberdade fincada na história e no mito.
*
Mestre em História e professor da UFMA. Agradeço as observações do amigo e prof. Dr. João Batista
Bitencourt, que sugeriu a fundamental idéia-imagem de Penélope. O artigo foi publicado originalmente no jornal
Vias de Fato, São Luís, ano 01, número 01, outubro de 2009, p. 4.