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O Grifo do Jornal

e o Grito do Marechal

O Papel da Imprensa Carioca na Proclamação da República

Universidade Federal do Rio de Janeiro

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Curso de Graduação em Comunicação (Ciclo Básico)
Departamento de Fundamentos da Comunicação
História da Comunicação
Professor Micael Herschmann
TRABALHO FINAL

Pedro Aguiar Lopes de Abreu


10204280-5

Rio de Janeiro, agosto de 2002

0
"Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias,
mais do que os movimentos populares;
foi o jornal."

Machado de Assis

O GRIFO DO JORNAL E O GRITO DO MARECHAL


O Papel da Imprensa Carioca na Proclamação da República

SINOPSE
Através de pesquisa realizada pelos jornais e revistas
cariocas do período 1870-1889, é feita uma leitura
desmistificadora da Proclamação da República que serve
como contestação à visão historiográfica predominante.

PALAVRAS-CHAVE
1. imprensa - brasil - história
2. imprensa - positivismo - republicanismo

1
ÍNDICE
I. INTRODUÇÃO, 3

II. IDOS DE NOVEMBRO, 6

III. O QUE ERA A IMPRENSA CARIOCA EM 1889?, 12

IV. O REI PASMADO E A IMPRENSA NUA, 26

V. SUA MAJESTADE, O CANHÃO, 32

VI. 1889: A CONQUISTA DO ESTADO, 39

VII. CONCLUSÃO, 47

VIII. BIBLIOGRAFIA, 50

2
INTRODUÇÃO

Do meio do Campo de Santana, no Centro do Rio de Janeiro, a estátua de Benjamin Constant jaz
solitária sob a copa das árvores, por sua vez confinadas entre três paredões de prédios públicos. Só as
cotias fazem companhia ao homem de bronze que naquele mesmo lugar, numa manhã de sexta-feira,
impôs a 14 milhões de pessoas a sua verdade pessoal.
O local, que de 1831 a 1889 era chamado Campo da Aclamação, em referência à consagração
popular que recebeu o imperador Pedro I — e por conseqüência o regime imperial — foi o palco de uma
movimentação político-militar que jamais recebeu duas versões idênticas. Uma revolução, que só Benjamin
Constant viu. Uma derrubada de regime. Ou de gabinete. Um golpe militar. Uma vitória. Uma tragédia.
A Proclamação da República é um episódio da História do Brasil que tem a peculiar propriedade de
formar consenso entre as correntes mais díspares da historiografia nacional. Seja um historiador ufanista à
moda antiga, ou um revisionista de orientação marxista, é raro que se analise a Proclamação da República
sob aspecto negativo. Quando muito, neutro. É tendência comum dos historiadores brasileiros justificar a
Proclamação da República, assim como da Independência, como se ambos pertencessem a uma classe de
fatos históricos "benéficos".
Tanto o Sete de Setembro como o Quinze de Novembro são geralmente tratados como "momentos
históricos em que se logrou a libertação de um opressor". Para o papel do opressor, são vestidos,
respectivamente, o colonizador português e a monarquia. Quando a autoria cai em vícios marxistas, então,
a situação se agrava: cada alteração socio-política é justificada como "um degrau" a mais numa escada de
evolução que inevitavelmente levará ao fim comum. Certas facções acadêmicas que monopolizaram a
pesquisa histórica no Brasil a partir do último terço do século XX apreciam muito esta abordagem.
Interessantemente, no trato com a ruptura brusca do regime constitucional em 1964, a unanimidade
reverte-se para o outro lado. Salvo os militares revisionistas, é difícil encontrar atualmente um historiador
que não condene veementemente aquela mudança, talvez mais pelos horrores que lhe foram subseqüentes
do que pela ilegitimidade do processo em si. Ali, não há análise positiva nem perspectiva evolucionista.
Como se a "esquerda" que escreve os livros de História sentisse a obrigação de "vingar" os anos de
perseguição que sofrera a partir de então.
É curioso, no entanto, perceber inúmeras semelhanças, de estrutura e execução, entre os golpes de
31.mar.1964 e 15.nov.1889, a despeito dos contextos completamente distintos.
Em primeiro lugar, trataram-se ambos de golpes militares, contra governos legitimamente
instituídos, recebendo amplo apoio das classes média e alta. Porém, nos dois eventos a imensa maioria da
população, iletrada, despolitizada e sem acesso às informações, esteve o tempo todo alijada do processo
político, marginalizada de qualquer instituição.
Também salta aos olhos do pesquisador atento a "coincidência" de que ambos os golpes, apesar de
separados em quase 80 anos, nasceram como conspirações nas salas das mesmíssimas Escolas Militar e
Superior de Guerra, por oficiais orientados pela doutrina positivista e só levados à rua quando a adesão da
elite dominante (cafeeira em 1889 e industrial em 1964) estava assegurada.

3
O mecanismo dos golpes, então, parecia tão bem-sucedido que repeti-lo seria garantia de êxito. No
entanto, entre os tanques do General Mourão Filho e os cavalos do Major Solon (respectivos deflagradores
de 1964 e 1889) havia uma diferença fundamental: cada militar que tomava parte nos eventos naquele 31
de março sabia que ajudava a depor um presidente, enquanto os seiscentos engajados da manhã de 15 de
novembro não sabiam — e não fizeram, a rigor — que estavam depondo um imperador.
Os fatos serão melhor explicados num capítulo específico, mas a premissa é: o Marechal Deodoro,
naquela manhã, saiu de casa, reuniu as tropas em frente ao quartel-general onde se refugiava o primeiro-
ministro, deu "Viva Sua Majestade o Imperador!", informou que exigia a deposição do gabinete e voltou para
casa. A república, até então, não havia sido feita por ninguém. Coube às maquinações posteriores fazer
com que ela tivesse existido dali em diante.
Dadas as reais (e pouquíssimo divulgadas) circunstâncias em que ocorreu o episódio da
"Proclamação" da República, não é exagero dizer que se não houvesse esse homem, ou fosse outro o
caráter dele, não teria sido ali que o Brasil viraria república — se é que viraria, tempos mais tarde. A política
à base da boataria, mentira, engodo e conluio foi o que efetivamente trouxe uma república à cena onde só
havia uma deposição de gabinete. No entanto, é no mínimo ingenuidade histórica atribuir toda a causa a
apenas um homem. Em verdade, Benjamin Constant só fez coroar (ironia!!) o que os jornais já estavam
preparando há muitos anos.
"Imagine-se um Governo sem o apoio do seu Exército, criticado pela Igreja
Católica, por ricos fazendeiros e por boa parte das populações das cidades, onde
vive a elite intelectual e política do país. Concluiremos com facilidade que o regime
está fraco, isto é, não tem forças sociais que o mantenham no Poder." 1

Ingenuidade por ingenuidade, a afirmação acima surpreende pela singeleza na análise política,
tratando "Governo" e "regime" como sinônimos. No entanto, está contida numa das obras mais difundidas e
utilizadas atualmente no ensino escolar de História. Além disso, não define os limites do alcance da "boa
parte" da população que estaria insatisfeita, medindo-os apenas por episódios isolados e esporádicos de
manifestações de crítica. Ora, se na época não se faziam pesquisas de opinião nem estatística empírica no
Brasil, não há números que respaldem esta hipótese. Assim, parece um tanto perigoso atestar que o regime
monárquico brasileiro não contava com apoio popular, quando o que se tinham (e, aí sim, com alta
freqüência) eram críticas aos governos, gabinetes executivos.
Mas é baseada nesta pesquisa histórica irregular que a consciência histórica nacional tem sido
construída, e desta forma vai-se cristalizando no senso comum uma série de "verdades", cuja raiz fica a
cada ano mais enterrada, e que servem ao interesse de determinadas elites constituídas.
Uma delas, tema central neste trabalho, é a de que a Monarquia Brasileira tropeçou em suas
próprias pernas, em vez de ter sido derrubada. Em uma expressão comum, a historiografia contemporânea,
principalmente a de orientação marxista, costuma afirmar que o Império "caiu de podre".
A pretensiosa hipótese da pesquisa que realizei era a de que não havia uma ideologia republicana
popular no Brasil e que a imprensa dos positivistas e militares tomou para si a missão de criá-la e sustentá-
la artificialmente, até o momento da concretização do golpe de 15 de novembro de 1889. E, com base no

1
ALENCAR, F. et alii – "História da Sociedade Brasileira", Rio, Ao Livro Técnico, 1979 (1º ed.), pág.185

4
material pesquisado, foi possível perceber que nem no próprio momento da movimentação militar daquela
data, nem nas intenções por trás de seus principais executores, houve efetivamente a "proclamação" de um
novo regime. Esta foi feita na surdina, a portas fechadas, sem nenhum tipo de representação da cidadania,
por um punhado de conspiradores exaltados. E coube aos jornais, em campanha antes e depois do evento,
construir para o público a idéia de que, naquela manhã, a nação sublevou-se para depor um sistema. Assim
foi feito, e assim tiveram êxito, em detrimento da construção de um projeto ideológico com a participação do
povo brasileiro.
Para perseguir a confirmação dessa hipótese, consultei 22 títulos periódicos dos anos de 1870 a
1889 (no acervo da Biblioteca Nacional), pesquisas similares sobre os personagens, eventos e idéias
envolvidos, e obras de referência sobre a História do Brasil à época do 15 de novembro. Foram úteis ainda
duas edições especiais de revistas contemporâneas: VEJA e DOMINGO, do Jornal do Brasil, que saíram
respectivamente em 20.nov.1989 e 7.abr.1991 simulando sua publicação cem anos antes.
A base teórica foi firmada em vários historiadores: Werneck Sodré, historiador da imprensa; Cruz
Costa, historiador do positivismo; Eduardo Bueno, Manoel Maurício de Albuquerque, Bernardo Joffily, Chico
Alencar (com Lucia Carpi e Marcus Ribeiro), além do tão condenado Leôncio Basbaum, historiadores do
Brasil. Outros autores contribuíram com obras específicas sobre D. Pedro II (Lilia M. Schwartz) e os jornais
do final do século XIX (Marialva Barbosa, Cláudio Mello e Souza). Tomo como minha uma das metas de
Basbaum:
"Em resumo, procuraremos descobrir de que modo esse 'povo' (...), do qual o
negro, recém-liberto, começa a fazer parte, de que modo esse povo encarava a
República que, segundo um dos mitos dos historiadores brasileiros, ele
proclamou."2

Dividi o trabalho em 4 etapas: a contextualização histórica do tema, a descrição do objeto de estudo


(ou seja, os jornais e revistas de então), a correlação com o sistema político e a ideologia positivista e,
finalmente, o relato factual do golpe, comentando a logística, as táticas e os resultados obtidos. Para todas
as etapas, busquei ilustrar minhas observações com seleções extraídas dos próprios periódicos (todas
conservando exatamente a ortografia original).
É um trabalho que, sem dúvida, nada contra a corrente, contestando a visão predominante dos
historiadores, e isso envolve riscos. Além disso, estou bem ciente dos defeitos metodológicos que se podem
perceber. No entanto, foi uma aventura que guarda uma modesta relevância. Compreender o momento
histórico da Proclamação da República brasileira, em seus aspectos político, ideológico e estratégico, é
imprescindível para ter uma visão esclarecida dos problemas políticos do sistema adotado hoje em dia no
País. No entanto, não é propósito deste trabalho cometer a mesma prática doutrinária que condenei alguns
parágrafos acima, a despeito das minhas ideologias pessoais. Vale mais deixar os "jornaes" falarem por
eles próprios.

2
BASBAUM, L. – "História Sincera da República", vol. I, São Paulo, Alfa-Omega, 1975, 4ª ed., pág. 139

5
IDOS DE NOVEMBRO

O Brasil de 1889, guardadas as devidas proporções, não era fundamentalmente diferente do que é
hoje. Apesar de possuir menos de um décimo da população atual, era já um país com os mesmos
problemas de desigualdade social, concentração de renda, marginalização educacional/informacional e
corrupção. Possivelmente ainda mais graves, já que não existiam na época vários métodos e facilidades
tecnológicas desenvolvidas depois.
Embora a educação primária já fosse constitucionalmente garantida como "gratuita a todos os
cidadãos", o índice de analfabetismo, que hoje é de 12,3% (IBGE, 1999), era sete vezes maior em 1889

(ver quadro abaixo). As cidades, principalmente a Corte Imperial, sofriam constantemente com
epidemias, em especial a febre amarela. A população distribuía-se desigualmente, como hoje,
concentrada no litoral. No entanto, praticamente inexistiam os chamados "centros médios urbanos",
pois não havia estradas interligando o País. O transporte naval, nos rios e na costa, era o principal
— menos no Sudeste, onde já havia uma boa malha ferroviária. A comunicação a distância era feita
por meio dos telégrafos (um cabo submarino já ligava o Brasil à Europa desde 1872); o telefone já
existia mas era privilégio de pouquíssimos na Corte.
QUADRO I : O BRASIL EM 15.nov.1889 (fonte: VEJA, 20.nov.1989)

Nome Oficial: Império do Brasil


Regime: Monarquia Constitucional
Chefe-de-Estado: Imperador Pedro II (desde 7.abr.1831)
Chefe-de-Governo: Presidente-do-Gabinete Visconde de
Ouro Preto (desde 7.jun.1889)
Parlamento: Senado vitalício; Assembléia Geral eleita a cada
3 anos

Capital: Rio de Janeiro


Divisão Administrativa: 20 Províncias e 1 Município Neutro

População: 14 milhões
Eleitores: 145 mil (1886) PIB: 1,8 milhões de contos de réis
Analfabetos: 85,2%
Agricultura
Inflação ao ano: 7,2%
Indústrias: 636 estabelecimentos C omércio
Rede ferroviária: 9.600 km Indústria
Telefones: 10.000
Governo
Escolas de ensino primário: 8.160
Alunos matriculados: 258.800 Transportes/C omunicações
Outros

Politicamente, as diferenças eram maiores. A constituição em vigor era a de 1824, promulgada por
D. Pedro I, que estabelecia uma monarquia hereditária centralizada na pessoa do Imperador. No entanto, o
exercício autocrático do poder era delegado, pela índole anti-absolutista de D. Pedro II, a um gabinete
executivo, o chamado "Governo Imperial". A formação desse governo procedia da seguinte forma: o
Imperador nomeava um presidente-do-gabinete, que por sua vez escolhia os ministros, e em seguida

6
dissolvia a assembléia geral e convocava novas eleições. Com o controle da máquina pública, o voto aberto
e o apoio da elite, o gabinete no poder quase sempre conseguia eleger a imensa maioria dos deputados,
formando assim as "câmaras unânimes". O parlamento, bicameral, era composto pelo Senado (membros
vitalícios, nomeados pelo Imperador a partir de uma lista tríplice eleita em cada província) e pela Assembléia
Geral ou Câmara dos Deputados. Os dois blocos alternados de poder eram o partido conservador e o
partido liberal, num sentido muito mais maleável, instável e orgânico do que os partidos que temos hoje.
Esse sistema foi apelidado de "parlamentarismo às avessas", pois o natural das monarquias
parlamentares ocidentais é que primeiro se forme a câmara, por eleições, para de lá o grupo majoritário
indicar o chefe-de-governo, referendado pelo monarca. No entanto, o dispositivo do Poder Moderador —
idealizado pelos iluministas na França e poucas vezes posto em prática no mundo — servia de válvula de
segurança para o equilíbrio das forças políticas. Então, no Brasil, conquanto não fosse o eleitorado
(diminuto, já que o voto era censitário, permitido apenas a homens maiores de 28 anos com renda superior
a duzentos mil réis) que elegesse o governo parlamentar, existia uma entidade superior que mediava
conflitos, intervinha em crises, e balanceava o poder político dos blocos, depondo governos mas
preservando o Estado.
Para isso, era garantida na Constituição — como de praxe nas monarquias pré-iluministas — a
"irresponsabilidade do monarca sobre seus atos", para que o Imperador não respondesse legalmente por
uma decisão errada, por exemplo. Isso, no entanto, incomodava os oposicionistas, ou todos aqueles que
momentaneamente não fossem beneficiados, e não tivessem controle da situação — até porque, em teoria,
o Imperador tinha atributos constitucionais suficientes para se converter em um déspota. Este, no entanto,
era um receio geralmente afastado pela própria personalidade do monarca. Assim resumiu-a o jornalista,
historiador e designer comunista Bernardo Joffily:
"Órfão de mãe com 1 ano, separado do pai com 5, é fechado, impessoal, paciente.
Para Mitre, é 'um homem um tanto ingênuo e de espírito limitado. É um menino
grande, sem experiência e sem talento. (...)' Mesmo cioso da imagem de Rei
Filósofo acima das rixas de partido, em tudo dá a palavra final, em geral
conservadora. (...) É tolerante (...). Admite a liberdade de imprensa." 3

Eduardo Bueno concorda com ele:


"Teve a infância marcada por solidão e austeridade — que viriam a se tornar
características marcantes ao longo de seus 66 anos de vida. 'Queriam-no sábio e
inofensivo', escreveu o biógrafo Pedro Calmon, 'com a timidez dos príncipes
filósofos e a ilustração virtuosa do frade, mas inclinado à contemplação e à
humanidade."4

Entretanto, quando convinha ou quando julgava não tão arriscado, o Imperador era capaz de brandir
o cetro e tomar as rédeas. Assim foi, por exemplo, em 1868, quando "para prestigiar Caxias no esforço de
guerra"5, que então se arrastava mais do que o previsto, D. Pedro II derruba o gabinete liberal (comandado
por Zacarias de Góes, um desafeto do general), instaura um governo conservador e dissolve a câmara, para
conseguir maioria. A reação dos liberais é imediata, e são os mais exaltados (como Quintino Bocayuva,
3
JOFFILY, Bernardo – "IstoÉ Brasil 500 Anos, Atlas Histórico", São Paulo, Três, 1998, pág. 73
4
BUENO, Eduardo – "História do Brasil", Porto Alegre, ZeroHora, 1997, pág. 130
5
JOFFILY, Bernardo – idem.

7
Aristides Lobo e Salvador Mendonça, Lopes Trovão, Rangel Pestana) que vão articular, no Rio, o
lançamento do Manifesto Republicano e a fundação do Partido Republicano Brasileiro (ou Nacional).
O texto do manifesto (que foi publicado por meio do jornal A Republica, em 3.dez.1870, criado
especialmente para isto e editado por Aristides Lobo) evitava, ao máximo, ataques diretos, optando por
condenações genéricas (senão vazias) e um sem-número de metáforas. Ainda assim, era possível
identificar o que reclamavam os republicanos. Entre suas reivindicações destacavam-se:
 extinção da monarquia; adoção do sistema de governo republicano, pelas vias institucionais
("a ineficácia da revolução comprova-se pelo vício orgânico das instituições, deficientes para
garantir a democracia");
 extinção do Poder Moderador ("Neste país, (...) acontece, por defeito do sistema, que só há
um poder ativo");
 adoção de uma nova constituição, a ser referendada pela população, em plebiscito;
 sufrágio universal ("Não há nem pode haver representação nacional onde não há eleição
livre");
 federação: descentralização administrativa em prol das províncias ("A autonomia das
províncias, a sua desvinculação da corte, a livre escolha dos seus administradores").

E, ademais, têm o mérito de ser um dos primeiros movimentos (além da Confederação do Equador)
a se preocupar com a inserção do Brasil no contexto Latino-Americano:
"Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em
sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos
Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além
da origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras
com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por ser uma
democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a
América passamos por ser uma democracia monarquizada, aonde o instinto e a
força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano.
Em tais condições pode o Brasil considerar-se um pais isolado, não só no seio da
América, mas no seio do mundo." (trecho do Manifesto de 3.dez.1870)

Para os republicanos, o cenário de um terceiro reinado, no qual as concretizações de suas reformas


fossem impedidas, se tornava cada vez mais ameaçador à medida que D. Pedro II adoecia e o futuro era
vislumbrado como um domínio do Conde d'Eu sobre a iminente Imperatriz Isabel.
Luís Gastão de Orleans, o Conde d'Eu, era neto do último rei da França e se casara com a herdeira
do trono brasileiro em 1864. Segundo biógrafos, os dois mantinham um casamento feliz e, em cartas, a
princesa demonstrava-se apaixonada pelo marido. Após a assinatura da Lei Áurea, a Princesa Isabel
passou a gozar de uma popularidade estrondosa, especialmente entre os libertos. O Conde d'Eu, no
entanto, era geralmente recebido com antipatia6. Dele, publicavam que "tem fama de arrogante porque ouve
mal e portanto, responde coisas diferentes das que lhe são perguntadas" 7, ou que "era um tipo
estranho, vítima de acusações grosseiras — diziam que era homossexual" 8.
6
Quando Propriá, cidade no interior de Sergipe, faz pouco caso da visita do Conde, o Correio do Povo a parabeniza.
7
VEJA, 20.nov.1989 – pág. 35
8
BUENO, Eduardo — "História do Brasil", São Paulo, ZeroHora/Publifolha, 1997 – pág. 154

8
Apesar da impopularidade, o Conde era pessoa de confiança do Imperador. Tanto, que recebeu a
patente de Marechal do Exército e, para afronta aos militares, chegou a comandar as tropas brasileiras na
fase final da Guerra do Paraguai (1865-1870).
Após esse conflito, os combatentes voltaram às suas cidades deixando um conflito genocida e
prolongado nos brejos do centro do continente. Os soldados, muitos deles ex-escravos, ou brancos
paupérrimos, eram comandados por oficiais relativamente jovens, geralmente filhos de fazendeiros do
interior ou de comerciantes urbanos. Poucos compreendiam efetivamente os motivos pelos quais estavam
lutando, e os que tinham essa sorte não gostavam nada de se ver como peões no tabuleiro do imperialismo
britânico. Assim, no início da década de 1870 os nascentes centros urbanos do Brasil receberam
contingentes de rapazes indignados, recém-formados militares, que buscavam respostas às suas questões
que naturalmente surgem.
Talvez o melhor exemplo de síntese da situação do Império e destas questões no Brasil pós-Guerra
do Paraguai seja dado neste parágrafo da coleção "Grandes Personagens da Nossa História", obra da
época do regime militar que precede a hegemonia da historiografia marxista:
"O equilíbrio político do Império, baseado no interesse comum das oligarquias
regionais, estava-se modificando. Novas forças surgiam no cenário político. A
proclamação da República francesa (1870) e a filosofia positivista de Auguste
Comte haviam tomado conta da intelectualidade brasileira. Falava-se na vocação
republicana da América, e o Império era combatido em nome da ciência e da
razão. Benjamin Constant, professor da Escola Militar, seduzia com suas idéias os
jovens oficiais. O equilíbrio econômico se rompera. As zonas cafeeiras de São
Paulo desejavam maior força política e o poder moderador de Pedro II,
acomodando também os interesses das regiões pouco produtivas, não ligadas ao
café, era um obstáculo às pretensões dos cafeicultores."

Basbaum assim sistematiza as "classes e subclasses" que compunham a sociedade brasileira


no fim do Império:
QUADRO II : DIVISÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA (fonte: Basbaum, L. – op.cit., p. 137-154)
CLASSE SUBCLASSE ONDE VIVE POSIÇÃO POLÍTICA (em geral)
aristocracia rural senhores de engenho áreas rurais (N/NE) monarquistas por conservadorismo
barões do café áreas ruras (S/SE) republicanos por raz. econômicas
subclasses rurais ex-escravos áreas rurais indiferentes (despolitizados)
imigrantes áreas ruras (S/SE) indiferentes (estrangeiros)
lavradores áreas rurais indiferentes (despolitizados)
burguesia urbana burguesia mercantil cidades (grandes e médias) monarquistas por comodidade
burguesia industrial cidades (grandes) monarquistas por apatia
subclasses urbanas comerciários cidades (grandes e médias) monarquistas e republicanos
funcionalismo público cidades republicanos por atitude
artesãos cidades (grandes e médias) anarquistas (trans. p/ proletariado)
intelectuais/escritores/jornalistas cidades (grandes e médias) liberais/republicanos por ideologia
militares (soldados/marinheiros) cidades (origem rural) indiferentes (despolitizados)
militares (oficiais) cidades republicanos por ideologia (posit.)
negros/ex-escravos cidades e áreas rurais monarquistas ou indiferentes
clero cidades e áreas rurais monarquistas e republicanos
operários (na prática, só São Paulo) indiferentes (despolitizados)

Percebe-se que a grande maioria das distintas classes está ou idiferente ao regime ou mesmo opta
pela sua continuidade, mesmo que com reformas. Os republicanos são minoria diminuta, considerando
ainda que os que já tinham aderido ao republicanismo nesse momento (oficiais do Exército, barões do café,

9
intelectuais e jornalistas) eram numericamente irrisórios. Estas classes, no entanto, são constituídas dentro
de um processo de mudança das relações de produção no país. Chico Alencar nos dá este panorama da
economia em curso de modificação, às vésperas da república:
"O final do século XIX foi sem dúvida o momento das transformações mais
importantes: marcou a decadência do escravismo no Brasil e a susbtituição do
trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Inovações técnicas foram introduzidas
nos principais setores da economia. Engenhos mais modernos e usinas
substituíam os bangüês. Nas fazendas do Oeste Paulista, o beneficiamento do
café era feito com métodos mais aperfeiçoados, aumentando a produtividade. Em
outras palavras, esboçava-se o capitalismo no Brasil."9

O esboço capitalista apresentava diferenciados graus de evolução de acordo com a província onde
se instalava: enquanto nas fazendas fluminenses mantinha-se a estrutura de produção antiga, conservando
consigo o poder político, os paulistas avançavam no sistema dependente do capital e na proletarização da
mão-de-obra (tanto que Basbaum situa os operários somente em SP). Na Convenção de Itu, em 1873,
formam o Partido Republicano Paulista. Manoel Maurício de Albuquerque expõe o paradoxo que se vivia:
"As relações tipicamente capitalistas no processo de trabalho, nos centros
urbanos, no Oeste da Província de São Paulo e em outras áreas, como no
Nordeste, já detinham o papel dominante. Com efeito, a subordinação real do
trabalhador tomara a típica forma capitalista: assalariamento e separação do
trabalhador dos meios de produção. (...) Embora também voltado para a
acumulação de capital o regime escravocrata entravava o aumento da
produtividade e desenvolvimento típico das formas de produção capitalistas. Por
isso expandiu-se uma forte campanha para autonomia regional, desde o Manifesto
Republicano de 1870, contra o centralismo do Império." 10

Ou, como sintetiza Basbaum: "O senhor de engenho queria conservar os seus antigos privilégios e
para isso sustentava o império, politicamente. O fazendeiro de café, que o sustentava economicamente,
queria liberdade de ação e domínio político do país, ainda que isso custasse o trono. E nisso se resumia seu
republicanismo."11
São estes, para concluir, os agentes que tomarão as providências que seus interesses sejam
atendidos, não importa por qual meio. Em nenhum deles está representada a massa miserável e analfabeta
excluída da participação política. A organização social que promove as transações políticas deixa de fora, e
como de praxe, o imenso personagem que constitui a maioria absoluta da população: o povo.
"Essa massa analfabeta e desde então marginal, passava agora a fazer parte do
povo, pois que se haviam tornado cidadãos. (...) Numèricamente constituíam uma
parte ponderável da população e mais ainda nas cidades que os acolheram. (...)
Está claro que não se podia esperar deles idéias republicanas. Ao contrário,
durante muitos anos os libertos se mantiveram fiéis à Monarquia que lhes havia
dado a liberdade almejada e organizavam clubes e sociedades com o nome da
Princesa Isabel."12

9
ALENCAR, F. – op.cit., pág. 182
10
ALBUQUERQUE, M. M. – "Pequena História da Formação Social Brasileira", pág. 415
11
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 142
12
BASBAUM, L. – "História Sincera da República", vol. I, São Paulo, Alfa-Omega, 1975, 4ª edição, pág. 151

10
Sendo estes a maioria do povo brasileiro, parece não ser mais necessário argumentar que a idéia
da república contava com o apoio de poucos. E que foi feita à revelia dos demais.
"O movimento republicano resultou da pressão de três forças: do Exército, das
camadas médias urbanas e principalmente da burguesia paulista. (...) A República
não foi apenas uma mudança nas instituições, que de monárquicas passaram a
republicanas, mas uma mudança nas bases e nas forças sociais sob<sic> as
quais se assentava o sistema de dominação no Brasil." 13

Essa mudança de forças sociais foi também de ordem geográfica: pela primeira vez desde o auge
do Ciclo do Ouro, quando o Rio se tornara a capital da colônia (1763), o centro econômico principal se
deslocava para longe da cidade. Passou a ser (como continua sendo) em São Paulo.
Temos assim configurados o cenário político-econômico e o quadro de forças que vão se embater,
compactuar, unir e separar, e finalmente conspirar e contra-conspirar, até o desfecho do 15 de novembro.

13
ALENCAR, F. et alii – op.cit., pág. 185

11
O QUE ERA A IMPRENSA CARIOCA EM 1889?
A imprensa brasileira nasceu oficialmente no Rio de Janeiro em 10 setembro de 1808, com a
criação da Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficial do governo português que tinha se refugiado na colônia
americana. Pouco antes no mesmo ano, porém, o exilado Hipólito José da Costa lançava, de Londres, o
Correio Brasiliense (com S), o primeiro jornal brasileiro — ainda que fora do Brasil.
Enquanto o jornal oficialóide limitava-se a relatar "o estado de saúde de todos os príncipes da
europa, (...) natalícios, odes e panegíricos da família reinante" 14, o do exilado fazia política. Embora
(diferente do que muito se divulga) não pregasse a independência do Brasil, e tivesse um posicionamento
político por vezes conservador, foi criado para atacar "os defeitos da administração do Brasil", nas palavras
de seu próprio criador, e tinha caráter "doutrinário muito mais do que informativo" 15.
Foram estes os primeiros, e tão tardiamente, porque até a vinda da Família Real era simplesmente
proibida toda e qualquer atividade de imprensa — fosse a publicação de jornais, livros ou panfletos. Esta era
uma peculiaridade da América Portuguesa, pois nas demais colônias européias neste continente a imprensa
se fazia presente desde o século XVI.
A proibição à imprensa (chegaram inclusive a destruir máquinas tipográficas) e a censura prévia
(estabelecida antes mesmo de sair a primeira edição da Gazeta) encontravam justificativa no fato de que a
regra geral da imprensa de então não era o que se conhece hoje como noticiário, e sim como doutrinário,
capaz de "pesar na opinião pública", como pretendia o Correio Brasiliense, e difundir suas idéias entre os
formadores de opinião — propaganda ideológica, afinal.
É preciso ter em mente que estamos falando de uma época contemporânea à primeira infância da
indústria — e, se tomarmos somente a perspectiva do Brasil, falamos de uma colônia de exploração onde
até então toda atividade manufatureira era proibida. Não existe, para este contexto, a noção da objetividade
jornalística frente à notícia, ou da neutralidade. Estamos num tempo antes de surgir o "mito da
imparcialidade", que por aqui só terá lugar após a Segunda Revolução Industrial (virada do século XIX para
o XX), quando os jornais deixam de ser artesanais e passam a ser empresas.

QUADRO III : IMPRENSA 1889 x IMPRENSA HOJE


ASPECTO EM 1889 ATUALMENTE
lucratividade não dava grandes lucros (geralmente, dava prejuízos) gerada a partir da publicidade
discurso doutrinário, adota bandeira ideológica "imparcial", texto de função referencial
público dirigido aos que já se identificam com a ideologia dividido em classes (A, B, C, D, E)
estrutura semi-artesanal; quase familiar ou amadora empresa industrial
composição/impressão linotipo & chapas / rotativas (mais modernos) off-set & gráficas modernas

Podemos então compreender que o papel dos jornais como "criadores de mentalidades" é natural
nos anos do Império, no Brasil. E, legalmente, eles são livres para exercer esse papel. A Censura à
imprensa havia terminado em 1827. A liberdade de imprensa já era garantida mesmo pela Constituição
outorgada de 1824. Fazer a cabeça alheia pelas páginas do jornal ainda não é pecado. Escreve Bernardo
Joffily: "Cada corrente tem seu porta-voz", mas, ainda assim, "há órgãos apolíticos: o Diário do Rio de

14
ARMITAGE, J. – "História do Brasil", in SODRÉ, N. W. – op.cit., pág. 23
15
idem, pág. 26

12
Janeiro (1º diário do País, 1821-1878) nem noticia o Grito do Ipiranga. Mas a regra é a imprensa engajada,
doutrinária"16.
O francês Max Leclerc, que veio ao Brasil como correspondente para cobrir o início do novo regime,
assim descreveu o cenário jornalístico de 1889:
"A imprensa no Brasil é um reflexo fiel do estado social nascido do governo
paterno e anárquico de D. Pedro II: por um lado, alguns grandes jornais muito
prósperos, providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada,
vivendo principalmente de publicidade, organizados em suma e antes de tudo
como uma emprêsa comercial e visando mais penetrar em todos os meios e
estender o círculo de seus leitores para aumentar o valor de sua publicidade do
que empregar sua influência na orientação da opinião pública. (...) Em tôrno deles,
a multidão multicor de jornais de partidos que, longe de ser bons negócios, vivem
de subvenções dêsses partidos, de um grupo ou de um político e só são lidos se o
homem que os apoia está em evidência ou é temível." 17

Um pouco antes, no entanto, em 1883, o alemão Carl von Koseritz faz um cenário diferente da
imprensa carioca, quanto à influência dos veículos:
"No Rio não existe um só jornal que possa, com fundamento, exercer influência
política. Tôda imprensa daqui é somente de especulação; nenhum jornal tem um
programa definido, nenhum pertence a qualquer partido, nenhum representa
qualquer idéia: o pessoal quer somente ganhar público e vender muitos
exemplares"18.

E, sobre os leitores, Von Koseritz é ainda mais enfático:


"...o povo do Rio prefere ataques pessoais, descompostura e crônica escandalosa
à melhor doutrina. O estômago estragado do Zé Povinho não suporta o cozido
pesado da doutrina, o resumo do pensamento; gosta mais da pimenta forte do
escândalo, o tempêro picante da malícia".

Apesar disso, Leclerc concorda com Koseritz quanto à falta de programa e orientação definida na
imprensa brasileira como um todo:
"Nos jornais mais lidos, os anuncios invadem até a primeira página: transbordam
de todos os lados, o espaço deixado à redação é muito restrito e, nesse campo já
diminuto, se esparramam diminutas notícias pessoais, disque-disques e fatos
insignificantes; o acontecimento importante não é, em geral, convenientemente
destacado, porque ao jornalista como ao povo, como ao ex-imperador, falta uma
concepção nítida do valor relativo dos homens e das coisas; carecem êles de um
critério, de um método. A imprensa em conjunto não procura orientar a opinião por
um caminho bom ou mau; ela não é um guia, nem compreende sua função
educativa; ela abandona o povo à sua ignorância e à sua apatia." 19

Comparando as duas descrições com o observado na pesquisa, é possível constatar pelo menos
dois aspectos: um convergente e um divergente.
De fato, os jornais de partidos, ou espontaneamente criados e mantidos por militantes, carecem de
organização institucional e de profissionalismo jornalístico. Nos tempos de maior exaltação na campanha

16
JOFFILY, B. – op.cit., pág. 54
17
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 288
18
KOSERITZ, C. – "Imagens do Brasil", São Paulo, 1943 in SODRÉ, N.W. – op.cit., págs. 266-267
19
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 288

13
republicana (1870-1878 e 1886-1889), surgem dezenas de jornais (que não passam de 4 páginas cada)
efêmeros, sem durar mais que alguns meses.
Mas Leclerc e Koseritz subestimam o poder de influência da imprensa brasileira como um todo.
Certamente, num universo em que menos de um quinto da população é alfabetizada, poucos são os que
terão acesso aos jornais. Só que a propaganda republicana atinge quem ela considera fundamental — e
talvez isto os estrangeiros não tenham percebido: as classes urbanas que Basbaum listou e que tinham os
meios necessários para se converter em agentes políticos. Formando essa opinião, a imprensa republicana
da Corte mirava o alvo certo para criar o clima de "república iminente".
"Com efeito, apesar do grande número de jornais, e do valor de alguns de seus
líderes, a influência republicana no Rio era pequena."

QUADRO IV : VEÍCULOS PESQUISADOS (Biblioteca Nacional, acervo de periódicos e obras raras)


VEÍCULO ÉPOCA EDITOR/REDATOR PROPRIETÁRIO LINHA EDITORIAL
Gazeta de Noticias 1875-1942 Ferreira de Araújo idem republicana (positivista),
sarcástica
O Paiz 1884-1934 Quintino Bocayuva Conde S.S. Matosinhos republicana moderada
Diario de Noticias 1885-1889 (out.) Ruy Barboza Carneiro, Senna & C. anti-governista, democrática
Cidade do Rio 1887-1889 (dez.) José do Patrocinio idem monarquista legalista
Correio do Povo out.1889-mar.1890 Sampaio Ferraz republicana militante
Tribuna Liberal 1888-1889 (dez.) C. de Laet Partido Liberal voz oficial do partido liberal
Diario do Commercio 1888-1892 Alcindo Guanabara(?) Leal&C., F.Almeida&C. jornalistica de simpatia repub.
Revista Illustrada 1876-1898 Angelo Agostini idem sátira & humor ilustrado
O Mequetrefe 1875-1880 Lins de Albuquerque ? sátira, sem radicalismos
O Mosquito 1869-1877 Bordalo Pinheiro idem sátira & literatura/cultura
O Bezouro mar.1878-mar.1879 Bordalo Pinheiro idem sátira & literatura/cultura
A Republica (I) 1870-1874 Aristides Lobo Club Republicano/PRB republicana inflamada
O Radical Acadêmico 9.jun-17.ago.1870 estudantes da Fac.Med. idem republicana democrática
O Republicano (I) 21-29.dez.1875 ? ? republicana debochada
O Rebate 29.jan-11.fev.1876 ? ? positivista/reformador
O Amigo do Povo 1-19.jul.1877 simpatizantes dos reps. ? republicana inflamada
A Republica (II) 22.jul.1877-jul.1878 idem, nome alterado ? idem
O Futuro 6-13.ago.1881 ? ? republicana debochada
Revolução 17.set-6.out.1882 ? ? socialista exaltada, debochada
O Intransigente 4-9.out.1883 ? ? republicana anti-aristocrática
O Republicano (II) 12.mai-14.jul.1884 Saldanha Marinho republicana democrática
Revista Federal mai.1886-jul.1887 Alvaro Chaves ? republicana jornalística
Diario Popular (SP) Aristides Lobo (?!) Américo de Campos republicano paulista, pró-café

Antes que se verifiquem faltas ou omissões de títulos, preciso reiterar que o objeto desta pesquisa
era a imprensa carioca, ou seja, da Corte Imperial, que acompanhava in loco os acontecimentos políticos na
sede do Império. Excepcionalmente, o jornal Diario Popular, de São Paulo, foi pesquisado por conter o
célebre artigo de Aristides Lobo de 18.nov.1889, usualmente citado nas fontes históricas sobre o evento.
Estes periódicos analisados foram, em primeiro grau de importância, a Gazeta de Noticias e O Paiz,
que estavam entre os maiores de então e os que sobreviveram mais tempo, até a Era Vargas. Os demais
foram o Diario de Noticias, o Correio do Povo, a Cidade do Rio, o Diario do Commercio, a Tribuna Liberal,
alguns jornais anteriores a 1889, mas de fortíssima campanha republicana, como A Republica, e as revistas
de caricatura e sátira: a Revista Illustrada, O Mequetrefe, O Mosquito e O Bezouro, sendo que só a primeira
foi contemporânea ao 15 de novembro.
Ficaram de fora outros jornais que, a despeito de sua importância na época, não se encaixavam no
espectro desejado da pesquisa — ou por não serem republicanos, ou veementemente contra-republicanos,

14
ou por não possuírem relevância no embate ideológico firmado naquele contexto —, como o Jornal do
Commercio e a Gazeta da Tarde.
Entre esses veículos, é possível observar, a despeito da diversidade de caráteres, certas
características comuns a todos, ou pelo menos repetidas com freqüência.
QUADRO V : CARACTERÍSTICAS COMUNS (Biblioteca Nacional, acervo de periódicos e obras raras)
VEÍCULO EDITORIAL INTERNACIONAL FOLHETIM ILUSTRAÇÕES ALMANAQUE ARTICULISTAS
Gazeta de Noticias sim sim sim (2) sim (post.) sim sim
O Paiz sim sim sim sim (post.) sim sim
Diario de Noticias sim sim sim não sim sim
Cidade do Rio sim sim sim sim sim sim
Correio do Povo sim sim sim não sim sim
Tribuna Liberal sim sim não não não sim
Diario do Commercio sim sim sim não não sim
Revista Illustrada / não não sim sim não
O Mequetrefe sim não não sim sim não
O Mosquito sim não não sim sim sim
O Bezouro sim não não sim sim sim
A Republica (I) sim sim (reprod.) não não sim sim

O primeiro aspecto a se observar, obviamente, é a diagramação. Mesmo não tomando como


exemplo os jornais atuais, e sim contemporâneos de 1889 em outros países, os jornais brasileiros
apresentavam uma disposição de colunagem e tipografia ainda presos ao início do século XIX. Salvo
raríssimas exceções, não usavam ilustrações, a não ser nos anúncios; não inseriam títulos para sub-
retrancas e, regra geral, não havia manchetes. Não variavam muito as famílias tipográficas (até porque
comprá-las não era barato): quando queriam destacar uma nota, apelavam para o negrito. O formato
predominante era de 8 colunas, de mesma largura, separadas por fios verticais, sem rupturas. O texto
seguia até embaixo e, ao terminar, voltava ao alto da página, na coluna seguinte à direita. A única quebra
era feita no pé do jornal, ocupando aproximadamente um quinto da sua altura, onde entrava o folhetim.
Outro aspecto já notável é o texto. Com exceção do Diario do Commercio — que aparentemente já
buscava uma linguagem mais objetiva, direta, isenta de julgamentos e adjetivações — a maior parte dos
jornais emprega o estilo literário em toda a técnica de redação:
"O noticiário era redigido de forma difícil, empolada. O jornalismo feito ainda por
literatos é confundido com literatura, e no pior sentido. As chamadas informações
sociais — aniversários, casamentos, festas — aparecem em linguagem melosa e
misturam-se com a correspondência de namorados, doestos a desafetos pessoais
e a tôrva catilinária dos a pedidos."20

Este último ítem, espécie de precursor da matéria paga, foi notado e atacado por Max Leclerc:
"Desmoralizou-se a imprensa com a publicação, em suas colunas ineditoriais, sob
o título de a pedidos, de libelos infames, de ataques anônimos contra personagens
públicas ou privadas e instituições, publicações essas pagas pelos interessados". 21

Reforce-se ainda mais esse tipo de atitude quando tratamos de veículos de doutrinação, como é o
caso dos jornais republicanos. Utilizando um recurso que equivalia a dizer "não somos nós que estamos

20
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 323
21
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 289

15
dizendo, mas...", eles expunham ao ridículo ou caluniavam figuras em evidência. É desnecessário
esclarecer que os alvos preferenciais eram membros do governo.
E os ataques são dirigidos sem escrúpulos. Muitas vezes disfarçados sob a forma de "notas de
conhecimentos gerais" ou "utilidade pública". Era muito comum a publicação de "conhecimento de
almanaque": informações supostamente a título de curiosidade, mas que um observador contextualizado
facilmente identificaria como crítica. Por exemplo, em 1885 o ácido O Paiz publicava o ridículo de
determinações imperiais chinesas como se também o fossem as determinações imperiais no Brasil: "China,
Xangai - O que olhar pela primeira vez para o Imperador será decapitado. O que reincidir será empalado."
A ficção é entremeada com realidade sem o menor pudor. Como reflexo disto, também, é nesta
época justamente que vemos o apogeu do Folhetim, o romance ou novela literária publicada em capítulos,
geralmente em trechos de não mais que uma lauda. Os autores mais recorrentes são os franceses, como
George Ohnet e Gustave Aymond. O folhetim vem na primeira e na segunda página, na parte inferior.
As "Ephemerides", seção de almanaque que vários jornais publicam, são acontecimentos que
ocorreram (ou teriam ocorrido) na mesma data em outros anos. Sempre usadas como pretexto para criticar
ou ironizar um fato contemporâneo. O passado — remoto ou recente, brasileiro ou estrangeiro — é
referência constante para o presente, certamente para construir a idéia de repetitividade e mesmice do
regime e fomentar a "sede de mudanças".
Perto das regras padronizadas do jornalismo de hoje em dia, algumas práticas da época chegam a
parecer anedota, como o caso das notícias publicadas "por via das dúvidas": "Consta que da Bahia veio
hontem um telegramma particular noticiando graves motins por motivos politicos. ¶ Não sabemos até que
ponto se pode dar crédito a esta noticia." (Gazeta de Noticias, em corpo maior, negrito) O jornal não tem
certeza, e publica mesmo assim. E, no dia seguinte, um telegrama da Havas desmente a informação.
Como já disse, não havia grande valorização da notícia. A bem da verdade, os "factos" que são
publicados tratam-se várias vezes de boatos ou informações não-confirmadas. Exceção feita às notícias do
estrangeiro, o trabalho de apuração do jornalista é pouco diferente do fofoqueiro de vila. Neste estágio da
imprensa, em especial a republicana, não há repórter que vá atrás da notícia, e sim notícia que é levada de
bandeja à porta da redação. É publicada quando convém, a despeito da apuração — importa mais a
verossimilhança que a veracidade.
O noticiário internacional era bem limitado, pois tinha formato de (e vinha por) telégrafo. Havia uma
seção especial, geralmente na segunda página, listando todos os telegramas, dando a cidade e o dia de
origem da informação ("Paris, 29"). Quando passava-se mais de dois dias, incluia-se uma observação:
"retardado". Ali, misturavam-se notícias de enchentes, eleições, casamentos, navios ("paquetes") que
chegavam e zarpavam, frivolidades sobre fidalgos. E sem muito esmero: provavelmente por má legibilidade
da transcrição telegráfica, o xá da Pérsia em 1889, Nasr-ed-Din, vira "Vasr Eddio". Ainda assim, nem isto
era possível antes da inauguração do cabo submarino até a Europa, em 1872, iniciativa do Barão de Mauá.
"Até 1874, as notícias do exterior chegavam por carta. Nesse ano, a agência
telegráfica Reuter-Havas instalou, no Rio, sua primeira sucursal, dirigida pelo
francês Ruffier. Na edição de 1º de agosto de 1877, o Jornal do Commercio
publicava os primeiros telegramas por ela distribuidos. (...) Êsse noticiário passou

16
logo a ser utilizado por todos os jornais, que criaram uma página internacional,
com a cotação do café, ao tempo em Paris." 22

Werneck Sodré prossegue contando que ao final da Segunda Grande Guerra a Reuter-Havas
trocou de nome para France Press (AFP), até hoje uma das maiores agências de notícias do mundo.
De fato, essa página internacional — fala-se então muito da França, e surpreedentemente muito da
China — está presente na maior parte dos jornais pesquisados, ou pelo menos nos grandes jornais. Aos
pequenos, novatos ou de origem partidária, sobrava reproduzir os informes dos demais. Aos pequenos, em
geral, pouca ordem era aplicada, mesmo porque era exatamente o fato de não dependerem da renda
publicitária que lhes permitia o escancaro (e, no sentido inverso, era por ser panfletários demais que quase
não tinham anunciantes).
"O pequeno jornal tinha, e tem, possibilidades de independência que o grande
jornal não tinha; aquêle é transitório, êste tende à permanência; aquêle é obra de
poucos, êste é já coletividade estruturada, com desenvolvida divisão de trabalho;
aquêle é esforço de alguns, que pode ser repetido adiante, êste é empresa. Nos
fins do sécullo XIX estava se tornando evidente, assim, a mudança na imprensa
brasileira: a imprensa artesanal estava sendo substituída pela imprensa
industrial."23

Caso-a-Caso: A REPUBLICA e pequenos jornais panfletários


E é justamente por esses pequenos que a idéia republicana começa a se difundir — e é neles que
tem a oportunidade de publicar seu discurso mais contundente (por vezes exagerado). Em sua primeira fase
(que, de acordo com Basbaum, vai de 1870 a 1878), proliferam-se os jornalecos da propaganda republicana
que, no entanto, não perduram:
"De 1870 a 1872, surgiram no país mais de vinte jornais republicanos, sem falar
em fôlhas do tipo da Opinião Liberal, que passara à direção de Lafaiete Rodrigues
Pereira e Limpo de Abreu"24.
"Multiplicaram-se os pequenos, os órgãos de vida efêmera, mas isso sempre
acontecera e continuaria a acontecer nas fases de agitação, desaparecendo em
seguida"25.

A já extinta Opinião Liberal tinha sido o jornal dos "exaltados" anterior ao Manifesto, e a sua
aposentada "typographia" é reativada para que sejam impressos tanto A Republica como os diversos
jornalecos republicanos nascidos na mesma leva. Todos, por sinal, têm diagramação idêntica: no mínimo, o
paginador da oficina não era muito criativo.
"A 3 de dezembro de 1870, começa a circular, na Côrte, A República, órgão do
Partido Republicano Brasileiro, que lançara manifesto ao país, e do Clube
Republicano, forma adotada pela ala radical dos liberais e costumeira na época.
Regressando de viagem aos Estados Unidos, Argentina e Paraguai, Quintino
Bocaiúva fôra um dos redatores do manifesto, que recebeu o apoio de grandes
figuras na vida política do tempo."
Nascendo junto com o próprio Manifesto e o Partido, simbolicamente no dia seguinte ao aniversário
do Imperador, A Republica (1870-1874) é a voz oficial dos republicanos "institucionalizados" de então, e

22
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 247
23
SODRÉ, N.W. – op.cit, pág. 298
24
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 244
25
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 287

17
mais democratas. Ataca o caráter "absolutista" da monarquia brasileira, e não a pessoa do monarca. Os
redatores são Quintino Bocayuva, Aristides S. Lobo e Manuel Vieira Ferreira, "que escrevem quase todo o
jornal"26. Não publica notícias, mas manifestos, artigos sem assinatura e "tratados políticos". Começando
como periódico que saía três vezes por semana, passa a diário no ano seguinte, e chega à tiragem de
10.000 exemplares.
Mas nem tudo são flores, e cedo o jornal começa a sofrer com as adversidades:
"Em 1872, lutando sempre com dificuldades, passa o jornal à direção e à
propriedade particular de Quintino Bocayuva – o teórico do Partido. Continuando
embora a ser republicano, A Republica deixa entretanto de ser órgão oficial do
Partido. A mesma linha seguiria mais tarde Quintino Bocayuva ao dirigir O Paiz
que sòmente se destacava de outros órgãos da imprensa por ter algumas colunas
dedicadas à propaganda republicana."27

A Republica desaparece em 1874. Depois, segue-se uma longa lista de pasquins análogos e por ela
inspirados, todos com o formato de quatro páginas, na diagramação idêntica ao precursor, dos quais
(armazenados sob mesmo volume na Biblioteca Nacional) destacam-se:
 O Radical Acadêmico (feito por estudantes de medicina; publica poema de Lopes Trovão,
republicano radical, logo na primeira edição; tem um texto "enunciador de verdades", mas prega
uma república democrática. A 17.ago.1870, traz uma divertida "Paginas da Historia do Brasil,
escripta no anno de 2000, ferindo na face aos tartufos do poder");
 O Republicano (I) (debochado, chama o Brasil de "Imperio de Santa Cruz"); é diferente de
 O Republicano (II) (publicado por Saldanha Marinho, republicano histórico; similar aos demais)
 O Rebate (positivista, porém mais moderado, menos agressivo; no cabeçalho, reivindicações:
"Renovação dos estudos sociaes pelos methodos scientificos – Paz com as republicas do Prata –
Abolição da escravatura – Instrucção gratuita em todos os graos – Emmancipação intellectual da
mulher – Propagação dos resultados a que têm chegado as sciencias positivas".
 O Amigo do Povo (mais exaltado, busca em 1822 as raízes de sua argumentação) que muda de
nome em 22.jul.1877 para A Republica, alegando ter permissão dos antigos editores, e republica (!)
o Manifesto de 3.dez.1870;
 O Futuro (trata a Família Imperial por "realeza bragantina"; publica uma cômica "A Grammatica do
Namoro", em 13.ago.1881)
 O Intransigente (poupa D. Pedro II e ataca os aristocratas que o rodeiam)
 Revista Federal (muito mais objetivo, menos apaixonado; editorial assinado; notícias sobre o
crescimento do "movimento republicano"... havia então menos de 1 jornal por província)
 Revolução (de longe, o mais radical de todos, mais baixo-nível, e o mais à esquerda: "No estado de
abatimento moral e material em que nos achamos, a revolução violenta é o único meio de salvação
do paiz!"28; defende uma supostamente "provavel guerra do Brazil com a Republica Argentina", para

26
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 244
27
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 208
28
Revolução, 17.set.1882

18
fazer cair a monarquia brasileira, a exemplo da guerra Franco-Prussiana de 1870-71... no entanto,
era muito menos provável a Argentina invadir o Brasil do que a Prússia invadir a França...)
E não são apenas esses.
"Novos jornais começam a surgir. O Brasil Americano, A Lanterna, O Amigo do
Povo, que mais tarde passou a se chamar A Republica, numa tentativa de
despertar e reerguer o espírito do Manifesto de 70, sob a direção agora de
Aristides Lobo, considerado o chefe da ala radical do Partido. (...) A nova A
Republica também desaparece. Quintino insiste na sua tese de que 'um bom
jornal' deve ser neutro e enfrenta violentas críticas dos que o acusam de ter
abandonado as idéias republicanas."29

Caso-a-Caso: O PAIZ
Quintino, entretanto, continuava tão republicano quanto antes, e teria muito sucesso em aplicar suas
idéias. O maior dos jornais na época, em tiragem, estrutura empresarial, e que duraria por 50 anos (1884-
1934), era O Paiz, propriedade de João José dos Reis (pai e filho), que mais tarde recebe título de Conde
São Salvador dos Matosinhos. Ironia: o dono do mais importante jornal republicano era um nobre.
Mais importante, pela circulação, pelo alcance, e pela estrutura de redação montada. Quintino, um
dos poucos jornalistas de carreira, consegue dirigir bem o jornal e consolidá-lo mais tarde como empresa.
Estampa, orgulhoso e bem visível, na primeira página: "O PAIZ é a folha de maior tiragem e de maior
circulação na América do Sul".
Uma característica marcante, para isso, é não se limitar ao Rio: é, possivelmente, o primeiro jornal
efetivamente nacional. O Paiz reproduz com freqüência vários editoriais d'A Provincia de S.Paulo, e sua
seção de "telegraphos" é uma das mais completas.
Mas é republicano. Dá voz a articulistas que não assinam, a editoriais ofensivos, a "tratados
políticos" que dão informações irresponsáveis com óbvio interesse político. Por exemplo, sai a 10.nov.1889,
somente a cinco dias do golpe, um "plano imperial para o terceiro reinado", no qual está previsto o
desmantelamento do Exército. Não dá fonte, não comenta, não dá maiores satisfações. As conseqüências
desse tipo de boataria não são difíceis de imaginar.
Entretanto, em 20.out.1889 morre o Rei de Portugal, D. Luís, sobrinho de D. Pedro II, e
curiosamente O Paiz fica de luto, com uma enorme moldura negra sobre a página. Então, a 22.out., o
Imperador e a Família Imperial resolvem "tomar dois mezes de luto", pelo parente falecido. Estava aí uma
explição para terem passado à iconografia do Quinze de Novembro como personagens austeros, vestidos
de preto...

Caso-a-Caso: GAZETA DE NOTICIAS


O segundo maior jornal, a Gazeta de Noticias, também seria longevo: só terminaria em 1942, quase
70 anos depois de ter sido fundado por Ferreira de Araújo e por ele dirigido até sua morte. Em três meses, a
melhoria na diagramação é admirável. Antes parecia artesanal: rapidamente, toma as feições de um produto
industrial sério.

29
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 208

19
Como todo jornal em edição inaugural, o primeiro número da Gazeta de Noticias se apresenta: traz
informações sobre o que será publicado ("todos os telegrammas politicos e commerciaes, tanto do paiz
como do estrangeiro") e qual a proposta. Emprega uma novidade: faz distinção entre o "Folhetim-Romance",
que seria o folhetim propriamente dito, e o "Folhetim de Actualidade", uma espécie de editorial em forma de
crônica, geralmente falando de política, e assinados por pseudônimos como "Bob" e "Lulu Senior".
Assim se introduz ao público: "Não sendo a Gazeta de Noticias folha de partido, apenas tratará de
questões de interesse geral, acceitando n'esse terreno o concurso de todas as intelligencias que quizerem
utilisar-se das suas columnas." E desafia: "O Diario de Noticias, de Lisbôa, faz uma tiragem de 23 mil
exemplares. ¶ A tiragem do Petit Jornale, de Paris, que é do mesmo gênero, regula 100 mil exemplares. ¶
Quanto conseguirá tirar a Gazeta de Noticias?"
O "Folhetim de Actualidade" deste dia, em tom debochado, diz que todo jornal que começa
apresenta o seu "programma" (os mesmos que Koseritz dissera que não existiam), mas que isso é muita
arrogância de dizer para o público do que ele precisa e que por isso é melhor não ter programa. "Nada,
nada. ¶ O melhor programma d'um jornal que quer agradar ao publico é — agradar-lhe — sem programma."
Ou seja, a Gazeta de Noticias não se acanha em admitir que apoiará este ou aquele, defenderá tais
e quais posições. E nem devia de se acanhar, já que o mito da imparcialidade só surgirá para a imprensa
brasileira alguns anos mais tarde. Mas, frente a isso, parece no mínimo contraditório que o jornal argumente
que não trará programa justamente para não afirmar sua verdade como absoluta.
Já tem, desde início, bastante publicidade — apresenta anúncios d'O Mosquito, "photographo", e
"precisa-se de bons entregadores", da própria Gazeta de Noticias. Dominarão as páginas, mais tarde, os
anúncios de máquinas beneficiadoras de café e de uma chapelaria que, para provar o alto nível de sua
clientela, lista os nomes dos maiores figurões do Império — alguns incluídos ou excluídos de acordo com a
ideologia do jornal onde a loja anuncia.

Caso-a-Caso: DIARIO DO COMMERCIO


Houve, entretanto, exceções ao informalismo. O Diario do Commercio, não vinculado a nenhum
partido, tinha uma linha editorial bem moderada, chegando o mais próximo do que seria o jornalismo
impessoal e imparcial do século XX. Caminhava, já naquela época, por uma vereda mais profissional. Tem
um texto mais objetivo, mais referencial e com menos adjetivação. Quantitativamente, apresenta muito mais
notícias do que editoriais e artigos de opinião.
Mesmo sua abordagem quando fala dos adversários é o mais próximo (que se podia alcançar, na
época) do neutro. Assim deu, a 2.jul.1889, a nota de lançamento do novo jornal republicano, o Correio do
Povo:
"O novo diario vem preencher uma lacuna, embora tivesse a modestia de não o
dizer: o partido republicano não tinha um jornal seu, embora dispozesse de um
posto de combate em quasi todas as folhas neutras; o Correio do Povo vem
ocupar este logar, e, pelos nomes dos seus directores [Sampaio Ferraz e Chagas
Lobato], devemos esperar que elle o occupe dignamente. ¶ Começa um tanto
originalmente, dando dois artigos editoriaes assignados ambos por seus
directores, que promettem ser placidos e affirmam que a paixão não fará tumultuar
as suas ideias." (grifo meu)

20
Caso-a-Caso: CORREIO DO POVO
Este é um exemplo fantástico: é um jornal emblemático do que fazia a prática do jornalismo
republicano de 1889, e onde os pressupostos da pesquisa mais encontraram confirmação. Ao mesmo
tempo que seu discurso é apelativo e cínico, não se encaixa na esfera dos jornalecos efêmeros vistos no
início deste capítulo. Tem publicidade, anúncios variados, reproduz serviço de telégrafo. O Correio do Povo,
sob a direção de Sampaio Ferraz — republicano histórico, não positivista — é o veículo mais popular entre
os encarregados de disseminar a idéia da República.
Apela indiscriminadamente para o escândalo e o boato como formas de propaganda ideológica.
Multiplicam-se nele as publicações a pedidos, que, como já vimos, eram matérias pagas destinadas a atacar
alguma personalidade. Satiriza, hostiliza, discrimina (revela-se até anti-semita ao atacar como judeu o
escritor que lançou um livro de ode a D. Pedro II). É, enfim, redigido na base do cuspe e bofetão.
Inaugura-se a 1º.out.1889 trazendo, como todos, um editorial "dizendo a que veio". E veio pela
República, não esconde. Defende a "honra" dos militares como se fosse a "honra" de toda a nação.
Também traz as "Ephemerides Republicanas", somente com temáticas republicanas, de outros países ou
outros movimentos brasileiros que combatiam o Império. Mas nem dá a morte de D. Luís I! O folhetim,
estranhamente, está no capítulo XI no nº 1 (?!).
Não é nada sutil, porém faz-se cínico. Para atacar o chefe do gabinete, Visconde de Ouro Preto,
denuncia a exploração do ouro em Minas Gerais por seis companhias estrangeiras, cinco de Londres e uma
de Paris. E conclui: "O único ouro que temos é o preto e será com este que se pretende resgatar o papel
moeda?!!". No nº2 (2.out.1889), publica a lista de candidatos do Partido Republicano Paulista em São
Paulo. (Campos Salles é presidente do partido, Francisco Glycerio é membro). Em editorial no mesmo dia,
condena envolvimento de deputados e senadores na direção de empresas, indústrias e bancos.
Segue enunciando verdades:
"Quer-se proclamar que o governo monarchico esteia-se na estima publica e tem
raízes no coração do povo. ¶ Não é verdade! Se acaso, por um plebiscito, nós
lançassemos neste momento o problema social da forma de governo,
prescrutando a sinceridade intima das massas populares, dos fracos e dos
sacrificados, nós garantimos que a resposta de dez milhões de victimas seria a
expulsão do seio da Patria desse grande polvo, que além da usurpação e do roubo
de nossos direitos, ainda corrompe os caracteres, infecciona a consciencia de
nossos compatriotas, fazendo-os cumplices no dolo satanico com que se goza da
nação. ¶ Estamos convencidos de que o voto de cidadãos americanos não podia
ser conferido senão em facvor do grande regimen igualitario e justo — a
Republica."30

De onde tira essa certeza? O Correio do Povo não explica. Na lógica da imprensa republicana,
basta sair do prelo que é verdade. É o que mais publica formações de Clubs Republicanos em cidades
pequenas, e adesões. Ainda assim, em números que não passam de poucas dezenas (20 pessoas, qdo
muito). Com acesso às urnas, já que o voto é aberto, publica a lista de eleitores conservadores ou liberais
que votaram nos republicanos, tentando mostrar que o "movimento republicano" angaria mais adeptos (sob
o título "D. PEDRITO", mas sem referências ao Imperador no texto).
30
Correio do Povo, 3.out.1889

21
Caso-a-Caso: DIARIO DE NOTICIAS
Como uma espécie de meio-termo entre O Paiz e o Diario do Commercio, o Diario de Noticias
começou a circular em 7.jun.1885, sendo propriedade de Carneiro, Senna & cia.. Tem tiragem de 20.000
exemplares, um número já vultoso. Ruy Barboza (ou Rui Barbosa, pela grafia atualizada) torna-se o redator-
chefe em março de 1889. A princípio, revela apenas seu cunho liberal, mas ao longo do ano de 1889 fica
progressivamente exaltado. Mesmo aproximando-se da República, dá notas da Corte e da aristocracia, em
primeira página, crítica teatral, resultados do Jóquei, eleições e notícias gerais e estrangeiras. E, embaixo,
como de costume, o folhetim ("Carvajan", de George Ohnet). Dedica na página 2 uma coluna especial para
Portugal, dirigida aos portugueses no Rio, escrita em primeira pessoa do plural.
Tem, ainda, as seguintes colunas e seções: "De Palanque" (assinada por Eloy, o heróe), com artigos
republicanos anti-positivistas; "Política Liberal", dando voz ao Partido Liberal, e "Política Republicana",
dando voz ao Partido Republicano (é o único jornal a abrir espaço para diferentes ideologias
simultaneamente). São, em geral, artigos com críticas estruturais fundamentadas. Se Ruy Barboza tem de
aderir à república, deseja pelo menos um "republicanismo democrático".
Em 1889, a "Política Republicana" já é "Columna Republicana" e passa a ser assinada por ninguém
menos que Aristides Lobo. O tom do discurso então é bem mais exaltado, como podia-se esperar, vindo
desse autor. Faz odes a O Meio, novo jornal que surge, editado por Paula Ney, Coelho Neto, Pardal Mallet.
Mas é na criminosa coluna "Corre Como Certo", bem visível à primeira página nas últimas colunas
da direita, que o Diario de Noticias abre seus espaços para a campanha da boataria. Já percebe-se, pelo
nome, que se trata de uma coluna de "ouvi dizer", não de fatos apurados. E, neste espectro, entram todos
os matizes: da informação não-confirmada até a mais mentirosa calúnia. Ali, boatos ganham respaldo ou
ares de verdade, como se fossem notícia confirmada. Por exemplo, em 30.out.1889, escrevem (1º item,
bem visível) "...que se pretende affastar da côrte para as provincias todos os batalhões de infantaria..." (um
tanto quanto pitoresco para um governo desproteger a capital, mas tudo bem) "...que o Sr. Candido de
Oliveira [ministro interino da Guerra], não tendo gostado nada da manifestação feita ao illustre mestre dr.
Benjamin Constant, trata de obstar o que pretendem fazer ao tenente-coronel demittido a bem do serviço
publico..." (2º item, logo embaixo).

Caso-a-Caso: TRIBUNA LIBERAL


A voz quase isolada que defende o programa de reformas do governo é a Tribuna Liberal, jornal
fundado em 1888 para preparar o congresso do Partido em maio do ano seguinte, onde foi apresentado o
Programa de Reformas (que incluía voto secreto, fim do voto censitário, fim do Senado vitalício, etc.,
conforme veremos mais tarde). Assim, ergueram o jornal, "com oficinas à rua Nova do Ouvidor" 31, e
chamaram para editá-lo o polêmico Alcindo Guanabara. Este ficara famoso anos antes, em São Paulo,
quando aceitara defender as opiniões dos escravocratas num jornal e por conta disso tinha fama de
jornalista mercenário.

31
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 291

22
Sua linha editorial era a legalista, principalmente depois de 1º.jun.1889, quando subiu o gabinete de
Affonso Celso, o Visconde de Ouro Preto (que também fazia presença regular nas redações, escrevendo no
Jornal do Commercio e futuramente no Jornal do Brasil), importante liderança do Partido Liberal.
Não se pode dizer, no entanto, que era neutro. Pelo contrário, exercia a propaganda (ou a contra-
propaganda, se for o caso) das idéias do seu próprio partido. Corria a publicar, por exemplo, quando os
republicanos sofriam um revés:
"O tenente-coronel Vicente Pessoa, prestigioso chefe politico, acaba de voltar às
fileiras liberaes abandonando o partido republicano." "Realizou-se hoje uma
conferencia monarchista nos salões da Sociedade Commercio e Artes. O orador
foi muitoapplaudido e levantaram-se vivas à familia imperial." 32
Em editorial "Ilusões Federalistas" (2.jul.1889), ataca os federalistas republicanos, argumentando
que a autonomia total das províncias largaria as mais pobres à própria sorte. Enfim, onde podiam, lançavam
disparos contra a eloqüente esquadra de jornais anti-monárquicos.
O que se pode deduzir da leitura das páginas da Tribuna Liberal é que, em 1889, apesar de ainda
serem poucos, os republicanos é que são os principais inimigos dos liberais. Os conservadores ainda
existiam — e não tinham se unificado com os adversários, como se espalhava —, mas seu retiro ao silêncio
e à apatia no período pós-Cotegipe era uma espécie de reconhecimento de derrota. Na linha de frente do
embate político, os liberais apanharam muito mais e, após serem derrotados, foi relativamente fácil aos
conservadores adaptar-se ao novo sistema, voltando comodamente ao poder naquilo que seria a "República
do Café-com-Leite".

Caso-a-Caso: CIDADE DO RIO


A Tribuna Liberal, ainda assim, não é o único jornal que se opõe à propaganda republicana. O
heróico abolicionista José do Patrocínio, ironizando a veemência com que os republicanos diziam estar
prestes a triunfar, perguntava: "Mas afinal, tenham a bondade de me dizer uma cousa: nós estamos no
Brazil ou no mundo da lua?". Figura polêmica, contraditória, este intrépido jornalista mulato defende o trono
até a véspera, mas cede na noite do dia 15, presidindo a sessão na Câmara Municipal que vota a
proclamação da República. Pesam contra ele as acusações de criar (e comandar) a Guarda Negra, uma
milícia voluntária formada por ex-escravos que juram defender a Família Imperial até a morte. Funda e
dirige, com Pardal Mallet, a Cidade do Rio em 1887, cuja sede fica num sobrado improvisado. Patrocínio
ainda sustentaria seu jornal até a década seguinte, fazendo oposição a Floriano Peixoto, e sendo preso por
isso. Morreu pobre, em 1905, mas seu enterro, pelo que consta, arrastou multidões.
A Cidade do Rio foi um jornal mais leve e mais sincero que seus contemporâneos. Porém, foi muito
mais esquizofrênico. Teve importância decisiva na campanha abolicionista. Em 1889, continua combativo,
mas difere dos antigos colegas por não aderir ao republicanismo. E, no dia seguinte, deu vivas ao "exército
libertador". Ainda assim, faz crítica (senão oposição) ao governo liberal, mas compartilhava das idéias
reformista do programa. Mas críticas vão só para o governo: a monarquia fica. Para o ex-abolicionista, o
problema não está no sistema, e sim nos gabinetes vacilantes.

32
Tribuna Liberal, 1.jul.1889

23
Também publica folhetim, críticas, artigos sobre vultos históricos, anúncios, poemas... na primeira
página! E é um dos pouquíssimos, nesta época, a trazer ilustrações para as matérias. Ilustrações ousadas,
por sinal: numa delas, uma meretriz de seios à mostra deposita flores num mausoléu para os abolicionistas.
Em, resumo, a Cidade do Rio em 1889 era "o jornal do crioulo doido". E este atendia pelo nome de José do
Patrocínio.
Nas páginas da Cidade do Rio, Patrocínio tentará lançar uma espécie de nova doutrina, reformista,
mas totalmente devotada à defesa da monarquia: o Isabelismo. O culto era tal que, 100 anos antes do funk,
o mulato Patrocínio já chamava a princesa de "mãe loura de todos os brasileiros". Aparentemente, os ex-
abolicionistas e os libertos passam a ter, na herdeira do trono, uma esperança pia de que a futura imperatriz
realizaria as reformas e as aspirações necessárias para promover a ascensão do nível de vida da
população e garantir a estabilidade do regime. Ainda assim, não querem precipitar as coisas: Patrocínio e
seu jornal jamais torcem para que o Imperador deixe o trono, nem por morte, nem por abdicação. É na
Cidade do Rio, aliás, que sai uma veemente defesa da estabilidade do trono, desmentindo boatos de que D.
Pedro II abdicaria no dia de seu aniversário (2 de dezembro):
"Virá a Republica? não. ¶ (...) Não! o exército não está sendo dispersado, nem a
Guarda Nacional está sendo organisada, com o fim de se conseguir operar em
melhores condições essa abdicação. (...) ¶ Se ha um golpe de estado a temer,
nada o evitará." "O partido republicano é fraco." (Cidade do Rio, 14.nov.1889)

De fato, o Imperador não abdicou. Esta nota foi publicada na véspera do golpe que o depôs.

Caso-a-Caso: REVISTA ILLUSTRADA e outros magazines satíricos


Apesar de não envolvida diretamente na pressão aberta pela república e na tática da boataria, há
uma vertente extremamente importante da imprensa brasileira nesta época, que ainda assim exerceu
considerável influência. As revistas (ou magazines) ilustradas destoavam dos blocos de texto que eram os
outros jornais. Mas não tinham, por isso, menos conteúdo: apareciam sempre satirizando em suas páginas
as personalidades da política e da sociedade, retratando-as como melhor lhes parecia — fazendo uso de
inúmeras metáforas visuais, algumas veladas, outras bem explícitas — e assim construindo as juízos do
leitor sobre cada um. Sobre a principal dessas publicações, a Revista Illustrada, diz Werneck Sodré:
"Por êsse tempo, a crítica política encontrava campo extraordinàriamente fecundo
nas revistas ilustradas: vindo de S. Paulo, em 1867, e ingressando logo em O
Arlequim, Ângelo Agostini passaria ao seu sucessor, no ano seguinte, a Vida
Fluminense. A 19 de setembro de 1869, começou a circular O Mosquito, sob o
subtítulo de "jornal [hebdomadário] caricato e crítico, com os desenhos de Cândido
de Faria"33 e, "a 1º de janeiro de 1876, surgiu a sua Revista Illustrada, um dos
grandes acontecimentos da imprensa brasileira. (...) A tiragem atingiu 4.000
exemplares, índice até aí não alcançado por qualquer periódico ilustrado na
América do Sul, regularmente distribuida em todas as províncias e nas principais
cidades do interior, com assinantes por tôda parte." 34

O caricaturista, ilustrador, jornalista Ângelo Agostini está entre as maiores personalidades da


imprensa brasileira. Numa época em que a fotografia ainda era rara — e cara — o ilustrador tem o poder
33
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 248
34
idem, pág. 249

24
inegável de construir o imaginário visual da sociedade. Assim, o Imperador Cabeça-de-Caju ou o primeiro-
ministro gorducho com ar de soberbo são o que a população — e aí, mesmo a massa analfabeta entra —
vai consumir e por onde vai se pautar. Ali criou-se uma iconografia simbólica da política no final do Império.
A Revista Illustrada realmente era inovadora. As ilustrações litografadas são de um perfeccionismo e
ao mesmo tempo expressividade incríveis. Não fosse a necessidade de conhecer os personagens da
época, até hoje seriam atualíssimas. Inova a Revista também por uma diagramação "interativa", com
ilustrações sobre o cabeçalho, moldura, etc.. Saía semanalmente e tinha distribuição nacional.
A participação política de Agostini é intensa (faz elogios à Gazeta de Noticias), e ele reflete isso em
seu trabalho. Seja quem for o chefe do gabinete, é ele quem recebe a coroa imperial sobre a cabeça, nas
caricaturas ("Dom Cotegipe", ou "Dom Ouro Preto" é que são o imperador, segundo Agostini). O Imperador
cochila enquanto tomam conta do Império por ele.
Em charge de final de mai.1888, uma penca de fazendeiros está perseguindo a moça de túnica e
barrete frígio, representação clássica da república. Ou seja, no dia seguinte à Abolição (pela qual Agostini
tanto lutou), a Revista faz a análise política mais contundente: a aristocracia rural agora quer correr atrás da
república.
E este é apenas um exemplo. Nos vinte e dois anos contínuos em que foi publicada, a Revista
Illustrada entranhou-se no cotidiano nacional (Cf. Werneck Sodré) e inspirou uma geração de magazines
satíricas. Embora um pouco anteriores, fazem parte da mesma safra: O Mosquito, O Besouro (ambos de
Bordalo Pinheiro, imigrante português, amigo de Agostini) e O Mequetrefe. Este fala pouco de política
nacional; é mais variado, sem propaganda republicana explícita. Ainda que menos ilustrado do que a
Revista Illustrada, é capaz de produzir uma seqüência contundente de cartuns. No número 163, em uma
"história em quadrinhos", o Brasil é representado por um índio que, na pele de Cristo, é julgado por Pilatos
(D. Pedro II) e condenado pelos fariseus (ministros). No último quadro, morre crucificado. Na edição
seguinte, 164, uma única gravura: o índio ressuscita, mas trocado o cocar por um barrete frígio 35. D. Pedro II
está embaixo, "derrubado" junto à lápide. Sem legendas.

Eis, no entanto, a curiosa justificativa dos próprios caricaturistas para a alta fertilidade de seus trabalhos:
"O primeiro, o melhor, o unico caricaturista, o nosso mestre, aquelle que inventa as
caricaturas politicas, litterarias, scientificas e todas que nós reproduzimos é S. M. o
Imperador. ¶ É elle quem faz os Ministros, os Senadores, os deputados, os
confeiteiros, sapateiros, os artistas, os barbeiros, etc., — quem os ridiculariza é
Elle — e só as caricaturas d'Elle irão á historia — as nossas — não — mesmo
porque nunca temos razão."36

35
símbolo universal da República
36
O Besouro, 1º.jun.1878

25
O REI PASMADO E A IMPRENSA NUA
A censura à imprensa havia acabado ainda no Primeiro Reinado. A própria personalidade de D.
Pedro II, avessa a perseguições, garantia um clima de ampla liberdade de expressão — em nível não
conhecido por nenhuma república latino-americana, graças aos caudilhos autoritários que lá se alternavam.
A oposição sempre soube tomar proveito dessa licenciosidade ideológica. Como era praticamente
permitido dizer tudo, levavam a efeito esta permissão, sem se preocupar enormemente com ética e
responsabilidade sobre a informação — valores estranhos à profissão jornalística de então. Liberais e
conservadores, sempre um em oposição quando outro estivesse no governo, neste sistema binário, usavam
da imprensa para macular a imagem do adversário, levantando denúncias e acusações — fossem
verdadeiras ou não — e com muita consciência de seu poder.
Para a proclamação da República, a boataria dos jornais foi uma arma mais poderosa do que os
canhões dos regimentos sublevados. Como veremos no capítulo 6, não houve um só momento em que se
travasse combate militar naquele golpe-de-estado (tirando uma troca de tiros com o ministro da Armada);
não foi ali que a República foi feita. Mais fácil é crer que ela foi criada — artificialmente — pelo conjunto de
jornalistas conspiradores nos anos antecedentes.
De fato, a profusão de veículos de imprensa é diretamente proporcional à gravidade das crises. Se
acontece algo contra o Império, surgem quatro, cinco jornais. É assim nas Questões Militar e Religiosa, na
Revolta do Vintém, na Abolição. Todas ondas de jornais acalorados que não duram mais que algumas
semanas. O editorial de O Mequetrefe em 13.dez.1880 já revela seu incômodo com o mau hábito:
"Não sei como ha jornalistas para tantos jornaes. É uma praga horrivel! (...) E
neste bello paiz da agricultura não ha policia que ponha paradeiro a estas cousas.
Tudo se diz impunemente. ¶ Encontra-se hoje jornalistas de camisa suja, que o
operario limpo tem nojo de andar ao lado delle. ¶ (...) Em paiz nenhum a imprensa
tem descido tanto." "Não ha policia que ponha paradeiro..." 37

Bem, mais tarde houve. Na edição do dia A 29.jul.1877, O Amigo do Povo (A Republica II) publica
em editorial a notícia que meninos jornaleiros sofreram ameaças, pela polícia, por vender o jornal, e
devolveram na redação o que haviam recebido para o dia. O Correio do Povo também relata espancamento
e prisão, pela polícia, do jornaleiro Caetano Segretto, que vendia jornais republicanos (2.out.1889). Apesar
disso, notícias de repressão policial eram muito raras.
Isso não impedia que aparecessem represálias. A redação d'A República, por exemplo, "foi atacada,
a 27 de fevereiro de 1873, e o jornal empastelado" 38. Depois da Abolição, "a luta pela República não
arrefeceu, antes se firmou: a reforma ao regime de trabalho e a reforma no regime político, no aparelho
institucional, eram inseparáveis. Antônio Prado, a 22 de junho de 1889, na Gazeta da Tarde, afirmava: 'Os
dias da monarquia estão contados.' O que não impediu o Chefe de Polícia da Côrte, José Basson de
Miranda Osório (...) de baixar, a 17 de julho, severa portaria, cominando sanções contra os propagandistas

37
O Mequetrefe, 13.dez.1880
38
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 244

26
da República."39 Mas a reação monárquica, mesmo em tempos conservadores, era tímida. O ambiente de
democracia ainda deixava o trono vulnerável a ataques.
"O clima político, que se vinha tornando progressivamente mais cálido, desde que
findara a guerra com o Paraguai, era pontilhado de incidentes. (...) Mesmo
movimentos de massa ocorreram como, em 1880, a revolta da população contra o
impôsto do vintém. Determinado o aumento das passagens, no transporte urbano,
a Gazeta de Notícias, com outros jornais, combateu-o calorosamente. Lopes
Trovão, em suas colunas, clamaria: 'Só por meio de uma revolução, o povo
conseguirá chamar o poder ao cumprimento dos seus deveres'. (...) Fiel aos seus
interêsses, o Jornal do Commercio, voz solitária em meio ao côro de protesto da
imprensa, escreveu simplesmente isto: 'A repressão pela fôrça era uma
necessidade imposta pelas circunstâncias e impossível é evitar os tristes
resultados do emprêgo das armas contra a multidão amotinada'" 40

O Jornal do Commercio não estava só. A voz do café na imprensa republicana saía da garganta de
Américo de Campos, advogado que fez carreira como jornalista e usou seus jornais como palanque para
campanhas de interesse da oligarquia paulista, como a Abolição e a República. Foi diretor do Correio
Paulistano, do Partido Republicano Paulista41, entre 1865 e 1875, ano em que saiu para fundar A Província
de S.Paulo (o jornal que, de 1889 até hoje, é O Estado de S.Paulo) junto com Rangel Pestana. De lá saiu,
em 1884, para fundar o Diário Popular, no qual escreveu Aristides Lobo seu célebre artigo sobre a
proclamação. No mesmo ano, seguindo Werneck Sodré, A Província de S.Paulo "assumia posição
francamente republicana"42. Além destes, havia em São Paulo também o Correio Paulistano (que, tirando
um hiato monarquista de 1874 a 1882, por troca de proprietário, defendeu desde 1854 idéias liberais,
abolicionistas e republicanas), e o Diario Mercantil. Outros periódicos contemporâneos em outras províncias
incluíam o Diário da Manhã (1882-1899) e o Diário das Alagoas (1858-1892), ambos em Alagoas, o Diário
Liberal e o Diário Mercantil (1884-1890), ambos em São Paulo.
A imprensa que não aderia ao republicanismo prendia-se à legalidade para amparar seu discurso.
Mesmo sendo minoria, é influente, pois é lida pelos eleitores do governo (obviamente, imensa maioria).
"O órgão monarquista Tribuna Liberal polemiza com o Correio do Povo, em que
Saldanha Marinho combate pela República. A imprensa republicana conta com 74
jornais, então, 20 no norte e 54 no sul; havia 237 clubes republicanos, sendo 204
em São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em janeiro de 1888,
encontrava eco em todo o país a indicação da Câmara Municipal de São Borja, no
Rio Grande do Sul, pedindo que fôsse consultado o país sobre a oportunidade de
se pronunciar, desde logo, relativamente à destituição da monarquia pela morte de
D. Pedro II, visto a herdeira do trono 'ser uma princesa fanática, casada com um
príncipe estrangeiro'."43

A propaganda republicana feita para as camadas populares manifestava-se neste nível: "Façamos a
revolução. Fora o rei. Cuidado com o exército; onde êle predomina, a liberdade é uma mentira." 44. Ou então,

39
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 275
40
SODRÉ, N.W. – op.cit., págs. 265-266
41
Embora o jornal tivesse sido fundado em 1865, só sete anos mais tarde surgirá o PRP, passando o Correio
Paulistano a ser seu órgão desse momento em diante.
42
SODRÉ, N. Werneck – op. cit., pág. 262
43
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 274
44
O Barrete Frígio, 1869, in SODRÉ, N.W. – "História da Imprensa no Brasil", Rio, Civ.Brasileira, 1966 – pág. 243

27
muito pior: "esses canalhocratas vadios, esses filhos da put...! que levam a tomar no c... o dia inteiro" 45;
assim se pronunciavam os republicanos.
Chegava a níveis burlescos. O Revolução (que já vimos como desmedidamente radical) dá uma
tortuosa volta argumentativa para, numa analogia à Guerra Franco-Prussiana (?) que derrubou o II Império
francês, afirmar ISTO: "A provavel guerra do Brazil com a Republica Argentina, será infalivelmente a morte
da monarchia" daí, segue em hypothese, o Rio Grande do Sul se alia à Argentina, se separa e arrasta
outros consigo, e cai o Imperio: "Que venha a guerra com a Republica Argentina e a victoria é nossa!"
Apelam também para a mistura indiscriminada do doutrinamento com o humor bizarro. Entre
matérias sérias, artigos de opinião, notícias telegrafadas, surgem soltas estas tiradas: "Um cão processado
por crime de estrupo<sic>", "Está provado que, d'entre todas as brazileiras, só a morena sabe amar" 46, e
muitas notas de briga de rua: "Por causa de uma mulher, brigaram... Muito padece quem ama" 47. Havia
também anedotas, charadas, ou mesmo o hilariante folhetim "O Ultimo Platonico", contando a história de
"Mauricio, o fresco".
O que havia era limitados conflitos entre manifestantes, de um lado e de outro, como deu o Diario
do Commercio a 15.jul.1889: "Ouviam-se gritos de viva a monarchia! Morra a republica!"; "A malta, apenas
ouvio os gritos, voltou-se immediatamente às cargas, trovejando: — mata! mata!" Em 2.jan.1889, a Cidade
do Rio de José Patrocínio denuncia o ataque que monarquistas sofreram por parte de militantes
republicanos, nas ruas do centro da capital. O jornal é minucioso (e irônico) ao descrever o conflito: "Pelo
inquerito policial, (...) póde-se ver que na travessa de Barris que eram os republicanos que estavam
armados de rewolver, os que numa expansão de fraternidade e respeito pela vida do proximo receberam
com uma descarga a multidão." Seu Editorial condena Quintino Bocayuva por deturpar fatos em O Paiz:
"Não fica bem, a quem pretende dirigir cathedralmente a opinião, fallar sem maior
estudo, julgar sem mais exame. ¶ Como nos convenceremos de que as
informações verdadeiras, recebidas pelo Sr. Quintino Bocayuva, são as do dia
seguinte? ¶ É pois o proprio principe do jornalismo fluminense quem eiya de
suspeição as suas asseverações; é elle mesmo quem aconselha ao publico a mais
rigorosa quarentena das suas opiniões, porque não sabe se (...) será pintado côr-
de-rosa o que na véspera o fôra tempestuoso, ou borrascoso o que tinha na
véspera tons da mais serena bonança."

Sobre conflito na rua entre republicanos e monarquistas, segue ironizando.


"Para architectar sua indignação scenographica, o Sr. Quintino Bocayuva precisa
de uma preliminar: os republicanos foram aggredidos. ¶ Essa preliminar é, porém,
inexacta: os correligionarios do Sr. Quintino Bocayuva foram os aggressores. ¶ No
domingo anterior, elles apedrejaram cobardemente um grupo de cinco homens de
côr, porque êstes tiveram a audacia de levantar vivas á monarchia, quando os
republicanos davam vivas á republica. Ao direito daquella, responderam os
correligionarios do Sr. Quintino Bocayuva, á pedra. ¶ (...) Todas as testemunhas
imparciaes declararam que, ouvido o grito — viva a monarchia — os republicanos
do Sr. Quintino (...) começaram logo a descarga, bradando um delles (...)
matemos esses negros."

45
O Amigo do Povo/A Republica (II), 1882
46
Diario de Noticias, 28.out.1889
47
Gazeta de Noticias

28
A Cidade do Rio jamais usa o termo "Guarda Negra" — talvez prova cabal de conivência. Patrocínio
ainda indaga, tentando zombar, sobre as atividades que o PR estaria desenvolvendo: "Que tem feito o
partido republicano? Onde está a imprensa, onde está a tribuna da Republica? O partido republicano mirra-
se na sua ideia, como os que se mirram na pratica dos prazeres solitarios." Mal sabia Patrocínio que o
partido agia, sim, porém não às luzes da democracia, e sim na sombra da conspiração.
Afinal de contas, como poderia agir abertamente um partido que nem adeptos suficientes tinha?
Como afirma Leôncio Basbaum, sarcasticamente, "em 1870 os republicanos do Rio se julgaram
suficientemente numerosos para se reunirem e fundar um Partido. A 3 de novembro desse ano, 30 pessoas,
depois de alguns debates em que não houvera inteira homogeneidade, (...) é fundado o primeiro Clube
Republicano"48. Nascia minúsculo e já condenado a rachar.
É ainda Basbaum quem nos dá o quadro geral da absoluta fraqueza eleitoral dos republicanos:
"Em 1888, um ano antes da proclamação da República, Quintino é mais uma vez
derrotado (...). Obtém 108 votos contra 1347 dados a Ferreira Viana. (...) Um ano
depois, a situação não parecia haver melhorado. Em julho de 1889, nas eleições
para o Senado, conseguia o Partido um sétimo da votação. E em agosto, nas
eleições para a Câmara dos Deputados, concorrendo, entre outros, dois dos mais
conhecidos nomes do Partido, a votação também não passou de um sétimo do
total. Se considerarmos que a República foi proclamada menos de três meses
depois, é fácil calcular a influência que o ideal republicano exercia sobre a
população e o seu papel na queda do trono" 49.

Ainda que "os números não mentissem", os jornais republicanos insistiam em, pelo menos,
dissimulá-los. Os republicanos foram mal votados no Rio e os jornais, em vez disso, dão que cresceu o
número de "adhesões". "Destes serviços a própria republica ha de utilisar a se tempo, porque o seu tempo
ha de vir forçosamente, visto que as nações tendem a caminhar da monarchia á republica é progredir" (a
frase original tinha mesmo problemas de coesão). No nordeste, o republicanismo é quase nulo, pois
Pernambuco e Bahia, como diz Basbaum, "eles eram a monarquia". Em 1881, nas primeiras eleições
diretas, tiveram 20% dos votos (contra 44% dos conservadores e 36% dos liberais), mas não elegem
nenhum candidato. Três anos depois elegem apenas 3 dos 122 deputados gerais. Na última eleição do
Império (31.ago.1889), têm 14% dos votos — ou seja, o número decai, proporcionalmente.
O Correio do Povo publica, na semana seguinte às últimas eleições, os votos republicanos em cada
província. No Maranhão, receberam apenas UM voto. O Correio dá os números oficiais (15.814 votos aos
republicanos no Brasil inteiro, entre 113 mil) e diz que na verdade são 28.000. De onde tira esse número?
De novo, o Correio não explica.
"Em 1889, as eleições repetiram farsa costumeira: numa Câmara de 139 deputados, a oposição
contava apenas com 9. De 1888, a 1889, a agitação foi em crescendo." 50 Editorial do Correio do Povo de
4.out.1889 critica que o voto direto não acabou com a eleição de "câmaras unânimes". (conseqüência do
"parlamentarismo às avessas"). Lógico, pois os republicanos eram mesmo mal votados.

48
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 207
49
idem, págs. 209-210
50
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 275

29
É o próprio O Paiz quem confirma, a 1.jan.1885, que é só neste momento que os republicanos
conseguem eleger seu primeiro representante de fato, com eleitorado ideologicamente constituído:
"A idéia republicana já teve no seio do nosso parlamento um apostolo — Joaquim
Saldanha Marinho, eleito deputado pela provincia do Amazonas, na 17ª legislatura.
¶ Os eleitores, porém, que suffragaram o nome desse illustre cidadão e que
tiveram a nobre gentileza de o deixar livre e sem compromissos para a
manifestação de suas ideias politicas, não o elegeram por ellas, não eram
republicanos e nem por ellas se fizeram representar. ¶ (...) Não succede o mesmo
com referencia à pessoa do Dr. Manoel Ferraz de Campos Salles, que como nos
annuncia o telegrapho, acaba de ser eleito representante da nação pelo 7º
disctricto da provincia de S. Paulo. ¶ O ilustre cidadão que acaba de ser investido
de tão honroso mandato é o primeiro representante da ideia republicana,
suffragado por um eleitorado republicano, eleitorado que conquistou, pelos meios
legaes, mas francos e positivos, o direito que acaba de receber nas urnas a sua
suprema sancção. ¶ Este facto, que constitue um phenomeno politico, deve ser
assignado por nós como por toda a imprensa."51 (grifo meu)

É um dos mais ativos republicanos, Aristides Lobo, quem lamenta, em 1888: "É triste ver a atitude
indiferente, quase nula, em que se acha o partido republicano da Corte". Aristides Lobo, por sinal, parece
ser o único republicano humilde o suficiente para admitir as fraquezas do movimento, já que mais tarde será
ele quem escreve sobre a apatia popular na proclamação (ver no capítulo 6).
E os lamentos de Aristides, pelo que afirmam fontes históricas, são justificáveis. A edição
comemorativa de VEJA do dia 20 de novembro de 1989, voltando no tempo e publicando um exemplar
datado de 100 anos antes, reconstrói uma seção de correspondência, onde constam elogios a remédios
para calos, anúncios de animais desaparecidos, pedidos de criada, reclamações de desvio em linha de
trem, mas nenhuma menção às aspirações para mudança de regime. Diz a revista: "Estas cartas —
selecionadas entre as publicadas no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, e n'A Provincia de S.Paulo na
semana que antecedeu a Proclamação da República, no último dia 15, atestam o marasmo existente no
país nesse período. Alheia à crise política que corroía o Império e à conspiração republicana, a população
se ocupava, placidamente, de seus problemas cotidianos. (...) Mas não se encontra uma carta sequer que
faça referência à barafunda política na qual o país se encontrava." (grifos meus)
Contrariando a maior parte dos historiadores, e o próprio Manifesto de 1870, Leôncio Basbaum
afirma categoricamente: "não era tão grande como supõem muitos a 'tradição republicana' em nosso país,
— para não dizer que não havia nenhuma — muito embora houvesse republicanos e idéias republicanas em
alguns dos movimentos que agitaram o país durante cerca de 50 anos" 52. Tal afirmação possivelmente se
deve ao fato de que, a despeito de movimentos do Primeiro Reinado como a Confederação do Equador e a
República Farroupilha, não tinha havido nenhuma larga disseminação das idéias de que a forma
republicana de governo era melhor ou mais adequada.
Ainda assim, a elite intelectual, desligada da realidade das massas, construía seu universo
ideológico no mundo do faz-de-conta das redações na Rua do Ouvidor. Os ataques ao chefe do gabinete,
Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto, eram diretos e mordazes:

51
"O PAIZ" (1.jan.1885)
52
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 206

30
"EPHEMERIDES:  N'esta data, em 1702, succede a D. João de Lencastro — não
se leia D. João de Castro — no governo geral do Brasil, D. Rodrigo da Costa, que
em tal cargo conservou-se durante 3 annos. ¶ Hoje, como sabemos, é governador-
geral do Brasil o Sr. Visconde de Ouro Preto, que no seu cargo se conservará até
que se faça a federação das provincias. Ou que não se faça isso, que vem a ser o
mesmo"53.
"EPHEMERIDINAS:  Nasceu nesta data, em 1795, e na cidade de Ouro Preto,
Bernardo Pereira de Vasconcellos, grande politico, estadista acima da craveira
comum, notavel financeiro, parlamentar adestrado e, finalmente, luzeiro do partido
liberal. ¶ Já disse que era de Ouro Preto... Será a sorte de todos os Ouros Pretos
taes attributos possuírem?"54

Claro que não havia embasamento ideológico para isso. Afonso Celso apenas cumpria o papel de
alvo preferencial por ser circunstancialmente o chefe do governo imperial — era "a bola da vez". O
programa de reformas que ele apresentou à Câmara continha várias das mesmas reivindicações dos
republicanos (e isso pode ter precipitado sua queda, vide capítulo 6). E, mais do que tudo, o próprio Afonso
Celso já tinha se declarado um republicano, oito anos antes 55!
É a necessidade de ter um adversário para combater, sem importar quem seja, que guia a nossa
imprensa panfletária.

53
Gazeta de Noticias, 3.jul.1889
54
Gazeta de Noticias, 27.ago.1889
55
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 214

31
SUA MAJESTADE, O CANHÃO
Quando as tropas de D. Pedro I cercaram a Câmara dos Deputados, em 1823, dissolvendo a
constituinte que parecia liberal demais aos olhos do primeiro imperador, o então presidente da Câmara,
Antonio Carlos, saiu do prédio tirando a cartola para um canhão, de estopim aceso, para fazer reverência a
"Sua Majestade, o Canhão". Assim, com ironia e bom-humor, reagia a oposição liberal nos primeiros anos
do Império.
Agora, em 1889, os opositores do mesmo Império pareciam esquecer o que lhes tinha sido
ofensivo, naquela época, e propunham um sistema político-ideológico em que não diferenciava muito no
autoritarismo militarista. Talvez, quem sabe, atentendo às novas exigências protocolares, um Antonio Carlos
dos novos tempos trocasse apenas o "Majestade" por "Excelência". Uma parte considerável dos raros
republicanos brasileiros era formada por membros das classes burguesas urbanas que estavam sendo
influenciados por uma peculiar doutrina francesa. O Positivismo, ou Filosofia Positiva, foi um misto de
sistema filosófico e religião desenvolvido por Auguste Comte, um pensador francês contemporâneo à
restauração dos Bourbon e à consolidação do poder burguês.
Mas, afinal, o que era o tal Positivismo?
Basicamente, suas idéias sistematizavam a filosofia tendo as ciências exatas como modelo, e
apelando à racionalidade como única fonte de conhecimento e de toda organização social — faz uma
perspectiva matemática das ciências humanas. Era parcamente embasado em Bacon, Berkeley e Hume, e
contestava a especulação metafísica, herdeira de Aristóteles.
Politicamente, defendia a adoção de um regime "racional" adequado à "leis que regem a natureza
humana", deduzidas empiricamente. Este regime só poderia ser uma república ditatorial apoiada pelas
massas, que levariam ao poder um líder carismático benevolente com amplos poderes. Uma vez
constituído, seria função fundamental do novo regime a garantia da ordem social para a produção capitalista
(progresso) e a imposição da paz por meio da força (de preferência, militar). Em última instância, constituiria
uma elite dirigente tecnocrática e acima das divergências ideológicas. Na prática, é um regime bem próximo
ao fascismo, embora seja um erro chamar o Positivismo de fascista, já que este é um fenômeno exclusivo
do século XX, portanto posterior.
No país natal de Comte, a repercussão de suas idéias foi deveras limitada. Tirando distantes
correlações com o pensamento de John Stuart Mill, Herbert Spencer e o posterior Círculo de Viena, Auguste
Comte era (e é) visto como medíocre pela grande maioria de seus conterrâneos, bem como pelos
pensadores do resto do mundo em geral. Lenin definiu-a como "total charlatanice burguesa" (Basbaum, pág.
203). Para ser mais específico, não é exagero dizer que o Positivismo, como ideologia política, foi ignorado
em praticamente todo o mundo — menos no México e no Brasil.
Leôncio Basbaum comenta que "o positivismo, embora já moribundo na França, começava, com
novo vigor, a fazer vítimas no Brasil." 56 As "vítimas" eram, principalmente, militares, jovens oficiais, e
representantes daquilo que seria mais tarde chamado de "classe média": a pequena burguesia urbana que,

56
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 150

32
não sendo detentora de meios de produção, era intelectualizada e consumidora o suficiente para não ser
proletária. Assim relata João Cruz Costa, importante historiador da filosofia no Brasil:
"Em 1º de abril de 1876, fundava-se 'uma sociedade composta de pessoas
confessando-se positivistas em graus diversos, aceitando pelo menos a Filosofia
positiva. Sem nenhum caráter religioso, essa sociedade se propunha a organizar
uma biblioteca positivista, segundo as indicações de Augusto Comte e a fazer,
mais tarde, cursos científicos' [Teixeira Mendes]. Os fundadores dessa sociedade
foram Antônio Carlos de Oliveira Guimarães, Benjamin Constant [como
responsável pela biblioteca], Joaquim Ribeiro de Mendonça, (...) Miguel Lemos e
Teixeira Mendes. Fundaram-se então jornais, revistas e realizaram-se
conferências destinadas à propagação das novas idéias filosóficas."57 (grifo meu)

O número de adeptos da Sociedade Positivista ("automarginalizado, republicano, mas hostil a


revoluções"58), contudo, é de apenas 4, em 1877, aumenta para 6, em 1879 e chega à soma espetacular de
13, em 1880. Muda de nome, então, para Igreja Positivista do Brasil 59. Durante toda a década de 1880,
oscilará entre 48 e 54 membros, não passando disso até a "proclamação" da República 60. Quando ela
ocorre, aí sim a Sociedade/Igreja salta para 160 adeptos... numa população de 15 milhões.
Isto porque os positivistas, graças à concepção comtiana sobre o que seria o governo ideal, descrita
três parágrafos atràs, aderiram ao republicanismo — mas não do modo como o queriam os redatores do
Manifesto de 1870, e sim do modo como lhes convinha.
"Ao movimento republicano que, de 1870 em diante, tomara vulto, haviam aderido,
antes mesmo de se integrarem completamente na doutrina do Mestre [N.do.A.:
Auguste Comte], os principais chefes da futura Igreja Positivista do Brasil.
Submissos aos preceitos indicados por Comte no seu Manifesto Inicial da
Sociedade Positivista de Paris, os positivistas seriam republicanos, mas "à sua
maneira, à sua originalíssima maneira. Embora concordando com os outros na
superioridade da forma republicana de governo, diferiam deles profundamente em
muitos pontos essenciais; em certos pontos estavam em completo antagonismo
com os signatários do Manifesto de 1870. Em boa verdade, estes eram, antes de
tudo, democratas, e os positivistas, no idealizarem a sua organização republicana
não eram propriamente isto, não pareciam cortejar o elemento democrático; pelo
menos, no tipo de governo que concebiam, a Democracia não ocupava um grande
lugar; pode-se mesmo dizer que tinha pouco que fazer'. 61"62

Aqui, por uma série de motivos singulares, essa doutrina autoritária conquistou a simpatia dos
militares, das incipientes "camadas médias urbanas" e perdura até hoje como a formação da (fraca) base
intelectual do Exército Brasileiro. Com sua necessidade de manter a ordem por meio das armas, a idelogia
comtista agradou o jovem oficialato que, nas décadas de 1870-1880, temia o desprestígio e a inatividade
após terminada a Guerra do Paraguai. Entre os primeiros adeptos, e com certeza o principal propagandista
do Positivismo entre os militares, estava aquela mesma estátua do Campo de Santana: Benjamin Constant.
Benjamin Constant Botelho de Magalhães, se tivesse sido adolescente no final do século XX, seria
o que hoje se chama de "nerd". Anti-social, dedicado exclusivamente aos estudos desde criança, tinha
57
CRUZ COSTA, "Contribuição à História das Idéias no Brasil", Rio, Civ.Brasileira, 1967, 2ª ed., pág. 151
58
JOFFILY, B. – op.cit., pág. 87
59
atualmente informatizada em http://www.arras.com.br/igrposit
60
"Cabia folgadamente dentro do salão do Clube Militar...", Comentário de Oliveira Viana, apud BASBAUM, L. – op.cit.
61
OLIVEIRA VIANA, O Ocaso do Império, pág.120, in
62
CRUZ COSTA, op.cit., pág. 171

33
problemas psicológicos na adolescência e chegou a tentar o suicídio, pulando dentro de um rio (Auguste
Comte fizera exatamente o mesmo em 1827). Compensava-se na matemática: de monitor dos professores
na escola, era professor já aos 20 anos. Com 26 assumiu esta disciplina no Instituto de Meninos Cegos, que
dirigiu por duas décadas. Em sua homenagem, a escola foi rebatizada como Instituto Benjamin Constant. Ao
morrer, em 1891, recebeu o título de "Fundador da República Brasileira".
Nasceu em Niterói, 1836, dois anos antes na mesma cidade em que morria José Bonifácio, o
Fundador do Império Brasileiro. Foi batizado com nome e sobrenome do político liberal francês. Seus
biógrafos são ambíguos: Bernardo Joffily descreve-o como "positivista heterodoxo, ídolo de seus alunos na
Academia Militar que, em pactos de sangue, juram seguir o mestre a todo custo"; Eduardo Bueno diz que
Constant "não gostava de armas e batalhas", odiava usar farda e que fora o desprezo com que era tratado
pela academia e pelo comando militar, junto com seus jovens alunos, "que influenciaram o mestre" a aderir
ao republicanismo. Tinha aderido ao Positivismo quase que por acaso: encontrando um livro de Comte num
sebo, comprou-o, leu-o e, sendo ele próprio professor de matemática e geometria na Escola Militar,
apaixonou-se pelas idéias do racionalista francês. Em carta à esposa, Benjamin Constant explica de
maneira positivista o que é, para ele, o Positivismo:
"É uma religião nova, porém a mais racional, a mais filosófica e a única que
dimana das leis que regem a natureza humana. ...não teria ainda aparecido se ao
gênio admirável do pensador Augusto Comte não fosse dado, pela vastidão de sua
inteligência, transpor os séculos que hão de vir, (...) dando-nos na sua religião
científica a religião definitiva da Humanidade." 63

Ainda assim, o exaltado tenente-coronel guarda reservas. Apesar de ajudar a fundar o Centro
Positivista da capital e o Apostolado Positivista, Benjamin Constant não adere de todo à "Religião da
Humanidade", que ele considerava excessivamente litúrgica e dogmática. Acaba deixando o Apostolado em
1881, mas não a doutrina.
O fato é que Benjamin Constant era a ligação entre os positivistas e os militares e, sozinho, foi
responsável por uma enorme parte da articulação para o golpe de 15.nov.1889. E pela parte mais suja,
também: os boatos, as calúnias, as chantagens e as traições.
Como visto anteriormente, eram os positivistas em número irrisório, às vésperas da República, e
desta maneira procuraram uma rápida expansão — pela propaganda agressiva e pelas articulações com
outros interessados na mudança de regime, como os militares e os cafeeiros. Mas, como a visão de
república que os comtianos seguiam era muito diferente, os positivistas procuravam não quem fizesse
república com eles, e sim alguém que a fizesse para eles.
Mas o interesse era mútuo. Também o Partido Republicano queria ter ao seu lado o Apostolado, e
em 1881 o Quintino Bocayuva vai a Miguel Lemos pedir apoio a sua candidatura a deputado. O PR participa
das eleições "sem iludir-se, porém, sobre a sorte que aguardava a candidatura do seu representante", pois
sabia que não tinha votos. Vinha apenas para "contar os seus eleitores e afirmar a sua aspiração política" 64.
O PR era, na ocasião, não maior do que o PSTU é hoje.

63
CONSTANT, B., in CRUZ COSTA, op.cit., págs. 132-133
64
CRUZ COSTA – op.cit., pág. 176

34
Miguel Lemos (que, com Teixeira Mendes, formava a dupla de apóstolos mais importante da
doutrina de Comte no Brasil) aceita apoiar o jornalista, mas faz cobranças 65. A primeira, que uma vez na
Câmara, Bocayuva defendesse as reformas positivistas, para chegar à República pela "evolução", jamais
pela Revolução. A segunda, que seguisse "uma marcha gradual", e não fizesse a mudança de regime "do
dia para a noite". No dia 15 de novembro de 1889, Bocayuva cumpriria exatamente o inverso. Literalmente.
"Não demorou muito, porém, esse namoro entre o partido republicano e o grupo
positivista. Quintino Bocayuva em breve ressurgiu como incurável jornalista que
era e só esse fato já era suficiente para desapontar os positivistas" 66.

A despeito da implicância com o jornalismo, os positivistas usam a imprensa habilmente. Menos


inflamados que os republicanos do PR, porém muito mais doutrinários, constróem uma "rede ampla" de
jornais que publicam seus manifestos e artigos de exposição ideológica: a Gazeta da Tarde, a Gazeta de
Notícias e o seu próprio jornal, O Rebate, que vimos no Capítulo 2. Cruz Costa escreve que "Miguel Lemos
menciona os seguintes periódicos aparecidos então: A Ideia, revista mensal; O Rebate, semanário; A
Crença, semanário; A Chronica do Imperio, folheto quinzenal"67.
Entre agosto e setembro de 1889, a Gazeta de Noticias publica um artigo, em capítulos, intitulado "A
Dictadura Republicana", assinado por José Feliciano. Nele, a ideologia positivista para a política é exposta
sem pudores, com detalhes. Ao regime monárquico-parlamentar são atribuídos todos os defeitos, da
fraqueza à corrupção. A solução apontada, em texto claro e sem rodeios, é a instituição de um "governo
republicano provisório ditatorial" —a "sociocracia", ditadura republicana de Comte.
"Ora, as forças sociais republicanas devem convergir em uma só personalidade,
sob pena de serem desaproveitadas com divergir para varios agentes, que formam
um todo impessoal e indefinido. ¶ Que o presidente da Republica presida e
governe este paiz e fique estabelecido que — GOVERNAR É PRIMEIRO DE
TUDO DICTAR LEIS E DEPOIS EXECUTAL-AS. (...) ...O dictador republicano não
póde ser acclamado por si mesmo, ha de ser forçosamente escolhido pelo
suffragio universal, e deve ser escolhido de uma vez para sempre. ¶ A eleição dos
superiores pelos inferiores é uma instituição anormal (...) Releva, porém, que o
advento da dictadura pode ser uma transformação provinda do alto, sem
intervenção do suffragio, e sem uma qualquer insurreição." ¶ "Assim, a ordem
social não se abalaria, e a dictadura representaria seu verdadeiro papel como
governo pacífico. A dictadura é um governo que deve abster-se dos meios
violentos (...) afim de conciliar mais as necessidades do progresso com as
necessidades da ordem."

De fato, a influência que os positivistas exerceram na "República da Espada" (1889-1894) foi


considerável. Floriano Peixoto, quando presidente, vestiu muito bem a farda do ditador que Feliciano
descreve no artigo. O próprio Deodoro, ao receber para assinar o texto da Constituição de 1891,
perguntaria: "Onde está o artigo que autoriza o Presidente a dissolver o Parlamento?". Depois que Ruy
Barboza respondeu que não havia esse dispositivo, o Marechal profetizou: "Pois bem. Mas o senhor há de
sair um dia do Congresso, como Antonio Carlos, em 1823, tirando seu chapéu à majestade do canhão" 68.

65
CRUZ COSTA – op.cit., pág. 178
66
CRUZ COSTA – op.cit., pág. 179
67
CRUZ COSTA – op.cit., pág. 151
68
JOFFILY, B. – op.cit., pág. (Brasil 500 Anos/IstoÉ)

35
O que eles opõem ao republicanismo não é a monarquia, e sim o parlamentarismo (ou "metafísica
democrática"), porque república para os positivistas não é democracia (como para os iluministas) e sim um
governo exercido por um autocrata personalista em nome das massas. Ou melhor: "o ditador comtiano, em
tese, deveria ser representativo, mas poderia 'afastar-se' do povo em nome do 'bem da república'." 69
O programa de reforma que o Apostolado Positivista trazia, seguindo fielmente os ensinamentos de
Auguste Comte, inclui todos os ítens reclamados pelo Manifesto de 1870, e a eles soma: acumulação dos
três poderes nas mãos do ditador, que indicaria pessoalmente seu sucessor; lacização do Estado, reforma
do ensino, abolição da exigência de diploma para exercer qualquer profissão, reforma na legislação
trabalhista de forma a melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores (e sua formação intelectual);
restrições ao sufrágio: Só votam os eleitores urbanos, com mais de 28 anos, em voto aberto; federação
absoluta: os positivistas são ultrafederalistas e falam em "vinte e uma pátrias brasileiras" — muito
provavelmente inspirado por Comte, que previu a França "livremente decomposta em 17 repúblicas".
Feita a República, abriu-se a temporada de faxina. O horror positivista a tudo que lembrasse a
monarquia, ou pudesse fomentar desejos restauradores, fez "limpeza" em diversos aspectos simbólicos e
reais da vida nacional: pressiona o governo para banir a Família Imperial, retirando sua cidadania, altera a
bandeira, instituindo nela um lema comtista (Ordem e Progresso); troca para "Ginásio Nacional" o nome do
Colégio Pedro II (recuperado em 1909); propõe (8.nov.1890) uma reforma educacional doutrinária;
compõem uma nova letra para o hino nacional. Por sinal, foi obra dos positivistas que La Marseillaise
durasse como hino provisório brasileiro entre nov.1889 e jan.1890. Segundo Eduardo Bueno, "a batalha
simbólica — na verdade, a outra face de um combate ideológico — foi vencida pelos positivistas" 70.
Das propostas que não conseguiram colocar em prática de imediato, várias foram executadas mais
tarde e perduram até hoje no Brasil — senão pelos golpistas de 1889 tendo Miguel Lemos e Teixeira
Mendes cochichando aos seus ouvidos, seriam efetivadas pelos gaúchos de 1930, positivistas em maioria:
a legislação trabalhista de Comte tornou-se a CLT de Vargas e Lindolfo Collor 71.
Tudo que os positivistas desejassem fazer, entretanto, fosse polêmico ou não, exigia o apoio da
nova elite que despontava: os barões do café ligados intimamente à nascente indústria da capital paulista.
Não é possível, sob nenhuma circunstância, afirmar que a República Positivista ("Sociocracia") seria feita
sozinha pelas rezas do Apostolado. Seu projeto dependia de respaldo da força econômica: e esta brotava
da terra roxa do Oeste Paulista. Isto é confirmado neste resumo do brasilianista Robert M. Levine:
"A doutrina do positivismo de Auguste Comte foi muito influente no Brasil entre
power brokers, que usaram a filosofia como uma desculpa para conter reformas
democráticas e se concentrar em progresso material e na importação de idéias
estrangeiras. Republicanismo, quando foi organizado em oposição à monarquia
em 1870, sempre permaneceu como um movimento para os ricos, apesar de
clubes republicanos superficialmente parecerem como seus similares europeus. O
proselitismo republicano não atingiu virtualmente ninguém na população em geral,
diferente da França, onde pequenas cidades e vilarejos foram os centros do
movimento e a maior parte dos republicanos era pequenos burgueses ou artesãos.
E nem os republicanos brasileiros foram a favor da democracia. Eles abominavam

69
F
70
BUENO, E. – op.cit., pág. 161
71
O termo "trabalhismo", aliás, é criado por Auguste Comte.

36
a idéia de reforma, preferindo preservar distinções de classe; na Argentina e no
Chile, em contraste, positivistas exigiram melhores recursos educacionais para
elevar o nível da população como um todo"72.

E também Bueno:
"Embora nunca tendo havido grandes interesses comuns nem mesmo contato
intenso entre os militares e o PRP, foi a burguesia cafeeira paulista que,
implicitamente, deu aos militares a convicção de que sua aventura golpista
contava com uma sólida base de apoio econômica e social." 73

Não é a índole pacifista de Comte, e sim o fato de necessitarem do apoio dos cafeeiros, obviamente
conservadores, que força os positivistas a preferir a mudança gradual pelas vias institucionais do que a
ruptura violenta. No mesmíssimo artigo na Gazeta de Noticias, eles fazem a revelação de que, antes de
partir para a conspiração contra a Coroa, tentaram convencer o próprio Imperador a adotar sua proposta de
regime, dando um golpe republicano que o transformaria em ditador vitalício. Algo como o inverso do 18
Brumário bonapartista.
"O melhor meio de obter essa transmudação dictatoria, fôra esclarecer o chefe do
estado sobre a situação republicana, patenteando-lhe as vantagens advindas a
seu próprio poder de uma nobre sujeição às condições sociaes de nosso tempo. ¶
O chefe do estado, renunciando a hereditariedade e a irresponsabilidade, evitaria
ao paiz os males de uma successão indigna, evitaria insurreições imminentes, e
acabava com o infesto, com o damnoso regimen parlamentar. ¶ Este meio já foi
posto em prática pelos positivistas brasileiros, ha cousa de 8 annos, quando o
Imperador podia e devia abdicar de suas lantejoulas realengas, para guiar o paiz
como um verdadeiro dictador republicano. Infelizmente o Imperador não soube
comprehender o conselho que desinteressadamente lhe davam." 74

A notícia, apesar de surpreendente, encontra confirmação em outros historiadores: "Aliás os


positivistas chegaram mesmo a dirigir um apelo ao Imperador no sentido de que ele mesmo proclamasse a
República. Apelo malogrado pois, como seria de supor, D. Pedro era monarquista" 75. Finalmente rejeitados,
os discípulos de Comte decidiram passar à conspiração.
Finalmente, temos certeza de que não foi a doutrina positivista que fez a República no Brasil, mas
sim os homens positivistas que, tendo aderido ao republicanismo por orientação do "Mestre", trabalharam
pela articulação do golpe militar de 1889. Como observa José Maria dos Santos, "Não é possível negar que
o positivismo tenha exercido certa influência na propaganda republicana. Mas é preciso não exagerar essa
influência"76. E com ele concorda Leôncio Basbaum:
"A contribuição desses republicanos, como positivistas, foi mínima. Se o
positivismo contribuiu para popularizar a idéia ou o ideal republicano, com maior
repercussão no exército, e de certo modo na proclamação da República, as idéias
positivistas como doutrina filosófica, pouca influência tiveram."

72
LEVINE, R.M. - "Brazilian Legacies", Sharpe, 1997 (disponível em http://www.brazzil.com/blajan98.htm)
73
BUENO, E. – op.cit., pág. 157
74
Gazeta de Noticias, 1º.set.1889
75
BASBAUM, L. – op.cit, pág. 219
76
SANTOS, J. M. dos – "A Política Geral do Brasil", apud BASBAUM, L. – op.cit., pág. 204

37
Os positivistas/jacobinos e a força que efetivamente deu respaldo político-econômico para a
proclamação, que "encontrou sua base nos fazendeiros de café, interessados na derrocada da monarquia,
na conquista de pleno domínio do aparelho de Estado, para preservar os seus interêsses, que começavam
a ser ameaçados. Não estava de acôrdo com reformas: queria uma República de fachada, uma espécie de
monarquia sem sucessão hereditária, — a continuação do passado, na essência, mudados os homens, e
nem todos."77
A situação hipócrita-esquizofrênica à qual os positivistas se submeteram nessa ocasião é uma
conseqüência das particularidades de uma corrente filosófica que exigia a conquista do poder político para
colocar em exercício seus ensinamentos e sentenças. O Positivismo, assim como o Iluminismo, é uma
filosofia-doutrina que assume para si o papel de conhecedora da verdade por meio da razão e salvadora da
sociedade através da prática das soluções por ela sugeridas. Essas soluções, por sua vez, seriam fruto
"lógico" da observação/experiência empírica e científica. Ou seja, assim como na França de 1789 os
Iluministas se consideram os únicos "esclarecidos" capazes de "guiar" a Nação, no Brasil de cem anos
depois os Positivistas reclamarão a mesmíssima bandeira. Para hasteá-la, julgaram necessário alcançar o
lugar mais alto na pirâmide social — e daí empreenderam sua batalha pela conquista do Estado.

77
SODRÉ, N.W. – op.cit.

38
1889: A CONQUISTA DO ESTADO

O Quinze de Novembro de 1889 foi uma dessas revoluções que só o Brasil sabe produzir.
Revoluções como a de 31.mar.1964, ou de 3.out.1930, em que não há combates, sangue nas ruas,
barricadas, derrubadas de bastilhas nem de palácios de inverno. Revoluções em que os canhões apontados
para o prédio do governo já bastam para terem êxito. Revoluções nacionais, sem ter a nação no meio. O
Quinze de Novembro foi uma dessas estranhas revoluções. Uma revolução que só Benjamin Constant viu.
"Não houve um só tiro que pudesse revelar que se tratava de um golpe e não de
um desfile. Se ecoassem disparos (...), talvez aqueles 600 soldados percebessem
que não estavam ali para participar de uma manobra, e sim para derrubar um
regime. Na verdade, vários militares ali presentes sabiam que estavam
participando de uma quartelada. Mesmo os que pensavam assim achavam que
quem estava caindo era o primeiro-ministro Ouro Preto. Jamais o imperador D.
Pedro II — muito menos a monarquia que ele representava. (...) O fato é que
naquela mesma hora o ministro Ouro Preto foi preso e o gabinete derrubado. Mas
ninguém teve coragem de falar em república, Apenas à noite, quando golpistas
civis e militares se reuniram, foi que proclamaram — em silêncio e provisoriamente
— uma república federativa."

A ordem de prisão que Deodoro deu contra o Visconde foi retirada logo em seguida. Imediatamente,
foi ter o ministro deposto com o Imperador, recém-descido de Petrópolis, e apresentou sua demissão. D.
Pedro II providenciou logo a nomeação de um novo gabinete, como já estava acostumado... seria a 38ª vez
em seu reinado. Sugeriram o nome de Silveira Martins, desafeto de Deodoro. Não aceitou. Indicou o
Conselheiro Saraiva, que já tinha chefiado gabinete por duas vezes. Mas quem levou a notícia ao general
(inocentemente?) foi Benjamin Constant, e a informação que ele dera foi falsa: Silveira Martins sucederia
Ouro Preto. Aí, Deodoro sentiu-se traído. E assinou o papel redigido às pressas na redação da Cidade do
Rio, apresentado na Câmara Municipal (pois a assembléia dos deputados só assumiria no dia 20) a um
punhado de militares e meia dúzia de civis recrutados ali na mesma hora. Neste momento é que Deodoro
deu seu "Viva a República". Por escrito.

Foi desta maneira que a população inteira, revoltada e triunfante, proclamou a República no Brasil.

O grito do Marechal (que em 1889 não tinha essa patente; era ainda general) ao entrar com a tropa
no Quartel-General do Campo da Aclamação foi na verdade "Viva Sua Majestade o Imperador!". Quem
afirma é uma testemunha ocular famosa, Cândido Rondon (também feito Marechal, no século seguinte). E
mais: teria dito, após a "longa lista de queixas" 78 que fez a Ouro Preto, que o Imperador teria seus direitos
"respeitados e garantidos" e que iria pessoalmente até ele discutir o novo gabinete a ser formado. Ou seja,
o general Deodoro da Fonseca confirmava a sua convicção monarquista e
Mas como pôde ser possível, então, que aquele mesmo dia 15 de novembro de 1889 passasse à
História do Brasil como a virada do regime monárquico para o republicano?

78
BUENO, E. – idem

39
A resposta está na logística, na tática, na articulação muito bem-montada para o golpe (ainda que,
em cima da hora, certos imprevistos tivessem que ser contornados com improvisos).
Vimos nos capítulos anteriores a intensa campanha difundida pela imprensa carioca contra o
governo do Visconde de Ouro Preto e as instituições do Império. Vimos a proposta de regime autoritário que
os positivistas defendiam. Vimos a personalidade maniqueísta de Benjamin Constant. Vimos as técnicas de
se difundir boatos. Vimos a aliança tácita entre militares, positivistas e cafeeiros paulistas.
Juntados todos esses ingredientes, na proporção certa e cada um a seu tempo, tivemos a receita de
um golpe-de-Estado bem-sucedido e definitivo contra o Império Brasileiro.
Mas eu ainda creio que o fermento que fez este bolo crescer foi a imprensa.

Derrubado o último gabinete conservador em 1888, por resistir à abolição, os liberais trataram de se
aproveitar da situação confortável de voltar ao poder, com a assinatura da tão popular Lei Áurea, para
apressar em regime de urgência a definição de um programa de reformas. Compreendiam que as
mudanças na estrutura econômica do País exigiam correspondentes mudanças políticas que adequassem o
Estado ao novo sistema de produção que se instalava. Compreendiam, mais ainda, que se o Império
resistisse a executar essas mudanças, teria selado seu fim. Para isso, trataram de formar unidade em torno
de um programa comum de reformas.
"Os liberais preparavam o congresso do partido, previsto para maio de 1889, e
começaram por lançar, em dezembro de 1888, a Tribuna Liberal, com oficinas à
rua Nova do Ouvidor. Aquêle congresso levantaria o programa liberal, incluindo o
voto secreto, o eleitorado à base da alfabetização e não da renda, a reforma da
administração provincial, o direito de reunião, o casamento civil obrigatório, a
liberdade de cultos, a temporariedade do Senado, a reforma do Conselho de
Estado, a reforma do ensino; Rui e mais dezoito congressistas levantariam mesmo
a idéia da federação. Era programa característico da ascensão burguesa, que a
República efetivaria."79

Esse projeto foi chegou a ser formalmente apresentado à Câmara, em 11.jun.1889, e derrotado, o
que levou à sua dissolução e convocação de novas eleições (Manoel Maurício, p.426). Estas aconteceram a
31.ago.1889, nas quais o governo conseguiu 130 cadeiras, e os republicanos elegeram apenas 3. A nova
câmara iniciaria os trabalhos a 20.nov.1889. Ou seja, as reformas que a República realizou após a
proclamação seriam mesmo levadas a efeito, independente da mudança de regime. Talvez esse tenha sido
um dos maiores motivos da precipitação dos republicanos: com a adesão dos liberais às reformas,
perceberam que se não fosse naquele momento, não haveria motivo ou situação política que justificasse a
adoção da república, uma vez que a monarquia democrática já teria atendido às reivindicações da
burguesia emergente.
Manoel Maurício confirma essa hipótese: "À incapacidade da oligarquia, que ainda controlava o
poder político, de aceitar as mudanças propostas, somou-se a preocupação dos conspiradores
republicanos, de verem esvaziada a sua plataforma para a instituição de um novo sistema político." 80

79
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 291
80
ALBUQUERQUE, M. M. – op. cit., pág. 426

40
Sob essa perspectiva, é admissível que a própria iniciativa dos liberais em tomar a dianteira do
processo reformador tenha adiantado a ânsia golpista. Enquanto não se propunham reformas, a república
era adiada com a barriga. Agora a oposição devia correr para estar à frente do governo.
E assim decidem, no Congresso do Partido Republicano, marcado de propósito para ser realizado
simultaneamente ao do Partido Liberal, também em maio de 1889. A "esquerda" de Silva Jardim, Aníbal
Falcão, Lopes Trovão, e a "direita" de Prudente de Moraes, Campos Sales, divergem sobre método e prazo
para instaurar o novo regime. Revolução ou eleição? Imediatamente ou após a morte do Imperador? O
jornalista Quintino Bocayuva é quem propõe a solução conciliadora: intervenção militar, a curto prazo, sem
massas, sem revoltas, sem ter que esperar pelo voto. O Exército seria capaz de liderar a transição,
garantindo a ordem social para os conservadores barões do café e, de quebra, ainda agradava os
positivistas. A proposta foi aceita, e Quintino foi um dos incumbidos de colocá-la em prática.
Para criar então o clima que autorizasse a derrubada do regime, o grupo radical apelou à imprensa,
de forma que a agitação nos jornais e revistas fizesse convencer os leitores de que a república era
premente, questão de tempo... apenas porque havia uma conspiração correndo por baixo.
Quintino Bocayuva, dialogando entre os cafeicultores do Partido Republicano Paulista e os
exaltados intelectuais cariocas, como Lopes Trovão, estabelece os vínculos e os acertos para que um golpe
seja possível, e reflete em seu O Paiz o paulatino progresso das negociações. Está sendo formada uma
coalisão. Benjamin Constant, vice-presidente do Clube Militar desde 1887 (o presidente é Deodoro), tem
papel preponderante na articulação de um levante armado. Cabe a ele encontrar no Exército quem possa
dar garantia patriótica e respeitabilidade a uma pretensa quartelada. Talvez inspirado no presente sucesso
dos boulangistas na França (seguidores do carismático e autoritário General Boulanger, herói de guerra e
ídolo positivista), Benjamin pensa no General Deodoro.
Veterano da Guerra do Paraguai, ex-presidente do Rio Grande do Sul, presidente do Clube Militar,
ídolo do oficialato. Era o homem ideal para o levante. Mas tem um "defeito": é monarquista, amigo de
confiança do Imperador. Nada que a lábia viperina de Benjamin Constant não possa contornar.
Deodoro, ainda em 1888, afugentava a idéia republicana. O general, que não teve filhos mas tinha
inúmeros sobrinhos no Exército, escrevera em carta a um deles: "República no Brasil é coisa impossível
porque será uma verdadeira desgraça... Os brasileiros estão e estarão muito mal educados para
republicanos; o único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia... se mal com ela, pior sem ela". Apesar
disso, guardava rancor de ter sido preterido, em algumas ocasiões, pelo Império, em detrimento de inimigos.
Acabou vencido pelo militarismo positivista que advogava a "legítima defesa da honra" do Exército,
tão cara ao veterano. E o Exército meteu-se onde não devia: na política.
"O centro de fermentação golpista foi a Escola Militar da Praia Vermelha. Seus
cadetes, a 'mocidade militar', eram os científicos — jovens positivistas e
republicanos. (...) Foram os científicos, com a bênção de Deodoro (cooptado por
Constant), que encaminharam o golpe de 15 de novembro. Não mais do que a
quinta parte do Exército estava ciente da trama. Mas a absoluta maioria da tropa
agiu como o próprio povo: 'Ficou estranha ao acontecimento, que tomou como fato
consumado'. 'A história escrita pelos protagonistas do golpe de 89 deixou inscrita

41
na história política do país a visão de que um grupo 'esclarecido' de militares pode
'salvar' a Nação, em seu nome', avaliou o historiador Celso Castro". 81

O governo civil não esteve tão incauto assim. Tomou suas providências, entre elas a perspicaz
decisão de promover Benjamin Constant a professor da Escola Superior de Guerra: assim, deixava de
pegar turmas de alunos novos, os quais pudesse doutrinar, para lidar com homens mais velhos, de cabeça
feita, menos suscetíveis ao fascínio comtista. Mas isto era medida de médio prazo. Mais efetivo foi a
transferência sistemática dos batalhões e oficiais que ou se indisciplinavam (caso do tenente Pedro
Carolino, que foi flagrado dormindo em serviço) ou suspeitosamente ameaçavam o gabinete. O 22º
regimento foi punido com o "desterro" para a Amazônia. No entanto, o governo imperial provavelmente
contava, sim, com a fidelidade das tropas guarnecidas para defendê-lo, e por elas foi categoricamente
abandonado. O Exército Brasileiro começava ali uma de suas práticas mais pérfidas: em vez de assegurar a
defesa constitucional, servia aos golpistas sediciosos — o que repetiria em 1930, 1945, 1954, 1964.
A noite de 9.nov.1889 marca uma simultaneidade de acontecimentos opostos. A Corte vai ao baile,
na luxuosa Ilha Fiscal, na Baía de Guanabara, para a recepção da Família Imperial aos oficiais do navio
chileno Almirante Cochrane, pretexto para celebrar as bodas de prata da Princesa Isabel e do Conde d'Eu.
Os jornais do dia seguinte falarão sobre os gastos da festa como afronta ao povo. Cascatas de camarão e
champagne são servidos aos três mil convidados privilegiados. Era a primeira vez que os Bragança davam
uma festa aberta à sociedade. Seria a última.
Enquanto isso, no Clube Militar acontece a reunião decisiva, pela primeira vez com a presença de
civis, na qual Benjamin Constant — depois de receber sinal verde da caifeicultura paulista — expõe a
necessidade de tomar o poder antes que a câmara quase-unânime liberal tome posse, no dia 20, pois ela
poderia aprovar as reformas e fazer os republicanos perderem a pauta de reivindicações. Não é exatamente
tão franco o argumento que Benjamin expõe, mas tem o mesmo objetivo: pede carta branca aos colegas de
farda para "consertar" a situação, por qualquer meio possível.
"Mais do que nunca preciso que me sejam dados plenos poderes para tirar a
classe militar de um estado de coisas incompatível com a honra e a dignidade.
Comprometo-me, sob palavra, se não encontrar dentro de oito dias uma solução
honrosa para o Exército e a Pátria, resignar aos empregos públicos e quebrar
minha espada"82.

Em outras palavras, Benjamin Constant marcava o golpe para o dia 17.

A exaltação e a agressividade do discurso dos jornais vão progredindo em curva íngreme nas
semanas que antecedem o golpe, sem que tal progressão corresponda, na prática, à agitação nas ruas e
entre os cidadãos. Não há, por exemplo, manifestações genuinamente populares de combate ao trono,
greves, saques, insurreições, sublevações, moções de desagravo das câmaras ou de governos locais,
sintomas comuns de crise e vésperas de revoluções. Tirando as raras exceções de passeatas com público
diminuto e pouco freqüentes (registraram-se apenas duas no ano de 1889), o povo brasileiro não pedia a
república. O fato de a polícia do Rio somente baixar sanções contra republicanos em julho de 1889 reflete

81
BUENO, E. – op.cit., pág. 159
82
CONSTANT, B., apud BUENO, E. – op.cit., pág. 154

42
que não havia necessidade de reprimi-los até então. Foi, na verdade, uma reação preventiva ao atentado
que o Imperador sofrera, em 14.jul.1889, ao sair de um teatro: um fanático atirara contra ele, errando, mas
nada se provou sobre o regicida ser um republicano. E, mesmo após esse ato, não era tão grande o
sentimento de ameaça que o republicanismo representava do ponto de vista do regime.
Malcomparando com a crise que a Rússia viveu em 1905, ou as revoluções que depuseram a
monarquia em 1830 e 1848 na França (pois 1871 foi exceção, caso de guerra), não havia um "estado de
convulsão nacional" no País. O que se lia pela imprensa carioca, no entanto, parecia fazer crer que o Brasil
encontrava-se em estado crítico.
"O Paiz, a Gazeta de Noticias, o Diario de Noticias, ateando incêndios tôdas as
manhãs, expõem o trono aos assaltos dos audaciosos. O Isabelismo nada vale.
Nem mesmo a guarda-negra, com os reforços de capoeiras, contém a intrepidez
da propaganda. Silva Jardim surgira com o estigma dos evangelistas. A Praia
Vermelha transformara-se em colmeia de agitadores." 83

Não faltam exemplos, nos jornais da época, de que a euforia passava dos limites lógicos. A festança
antecipada que se fazia na imprensa não tinha o menor espelho nas ruas. O Correio do Povo só não publica
a palavra "conspiração". De resto, à medida que vai-se aproximando o 15/11, o editorial torna-se cada vez
mais explícito em anunciar a conspiração que se arma:
 "É trabalho perdido o esforço dos instrumentaes da monarchia em pretender um terceiro reinado. ¶
O segundo já é tolerado. ¶ O terceiro não nascerá." (23.out.1889)
 "A ideia republicana já avassala a consciencia publica." ¶ "O segundo reinado desce no seu infeliz
occaso. ¶ O terceiro só poderá nascer cercado de uma aurora rubra como o sangue." (4.nov.1889)
 Reproduz trecho de relatório da Província do Rio de Janeiro em que o conselheiro Carlos Affonso,
irmão do Visconde de Ouro Preto, diz da polícia: "unica força em que repousam a ordem, a paz e a
tranquilidade desta provincia". O Correio responde: "Não seria melhor, desde já, fazer-se o que,
dizem, quer o governo fazer, decretar a dissolução do exercito?", sob o título "POBRE EXERCITO".
(5.nov.1889)
 Trata do Baile com ironia: "Viu-se bem que não houve pena nem escrupulo de gastar o dinheiro do
estado, contanto que a obra sahisse limpa, asseiada e perfeita, na grandiosa proporção dessa
maravilhosa chuva de ouro que inunda e fertilisa todo o paiz" (11.nov.1889).

O jornal defende o exército e diz que D. Pedro II está "prestes a deixar vazio o throno para sempre"
(7.nov.1889). Trata a transferência do tenente Carolino como crueldade. Usa, para falar da Imprensa
Republicana, o termo "ideia quasi victoriosa da Republica". Não que fosse, nacionalmente, mas, a não ser
que junto às escrivaninhas fosse instalada uma bola de cristal, os redatores do Correio certamente sabiam
das atividades dos conspiradores — se é que não eram a própria parte ativa.
A Tribuna Liberal, por outro lado, vai reagindo calma e cética. Não acredita em golpe: "Ha no militar
brasileiro demasiado civismo para que se ponha ao serviço de ruins causas" 84. E condena a falta de razão, a
mesma que os positivistas tanto pregam: "Quem mais prejudica a ideia republicana no Brasil são os
republicanos. ¶ Poucos se contam os convencidos e sensatos".
Na semana antes do golpe, os assuntos que mais ocupavam os jornais cariocas eram a
transferência do tenente Pedro Carolino para a Amazônia (que não foi executada, já que ele tomou parte na
quartelada), a polêmica política emissionista anunciada pelo gabinete Ouro Preto, a derrocada do
83
PONTES, Elói - "A Vida Contraditória de Machado de Assis", in SODRÉ, N. W. - op.cit., pág. 276
84
Tribuna Liberal, 14.nov.1889

43
"boulangismo" na França, além do onipresente Baile da Ilha Fiscal (recepção que ofereceram aos oficiais do
navio chileno Almirante Cochrane). As abordagens e a relevância dada aos assuntos variavam de acordo
com o posicionamento do jornal.
Deodoro, que era asmático, cai seriamente doente em fins de outubro. Ruy Barboza, que desde
4.nov.1889 já faz parte dos conspiradores, vai dando diariamente boletins de saúde sobre o futuro líder do
golpe, no Diario de Noticias: "GENERAL DEODORO: continua sem novidade aquelle distincto e brioso
militar"; "GENERAL DEODORO: vae muito melhor este bravo militar. Temos esperanças de que em breve
poderá sair. ¶ Felicitamol-o".
Diante da doença do líder, que muitos achavam que seria iminentemente fatal, Benjamin Constant e
seu comparsa Major Sólon Ribeiro decidem antecipar o golpe: do dia 17 para o dia 15. Na verdade, a
iniciativa parte muito de Sólon, individualmente: ao receber, na tarde do dia 14, ordens expressas do
ministro da Guerra para deslocar dois regimentos do quartel de São Cristóvão para a Praia Vermelha, Sólon
ponderou: eram justamente os dois regimentos que se iriam rebelar no dia seguinte. Transferidos para mais
longe, o golpe poderia fracassar. O major então decidiu seguir a escola de Benjamin Constant e passou na
Rua do Ouvidor para fazer o que sabia de melhor: mentir.
Espalhou, na rua onde ficavam todos os jornalistas, que o Visconde de Ouro Preto mandara prender
o velho general Deodoro e Benjamin Constant; que o Exército seria dissolvido e que a Guarda Nacional
seria restaurada; que a "Guarda Negra", a milícia de ex-escravos, passaria a ter força de polícia na Corte
Imperial; e tantos impropérios mais que conseguiu o que queria: quando os boatos chegaram às guarnições,
a insurreição começou automaticamente.
A movimentação nos quartéis, que teve início ainda na noite do dia 14, não passou despercebida.
Provavelmente por fechar mais tarde que os colegas, o Diario do Commercio conseguiu dar, sem muita
importância, a nota de que haveria "um projecto de revolta na Escola Militar", onde "400 praças de policia
estariam de prontidão". Pelos tempos verbais e espaço concedido à nota (canto da 1ª página, sem grifo), o
Diario do Commercio adota postura legalista ao tratar o fato como "boato". Mas, sem saber, foi o único que
deu o "furo"...
A forma como cada veículo recebeu o 15 de novembro é caso de interessante observação. Os que
na ocasião já eram abertamente a favor da mudança de regime (fosse por que meios fosse) abriram suas
colunas para manchetes garrafais, atropelando a diagramação sem escrúpulos. O grifo na manchete
chamativa era o correspondente tipográfico do grito de guerra dos militares. Os que não propagandeavam a
república, no entanto, mesmo que sem repudiá-la, reagiram com mais placidez e sem paixões.
A Gazeta de Noticias, a 16.nov.1889, escancarou-se num "VIVA A REPÚBLICA!", assim como o
Correio do Povo, que dá destaque, em letras garrafais, e reproduz o manifesto aprovado na Câmara
Municipal — em sessão presidida pelo vereador mais moço, José do Patrocínio, que de última hora
(provavelmente convencido por Pardal Mallet), aderiu à República. Mas o jornal do mesmo Patrocínio,
Cidade do Rio, em cuja redação o manifesto foi batido, dá não a República, e sim o golpe militar: "VIVA O
EXERCITO LIBERTADOR!", também em letras garrafais. O Diario Popular, de São Paulo, também só dá a
notícia em 16.nov.1889, com letras garrafais e destruindo a diagramação: "A republica foi proclamada de
modo inesperado e surpreendente." E acrescenta: "Pelo seu orgão mais autorisado — o povo!". A Revista

44
Illustrada, em euforia visual, publica uma espécie de brasão no pôster do primeiro gabinete da república;
quem sabe uma sugestão de Agostini para o símbolo do novo regime? (contracapa do dia 1?.nov.1889,
nº570)
Exceções foram feitas na Tribuna Liberal e no Diario do Commercio, que mantiveram intacta a
diagramação no dia 16, comentando com certa distância e ceticismo os eventos da manhã da véspera. O
Diario é frio, a Tribuna é consternada. O Diario do Commercio acata os fatos com cautela de não se deixar
levar por aventuras golpistas que podem reverter-se no momento seguinte. Já a Tribuna procura meios de
resistência, menosprezando o fato. É perfeitamente compreensível que a Tribuna Liberal, de início, queira
desmerecer o movimento, tratando-o como fato sem maiores conseqüências. Era uma tática certamente
mais inteligente do que reagir escandalosamente indignado. Só no dia seguinte admite que o gabinete foi
deposto, junto com o regime, e a partir daí passa a publicar diariamente um apelo pedindo o apoio dos
correligionarios e afirmando "A Tribuna Liberal fará o seu dever e somente se calará pela violência."
Não demorou muito: em dezembro, o jornal foi apedrejado, empastelado, e parou de circular por
força de decreto do novo governo ("Decreto-Rolha", 23.dez.1889). Era fato até esperável, "quando se
considera que a depredação da Tribuna fôra obra de militares, que o Govêrno Provisório, realmente
ditatorial, era exercido por um militar"85.
De fato, o céu nublado que cobria o Rio naquela manhã de 15.nov.1889 (segundo os cronistas...)
iria enegrecer-se ainda mais com os anos que viriam em seguida.
A plutocracia e o nepotismo que tanto condenavam no Império, hipocritamente, não foram
abandonados. Houve, por exemplo, "os republicanos de 16 de novembro" (ou seja, que só aderiram após a
consumação do golpe, por conveniência). Diversos colaboradores dos republicanos na imprensa foram
agraciados com cargos e favorecimentos após 1889. Rui Barbosa, do Diario de Noticias, e Quintino
Bocayuva, d'O Paiz, viraram ministros. Sampaio Ferraz, do Correio do Povo, recebeu a chefatura de polícia
do Distrito Federal. Américo de Campos, do Diário Popular, foi nomeado cônsul brasileiro na paradisíaca
cidade italiana de Nápoles.
"Alguns jornalistas seriam chamados a funções políticas eminentes: Salvador de
Mendonça, Rui Barbosa, que não era, a rigor, homem de imprensa, atividade em
que os seus trabalhos foram circunstanciais, como às vesperas da queda da
monarquia, e Quintino Bocaiuva, a figura mais importante do periodismo
republicano, realmente, chamado ao ministério que o Govêrno Provisorio
organizaria, sob a chefia de Deodoro."

Estava sendo estabelecido um novo governo que, longe de ser a ditadura da razão, como queriam
os positivistas, ou a república democrática popular, como queria Silva Jardim, era apenas um meio de
acesso mais rápido ao poder pela nova aristocracia. Era pura e simplesmente a conquista do estado.
"O voto do povo foi dispensado. A forma da aclamação fictícia preteriu a sanção da
soberania nacional" (ironia) "O artifício era grosseiro. Cumpria disfarçá-lo, a
unânime aclamação dos povos carecia da corroboração nacional: a voz de uma
constituinte era reclamada pela opinião. A realeza improvisada sentia a
necessidade de legitimar a sua usurpação. A constituinte foi convocada."

85
SODRÉ, N.W. – op.cit.

45
Alguma semelhança com o que ocorria em 1889? Mas esta era a descrição que o Manifesto
Republicano de 1870 fazia do início do absolutismo de D. Pedro I em 1823. A História se repetia...
Passou à História, como testemunho vivo e contemporâneo dos eventos, o artigo que Aristides Lobo
escreveu para o paulista Diario Popular, onde colaborava. Ali, o pioneiro dos republicanos, signatário do
Manifesto de 1870, deu sua impressão insuspeita sobre os excluídos do evento, e é recorrente que a ele se
recorra para corroborar ou mesmo contrariar argumentos de que o povo não tivera parte nenhuma naquela
proclamação. Eis aqui os parágrafos finais:
"Por ora, a côr do governo é puramente militar, e devêra ser assim. ¶ O facto foi
delles, delles só, porque a collaboração do elemento civil 86 foi quasi nulla. ¶ O
povo assistiu áquilo bestializado, attonito, surpreso, sem conhecer o que
significava. ¶ Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. ¶ (...) Pude
vêr a sangue frio tudo aquillo. ¶ Estamos em presença de um esboço, rude,
incompleto, completamente amorpho. ¶ Não é tudo, mas é muito." 87

Eduardo Bueno assim comenta as palavras de Aristides: "Embora Lobo fosse republicano convicto e
membro do primeiro ministério, seu depoimento tem sido contestado por certos historiadores (que citam
revoltas populares ocorridas naquela época)" 88. Nelson Werneck Sodré refuta sua validade. E Leôncio
Basbaum as repete.
Pouco antes de citá-las, também, dizendo que o novo ministro do Interior "foi sincero", o livro de
Chico Alencar atesta que "a maioria da população do Rio de Janeiro e do Brasil ficou alheia ao movimento,
que foi apenas um golpe militar" 89, apesar de dizer que "a população não se opusesse à Proclamação".
O "não se opusesse" é, na prática, impossível de se avaliar, já que não havia pesquisa de opinião. É
lógico que hoje a maior parte do povo brasileiro aceita a República, mas isto deve-se mais à indiferença do
que à ideologia formada. É exatamente o mesmo raciocínio que se aplica à época. Tivessem feito consulta
popular, em vez de golpe, teriam triunfado os republicanos? No plebiscito nacional sobre a forma e o
sistema de governo realizado em 1993, a monarquia parlamentarista recebeu 10,2% de votos. Quantos teria
recebido a república em 1889?

86
Com "elemento civil", Aristides aproveita para fazer um trocadilho — talvez inconsciente — com "elemento servil",
eufemismo que o Imperador e o governo usavam normalmente para se referir aos escravos.
87
Diario Popular, 18.nov.1889
88
BUENO, E. – op.cit., pág. 153
89
ALENCAR, F. et alii – op.cit., pág. 187

46
CONCLUSÃO
Uma narrativa longa, porém sincera, tentou trazer até aqui uma visão diferente da predominante
sobre o evento do Quinze de Novembro. Entediante, em certos pontos, e até divertida, em outros, finda
neste ponto a sinuosa vereda que tentei abrir no meio do capim alto dos mitos e sensos-comuns que
encobrem a verdade histórica. Ao menos um pedaço do chão já pode ser visto.
O enorme volume de material obtido e a gigantesca riqueza de detalhes do tema impediram que
este trabalho fosse mais conciso e menos extenso. Definitivamente, não era objetivo inicial redigir uma
monografia. Apesar disso, posso assegurar que houve uma compactação vigorosa do que se tem a dizer. E
há muito a dizer, além do que já foi dito. João Cruz Costa dedica 140 páginas ao tema do Positivismo na
sua "Contribuição à História das Idéias no Brasil", sem contar outros livros específicos sobre a doutrina
comtista. Werneck Sodré faz detalhamentos minuciosos dos jornais e jornalistas, objetos desta pesquisa,
em sua "História da Imprensa no Brasil". E toda a tese do engodo republicano está nas 60 páginas de
Leôncio Basbaum ("História Sincera da República", vol. I) e Manoel Maurício de Albuquerque ("Pequena
História da Formação Social Brasileira") sobre o período. Sem contar as obras-chave como "Os
Bestializados: o Rio de Janeiro e a República Que Não Foi", de José Murilo de Carvalho, "Os Militares e a
República", de Celso Castro, e "Deodoro: a Espada contra o Império", de Roberto Magalhães Jr., que não
puderam ser usadas diretamente — mas estavam presentes nas bibliografias das obras consultadas.
Enfim, por mais extenso que pareça, o assunto está longe de ser esgotado.
O fato é que...
Desde 1870, com o fim dos combates da guerra do Paraguai e o retorno das tropas do Exército, os
jornais da Corte Imperial passaram a falar avidamente em república. Mas falavam onde ela não havia, como
se faltasse em vez de nunca ter sido. Durante os dezenove anos seguintes, e principalmente os eventos dos
dias 14, 15, 16 e 17 de novembro de 1889, é aos jornais que caberá a insólita tarefa de fazer nascer uma
república no coração de um Império. A despeito da apatia político-ideológica da imensa maioria da
população, os jornais dirão que a iminência do regime republicano é um fato; a república é premente; a
monarquia está caindo de podre; entre outras palavras de ordem que a historiografia, até a época
contemporânea, não se cansa de repetir.
A despeito de embustes e falcatruas, houve mesmo no Brasil, no último terço do século XIX, uma
movimentação política — e de fragmentadas bases ideológicas — em favor da mudança de sistema de
governo. Mas a real dimensão que tal movimento teve, em números e poder efetivo, foi algumas vezes
amplificada pela lupa dos jornais republicanos.
É realmente difícil NÃO recorrer a Leôncio Basbaum, que tão bem sintetiza o que foi constatado na
pesquisa aos jornais:
"Este rápido bosquejo através da história da formação dos Partidos e Clubes
republicanos durante o Império nos permite concluir: 1. o) que de fato não havia
uma tradição republicana no Brasil como querem alguns autores. É mais um dos
falsos mitos de que impregnaram a nossa história; 2. o) que a República não era
uma aspiração popular. Os resultados dos embates eleitorais em que se meteram
os chefes republicanos antes de 15 de Novembro, o número de clubes e dos
membros desses clubes, são fatos bastante expressivos. A grande maioria do

47
povo não se interessava pelos Partidos ou Clubes republicanos. 'O grupo
republicano, por ocasião de 89, diz Oliveira Viana, era uma minoria relativamente
insignificante, disseminada pelo país, tendo como centros de maior atividade o Rio
e São Paulo'."90

A presença dos positivistas nesse imbroglio que se chamou a "proclamação da República" não pode
ser desconsiderada. Influenciaram o jovem oficialato, inculcando neles um conceito de "dever patriótico"
para o intervencionismo, que se repete em 1930, 1964 e até os dias de hoje é a base do pensamento típico
do Exército Brasileiro. Este doutrinamento foi levado a cabo principalmente por Benjamin Constant. Mas não
teria ocorrido golpe nenhum se os positivistas não tivessem entrado em acordo com o poder econômico dos
cafeeiros, que desejavam república sem revolta popular. Em resumo, coube-lhes levar ao pé da letra uma
das (inúmeras) máximas de Auguste Comte: "Satisfazer os pobres, mas mantendo os ricos".
Sobre o novo regime que se instituía, Bernardo Joffily comentou: "Como o Império, tem sua
'constituição não escrita', que entrega ao Exército o poder moderador de fato." Ou seja, o novo regime
implantado substitui o equilíbrio pacificador da Coroa pelos tecnocratas da Espada. Esse exercício militar do
poder dinástico só será eliminado, em última análise, com a Constituição de 1988.
"A Assembléia eleita em 15.set.1890 representa uma renovação de 85% ante o
Parlamento Imperial. "O republicanismo revolucionário, hostil a uma 'monarquia
sem imperador', é marginalizado: Silva Jardim [1860-1891], seu líder, não se
elege. Predomina o republicanismo evolucionista, com uma ala jacobina, de civis e
militares saídos das camadas médias urbanas, e outra realista (Prudente de
Morais, Campos Sales), ligada à grande lavoura. A bancada positivista é diminuta
mas ativa (Demétrio Ribeiro, João Pinheiro, Júlio de Castilhos). Há 'os
republicanos de 16/11'. E até o Conselheiro Saraiva, esteio do Império, elege-se
senador pela Bahia." (Brasil 500 Anos/IstoÉ)

Derrubou-se um regime pela manipulação da opinião pública por meio dos jornais. Não foi a
primeira vez, certamente, e nem a última. E nem mesmo a pregação inflamada das ideologias subversivas
era algo que fugia às liberdades garantidas pela própria monarquia constitucional benevolente. Mas há de
constar, para a História, que o "15 de novembro" não foi, em momento algum, uma revolução. Muito menos
uma resposta por força das armas aos anseios de uma nação. Foi um golpe de estado, golpe militar, golpe
violento e absolutamente desprovido de qualquer legitimidade.
Entretanto, é justamente neste último quesito — o da legitimidade — que entra a imprensa para
sustentar o processo político. É fácil observar previsões de que a monarquia vai cair, em jornais de 1889. Só
que eles vinham dizendo isso desde 1870!! Oras, foi um trabalho de construção de mentalidades, lento e
paciente. Para que, quando a tropa finalmente saísse à rua, encontrasse um ambiente oportuno
previamente preparado, de forma que no dia seguinte todos os jornais pudessem dizer "Eu não disse?".
Se houvesse mesmo um clima de revolução iminente no País, o Diario Popular não teria dito, a
16.nov.1889, em letras garrafais, que "A republica foi proclamada de modo inesperado e surpreendente".
Indaguemos, então, como é que os jornais da manhã do dia 16 já deram a proclamação da República, se
esta só foi feita, oficialmente, na noite do dia 15? Pois até aquele momento da boca do general Deodoro não

90
BASBAUM, L. – op.cit., pág. 215

48
saíra uma só palavra que derrubasse o Imperador. Não há outra explicação, a não ser a mais óbvia: os
jornalistas cariocas contaram com o certo, já que eles mesmos estavam envolvidos na conspiração golpista.
Foi isto que pudemos perceber, e que está tão claro quanto o papel antes de ir à chapa: que a
República não foi concretizada no Campo de Santana, e sim na Rua do Ouvidor — onde ficavam as sedes
dos principais jornais da época. O fato de o texto da proclamação ter sido datilografado na redação de um
jornal é sintomático. A República, no Brasil, não foi feita no grito do Marechal Deodoro. Foi feita na chapa
tipográfica, na caixa de tipos, no prelo, no destaque (em corpo maior, negrito e sombreado) que os jornais
do dia 16 concederam à quartelada.

Transformaram o golpe em revolução.

Da mesma forma que, quando os golpistas de 1964 chamaram sua quartelada de "revolução" (às
vezes ainda acompanhada do adjetivo "democrática"), vários jornais acompanharam, adotando o rótulo, por
mais inaplicável que fosse. Só conseguiram reconhecer a derrota na batalha semântica muitos anos depois,
quando finalmente os desmandos que antes se ocultavam vieram à tona. Aí trocaram o rótulo "revolução"
por "ditadura".
O governo de 1889 foi muito pouco, ou quase nunca, chamado de ditadura. Mas não difere tanto
daquele de 1964-1985. Talvez o distanciamento contribua com a condescendência aos personagens
históricos. Talvez seja desinteresse pelos derrotados (afinal, os derrotados de 1964 foram justo escrever
livros de História!). A resposta não é qual rótulo é mais adequado, e sim quando vamos poder dispensar
rótulos, pela falta de golpes para classificar. O fim da ameaça permanente de golpe só vira no dia em que os
oficiais verde-oliva deste país aprenderem que lugar de militar é no quartel, ou na fronteira, bem longe dos
palácios civis onde se tomam as decisões políticas. E que lugar de jornal, quando não contém um
compromisso sério com a responsabilidade jornalística, é embrulhando peixe ou forrando gaiola de
passarinho.

"Revolução dentro da ordem, feita por um monarquista em nome da honra militar,


o 15/11 tem algo de fortuito. Ainda se discute se seus autores falam pelas jovens
camadas médias urbanas." Bernardo Joffily

49
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício – “Pequena História da Formação Social Brasileira”, Rio de Janeiro,
Graal, 1981

ALENCAR, Francisco et alii – “História da Sociedade Brasileira”, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1979

BARBOSA, Marialva – “Os Donos do Rio”, Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 2000

BASBAUM, Leôncio – “História Secreta da República”, São Paulo, Alfa-Ômega, 1975

BUENO, Eduardo – "História do Brasil", São Paulo, ZeroHora/Publifolha, 1997

CRUZ COSTA, João – “Contribuição à História das Idéias no Brasil”, Rio de Janeiro, Civ.Brasileira, 1967

JOFFILY, Bernardo – "IstoÉ Brasil 500 Anos - Atlas Histórico", São Paulo, Três, 1998

MELLO E SOUZA, Cláudio – “Impressões do Brasil”, São Paulo, Grupo Machline, 1986

PÉCAUT, Daniel – “Os Intelectuais e a Política no Brasil”, Rio de Janeiro, Ática, 1990

SCHWARCZ, Lilia M. – “As Barbas do Imperador”, São Paulo, Cia.das Letras, 1998

SEVCENKO, Nicolau – “Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república“,
São Paulo, Brasiliense, 1989

SODRÉ, Nelson W. – “História da Imprensa no Brasil”, Rio de Janeiro, Civ.Brasileira, 1966

50
ANEXO I:
MANIFESTO REPUBLICANO (publicado a 3 de dezembro de 1870 n'A Republica)

"Aos Nossos Concidadãos

51
ANEXO II:
ATA DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA (tirada a 15 de novembro de 1889 na Câmara de Vereadores do
Rio de Janeiro)

"Concidadãos!

O Povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com os nossos


concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e
conseqüentemente a extinção do sistema monárquico representativo.

Como resultado imediato desta revolução nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser
instituído um Govêrno Provisório, cuja principal missão é garantir com a ordem pública a liberdade e o
direito do cidadão.

Para comporem êste Govêrno, enquanto a Nação Soberana, pelos seus orgãos competentes, não proceder
a escolha do Govêrno definitivo, foram nomeados pelo Chefe do Poder Executivo os cidadãos abaixo
assinados.

Concidadãos!

O Govêrno Provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o Govêrno da paz, da


fraternidade e da ordem.

No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido, para a defesa da integridade
da Pátria e da ordem pública, o Govêrno Provisório, por todos os meios ao seu alcance, promete e garante
a todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito
aos direitos individuais e políticos, salvas, quanto a êstes, as limitações exigidas pelo bem da Pátria e pela
legítima defesa do Govêrno proclamada pelo Povo, pelo Exército e pela Armada Nacional.

Concidadãos!

As funções da justiça ordinária, bem como as funções da administração civil e militar, continuarão a ser
exercidas pelos órgãos até aqui existentes, com relação às pessoas, respeitadas as vantagens e os direitos
adquiridos por cada funcionário.

Fica, porém, abolida, desde já a vitaliciedade do Senado e bem assim o Conselho do Estado.

Fica dissolvida a Câmara dos Deputados.

52
Concidadãos!

O Govêrno Provisório reconhece e acata os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior,
os tratados subsistentes com as potências estrangeira, a dívida pública externa e interna, contratos vigentes
e mais obrigações legalmente estatuídas.

Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Govêrno Provisório.


Aristides da Silveira Lôbo, Ministro do Interior.
Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, Ministro da Guerra..
Chefe de Esquadra Eduardo Wandenkolk, Ministro da Marinha.
Quintino Bocaiúva, Ministro das Relações Exteriores e Interinamente da Agricultura, Comércio de Obras
Públicas."

53
SOBRAS
"A idéia republicana, assim, retomada de suas fontes históricas, ampliava-se progressivamente. Nas terceira
e quarta décadas da segunda metade do século XIX, ganhava a consciência da camada culta do país,
estudantes, intelectuais, militares, padres. Na Côrte, A República reunia os melhores elementos da literatura
e da imprensa."
A REPUBLICA...
 Defende a Federação (pela primeira vez usando o termo "Estado" para cada província)
 Desmonta o argumento da inoportunidade da República, mas diz que não a farão por armas, e sim
pela razão (mas em 15/11 Aristides Lobo estava entre os republicanos que foram procurar Deodoro
para dar o golpe)
 Contradições internas da monarquia em 1822, 1831, 1840...
 Comparação com a situação contemporânea na França. Aliás, DEFENDE a França quando fala da
guerra de 1870/71. "Pariz, capital do mundo moderno." "Quando enfim chegará o dia em que todos
os homens reconhecerão que são irmãos e que não precisam ter por pastores esses lobos
sedentos de sangue humano que se chamam reis?!" (essa fase do republicanismo brasileiro ainda é
trés romantique).
 Compara a luta entre as pequenas repúblicas gregas e os grandes impérios antigos

8.dez.1870: "Sem tradições monarchicas que ao menos tenham por si a consagração do tempo, a forma de
governo que nos rege, não inspira aos velhos regimens europeus a confiança que engendra a fraternidade
de origem e a fraternidade de destinos; uma dymnastia na America é com criterio reputada cousa instavel e
industria."
Critica a política externa que busca ser recebida na Europa e se isola dos vizinhos americanos. Em 1864,
quando Napoleão III pôs o arquiduque austríaco Maximiliano de Habsburgo como Imperador do México, o
primeiro país na América a reconhecê-lo foi o Brasil. Por causa disso, após o restabelecimento da república
mexicana, as relações com o Rio de Janeiro foram cortadas.
Admite que podem funcionar as monarquias nas quais o rei é amado e respeitado pelos súditos e os limites
de seu poder não são ultrapassados.

O FUTURO
"Quisera que o Brasil fosse os Estados Unidos da America do Sul!", um importante fazendeiro alagoano

A edição comemorativa de VEJA do dia 20 de novembro de 1989, voltando no tempo e publicando uma
edição datada de 100 anos antes, reforça em vários momentos a notícia que trago do cotidiano nacional
daquela época. Baseada em "farta pesquisa", como diz no seu editorial de apresentação,

"VEJA — Quando, exatamente, o senhor deixou de ser monarquista para aderir à causa republicana?
RUI BARBOSA — Fiz-me republicano nos últimos três ou quatro dias da monarquia, quando a sua situação
me fazia portador da responsabilidade que eu, pela agitação na imprensa, havia assumido. Fui republicano
para não correr de uma situação na qual havia tomado parte, pela energia com que, pelas colunas de um
jornal, o Diário de Notícias, combatia um regime decaído." (grifos meus)

"...Bati-me contra a monarquia sem deixar de ser monarquista. Não por admitir preexcelências formais
desse ao outro sistema de governo — visível preconceito apenas digno de fanáticos, ignorantes ou tolos —,
mas porque a monarquia parlamentar, lealmente observada, encerra em si todas as virtudes preconizadas,
sem o grande mal da República, o seu mal inevitável. (...) O mal grandíssimo e irremediável das instituições
republicanas consiste em deixar exposto à limitada concorrência das ambições menos dignas o primeiro
lugar do Estado e, desta sorte, o condenar a ser ocupado, em regra, pela mediocridade."

"Ora, foi justamente da oposição às suas reformas, feita no Diário de Notícias e no Paiz, que se produziu a
revolução, gerada pelas aspirações federais que o ministério Ouro Preto pretendia esmagar." (grifo meu)

"Só de 1888 à proclamação da República, a monarquia distribuiu 180 títulos de nobreza. Rui, no Diário de
Notícias, escreveria contra essa legião de 'fidalgos baratos'." 91

91
SODRÉ, N.W. – op.cit., pág. 274

54

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