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economia & história: difusão de ideias econômicas 45

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O Dicionário da República – Instauração da República no Brasil


Rômulo Manzatto (*)

Na tarde do dia 15 de novembro de a cabo sem qualquer participação Clássica até temas contemporâne-
1889, o desfile de comemoração da popular. os sobre a República e o republica-
Proclamação da República agitava nismo. Organizado em ordem al-
a rua do Ouvidor no Rio de Janeiro, A narrativa não é tão simples, e os fabética, o volume oferece os mais
então capital do Brasil. fatores que levaram à queda da Mo- variados percursos de leitura.1
narquia e ao advento da República
O cortejo era liderado pelo pre- no Brasil são mais complexos. Como destaca Alonso, a Monar-
sidente do Partido Republicano, quia caiu por sua incapacidade de
O texto de Angela Alonso que des- solucionar problemas estruturais,
Quintino Bocaiuva, e pelo Marechal
creve as circunstâncias da Pro- o que restringiu dramaticamente
Deodoro da Fonseca, chefe do clube
clamação da República é um dos suas possibilidades de manobra na
militar.
verbetes que integram o recém- conflituosa conjuntura política do
-publicado Dicionário da República, final do século XIX. Para Alonso,
Ao reconstituir essa cena, Angela
coletânea de 51 breves textos críti- a mudança do regime ocorreu em
Alonso nos lembra que a Repúbli-
cos organizado por Lilia Schwarcz meio a um cenário de três crises
ca brasileira foi inaugurada com
e Heloisa Starling (SCHWARCZ; confluentes.
“mobilização civil-militar e gente STARLING, 2019).
nas ruas” (ALONSO, 2019, p. 163), Uma das crises foi de Estado. Em
situação bem diferente da ideia que O volume reúne verbetes plurais, seus 67 anos de existência, o Esta-
se tornou senso comum posterior- escritos por historiadores, antro- do Imperial foi incapaz de adquirir
mente, isso é, de que a Proclamação pólogos, filósofos, cientistas políti- a extensão e a força necessárias
da República no Brasil não teria cos e sociólogos. O período coberto para o exercício de suas atribui-
passado de uma quartelada levada é amplo, vai desde a Antiguidade ções. Os dois partidos da época –

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Conservador e Liberal – não foram beralismo elitista”, do “indianismo próximas décadas seria o principal
capazes de encontrar soluções con- romântico” e de um “catolicismo documento doutrinário do Partido
sensuais para as numerosas crises hierárquico”. em São Paulo e no Rio de Janeiro.
políticas que assolaram o país. (CARVALHO, 2019, p. 283-285)
Esses pilares ideológicos do regime
O resultado parece ter sido um monárquico ruíram conforme as Também fundamental para a di-
avanço por solavancos. As refor- novas gerações foram influencia- fusão dos ideais da República foi a
mas modernizadoras eram pen- das pelas novas ideias propagadas atuação da imprensa republicana
sadas como respostas às crises pelos abolicionistas, pelo movi- ao longo do século XIX. Mesmo com
políticas. Por sua vez, as próprias mento republicano e pela difusão as óbvias dificuldades impostas
reformas geravam novas crises, das então recentes teorias científi- pela Constituição de 1824 e pela
dada sua insuficiência na resolução cas. (ALONSO, 2019, p. 165). Lei de Imprensa de 1830, que proi-
dos conflitos. (ALONSO, 2019, p. biam as críticas ao imperador e
163-164). O movimento republicano alcançou apologias à República, a imprensa
seu objetivo somente em 1889, já republicana estabeleceu as bases
Somam-se à crise de Estado os no final do século, mas o pensa- para a circulação dessas ideias em
efeitos da crise dos partidos e da mento republicano durante o Se- termos mais amplos, possibilitando
representação política. As lideran- gundo Reinado possui uma história que a discussão sobre novas for-
ças partidárias de então vinham rica. É o que mostra José Murilo de mas de governo tomasse as ruas.
principalmente das elites regionais Carvalho em texto que aborda os (BASILE, 2019, p. 156-158)
de Pernambuco, Bahia e Rio de Ja- elementos do pensamento republi-
neiro, que mantinham a influência cano no Segundo Reinado. O fato é que ao longo do século
política, embora já não detivessem XIX, a ideia de República tornou-
o mesmo peso econômico. A experiência republicana acumu- -se funcional a todos os grupos
lou êxitos políticos na primeira me- que tinham motivos para criticar
Nas cidades, a ampliação das clas- tade do século XIX, como atestam a a monarquia. Como destaca Heloi-
ses médias seguia a expansão da Proclamação da República Farrou- sa Starling, a “República” trazia a
urbanização, o aumento da buro- pilha em 1836 no Rio Grande do ideia de “superação da monarquia
cracia estatal e a ampliação dos Sul e a eclosão da Revolta Praieira em virtude de um imperativo mo-
serviços de imprensa, comércio em Pernambuco no ano de 1848, dernizador” (STARLING, 2019, p.
e serviços. Esses novos estratos período seguido pelo domínio do 191), com a vantagem adicional de
populacionais, contudo, tinham pensamento conservador nos anos que podia ser implantada de ma-
pouco ou nenhum acesso ao siste- seguintes. neira pacífica.
ma político formal. (ALONSO, 2019,
p. 164-165) Cenário que mudaria novamente Mas já naquele momento, a litera-
no final da década de 1850, época tura tratava de revelar alguns dos
A crise de legitimação foi a terceira em que as ideias republicanas vol- pontos cegos do projeto de país
das causas da mudança de regime. tam a ganhar força e a disputar republicano, como atestam alguns
Segundo Alonso, o Segundo Reina- espaços políticos. Data do ano de textos satíricos de Machado de
do atuou por justificar uma monar- 1870, por exemplo, a publicação Assis, ainda do início da década de
quia escravista a partir da qual se do influente “Manifesto” do Par- 1880, ou mesmo a saga sertanista
disseminavam valores de um “li- tido Republicano, que durante as de Euclides da Cunha, que viu em

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primeira mão a violência com que o novo governo 1 Esse texto continua a série sobre os 130 anos da Proclamação
da República no Brasil, iniciado no último mês neste mesmo
Republicano tratou os que não se encaixavam em seu boletim (MANZATTO, 2019).
projeto de país. (STARLING, 2019, p. 192-195)

Se ainda hoje paira uma espécie de mal-estar com os


objetivos não alcançados pela República no Brasil,
cabe indagar desde o início o que deu errado em nossa
experiência republicana e o que poderia ter sido dife-
rente.

O Dicionário da República dá algumas pistas e sugere


caminhos iniciais para os que queiram se aventurar
nessa tarefa.

Referências

ALONSO, A. Instauração da República no Brasil. In: SCHWARCZ, L.


M.; STARLING, H. M. Dicionário da República. 1ª. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
BASILE, M. Imprensa Republicana no Brasil (Século XIX). In: STAR-
LING, L. M. S. E. H. M. Dicionário da República - 51 textos críti-
cos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
CARVALHO, J. M. D. Pensamento Republicano no Segundo Reinado
(1840-89). In: STARLING, L. M. S. E. H. M. Dicionário da República
- 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MANZATTO. Rômulo. O Dicionário da República. Informações Fipe,
p. 59-61, dez.2019.
SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Dicionário da República: 51
textos críticos. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
STARLING, H. M. Letrados e República no Brasil. In: STARLING, L.
M. S. E. H. M. Dicionário da República - 51 textos críticos. São (*) Bacharel em Ciências Econômicas (FEA-USP) e Mestre em Ciência
Paulo: Companhia das Letras, 2019. Política (FFLCH-USP). (E-mail: romulo.manzatto@usp.br).

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