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Crítica Ao Culturalismo Brasileiro PDF
Crítica Ao Culturalismo Brasileiro PDF
RIO DE JANEIRO
2017
JOSÉ HENRIQUE MOTA DE MENEZES
RIO DE JANEIRO
2017
JOSÉ HENRIQUE MOTA DE MENEZES
Aprovado em _/___/___.
______________,
–––––
RESUMO
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ABSTRACT
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SUMÁRIO
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1 Introdução
De acordo com Souza (2015), seres humanos nada mais são que animais que
possuem a capacidade peculiar da interpretação de si mesmos e de sua realidade. Portanto,
fica claro que não existe um automatismo em seu comportamento, pois este é e sempre
será influenciado por uma forma bem específica de interpretação e compreensão acerca
da própria vida.
Entretanto, estas interpretações são elaboradas não pelo senso comum cotidiano,
mas por grandes pensadores, que estruturam-nas em primeiro lugar, para que depois
possam se capilarizar através das instituições sociais (estruturas institucionais, códigos
éticos, formação de leis, comportamentos, linguagens, etc). Estas mesmas interpretações
se desenvolvem como guias de nossas vidas, pois impõem restritas alternativas ao nosso
modo de pensar, nos tempos antigos eram obras de profetas religiosos.
Já nos últimos duzentos anos, as interpretações que explicam como o mundo se
configura e como devemos agir nele são obras de grandes intelectuais científicos, sendo
o maior deles – ao lado de Karl Marx – o sociólogo alemão Max Weber (SOUZA, 2015).
Este seria o maior pensador secular desta era, pois teria sido dele a origem de toda a forma
predominante de como o Ocidente moderno se interpreta e dá a essa interpretação uma
legitimação. As obras dos grandes pensadores se dão de uma forma tão abrangente e, ao
mesmo tempo, profunda nas interpretações de mundo dos indivíduos porque são ideias
dominantes que circulam pela imprensa, salas de aula, discussões parlamentares e, por
fim, no interior de cada propriedade privada e extrato familiar. Toda e qualquer forma de
relação interpessoal nada mais é do que uma simplificação das ideias produzidas por
grandes pensadores.
Para se fazer uma reflexão crítica sobre a própria realidade é preciso entender que
a importância das obras destes grandes pensadores nas nossas interpretações, discursos e
ações, é totalizante, e só desvendada através de uma análise minuciosa de como
funcionam os seus pressupostos. Tendo em vista que a ciência herdou o prestígio antes
pertencente à religião para a explicação moral e formal do mundo moderno, não existe
um tema discutido pela esfera pública que ignore a “palavra do especialista” (SOUZA,
2015:10, grifo do autor) que fala pela ciência.
Portanto, a ciência tem um grande potencial de produzir aprendizado tanto
individual quanto coletivo pela força do prestígio público que conquistou, servindo de
instância legitimadora do que se enxerga como uma boa e justa vida social. A ciência é a
–––––
ordem social moderna com o maior poderio de legitimação interpretativa dentre todas as
outras.
1.1 Contextualização
De acordo com dados do TSE sobre os últimos períodos eleitorais, tem ocorrido
um notável desgaste do sistema representativo democrático. Uma das razões desta
afirmação se dá pelo fato de o número de abstenções de voto e votos nulos terem sofrido
consideráveis aumentos em relação aos períodos eleitorais anteriores.
Em relação às eleições presidenciais, demonstrou-se, em 2014, que a abstenção
foi a mais alta registrada desde as eleições de 1998.1 De acordo com María Martín, da
Folha de São Paulo, os fatores que motivaram aos eleitores em potencial ficarem em casa
ou anularem a sua vontade política compartilham elementos em comum: a desmotivação
e a falta de alternativa, provenientes de um pensamento necessariamente negativo acerca
do sistema político como um todo, dentre instituições e seus funcionários. De acordo com
Marco Antonio Teixeira (apud Martin, 20142), existiria uma grande desmotivação em
relação políticos e partidos no país e, segundo as pesquisas, estes seriam os dois elementos
mais desvalorizados das instituições brasileiras, tornando impossível o processo de
convencimento do eleitor.
Seguindo a mesma linha, as eleições de 2016, correspondentes às eleições
municipais, tiveram um aumento de votos brancos, nulos e abstenções 30% com relação
ao ano de 20123. Com o resultado tendo se dado em diversas capitais pelo país, os dados
despertam o debate sobre a perspectiva do eleitor sobre a política. Para Aldo Fornazieri4,
da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, duas crises combinadas teriam
sido as responsáveis pelo aumento dos votos não validados: a crise do Estado e a crise da
corrupção. A maioria da população, segundo o sociólogo, tem para si que os políticos são
necessariamente corruptos, ao mesmo tempo em que não conseguem promover benefícios
e direitos demandados pelos cidadãos.
"Ficou evidente a dificuldade do sistema político em oferecer alternativas. As
pessoas estão desconfiadas dos políticos de carreira que volta e meia estão envolvidos em
1
MARTIN, Maria. Abstenção é a mais alta desde 1998. 2014. Disponível em
<http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/07/politica/1412713399_211493.html>
2
Ibid, 2014.
3
FÁVERO; NUNES. Percentual de votos nulos, brancos e abstenções aumenta e desperta debate. 2016.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/eleicoes-2016/2016/10/1819619-percentual-de-
votos-nulos-brancos-e-abstencoes-aumenta-e-desperta-debate.shtml>
4
Ibid, 2016.
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5
Ibid, 2016
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as instituições e os homens políticos são negativados de maneira cada vez mais crescente
devido à uma construção sociológica de interpretação de Brasil voltada para a negação
do desenvolvimento histórico e institucional do Estado. Esta negação traz consigo uma
visão unilateral da máquina pública como doente e culturalmente atrasada em relação aos
países desenvolvidos.
Portanto, o teor do desenvolvimento da dissertação estará em contribuir para a
construção acadêmica de um pensamento político brasileiro legítimo, com análises
institucionais que tentem desviar de análises que não contenham um aprofundamento
institucional profundo, sendo portanto longe de simplificações.
O esforço da pesquisa surgiu com a percepção de que há uma lacuna na produção
das ciências sociais no Brasil que estejam fora da lógica do culturalismo, e que, portanto,
já não contenham em si um perspectivismo que deslegitime nossas instituições e homens
políticos e, consequentemente, a visão sobre toda a sociedade civil.
1.5 Metodologia.
1.6 Estrutura do Projeto
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Além do
desenvolvimento de métodos de amostragem, a sofisticação dos
processos de entrevista, a utilização de técnicas de escala e de
pontuação e o uso apurado de análises e inferências estatísticas
permitiram o desenvolvimento de testes empíricos para as especulações
teóricas. (RENNÓ, 1998:1).
oposição simplista entre tradicional e moderno. O último polo era associado de maneira
cada vez mais contundente à sociedade contemporânea americana, principalmente pela
grande exaltação dos trabalhos clássicos de Tocqueville e Weber – desde que encobertos
os seus sentidos ambíguos sobre a democracia americana e modernidade num geral – e
trouxe consigo uma visão dotada de extrema apologia e triunfalismo perante outras
sociedades. (SOUZA, 2006).
Já num segundo polo, o do tradicionalismo, demonstrava um culturalismo
ultrapassado e mais próximo do selvagem das sociedades periféricas como um todo, tendo
como pressuposto uma estratégia de desenvolvimento voltada para o “etapismo da
sociologia da modernização”6, ou do contrário, sua falência como projeto de Estado. De
acordo com Souza, grande parte da sociologia culturalista e institucionalista, ainda nas
produções atuais, se embasa por estes pressupostos.
A produção acadêmica periférica, a partir de então, teria se pautado
majoritariamente pelos mesmos paradigmas teóricos, e, segundo Souza (2015), absorve
elementos de propagação de algo que seria equivalente ao racismo biológico do século
XIX, com tamanha legitimação científica: o “culturalismo científico” (SOUZA, 2015: 14,
grifo do autor), que tem como principal elemento norteador a divisão das sociedades
categorizadas como avançadas e as atrasadas qualitativa e substancialmente. Esta
construção opositiva é moldada tanto no campo cognitivo quanto moral, demonstrando
que as sociedades avançadas – e portanto seus membros – devem ser percebidas como
“racionais” e “moralmente superiores”.
Não podendo ser de outra forma, portanto, as sociedades periféricas e, mais
especificamente latino-americanas passam a ser observadas e categorizadas a partir da
análise culturalista hegemônica como “afetivas e passionais”, portanto, intrinsecamente
corruptas, dado que “personalistas” em detrimento das sociedades anglo-saxãs
estritamente “impessoais.” Para Souza (2015), a construção científica e sua legitimação
se dão através dos conceitos centrais de Max Weber, tendo estes sido deturpados em prol
de uma construção teórica capaz de legitimar uma divisão de vida prática racista que
separa “gente” superior das sociedades desenvolvidas e “subgente” inferior das
sociedades latinas e periféricas. Weber seria a grande chave para se entender a forma
6
Se tornava então fulcral a atividade política das sociedades não-ocidentais ou periféricas ser voltada
para a repetição dos passos das sociedades centrais na sua formação tanto psicossocial quanto
institucional, e este processo de repetição tratado como “modernização espontânea” (SOUZA, 2006:13,
grifo do autor), seria o grande garantidor da entrada destas sociedades na modernidade econômica,
política e cultural.
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Almond e Verba, com “The civic culture: political atitudes and Democracy in five
nations” foram fundamentais para a confirmação do princípio já moldado pela ciência de
sua época.
Se Parsons e sua teoria da modernização exerceram modelo devassador nas
ciências sociais ocidentais, Gilberto Freyre já cunhava os primeiros alicerces do
culturalismo legitimamente brasileiro. Na década de trinta, através da publicação de Casa
Grande & Senzala, dá-se início então a uma autointerpretação que define perfeitamente
o corte que existe entre moderno e tradicional (ou pré-moderno) vinculado à nossa
formação social, enaltecendo os aspectos positivos da miscigenação racial para o
desenvolvimento nacional. Pode ser considerado o primeiro grande intérprete do Brasil
que trouxe um olhar não-racista para o debate. Contudo, lançava as bases para uma análise
cultural conservadora de interpretação.
Ainda assim, a análise mais poderosa sobre nós mesmos partiria de um teórico
que iria inserir os elementos weberianos na primeira interpretação de Freyre, fazendo uma
espécie de inversão de seus conceitos e nos trazendo a interpretação quiçá mais poderosa
até os dias atuais: Sergio Buarque de Holanda, e seu Raízes do Brasil. (SOUZA, 2001,
2009 e 2015). Seria o primeiro grande intérprete de Brasil que, já se utilizando da
perspectiva cultural, transformava a mistura racial de nosso país em algo unicamente
prejudicial para um projeto de estabelecimento nacional.
Neste momento da análise do trabalho, é onde haverá o desenvolvimento da tese
de Souza que se aproxima da definição de Teixeira (2015) sobre o culturalismo liberal
brasileiro. Para Souza, a maior interpretação social brasileira, predominante desde o
século XX até os dias atuais, possui as noções de personalismo/patrimonialismo como
seu principais alicerces, no intuito de justificar, em primeiro lugar, uma suposta
singularidade de nossa sociedade, e, consequentemente, a ideia cultural de um
comportamento pré-moderno entre nós. A pré-modernidade seria o núcleo, portanto, da
noção do “jeitinho brasileiro” (SOUZA, 2015:18, grifo do autor), onde confere o
distanciamento da hierarquia moral entre nós e os anglo-saxões, e onde prevaleceria o
capital social das relações pessoais, estando as pessoas limitadas a este de acordo com
os seus interesses individuais, e nunca de forma estritamente racional, principalmente no
ambiente burocrático (a administração pública, por exemplo), o que geraria uma ideia de
descomprometimento cívico como uma das consequências mais danosas.
Já especificamente neste último âmbito, Souza (2015) traz uma leitura do teórico
que trouxe a análise personalista com enfoque no comportamento dentro das instituições:
–––––
Raymundo Faoro. O personalismo, sem alterar seus pressupostos, através da obra Donos
do Poder, adapta as suas ações ao funcionalismo público, e acaba por concentrar todo o
esforço das relações sociais voltadas para o auto-interesse e favorecimento agora na
máquina do Estado. Neste momento é que surge a noção de patrimonialismo – o uso do
bem público para interesses privados – com base weberiana e é tomado de assalto para a
interpretação do Estado brasileiro como intrinsecamente corrupto.. Neste ponto, Souza
afirma que, colocada à mesa do senso comum a ideia de um Estado originalmente
corrupto, abre-se caminho para uma perspectiva social que concentra no Estado todas as
virtudes da racionalidade moderna. Portanto, o culturalismo estaria agindo em prol da
legitimação do livre mercado através de uma depredação da lógica do Estado.
Isto posto, o autor dita que Roberto DaMatta fecha o ciclo do pensamento vira-
latas contemporâneo com o que considera uma crítica vazia, mesmo que legitimada, ao
apontar uma peculiaridade própria ao povo brasileiro para criticá-la, tornando-nos
intrinsecamente inferiores. Para Souza, DaMatta seria o principal autor da tradição
sociológica do personalismo nas ciências sociais, e seria até hodiernamente o sociólogo
conservador mais influente do Brasil, sendo a sua obra, A casa e a rua, o trabalho
contemporâneo que outorga o título brasileiro de sua interpretação sociológica
inferiorizada – uma sociologia da inautenticidade (SOUZA, 2001).
O trabalho irá desenvolver o panorama culturalista que corresponde ao começo
do século XX à contemporaneidade brasileira, tendo como pressuposto de que esta
ideologia se tornou predominante no senso comum dos indivíduos quando refletem sobre
si mesmos. A parte do trabalho exposta resumidamente acima mostrará de maneira geral,
através de uma revisão da literatura culturalista e seus principais críticos, como o
culturalismo teria tomado tal proporção na ciência política e social brasileira.
O culturalismo se relaciona com a visão política a partir do momento em que cria
um olhar sobre representação política com um viés predominantemente negativo. A
interpretação voltada ao personalismo/patrimonialismo traz consigo sintomas que
podemos observar parcialmente, como a indiferença, a descrença e aversão em relação ao
sistema político, aos partidos e aos eleitos. Deste modo, ocorre um natural afastamento
da política, visto que esta visão se generaliza e se retroalimenta através de interpretações
teóricas rasas que se legitimam e se desenvolvem sem uma consideração profunda de suas
bases.
–––––
7
De acordo com Dias Sanches (1970), a palavra fidalgo vem da aglutinação de “filho-de-algo”,
significando um indivíduo que possuía alguma coisa de bens ou estava em uma condição nobre, e tem
origem castelhana. REF: DIAS SANCHES, José Rodrigo. Os Sanches de Vila Viçosa. Universidade de
Michigan: Sá da Costa, 1970.
8
FERRARI, Juan José Leñero, “La Hidalguía en el Pueblo Cantabro, Su carácter casi universal y la razón
de su origen en las montañas de Santander. Análisis de padrones de los SS XVI-XIX. Linajes principales
en algunos lugares y condición histórico social”.
9
oliveira, Luís da Silva Pereira, Privilegios da Nobreza, e Fidalguia de Portugal, Lisboa, 1806.
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Europa até então, com suas hierarquias sociais extremamente solidificadas. A burguesia,
nesse sentido, jamais precisou de uma inovação abrupta, pois, associando-se às classes
dirigentes mais antigas, acabou assimilando seus princípios: tradicionalismo acima da
razão fria e calculista, o que resulta forçosamente em falta de hierarquia organizada não
só na estrutura social, mas em todos os setores inclusive que envolvessem relações
comerciais.
Já neste momento, podemos enxergar, aos olhos de Buarque, o prestígio pessoal
como mais importante que o nome herdado, e uma inversão: a abundância dos bens e de
fortuna, altos feitos e altas virtudes, começa a ser mais importante que os privilégios
herdados de família. Há em Portugal e na Espanha, antes de todo o velho continente, a
possibilidade de fidalgos em todas as posições sociais. O personalismo ibérico exalta,
então a autonomia da pessoa, acima da ação sobre objetos exteriores e coisas, que seriam
estranhos ao indivíduos e prejudiciais a sua dignidade. Em termos de trabalho, inclusive,
Buarque tenta demonstrar que a moderna ética religiosa jamais teria sido exaltada pela
cultura personalista, dando lugar à ociosidade da Antiguidade clássica, sendo superior à
luta pela conquista do pão de cada dia. O ócio, para os ibéricos, importa mais que o
negócio, e a atividade produtiva é menos valorosa que a contemplação e o amor.
(SALLUM JR., 1999).
Nesta altura, Sergio Buarque (2016) entende que a herança cultural ibérica traz,
portanto, três características principais aos homens. O primeiro deles envolve a carência
de uma moral do trabalho, e a pouca possibilidade de organização social. Deste modo,
não há solidariedade de interesses, organização ou coesão entre os homens. A
solidariedade que existe entre estes n]ao seria a compatibilização de interesses, mas de
vínculos sentimentais: um sentimento compartilhado apenas entre parentes e amigos,
círculos limitados ou particularistas.
O segundo aspecto envolve algo que seria positivo, a exaltação do mérito pessoal
acima dos privilégios herdados. Não fosse a negação que o acompanha, o afastamento da
noção de individualismo moderno – que vê a igualdade dos homens como essenciais. Para
esta característica personalista, a desigualdade nada mais é, portanto, de um resultado
inevitável da competição entre eles. Há no mundo homens naturalmente menos e mais
talentosos. O personalismo, nesse aspecto é um individualismo aristocrático, com uma
aristocracia aberta ao talento.
O terceiro aspecto relegado pelo personalismo ibérico é a necessidade constante
de governos centralizadores. De forma a conter as tendências anárquicas trazidas pelo
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para a região litorânea. (HOLANDA, 2016). Para Avelino (1999), este estilo de
povoamento só poderia resultar em incapacidade de abstração, discriminação e
planejamento urbano.
Uma sociedade desorganizada, facções e famílias agitando as relações
sociais.(AVELINO, 1999). Sallum Jr (1999) mostra que a abolição da escravatura foi um
grande marco entre duas eras. A primeira contava com a proeminência do rural sobre
urbano, contando com o forte elemento da exploração agrária embasando-o. A segunda,
com a grande elevação do urbano sobre o rural. Em 1808 este processo já havia começado
com a chegada da Corte. A evolução racional-legal da gestão nacional e regional tentava
superar a mentalidade tradicionalista oligarca, além da abertura dos portos.
Entretanto, se do ponto de vista de gestão e relações comerciais o urbano começa
a prevalecer sobre o rural, a base das relações pessoais, em Buarque, jamais teria sido
superada. O que ele considerava como família patriarcal, constituída por uma autarquia
economicamente suficiente em si mesma, com agregados familiares e escravos
domésticos, foi responsável como o grande elo social para o estabelecimento do
personalismo na sociedade como um todo. A mentalidade social jamais teria sido
revertida como as reformas urbanas. A maioria dos centros urbanos ainda eram
dominados por senhores rurais com grandes posses, e a forma de pensar da Casa-Grande
penetra cidades e profissões. Uma característica deste elemento é a grande exaltação de
títulos de natureza erudita, em contraponto ao trabalho de esforço físico. (SALLUM JR.
1999).
Para Cardoso (1993), Buarque analisa que a sociedade brasileira é caracterizada
por ações sociais que não valorizam as regras, em contrapartida da exaltação do acaso e
da sorte. Desta forma, não é possível a construção de uma sociedade democrática ou uma
maior possibilidade de chances iguais a todos. O brasileiro teria um espírito inquieto que
o faria quebrar a rigidez social, mas não em prol da transformação das estruturas e
benefício dos outros, uma violação de regras em favor de si mesmo. O ganho imediato:
aplausos dos outros indivíduos pela grande coragem de transposição da norma. O homem
cordial não é um homem bom, mas um homem da emoção e não afável.
2.6.1.3 O homem cordial
Dentro do desenrolar de Raízes, Sérgio Buarque traz o conceito que o tornaria
mais conhecido futuramente através de seus revisores, comentadores, e grande parte dos
mais imponentes interpretadores do Brasil: o conceito de “homem cordial”, no quinto
capítulo de sua obra.
–––––
CARDOSO, Fernando Henrique. Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos, v. 37, p. 21-
35, 1993.
De acordo com Avelino (1999), Buarque avaliava que o fenômeno da família
patriarcal jamais permitiu que a sociedade colonial fosse suplantada, e esta mentalidade
teria acompanhado o indivíduo até a parte externa de seu ambiente doméstico, quando o
público se transborda para o privado. A prevalência dos laços afetivos transpassa então
para a vida política pública. A síntese deste processo é o supracitado homem cordial. De
origem ibérica desconhecedora da Reforma Protestante, a cordialidade característica da
cultura da personalidade é distante de qualquer caminho que tenha como norte disciplina
para a consecução de objetivos. As relações humanas, simples e diretas, tornam-se
superiores às relações impessoais e burocráticas. Um horror à distância social, com o
prezar da aproximação com pessoas e objetos. A cordialidade passa a ser tão intensa que
penetra inclusive no mundo racional dos cálculos e negócios. Agora se conhece o
vendedor e seus compradores, e há uma confusão entre cliente e o amigo freguês.
Para Candido (2016), o capítulo sobre o homem cordial trata de características
que são próprias a nós, brasileiros, consequentes da estrutura familiar. Recebems então o
peso das “relações de simpatia” (CANDIDO, 2016, posição 8577, grifo do autor), que
trazem grande dificuldade a interações sociais fora dos seus agrupamentos já conhecidos.
Dessa forma,
não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado,
procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Onde pesa a família,
sobretudo em seu molde tradicional, dificilmente se forma a sociedade
urbana de tipo moderno. Em nosso país, o desenvolvimento da
urbanização criou um “desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem
vivos ainda hoje”. E a essa altura, Sérgio Buarque de Holanda emprega,
penso que pela primeira vez no Brasil, os conceitos de
“patrimonialismo” e “burocracia”, devidos a Max Weber, a fim de
elucidar o problema e dar um fundamento sociológico à caracterização
do “homem cordial”, expressão tomada a Ribeiro Couto.
O homem cordial não pressupõe uma bondade inerente, mas o predomínio dos
comportamentos afetivos, incluindo suas manifestações exteriores, contrárias aos rituais
do homem polido. O homem cordial, portanto, é totalmente impróprio às relações
impessoais referentes a função e posição do indivíduo seja em qualquer campo de
atuação. O que importa a ele são as marcas pessoal e familiar, derivadas das afinidades
gestadas na intimidade de seus grupos primários mais íntimos.
Em Sallum Jr (1999), temos que Buarque observa o Estado que surge como a
separação entre os escopos individual e coletivo, e o problema especificamente brasileiro,
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a prevalência dos valores familiares por sobre os coletivos. Já que sua ação está embasada
nos princiíos patriarcais, o privado é sempre confundido com o público, o que derivará
no termo que será esmiuçado mais a frente, do funcionário “patrimonial”.
Em termos psicossociais, a contribuição brasileira para a civilização brasileira: a
cordialidade. Uma cordialidade, contudo, que não se relaciona com gentilezas, mas um
conjunto de orientações da ação voltadas para o predomínio da natureza sentimental
acima da disciplina das regras impessoais. A cordialidade é portanto o horror a viver
somente no plano familiar com suas aspirações patriarcais. A transposição dessas relações
e de sua personalidade emocional para com o trato de toda a sua organização social. O
horror à hierarquia e a busca pela intimidade no tratamento são dois de seus principais
elementos.
2.7 Crítica ao culturalismo em Sérgio Buarque de Holanda
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro.
Editora UnB, 2000
Como já brevemente abordado, Souza (2000) mostra que há uma interpretação
dominante no pensamento da formação social e cultural brasileira de que:
a) a influência ibérica em nossa construção social tem uma especificidade não-
européia no sentido clássico. O pensamento ibérico só compartilha em comum
com as demais culturas europeias a herança romano-cristã que foi predominante
na era medieval.
b) A Península Ibérica – e especialmente Portugal, jamais sofreu os efeitos das
maiores revoluções e movimentos históricos da modernidade, como o
Iluminismo, a Reforma Protestante, a Revolução Francesa ou o capitalismo
industrial competitivo.
c) A maior influência para o Brasil teria sido, portanto, os restos de uma Europa pré-
moderna, o que teria inclusive facilitado a mistura de raças e culturas entre nós.
Nesta direção, Sérgio Buarque possuiria uma visão sofisticada e ao mesmo
tempo carente de pressupostos profundos da concepção de mundo ibérica em seu
sentido amplo. Entretanto, a sua sofisticação na construção da obra consegue
explicar a influência de sua obra sobre o pensamento social brasileiro de forma
tão profunda.
De qualquer modo, Buarque escolhe o mote do personalismo, ou
melhor, da cultura da personalidade, como o traço mais característico e
decisivo da cultura ibérica que se implantou entre nós. O termo
personalismo é também ambíguo[...]. De início, temos já a direção
–––––
10
Weber entende como dominação a possibilidade de um mandato político encontrar certa obediência entre
outras pessoas. Quando este fato se dá, uma das tipificações específicas é a dominação tradicional, onde é
fundamentada pela santidade da tradição e na poderosa crença na legitimidade do soberano para que exerça
seu mandato. Não há regra ou norma objetiva racional, apenas obediência dos dominados em relação a este.
Os indivíduos, nesse sentido, são servidores, ou funcionários se referente ao profissional da burocracia. Os
seus súditos não são seus companheiros ou sequer iguais, mas súditos e subservientes. Alguns dos tipos
originários de um sistema de dominação tradicional são a gerontocracia (autoridade dos mais velhos) e o
patriarcalismo. (RAMOS, 2014).
RAMOS, Guerreiro. A sociologia de Max Weber. Revista do Serviço Público, v. 57, n. 2, p. 267-282,
2014.
11
Se a dominação tradicional é uma das tipificações de Weber para os tipos de controle social, a dominação
racional-legal pode ser a versão antagônica do mando. Esta baseia a dominação do soberano pela legalidade
que foi escrita por normas e estatutos jurídicos objetivos e impessoais. Suas principais características são:
a) O soberano jamais está acima das leis. Estando ele subordinado a estas.
b) A obediência ao soberano é entendida a figura pessoal deste, mas a uma ordem impessoal.
c) Quadro administrativo para gerir o Estado, contando com a separação clara entre patrimônio
público e patrimônio privado do soberano. Funcionários sujeitos à prestação de contas.
d) Princípio da competência e hierarquia administrativas, sendo cada autoridade responsável por um
determinado conjunto de funções, dentro de uma escala de gradações administrativas.
e) “Casos” resolvidos através da utilização de regras e normas técnicas impessoais.
f) É exigido um saber profissional dos funcionários, contando com um processo que envolve
competição para seleção dos mesms, levando em consideração seu mérito e capacidade.
(RAMOS, 2014).
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Neste sentido, Faoro não consegue enxergar algo que não uma esquizofrenia entre
o arcaico e o moderno no país, resultando, diferentemente de Buarque, na ausência de
uma cultura original específica. Trazendo o conceito de “lei do desenvolvimento
combinado” (JASMIN, 2014, grifo do autor) de Trotsky buscou entender os processos de
desenvolvimento dos chamados “países atrasados” em âmbito global. Se estes tem a
necessidade de defender a sua economia da competição predatória das grandes potências
econômicas, são forçados portanto a “dar saltos, suprimindo fases intermediárias da
evolução normal, provocando sérias incongruências na esfera econômica e cultural.
(FAORO, 1958: 266, apud JASMIN, 2014). Se há um estilo de desenvolvimento
econômico harmonioso, os países atrasados em contexto de desigualdade econômica com
o resto do globo, passam por um processo de “combinação de fases distintas, da
amálgama de formas radicais com as mais modernas”. (Trotsky, apud Faoro, 1958).
Dando a sua contribuição para a interpretação psicossocial, Faoro conclui o
Estado e a nação são realidades diversas e opostas entre si, que se desconhece. Há uma
justaposição entre duas sociedades: uma letrada, cultivada e a outra primitiva, sem
estratificações ou simbolismos. Um meio termo delirante entre a cultura europeia que
12
Entendidos aqui como estratos sociais cujas posições são definidas pela lei e pelo costume, onde é
possível a ascensão de categorias sociais mediante enobrecimento, tendo aval de indivíduos de estratos
superiores. São menos robustos que castas, porém mais rígidos socialmente do que classes sociais.
(Manual de Sociologia, Morris Ginsberg, Editorial Losada, 1942, pp. 147:8-9)
–––––
lhes outorga uma camada intelectual de pensamento, e as pessoas de sua própria terra,
com seu temperamento inconsciente de si próprio ou das coisas ao redor. Portanto, há
apenas “homens sem raízes”, com um “idealismo sobranceiro à realidade” e de
“irrealismo sem contato com as fontes da imaginação. O processo esquizofrênico que
envolve juristas querendo construir a realidade à espada das leis em contraposição a um
povo primitivo que não consegue distinguir valores políticos e religiosos, acaba abrindo
espaço para a sustentação histórica da ordem patrimonialista, que estará sempre se
alimentando deste descompasso, frustrando a possibilidade de uma “genuína cultura
brasileira”. (FAORO, 1958: 269).
Para Mendonça (1999), o tema central de Faoro em “Donos do Poder” está
centrado na ética entre dominados e dominadores, com uma peculiaridade que denomina
de relação estamental-patrimonial-burocrática. Usando deste conceito para traçar uma
análise comparativa em relação às políticas ibérica e anglo-saxônica, a primeira análise
mais profunda do Estado Patrimonial se daria nesta obra. Com base em Portugal, este
estilo de desenvolvimento histórico social teria trazido consigo uma prisão mental de
longa duração, submetendo a ação política de quaisquer governantes precedentes.
Para Faoro existiria uma tentativa de introdução dos ideias liberais em um solo
que ele considera ingrato, pois possuidor de uma realidade estamental velada, onde as
classes sociais não se desenvolveriam de forma alguma em um capitalismo orientado pelo
Estado. Na visão do autor, nós não conseguimos importar o capitalismo em sua fase pura,
impessoal e desvinculada a interesses, mas um capitalismo “politicamente orientado”
(MENDONÇA, 1999, grifo meu). Para usar a expressão weberiana, patrimonialismo
político, com uma burocracia abrangente facilmente se confundindo com o Estado ou
excesso deste, o que, na verdade, “não se coaduna sequer com o conceito de nação”.1314
Há, portanto, apenas uma ausência de liberalismo político, criando um campo
aberto para as relações de dominação, mesmo que ocorram, ao longo dos anos,
modificações nos mecanismos formais de poder. Nesta direção, Faoro seguiria uma linha
de pensamento que divide o país em duas éticas: se de um lado o país vive com a quase
sempre violada ética judaico-grego-romano-cristã, há, ao mesmo tempo, a conduta de
13
Mendonça demonstra que o autor reforça o argumento de Donos de Poder mais tardar em diversos
publicações em periódicos, como a revista Isto É, e a Carta Capital. Seguindo a linha de notas da autora, o
trabalho se utilizará de referência para citações de seus artigos através de siglas das revistas ao lado da data,
no formato: “IS, dd-mm-aaaa.” para revista Isto É; e “CC, dd-mm-aaaa.”, para a revista Carta Capital, de
acordo com a necessidade da citação direta.
14
IS, 15.11.1989
–––––
senhor de escravos, que até mesmo sem escravos se perpetua15. Para Mendonça, o autor
denuncia a domesticação das consciências e o processo de ocultamento das relações de
exploração através da desculpa da modernidade. Cria-se então a dicotomia entre
modernização e modernidade. A primeira orientando os projetos dirigidos pelo estamento
em benefício dos dominantes para a domesticação das classes subalternas inferiores. Já a
modernidade, conquanto, também orientada pelas classes dirigentes, mas envolvendo e
revitalizando a sociedade em um esforço de apaziguamento.
O problema aqui, como abordado por Jasmin, é que neste momento os dois valores
(modernização e modernidade) acabam por se excluir, pois aqui não houve uma absorção
do moderno pelo tradicional como teria sido no processo de racionalização ocidental –
europeu e norte-americano. O problema, para Faoro, é estritamente cultural.
“continuaremos num terreno pantanoso, o terreno de mundos opostos que não
podem se homogeneizar, enquanto não resolvermos nosso problema cultural.
Se quisermos continuar uma oligarquia, com poucos enganando sempre a
todos, é só deixar como está, com direito a alguns protestos sem
consequência.” (IS, 30.09.1992).
15
IS, 30.09.1992.
16
CC, 30.09.1998.
17
FAORO, 1993.
18
IS, 16.12.1992.
–––––
Fica clara neste ponto uma análise da teoria faoriana como um viés menos
determinista tanto da perspectiva histórica quanto da perspectiva cultural, embora não
aprofunde os pressupostos weberianos de que Faoro se utiliza para a construção de seus
argumentos ao longo dos anos.
Em Faoro (1993), tem-se que os senhores feudais dos tempos de escravidão se
convertem nos atuais capitães do comércio e da indústria, incutindo valores políticos e
econômicos do liberalismo do final do século XVIII até o final do XIX. Se antes os
–––––
senhores feudais eram donos dos excedentes, agora estes pertencem aos capitalistas. O
liberalismo político pressupunha a sociedade civil como base da ordem política e social,
excluindo-se a ideia de sua própria debilidade em relação aos mandos de uma classe
superior, emergente das sociedades civis modernas. Mas agora, com uma sociedade civil
mais ativa politicamente, o novo antagonismo de pressões mutuas seria entre governantes
e governados. Estes últimos, enfraquecido perante a um “grupo burocrático,
burocraticamente estratificado” (FAORO, 1993:16, grifo do autor), com a tradição de
uma ordem política autocrática, autossuficiente.
Assim, o poder estatal, de maneira direta ou derivada, seria o dono das terras e
regulador da economia. Este tipo social, a primeira alternativa após o declínio do
feudalismo, é o subtipo nomeado de patrimonialismo pela sociologia weberiana. Um
subtipo da categoria de dominação tradicional – junto ao patriarcalismo e a gerontocracia.
A dominação tradicional no campo do patrimonialismo, entretanto, não prescinde quadro
administrativo, pois, se na dominação racional-burocrática se dá uma racionalidade
orientada por meios e fins, a tradicional, uma vez que obedece a valores éticos, religiosos
e principalmente políticos é orientada por uma racionalidade material. (FAORO,
1993:16, grifo do autor).
O funcionamento da economia na dominação racional, onde imperam a igualdade
jurídica e a defesa contra o arbítrio, se constitui por uma estrutura autônoma, centrada no
livre-mercado. Mesmo que a racionalidade material esteja voltada para as leis que regem
as regulamentações de mercado. A racionalidade material vinculada a valores exige a
presença de um poder ou instância superior que regulamente e ordene a sociedade e a
economia. A definição de valores não se compatibiliza com uma ordem jurídica ou
racional que exclua ou limite de alguma forma o poder público. Já a racionalidade formal,
segundo tipologia weberiana, tem confluído com a existência do capitalismo, onde são
levados em conta a calculabilidade, o funcionamento e a previsibilidade das ações sociais
no geral. O problema da racionalidade material da dominação tradicional patrimonial é
que ela é incompatível com a igualdade jurídica e garantias institucionais contra o arbítrio,
o que torna o indivíduo completamente dependente do poder que lhe dita seus principais
valores, como o de conduta.
Portanto, o sistema burocrático estatal, nesta estrutura patrimonial, ao invés de se
desenvolver conquanto a sociedade ganha autonomia, pelo contrário, reafirma
historicamente a dependência ao poder da autoridade, e desaparecem as possibilidades
em que há uma ordem política onde a sociedade civil é a sua base. Mas a simples e grave
–––––
19
Wittfogel (1957) busca identificar a origem do Estado autoritário sobrepondo-se a sociedade já em grupos
sociais de sociedades que se constituíram em torno de áreas irrigadas. Em um detalhado estudo histórico,
tem-se que a agricultura irrigada destas sociedades estabelecem um tipo de propriedade não passível de
herança, ou um território que não se pode fracionar. Um tipo de propriedade nesta modalidade, fomentou
um sistema defensivo forte contra populações vizinhas, além de trabalhos regulares de conservação e forte
atividade de uma administração centralizada. Isto deu origem a instituições políticos extremamente
estatizadas e historicamente submetidas a um poder central patrimonial e absolutista.
–––––
20
Faoro não especifica a edição.
–––––
material para a formal, visto que foi impedida pelo patrimonialismo. Para o liberalismo
ter sucesso no Brasil, só é possível através da demlolicação da ordem tradicional-
patrimonial.
De acordo com Werneck Wianna (1999), Weber, quando utilizado por
interpretadores de nossa formação histórica, tem sido utilizado como instrumento para
justificativa do atraso social inerente à nossa sociedade, por meio do que chama de
sociologia da modernização. Logo, para uma ruptura do processo de atraso que nos
domina, é preciso entender que estamos em estado de atraso em relação a países mais
modernizados, e entender isto é um processo necessário para os procedimentos de
transformação social que tem como norte o moderno. Weber na atualidade é utilizado em
nossas ciências scoais e na opinião pública em uma interpretação de brasil que aponta
geralmente para o atraso como um vício de origem, sendo resultado nosso tipo de
colonização: o patrimonialismo ibérico, transplantado do Estado português a partir de sua
chegada. Desta visão, advém a ideia de um Estado altamente autônomo em relação à
sociedade civil que, abafando a livre iniciativa e os interesses privados acabou por
comprometer uma vida social mais orgânica e afirmou a racionalidade burocrática por
sobre a racional-legal.
Dentro deste olhar, a ausência de experiência feudal nos países ibéricos, inclusive
no Brasil, aproxima a forma patrimonial de nosso Estado à tradição política do Oriente,
onde jamais se demarcaram fronteiras bem definidas sobre separação entre público e
privado. Faoro em Donos do Poder, aproxima o iberismo do despotismo oriental, além de
demonstrar interesse em revisar a tese de Weber – que vincula a ascensão do espírito
capitalista à ética calvinista – levantando uma ideia de que apenas países que teriam
superado o feudalismo adotaram o sistema capitalista, com uma efetiva integração entre
Sociedade e Estado. (VIANNA, 1999)
Para Schwartzman (1982), não seriamos um caso ocidental, pois aqui o Estado
antecede os grupos de interesses, sendo cada vez mais autônomo em relação à sociedade
civil, com interesses em atender os objetivos próprios de seus dirigentes, usando da
administração pública como um bem em si mesmo. Se estamos, portanto, inscritos em
um sistema político identificado com o oriente, conhecemos apenas um sistema político
de cooptação acima do de representação, com uma sociedade estamental do mesmo modo
sobrepondo a estrutura de classes liberal. Seu pensamento conflui com Faoro (1993) a
primazia do Direito Administrativo sobre o Direito Civil, a forma de dominação
–––––
encontro com a “pesada carga de um Estado parasitário a fim de dar passagem aos
interesses e à livre agregação.”
Nesse sentido, conta-se a saga de infortúnios da democracia brasileira
a partir das derrotas políticas de São Paulo, que o teriam privado de
universalizar o seu paradigma ocidental. Nessa versão, portanto, a
chamada revolução de 1930 teria retomado o velho fio ibérico de
precedência do Estado sobre a sociedade civil, a era Vargas entendida
como contínua ao ciclo dominado pelo eixo Pombal—D. Pedro II, uma
projeção do Império, uma vez que expressaria as mesmas "vigas
mestras da estrutura" ao traduzirem a realidade patrimonialista na
ordem estatal centralizada (Faoro, 1975 apud VIANNA, 1999, grifo do
autor).
21
De acordo com a filosofia confucionista, é uma virtude de respeito aos pais e aos antepassados. Wonsuk
Chang; Leah Kalmanson (2010). Issues, East Asia and Beyond. [S.l.]: SUNY Press. p. 68.
22
Principalmente Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes.
–––––
23
Da tradução “barril de porco”, uma metáfora para a apropriação dos gastos governamentais por políticos
trazendo recursos financeiros apenas para o seu Estado de origem, ou de mandato atual. Em campanhas
eleitorais americanas, o termo é muito usado pejorativamente para atacar oponentes. DRUDGE, Michael
W. Special Correspondent, 2008. ""Pork Barrel" Spending Emerging as Presidential Campaign Issue".
Disponível em: America.gov. United States Department of State. Acesso em 18 de Agosto de 2017.
–––––
c) Ou ainda mais além, entender a burocracia imperial não como um estamento, mas
entendendo o nosso atraso (VIANNA, 1999:3, grifo do autor) como sendo
–––––
originado das relações sociais e entendendo a natureza patrimonial destas por sobre
o funcionamento do Estado. (CARVALHO, 1980).
Nesta linhagem, onde o eixo interpretativo gira em torno do elo ambíguo que
aparece a partir da Independência entre ordem racional-legal e a patrimonial, assim como
entre liberalismo político e estruturas econômicas herdadas da colônia, o atraso e o
moderno, representação e cooptação, a ruptura somente se daria em um plano longe do
Estado: nas relações sociais de origem patrimonial. Desta forma, este encerramento se
daria num processo de longa duração, com uma gradual transformação nas relações
tradicionais, responsáveis pela contenção social ao longo da história. Se a revolução
burguesa no país é entendida por esta corrente como dominada pelo andamento passivo,
é preciso então uma transição da ordem senhorial escravocrata para o funcionamento da
ordem social competitiva24.
2.7.4 Crítica ao culturalismo em Raymundo Faoro
Para Souza (2001), Faoro tem um objetivo claro em Os Donos do Poder:
desmontar o caráter patrimonial do estado brasileiro. Este patrimonialismo seria o
responsável pela substância jamais democrática, sempre particularista e baseada em
privilégios que teria marcado o país desde sua independência. Para comprovar sua tese,
Faoro mergulha até Portugal do século XII e expõe que o Brasil herda a forma de
exercício de poder político de sua metrópole. Da mesma forma que Buarque, aqui, nossa
herança ibérica se fixa na sociedade e se torna responsável pela relação inautêntica entre
nós e a modernidade.
Para Faoro, Portugal foi o primeiro país europeu a unificar seu território sob
comando de um único rei, enquanto nos outros países reinavam as lutas por comando
entre senhores de terras, através de séculos. A guerra de expulsão dos mouros do território
português traz a a incorporação das terras e exércitos ao seu domínio. No século XIV, o
patrimônio do Rei já se sobrepunha ao do clero e três vezes maior que a nobreza. A partir
disto, ocorrem medidas centralizadoras por parte do poder real, e a justiça suprema do
24
Segundo Arruda (1996), Florestan define a ordem social competitiva como a ordem social aquisitiva, ou
da civilização burguesa que tem elementos como a ética racional, a competição, a luta e a igualdade legal-
formal, isto é, no sentido de Weber, é o entendimento da ordem social se apropriando da noção de mercado
como o princípio das relações interpessoais. A partir disto, ocorrem o funcionamento e a diferenciação do
sistema produtivo, assim como suas adaptações aos potenciais avanços econômicos e socioculturais. Em
termos de Marx, é na ordem social competitiva que acontece a classificação, mas estratificação das classes
apenas aparece no universo da produção. Florestan, a partir desta elaboração, estabelece a relação entre
classe e preconceito, concluindo que a situação social do negro é intrínseca para se entender o que destino
era pretendido para a ordem social competitiva e as classes no Brasil. A análise da marginalidade negra e
mulata torna claro os impasses que trouxe a modernização.
–––––
país era de uso particular da Coroa. Características como o controle do poder do clero e
da nobreza, e desenvolvimento da economia monetária – sucedendo o pagamento com
terras – possibilitaram em Portugal uma menor descentralização do poder no Estado, visto
que a moeda traz a possibilidade de renovação constante do pagamento a serviços
prestados ao dominador. (SOUZA, 2001)
Neste sentido, Portugal, em relação ao resto da Europa, é prematuramente
centralizada e monetizada a partir das bases sociais do poder real, permitindo uma
acumulação tão grande que trouxe reservas que possibilitaram a ascensão ultramarina.
Em uma Portugal mesmo medieval, temos uma antecipação de anos a frente de outros
países europeus que apenas conheceriam este processo em alguns séculos seguintes. Este
processo daria origem ao já citado Estado Patrimonial, de acordo com Faoro. Seguindo a
linha de domínio pessoal e racionalização do Estado para a manutenção do poder, as
esferas da economia, do direito e da justiça se racionalizam em prol do soberano.
Entretanto, para Faoro, por mais que a dominação patrimonial seja compatível com a
economia monetária, falta ao sistema patrimonial a calculabilidade, a previsibilidade e a
racionalidade típicos de um sistema moderno.
Para Souza (2001), entretanto, Faoro ao se utilizar do conceito de patrimonialismo
é a-histórico, pois entende que o autor pouco se importa com as transformações históricas
do que entende por estado burocrático. Estaria ignorando por exemplo, que o quadro
burocrático para Weber sempre se limitaria a uma atividade meio para uma corrente de
transmissão entre líderes e de massas, não uma disputa. Segundo Souza, Faoro
influenciado por uma leitura de Nabuco sobre a influência da elite dos funcionários
letrados no Brasil no século XIX, toma posse de um conceito característico a uma época
específica, alongando-o a quase oito séculos seguintes, como uma espécie de maldição.
Toda a ideia do livro estaria na argumentação que gira em torna da transfiguração do
Estado na ideia de estamento controlador em nome de seus próprios interesses, desta
forma impedindo o florescimento da sociedade civil e empreendedora. Logo, um efeito
perverso:
impede as condições propícias para o desenvolvimento do capitalismo
industrial. Ou, em outras palavras, impede a constituição mesmo de uma
sociedade moderna, visto que o Estado, ao se substituir a atividade empresarial
individual baseada no cálculo, intervém inibindo o exercício das liberdades
econômicas fundamentais. Com isso, não apenas a atividade econômica é
comprometida, mas o próprio exercício das liberdades públicas básicas,
acarretando, também, a tibieza da vida democrática como tal. Nesse sentido, a
grande oposição ideológica do livro será aquela entre uma sociedade guiada e
controlada pelo Estado, de cima, e as sociedades onde o Estado é um fenômeno
–––––
25
Autores como Richard Münch acreditam que a interprenetração entre ética e mundo norte-americana, que
formaram uma cultura unitária, singularizaram a cultura do país, trazendo uma excepcionalidade onde traz
a principal característica de nunca ter passado por práticas tradicionais e não-democráticas de dominação.
O problema, para Souza, é que isto permitiu a reinterpretação histórica de praticamente todos os
desenvolvimentos europeus e latinos precedentes, se utilizando da visão inclusiva e universalista do
racionalismo ocidental. Souza não nega que o desenvolvimento norte-americano tenha sido excepcional.
Entretanto, acredita ser um extrapolo esta visão concebida como uma “versão dourada” do Ocidente.
(SOUZA, 2001: 141-142)
–––––
Como um liberal clássico, portanto, Faoro traz que o resíduo estamental se torna
eterno fragilizando a atividade do mercado, tendo como sua origem na “elite má”
(SOUZA, 2011:174, grifo do autor). Em relação às precondições para a formação do
modelo estamental, Faoro é claro. A constituição do estamento só pode surgir por um
equilíbrio de forças singular entre clero, nobreza e burguesia ascendente, resultando em
um vácuo de poder, trazendo uma marca social diferente de todas as forças políticas que
lutariam pelo poder. Se utilizando de argumento semelhante a Marx e Elias para explicar
os domínios cesaristas ou absolutistas, o autor traz o conceito de ascensão tirana em
vácuos de poder quando há um incessante equilíbrio de forças sociais. Entretanto, a tese
faoriana traz peculiaridade que, de acordo com Souza, seria mais uma marca de seu uso
a-histórico.
Se Marx e Elias dão ênfase no período de transição deste fenômeno como algo
excepcional, quando um sistema de valores e instituições se encontra envelhecido e fraco
indo ao encontro de outro novo e imaturo, Faoro levanta a ideia não só de permanência,
mas de eternidade da situação para analisar o caso brasileiro. Outro problema analítico
não abordado por Faoro seria a grande relação entre o líder ou rei e seu quadro
administrativo, tão central na avaliação de Weber sobre todas as formas de dominação
política existentes. Para Faoro esta questão permanece em segundo plano. A possibilidade
mais plausível seria da preponderância do quadro administrativo sobre o rei, uma espécie
de funcionário-mor do estamento.
Mas Faoro deixa claro que a organização político administrativa é parte do reino,
assim como as especificações das atribuições dos delegados do rei, e dos ligados à corte
e estrutura municipal. Um domínio inconteste e absoluto do soberano, centralizando a
política e a administração. Para Souza, “se o soberano é absoluto e inconteste, não existe
sentido em falar de governo pelo estamento. Se o poder do quadro administrativo é mera
delegação do soberano, ele, o soberano, é a base de todo poder. O nome dessa forma de
poder seria monarquia absolutista e não domínio estatal”. (SOUZA, 2001: 176).
Todavia, para Faoro o estamento seria o grande responsável pela política real:
Mas o soberano será, também ele, despojado de atribuições, perderá a marca
de proprietário do reino, convertido em seu administrador, defensor e zelador:
o principado eleva-se acima do príncipe...O conglomerado de direitos e
privilégios, enquistados no estamento, obriga o rei, depois de suscitá-lo e de
–––––
nele se amparar, a lhe sofrer o influxo: a ação real se fará por meio de pactos,
acordos, negociações. (FAORO, 1975, apud SOUZA, 2001).
perdoar possíveis sinais de desvios contratuais. O que desmente a tese hegemônica de que
as capitanias não sofriam com uma coerção da Corte nestes séculos. (SOUZA, 2001).
O argumento aqui é de que, por mais que haja uma forte orquestração do processo
econômico e social da colônia por parte do estamento da metrópole, não se justificava
pelo capitalismo comercial. Isto é, o planejamento das colônias e seu controle de longe
não significou formas de regulação, controle, e regulamento da conduta prática e
cotidiana colonial, contando a colônia com estímulos de mercado raros e episódicos, sem
maior interferência na cadeia produtiva. O núcleo da argumentação do controle da
metrópole por sobre a colônia então não é justificado. O “controle de longe” (SOUZA,
2001:179) fica esvaziado.
Neste ponto, Souza identifica uma linha argumentativa presente em toda a teoria
faoriana: chamar de estamental toda e qualquer política dirigida a partir do Estado. Esta
linha ficará ainda mais clara quando Faoro versa sobre a transformação do Estado
português para furiosamente controlador e autoritário, por conta da descoberta de ouro
em Minas, para a condição de Reino Unido, em 1808, apenas representaria o estamento
sob outros disfarces.
A migração da família real para a colônia cria condições para a constituição de
um mercado capitalista, por meio da abertura dos portos, estímulos à indústria e ao
comércio com o aumento da economia monetária, assim como a instituição de uma
aparelho de Estado racional. Reformas institucionais modernas, melhoramentos urbanos,
transporte público, estímulo a artes, criação do jardim botânico, tipografia régia, ensino
superior, etc., transformando a capital brasileira em uma das grandes do mundo. As
condições materiais saltam e as simbólicas transformam-se concomitantemente de
maneira profunda. A partir do novo mercado que se adentra, “novas ideias, valores,
hábitos, comportamentos e visões de mundo transformam-se radicalmente em questão de
poucas décadas na maior revolução histórica do país.” (SOUZA, 2001:180). Entretanto,
para Faoro, por mais que não negue as mudanças, só consegue enxergar mais do mesmo:
a permanência do estamento por outras vestes.
A principal crítica de Souza neste ponto seria a dirigida a qualquer liberal clássico,
a crença liberal de que qualquer ação estatal acaba por amortecer as forças vitais da
sociedade, com a predominância do Estado como estimulador e condutor da vida social
como um mal em si, evitando o aparecimento de formas autônomas de organização social.
Para Souza, enviesado pelo espírito da excepcionalidade americana de desenvolvimento,
Faoro escreve cego de acordo com a predisposição que toma conta de todos os intérpretes
–––––
do desenvolvimento dos países ocidentais. Souza mostra que foram condições muito
especiais que permitiram aos Estados Unidos um desenvolvimento social que evitou a
presença muito forte do caráter de dominação tradicional, assim como a presença do
Estrado em excesso no início de seu processo de organização social. “Em todos os outros
exemplos históricos de desenvolvimento capitalista o Estado foi e é uma realidade
fundamental.” (SOUZA, 2001, 181) Desta forma, a tese do patrimonialismo destaca o
desenvolvimento americano dos demais, culpando o atraso brasileiro pela simples
presença estatal.
–––––
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