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SALA DOS PROFESSORES

Alegoria tragicômica em um ato de Leonardo Cortez

PERSONAGENS

Olivério, Professor de Biologia, 50 anos


Alvaro, Professor de História, 44 anos
Fernanda, Professora de Inglês, 29 anos
Danilo, Professor de Portugues, 35 anos
Magda, Professora de Matemática, 45 anos
Whitaker, Diretor, 40 anos
Mariana, Professora de Física, 40 anos

A ação se passa em uma Sala de Professores de uma escola particular de São Paulo.
Uma mesa ao centro, cadeiras em volta. Uma janela ao fundo, ao lado de uma lousa
que serve de quadro de avisos. Uma porta de entrada à esquerda e uma porta de
banheiro à direita.

CENA 1

(Ouve-se o sinal. Acendem-se as luzes. Todos os professores em volta da mesa, falando


ao mesmo tempo. “Absurdo, fim da picada, etc...”. Clima tenso. Whitaker ergue a voz.)

WHITAKER
Afinal de contas, o que incomoda vocês?

ALVARO
Bom, é mais fácil falar o que não incomoda!

(Novos protestos gerais. “Boa, Alvaro! Não tá fácil, experimenta pra ver o que é,
etc...”. )

WHITAKER
Pelo amor de Deus! Estamos aqui como amigos, fundamentalmente. Afinal, somos
amigos, ou não?

MARIANA
Nós somos colegas! Amizade é outro departamento!
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FERNANDA
Eu sou amiga de todo mundo!

MARIANA
Não seja hipócrita, Fernanda!

FERNANDA
Tem razão. Eu sou amiga de todo mundo, menos da Mariana!

(Novos protestos, dessa vez censurando a grosseria.”Pega leve, vai começar de novo,
etc...”.)

OLIVÉRIO
Um minuto! Eu preciso estudar esse texto antes de dar a minha próxima aula, portanto
eu gostaria de saber se essa reunião vai ser remunerada.

MAGDA
Essa é uma boa pergunta.

WHITAKER
Quem pode te responder isso é a Sociedade Mantenedora, Olivério.

ALVARO
Ótimo. Vamos perguntar também por que não recebemos o dissídio da categoria
estabelecido pelo sindicato depois que a Sociedade Mantenedora aumentou a
mensalidade dos alunos.

WHITAKER
O aumento da mensalidade acompanhou a evolução da inflação.

MAGDA
Na realidade, o aumento foi acima da inflação.

WHITAKER
A Sociedade Mantenedora reajustou a mensalidade levando em conta o prognóstico
da inflação acumulada!

ALVARO
Ótimo! Se a Sociedade Mantenedora sabe tanto sobre a inflação acumulada, então ela
sabe que o nosso salário está defasado.
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MAGDA
Os pais dos alunos ficaram putos com o aumento da mensalidade!

ALVARO
E nós também, por conta da ausência do repasse do aumento!

WHITAKER
Um minuto! Eu devo lembrá-los que no ano passado vocês receberam aumento acima
do dissídio.

ALVARO
O que a gente recebeu foi um adicional por hora de reunião.

WHITAKER
Bem lembrado. Essa reunião já está paga, Olivério.

(Protesto gerais. “Eu disse, era só o que faltava, etc.”).

OLIVÉRIO
Essa aqui, até onde eu sei, é uma reunião extraordinária, Whitaker.

WHITAKER
Engano seu, Olivério! Como vocês sabem, as reuniões pegagógicas podem ser
realizadas dentro do horário dos intervalos, o que inclui o intervalo entre a chegada
dos professores e o início da primeira aula. Que horas são, Mariana?

MARIANA
São sete e vinte da manhã!

WHITAKER
Ótimo. Essa é uma reunião ordinária.

ALVARO
E bota “ordinária” nisso.

WHITAKER
Não vamos interpretar de maneira equivocada a língua portuguesa. Tá aqui o Danilo,
professor de Literatura que pode nos dar o real significado da palavra “ordinária”.
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DANILO
“Ordinária, adjetivo, aquilo que é irrelevante, repetitivo, insignificante e
desnecessário.”

OLIVÉRIO
Nunca as nossas reuniões foram tão bem definidas.

FERNANDA
Boa, Olivério! Ah, ah, ah...

MARIANA
Isso não tem graça, nenhuma!

FERNANDA
Claro que tem! O Danilo levantou, o Olivério deu a cortada! O humor é uma ciência
matemática!

MARIANA
Concordo. Quanto mais cretina é a pessoa, maior é a gargalhada.

(Todos protestam de novo. “Essas duas não param, pelo amor de Deus, etc.”)

WHITAKER
Por favor, vamos nos acalmar, ora bolas! Como é que vocês querem falar do bem
comum se não existe uma convivência harmoniosa aqui dentro?

FERNANDA
A convivência é harmoniosa!

WHITAKER
Harmoniosa como, se não existe o diálogo?

MAGDA
Sempre existiu o diálogo!

WHITAKER
Eu tô tentando estabelecer o diálogo!

ALVARO
O diálogo tá aberto, Whitaker!
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WHITAKER
Aberto como, se ninguém me escuta?

MARIANA
Vamo todo mundo calar a boca e deixar o Whitaker falar sobre a falta de diálogo?

WHITAKER
Eu quero repetir a pergunta para cada um individualmente, começando pela Magda e
depois passando pela Mariana e assim por diante, tá bom assim? Então vamo lá:
Magda, o que mais te incomoda nesse momento?

MAGDA
O novo namorado da minha filha.

(Protestos gerais: “não é disso que ele está falando, de novo esse assunto, etc”.)

ALVARO
Isso não é pertinente à essa discussão, Magda!

MAGDA
Eu tive que expulsar o moleque da minha casa semana passada!

FERNANDA
Por que você fez isso?

MAGDA
Os dois estavam trancados no quarto e a minha filha ainda está na oitava série!

OLIVÉRIO
Eu achei que ela era mais velha!

MAGDA
Todo mundo acha por causa do peito grande!

MARIANA
Eu também tinha esse problema na idade dela. Na época eu achava que era uma
solução. Até engravidar com dezessete anos!

MAGDA
O problema é que eu estou sozinha na criação dessa menina! O meu ex- marido foi
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morar no Acre! Como é que a minha filha pode contar com um pai que mora no Acre?

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MARIANA
Como eu gostaria que o meu marido morasse no Acre. Mas agora ele se aposentou e
fica em casa o dia inteiro enchendo o saco!

ALVARO
Um minuto! Vamo retomar o foco! O que está claro é o seguinte! Nós somos
professores! Não estamos falando de infelicidade e sim de exaustão! Não dá pra
confundir uma coisa com outra!

DANILO
Às vezes dá.

WHITAKER
Não vamos desviar do assunto, Danilo!

DANILO
Eu tô exausto e infeliz! É uma conjunção que está acabando comigo!

ALVARO
Eu sou um professor! Eu não estou reclamando do fato de ser um professor. Pelo
contrário, vejam bem! Eu me sinto bem, sendo um professor! Quando eu estou em
sala de aula eu me sinto poderoso, verdadeiramente. Sou detentor do saber, então eu
me sinto sábio. Compartilho o saber, então eu me sinto generoso. Estou na contramão
da mesquinharia do mundo moderno, então eu me sinto rico.

DANILO
Isso tudo é lindo, mas os alunos estão impossíveis!

MARIANA
E a carga horária tá estendida!

MAGDA
E eu tenho uma filha adolescente, não preciso falar mais nada.

(Protestos. “De novo, Magda? Porra, obsessão, etc...”)

WHITAKER
Um minuto! Acho bacana que a Magda esteja nesse movimento corajoso de desabafo,
expondo uma chaga familiar numa reunião de trabalho porque, essencialmente, o que
eu senti de maneira profunda no ano passado é que os problemas da vida pessoal de
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cada um acabaram interferindo no bom rendimento profissional da equipe. Ou tô
errado?

FERNANDA
Tá errado.

WHITAKER (impaciente.)
Tô errado, por que, saco?

FERNANDA
De que vida pessoal você tá falando? Aqui ninguém pára em casa.

DANILO
Dependendo da casa, isso é uma vantagem.

WHITAKER
Vamos pensar nessa escola como uma grande embarcação. Se eu sou uma vela, cada
um é um remo! Tá na hora de vestir a camisa e entender que o coletivo se sobrepõe!

ALVARO
Whitaker, me desculpa, a gente reconhece as suas boas intenções, mas esse teu
linguajar de mundo corporativo é insuportável! Isso aqui é uma instituição de ensino,
não uma corretora de seguros, porra!

MAGDA
Fala da máquina de café!

WHITAKER
Qual o problema da máquina de café?

MARIANA
Ah, sim. Tá todo mundo puto com a máquina de café!

WHITAKER
E tão putos, por que? Vocês ganharam uma máquina da café importada da Itália!

ALVARO
Mas agora a gente tem que pagar pelo café!
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WHITAKER
“Pagar” é uma palavra muito dura! Eu prefiro o termo “contribuição”! Afinal, são
apenas dois reais pelo cafezinho!

ALVARO
Puta que pariu...

WHITAKER
Vai ver quanto custa na padaria!

MAGDA
Eu fiz as contas! Se eu tomo três cafezinhos, que é o mínimo que eu preciso por
período de trabalho, isso tudo no fim do mês representa mais de duzentos reais no
meu orçamento.

OLIVÉRIO
Ai!

FERNANDA
O que foi, Olivério?

OLIVÉRIO
Eu sempre sinto uma pontada quando penso em valores que extrapolam meu salário.

ALVARO
Avise a Sociedade Mantenedora que nós vamos boicotar essa máquina de café até
devolverem o nosso café coado!

WHITAKER
Você fala isso porque não provou o café com essência de canela que é o meu
preferido! Fratello Capuchini!

MAGDA
O café da copeira era aguado, mas era de graça!

WHITAKER
A máquina de café é sintomática dos novos tempos, tratem de se acostumar! E muita
coisa ainda vai mudar esse ano, eu estou avisando. Inclusive, por isso, a Dona Silvana
irá falar com todos vocês daqui a pouco.
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(Choque. Todos se entreolham. O nome de Silvana obviamente representa o terror.)

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OLIVÉRIO
A Silvana vem pra cá?

FERNANDA
Pode-se saber o motivo?

MAGDA
Os rumores estavam certos!

WHITAKER
Que rumores?

MAGDA
Os rumores de demissão!

WHITAKER
Se a presidente da Sociedade Mantenedora quer falar com vocês, isso não significa
que alguém necessariamente vai ser mandado embora.

FERNANDA
Também não significa necessariamente que a gente vai ganhar um cafuné na cabeça!

MAGDA
A Dona Silvana só aparece quando um de nós vai ser demitido! Todo mundo se lembra
da Professora Teresa!

FERNANDA
Coitada da Teresa!

WHITAKER
A demissão foi a melhor coisa para a Professora Teresa.

MARIANA
Deve ter sido mesmo, já que ela tentou se matar depois disso.

WHITAKER
Caso vocês tenham se esquecido, a Professora Teresa tinha problemas com a bebida.

MAGDA
Quarenta anos de magistério. Qualquer um desenvolve um vício depois de tanto
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tempo dando aula.

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WHITAKER
Alias, falando nisso, você continua fumando, Magda?

MAGDA
Tô tentando parar.

WHITAKER
Desde quando?

MAGDA
Desde que eu comecei.

WHITAKER
Magda, olha o exemplo! Você é uma professora de adolescentes! É um absurdo que
você seja fumante!

MAGDA
A culpa não é minha. Eu era uma atleta na juventude!

WHITAKER
E o que aconteceu depois?

MAGDA
Virei professora!

ALVARO
Ok! E o que que a Silvana vem fazer no colégio hoje, Whitaker?

WHITAKER
A Dona Silvana vem porque hoje é uma data especial, ou vocês se esqueceram?

Silêncio. Todos se esqueceram.

WHITAKER
Hoje é o aniversário desse Colégio e na última reunião eu disse que teríamos um
evento comemorativo no intervalo do período vespertino, com a execução do hino
nacional!

FERNANDA
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Você disse isso na última reunião?


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WHITAKER
Claro que eu disse, mas, como sempre, ninguém deu a mínima pro palhaço aqui!

ALVARO
Ninguem deu a mínima porque esse tipo de evento comemorativo é uma bobagem!

WHITAKER
A Sociedade Mantenedora não concorda com você e quer que essa data seja
reverenciada a partir de hoje conforme manda a tradição!

FERNANDA
Que tradição? A gente nunca comemorou o aniversário do colégio!

WHITAKER
É uma tradição recente que começa agora!

ALVARO
Puta que pariu...

WHITAKER
Alias, Magda, eu quero que você faça a introdução do hino nacional.

MAGDA
Oi?

WHITAKER
Você não sabe tocar flauta doce?

MARIANA
Melhor cantar só a primeira parte, como na Copa do Mundo!

WHITAKER
Nunca! Isso aqui é uma escola de tradição e a gente tem cantar o hino de fio a pavio. E
não se preocupem que eu vou mandar a secretária puxar a letra do hino completa na
internet pra gente ler aquela parte do “lábaro que ostentas” que ninguém nunca sabe
de cor, mesmo.

MAGDA
Pelo amor de Deus, Whitaker! A única coisa que eu sei tocar na flauta doce é “Asa
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Branca”!
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FERNANDA
Calma, Magda...

ALVARO
A Magda tem todo o direito de ficar nervosa porque é o que eu estou falando faz
tempo! Além das aulas, nós somos obrigados a assumir funções que não nos dizem
respeito! Ou não é um absurdo que a Magda tenha sido escalada pra ensaiar um
número musical sem formação na área?

MAGDA
Pra tocar o hino na frente dos alunos eu preciso de um tempo pra praticar, Whitaker!

WHITAKER
Quanto tempo?

MAGDA
Dois anos, no mínimo.

WHITAKER
Ok, boa piada! Agora vamo finalizar essa conversa que a gente tem muito que fazer
ainda! Fechando a programação, depois do hino, a Dona Silvana vai dizer algumas
palavras e a cantina vai servir um cachorro quente de graça pra todo mundo, inclusive
pra vocês! Olha só que mordomia! Vai ser uma farra! Alguém tem mais alguma
proposta?

ALVARO
Whitaker. Você começou essa reunião querendo discutir as relações dentro da equipe
e agora tá finalizando com a programação de um evento mequetrefe!

WHITAKER
Mundo moderno, querido! São muitas pautas dentro de uma mesma reunião.

ALVARO
Então eu proponho uma nova pauta!

WHITAKER
Que pauta?

ALVARO
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A elaboração de uma lista de reivindicações que iremos apresentar para Dona Silvana,
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aproveitando a presença dela na escola hoje.

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(Toca o sinal. Todos se levantam, imediatamente.)

WHITAKER
Fica pra depois porque agora é hora do cumprimento do nosso sacerdócio! Boas aulas
e que a minha frase motivacional inspire a atuação de todos no dia de hoje.

FERNANDA
Que frase motivacional?

WHITAKER
A frase do Américo Silva, que eu escrevi na lousa. “Viver é renascer a cada dia
entusiasticamente”!

OLIVÉRIO
Alguém apagou a frase e escreveu outra.

WHITAKER (lendo)
“Por que que eu vim?” Quem escreveu essa bobagem no lugar da minha frase?

DANILO
Fui eu! Passei uma noite difícil por causa da minha mulher.

MARIANA
Não foi pior do que a noite dela!

DANILO
Como é que você sabe?

MARIANA
A Suely me ligou. Ela é minha melhor amiga, me conta tudo!

DANILO
Todos vocês são testemunhas do meu drama! A Suely desabafa com a minha colega de
trabalho que agora fica me tratando mal, achando que eu sou um canalha!

MARIANA
Quem sou eu pra julgar, não é mesmo? Eu só dou bons conselhos pra Suely, como, por
exemplo, ficar de olho em você!
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ALVARO
A lista é grande, Whitaker! Hoje a Silvana vai ter que nos ouvir! Nós somos professores
brasileiros e temos todos os motivos do mundo pra reclamar!

(Os professores saem com diários de classe e livros debaixo do braço. Sons dos alunos
entrando nas salas de aula. Luzes se apagam.)

CENA 2

(Toca o sinal. Na Sala dos Professores, Fernanda e Danilo conversam ao pé do ouvido.


Entra Alvaro com Mariana. Danilo e Fernanda seguem um pra cada canto.)

ALVARO (sacudindo um calhamaço.)


Olha isso! Eu tenho noventa provas pra corrigir! Como é que um professor pode dar o
seu melhor dentro de sala de aula trabalhando dessa maneira nos horários extra-
classe?

MARIANA
Na minha antiga escola eu achava que tava morrendo de tanto trabalhar! Aí, eu pedi
demissão, fiquei em casa e achei que tava morrendo por conta do vazio na minha vida
sem propósito! A conclusão é que não importa aonde você está, você está sempre
morrendo de qualquer jeito!

ALVARO
A gente fica aqui, mendigando repasse do aumento da mensalidade pro nosso salário
de fome, mas eu só vou acreditar no futuro do Brasil quando professor ganhar salário
de alto-executivo!

OLIVÉRIO
Vai começar de novo...

ALVARO
Eu sei que isso é uma utopia inalcançável! Qualquer utopia é inalcançável, mas a
função da utopia é te botar andando pra frente, como dizia o Galeano! A minha luta é
por um piso salarial de trinta mil por mês! Trinta mil por mês é o mínimo que eu
mereço! Trinta mil por mês é o mínimo que qualquer professor de ensino básico
merece. E digo mais: se o professor trabalha na periferia, trinta mil mais auxilio
insalubridade! Não é sensacional, Olivério?
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OLIVÉRIO
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Eu vou pedir auxilio insalubridade por ter que te aguentar, Alvaro...

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FERNANDA
Tudo bem, Alvaro! Enquanto não vem esse aumento, eu vou te pagar um café da
máquina nova.

ALVARO
Não, não e não! Temos que boicotar essa máquina! Você acha isso justo, Fernanda?
Antes, tinha uma cafeteira aqui à nossa disposição! Agora, temos que pagar dois reais
pra beber um cafezinho miserável nessa máquina nojenta! Pagar pelo nosso café é
uma indignidade! Isso também tem que ser dito pra Dona Silvana!

OLIVÉRIO
Será que vocês poderiam fazer um pouco de silêncio pra eu estudar esse capítulo?

FERNANDA
Tamo na hora do intervalo! Descansa um pouco, Olivério!

OLIVÉRIO
Eu estou me aprimorando como professor! Eu não tenho alternativa a não ser me
aprimorar como professor se eu pretendo ser um professor até o final da minha vida!

ALVARO (corrigindo provas.)


É o que eu digo: salário de alto-executivo! É o mínimo! O mínimo!

MARIANA
O que que você estava fazendo aqui na Sala antes de bater o sinal, Danilo?

DANILO
Preenchendo diário de classe.

MARIANA
A Fernanda também?

FERNANDA
Também.

MARIANA
E onde estão os diários que vocês preencheram?

DANILO
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Eu também preciso de um café!


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FERNANDA
Vem, que eu te empresto uma moeda...

MARIANA
O Danilo te pagou hoje?

FERNANDA
Escuta aqui, sua...

OLIVÉRIO (impaciente, com o livro na mão.)


Silêncio, por favor! Esse tópico é complicado!

ALVARO
Tópico complicado? Você tá lendo “Biologia Básica, Volume 2”, Olivério!

(Entra Magda, nervosíssima.)

MAGDA
Pronto! Ela provocou, ela pediu, ela que aguente!

ALVARO
O que que aconteceu?

MAGDA
Eu afoguei o celular da Olívia Bertholini!

ALVARO
Afogou o celular?

MAGDA
Afoguei! Confisquei o celular da Olivía e enfiei dentro do meu copo d’agua!

FERNANDA
Meu Deus do Céu...

DANILO
Justo a líder dos arruaceiros!

ALVARO
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Por que você fez isso?


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MAGDA
Ela me deixa louca! O celular tocou duas vezes no meio da aula. Eu tava me segurando,
mas aí ela se recusou a copiar as fórmulas que eu coloquei na lousa dizendo que
depois tirava uma foto! Aí eu disse: “fotografa agora, Olívia”! Peguei o celular e taquei
no meu copo d’agua!

(Todos aplaudem.)

DANILO
Eu sempre sonhei em fazer isso com aquela folgada, mas nunca tive coragem.

FERNANDA
E o que que ela disse?

MAGDA
Ela não precisou dizer nada, porque imediatamente começou o levante! Um
reclamava, o outro completava! Todo mundo em sintonia! Uma turma que mal se olha
na cara! Playboy que não fala com nerd, metaleiro que não fala com gótico, patricinha
que não fala com emo! Mas na hora de se rebelar contra a professora todo mundo fica
unido!

OLIVÉRIO
A raiva é agregadora! Se as pessoas cultivassem mais a raiva, nós viveríamos num
mundo de união!

MAGDA
Então eu disse: “A culpa da morte desse celular é de vocês! Porque o celular morreu
agora, mas há muito tempo que eu me mato por vocês! Olhem as minhas mãos!
Olhem pra essa dermatite que eu tenho por causa de vocês, seus ingratos! Ingratos!”

FERNANDA
Calma, Magda...

MAGDA
Foi quando a Olivia disse que ia fazer um vudú contra mim! Um vudú!

FERNANDA
Ela tava brincando.
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MAGDA
Brincando onde? Aquele cabelo azul! Aquela acne disseminada naquela pele albina! A
Olívia é uma bruxa!

FERNANDA
Vou pegar uma água pra você...

MAGDA
Não tô reclamando, não! Acho bom que eles fiquem revoltados! Eu prefiro a Olivia
Bertholini possessa comigo do que dormindo na carteira!

DANILO
O bocejo de um aluno é mais agressivo que um xingamento.

MAGDA
A indiferença é o verdadeiro bullyng! Por isso eu matei aquele celular! Agora aquela
garota me odeia, mas não me ignora! Ah, ah, ah! ( vasculhando na bolsa.) O problema
é o vudú! Eu tenho medo de vudú! Se não fosse o vudú, tava tudo bem! Cadê meu
cigarro?

MARIANA
Não pode fumar aqui dentro!

MAGDA
Eu vou fumar no banheiro!

MARIANA
Não pode fumar no banheiro também!

MAGDA
Então me dá um café, merda!

ALVARO
Café é dois reais!

MAGDA
E eu tô sem dinheiro! Mariana, troca um bilhete de metrô pra mim?

MARIANA
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Eu não pego metrô que eu tenho carro!


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MAGDA (num berro.)
Será que não existe um pingo de coleguismo aqui dentro?

DANILO
Vamo se acalmar todo mundo, pelo amor de Deus!

FERNANDA
Não sei vocês, mas eu preciso de férias!

OLIVÉRIO
Daqui a pouco chega! Quando o ano começa eu sei que o ano vai ser longo. Ao mesmo
tempo, todos os anos da minha vida em que eu passei lecionando passaram voando.
Desde que eu virei professor, minha vida tem sido assim: longa e rápida.

(Entra Whitaker)

WHITAKER
Bom dia a todos.

ALVARO
Opa! Cadê a Dona Silvana, Whitaker? Você disse que ela iria falar com a gente no
intervalo!

WHITAKER
Dona Silvana não pôde vir porque ela está num compromisso profissional.

ALVARO
Que compromisso profissional?

WHITAKER
Ela conseguiu um encaixe pra retocar a escova no cabelereiro.

ALVARO
E isso é um compromisso profissional?

WHITAKER
Claro que é! Ela foi a um cabelereiro profissional. Mas, não se preocupem, porque eu
intercedi por vocês e a Dona Silvana garantiu que irá conversar com os professores na
hora do almoço.
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OLIVÉRIO
Seria ótimo conversar com ela na hora do almoço, se a gente não almoçasse nessa
hora.

WHITAKER
Relaxa que vai ser um papo rápido, Olivério!

ALVARO
Acho que não, porque eu andei conversando com a equipe entre uma aula e outra e a
lista de reivindicações tá cada vez maior!

WHITAKER
E é por isso que eu estou aqui! Vamos excluir alguns itens porque a Dona Silvana tem
pouco tempo já que ela quer preparar um discurso pra ser lido depois da execução do
hino nacional que a Magda vai tocar.

MAGDA
Ai, Meu Deus. Tem mais isso...

WHITAKER
Vai treinando, fofa!

MAGDA
Fofa?

WHITAKER
Quem me troca uma nota de cinquenta pra eu pegar um cafezinho?

FERNANDA
Pois é! Esse é um dos itens da lista! Cortar o cafezinho foi uma puta sacanagem!

WHITAKER
Quem cortou o cafezinho? A Sociedade Mantenedora instalou essa máquina de café
expresso na Sala dos Professores! O grão é importado e a máquina é italiana!

FERNANDA
Mas agora a gente tem que pagar pelo cafezinho!

WHITAKER
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Quem é honesto, paga, quem é malandro, sonega!


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FERNANDA
Do que que você tá falando?

WHITAKER
Eu não ia tocar no assunto porque, definitivamente, isso é uma coisa muito
desagradável, mas o fornecedor passou na minha sala pra fazer uma denúncia...

FERNANDA
Que denúncia?

WHITAKER
Alguém tem adulterado a máquina pra pegar cafezinho de graça!

FERNANDA
Você tá insinuando que eu tô roubando café, Whitaker?

WHITAKER
Não falei que foi você, Fernanda. Falei que foi alguém!

FERNANDA
Alguém que poderia ser eu!

WHITAKER
Alguém que poderia ser qualquer um!

FERNANDA
De quem você tá falando?

WHITAKER
De todo mundo!

MAGDA (interrompendo seu ensaio na flauta.)


Eu, inclusa?

FERNANDA
Retire o que disse!

WHITAKER
Se a carapuça serviu.
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ALVARO
Isso dá processo, hein?!

FERNANDA
Nunca fui tão humilhada!

ALVARO
Essa é uma acusação muito séria!

WHITAKER
Não tô acusando ninguém!

ALVARO
Ninguém aqui é ladrão, porra!

DANILO (num grito agoniado.)


Fui eu, eu confesso!

WHITAKER
Danilo!

DANILO
Eu tava doido por um café, mas tava sem dinheiro. Aí, eu coloquei um clipe no bucal, e
o café saiu de graça.

ALVARO
É sério isso?

DANILO
Descobri por acaso.

MAGDA
Tá louco, Danilo?

DANILO
Desculpa.

MAGDA
Como é que você não ensina esse tipo de esquema pros seus colegas de trabalho?
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DANILO
Eu fiquei com vergonha.

MAGDA
Você não é um de nós!

WHITAKER
Eu sinto muito, Danilo, mas vou ter que encaminhar seu caso pra Comissão Disciplinar
da Sociedade Mantenedora.

ALVARO
Isso é impossível! O clipe não encaixa no bucal...

DANILO
É porque tem que cortar o clipe na metade!

OLIVÉRIO
E eu, subestimando a inteligência desse menino.

WITHAKER (levantando-se e indo até a porta.)


Eu me sinto profundamente envergonhado por vocês e desde já, eu convoco uma
reunião extraordinária e não-remunerada para a discussão desse ato ilícito
incompatível com... O que você tá fazendo, Magda?

MAGDA
Enfiando um clipe aqui dentro! Me ajuda, Danilo!

WHITAKER
Vocês perderam completemente o limite!

MAGDA
Eu preciso de um café pra me acalmar, Whitaker! Uma aluna vai fazer um vudú contra
mim! Tá bom pra você?

ALVARO
Calma, Magda. Se vudú contra professor desse certo, eu já tava aposentado por
invalidez, como o Antônio!

MARIANA
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Aliás, que saudade do Antônio, hein?


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OLIVÉRIO
Alguém sabe do Professor Antônio?

ALVARO
Depois do enfarto o Antônio sumiu do mapa.

FERNANDA
O Antônio era um gênio!

OLIVÉRIO
Essa escola nunca mais vai ter um professor como o Antônio!

ALVARO
O Antônio era referência de ética e comprometimento com o ensino!

DANILO
Desculpa, mas eu quero lembrar que eu entrei no lugar do Antônio.

WHITAKER
E daí?

DANILO
Daí, que todo mundo sempre coloca o Antônio nas nuvens e ninguém fala nada do
meu trabalho!

FERNANDA
Sim! O que é uma injustiça porque o Danilo tem muito carisma com os alunos.

DANILO
Obrigado, Fernanda...

MARIANA
Claro. Mas dá pra comparar com o Antônio?

MAGDA
Claro que não.

MARIANA
O Antônio era um deus do carisma!
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OLIVÉRIO
Enfartou em sala de aula. Começou a passar mal depois de dar um esporro em quem,
mesmo?

ALVARO
No Pedro Silverinha!

OLIVÉRIO
Ah, sim. Aquele moleque era de matar.

MAGDA
E quase matou, mesmo!

FERNANDA
Ah, ah, ah, ah...

WHITAKER
Vamos respeitar o Antônio!

ALVARO
Quem desrespeitou o Antonio foi a Sociedade Mantenedora, quando mandou ele
embora!

WHITAKER
Alvaro! Depois do enfarto, o Antonio não conseguia sequer tomar um copo dágua
sozinho!

ALVARO
Ainda assim, foi uma injustiça! O Antônio sequelado é melhor do que qualquer um de
nós com boa saúde!

MAGDA
Viva o Antônio!

DANILO (num grito contido.)


Chega!

FERNANDA
Calma, Danilo.
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DANILO
Calma nada! Quer saber o que tá incomodando, então eu te digo, Whitaker! O que
incomoda é a falta de reconhecimento do nosso trabalho! Porque eu leciono
cotidianamente vitimado pela exaustão! E é na exaustão que eu dou as minhas
melhores aulas! Porque na exaustão eu me reinvento pra não sucumbir à apatia, num
movimento heróico que não é reconhecido por ninguém! Por ninguém!

OLIVERIO
Nós somos professores! A falta de reconhecimento é praticamente uma exigência da
carreira acadêmica.

WHITAKER
Ok! Todo mundo desabafou, podemos voltar a falar do realmente interessa?

DANILO
Olha aí! É o que eu te digo, Fernanda! Nesse ambiente de sofrimento, ninguém escuta
ninguém.

WHITAKER
Mas agora eu vou escutar, Danilo! Eu e toda a comunidade escolar! Porque eu pensei
que seria bacana dar uma animada no nosso evento de aniversário.

ALVARO
De novo, essa merda...

WHITAKER
Então, Danilo, após o discurso da Dona Silvana e a execução do hino nacional na flauta
da Magda, eu gostaria que você declamasse um poema.

DANILO
Ah, não...

WHITAKER
Declama que o povo gosta! Você não é professor de literatura?

DANILO
Mas que poema você quer?

WHITAKER
26

Um poema bonito.
Page

26
DANILO
Algum outro critério que não seja estético?

ALVARO
Fala aquele do Maiacovsky!

WHITAKER
Qual do Maiacovsky?

DANILO
“No caminho com Maiacovsky”!

WHITAKER
Eu prefiro um poeta nacional.

DANILO
Mas esse é nacional. Do Eduardo Alves da Costa.

WHITAKER
Mas não era do Maiacovsky?

DANILO
"Na primeira noite,
Eles se aproximam
e colhem uma flor de nosso jardim
E não dizemos nada".

WHITAKER
Ok, lembrei. Esse não!

DANILO
"Na segunda noite já não se escondem,
pisam nas flores,
matam nosso cão.
E não dizemos nada".

WHITAKER
Muito bem, chega! Mudei de idéia. Ninguém vai declamar porcaria nenhuma! Vai do
hino nacional pro cachorro quente e fim de papo!
27
Page

(Danilo segue ruminando o poema.)

27
ALVARO
O que interessa agora é fazer nossa lista de exigências!

MAGDA
Eu preciso de orientação da coordenação pedagógica! Existe uma aluna querendo
fazer um vudú contra mim!

WHITAKER
E por que ela quer fazer isso?

MAGDA
Porque eu afoguei o celular dela!

WHITAKER
Como é que é?

MAGDA
Enfiei o celular no meu copo d’agua!

WHITAKER
Enlouqueceu, Magda? Agora os pais vão querer processar a escola!

ALVARO
A aluna desrespeitou a professora usando o celular em sala de aula!

WHITAKER
Porra! Dá ponto negativo, mas não destrói o celular da menina! Era um IPhone?

MAGDA
Acho que era...

WHITAKER
Que modelo? Porque se era o Iphone 6S a gente tá fudido!

(Todos tentam defender Magda ao mesmo tempo e a discussão se estabelece. “Foi


uma atitude correta, os caras tão sem limite, tem que tomar uma atitude, etc...” Danilo
tem um pequeno espasmo.)

DANILO (aumentando o tom de voz.)


28

“Mas dentro de mim,


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com a potência de um milhão de vozes,

28
o coração grita - MENTIRA!”

(Constrangimento geral com o destempero. Danilo respira fundo. )

WHITAKER
Muito bem, Danilo. Obviamente você não está bem do ponto de vista emocional. Isso
não seria um problema, mas na última semana você chegou atrasado quatro vezes e,
nesse caso, quem se prejudica são os alunos.

FERNANDA
O Danilo chega atrasado, mas se propõe a ficar até mais tarde!

MARIANA
A pergunta é: fazendo o quê?

DANILO
Não precisa me defender, Fernanda! Eu já entendi que os boatos sobre demissão são
por minha causa.

MAGDA
Você está sabendo de alguma coisa, Whitaker?

WHITAKER
Ninguém vai ser demitido, pelo amor de Deus!

DANILO
Vai ser ótimo sair dessa escola pelo bem minha saúde física e mental!

FERNANDA
O Danilo é um professor brilhante!

MARIANA
E quem te perguntou?

FERNANDA
Eu não preciso da sua autorização pra elogiar o desempenho de um colega de
trabalho.

MARIANA
29

Desempenho em que área?


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29
FERNANDA
Chega! Eu estou sendo perseguida por essa mulher e essa situação está ficando
insustentável, Whitaker!

WHITAKER
Por que você está perseguindo a sua colega, Mariana?

MARIANA
Eu não concordo com determinadas atitudes da Fernanda.

WHITAKER
Essas atitudes dizem respeito ao exercício profissional da professora Fernanda?

MARIANA
Depende de que profissão você está falando.

FERNANDA
Chega! Eu cheguei no meu limite! Who are you think you are? Who are you think that I
am? A clown? A stupid clown???

DANILO
Calma, Fernanda.

FERNANDA
I’m tired! I’m sick and tired!

(Fernanda sai pela porta afora em prantos.)

DANILO
Esses gritos de novo! Eu fiz o curso de letras! Eu desenvolvi a minha sensibilidade
entrando em contato com os maiores autores da humanidade, eu não tenho estrutura
emocional pra lidar com esse tipo de pressão!

OLIVÉRIO (enfiando a cabeça embaixo de um livro.)


É sempre assim, todos os dias! Um quebra pau atrás do outro! Eu tenho um texto pra
ler antes de dar a minha aula pro segundo colegial! Ou será que ninguém mais tem
respeito por um professor que quer fazer o seu trabalho direito?

MARIANA
30

Mas você com essa mania de leitura enche o saco, Olivério!


Page

30
OLIVÉRIO
Eu sou um professor! Eu tenho que ler!

ALVARO
Mas, “Biologia Básica, Volume 2”?

OLIVÉRIO
Isso é problema meu, caralho!

WHITAKER
Pelo amor de Deus! O que que está acontecendo aqui entre vocês? Alguém vai atrás
da Fernanda pra oferecer um copo dágua. Obviamente, não você, Mariana.

DANILO
Whitaker! Me escuta! Eu preciso falar com a Silvana pessoalmente!

WHITAKER
Ela vai falar com todos vocês.

DANILO
Eu quero falar com ela em particular.

WHITAKER
Falar o que?

DANILO
Não preciso dizer porque é particular!

WHITAKER
Ok! Entendi. Todos estão chafurdados em problemas de ordem emocional! Isso é
normal! Nós somos seres humanos. Vocês querem um psicólogo de plantão? Porque
eu posso solicitar a contratação de um psicólogo pra vocês!

ALVARO
Aqui ninguém precisa de psicólogo nenhum, Whitaker!

DANILO
Eu preciso de um psicólogo!
31

ALVARO
Page

Não vamos desviar do foco, pelo amor de Deus!

31
(Entra Fernanda.)

WHITAKER
Está mais calma, Fernanda?

FERNANDA
I’m fine, thank you.

WHITAKER
Talvez seja melhor você voltar pra casa.

FERNANDA
Eu nunca deixei de dar uma aula por conta de nenhum problema pessoal meu,
Whitaker. Nem quando morreu a minha avó! (emocionada.) Os alunos tinham exame
de segunda época, eu saí do crematório e vim ministrar prova!

(Fernanda se emociona. Danilo vai ampará-la.)

DANILO
A Fernanda é um ser humano maravilhoso!

FERNANDA
Minha avó fumegando e eu lecionando! Vocês sabem o que é isso?

MAGDA
Eu sei. Ano passado eu cremei minha cachorra e vim dar segunda época!

DANILO
A Fernanda é o exemplo! Esqueçam o Antônio que foi embora e olhem pra ela! Pra ela!

(Toca o sinal. Todos se levantam, imediatamente.)

OLIVÉRIO
Mais uma aula. Há trinta anos eu levanto da cadeira assim que toca um sinal.

MARIANA
Às vezes eu tô em casa, toca o telefone e eu digo “boa tarde, classe!” .
32
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32
MAGDA (arrumando suas coisas.)
É preciso amar o mau aluno! O amor é exercício de insistência! Eu odeio a Olívia
Bertholini com todas as minhas forças, mas ainda vou descobrir alguma coisa que me
apaixone naquela criatura abjeta!

DANILO
Vamos lá! Vamos lá! Eu gosto de lecionar pra adolescentes! Eu dialogo bem com os
adolescentes.

MARIANA
Claro, Danilo. Você e os adolescentes tem a mesma idade emocional.

MAGDA
Se a Olivia consegue conviver consigo mesmo, mesmo sendo um traste daqueles, no
mínimo a Olivia é uma adolescente de coragem! Eu preciso dizer isso na cara dela! “É
preciso coragem pra ser você, Olívia...”.

DANILO
Vamo lá! Os problemas são importantes para o crescimento! As piores fases da minha
vida foram as que eu não tinha problemas pra resolver. Na juventude, por exemplo! Eu
não tinha preocupações e estava sempre angustiado naquela felicidade toda! Eu
preciso de problemas na minha vida pra entender o tamanho da minha força.

(Todos vão saindo para mais três aulas.)

CENA 3

(Logo após o almoço. Todos recostados, fazendo a digestão, menos Danilo e Fernanda.
Olivério lê seu livro e faz anotações num caderninho.)

ALVARO
Vamo lá! Daqui a pouco eu vou promover mais uma aula interativa onde só eu abro a
boca! Tô querendo fomentar o debate em sala de aula, mas os alunos não falam nada!
Eu insisto porque a ignorância precisa sair do pedestal, como se ela fosse uma espécie
de antídoto para o sofrimento na carona daquela teoria que diz “não sei, não sofro”!
Eu prefiro a sapiência e o sofrimento consciente! Eu amo esses alunos e quero que eles
saibam e sofram! É o melhor que eu posso fazer por eles!

MARIANA
33

Eles tão sofrendo com você, eu tenho certeza, Alvaro.


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33
(Entra Magda, aflita.)

MAGDA
A Dona Silvana tá aí! Cruzei com ela no corredor, ela tava com a cara péssima!
Escrevam o que eu digo! Antes de terminar o dia, alguém vai receber a bomba! E eu
aposto em mim mesma! Eu mereço! Sou uma professora em crise com a profissão!

OLIVÉRIO
Se o critério for crise pessoal, tá todo mundo na rua, Magda.

MAGDA
Esse meu descontrole com a Olívia foi sintomático! Há vinte anos que eu ensino as
mesmas coisas e sempre do mesmo jeito. Até os meus esporros nos alunos, eu
conheço de cor. Eu sempre uso as mesmas palavras, as mesmas inflexões. Há vinte
anos eu falo as mesmas coisas. E repito. As mesmas coisas. Repito, repito, repito e
repito. As mesmas coisas! As mesmas coisas! Como é que eles me aguentam?

MARIANA
É uma pergunta difícil de responder.

ALVARO
Calma, Magda. Não adianta sofrer por antecipação. Vamos aproveitar que o Whitaker
não chegou pra entrar num acordo sobre o que nós vamos exigir da Dona Silvana!
Todo mundo junto! A união é a nossa força!

MARIANA
O Danilo e a Fernanda ainda não voltaram do almoço!

ALVARO
Foda-se, vamo seguir em frente que aqueles dois não acrescentam muito, mesmo! Eu,
honestamente, acho que um dos nossos maiores problemas é que existe um número
absurdo de horas extra classe que são consumidas em assuntos de caráter
administrativo que não nos dizem respeito!

MARIANA
Agora você tá reclamando de integrar a Comissão de Eventos, Alvaro?

ALVARO
Eu reclamo disso também! Pra organizar uma simples festa junina as nossas reuniões
34

foram intermináveis!
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34
MARIANA
É porque você polemiza tudo!

ALVARO
Eu não polemizo nada, Mariana! A única coisa é que eu me recusei a aceitar a
brincadeira da cadeia na festa junina!

MARIANA
É o que eu tô dizendo...

ALVARO
Porque com cadeia não se brinca, porra! Eu sou professor de história! Você sabe
quantas pessoas foram torturadas nas prisões da ditadura?

MAGDA (súbitamente.)
Bom, já que o assunto é tortura, eu quero dizer que eu não vou mais participar da
Comissão do Livro Didático porque a Comissão Financeira presidida pelo Olivério me
sabota!

OLIVÉRIO
Eu não tenho culpa! A Comissão Financeira perdeu verba depois que foi sabotada pela
Comissão de Matrículas presidida pela Mariana.

MARIANA
Quem preside a Comissão de Matrículas é a Fernanda. Eu sei porque a Comissão de
Eventos sabotou essa Comissão também.

ALVARO
É isso que acontece! Por conta das Comissões, estamos chafurdados em disputas
políticas mesquinhas que representam um desgaste desnecessário dentro da equipe!

MAGDA
Então, eu proponho a criação de uma Comissão de Confraternização que promova
eventos em caráter descontraído entre todos nós.

ALVARO
Vamo falar sério, Magda!

MAGDA
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Eu estou falando sério! Que tal um bingo?


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35
ALVARO
A minha proposta é a extinção sumárias de todas as Comissões!

(Protestos: “Epa, aí também não, tá louco, Alvaro?, isso é muito radical, vamo com
calma, etc...”)

MARIANA
Enlouqueceu, Alvaro? Integrar as comissões representa abono no holerite.

ALVARO
Se a Sociedade Mantenedora repassar o aumento da mensalidade em forma de
dissídio, nós podemos abrir mão do abono! Faz as contas, Magda, você que é
professora de matemática...

MAGDA
Já fiz e não compensa! O dissídio ficaria em seis por cento e a Comissão é sete e meio!

MARIANA
As Comissões continuam!

ALVARO
Então é assim? Salve-se quem puder?

(Danilo entra sorrindo, junto com Fernanda.)

DANILO
Salve- se quem puder. Mas o amor é a bóia!

MAGDA
Do que que você está falando, Danilo?

DANILO (escrevendo no mural)


“O... amor... é... a... bóia!”.

MARIANA
Quando você diz bóia, você se refere ao alimento ou a salvação?

DANILO
Essa é a genialidade da frase. Eu falo das duas coisas. O amor que alimenta e salva ao
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mesmo tempo.
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36
MARIANA
Vamo ver se a bóia te salva agora, Danilo. Porque tua mulher telefonou e eu disse que
você estava no almoxarifado junto com a Fernanda.

DANILO (lívido.)
Eu não estava no almoxarifado junto com a Fernanda.

MARIANA
Ah, estava! Eu vi! Eu fui pegar as bexigas pro aniversário da escola e lá estava você,
conferindo o material didático.

FERNANDA (com o terror no olhar.)


Meu Deus do Céu! Eu vou vomitar!

MARIANA
Eu já vomitei, obrigada.

FERNANDA
Qual é o seu problema, Mariana? What the hell? What the hell? What the….

(Fernanda corre pro banheiro.)

MAGDA
Alguém explica o que está acontecendo?

MARIANA
Provavelmente, a Fernanda está grávida!

MAGDA
Que bom! A Fernanda merece toda a felicidade do mundo.

MARIANA
Resta saber quem é o pai!

DANILO
Escuta aqui, Mariana! Eu aguentei demais! Agora você vai ouvir!

(Entra Whitaker. Dessa vez, bem mais agitado. )


37
Page

37
WHITAKER
Eu sabia! Eu estou sempre escutando os gritos de vocês no corredor! Olha o mau
exemplo pros alunos! Não tem um dia que eu entro aqui e não encontro alguém
descontrolado!

OLIVÉRIO
Será que eu poderia ter um pouco de paz pra preparar a minha aula, pelo amor de
Deus?

WHITAKER
Acho que não, Olivério! Dona Silvana já está na escola, resolvendo questões
administrativas na secretaria e dentro de poucos minutos vai estar aqui com vocês!
Portanto, arrumem essa bagunça! (apontando.) Quem comeu na mesa de reunião e
fez essa sujeira?

MAGDA
Fui eu! A cantina é barulhenta demais!

WHITAKER
Não interessa! É lá que vocês têm que comer!

MAGDA
Mas os alunos ficam tripudiando da minha marmita!

WHITAKER
A Sala dos Professores não é refeitório, Magda! Daqui a pouco você vai usar o quê de
guardanapo? A lista de chamada?

(Magda recolhe a louça, nervosa. Whitaker lê a frase na lousa.)

WHITAKER
E que frase idiota é essa? “O amor é a bóia”?

DANILO
Não é uma frase idiota! A bóia, no caso, significa alimento e salvação e...

WHITAKER
Apaga essa merda! É o meu que tá na reta também! Eu sou o diretor dessa escola e
não consigo saber o que vocês querem da Sociedade Mantenedora! Acabei de levar
38

uma chamada da Dona Silvana porque ela acha que eu não tenho controle sobre a
Page

minha equipe!

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MARIANA (irônica.)
Que injustiça...

WHITAKER
E mais! A sua decoração do palco pro evento de aniversário foi reprovada, Mariana! A
Dona Silvana sentiu falta das bexigas!

MARIANA
Eu não tive culpa! Pergunta pro Danilo por que não tem bexiga!

WHITAKER
O que que você fez com as bexigas, Danilo?

DANILO
Eu decidi que eu quero declamar um poema sobre a morte! É do Edgar Allan Poe! “O
Corvo”!

WHITAKER
Não! Ninguém vai declamar nada!

DANILO
Eu me identifico com esse poema! “Eu caindo de sono e exausto de fadiga, ao pé de
muita lauda antiga...”

WHITAKER
Para com essa porra! Quanto mais rápido for esse evento, melhor pra todos nós!
Vocês já decidiram o que vão reinvindicar pra Dona Silvana?

ALVARO
Precisamos de uma nova reunião entre os professores pra esclarecer nossa lista de
exigências, Whitaker.

WHITAKER
Não existe mais tempo! Vocês discutem o tempo todo e não chegam a lugar nenhum!
Pra mim, chega! Eu não vou mais aliviar pra ninguém! Daqui a pouco a Dona Silvana
está aí pra conversar cinco minutos com vocês! É o tempo que ela tem!

ALVARO
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Cinco minutos pra conversar com o corpo docente que dá o sangue por essa
Page

instituição. Isso é uma indignidade!

39
WHITAKER
Eu já tô com o saco na lua! Porque enquanto vocês estão no bem-bom dando aula, as
bombas estão estourando na minha mão!

MAGDA
Quem tá no “bem-bom”, Whitaker? Acabei de ter uma crise de nervos porque uma
turma se rebelou contra mim!

WHITAKER
Eu sei, Magda! Os alunos andam se rebelando contra os professores e não é à toa!
Vocês tão insatisfeitos com a Sociedade Mantenedora? Que bom. Porque a Sociedade
Mantenedora também está muito insatisfeita com vocês!

MAGDA
Os boatos de demissão! É por isso que a Dona Silvana veio!

ALVARO
Ninguém precisa estabelecer esse terrorismo! Nossas reclamações são justas!

WHITAKER
O momento é péssimo pra reclamações, Alvaro! Hoje é aniversário da escola, mas
ninguém tem motivos pra comemorar! Esse ano foi terrível: as matrículas caíram, a
inadimplencia aumentou com o aumento da mensalidade e o pior de tudo, os
resultados dos alunos estão abaixo do esperado! A gente não rankeia ninguém no
Enem! Não aprova ninguém na Fuvest! E pra mim está muito claro que tudo isso está
diretamente ligado ao péssimo relacionamento que existe entre vocês! Portanto,
assumam as suas responsabilidades antes de fazerem as suas exigências descabidas!

(Whitaker sai. Silêncio. Olivério, que durante todo o diálogo anterior ficou se contendo,
explode.)

OLIVÉRIO
Chega! Isso é o fim da picada! Eu tenho trinta anos de magistério pra ser tratado desse
jeito!

ALVARO
Calma, Olivério!
40

OLIVÉRIO
Page

40
Eu sou um professor! Eu ainda sou um professor! Alguém precisa dizer na cara desta
mulher que nós não aceitaremos mais esse tipo de tratamento!

DANILO
Eu me ofereço em sacrifício. Façam a lista de xingamentos! Eu xingo e vou embora!
Quero ser demitido faz tempo! Saio da escola e escrevo o meu romance!

OLIVÉRIO
A escolha não vai ser sua, Danilo! Nós somos igualmente tratados feito lixo mas a
questão é que o professor é indispensável!

MAGDA
O professor é indispensável!

ALVARO
O professor é indispensável!

DANILO
O professor é indispensável!

MARIANA
Quem mais vai falar que o professor é indispensável?

OLIVÉRIO
Na minha opinião, Alvaro, a lista de exigências deve se resumir a um único item:
estabilidade no emprego. Se sai um, sai todo mundo. Só assim poderemos ter
tranquilidade pra fazer as nossas reivindicações!

ALVARO
Ok! Eu proponho uma votação. Quem estiver a favor da proposta do Olivério, levanta a
mão.

(Todos levantam a mão, menos Mariana.)

ALVARO
Está decidido pelo voto da maioria. A demissão de um é a paralização de todos.

(Todos aplaudem. Entra Whitaker. Soturno.)


41

WHITAKER
Page

Ok. Dona Silvana não vem. Mas quer falar com você, Olivério.

41
OLIVÉRIO
Quer falar o que?

WHITAKER
Aí é uma questão administrativa. Eu sou somente um porta-voz.

OLIVÉRIO
Mas eu tenho uma aula pra preparar...

WHITAKER
Deixa pra preparar amanhã.

OLIVÉRIO
Amanhã eu preparo as aulas de depois de amanhã.

WHITAKER
A Dona Silvana está te esperando.

OLIVÉRIO
Vamos deixar pra outro dia, por favor.

WHITAKER
Eu sinto muito, Olivério.

(Fernanda sai do banheiro, magoadíssima.)

FERNANDA
Muito obrigada, Danilo. Eu pus os bofes pra fora e você não foi ver como eu estava!
Alias, ninguém foi me socorrer! Eu poderia ter me afogado no meu próprio vômito
como a vocalista do Mamas and the Papas, mas vocês simplesmente não se importam!
Ninguém se importa com ninguém aqui dentro! Em que tipo de seres humanos vocês
se transformaram? Hein? What kinds of human beings, mothers fukers?

(Ninguém responde. Misto de tristeza com tensão. Apaga-se a luz.)

CENA 4

(Pouco antes do intervalo do período vespertino. Mariana e Danilo, sozinhos na Sala


42

dos Professores.)
Page

42
DANILO
Como você percebeu, essa é uma situação delicada, Mariana. Eu nem estou
preocupado comigo. O que eu não quero é que a Fernanda seja exposta.

MARIANA
Claro. E pra evitar a exposição da Fernanda vocês fazem sexo em lugares públicos.

DANILO
O que interessa é que eu e a Suely estamos atravessando um momento delicado no
nosso relacionamento, mas agora as coisas estão se esclarecendo.

MARIANA
Esclarecimento mesmo, só daqui nove meses, Danilo. Quem é o pai da criança?

DANILO
É o que eu te disse: a situação é muito delicada.

MARIANA
Eu gostaria que você soubesse que eu me sinto com a obrigação moral de relatar a
baixaria que eu testemunhei no almoxarifado à Sociedade Mantenedora. E se eu não
fiz isso até agora, é por uma questão de respeito à Suely, que é minha amiga de longa
data e que ficará mal falada por todo mundo depois que essa sujeira vier à tona.

DANILO (aumentando o tom.)


Eu realmente gostaria que você tivesse a dignidade de não se envolver nesse assunto,
Mariana.

MARIANA
Quem é você pra falar de dignidade? Eu tenho pena da minha amiga, Suely!

DANILO (numa explosão.)


Chega, Mariana! Você me viu com a Fernanda! Agora você já sabe! O que que você
está esperando pra ligar pra minha mulher? Liga! Vai ser um favor! Conta tudo! Porque
essa carreira e esse meu casamento são mentiras que eu acumulo na minha vida! Mas
o vento da mudança está soprando através dos seus lábios! Anda! Me denuncia! Vai
ser bom pra mim! Eu preciso de uma ruptura definitiva pra chafurdar no sofrimento e
colher a matéria prima do meu romance! A arte genuína nasce da dor! Todos os
grandes escritores foram sofredores convictos então a infelicidade é produtiva! Vai!
Liga pra Suely e consolida sua vingança contra mim já que você me odeia tanto.
43
Page

MARIANA

43
Não era você que queria preservar a Fernanda?

DANILO
Eu queria. Eu quero. Eu não tive culpa. Eu...
(Danilo tem uma crise de tosse.)

MARIANA
As coisas vão mudar profundamente aqui dentro dessa escola, Danilo. E sua vida
também, eu garanto. Mas pra que a pressa? Vamos aguardar o rumo dos
acontecimentos...

DANILO
Eu não aguento mais essa situação... Ninguém aguentaria... Eu tenho asma. A minha
saúde só tem piorado no últimos tempos...

(Danilo chora e tosse na sua fragilidade. Entram Magda e Alvaro. Sorridentes. )

MAGDA
Parecia um milagre, Alvaro! Eu entrei na sala e estava escrito na lousa em letras
garrafais: “Desculpa, Dona Magda.”. E em cima da minha mesa tinha um Sonho de
Valsa. A Olívia quem comprou! Essa turma é muito fofa. A gente reclama de tudo, mas
não existe lugar onde eu mais goste de estar do que na frente dos meus alunos.

MARIANA
Cuidado que o bombom pode ser parte do vudú.

ALVARO
Não começa, Mariana.

MARIANA
Comeu, morreu!

MAGDA (puta.)
Ótimo! Come esse bombom!

MARIANA
Eu tô de dieta. E você deveria fazer a mesma coisa.

MAGDA
44
Page

44
Escuta aqui! Eu não vou entrar mais no seu jogo porque eu sou uma pessoa que
valoriza a harmonia, o entendimento e o amor! Eu valorizo o amor, tá ouvindo, sua
filha da puta?

(Entra Olivério. Estranho. )

ALVARO
O que que a Silvana queria falar com você, Olivério?

OLIVÉRIO (sentando- se à mesa e abrindo um livro.)


Nada. Ela apenas queria me parabenizar pelo meu trabalho.

ALVARO
Não acredito!

OLIVÉRIO
Pois deveria. Eu fiz por merecer. Trinta anos de magistério! Trinta anos apostando na
transformação do ser humano e na melhoria do mundo por consequência! Eu me olho
no espelho e me pergunto “cadê aquele viço, cadê aquela beleza espanhola?”. Tudo
se esvaiu em trinta anos dedicados ao futuro do Brasil. E daí? Foi um investimento!
Quem colhe é o mundo! Qual o problema? Isso é a mais pura abnegação! Vocês não
acham que eu mereço os parabéns por tudo isso?

MAGDA
Se tem alguém aqui que merece os parabéns é você, Olivério!

ALVARO
Isso não faz nenhum sentido. A Dona Silvana nunca parabenizou nenhum de nós!

OLIVÉRIO
Talvez porque vocês não mereçam.

DANILO
Ei! Não precisa ser agressivo com os seus colegas!

OLIVÉRIO
Aqui ninguém é mais agressivo do que você com as suas lamúrias, Danilo!

DANILO
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Eu estou vivendo uma fase terrível na minha vida pessoal!


Page

45
OLIVÉRIO
Isso não te dá o direito de ser chato! Todo mundo sofre, mas todo mundo esconde o
sofrimento! O sofrimento dissimulado é o mínimo que se pode esperar de um ser
humano decente!

DANILO
Eu exijo que você me respeite! Alias, eu exijo respeito de todo mundo! Eu sou um
professor desse colégio!

OLIVÉRIO
Você pode saber muito de literatura, mas não sabe nada sobre ser um professor!
(elevando a voz.) Porque saber é uma coisa, ensinar é outra!

ALVARO
Vamo todo mundo se acalmar?

DANILO
Escuta aqui! Eu não vou ser tratado dessa maneira por um professor que faz tempo
que não ensina nada direito pra ninguém!

OLIVÉRIO
Do que que você tá falando?

DANILO
Os seus alunos se queixaram pra mim!

OLIVÉRIO
Se queixaram do que?

DANILO
Eles dizem que você é confuso!

OLIVÉRIO (avançando, possesso.)


Eles tem razão. Eu tô confuso agora. Não sei se dou uma porrada ou se te cuspo na
cara!

ALVARO
Pelo amor de Deus! Vocês são professores! Cadê a civilidade?
46
Page

MAGDA

46
Calma, Olivério. Eu nunca te vi nesse estado.

OLIVÉRIO (se contendo.)


Eu estou ótimo. Meu trabalho foi reconhecido. Não que eu precise! Minha filosofia
sempre foi não esperar o reconhecimento. Mas se o reconhecimento vem, eu estou no
lucro. Agora, com licença, que eu preciso preparar a minha aula.
(Entra Fernanda.)

FERNANDA
Olivério! Você tá bem?

OLIVÉRIO
Mas por que todo mundo fica me perguntando isso? Eu nunca estive melhor!

FERNANDA
Eu fui falar com a Regina da Contabilidade e ela estava puxando a sua ficha!

ALVARO
Puxando a ficha do Olivério pra que?

FERNANDA
Não sei. Mas quando eu perguntei, ela começou a chorar!

ALVARO
O que você conversou com a Silvana, Olivério?

OLIVÉRIO
Eu preciso de concentração, pelo amor de Deus!

(Entra Whitaker.)

WHITAKER
O que você está fazendo, Olivério?

OLIVÉRIO
Por que ninguém me deixa em paz? Eu só quero preparar a minha aula de daqui a
pouco!

WHITAKER
47

Nós combinamos que seria melhor você ir embora por hoje, Olivério!
Page

47
OLIVÉRIO
Nós combinamos que eu iria fazer aquilo que fosse o melhor pros alunos.

WHITAKER
Claro! Porque é preciso pensar nos nossos alunos, fundamentalmente!

OLIVÉRIO
Eu sou o único dessa escola que pensa nos nossos alunos, Whitaker!

ALVARO
Do que que vocês estão falando, afinal de contas?

MAGDA
Mandaram o Olivério embora! Foi isso, Olivério? Fala!

WHITAKER
O Colégio Nova Vanguarda será sempre grato...

ALVARO
Puta que pariu!

MAGDA
Eu falei que aquela mulher tava aqui pra isso!

FERNANDA
Qual a justificativa, Whitaker?

DANILO
Por que ele e não eu?

OLIVÉRIO
Não se preocupem comigo. Fiz um acordo vantajoso.

DANILO
Era nisso que eu estava interessado!

MAGDA
Você está a quatro anos de se aposentar.
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OLIVÉRIO (com o rosto no livro.)


Page

Parece que vou ter que antecipar os meus planos.

48
FERNANDA
Isso é um absurdo!

OLIVÉRIO
Eu quero preparar a minha aula e vocês estão atrapalhando a minha concentração!
ALVARO
Como é que você se sujeita a preparar uma aula depois de ter sido demitido?

WHITAKER
Olivério. Eu quero dizer que eu sempre fui contra à sua demissão...

ALVARO
Sempre foi? Então você sabia desde quando?

MAGDA
O Olivério é o melhor de todos nós!

ALVARO
Muito bem, Whitaker! Acho que o mínimo que essa mulher deve ao corpo docente é
uma satisfação imediata sobre a saída do Olivério!

WHITAKER
Isso diz respeito somente ao Olivério e à Sociedade Mantenedora.

ALVARO
Isso diz respeito a todos nós!

(Todos protestam ao mesmo tempo: “Isso mesmo! Nós temos o direito de saber, etc...”)

WHITAKER
Muito bem. Eu explico. (solene.) No início do ano, a Sociedade Mantenedora
encomendou uma pesquisa de desempenho do corpo docente à Education Workers
Performance Institute levando em conta critérios de aproveitamento, barra, nota,
barra, presença. E, lamentavelmente, segundo essa pesquisa, o Olivério foi o último
professor na classificação geral.

FERNANDA
Como assim? O Olivério é ótimo!
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Page

MAGDA

49
E que instituto cretino é esse que eu nunca ouvi falar?

MARIANA
Escuta. Quem ficou em primeiro lugar?

WHITAKER
A primeira foi a Magda.

MAGDA
Ah... Obrigada.

ALVARO
Isso é ridículo...

MAGDA
Péra lá. Não vamos menosprezar todo um trabalho da Education Workers...

(Toca o sinal.)

WHITAKER
Infelizmente o sinal tocou. Vamos agora todos para o pátio, celebrar o aniversário
dessa escola. Depois falaremos sobre esse assunto. E você está dispensado por hoje,
Olivério.

OLIVÉRIO (decidido.)
Não. Eu quero cantar o hino nacional.

MAGDA
Whitaker, me desculpa. Eu não vou conseguir tocar flauta depois de uma notícia
dessas!

WHITAKER
Não se preocupe com isso, Magda. Dá o tom que a moçada vai na capela.

OLIVÉRIO
Depois do evento, eu tenho que dar aula pro terceiro colegial!

WHITAKER
50

O Danilo assumirá o terceiro colegial no seu lugar nas aulas restantes.


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50
OLIVÉRIO
Eu tenho todas as condições de dar aula, Whitaker!

WHITAKER
Essa é uma decisão da Sociedade Mantenedora, Olivério! Vamos para o pátio, que os
alunos estão esperando!

(Tensão. Ninguém se levanta dessa vez.)

WHITAKER
Ok. Eu compreendo a revolta de vocês. Eu também compartilho desse sentimento,
mas estamos submetidos às decisões administrativas que extrapolam o envolvimento
afetivo que temos uns com os outros. Portanto, vamos para o pátio, já disse!

(Silêncio tenso. Até que Olivério se levanta, decidido.)

FERNANDA
Onde você vai, Olivério?

OLIVÉRIO
Celebrar o aniversário da nossa escola.

ALVARO
Olivério! Nós concordamos em paralizar nossas atividades se um de nós fosse
demitido.

OLIVÉRIO
Eu lembro. Fui eu que fiz essa proposta.

ALVARO
Pois bem. Aconteceu. Você foi demitido. Ninguém mais trabalha!

OLIVÉRIO
O combinado foi que os remanescentes da equipe iriam paralizar suas atividades. O
demitido pode fazer o que quiser. Eu quero cantar o hino agora e quero dar aula
depois. A aula que eu preparei até as três da manhã cujo tema dialoga diretamente
com a minha situação: a extinção dos dinossauros!

WHITAKER
51

Você não está bem, Olivério! Seria uma irresponsabilidade minha permitir que você
Page

assuma as suas atividades nesse estado!

51
OLIVÉRIO
Eu não estou bem? Olhe pra sua equipe, Whitaker! Um se comporta como um
sindicalista de porta de fábrica na sala dos professores, a outra tem medo de vudú!
Uma faz da vida do asmático depressivo um inferno e a outra tá vomitando a cada dez
minutos! O único em condições de assumir as próprias atividades sou eu! Alias,
assumir as minhas atividades nesse momento é a única coisa que eu posso fazer por
mim mesmo pra não enlouquecer!

ALVARO
Não faça isso, Olivério! Estamos todos em greve por você a partir de agora!

WHITAKER
A Dona Silvana está na escola! Se vocês insistirem nessa paralização, as consequencias
serão seríssimas!

ALVARO
Serão mesmo! Pela primeira vez, nós vamos ser ouvidos!

DANILO
Eu apoio a greve!

FERNANDA
Eu também!

MAGDA
Posso pensar um pouco?

OLIVÉRIO
Eu furo essa greve e vou cantar o hino!

WHITAKER
Você fica onde está, Olivério! E vocês, saiam de onde estão!

ALVARO
Ninguém se mexe, porra!

MAGDA
Eu preciso que alguém decida por mim! Todas as decisões que eu tomo por mim
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mesma são sempre equivocadas!


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52
OLIVÉRIO (num grito.)
Eu quero cantar o hino!

WHITAKER
Abaixa o tom de voz, Olivério!

ALVARO
O Olivério perdeu a razão junto com o emprego! E nós estamos seguindo no mesmo
caminho!

OLIVÉRIO (quase num surto.)


Eu quero dar aula! Eu fiquei até três da manhã fazendo o desenho do brontossauro,
porra! O meu autorretrato! O herbívoro vitimado pelo predador!

WHITAKER
Meça suas palavras pra não sofrer as consequencias!

OLIVÉRIO
Que consequencias? Vocês já me demitiram! O que mais a Sociedade Mantendora
pode fazer comigo? Dar outro pé na outra banda da minha bunda?

WHITAKER (indo embora.)


Você não está bem e sabe muito bem disso!

ALVARO
Senta aí, Whitaker!

WHITAKER
Opa! Eu sento se eu quiser!

MAGDA
Eu não aguento mais ouvir esses gritos!

WHITAKER
Vocês estão enlouquecendo!

ALVARO
Você tem razão, Whitaker! E a Sociedade Mantenedora é responsável por isso!
53

(Toca o sinal de novo.)


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53
OLIVÉRIO
Há trinta anos eu levanto da cadeira assim que toca um sinal. Se eu não levantar
agora, eu não levanto nunca mais!

(Alvaro se coloca na frente da porta.)

ALVARO
Daqui ninguém sai, eu já disse! Nós precisamos chegar num acordo!

WHITAKER
O acordo pra mim tá claro!

ALVARO
E qual é o acordo?

WHITAKER
Eu mando, vocês obedecem!

FERNANDA
Um minuto que eu tenho uma proposta! Vamos lá pra fora! A gente canta o hino
nacional e antes do discurso da Silvana, comunicamos aos alunos que o Olivério foi
demitido.

WHITAKER
Enlouqueceu, Fernanda?

FERNANDA
O Olivério foi vítima de uma injustiça e é preciso que os alunos saibam disso!

WHITAKER
Vocês estão querendo incitar a revolta no corpo estudantil?

FERNANDA
Ninguém incita nada. A gente só comunica e espera o resultado.

ALVARO
A Fernanda tá certa! A Silvana precisa ter uma demonstração pública do carinho que
os alunos têm pelo Olivério!
54

OLIVÉRIO
Page

Eu não quero que vocês comuniquem nada!

54
WHITAKER
A demissão do Olivério é uma decisão administrativa que se baseia em números da
Education Workers...!

ALVARO
Manda a Dona Silvana enfiar esse instituto no rabo!

WHITAKER
Você perdeu a compostura, Alvaro!

ALVARO
Não! Eu perdi a contundência do meu discurso porque eu me aburguesei no medo de
perder esse emprego! Mas um homem não pode ser a contradição entre aquilo que
ele pensa e aquilo que ele faz! Eu andava quieto demais porque antes qualquer um me
desmascarava! Agora, eu vou lutar pelo o que acredito que é certo aqui dentro! E o
certo é o Olivério continuar nessa equipe!

OLIVÉRIO
Vocês não têm nada a ver com isso!

WHITAKER
A Dona Silvana prometeu que vai conversar com todos vocês no final do dia!

ALVARO
Mentira! Ela não vai conversar nada! O máximo que ela vai fazer é mandar outro
recado através de você, Whitaker! E disso nós já estamos de saco cheio! Agora ela tem
que ouvir a gente, porque se hoje é o Olivério, amanhã qualquer um de nós também
pode ser vítima de uma injustiça!

WHITAKER
Não houve injustiça nenhuma!

ALVARO
Então foi uma sacanagem! E isso fundamenta a nossa decisão conjunta de entrar em
greve! Porque se professores como Olivério são dispensados como mão de obra
ordinária por conta de números de um instituto vagabundo que ninguém nunca ouviu
falar, isso significa que...
55
Page

MARIANA

55
Mas será que ninguém percebeu que o Olivério está doente?

OLIVÉRIO
Fica quieta, Mariana!

MARIANA
Fala logo de uma vez, Olivério!

MAGDA
Doente do que?

MARIANA
Vocês não repararam? O Olivério esquece tudo. Por isso esse esforço na preparação
das aulas! As mesmas aulas que ele dá há trinta anos e que, agora, ele precisa
recaptular todo santo dia antes de entrar na sala de aula!

MAGDA
Isso é verdade, Olivério?

OLIVÉRIO
Claro que não! Se eu esqueço alguma coisa é por conta do estresse da profissão, coisa
que qualquer professor está sujeito! Isso é o... Eu sou como qualquer um que... Eu...
(Olivério abaixa a cabeça. Silêncio comovido.) Meu irmão tem a mesma coisa. É
progressivo. Hoje eu sou o único que ele reconhece. Não tô me queixando. Eu fiz um
acordo com a Sociedade Mantenedora. Eles prometeram... Existe uma série de
benefícios que... Eu não lembro direito...

(Silêncio.)

MAGDA
Olivério, vem aqui me dar um abraço...

DANILO
Você me desculpa, Olivério. Eu simplesmente não sabia que...

OLIVÉRIO
Ninguém precisava saber. O meu acordo é que tentaríamos encerrar o ano letivo. E eu
estava conseguindo. Era uma meta que ia ser cumprida. Porque eu preparo aula até
56

três da manhã e tudo estava indo muito bem até agora.


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56
FERNANDA
Estava tudo indo muito bem, Olivério! É por isso que vamos lá fora cantar o hino pra
você!

OLIVÉRIO
Não! Eu não preciso que os alunos saibam que eu fui demitido! Eu não quero
despedidas! Não quero ninguém me olhando como se eu fosse um coitado.

FERNANDA
Você precisa ter a noção do quanto é amado, Olivério!

OLIVÉRIO
Mas eu não sou amado! Quem disse que eu sou amado? Eu nunca me senti amado! Eu
sou somente um professor! Pra mim, o reconhecimento é secundário! Tudo o que eu
quero é cumprir com as minhas obrigações!

ALVARO
Vamos todos cantar o hino nacional de mãos dadas como símbolo da nossa união!

FERNANDA
A Magda fica no meio tocando a flauta!

MAGDA
Mas pode ser “Asa Branca”?

FERNANDA
Vamos promover um abraço coletivo no Olivério!

DANILO
E aí, eu declamo o Maiacovsky!

WHITAKER
Ok! Chega! Fiquem aonde estão!

ALVARO
Você tinha dito pra gente sair!
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WHITAKER
Page

Mas agora eu ordeno que vocês fiquem!

57
OLIVÉRIO
Agora eu obedeço!

ALVARO
Faça o que você quiser, Olivério! A gente vai cantar o hino e te homenagear mesmo
que isso custe o emprego de todo mundo!

(Todos se encaminham pra porta.)

WHITAKER (num berro.)


Um minuto! Vocês precisam me escutar, pelo amor de Deus! Eu peço que vocês
esperem aqui. Eu vou convocar a Dona Silvana pra falar com todos vocês
imediatamente. Eu entendo vocês! Eu estou do lado de vocês! Eu concordo com a
permanência do Olivério. Eu concordo com as exigências. Vamos resolver isso antes do
evento. Eu falo com a inspetora, ela pede pros alunos esperarem no pátio mais um
pouco. Vamos dispensar as turmas depois do hino caso isso seja necessário, mas
vamos tentar resolver essa situação sem que os alunos sejam envolvidos. Esse tipo de
crise não pode chegar aos pais porque nós não podemos correr o risco de ter uma
debandada na hora das matrículas! A situação financeira do nosso colégio é muito
mais grave do que vocês pensam! Se vocês gostam dessa escola, se vocês tem apreço
por essa escola, por favor, esperem aqui...

(Silêncio. Os professores se entreolham.)

ALVARO
Nós estamos esperando, Whitaker. Mas a nossa paciência se esgotou. Diga pra Dona
Silvana não demorar.

WHITAKER
A secretaria é aqui do lado. Eu vou e volto com ela num minuto, eu prometo.

(Whitaker sai e bate a porta atrás de si. Olivério senta com as mãos no rosto, numa
angústia irrepresável. )

FERNANDA
Calma, Olivério. Você não vai ser demitido. Nós vamos resolver essa situação.
58
Page

OLIVÉRIO

58
A situação já estava resolvida. Mas a Mariana resolveu se intrometer.

MAGDA
Do que você tá falando, Olivério? O que que a Mariana fez?

OLIVÉRIO
Essa aí conversou com a Silvana. Ela tem conversado muito com a Silvana
ultimamente.

ALVARO
Você passou o dia inteiro insinuando coisas, Mariana. Vamos jogar às claras! O que
está acontecendo?

MARIANA
Não está acontecendo nada.

ALVARO
Fala, Mariana!

MARIANA
Eu não tenho nada pra falar!

ALVARO
Como não? Você tá escondendo alguma coisa! Você não pode fazer isso! Você é uma
de nós!

MARIANA
Ok! Não sou mais!

ALVARO
Como não?

MARIANA
Daqui a pouco vocês vão saber também. O Whitaker é outro que vai ser mandado
embora.

MAGDA
Quem te disse isso?
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Page

MARIANA

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A própria Silvana.

FERNANDA
Quando ela te contou?

MARIANA
Quando eu fui comunicada que vou ser a nova diretora do Colégio Nova Vanguarda.

(Choque. Fernanda se afasta.)

FERNANDA
Não... Não. Não!

MARIANA (triunfante.)
Agora as coisas vão funcionar direito por aqui!

ALVARO
Mas o Whitaker sabe que vai ser demitido?

MARIANA
Ainda não. E eu peço que vocês não falem nada antes de segunda-feira. A Silvana é
muito humana e quer que o Whitaker passe um final de semana tranquilo com a
família.

MAGDA
Coitado do Whitaker...

FERNANDA
Coitado de nós!

DANILO
Calma, Fernanda!

FERNANDA
Calma aonde? Isso aqui já estava um inferno! Imagina depois que a Mariana virar
diretora!

MARIANA
60
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60
A partir de agora, nós colocaremos o Nova Vanguarda sempre em primeiro lugar! O
Nova Vanguarda sempre valorizou os professores! A pergunta é: quem valoriza o Nova
Vanguarda?

FERNANDA
Então nós tínhamos uma traidora infiltrada nessa Sala.

MARIANA
Eu recomendo que você meça suas palavras, Fernanda!

FERNANDA
Medir minhas palavras, por que? Pra mim, isso tudo acabou! Com você no comando
eu cheguei ao fim da linha! Na verdade, todos nós chegamos ao fim da linha! Eu vou
embora! E você deveria fazer a mesma coisa, Danilo! Está na hora de você tomar
decisões que vão encher o nosso filho de orgulho!

DANILO
Eu nem sei se o filho é nosso!

MAGDA
Vocês tem um caso?

DANILO
Não é um caso! É paixão! É a coisa mais linda e terrível que me aconteceu na vida! E
agora eu quero que todo mundo saiba!

MARIANA
Eu já sabia dessa baixaria, mas tava me controlando. Agora, só me resta te mandar
embora, Fernanda! Eu deveria despedir o Danilo também, mas a Suely é minha melhor
amiga.

FERNANDA
Pois muito bem! Eu vou embora! O Danilo também já disse que quer sair. Vamos,
Danilo. Vamos, Olivério! Quem mais vem com a gente? Alvaro? Magda? Ou vocês
acham que existem condições de continuar trabalhando num lugar como esse?

(Silêncio. Todos abaixam a cabeça.)


61

FERNANDA
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61
Eu já imaginava. Vocês querem continuar, mesmo no meio dessa lama. Que seja. Cada
um responde por si. A todos, boa tarde.

(Fernanda tenta sair, mas a porta está trancada.)

FERNANDA
Ei?

ALVARO
Que aconteceu?

FERNANDA
A porta tá trancada!

(Choque dos professores. Entra o Hino Nacional Brasileiro ao fundo. Uma execução
precária, fruto de uma gravação ordinária. Alvaro começa a forçar a porta. )

ALVARO
Isso não pode estar acontecendo...

OLIVÉRIO
Começou a cerimônia!

FERNANDA
Sem a nossa presença!

ALVARO
A porta foi trancada por fora!

MARIANA
Como assim, trancada?

MAGDA
Isso é um absurdo!

DANILO
Fala que é uma brincadeira!
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ALVARO
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62
Só se for uma brincadeira de mau gosto! O Whitaker passou a chave pelo lado de fora
enquanto estávamos no meio da nossa discussão!

MAGDA
Minha Nossa Senhora!

DANILO
Deixa eu tentar abrir!

(Danilo força a maçaneta.)


ALVARO
Estamos presos! Como na ditadura, porra!

DANILO (batendo na porta.)


Parem com essa brincadeira! Eu exijo que vocês parem com essa brincadeira!

OLIVÉRIO
Ah, ah, ah!

MARIANA
Do que que você tá rindo, Olivério?

OLIVÉRIO
Vamos respeitar o hino nacional, ah, ah, ah!

DANILO
Cala a boca com as suas piadas, Olivério! Eu tenho que sair daqui!

ALVARO
Agora o Whitaker passou de todos os limites!

MARIANA
Pode ter sido algum moleque do terceiro colegial!

MAGDA
Só se for a Olivia Bertholini! Retaliação porque eu afoguei o celular!

DANILO
Eu tenho claustrofobia, porra! Isso desencadeia a minha crise de asma!
63
Page

FERNANDA

63
Calma, Danilo!

DANILO
Calma aonde? Eu não posso ficar preso em lugar nenhum! Até quando eu uso o
banheiro eu deixo a porta aberta!

ALVARO (no telefone.)


Silêncio! Eu estou tentando falar com a secretária!

MARIANA
A secretária deve estar no pátio ouvindo o hino!

MAGDA
Como é que os alunos fazem uma coisa dessas? Eles perderam totalmente a noção de
limite! Isso é reflexo da crise na nossa sociedade! O problema começa em casa! Os pais
são ausentes! Eu sei porque a minha filha tem os pais ausentes e olha a merda que tá
dando!

ALVARO
Não seja ingênua, Magda! Os alunos não tem nada a ver com isso! Nós fomos
trancados pelo Whitaker! Tudo o que ele quer é que o teatro da escola harmoniosa
seja representado pra Dona Silvana nesse evento ridículo!

OLIVÉRIO
O ingênuo é você, Alvaro. O Whitaker é um fraco. Ele jamais teria coragem de trancar a
gente aqui dentro. Ele sabe que as consequencias seriam terríveis pra ele!

MAGDA
É o que eu estou dizendo! Foi a Olívia!

OLIVÉRIO
Nem o Whitaker, nem a Olívia . Quem nos trancou aqui foi a Dona Silvana.

MARIANA
Não seja ridículo! A Silvana jamais faria esse tipo de coisa! Isso é uma insanidade!

OLIVÉRIO
Essa experiência já foi feita numa escola da França em 1976. A direção proibiu a
64

entrada dos professores pra que os alunos pudessem avaliá-los com mais isenção.
Page

64
Agora, a Silvana tem todos os alunos reunidos no pátio pra saber exatamente o que
eles pensam de cada um de nós na nossa ausência!

MARIANA
Isso é ridículo!

OLIVÉRIO
A Silvana vai saber o que os alunos pensam de você, Mariana!

MARIANA
Os alunos me amam!
OLIVÉRIO
Ah, ah, ah, ah!

(Danilo cai, asfixiado.)

FERNANDA
Danilo, pelo amor de Deus!

(Fernanda dobra a perna de Danilo, num esforço de primeiros socorros.)

MAGDA
O que aconteceu com ele?

FERNANDA
É a crise de asma! Afrouxa a gravata, enquanto eu faço a torção na perna! Respira com
cadência, Danilo!

DANILO
Eu vou morrer!

MARIANA
Vamo todo mundo se acalmar!

ALVARO
Eu vou arrombar essa porta!

MARIANA
Isso é depredar o patrimônio da escola!
65
Page

(Alvaro se joga na porta.)

65
OLIVÉRIO (numa raiva crescente.)
Ela deve ter formulado um questinário!

DANILO
Socorro.....

MAGDA
Meu Deus, o Danilo tá morrendo!

ALVARO
A porta é de peroba, merda!

OLIVÉRIO
Os questionários! Que serão preenchidos e avaliados por amostragem! Como na
França em 1976!

FERNANDA
Danilo, lembra do que a gente fez lá em Cotia!

DANILO (num fio de voz.)


Tá pior do que em Cotia, Fernanda!

MARIANA
Que história é essa de Cotia?

FERNANDA
Nós também ficamos trancados num motel em Cotia!

OLIVÉRIO (quase delirando.)


Fichas de avaliação! Nossos nomes separados em colunas, avaliações de desempenho,
ruim, bom, regular. Comentários finais, anonimado garantido, garantindo a isenção!

(O hino acaba. Os professores esquecem Danilo e vão até a porta.)

MAGDA
Acabou o hino!
66

MARIANA
Page

Vai começar o discurso!

66
ALVARO
O que essa vaca vai dizer pros nossos alunos?

FERNANDA (esmurrando a porta.)


Esses alunos são nossos!

ALVARO
Essa escola é nossa!

FERNANDA
Nós somos os professores!

MAGDA
A instituição mais importante do universo escolar!

ALVARO
O discurso deveria ser feito por um de nós!

FERNANDA
Abram essa porta!

ALVARO
Abram essa porta!

MAGDA
Abram essa porta!

DANILO (num gemido de doente terminal.)


Fernanda!!!

(Os professores se viram pra Danilo, que desmaia depois de um espasmo. Fernanda
corre para socorrê-lo. Entra em off a voz de Silvana.)

SILVANA- (off) “Boa tarde, queridos alunos do Colégio Nova Vanguarda. Hoje, mais do
que o aniversário da nossa instituição, é o dia de comemorar o início de um novo
tempo. Celebrando o passado pensamos na construção de um novo futuro. Tudo só
pode estar bem quando se conhece o caminho certo e nós, do Colégio Nova
67

Vanguarada conhecemos esse caminho. Estendemos nossas mãos para guiá-los pela
Page

estrada que conduz ao conhecimento e à construção de um mundo melhor. Eu

67
estendo as minhas mãos até vocês. Estendam as suas mãos uns aos outros também..
Agora estamos juntos. E quem agradece é o Brasil.

(Aplausos dos alunos lá fora. Os professores ouviram o discurso numa indignação


apoplética. Luz abaixa em resistência.)

CENA FINAL

(Passagem de tempo. Danilo está deitado no colo de Fernanda. Alvaro anda de um lado
para o outro da sala. Olivério está plácido, sentado numa cadeira. O som da turba
estudantil segue ao fundo.)

ALVARO
Isso é um pesadelo! Isso é um desrespeito! (batendo na porta.) Alguém tá aí fora?
Como é que ninguém aparece nesse corredor?

FERNANDA
Por favor, vamos ficar em silêncio! A única maneira do Danilo controlar a crise de asma
é ele fechar os olhos e se imaginar em um lugar que não seja uma sala escura, mal
ventilada e trancada por dentro!

DANILO
Pelo amor de Deus, Fernanda!

ALVARO
Eu vou processar a Silvana! Meu primo Tunico é advogado trabalhista!

MARIANA
Ninguém sabe se foi realmente a Silvana quem trancou a sala! E se foi, eu tenho
certeza que ela sabe o que está fazendo.

ALVARO
É curioso que você ainda defenda essa demente, Mariana. Porque eu vejo o Whitaker
fazendo a mesma coisa enquanto cava a própria sepultura.

OLIVÉRIO
A sepultura é coletiva, Alvaro! Estamos todos no mesmo buraco e ninguém sentiu
nossa falta! Pelo contrário! Escuta a algazarra lá fora!
68

ALVARO
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Isso não é algazarra, Olivério! São os gritos da revolta!

68
OLIVÉRIO
São os gritos da alegria!

DANILO
É grito ou risada? É protesto ou aprovação? Alguém me responde, pelo amor de Deus!

ALVARO
É revolta, porra! Claro! A gente impõe conteúdo, mas eles querem uma política
participativa! Nós precisamos falar com eles agora! Propor uma ação conjunta!

MARIANA
Eu falo com eles! Eles têm todo o direito de se revoltar, afinal, os alunos são os
patrões!

MAGDA
Do que você tá dizendo?

MARIANA
A mensalidade aumentou! Eles pagam nossos salários e querem um serviço bem
prestado. É justo. Esse é o mundo moderno. Essa é a lógica capitalista do pensamento
liberal...

MAGDA
Você não entende nada, sua cretina! Nós somos professores! Eles querem ficar por
respeito e agradecimento a todos nós! Esse é o sentimento verdadeiro!

FERNANDA
Agora eu ouvi uma gargalhada!

ALVARO
Não é gargalhada, merda!

FERNANDA
O Olivério tá certo! Eles preferem a nossa ausência! Eles são felizes na nossa ausência!

ALVARO (angustiado.)
É a revolta! É claro! Eles descobriram a nossa mentira, Fernanda!
69

FERNANDA
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Que mentira?

69
ALVARO
A gente ensina o que eles não precisam saber!

(Ouve-se um som de vidro estilhaçado. Tensão. )

MARIANA
Ai, meu Deus! O que foi isso?

FERNANDA
Os alunos vão quebrar a escola inteira!

MARIANA
Nunca! Tem que punir! Tem que expulsar! Tem que servir de exemplo!

(Outro vidro estoura. Gritos ao fundo.)

MAGDA
Por que eles estão fazendo isso?

OLIVÉRIO
Porque os professores não estão lá! Os alunos perceberam que a escola é deles! A
ausência da figura de autoridade pode ter consequências desastrosas! Isso já
aconteceu na França! Os alunos destruíram o prédio! Foi o episódio que decretou a
falência do sistema educacional francês!

MARIANA
E o que aconteceu com os professores?

OLIVÉRIO
Os professores foram espancados! Ah, ah, ah!

(Uma explosão. Gritos dos professores.)

DANILO
Isso foi uma bomba?

FERNANDA
Parecia um tiro!
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MAGDA

70
A gente tem que sair daqui! Eu não quero ser espancada!

FERNANDA
Nós não fizemos nada contra eles! Os alunos amam os seus professores!

OLIVÉRIO
Quebra tudo, rapaziada! Como na França!

MARIANA
Se quebrar vai ter consequência! Eu vou expulsar todo mundo! Não vai sobrar
ninguém! Uma escola sem alunos! Esse sempre foi o meu sonho como professora!

DANILO (ensandecido.)
Fernanda! A asma tá atacando outra vez! Isso aqui só passa de um jeito! Vem aqui,
lindinha! Me beija! Eu quero trepar com você agora!

FERNANDA
Você enlouqueceu, Danilo?

DANILO
Você sabe que a asma passa quando fico com tesão!

MARIANA
É um filha da puta, mesmo! Eu só não te demito porque a Suely é a melhor amiga que
eu tenho!

DANILO (numa explosão.)


Melhor amiga? A Suely te odeia, Mariana!

MARIANA
Mentira!

DANILO
Ela te acha feia e eu também!

MARIANA (furiosa.)
Chega! Você tá demitido, Danilo!

ALVARO (num berro.)


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Me demite também, Mariana!


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MAGDA (em pânico.)
Enlouqueceu, Alvaro?

ALVARO
Isso aqui é o fundo do poço! Eu tenho que abandonar o magistério!

MAGDA
Não! Se você vai embora, me leva com você, Alvaro! Porque se não for pra te ver todo
o dia, eu não venho mais nessa escola! Entendeu o que isso significa? Significa que eu
sou louca por você! Eu sempre fui. Você tá ouvindo, Alvaro?

MARIANA
A Suely me adora!

DANILO
Nunca! A Suely fala mal de você e a gente se diverte com isso!

MARIANA
Alguém abre essa porta, pelo amor de Deus!

DANILO
A Suely é um anjo, Fernanda! Tanto que agora eu decidi!

FERNANDA
Decidiu o que?

DANILO
Eu vou reconstruir meu casamento!

FERNANDA
O que que você tá falando, Danilo?

DANILO
Desculpa, Fernanda. Você é uma pessoa maravilhosa, mas eu tenho uma história com
a Suely!

FERNANDA (dando um tapa na cara de Danilo.)


Escreve o que eu vou dizer, seu idiota! Eu nunca mais quero olhar na sua cara!
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MAGDA (batendo em Alvaro.)


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Alvaro! Eu sou louca por você! Por que você finge que não me escuta, seu filha da
puta?

OLIVÉRIO
Olha aí! Começou a pancadaria! É o movimento inevitável!

(Toca o sinal. Soberano, definitivo. Silêncio. )

MARIANA
Acabaram os gritos! Escutem o silêncio! Aconteceu o que eu imaginava! A Silvana
contornou a revolta com disciplina! Agora ela vai dispensar os alunos e finalmente
teremos a conversa que estávamos esperando há tanto tempo com a Sociedade
Mantenedora.

ALVARO
Conversar pra que? É hora de fechar os livros. Tá tudo acabado.

MAGDA
Tá tudo acabado, o cacete! Você é a diretora, Mariana. Eu preciso continuar! O único
refúgio que eu encontro na minha agonia é o momento onde eu consigo fazer uma
pessoa aprender uma coisa que ela não sabia.

MARIANA
Você continua, Magda, não se preocupe . O Nova Vanguarda valoriza quem valoriza o
Nova Vanguarda.

(Olivério se dirige à janela.)

FERNANDA
Onde você vai, Olivério?

OLIVÉRIO
Estamos no terceiro andar. Isso dá uma queda de seis metros.
(subindo no parapeito.) E a chance estatística de morrer ao pular de uma altura de seis
metros é de setenta por cento, dependendo do ângulo da queda.

MAGDA
Ele vai se matar! Era só o que faltava acontecer!
73

FERNANDA
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Pelo amor de Deus, Olivério!

73
OLIVÉRIO (num devaneio.)
Por que vocês não vêm comigo? Somente um suicídio coletivo de professores poderá
lançar uma luz sobre o sofrimento da nossa categoria. Um suicídio coletivo dará a
exata dimensão do nosso cansaço e da nossa indignação. Seremos ícones de um novo
tempo para a educação brasileira! O suicídio coletivo de um corpo docente inteiro fará
com que o Brasil finalmente se sensibilize com a nossa causa inglória.

ALVARO
Olivério! Pelo amor de Deus! Se você fizer essa bobagem, você vai se arrepender!

OLIVÉRIO
Eu só tenho que pular do jeito certo porque morto não se arrepende!

MAGDA
Hoje é o pior dia da minha vida! Eu tenho certeza que hoje é o pior dia da minha vida!

(Sons de chave virando. A porta se abre. Whitaker aparece, sangrando no supercílio.)

WHITAKER
Eu quero dizer que sinto muito.

MARIANA
O que aconteceu com você, Whitaker?

WHITAKER
Eu levei uma pedrada.

DANILO
Por que?

WHITAKER
Eu não sei. Os alunos estão revoltados com o aumento da mensalidade. O cachorro
quente tava sem molho, isso piorou as coisas. Eles começaram a questionar a Dona
Silvana. Um dos seguranças dela deu um empurrão no representante dos alunos. Aí,
começou a confusão.

FERNANDA
Meu Deus!
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OLIVÉRIO (resoluto.)

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Atenção para o ditado da minha carta de suicídio! “Eu, Professor Olivério Fonseca, me
mato em defesa da educação brasileira!”

(Alvaro se agarra a Olivério, retirando-o da janela. Gritos de desespero por parte de


todos. No chão, Olivério se debate com Alvaro.)

MAGDA
Hoje é o pior dia da minha vida! Eu tenho certeza que hoje é o pior dia da minha vida!

ALVARO
Depois de tudo isso, esse colégio acabou hoje, Whitaker. O dia do aniversário é a data
de falecimento. Parabéns e meus pêsames.

DANILO
“Nessa casa, onde o horror profundo tem seus lares triunfais, eu pergunto, existe
acaso um bálsamo no mundo? E o corvo disse: ‘Nunca mais’!”

WHITAKER
Um minuto. Vocês não podem ir embora.

FERNANDA
Mas nós vamos, Whitaker. A menos que você tranque a porta de novo.

WHITAKER
A Dona Silvana dispensou os alunos, mas eles recusaram a dispensa.

ALVARO
Como assim?

WHITAKER
Eu também não entendi! O que eu sei é que eles estão lá. Nas salas de aula. Esperando
por vocês. Simplesmente... Esperando por vocês.

(Choque. No chão, Olivério para de espernear.)

OLIVÉRIO
Me larga, Alvaro! Você não ouviu o Whitaker? Eu preciso dar aula! Todos nós
precisamos dar as nossas aulas.
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(Mais um momento de silêncio. Os professores se entreolham.)


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MAGDA
Pode soltar o Olivério, Alvaro. Ele agora tem pra onde ir. E nós, também.

OLIVÉRIO (espanando o pó dos ombros, resoluto.)


Exatamente, meus colegas. Avante, como todos os dias. O professor é o verdadeiro
herói nacional.

(Entra música. Whitaker abaixa a cabeça e sai da sala. Um a um, todos, menos Alvaro,
recolhem suas coisas e também vão saindo. Alvaro fica sozinho. Olha em volta, levanta
da cadeira, pega seu diário de classe, alguns livros, respira fundo e se dirige à porta. )

FIM
Leonardo Cortez
São Paulo, janeiro de 2016.

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