Recinto onde corpos vão buscando cada um seu despo-

voador. Amplo o bastante para permitir buscar em vão. Es-

treito o bastante para que qualquer fuga seja vã. É o interior
de um cilindro rebaixado com cinqüenta metros de circun-
ferência e dezesseis de altura em nome da harmonia. Luz.
Sua debilidade. Sua amarelidão. Sua onipresença como se os
quase oitenta mil centímetros quadrados de superfície total
emitissem cada um seu clarão. O arquejo que o agita. Pára de
quando em quando como um suspiro no final. Todos se
imobilizam então. Talvez seja o fim de seu recinto. Ao cabo
de alguns segundos tudo recomeça. Conseqüências dessa
luz para o olho que busca. Conseqüências para o olho que
já não buscando fixa o chão ou se ergue para o distante teto
onde não pode haver ninguém. Temperatura. Uma respi-
ração mais lenta a faz oscilar entre o quente e o frio. Ela passa
de um extremo a outro em aproximadamente quatro se-
gundos. Ela tem momentos de calma mais ou menos quen-
tes ou frios. Eles coincidem com aqueles em que a luz se

5
 T
y{
SAMUEL BEcKETT
acalma. Todos se imobilizam então. Talvez seja o fim de
tudo. Ao cabo de alguns segundos tudo recomeça. Conse-
qüências desse clima para a pele. Ela se apergaminha. Os cor-
pos se roçam com um ruído de folhas secas. As próprias
mucosas sofrem com isso. Um beijo produz um som indes-
critÍvel. Aqueles que ainda insistem em copular não conse-
guem. Mas não querem admitir. Chão e parede são de bor-
racha dura ou similar. Golpeados violentamente com chutes
ou murros ou cabeçadas eles quase não soam. Imaginem
então o silêncio dos passos. Os únicos ruídos dignos desse
nome provêm do manejo das escadas e do choque dos cor-
pos entre si ou de um só consigo mesmo como quando de
repente com toda a força ele bate no próprio peito. Assim
subsistem carne e ossos. Escadas. São os únicos objetos. Bem
variadas quanto ao tamanho elas são simples sem exceção.
As menores não têm menos de seis metros. Várias têm ro-
dízios. Estão apoiadas contra a parede de modo pouco har-
mônico. Em pé no topo da maior os maiores podem tocar
o teto com a ponta dos dedos. Sua composição é portanto
tão conhecida quanto a do chão e a da parede. Golpeado vio-
lentamente com um degrau ele quase não soa. Essas esca-
das são muito requisitadas. Ao pé de cada uma pequenas filas
de espera sempre ou quase. É preciso entretanto ter cora-
gem para usá-Ias. Pois falta a todas a metade dos degraus e
isso de modo pouco harmônico. Se faltasse apenas um a
cada dois a dificuldade não seria grande. Mas a ausência de
três seguidos requer que se façam acrobacias. Ainda assim
6 7
O DESPOVOADOR
essas escadas são muito requisitadas e não correm o risco de
ser reduzidas ao estado de simples montantes fixados so-
mente na base e no topo. Pois a necessidade de escalar é
muito difundida. Não mais senti-Ia é uma liberação rara. Os
degraus que faltam estão nas mãos de um pequeno número
de privilegiados. São usados essencialmente para a agressão
e para a autodefesa. As tentativas solitárias de estourar o crâ-
nio com eles só terminam no melhor dos casos em breves
perdas de consciência. O objetivo das escadas é levar os bus-
cadores aos nichos. Aqueles que já não são atraídos por eles
as usam simplesmente para sair do chão. É costume não
subir a dois. O fugitivo que tem a sorte de encontrar uma
livre pode ali se refugiar enquanto espera que as iras arrefe-
çam. Nichos ou alvéolos. São cavidades abertas na própria
parede a partir de um cinturão imaginário que corre a meia-
altura. Elas só concernem portanto à metade superior. Uma
boca mais ou menos larga dá acesso imediato a um cômodo
de tamanho variável mas sempre suficiente para que através
do jogo normal das articulações o corpo possa ali penetrar
e até mesmo mal ou bem se deitar. Estão dispostas em quin-
cunces irregulares sabiamente deseixados tendo sete metros
de lado em média. Harmonia que só pode agradar a quem
por longafreqüentação conhece afundo o conjunto dos ni-
chos a ponto de ter deles uma imagem mental perfeita. É
pouco provável porém que exista alguém assim. Pois cada es-
calador tem seus nichos preferidos e evita ao máximo subir
aos outros. Alguns são ligados entre si por túneis abertos na
 SAMUEL BEcKETT
espessura da parede e podem atingir até cinqüenta metros.
Mas a maioria não tem outra saida além da entrada. É como
se a um dado momento o desencorajamento se tivesse feito
sentir. Deve-se notar para sustentar essa visão do espírito a
existência de um longo túnel abandonado sem saída. Infeliz
do corpo que nele se aventura distraidamente e deve ao cabo
de um longo esforço arrepiar caminho como puder raste-
jando para trás. Esse drama na verdade não é exclusivo do
túnel inacabado. Basta considerar o que fatalmente ocor-
rerá quando em um túnel normal de extremos opostos dois
corpos entrarem ao mesmo tempo. Nichos e túneis são sub-
metidos à mesma iluminação e ao mesmo clima que o con-
junto do recinto. Eis uma primeira visão do recinto.
Um corpo por metro quadrado ou seja um total de du-
zentos corpos número redondo. Parentes próximos e dis-
tantes ou amigos mais ou menos muitos em princípio se co-
nhecem. A identificação torna-se difícil pela aglomeração e
pela obscuridade. Vistos de um certo ângulo esses corpos
são de quatro tipos. Em primeiro lugar aqueles que circu-
lam sem parar. Em segundo aqueles que às vezes param. Em
terceiro aqueles que a menos que sejam expulsos nunca dei-
xam o lugar que conquistaram e expulsos se jogam sobre o
primeiro livre para ali se imobilizar de novo. Não é exata-
mente assim. Pois se nestes últimos ou sedentários a von-
tade de escalar morreu ela não deixa de estar sujeita a estra-
nhas ressurreições. O fulano deixa então seu posto e parte
8 9
o DESPOVOADOR
em busca de uma escada livre ou se junta à fila de espera
menos longa ou mais próxima. Na verdade é difícil para um
buscador renunciar à escada. São paradoxalmente esses se-
dentários que mais perturbam com seus atos de violência a
calma do cilindro. Em quarto aqueles que não buscam ou
não-buscadores sentados em sua maioria contra a parede na
atitude que arranca de Dante um de seus raros pálidos sor-
risos. Por não-buscadores e apesar do abismo ao qual isso
conduz é impossível finalmente entender outra coisa além
de ex-buscadores. Para fazer com que essa noção perca parte
de sua virulência basta supor a necessidade de buscar não
menos ressuscitável que a da escada e aos olhos segundo
todas as aparências para sempre baixos ou fechados o estra-
nho poder de se inflamar repentinamente de novo entre os
rostos e os corpos. Mas sempre restará o bastante para abo-
lir nesse pequeno povo mais cedo ou mais tarde até o úl-
timo vestígio de suas energias. Languidez por sorte insensí-
vel devido à sua lentidão e às bruscas ressurgências que a
compensam em parte e à desatenção dos interessados atur-
didos seja pela paixão que ainda os habita seja pelo estado de
langor ao qual insensivelmente chegaram. E longe de poder
imaginar seu estado último em que cada corpo estará imó-
vel e cada olho vazio eles chegarão lá sem perceber e serão
assim sem o saber. Já não será então a mesma luz nem o
mesmo clima porém não é possível prever o que serão. Mas
pode-se imaginar uma extinta por falta de razão de ser e o
outro estável na vizinhança de zero. No escuro frio da carne
 SAMUEL BECKETT
imóvel. Eis grosso modo esses corpos vistos de um primeiro
ângulo e essa noção e suas conseqüências se ela for mantida.
Interior de um cilindro tendo cinqüenta metros de cir-
cunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia ou
seja mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de su-
perfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os ni-
chos e os túneis. Onipresença de uma fraca claridade ama-
rela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos
que se tocam. Temperatura agitada por um tremor análogo
porém de trinta a quarenta vezes mais lento que a faz cair ra-
pidamente de um máximo da ordem de vinte e cinco graus
a um mínimo da ordem de cinco daí uma variação regular
de cinco graus por segundo. Não é exatamente assim. Pois é
evidente que nos extremos do vaivém o intervalo pode cair
até apenas um grau. Mas tal remissão não dura nunca mais
do que um segundo. De quando em quando parada das duas
vibrações tributárias sem dúvida do mesmo motor e reto-
mada de ambas ao cabo de uma acalmia de duração variável
podendo atingir uma dezena de segundos. Suspensão cor-
respondente de qualquer movimento nos corpos em movi-
mento e rigidez aumentada dos imóveis. Únicos objetos
umas quinze escadas simples sendo várias de rodízios ergui-
das contra a parede em intervalos irregulares. Na metade
superior da parede sobre toda a sua circunferência dispos-
tos em quincunce em nome da harmonia uns vinte nichos
dos quais vários ligados entre si por túneis.
IO
o DESPOVOADOR
Desde sempre um boato corre ou ainda melhor a idéia
ocorre que existe uma saída. Aqueles que já não acreditam
nela não estão a salvo de acreditar nela novamente con-
forme a noção que pretende enquanto dure que aqui tudo
morre mas de uma morte tão gradual e para dizer tudo tão
flutuante que escaparia até mesmo a um visitante. Sobre a
natureza da saída e sua localização duas opiniões principais
dividem sem opor todos aqueles que permaneceram fiéis a
essa velha crença. Para uns só pode se tratar de uma passa-
gem secreta que tem origem num dos túneis e conduz
como diz o poeta aos retiros da natureza. Os outros sonham
com um alçapão dissimulado no centro do teto dando acesso
a uma chaminé em cujo fim brilharia ainda o sol e as outras
estrelas. As reviravoltas são freqüentes nos dois sentidos de
modo que fulano que a um dado momento só afiançava o
túnel pode muito bem no momento seguinte afiançar ape-
nas o alçapão e um momento mais tarde se desdizer de novo.
Dito isso não deixa de ser também certo que desses dois par-
tidos o primeiro perde terreno em prol do outro. Mas de
maneira tão lenta e tão interrupta e é claro com tão pouca
repercussão sobre o comportamento de todos que para se
dar conta disso é preciso estar no segredo dos deuses. Esse
deslocamento está dentro da lógica das coisas. Pois aqueles
que acreditam numa saída acessível como ela seria acessível
a partir de um túnel e mesmo que não imaginem atravessá-
10 podem ser tentados a descobri-Ia. Enquanto aos partidá-
rios do alçapão esse demônio é poupado pelo fato de o cen-
II
 SAMUEL BECKETT
tro do teto estar fora de alcance. Assim insensivelmente
saída se desloca do túnel para o teto antes de jamais ter exis-
tido. Eis uma primeira visão dessa crença tão estranha em si
mesma e pela fidelidade que inspira a tantos corações pos-
suídos. Sua pequena luz inútil será a última a deixá-Ios se é
que o escuro os espera.
Em pé no topo da grande escada desdobrada ao máximo
e erguida contra a parede os maiores podem tocar com a
ponta dos dedos a borda do teto. Aos mesmos corpos a
mesma escada erguida verticalmente no centro do chão lhes
fazendo ganhar meio metro permitiria explorar à vontade a
zona fabulosa dita inacessível e que portanto em princípio
não o é de modo algum. Pois um recurso desses para a es-
cada é concebível. Bastaria uns vinte voluntários decididos
conjugarem seus esforços para mantê-Ia em equilíbrio com
a ajuda se necessário de outras escadas fazendo as vezes de
contrafortes. Um momento de fraternidade. Mas esta fora as
ondas de violência lhes é tão estranha quanto as borboletas.
Não tanto por falta de coração ou de inteligência quanto por
causa do ideal do qual cada um é presa. Isso para o zênite in-
violável onde se esconde aos olhos dos amantes de mito uma
saída rumo a terra e céu.
O emprego das escadas é regido por convenções de ori-
gem obscura que por sua precisão e pela submissão que exi-
gem dos escaladores assemelham-se a leis. Há infrações que
o DESPOVOADO.R
a desencadeiam contra os transgressores um furor coletivo
surpreendente entre seres tão pacíficos em seu conjunto e
tão pouco atenciosos uns com os outros fora da grande
questão. Outras ao contrário quase não perturbam a indife-
rença geral. O que é bem curioso à primeira vista. Tudo re-
pousa sobre a proibição de mais de um subir ao mesmo
tempo na mesma escada. Enquanto aquele que a está usando
não voltar ao chão ela fica proibida para o próximo. Inútil
querer imaginar a confusão que resultaria da ausência de
uma regra dessas ou de sua não-observância. Feita porém
para a comodidade de todos está fora de questão que ela seja
aplicada sem restrição e que permita ao escalador indelicado
imobilizar sua escada além do que é sensato. Pois na falta de
outro freio qualquer aquele que tivesse a fantasia de se ins-
talar para sempre num nicho ou num túnel deixaria atrás de
si uma escada inutilizável para sempre. E se outros seguis-
sem seu exemplo como fatalmente o fariam chegar-se-ia ao
espetáculo de cento e oitenta e cinco corpos escaladores
menos os vencidos fadados ao chão para sempre. Sem falar
do que teria de intolerável a presença de acessórios sem a
menor utilidade. Está portanto entendido que passado um
certo prazo difícil de calcular mas que cada um sabe medir
com uma diferença de segundos a escada volta a ficar livre
ou seja à disposição nas mesmas condições daquele de quem
é a vez de subir facilmente reconhecível por sua posição na
frente da fila e azar do abusador. A situação deste último
tendo perdido a escada é delicada com efeito e parece des-
 SAMUEL BECKETT
cartada a priori a possibilidade de um dia ele voltar ao chão.
I também acontece de ultrapassar
Felizmente mais cedo ou mais tarde ele consegue descer gra-
ças a outra disposição segundo a qual em qualquer circuns-
tância a descida tem prioridade sobre a subida. Ele só precisa
ficar de olho na boca de seu nicho e esperar que uma escada
se apresente para usá-Ia com toda a calma e com a garantia
de que aquele lá de baixo prestes ou já subindo lhe cederá a
vez. O maior risco para ele é que sua espera seja longa por
causa da circulação das escadas. É raro com efeito que aquele
de quem é a vez queira subir para o mesmo nicho que seu
predecessor e isso por razões evidentes que aparecerão na
hora certa. Ele sai portanto com a escada seguido por sua
fila e a ergue debaixo de qualquer um dos cinco nichos que
lhe são oferecidos em razão da diferença entre o número
destes e o número das escadas. Voltando ao infeliz que ul-
trapassou os prazos é evidente que suas chances de descida
rápida serão maiores embora longe de serem duplicadas se
graças a um túnel ele dispõe de dois nichos para vigiar.
Ainda que até mesmo nesse caso ele escolha no mais das
vezes e sempre se o túnel é longo apostar em apenas um dos
dois nichos por medo de que uma escada venha a se apre-
sentar durante a travessia de um ao outro. Mas as escadas
não servem apenas para chegar aos nichos e túneis e aque-
les que já não se interessam por isso ainda que temporaria-
! .
mente as usam simplesmente para sair do chão. Eles sobem
e param à altura?e sua escolha para se instalar no mais das
vezes em pé diante da parede. A essa família de escaladores
'4
o DESPOVOADOR
os prazos prescritos. Está
previsto nesse Casoque aquele a quem cabe a escada suba até
o transgressor e com um golpe ou com vários nas costas o
traga à realidade. Não é necessário mais nada para que este
se apresse a descer precedido de seu sucessor que só tem em
seguida de se apossar da escada nas condições habituais. Tal
docilidade do abusador mostra bem que a infração não é vo-
luntária mas se deve a uma desregulação temporária de sua
ampulheta interior fácil de ser compreendida e por conse-
guinte perdoada. Por isso essa falta aliás pouco freqüente seja
ela daqueles que sobem até os nichos e túneis seja daqueles
que param sobre a escada nunca dá lugar à ira reservada aos
infelizes que se apressam em subir na sua vez antes da expi-
ração dos prazos e cuja precipitação portanto pareceria dever
poder ser explicada e portanto perdoada do mesmo modo
que o excesso contrário. É de fato algo curioso. Trata-se porém
do princípio fundamental que proibe mais de um subir ao
mesmo tempo e cuja violação repetida transformaria rapi-
damente o cilindro em pandemônio. Enquanto o retorno
atrasado ao chão só prejudica finalmente o retardatário. Eis
uma primeira visão do código dos escaladores.
O transporte das escadas tampouco é feito de qualquer
jeito mas sempre ao longo da parede no sentido do turbi-
lhão. Esta é uma regra tão severa quanto a proibição de mais
de um subir ao mesmo tempo e não é bom infringi-Ia. Nada
mais natural. Pois se fosse permitido em nome do caminho
,5
 SAMUEL BEcKETT
mais curto levar a escada através da horda ou seguindo a pa-
rede indiferentemente nos dois sentidos a vida do cilindro logo
se tornaria impossível. É portanto reservada aos carregadores
ao longo de toda a parede uma pista de mais ou menos um
metro de largura. Ali estão confinados também aqueles que
esperam sua vez de subir e que para evitar invadir a arena pro-
priamente dita devem estreitar suas filas e aplainar a si mes-
mos o máximo possível encostando as costas na parede.
É curioso notar a presença na pista de um certo número
de sedentários sentados ou em pé contra a parede. Pratica-
mente mortos para as escadas e fonte de incômodo tanto para
o transporte quanto para a espera eles são no entanto tole-
rados. O fato é que essas espécies de semi-sábios nos quais
aliás todas as idades estão representadas inspiram àqueles
que ainda se agitam se não um culto ao menos uma certa
deferência. Fazem questão disso como a uma homenagem
que lhes é devida e são doentiamente sensíveis à menor falta
de consideração. Um buscador sedentário em quem se pisa-
ria em vez de saltar por cima dele pode se descontrolar a
ponto de emocionar todo o cilindro. Colados à parede tam-
bém os quatro quintos dos vencidos tanto sentados quanto
em pé. Pode-se pisar neles sem que eles reajam.
Deve-se notar enfim o cuidado tomado pelos buscado-
res da arena para não invadir o espaço dos escaladores, Se
cansados de buscar em vão na horda eles se voltam para a
o DESPOVOADOR
pista fazem-no para seguir lentamente a margem imaginá-
ria devorando com os olhos todos aqueles que ali se encon-
tram. Sua lenta ronda na contracorrente dos carregadores
cria uma segunda pista mais estreita ainda e respeitada por
sua vez pela maioria dos buscadores. O que conveniente-
mente esclarecido e visto de cima daria por momentos a im-
pressão de dois finos anéis deslocando-se em sentido con-
trário em torno da azáfama central.
Um corpo por metro quadrado de superfície útil ou seja
duzentos corpos número redondo. Corpos dos dois sexos e
de todas as idades desde a velhice até a tenra infância. Bebês
de peito que não tendo mais o que mamar buscam com os
olhos no colo ou de cócoras no chão em poses precoces. Ou-
tros um pouco mais adiantados circulam de quatro e bus-
cam entre as pernas. Detalhe pitoresco uma mulher de ca-
belos brancos ainda jovem a julgar pelas coxas apoiada
contra a parede os olhos fechados no abandono apertando
maquinalmente contra o seio um fedelho que se entesa para
melhor virar a cabeça e ver atrás dele. Mas esses tão peque-
nos são bem pouco numerosos. Ninguém olha para dentro
de si onde não pode haver ninguém. Olhos baixos ou fe-
chados significam abandono e só pertencem à classe dos ven-
cidos. Exatamente contáveis nos dedos de uma das mãos
estes não estão necessariamente imóveis. Podem errar na
multidão e não ver nada. Ao olho de carne nada os distingue
dos corpos que ainda se obstinam. Estes os reconhecem e os
'7
 SAMUEL BECKETT
deixam passar. Podem chegar ao pé das escadas e quando
chega a sua vez subir aos nichos ou simplesmente sair do
chão. Podem se arrastar tateando nos túneis em busca de
nada. Mas normalmente o abandono os imobiliza tanto no
espaço quanto na atitude. É esta no mais das vezes profun-
damente abobadada estejam eles em pé ou estejam senta-
dos que permite distingui-Ios dos buscadores sedentários
que devoram com o olhar cada corpo que passa sem que
para tanto a cabeça se mexa. Em pé ou sentados eles estão
colados à parede a não ser um que possuído em plena arena
ali se imobilizou em pé no meio dos agitados. Estes o reco-
nhecem e evitam incomodá-Io. Estão sempre sujeitos a
bruscos retornos de febre ocular como também aqueles que
tendo renunciado à escada subitamente sentem-se de novo
atraídos por ela. Tanto é verdade que no cilindro o pouco
possível lá onde ele não é apenas já não é e no mínimo
menos o nada inteiro se essa noção for mantida. E os olhos
subitamente recomeçam a buscar tão famintos quanto o im-
pensável primeiro dia até que sem motivo aparente brusca-
mente eles se fecham ou a cabeça cai. É como se de um grande
monte de areia ao abrigo do vento se tirassem três grãos a
cada dois anos e no outro se acrescentassem dois se essa
noção for mantida. Se os vencidos têm ainda caminho pela
frente o que dizer dos outros e que nome Ihes dar senão o
belo nome de buscadores. Uns de longe os mais numerosos
jamais param a não ser para esperar uma escada ou quando
espreitam a partir de um nicho. Outros se imobilizam bre-
18
o DESPOVOADOR
vemente de vez em quando sem parar de buscar com os
olhos. Quanto aos buscadores sedentários se eles já não cir-
culam é porque fizeram o cálculo e estimam ter mais chan-
ces ficando no lugar que conquistaram e se quase já não
sobem para os nichos e túneis é por terem subido demasia-
das vezes em vão ou por terem feito ali demasiados maus
encontros. Uma inteligência ficaria tentada a ver nestes úl-
timos os próximos vencidos e continuando nesse mesmo
impulso a exigir daqueles que circulam sem trégua que
todos mais cedo ou mais tarde uns após os outros acabem
como aqueles que param às vezes e também destes que aca-
bem sedentários e dos sedentários que acabem vencidos e
dos duzentos vencidos assim obtidos que todos mais cedo
ou mais tarde cada um na sua vez acabem sendo vencidos
de verdade imobilizados para sempre cada um em seu lugar
e em sua atitude. Mas se dermos números de ordem a essas
famílias a experiência mostra que é possível passar da pri-
meira à terceira pulando a segunda e da primeira à quarta
pulando a segunda ou a terceira ou as duas e da segunda à
quarta pulando a terceira. No outro sentido os mal venci-
dos em longos intervalos e cada vez de modo mais breve vol-
tam ao estado dos sedentários dos quais por sua vez os menos
sólidos sempre os mesmos podem se deixar tentar nova-
mente pela escada enquanto permanecem mortos para a
arena. Mas nunca mais circularão incessantemente aqueles
que agora param de quando em quando sem por isso cessar
de buscar com os olhos. Na hora portanto do começo im-
19
 SAMUEL BECKETT
pensável como o fim todos erravam sem descanso nem tré-
gua inclusive os bebês visto que eram carregados salvo na-
turalmente aqueles que já esperavam ao pé das escadas ou
espreitavam agachados nos nichos ou se detinham nos tú-
neis para melhor escutar e erravam assim um tempo muito
longo impossível de calcular antes que o primeiro se imobi-
lizasse seguido de um segundo e assim por diante. Mas
quanto nessa hora e não haverá outra a calcular o número
daqueles que permaneceram fiéis e incansavelmente
vêm sem jamais se conceder o menor descanso e daqueles
que param de quando em quando e dos sedentários e dos
por assim dizer vencidos que baste afirmar que nessa hora
um corpo a mais um a menos apesar da aglomeração e da
obscuridade os primeiros são duas vezes mais numerosos
que os segundos que são três vezes mais numerosos
terceiros que são quatro vezes mais numerosos que os quar-
tos ou seja cinco vencidos ao todo. Parentes e amigos estão
que os
bem representados sem falar de meros conhecidos. A aglo-
meração e a obscuridade tornam difícil a identificação. A
dois passos de distância marido e mulher se ignoram para
só falar do mais íntimo de todos os vínculos. Que eles se
aproximem ainda um pouco até poder se tocar e trocar sem
que parem um olhar. Se eles se reconhecem não parece. O
que quer que busquem não é isso.
O que em princípio chama atenção nessa penumbra é a
sensação de amarelo que ela dá para não dizer de enxofre
20
o DESPOVOADOI\
por causa das associações. Em seguida o fato de ela vibrar de
modo regular e contínuo a uma velocidade que sendo ele-
vada jamais ultrapassa a que tornaria a pulsação impercep-
tível. E enfim bem mais tarde que de quando em quando e
por muito pouco tempo esta se acalma. Esses raros e breves
descansos têm no mínimo um efeito dramático inexprimí-
vel. Os agitados ficam cravados no lugar em posturas no
mais das vezes extravagantes e a imobilidade decuplada dos
vão e vencidos e sedentários faz parecer derrisória aquela que exi-
bem habitualmente. Os punhos prestes a dar murros sob o
efeito da raiva ou do desencorajamento congelam-se a um
ponto qualquer do arco para só terminar o murro ou a série
de murros uma vez passado o alarme. Similarmente aque-
les surpreendidos escalando ou carregando a escada ou fa-
I
;~
zendo o infactível amor ou agachados nos nichos ou raste-
jando nos túneis cada um a seu modo sem que seja útil
entrar em detalhes. Mas ao cabo de uns dez segundos o frê-
mito reinicia e no mesmo instante tudo volta à ordem.
Aqueles que erravam recomeçam a errar e os imóveis rela-
xam. Os acoplados retornam à labu ta e os punhos retomam
a marcha. O rumor silenciado como que arrancado da to-
mada enche de novo o cilindro. Entre todos os componen-
tes de que é feito o ouvido acaba distinguindo um fraco
zumbido de inseto que é o da própria luz e o único que não
varia. Entre os extremos que contêm a vibração a distância
não passa de duas ou três velas. O que à sensação de ama-
relo se acrescenta a mais fraca de vermelho. Em suma uma
21
 SAMUEL BECKETT
iluminação que não apenas escurece mas confunde além de
tudo. Nada impede afirmar que o olho acaba se habituando
com essas condições e se adaptando a ela se não fosse antes
o contrário que se produz na forma de uma lenta degrada-
ção da vista arruinada a longo prazo por esse avermelha-
mento fuliginoso e vacilante e pelo esforço incessante sem-
pre frustrado sem falar da miséria moral repercutindo sobre
o órgão. E se fosse possível seguir de perto durante um bom
tempo dois olhos azuis de preferência já que mais perecíveis
os veríamos se arregalarem cada vez mais e se injetarem de
sangue cada vez mais e as pupilas se dilatarem progressiva-
mente até comer a córnea inteira. Tudo isso evidentemente
num movimento tão lento e tão pouco sensível que os pró-
prios interessados não percebem se essa noção for mantida.
E para o ser pensante que venha a se debruçar friamente
sobre todos esses dados e evidências seria realmente difícil
ao final de sua análise não estimar erroneamente que em
vez de empregar o termo vencidos que tem com efeito um
pequeno lado patético desagradável seria melhor falar só de
cegos. Passadas as primeiras surpresas enfim essa ilumina-
ção tem ainda de inabitual o fato de longe de acusar uma ou
várias fontes visíveis ou ocultas parecer emanar de todas as
partes e estar em toda a parte a um só tempo como se o
lugar inteiro fosse luminoso inclusive as partículas do ar que
ali circula. A tal ponto que até mesmo as escadas parecem
antes dar luz do que receber só que a palavra luz é impró-
pria. Únicas sombras por conseguinte as que se criam os cor-
22
o DESPOVOADOR
pos obscuros espremendo-se uns contra os outros proposi-
talmente ou por necessidade como quando sobre um seio
por exemplo para que ele não seja mais iluminado ou sobre
um sexo qualquer vem se pôr a mão opaca cuja palma no
ato desaparece também. Enquanto do escalador sozinho
sobre sua escada ou tendo chegado ao fundo de um túnel
toda a pele sem exceção vibra com o mesmo amarelo-ver-
melho e até mesmo certas dobras e cantos visto que o ar ali
penetra. Quanto à temperatura é entre extremos bem
menos próximos e a uma velocidade bem inferior que ela
oscila já que também ela não leva menos de quatro segun-
dos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu
máximo de vinte e cinco ou seja uma média de cinco graus
apenas por segundo. Quer dizer que a cada segundo que
passa há alta ou baixa de cinco graus nem mais nem menos?
Não exatamente. Pois é evidente que em dois momentos
precisos acima e abaixo da gama a saber a partir de vinte e
um graus no sentido ascendente e de quatro no outro essa
distância não será atingida. É apenas portanto durante só
sete segundos dos oito que dura o ir-e-vir que os corpos são
submetidos ao regime máximo de reaquecimento e de es-
friamento o que dá assim mesmo por intermédio de uma
adição ou ainda melhor de uma divisão um total de entre
doze e treze anos de trégua parcial por século nesse campo.
Há em princípio algo de perturbador na lentidão relativa
desse vaivém comparada com a que faz a luz vibrar. Mas é
uma perturbação que a análise rapidamente dissipa. Pois
23
 SAMUEL BECKETT
pensando bem a diferença não é entre as velocidades e sim
entre os espaços percorridos. E se aquele que se pede à tem-
peratura fosse reduzido ao valor de algumas velas não ha-
veria nada para se escolher mutatis mutandis entre os dois
efeitos. Mas isso não conviria ao cilindro. Tudo é portanto
para o melhor. Ainda mais que as duas tormentas têm em
comum o fato de cortada uma como que por magia a ou tra
também de pronto como se estivessem ligadas em algum
lugar a uma única e mesma tomada. Pois só o cilindro ofe-
rece certezas e fora nada além de mistérios. Os corpos co-
nhecem assim de quando em quando até dez segundos de
calor contínuo ou de frescor ou entre os dois sem que isso
possa contar como trégua tão grande é a tensão aliás.
O fundo do cilindro comporta três zonas distintas com
fronteiras precisas mentais ou imaginárias já que invisíveis
ao olho de carne. Em primeiro lugar um cinturão exterior
com mais ou menos um metro de largura reservado aos es-
caladores e onde estranhamente ficam também a maioria
dos sedentários e vencidos. Em seguida um cinturão inte-
rior ligeiramente mais estreito onde lentamente desfilam
em fila indiana aqueles que cansados de buscar no centro se
voltam para a periferia. Enfim a arena propriamente dita re-
presentando uma superfície de cento e cinqüenta metros
quadrados número redondo e zona de caça eleita pela grande
maioria. Se a essas três zonas se derem números de ordem fi-
cará claro que da terceira à segunda e inversamente o bus-
24
o DESPOVOAJ)OR
cador passa à vontade enquanto para aceder à primeira
como aliás para sair dela ele precisa ter certa disciplina.
Exemplo entre milhares da harmonia que reina no cilindro
entre ordem e desleixo. O acesso portanto ao espaço dos es-
caladores só é autorizado quando um destes últimos o deixa
para se juntar aos buscadores da arena ou excepcionalmente
aos da zona intermediária. Se é raro ver transgressões dessa
regra acontece entretanto de um buscador particularmente
nervoso não resistir mais ao apelo dos nichos e túneis e ten-
tar se imiscuir entre os escaladores sem que uma partida o
autorize a isso. Ele é então infalivelmente recusado pela fila
mais próxima da infração e as coisas ficam por aÍ. Obrigação
portanto para o buscador da arena que deseja passar para o
lado dos escaladores de espreitar a ocasião no lado dos in-
termediários ou buscadores-espreitadores ou simplesmente
espreitadores. Isso quanto ao acesso às escadas. No outro
sentido a passagem também não é livre e uma vez na zona
dos escaladores o espreitador fica ali por um momento ou
seja no mínimo o tempo bem variável que for preciso para
cada um passar do final ao início de sua fila de espera. Já
que cada corpo é tão livre de escalar ou não escalar quanto
é estrita a obrigação de fazer até o fim a fila livremente es-
colhida. Qualquer tentativa de deixá-Ia prematuramente é
duramente reprimida por aqueles que fazem parte dela e o
transgressor é reconduzido para seu lugar na fila. Mas assim
que chega ao pé mesmo da escada e já não tendo que espe-
rar para se apoderar dela senão um único retorno ao chão
25
 SAMUEL BECKETT o DESPOVOADOll

o interessado pode ir embora se juntar aos buscadores da
arena ou excepcionalmente os espreitadores da segunda
zona sem encontrar oposição. São por conseguinte os pri-
meiros da fila como os mais susceptíveis de criar o vazio tão
ardentemente desejado que espreitam os da segunda zona
obcecados pela necessidade de passar para a primeira. Os ob-
jetos dessa vigilância não deixam de sê-l o senão no mo-
mento em que exercem seu direito à escada encarregando-
se dela. Pois o escalador pode chegar ao início da fila com a
firme vontade de subir e vê-Ia se desfazer pouco a pouco e se
instalar em seu lugar a necessidade de ir embora sem poder
se decidir até o último momento enquanto seu predecessor
já desce e a escada é virtualmente sua enfim. Deve-se notar
também a possibilidade que o escalador tem de sair da fila
tão logo alcançado seu início sem forçosamente sair da zona.
Para tanto ele só tem de se juntar a outra fila qualquer entre
as quatorze à sua disposição ou até mesmo ir para o último
lugar da sua. Mas é raro em princípio que um corpo saia de
sua fila e depois de ter saído dela [ele] não saia da zona. Obri-
gação portanto uma vez na zona dos escaladores de perma-
necer ali ao menos o tempo de avançar do último ao pri-
meiro lugar da fila escolhida. Tempo variável também
conforme o tamanho desta e a ocupação mais ou menos
longa da escada. Certos usuários ficam com ela até a expi-
ração do prazo máximo permitido. Para outros a metade ou
qualquer outra fração desse tempo basta. A fila curta não é
portanto forçosamente a mais rápida e alguém que partiu
em décimo pode ficar em primeiro antes de outro que par-
tiu em quinto supondo naturalmente que partam juntos.
Não é surpreendente nessas condições que a escolha da fila
seja determinada por considerações que não têm nada ou
pouco a ver com seu comprimento. Não que todos esco-
lham nem sequer a maioria. Haveria tendência antes a se
juntar de cara à fila mais próxima do ponto de penetração
com a condição sempre que isso não acarrete um desloca-
mento no sentido proibido. Para aquele que entra nessa zona
de frente a fila mais próxima se encontra à sua direita e se
ela não for de seu agrado e ele desejar outra é à direita que
deve ir procurá-Ia. Alguns nessas condições percorreriam
milhares de graus antes de se imobilizar na espera não fosse
a proibição que lhes é feita de ultrapassar a volta da pista.
Qualquer tentativa de transgressão é reprimida pela fila mais
próxima do ponto de fechamento e o transgressor obrigado
a se juntar a ela já que ele também não tem direito de vol-
tar para trás. Que uma volta da pista inteira seja autorizada
diz muito do espírito de tolerância que no cilindro tempera
a disciplina. Mas fila escolhida ou primeira à mão é sempre
a mesma obrigação de fazê-Ia até o fim antes de poder sair da
zona dos escaladores. Portanto primeira possibilidade de
partida a qualquer momento entre a chegada no início da
fila e a volta ao chão do predecessor. Resta precisar nessa
ordem de idéias a situação do corpo que tendo feito sua fila
e deixado passar a primeira possibilidade de partida e exer-
cido seu direito à escada volta ao chão. Nesse momento ele

26
27
 SAMlIEL BECKETT
está de novo livre para partir sem outra forma de processo
embora nada o obrigue a isso e basta para que permaneça
na zona dos escaladores refazer nas mesmas condições a fila
que ele acaba de fazer com nova possibilidade de ir embora
assim que chegar ao primeiro lugar. E se por este ou aquele
motivo julga preferível mudar de fila e de escada ele tem di-
reito de fixar sua escolha num circuito pleno do mesmo
modo que o recém-chegado e nas mesmas condições com a
diferença que já tendo feito uma fila até o fim ele está livre
a cada instante dessa nova revolução para deixar a zona. E
assim por diante até o infinito. Daí teoricamente a possibili-
dade para aqueles que já estão na zona dos escaladores de
permanecer ali para sempre e a de nunca aceder a ela para
aqueles que ainda não chegaram ali. Que não exista regu-
lamento algum que vise prevenir tal injustiça mostra cla-
ramente que ela não corre o risco de se perpetuar. Com efeito.
Pois a paixão de buscar é tal que obriga a buscar por toda a
parte. Não impede que ao espreitador à espreita de uma par-
tida a espera possa parecer interminável. Às vezes não
agüentando mais e fortalecido pela longa ausência ele re-
nuncia à escada e volta para a arena. Eis grosso modo as
grandes divisões do solo e os direitos e deveres dos corpos
em sua passagem de uma a outra. Nem tudo foi dito e nunca
será. Os espreitadores sempre numerosos em querer tirar
proveito da primeira partida da zona dos escaladores e cuja
ordem de chegada em cena não pode ser estabelecida nem
pela fila infactível entre eles nem de outro modo a que prin-
28
() DESPOVOADOH
cípio de prioridade obedecem? Uma saturação da zona in-
termediária não deve ser receada e quais seriam suas conse-
qüências para o conjunto dos corpos e especialmente para
aqueles da arena separados assim das escadas? Não está o ci-
lindro condenado a mais ou menos longo prazo à desordem
sob a única lei da ira e da violência? A essas questões e a mui-
tas outras as respostas são claras e fáceis de serem dadas mas
falta ousar fazê-Io. Já que só a tentação da escada pode rom-
per a fixidez dos sedentários o caso deles não tem nada de
especial. Os vencidos evidentemente não são aqui levados
em conta.
O efeito desse clima sobre a alma não deve ser subesti-
mado. Mas ela sofre com ele certamente menos do que a
pele cujos sistemas de defesa desde o suor até o arrepio são
a todo o instante contrariados. Ela continua entretanto a se
defender mal certo mas de modo honrável com respeito ao
olho o qual com a melhor vontade do mundo é difícil não
condenar ao cabo de seu esforço à cegueira efetiva. Pois ele
próprio pele à sua maneira sem falar de seus líquidos e pál-
pebras só tem um adversário. Esse ressecamento do invólu-
cro tira da nudez uma boa parte de seu charme tornando-a
cinza e transforma num roçar de urtigas a suculência natu-
ral de carne contra carne. As próprias mucosas se ressentem
o que não seria grave se não fosse o incômodo que daí re-
sulta para o amor. Mas mesmo desse ponto de vista o mal
não é grande já que no cilindro a ereção é rara. Não impede
29
 SAMUEL BE<:KETT
que ela aconteça seguida de penetração mais ou menos feliz
no tubo mais próximo. Acontece até mesmo com casais em
virtude da lei das probabilidades de se encontrarem dessa
maneira sem se dar conta. O espetáculo é curioso no mo-
mento do frenesi que se prolonga doloroso e sem esperança
bem além do que podem no quarto os amantes mais hábeis.
É que a consciência é aguda em cada um e cada uma de quão
rara é a ocasião e pouco provável seu retorno. Mas aí tam-
I contra a parede tampouco. Haveria marcas que a iluminação
bém há suspensão e imobilidade de morte em atitudes bei-
rando às vezes o obsceno quando as vibrações papam e o
tempo que dure essa crise. Ainda mais curioso naquele mo-
mento se não fossem tão pouco visíveis todos os olhos bis-
bilhoteiros que se imobilizam no caminho e se concentram
no vazio ou no abominável de sempre dentre os quais outros
olhos e como mergulham então uns nos outros com olha-
res feitos para se fugir. Entre esses cortes intervalos irregu-
lares tão longos que para desmemoriados como esses cada
um é o primeiro. Daí cada vez a mesma vivacidade de reação
como a um fim de mundo e a mesma breve surpresa quando
retomada a dupla tormenta eles voltam a buscar nem ali-
viados nem sequer decepcionados.
Vista do chão a parede em todo o seu contorno e em
toda a sua altura apresenta uma superfície ininterrupta. En-
tretanto sua metade superior é crivada de nichos. Esse pa-
radoxo é explicado pela natureza da iluminação cuja oni-
presença sem falar de sua debilidade escamoteia os vãos.
30
o DESPOVOADOR
Buscar de baixo um nicho com os olhos nunca foi visto. É
raro que os olhos se ergam. Quando o fazem é para o teto.
Chão e parede não têm marca alguma que possa servir de
ponto de referência. Escadas erguidas sempre nos mesmos
lugares os pés não deixam rastros. As cabeçadas e os murros
impediria de ver. O escalador que leva sua escada para erguê-
Ia em outro lugar o faz um pouco por intuição. É raro que
ele se engane mais do que alguns centímetros. Dada a dis-
posição dos nichos o erro máximo não passa de mais ou
menos um metro. Sob o efeito de sua paixão sua agilidade é
tal que até mesmo essa distância não o impede de ganhar
um nicho qualquer se não o de sua escolha nem a partir dele
embora com mais dificuldade de voltar à escada para a des-
cida. Dito isso existe um norte na forma de um vencido ou
melhor de uma vencida ou ainda da vencida. Ela está sentada
contra a parede com as pernas levantadas. Está com a cabeça
entre os joelhos e os braços em torno das pernas. A mão es-
querda segura a tíbia direita e a direita o antebraço esquerdo.
Os cabelos ruivos desbotados pela iluminação chegam até o
chão. Eles lhe cobrem o rosto e toda a parte da frente do
corpo inclusive a entreperna. O pé esquerdo está cruzado
sobre o direito. Ela é o norte. Ela mais do que outro vencido
qualquer devido à sua maior fixidez. A quem excepcional-
mente quiser ter um ponto de referência ela pode servir. De-
terminado nicho para o escalador pouco dado às acrobacias
evitáveis pode estar a uns tantos passos ou metros a leste ou
3,
 SAl\flIEL BECKETT
a oeste da vencida sem naturalmente que ele a chame assim
ou de outro modo até mesmo em pensamento. É óbvio que
só os vencidos cobrem o rosto. Nem todos o fazem. Em pé
ou sentados com a cabeça levantada alguns se contentam
em não abrir mais os olhos. É proibido evidentemente re-
cusar o rosto ou qualquer outra parte do corpo ao buscador
que o pede e que pode sem receio de resistência afastar as
mãos das carnes que elas cobrem e levantar as pálpebras para
examinar o olho. Há buscadores que vão até a zona dos es-
caladores sem intenção de escalar e com o único objetivo
de inspecionar de perto este ou aquele vencido ou sedentá-
rio. É assim que os cabelos da vencida foram muitas vezes
levantados e afastados e a cabeça levantada e descoberto o
rosto e toda a parte da frente do corpo até a entreperna. Ter-
minada a inspeção costuma-se recolocar tudo cuidadosa-
mente no lugar na medida do possível. Uma certa moral en-
J outros corpos fixos em pé ou sentados no abandono sem re-
kl
gaja a não fazer a outrem o que vindo de sua parte faria mal.
Esse preceito é bastante seguido no cilindro na medida em
que a busca não é prejudicada por ele. Esta seria apenas der-
risão sem a possibilidade em caso de dúvida de controlar cer-
tos detalhes. A intervenção direta para pô-l os em evidência
I
só se faz nas pessoas dos vencidos e sedentários. De frente ou
de costas para a parede estes com efeito só apresentam nor-
malmente um único aspecto e por conseguinte se expõem
!
a ser virados. Mas onde há movimento como na arena ou
entre os espreitadores e possibilidade de dar a volta do objeto
não é preciso haver tais manipulações. Acontece é claro de
32
,
() DESPOVOADO l\
um corpo ser obrigado a imobilizar outro e dispô-l o de certa
maneira para examinar de perto uma região particular ou
para procurar uma cicatriz por exemplo ou uma sarda.
Deve-se observar enfim a imunidade sob essa relação da-
queles que fazem a fila para a escada. Obrigados pela penú-
ria de espaço a se colar uns aos outros durante longos pe-
ríodos eles só mostram ao olhar parcelas de carne confundidas.
Infeliz daquele temerário levado por sua paixão que ousa
levar a mão sobre o menor dentre eles. Como um só corpo
a fila se joga sobre ele. Essa cena ultrapassa em violência tudo
o que no gênero o cilindro pode oferecer.
Assim por diante ao infinito até que rumo ao impensá-
vel fim se essa noção for mantida só um último busca ainda
por fracos solavancos. Nada o distingue à primeira vista dos
torno. Deitar-se é algo que se desconhece no cilindro e essa
postura conforto dos vencidos lhes é aqui recusada para sem-
pre. Privação em parte explicada pelo pouco espaço no chão
ou seja um metro quadrado apenas de que cada corpo dis-
põe e ao qual não pode suprir o espaço reservado à caça dos
nichos e túneis. Por isso a prostração desses ressecados obri-
gados a se roçar sem parar e tomados pelo horror do contato
nunca chega a seu termo natural. Mas a persistência da dupla
vibração faz pensar que nesse velho recinto nem tudo é ainda
totalmente feito para o melhor. E eis com efeito este último
se for um homem que lentamente se levanta e ao cabo de
33
 SAMUEL BECKETT

um certo tempo reabre os olhos queimados. Ao pé das esca-

das erguidas contra a parede de maneira pouco harmoniosa
escalador algum espera. Nas sombrias luzes do teto o zênite
guarda ainda sua lenda. O velho vencido da terceira zona não MAL VISTO MAL DITO
tem ao seu redor senão paralisados à sua imagem com o
tronco profundamente curvado para o chão. O bebê abra-
çado ainda pela jovem grisalha se confunde agora com seu
colo. De frente a cabeça ruiva tendo alcançado os limites da
flexão deixa ver uma parte de sua nuca. Lá está ele portanto
se for um homem reabrindo os olhos e ao cabo de um certo
tempo abre um caminho até essa primeira vencida tão fre-
qüentemente tomada como ponto de referência. De joelhos
ele afasta a pesada cabeleira e levanta a cabeça que não oferece
resistência. Devorado o rosto assim posto a nu os olhos enfim
pelos polegares solicitados abrem-se sem acanhamento. Nes-
ses calmos desertos ele passeia os seus até que primeiro estes
I
';1

últimos se fechem e a cabeça solta volte a seu velho lugar.

Ele próprio por sua vez ao cabo de um tempo impossível de
calcular acha enfim seu lugar e sua postura sobre o que a es-
curidão se faz ao mesmo tempo que a temperatura se esta-
biliza na vizinhança de zero. Cala-se no mesmo instante o I

zumbido de inseto mencionado acima de onde subitamente ir:

í
um silêncio mais forte que todas essas fracas respirações reu- t'I
nidas. Eis grosso modo o último estado do cilindro e desse li
pequeno povo de buscadores dos quais um primeiro se foi
um homem num passado impensável abaixou enfim uma I
primeira vez a cabeça se tal noção for mantida. I
I
I 1

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