Você está na página 1de 47

~-----

OLIVEIRA VIANNA

OBRAS DO AUCTOR:
o IDE-ALISMO
DA
CONSTITUiÇÃO
Populações meridionaes do .
Paulo, 1922. Brasil - 2.> edição, São
Pequenos
- estudos d e P syeologia 50 . l
O . Sao Paulo ,. 1923 cta - 2.> edi çao,
-
idealismo na .I -
Republica ; S_evo uçao política do Império e da
p
E votação do' ao aulo, 1922.
O povo brazileiro S-
occaso do Im nerlo S- - ao Paulo, 1923.
I - ao Paulo, 1926.

1927
EDIÇÃO DE
TERRA DE SOL
RIO DE 'JANEIRO
PREFACIO

Ha presentemente um certo movimento de


Interesse em torno da velha these da democra-
'Ia. Revívem-se antigos debates sobre a sobe-
rnnia do povo, sobre o. direito do suffragio, so-
hrc a representação politica, sobre o principio
do liberdade. Eu observo, cheio dleattenção
(' .uriosidades, todas essas agitações, de que
I) uucleo paulista, sempre vivaz, parece ser o
I ('1111' de irradiação.
m tudo isto, o que me interessa, o
IJII li procuro ver não são as agitações em
111 mas, mas principalmente os agitadores.
No Ilrasil, os agitadores são infinitamente mais
111.'1' antes do que as agitações. Em bôa ver-

[ 9 r
o IDEALISMO DA CONSTITVIÇÃO
PREFACIO

dade O que me interessa é, antes de tudo, a


esr 'rito, a que pertencem estes agitadores. Se ha
mentalidade dos agitadores.
espiritos «extroversos» e espiritos «introversos»,
Tenho a impressão (confesso que é uma
como quer a moderna classificação de Jung,
simples impressão, e não um juizo) de que
esta larga experiencia social de cem annos
esta moderna mentalidade agitadora não diffe-
pode ter um valor enorme e pode não ter
re muito da mentalidade antiga - a que, ha valor algum.
cem annos, vem «sonhando; a democracia no
Em nosso paiz, na sua elite política prin-
Brasil. Os agitadores de hoje «sonham» a de-
cipalmente, dominam os espiritos deste ultimo
mocracia como «sonharam» os da Independen-
typo de J ung. Ora, para estes pode-se dizer
cia; os da constituinte imperial; os do 7 de
que a realidade social .não existe portanto,
Abril; os da reacção liberal de 68; os do ma-
a experiencia social vale pouco, ou nada vale.
nifesto de 70; os da Constituinte republicana.
Cem annos de experiencia, um anno de expe-
Idéas, processos, objectívos: os mesmos. Os
riencia ou nenhuma experiencia são para elles
.de hoje como os de honrem, corpo os de ante-
hontem. . a mesma cousa. .Os espíritos deste typo é que
tem feito aquiaq'uella illusoria «política syllo-
Os de hoje, entretanto, tem diante dos
gistica», da "ironia de Nabuco : --:-«uma pura
olhos um material precioso - este material
,arte da construcção no vacuo :' a base são
precioso, que os seus antecessores não, tive-
as theses, e hão os factos; o material, ideaes e
ram: cem annos de experiencia ,da democracia
no Brasil. - não homens; a situação, o mundo e não o paiz;
os habitantes, as gerações futuras e não as
Estes cem annos de expériencia, como ap- actuaes».
parecem aos olhos destes agitadores? Que, parte
Os espíritos, porém, para os quaes a reali-
tem na formação das suas idéas politicas e
dade social existe; que consideram as socieda-
dos seus planos reformadores?
des humanas uma cousa viva, uma creação na-
Não quero dizel-o ; talvez mesmo não sai-
tural, com estructura e dynamismo proprios;
ba dizel-o. Isto depende muito da cathegoria de
para estes espiritos esses cem annos de ex-

[ 1.0 ]
[ 11 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO PREFACIO

No Brasil, o problema fundamental da p!nião. organisada e as democracias de opi-


nião, SImplesmente. Os inglezes e os ameri-
organisação democrática não pode ser este,
rnnos pertencem ao primeiro grupo. Nós per-
não póde ser o mesmo da America e da Euro-
íencernos ao segundo grupo - o das dernocra-
pa. O nosso problema político fundamental não
I n de opinião, simplesmente.
é o problema do voto - e sim o problema
da organisação da opinião. Esta organisação <?ra, o grande problema está em fazer
rvoluir a nossa democracia, desta sua condição
da opinião europeus e americanos não se pre-
111 f 11111, para uma democracia de opinião orga-
occupam com ella; é problema CJluenão os in-
11 «Ia.
teressa; porque já o encontram resolvido pela
historia - por uma cultura civica accumulada
em mil annos de evolução política. OLIVEIRA VIANNA.
Nós não podemos ter a mesma attitude.
Temos que supprir pela acção consciente e
até onde fôr possível, aquillo que a nossa evo-
lução historica ainda não nos poude dar.
O problema da organisação do voto só se-
ria o problema capital da nossa democracia, se
aqui, á maneira da Europa ou da America, a
opinião já estivesse organisada. Ora, não ha
maior illusão do que suppôr que no Brasil ha
opinião organisada. Este volume, nos oito ca-
pitulos de que se compõem, visa justamente
deixar demonstrada esta these.
Os povos contemporaneos, ou melhor, as
democracias contemporaneas podem ser classi-
ficadas em dous grupos: as democracias de

[14} l 15 l

.... - -
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

Estava muito longe da grandeza épica


. da Constituinte Imperial a Constituinte Re-
.. publicana.
Na Constituinte Imperial os nomes que
. nella concorriam eram os maiores do paiz
pelo prestigio da cultura, da intelligencia,
do caracter ou' da situação social. Os gran-
eles estadistas que consolidaram o Imperio
. construíram o poder politico da nação,
sahíram della ou nella estavam, com excep-
ção de Feijó -e Bernardo de Vasconcellos.
Elles tinham; ao demais, a ímmensa autori-
f
[ 19 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
o. IDE SMO DA CONSTITUIÇÃO

to Alvím», com o fito declarado de abafar


dade de um mandato verdadeiramente na-
qualquer manifestação do povo contraria
cional - pois eram realmente, e não ficti-
á~déa republicana. Emanando de fontes
ciamente, «representantes da nação». Em-.
..1ão suspeitas, a Consti tuinte Republicana
bora, na sua totalidade, fluctuando nos in-
não podia ter, de certo, grande autoridade
termundios do utopismo doutrinario, eram
moral sobre o paiz - e, realmente, não
espíritos fortemente compenetrados das
· a Leve: o seu presidente, Prudente de Mo-
suas idéas ; todos fundamente empenhados
raes, homem austero e digno, confessara,
numa grande tarefa, aos seus olhos sagrada,
110 encerral-a, que a Constituinte Iôra rece-
de construcção nacional; todos repassados
hida «com muito desfavor e muita preven-
daquelle «tremendous sense of personal res-
(:í'ío pela opinião publica». .
ponsability», de que fala van Dyke. Erra-
O grupo republicano, por occasiào do
ram largamente; mas, dos seus erros se
1I1()~imento.de 89, era, realmente, uma rni-
pode dizer Q que dos erros dos japonezes
noria relativamente insignificante, dissemi-
disse alguem - que foram «erros de força»
nnda pelo paiz, tendo como centros de
e não (erros de fraqueza» (1).
11I:1ior actividade o Rio e São Paulo. O
N a Constituinte Republicana, nada dis-
Kl'oSSO da massa politicante se distribuia
to. Já as proprías fontes da sua autoridade
· ('I1Il'e as duas facções tradicionaes: a li-
não eram de pureza absoluta: o mandato
b.-rnl e ~:'pdn,servadora. Com a irrupção
que recehcrarrr não lhes vinha de uma. dele-
· 1'(11ublicana, 'esses velhos quadros partida-
gação nacional, comparavel de que resul-
á

rlos desappareceram, quebrando-se em mi-


tára a Constituinte Imperial; mas, sim, de
tll!lJ'esde fragmentos, cada um constituido
um embuste formidavel, conscientemente
di' um pequeno clan aggrupado em torno
preparad», atravez do famoso «regulamen-
dI' um pequeno chefe. Em regra, esse pe-
qllPIlO chefe não representava - pelo me-
(1) v. Oliveira Vianna - O idealismo na evo- fiOS na provincia - o elemento local mais
luçãopolitica do Imperio e da Republica.'

[ 21 ]
[ 20 I ">',
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
O. IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

prestigioso ,no ponto de v~sta poli~ic6: o


que havia de mais prestigioso e fmo na tuintes. Os constituintes do Imperio eram
velha aristocracia local, quando se deu o homens todos animados de altos ideaes po-
Iiticos . .como já vimos, todos se uniam no
golpe de 15 de Novembro, ouretra~lÍu-se,
ardente e : claro pensamento de construir
fechando-se dentro do culto platomco da
uma pátria. Na Constiluinte da Republica;
mon archia, ou tomou uma attitude discreta
o pensamento político, que a animou, não
aguardando o rumo ulterior dos aco:1te~i-
tinha, no espírito da maioria, a clareza e a
mentes. De modo que, em sua maioria,
intensidade do ideal, que inspirara os cons-
os clans partidarios, que se organizaram
tituintes ímperiaes. Para muitos, a Republi-
por todo o paiz, em substituição das velhas
organizações monarchicas, não tinham pr~- ca era uma aspiração de ultima hora; para
priamente á sua frente as figuras de mais outros, um simples movimento de represa-
autoridade no seio das élites politicantes. lia; e para outros ainda - os «historicos»
Havia all i - com notaveis e brilhantes ex- por exemplo - puro thema piara decla-
cepções - muita entidade entrelopa, multo mações sonoras, e nunca uma convicção
arrivista, muito noaoeau-riclie político, sem clara e profunda, <wrítten on the Ileshly
tableís of theheart». De modo que, .quando
grande solidez de estructura no caracter e
. se deu a queda do velho regírnen, o pensa-
sem grande lastro de escrupulos na cons-
·111'ento repub,licanonão havia attingido a
ciencia, c que se haviam arremessado so-
sua plena xuaturidade: não havia ainda sa-
bre as situações políticas, abandonadas pela
lurado a consciencia do paiz. Por isto, os
velha guarda, com a mesma despreoccupa-
cxpoentes',do)deal republicano, na Consti-
ção de linha e de attitudes de uma patrulha
luinte ou fóra della, não pareciam muito
de assalto pondo em saque uma cidade de-
serta .. senhores da sua idéa matriz: a impressão
que nos dão éque não sabiam bem o que
Ha ainda um outro traço, que descri-
queriam, nem bem o que era preciso fazer.
mina as duas grandes assembléas consti-
Bons rapazes, que se haviam adestrado em

[ 22 ]
[ 23 ]
O. IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

atirar pedras no governo, colhidos de sur- o trace mais distinctivo dessa mentali-
presa para a grave missão de estadistas, dade: era a crença no poder das formulas
tiveram que improvisar ás pressas um pro- scriptas. Para esses sonhadores, pôr em
gramma de construcção. Preoccupados, des- letra de forma uma idéa era, de si mesma,
de 70, em fazer opposição ao poder (como realisal-a. Escrever no papel uma Consti-
se costuma fazer opposição entre nós), elles luição era Iazel-a para logo cousa viva e
realmente não haviam pensado nisto até ucluante: as palavras tinham o poder magí-
14 de Novembro. de 89 e, quando,' a 16 uo de dar realidade e corpo ás ídéas por
do mesmo mez e anno, foram forçados r-llas representadas.
a pensar nisto, sentiram-se visivelmente em- Dizia Ihering que ninguém pode 1110-
ba-raçados. ver ,uma roda lendo apenas diante della
Elles se haviam contentado até então 11111' estudo sobre a theoria do movimento.
com um vago programma de aspirações va- ()s republicanos historicos, especialmente os
gas formulado em phrases vagas: os « irn- I'ollsliluintes. de 91, dir-se-hiam que estavam
rnortaes principios»,o «regimen da opi- l'IHlvencidos justamente do contrario dis-
- e que, pelo simples poder das formu-
nião», a «soberania do povo», a «organisa- 111

ção federativa», o «principio da liberdade», I I' escri ptasvn ão só era possível mover-se
a «democracia», a «repuhlica», etc. O ma- 11111:1 roda, c~:no mesmo mover-se uma na-
uif'esto de 70 é um magnifico exemplo desse I' I1 inleira;·:·.
.. J •

1 este estado de espirito é que elabo-


culto das generalidades sonoras, que cons-
titue o fundo da mentalidade dos republica- 1111'\1111 a Constituição de 24 de Fevereiro.
nos da propaganda. Quando, vinte annos
depois, se apossaram do governo do paiz,
essa mentalidade não se havia modificado
um apice no seu feitio literario, declamador
L doutrinario.

r 24 ] [ 25 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

80S proprios males. E natural, pois, que a


sua obra maxima - a Constituição Fede-
rativa; ~'não tenha sido outra causa sinão
lima obra doutrinariamente bella, mas Ia-
tnlmente votada ao fracasso immediato. Em
v rdade, .esta Constituição nunca foi posta
II
1'111pratica, corno veremos: pode-se dizer
q 11' ella, corno as crianças mal nascidas,
11100'feUdo mal de sete dias. Ella trazia,
111 iás, no sangue, atravez apropria Consti-
Disse Eça de Queiroz que, dos males lulu l , eleita pelo regulamento Alvim, a car-
que affligiam Portugal, uns eram devidos I 11d a heredo-syphilis, que haveria de ga-
ao proprio temperamento do povo, mas que 1111' lhe, desde o berço, a innocencia de re-
outros eram «traduzidos do fr ancez». Com I tllll Iluda e exanthemar-lhe de placas sus-
os nossos podemos dizer a mesma cousa. I't' l:t,· a epíderrnezinha delicada,
Dos males que nos tem affligido desde a l';sLu Constituição resume, entretanto,
nossa em ancipação em 22, uns resultam 1111,'II:1Spaginas, tudo o que havia de mais
das condições mesmas da nossa formacão IIhll'llI nas correntes idealistas da epo ca ; ele
social, mas outros são simples translac5es 1IIIIdll qu nos :4rtigos deste codigo funda-
dos males alheios em vernáculo - ~ os 1111 ulul podemo.vver uma bella synthese de
idealistas republicanos, os constructoresda 11tlll 11ideologia- republicana dos primeiros
Constituição de 24, infelizmente parece te- I 1 .

rem-se devotado mais aos males desta ul- " 1:1 ideologia era uma mistura um
tima especie do que aos males da primeira II IltI 1IIII'I'U'lional e, por isso mesmo, hete-
cathegoria. Excellentes traductores de ma- I I1III til) dcmocracismo francez, do lihe-
les estranhos; pessimn s 'interpretes dos nos- I ti 111"111I 'Z e do federalismo americano.

[ 26 ] .r 27 ]
o IDEALISMO DA C?NSTITUIÇÃO
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

'. \U i' T'

Tinha os seus crentes e também tinha os n~~t~ \ desillusão. Os mais fortemeITte de-
seus fanaticos: o que não parecia ter eram sílludidos foram precisamente os mais ar-
os seus scepticos e os seus negadores. Por clentesevangelisadores do novo cred~. Os
aquella epoca, a" crença nas virtudes do Christos da Nova Revelação foram Justa-
Liberalismo, do Federalismo e da Democra- mente os que mais alto fizeram resôar o
cracia era tão profunda como a dos fei- refrão do seu desanimo. - Mão era esta a
ticeiros nas virtudes dos seus esconjuros e ttcpublica dos meus sonhos! di~iam, sue-
das suas mandingas: a mais leve expressão I umbidos e cheics de melancolia.
de duvida sobre a excellencia destas formu- I-louve, portanto, uma força estranha,
las politicas acarretaria para o dissidente 11111 radar o cculto , que transmudou o ouro
as agruras da lapidação ; quando menos, dll idealidade mais pura no chumbo vil
elle soffreria a dôr de se ver alcunhado dl1 mais triste realidade? Sim, houve. Esse
de «retrogrado» - offensa tremenda para 1111'101' foi: 1.0 - o momento l~istorico; 2.0
aquelles tempos. Os que se aggrupavam 11 própria nação.
em" torno dos" chamados «propagandistas»
esperavam as bemaventuranças da Republi-
ca, da Democracia e da Federação no mes-
mo estado de exaltação mistica com que os
camponezes, que acompanhavam Jesús
pelas estradas da Galiléa, esperavam" o
«reino de Deus».
Veio a Republica. Veio a Democracia.
Veio a Federação. E para logo se levantou
um sussurro de desapontamento do seio
da turba fanatlzada - e esse desapontamen-
to se accentuou, com o tempo, numa perrna-

[ 28 ] [ 29 J
O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

ramente á Constituição Republicana - syn-


these das aspirações dos evangelisadores
do. novo regimen:
O grupo republicano, era, com effeito.
diminuíissimo: não representava nem um
núcleo fortemente solidario, nem uma classe
III prestigiosa da sociedade. Formava-se de ele-
mentos esparsos, vindos de todas as classes;
afinal, não passava de um bando, reduzis-
simo de sonhadores agitando-se, numa acti-
o «momento» em que os novos ideaes vidade intermittente e dispersiva, atravez
republicanos foram postos em pratica, era n íncuriosidade ou indifferença de um
realmente o menos proprio para objectí- paiz immenso. Os elementos políticos, que
val-os: tudo conspirava para fazel-os fra- iam pôr em acção o delicado mecanismo
cassar. Mesmo que elles se ajustassem á elas novas instituições, eram, na sua maio-
estructura da nacionalidade e ao seu espi- ria, principalmente nos Estados, elementos
rito, ainda assim o' momento condernna- Inteiranrente estranhos ao, idealismo dos
i

vá-os a uma fallencia inevitavel. evangelistas jsepublicanos - e, ao agirem,


Em primeiro lagar, faltou-lhes uma ngiam, não, corno homens de ideal, transfi-
classe social que os encarnasse. A realisa- gtlrados pel8.Fé, mas apenas como homens
ção de um grande ideal nunca é obr~ col- do seu meio: do seu tempo e da sua raça
lectiva da massa, mas sim de uma élite , o que equivale dizer, como veremos, que
de um grupo, de uma classe, que com elle IIgiam em completo desaccordo com o espí-
se identifica, que por elle peleja, que, quan- rilo idealista da Constituição. I,

do victoriosa, lhe dá realidade e lhe asse- Em segundo legar, as condições econo-


gura a execução. Ora, tudo isto faltou intei- 1111 as da sociedade eram perfeitamente im- I

[30 J [ 31 J
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

próprias a qualquer surto de idealidade po-


litica. O decreto da abolição do trabalho base economica, que lhe substituiu a antiga
servil havia explodido com a violencia de base economica destruida. Essa nova base
uma mina subterranea, e a sociedade intei- cc?nomíca foi a industria do emprego pu-
ra, de baixo acima, se abalou, estremeceu e, blico, que o novo regimen fundou e que se
em muitos pontos, derruiu completamente. tornou para a grande aristocracia nacional
Todas as classes soffreram uma profunda ~l1aisv~ntajosa e lucrativa do que a velha
perturbação na sua estructura - umas di- J,ndustna da exploração da terra, então pro-
rectamente, como a agrícola; , outras , indi- Iu.ndamente desorganisada. O novo regírnen,
rectamente, com a repercussão do abalo nliás, pelo seu caracter democratico como
soffrido pelas primeiras. pelo seu espirito descentralisador ~ fede-
Foi nesse meio agitado e instabilissimo rativo, multiplicara prodigiosamente na
que a Republica surgiu e a nova Constitui- União, nos Estados e nos Municípios os
ção lei promulgada. No fundo, a abolição .argos_administrativos e os cargos de repre-
do trabalho escravo desorganísár a o syste- sonta?a~; de. modo que a" elite política,
ma de meios de vida da aristocracia nacio- e nstituida Justamente, na sua maioria
nal - e a Republica a encontrou na si- p los «desplantados» da abolição, orientou~
tuação de quem' procura urgentemente uma s toda par?- as funcções electivas e admi-
nova base economica. Ora, essa situação ni lrativas élez do emprego publico o pala
era a menos própria para attítudes despren- d todas as' suas aspirações.
didas e desinteressadas, indispensaveis á
Os cargos publicas, - administrati-
objectivaçãc dos altos principias idealistas ()' ou políticos, - passaram a ser dis-
consubstanciados no texto da Constituição. pulados, não como meio mais efficien-
Tanto 'mais quanto, essa aristocracia, 1<' para realisar o «ideal», o' «sonho»; mas,
deslocada da SUa grande industria da terra, P\II"l e rnaterialmente, como, meio de
passou a encontrar no Estado Uma nova ida.. O que se procurava, nessa corrida
para a burocracia electiva ou vitalícia, era,

[ 32 ]
[ 33 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

não realisar o grande ideal de 70, mas sim- impressas ao argumento mais poderoso e
plesmente viver. E todos pareciam dizer .rebôante dos canhões da força' armada.
como, Caliban: «- Eu devo comer o meu , Está claro que, num ambiente destes,
jantar». Ou, mais syntheticamente: - Eu tão trepidante e perigoso, Aríel, isto é, a
deoo comer. Em virtude das condições ex- ,Constituição, não podia sentir-se bem -
cepcionaes do momento, «comer» fez-se as- e só lhe restava alar-se no ar subtil. O ideal
sim o imperativo, cathegorico das novas ins- inspirado r dos homens deixára de ser
tituições em ensaio, um verdadeiro dever, aquella bona libido patrice çratiiicandi, de
que todos - uma boa parte dos «hístorí- Sallustio, e passára a ser apenas o aoarus
COs»;os «post-hístortcos» na sua totalidade uenier horaciano.
e, mesmo, alguns «pre-histor icos» - cum-
priram, como o negro personagem shakes-
peareano, gostosamente.
Os que conseguiam, dest' arte, alcando-
rar-se nos postos officiaes ou electívos viam
nelles logicamente uma situação definitiva
e vitalícia - e a defendiam, por todos os
meios, contra o assalto dos novos invasores.
Estes, premidos tambem pela força do mes-
mo imperativo cathegorico, disputavam as
situações do 'poder com a aspera aggressí-
vidade dos escaladores de trincheiras. E,
para estes, como para aquelles, todos os
meios pareciam bons: da fraude desabalada
á illegalidade manifesta e ao esbulho clamo-
raso; da fuzilaria das diatribes e calumnias

[ 34 ]
[ 35 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

Este desaccordo, a princípio, ninguern


'pareceu percebel-o bem. Como já vimos, os
republicanos viviam então na crença do po-
der transfigurador das formulas escriptas.
Todos elles acreditavam que se um dia o
.Congresso decretasse que todos os brazilei-
IV. ros, mesmo as crianças de peito, se tornas-
sem para logo patriotas perfeitos e abne-
gados, para logo todo o Brazil se cobriria
de abnegados e perfeitos patriotas; ou se
a Constituição declarasse, num dos seus la-
pidares artigos, que todos os politicos, que
o idealismo republicano falhou, dest' -no Estado, nos Municípios e na União
arte, logo no inicio da sua experiencia cons- - estavam actualmente felicitando o paiz,
titucional, porque eram completamente hos- passassem a possuir o geniQ político de um
tis a qualquer surto idealista as circumstan- Washington ou de um Bísrnarck, para logo
cias do momento historico que envolveram repullularia, na União, nos Estados e nos
os primeiros annos do novo regimen. Mes- Municípios, toda uma floração miraculosa
mo, porém, que .essas circumstancias lhe de genios póliticos, quando não maiores, ao
fossem favoraveis, ainda assim a belIa ideo- m euos eguaes a Bismarck ou Washington,
logia da Constituinte teria que fracassar Era esta a mentalidade dos primeiros
da mesma forma, sinão imrnedíatamente, tempos republicanos. Ou melhor, era esta
corno aconteceu, pelo menos com o correr a mentalidade dos republicanos da propa-
dos tempos, á medida que se fosse accen- ganda e, por contagião, dos post-repuhlica-
tuando o desaccordo entre os seus princí- nos do, adhesismo.
pios e as condições mentaes e estructuraes Com esta mentalidade, está claro que
do nosso povo.

[ 37]
[ 36 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

elles não poderiam comprehender a ver- zonos continuam a esperar messíanícamente


::> '.
dadeira causa do fracasso dos seus ídeaes; na .acção do, grande milagreiro ...
nem' poderiam procural-a nas circurnstan- Os primeiros, porém, os da corrente
das eventuaes do momento; nem, muito me- intolerante, menos longanimes e nada fa-
nos, no desaccordo entre os dogmas da sua talistas, oonfiavam, e ainda confiam, não
ideolegia e a realidade nacional. Para elles, no Tempo, mas na Força, ou, mais pro-
a causa do fracasso não estava no regírrren, priamente, naquella personagem muda da
tragédia eschyliana: a Violencia. Em-
.
tal corno foi ideado na Constitui cão ,' mas
bora nem sempre tenham o desassom-
apenas nos homens - ou porque «inexpe-
r'ientes», ou porque «corr-uptos». bro de proclamar, como certo philoso-
Dahí duas grandes correntes de opi- pho, que «o assassínio político é a arma
nião, ou duas attitudss typicas, que dividi- do patriotismo desarmado», appellam fre-
ram os republicanos dos primeiros tempos quentemente para os quarteis, fazem-se em-
preiteiros quadriennaes de «salvações», para
e, ainda hoje, os eontinuam a dividir: a
despejar do poder os «corruptores das ins-
dos «intolerantes», que aUribuiam a fa11e11-
liluições», os «violadores da Lei suprema» ..
cia do regimen á corrupção dos que detêm
Quando victoriosos, tentam, elles mesmos,
eventualmente o pcdcr ; e a dos «tolerantes»,
ti ar realidade á ideologia da Constituição;
para os quaes a fallencia do regimen era
111<1S, 01 facto é que até hoje todas essas
apenas apparente, pnrque oriunda da falta tentativas do partido da Força têm' sido
de «experiencia» Oll de «aprendisagem» das ill\ aríavelmente corôadas pelo fracasso: ne-
novas instituições.
ntrumia até agora tem conseguido objectivar
Estes ultimas, longanimes e um tanto Cl «sonho» dos sonhadores de 70 e 91.
fatalistas, pareciam repetir a legenda d'an- Evidentemente, deve haver uma causa
nunziana de que «o Tempo é o' pae dos 1I11lisprofunda, que explique tamanha in-
prodígios» - e ainda hoje os seus epí- lllpa idade e tão longo e continuado in-

[ 38 ] r 39 ]
rr l
j
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
O IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO
,/
I

successo. Esta causa existe e é, como já , cias anglo-saxonias, mas tambem nas dou-
assignaJamos, o desaccordo ~ntre o idealis-
; mo da Constituição e a realidade nacional. I '
. .trinas individualistas do convencionalismo
Jrancez. O suffragio que ella estabelece é,
Realmente, todo o systema politico en- .por isso, o suftragio individual e não o
genhado na Constituição assenta-se sobre I suftragio de classe: cada cidadão, conside-
um certo numero de presumpções, .que, en- r
rado individualmente, se presume possuir
tre nós, não tem, nem pode ter, nenhuma r
a irubependencia bastante e a competencia
objectividade possivel. São presumpções de necessaria para eleger com criterio e cons-
natureza meramente especulativa, inteira- [ ciencia os dirigentes eventuaes da nação,
mente fóra das condições reaes da nossa I isto é, os executores da «vontade do povo».
vida collectiva. h
O conjunclo dessas opiniões individuaes
Tomemos, por exemplo, a primeira forma a massa rnagestosa da «Opinião de-
dellas - porque fundamental: a presump- mocratica», que elege os governos, que di-
ção da existencia aqui dessa cousa que, nos
rige os govern os, que appl aude os gover-
povos de raça saxonia principalmente, se nos, quando hnns, e que lambem condemna
li chama «opinião publica». Todo o rnechanis- os governos, quando rnáus, isto é, quando
mo do regimen estabelecido na Constituição desobedienles á dita Opinião.
gira em torno dessa presumpção central. O, Esta opinião deve revelar-se, porém,
que alli se institue é, com effeito, o regimen atravez dos Partidos. Para os ideologos re-
democratico; portanto, um regimen que de- publicanos, os partidos politicos, á maneira
riva da «vontade do, Povo Soberano», ma- ingleza, são. a forma mais legitima, sinão
nifestada pela «Opinião Publica».
a unica, da manifestação do Povo Sobera-
Dahí, essa instituição basilar: o suf- no. Dahi o empenho, sinão a mania, de to-
fragio universal. Neste ponto, aliás, a nossa dos elles em organisar partidos políticos
ideologia constitucional não se inspira ape- estáveis, com os seus imponentes directo-
nas no magnífico espectaculo das democra- rios centraes, com os seus menos imponen-

[ 40 ]
[ 41 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

tes directorios estaduaes, com os seus ainda dessa opimao derrrocratica. Dahi a el.ecti-
menos imponentes directorios municipaes vidade e a periodicidade, não só da Ca-
ou districtaes, corôado tudo isto por gran- mar a, como tambem do Senado. Dahi a
diosos programmas de idéas e reformas eleição directa e popular do presidente da
perfeitamente liberaes, democraticas e re- Republica. Dahi os curtos. mandatos presi-
publicanas. denciaes. Dahi o seli-qooertuneni local, aS-l
Por esse meio, os milhões de opiniões segurado pela autonomia dos Estados e
individuaes, sequiosas de se revelarem, se lambem pela autonomia dos municípios.
agglutinarlam em grandes massas, em dous São tudo outras tantas valvulas por onde
ou tres grandes grupos, representando dous [oiepode manifestar e exteriorisar-se a' von-
ou tres grandes partidos, E ter iamos, por- tade livre, a opinião consciente e soberana
tanto, estabelecido, o pleno regimen da opi- do Povo, ou, pelo menos, dos Partidos.
nião - á maneira do que acontece na Corno se vê, os republicanos da Cons-
America do Norte e na Inglaterra. Com liluinte construír-am um regimen politico
essa Opinião Publica, assim partidariamen- hnseado no presupposto da opinião publica
te arregirnentada, poderiamos desde então urgnnísada, arregimentada e militante. Ora,
fruir, com tran quillidade e orgulho justifí- 1'.'la opinião. não existia, e ainda não exis-
cado, todas as benraventuranças do regimen li', entre nós: logo, ao mechanismo ideali-
do povo pelo povo, a Democracia em sum- "do pelos legisladores de 91 faltava o so-
ma, a Republica na sua luminosa pureza 1'.'0 il spirador do seu dynamísmo. Dahi a
e formosura. 1111 r allen cia.
Contando com isto é que os constituin-
tes de 91, segundo, aliás, as inspirações
dos evangelístas de 70, estabeleceram no
seu Codigo Fundamental varias prescrip-
ções tendentes a facilitar a livre expressão

[ 42 ] [ 43 ]
O 'IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

.os detentores eventuaes do poder, tem uma


maravilhosa organisação. É justamente esta
maravilhosa organisação que dá opinião á

do povo inglez esta formidavel força com-


pulsoria sobre os orgãos do Poder, de modo
v a tornal-os inteiramente obedientes ás suas
inspiraçõez e desejos (1). Esta organisação é
«onstituida po r um COl} 'uncto magestoso de
«Iontes de opinião" representadas, em' par-
Realmente, todo o fracasso do idealis- I(l, pelas varias associações de classe, po-
mo contido na Constituição de 24 de Feve- dcrosamente unidas e federalisadas, e, em
reiro tem', em' synthese, esta causa geral: purte, por esses grupos activos e militantes
somos um povo em que a «opinião puhlica», nuscidos do admiravel espírito de solida-
na sua forma pratica, na sua forma demo- I ('tlnde da raça saxonia (Leaques, clulrs,
cratica, na sua forma pol itíca, não existe. "IIIII'IJlilt,Bes{ socieiies, ele.).
Quando imaginam um «regimen de opi- E'Htcs grupos, extraordinariamente vi-
nião», os nossos ideologos políticos pensam I1n ,', por um lado, e aquellas associações,
logo na Inglaterra. Dá-lhes a Inglaterra ti 11 III 'IIOS extraordinariamente vivazes, por
o mais belIo exemplo do governo segundo a 1111/111 Indo, se solidarisam em entendimen-
vontade do povo. 111 IIIIIIIIOS e acabam compellindo o poder
Ora, o que se chama «opinião» na In- I ,,111 d('('('I-os (pressure [rotti ioiihout ), ou,
glaterra é cousa muito diversa do que o que I'lltldfl t'sle recalcitra em Iazel-o, depõem-
aqui se costuma chamar - opinião. I 11 1" 111 jogo do mechanísmo parlamentar e
Em primeiro logar, na Inglaterra essa
opinião, que elege, que governa, que julga 11) v de adeante : O segredo da opinião in-

[ 44 ]
[ 45 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO O IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO

substituem-no por um outro da sua con- social e política dto povo - é que asse-
f'ian ça e inspiração. guram á democracia ingleza esta surpre-
O «regimen da opinião» na Inglaterra hendente vitalidade, que faz a admiração e
não resulta, pois, exclusivam ente do facto tambem o desespero de todos os povos não
dos cidadãos inglezes terem a prerogatíva saxonico s do mundo.
de escolher, pelo direito do voto, os repre- Ora, entre nós nada disso acontece ~
sentantes do Poder; mesmo sem o direito a simples concessão do suffragio a todos
do voto, essa. poderosa solidariedade de os cidadãos não bastaria para criar aqui
classes, esse espirito popular, militante e .stas condições que constituem o ambiente
infatigavel, acabaria por obrigar, pela sim- 11:1 democracia ingleza.
ples força moral da sua opinião, os deten- Não existe solidariedade de classe. Não
tores do Poder e a classe propriamente 11 I nenhuma classe entre nós realmente
politica a consideral-o, a ouvil-o e a atten- tll'Wlnisada, excep~o a classe armada. Essas
del-o. O regimen da opinião pre-existe á
ruudes classes populares - que são os
prerogativa eleitoral - e a sua razão de 1111-\ 'principaes da elaboração da opi-
ser está nestes dous attributos intransfe- I1 (j liritanica - não tem aqui organisação
riveis do cidadão inglez: a sua indole activa "I 11111:1, ou tem uma organisação rudimen-
e combativa (a açqressioe oitalitq, de Whit- 1111, ,'0111 efficiencia apreciavel sobre os
man), por um lado; por outro, o espirito de 111' os do Poder, dada a enorme disper-
solidariedade, o sentimento instinctivo do 11 d('rnographica do paiz: - e são a
interesse oollectivo, aquillo que van Dyke I I I I' Ilgricola, a classe industrial, a classe
chama - lhe spirit of cormnori order and Illjllllll'ITial, a classe operaria. Todas essas
social cooperation, Estes dous attributos- I I I viv m em estado de semi-conscien-
um de natureza biologica, porque se prende I d" xou propríos direitos edos seus pro-
ao temperamento da raça; outro de natu- I I ul rr 'SSCS, e de absoluta inconsciencia
reza moral, porque se prende á formação 1111 pl'opria força. São classes dissocia-

[ 46 ] [ 47 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

das, de typo amorpho e inorganico, em es- mento 'da maioria. De modo que falta aqui
tado de desintegração profunda. Quando, terreno propicio a esses brilhantes movi-
porventura, algumas fracções dell as se or- . mentos em pról do' bem collectivo, de que
ganisarn aqui ou alli (Centros Industriaes são tão Ierteis os grupos anglo-saxonios.
Sociedades Agrícolas, Associações Opera~ Esta ausencia de sentimentos dos inte-
rias, etc.) ainda assim esses pequenos nu- resses geraes é que explica o insuccesso
cleos de solidariedade profissional não tem de todas aquellas instituições sociaes, em
espír-ito militante, nem poder eleitoral pro- que não ha em' jogo o interesse pessoal
prio, nem influencia directa sobre os 01'- dos cooperadores. O serviço do Jury, por
gãos do Poder (1). I templo: ninguem entre nós o' presta oorn

Não existe 10 sentimento do interesse o sentimento de estar cumprindo um dever


collectioo. Este sentimento, tão profundo cI( idadão - como entre os ínglezes; ao
nas raças germ anicas em geral, especial- • oulrarío, presta-o contrafeito e esforça-se
mente na raça ingleza, é inteiramente nullo pOl' evadir-se a elle por todos os meios.
no cidadão. brazileiro. Já explicamos alhú- () ll1' mo se dá com o serviço militar,
res a razão historica desta nossa incapa- \111 () serviço eleitoral. Em relação a este
cidade - e não é aqui o Iogar mais pro- 1111 111/0, sabemos bem o que se passa: o
prío para renovar-lhe a demonstração (2). Os • I. lur vae á urna para comprazer o chefe
que aqui se consagram ac bem publico des- ('11 111, ou porque ahi o leva o boss do par-

interessadamente são typos excepcionaes, '''111 nunca, porém, por um impulso su-
cujos esforços se perdem no meio da in- 1" I 111' de civismo" por um movimento ~s-
differença, ou da ínercia, ou do retrahí- 11111/1111'0 da sua consciencia - parao firo
" 1IIII.'Iiluir os orgãos do governo político
I 111', Ilude. Ir ás urnas, como servir no
(1) vide adeante:- O poder da opinião e as
fontes da opinião. " xercer qualquer cargo não re-
(2) víde - Poputações Meridionaes, capo IX. 1/111 IlIdol• mas benefico á collectividade,

[ 48 ] [ 49 ]
o roEALlSMO DA CONSTITUIÇÃO

representa tudo isto, para 99 Ofo de nós


brazileíros, um' «sacrifício», um «incomrno-
do». uma «rnassada». - Este é um dos tra-
ços mais caracteristicos da nossa psycho-
logía social e, infelizmente, estamos mui-
to longe de vel-o desapparecer como ele-
VI
mento determinante da nossa conducta na
vida publica.
Um ambiente como, este, portanto, é
o. menos propicio ao florescímento de um
regimen de opinião, á maneira saxonia. Desta ausencia de opmiao organisada,
Este regimen tem aqui tantas condições desta ausencia de opinião publica, de opí-
de vitalidade. quantas teria uma cobaia uião democratica - o que é, aliás, con-
dentro de uma carnpanula, em que se fi- .tcqucncia da nossa .pr opr ia formação so-
zesse o vácuo. Pretendendo instituir entre r-iul - resulta, COJ110 vimos; o fracasso do
nós um regimen de opinião, os constituintes I'ugimen estabelecido pela Carta de 24 de
republicanos foram victimas inconscientes 1,','v'1'eiro, bem' como todos os «males»
de uma grande illusão. O edifício que cons- I' «corrupções», de que o' estamos, ha mais
truiram, de tão magestosa fachada, não se d,\ trinta annos, accusando: - o monopolio
assenta, como se vê, sobre alicerces de rea- clOf> orgãos do poder pelas pequenas parce-
lidades; assenta-se sobre ficções - e nada I 11.' politicantes, que entre si distribuem os
mais. 1/11 j.(os publicos; consequenternente, os con-
I 11'.', os federaes unanimes, as assembléas
I lurluncs unanimes, as camaras municipaes
1IIIIIIlirl1 ; e, portanto, a inevitavel subor-
ti 111\','1 de todos esses' corpos legislativos

[ 50 }
[ 51 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

e 'representativos aos chefes do executivo Entregue a si mesmo, á sua propria es-


municipal, do executivo estadual e do exe- pontan eídade, o nosso povo seria capaz de
cutivo federal. Tudo isto são factos nalu- constituir a nessa super-estructura politico-
raes, perfeitamente logicos, num povo que administrativa? E duvidoso. O que se ob-
não tem - porque não podia ter - nem es- serva nos municípios do paiz parece indi-
'pjrito dernocr-atico, nem sentimento demo- car que, sem a actividade desses nodulos
cratico, nem', portanto, hahitos e tradições politicantes, os conselhos cornmunaes; as
democraticas. Fazendo dos cargos publicos nossas famosas camaras municipaes, não
e, consequentemente, do thesouro publico se con stit uíriarn. Como suppôr então que,
cousa da sua propriedade privativa, os nos- sem a intervenção desses grupos politir an-
sos clans partidarios, que manipulam o go- I s, poderiamos constituir o apparelho ain-
verno da União, dos Estados e dos Mu- da mais complexo dos poderes publicos da
nícipios, estão na mesma situação de um I nião e d'os Estados?
individuo que se apoderasse de uma res Estas grandes e. pequenas olygarchías
derelicia. II[lO são, pois, em si mesmas, coudernnaveis,
Realmente, em boa verdade - e C011- 'um povo como o nosso, ellas são mesmo
síderando de um ponto de vista objectivo 11 vitaveis. Diremos mais: ellas são neces-
o phenomeno - talvez devamos ser, de "11'ias.

um certo modo, gratos a estes clans poli- O grande problema não está em des-
ticantes: pelo menos, elles nos prestam o lr'ull-as ; está em educal-as, em disciplinal-
serviço de organisar essa cousa essencial /I', rn reduzir-lhes a capacidade de fazer
e que, entretanto, o Povo, o nosso Povo, II m al e augmentar-lhes a capacidade de
pela sua inaptidão democratica, se mostra Im.(~"o bem. Todo o mal, de que as accu-
incapaz de organisar: o quadro dos poderes 111110', provém de que ellas actuam, por
publioos do paiz. /I xim dizer, no vácuo - sem o correctivo
Porque é natural que se pergunte: - 1111 11 ompressão disciplinada de uma at-

[ 52 ] [ 53 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

mosphera de opinião publica, que não se


formou nem organizou.' e que, portanto,
não as pode orientar nem inspirar. Condu-'
zindo-se por sua propria inspiração, sem
nenhuma outra contra-pressão exterior, es-
sas olygarchias se deixam naturalmente to-
VII
mar de todos os exclusivismos, de todos
os unilateralismos, de todas as perversões
do senso julgado r, insitos á logica gre-
garia e ao espírito de partidarismo.
Dahi a sua oonducta sempre em con- Os inconvenientes desse íunccionamen-
tradicção com o interesse geral. Este é Ie- to 'no vacuo das olygarchias politicantes
rido, é esquecido, é despresado, porque não têm a sua mais esplendente exemplifica-
se faz valer junto do. Poder, não se 01'- ção no modo por que se faz o governo
ganísa de uma maneira efficiente para com- da União. Cada presidente da repuhlica
pellir o- Poder a respeital-o e attendel-o. improvisa um programma administrativo.
Diremos melhor: cada presidente da repu-
bJica é [orçado a improvisar um program-
ma administrativo. E isto porque todas as
vezes que ascende ao. poder um novo pre-
sidente, a Nação inteira fica .attenta , toda
ouvidos e toda olhos, num grande silencio,
(l espera que elle diga o que ella, a Nação,
precisa para a sua salvação e prosperidade.
Nenhuma classe vem a elle para dizer-
lhe com dignidade: - Nós, que conhece-

[ 54 ] { 5~ ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

mias os nossos interesses melhor do que -um! programma de salvação para a


;ViÓS, queremos para nosso bem taes e taes Classe agr icola ;
providencias. -um programma de salvação para a
Nenhuma classe vem a elle para di- classe ind ustrial;
zer-lhe com imper io: - Somos alguns mi- - um programma de salvação para a
lhares, ou alguns milhões de interesses es- classe commercial;
palhados p.or todo o paiz, todos unidos e - um .progr arnrna de salvação para a
confederados numa poderosa solidariedade. I classe operaria;
B,em nome delles, pedimos isto e mais isto. - um programma de salvação para cada
Nenhuma classe vem a elle para di- uma das outras classes, em que se divide
zer-lhe com arrcgancia: - Somos unidos, a Nação!
SOmlOS organísados, somos fortes. Podemos,
si quizermos, agitar o paiz. Exigimos, pois,
para O: nosso bem, para a melhoria dos N a Inglaterra é o contrario disto. Lá,
nossos interesses, taes e taes medidas, taes ninguem confia na ornnisciencia do governo.
e taes reíormas.» Pode-se dizer mesmo que ninguem cultiva
Nada. EIIIl' vez disso, toda a Nação li- alli a crença, tão generalisada entre nós,'
mita-se a esperar. Toda a Nação. espera no patrio tismo espontaneo do governo.
na omniscíencía do governo, na ornniscien- Cada classe organisa-se e defende os seus
tia do p.oder, na omniscíencia do presi- interesses da melhor maneira, movimenta-
dente; - do presidente que, em' regra, é se, reclama, protesta e, se f'ôr preciso, re-
apenas um excellente e honrado bacharel! volta-se e lucta. Não espera passivamente
E 00 presidente - sorte de Jupiter prodi- que o governo, tocado de sentimentos de
gíoso - que tem de arrancar de si mesmo, carinho paternal, vá a ella inquirir do que
da sua mente olyrnpica, toda uma sede de ella precisa para o seu bem e prosperidade.
programmas salvadores: EUa mesma é que vae ao governo, cheia

[ 56 ] . [ 57 1
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO O IDEALISM~ DA CONSTITUiÇÃO

da consciencia robusta e clara dos seus vernos nacionaes: governos patrióticos. El-
proprios interesses, e o esclarece, e o pro- lles assim se mostram, não propriamente
voca" e o inquieta, com a frequencia dos por um movimento espontaneo da sua aln:a,
seus r'eclamos, corn a constancia das suas por um impulso generoso do seu cor~çao
suggestões, com a impertinel1cia mesma das ele patriotas; mas, porque são cornpellídos
suas ameaças,
a isto pior essa incoercivel e irresistivel
Os governos alli não tem propriamente pressure [rom iuitliout da opinião organi-
um pr.ogramma seu, brotado da sua mente
sada e militante.
como Minerva da mente de Zeus: são ape~
Entre nós nada disso se vê. Não ha
nas meros executores, vão realisar pro-
aqui nem organisação de classes, n~m or-
grammas já elaborados cá fóra, na im-
prensa, nos comícios, nas cathedras nos ganisação da opinião: a unica orgamsação,
livros, pela acção dos grandes partidos e que os presidentes encontram em torn~ .de
das grandes solidariedades de classes: as si, cercando-os, sllggestionando-os, exigin-
ligas, as associações, <J.S syndicatos. do, impondo, são os clans facciosos, que os
Não é, pois, o silencio o que se faz elegem. Estes é que acabam dom.inando.-os
em torno de cada governo. Nenhuma clas- inteiramente e reduzindo-os, por fim, a SIm-
se alli espera, muda e queda, a soUicitude ples instrumentos dos seus interesses e am-
paternal do Poder. Ao contrario disto, to- bições. Eis porque o «governo do p?v~~,
das pedem, todas exigem': em sumrna _ idealisado pelos sonhadores da Cousutuin-
t.odas. querem dirigir o Poder. E' isto o que te, se torna aqui apenas o governo das co-
constItue a democracia ingleza. Nisto é que teries politicantes.
está o que os inglezes chamam - «go- Não culpemos, pois, os detentores do
verno da opinião», Poder. Elles são apenas as victimas das.
Comprehende-se então porque ha alli proprias circumstancias, em que .actuam:
governos devotados á causa publica, go- no meio do silencio geral do paiz, nada

l 58 ) [ 59 ]
"O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
o IDEALISMO DA CONSTITU~ÇÃO

mais natural que eIIes acabem ouvindo ex-


clusivamente a voz que se faz ouvir com do governo», e (quando inimiga) nega so-
insistencia e persuasão: a voz dos interes- nor amente o «patriotismo do governo» -
ses partidarios que os cercam. nós brazileiros, vivemos budhicamente mer-
gulhados nessa doce espcctativa utopica de
O nosso grande problema político, por-
esperar no «patriotismo dos governos» .
tanto, não está em atacar os governos por
um' patriotismo-geração espontane.a, .de OrI-
não serem' patr1otkos, ou por não se resol-
gem endogena, sorte de jactus anuru lucre-
verem a ser patrioticos; o nosso grande ciano, surgido das proprias entranhas dos
prüblema político está em obrigar os go-
patriotas que governam! .
vernos a serem patrioticos. Neste ponto, não ha ..duvTd~ que ~o-
Ora, só ha um meio legal de obrigar mos ingenuos como um poeta Iyrico de vm-
.os governos a agirem patrioticamente, isto te annos... Porque a verdade é que não
é, a servirem á causa publica e aos inte- ha governos patrioticos - isto é, governos
resses collectivos, em vez de servirem , de que sejam patrióticos espontaneamente.
preferencia, os interesses dos seus grupos Todo governo - desde que, como o nosso,
partidarios e dos seus clans eleitoraes: é actue no vácuo, sem a pressão de uma
organisar a Opinião, isto é, organisar a opinião publica organisada - acaba seI?-
pr.essure iron» ioittrout, á maneira ingleza. pre, inevitavelmente, fatalme~:üe, humanis-
Ou isto, ou a democracia republicana no simamente, governo de partido ; logo, go-
Brazil será apenas um eterno sonho. verno de facção; logo, governo de clan;
Nós, com effeito - em parte, pela acção lacre
I:> ,
mau ~zoverno l fi
da intoxicação ideologica dos doutrinado- Estas verdades é que se devem ixar
res do liberalismo; em parte, pela acção bem, com nitidez e suggestivida:de, na me~-
te popular. E preciso destruir na nrentali-
quotidiana da imprensa, que (quando, ami-
dade do nosso povo esse funesto precon-
ga) pr.odama sonoramente o «patriotismo
ceito dos governos patrioticos. E preciso

[ 60 J
[ 61 ]
o IDULlSMO o... CONSTlTUJÇÃO

convencel-o de que nada ha a esperar do


patriotismo esponiatieo dos que estão no
poder, e que o unico meio de tornal-os pa-
tríotas é .obrigal-os a isso por uma pressão
externa - vasta, organisada, poderosa.
VIII

Todas essas considerações nos deixam


v( r que o problema da nossa organísação
politica é muito mais complexo do que
I' li' e áquelles que pensam poder resol-
••I o com simples reformas constitucio-
IIIH s, De certo, os que assim pensam são
I' 11 ritos que ainda cultivam a velha crença
"PI"'sticiosa no poder das formulas escri-
1'111" (' devem naturalmente ser tambem es-
11' 111.' bem aventurados, ou, pelo menos,
11111 " bemaventurança assegurada; porque
'1111' os factos têm demonstrado e a ex-
,lIlIl'ia comprovado é que somente pela
Ii IlIdl d s textos constitucionaes não con-
1111 I flli S reorganísação alguma.
II 1'1'1" destes espíritos theorísadores,

[ 62 1 [ 63-]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
o IDEALlS, o DA CONSTITUIÇÃO

ou antes, a illusão delles, está na convicção da nossa população rural são compostos-e-
em que todos elles vivem - de que uma devido á nossa organísação economica e
reforma poliiica só é possivel por meios á nossa legislação, civil - de pariás, sem
politicos. Elles não concebem que haja ou- terra, sem lar, sem justiça e sem direitos,
tros meios capazes de modificar as condi- todos dependentes inteiramente dos grandes
ções da vida política de uma sociedade si- senhores terrítortaes ; de modo que - mes-
não a modificação das suas instituições de mo quando tivessem consciencia dos seus
direito publico. direitos polítícos (e, realmente, não têm ... )
Ora - para o nosso caso, por exern- e quizessem exercel-os de um modo auto-
plo - a verdade é que as reformas políti- nomo - não poderiam Iazel-o. B isto por-
cas, isto é, as reformas constitucionaes, se- que qualquer vell eidade de independencia
rão apenas auxiliares de outras reformas da parte desses pariás seria punida com a
uraror-es, de caracter social e economico, expulsão. ou o despejo immediato pelo gran-
que deveremos realisar, se quizermos es- de senhor de terras. O grosso de nossa
tabelecer aqui o «regimen democratico», o massa eleitoral não tem, portanto, indepeti-
«regírnen da opinião», o «regimen do gover- dencia de opinião. Ora, os meios mais ef-
no do povo pelo povo». Pode-se dizer mes- ficazes para assegurar essa independencia
mo que o estabelecimento deste regimen po- não serão, por certo, o «suffragio univer-
lítico em nosso povo é antes de tudo um sal», nem a «eleição directa», nem o «voto
problema social e economico - e só secun- secreto», nem o. «selj-çouernment local»:
dariamente um problema político e constí- mas sim outros meios, de natureza econo-
tucional. mica e social: o estabelecimento da «pe-
Um exemplo bastará para esclarecer quena propriedade»; um systema de «ar-
este ponto. - O grosso do nosso eleitorado, rendamentos a longo prazo» ou um «re-
come sabemos, está no campo e é formado gimen de earacter emphyteutíco»: a diffu-
pela nossa população rural. Ora, os 9/10 ão do «espíríto corporatívo» e das «ins-

[ 64 ] [ 65 ]
"
'O . ~DEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

títuições de solidariedade social»; uma «or-


ganísação judiciaria» expedita, prornpta e
efficaz; uma «magistratura autonorna», com
força moral e material para dominar o
arbítrio dos mandões Iocaes, etc. Nenhuma
dessas reformas tem qualquer caracter ou
IX
constituci:onal; mas, somente ellas serão ca-
pazes de dar á nossa plebe rural, base do
eleitorado nacional, esses indispensaveis at-
tributos de independencia e altivez, sem
os quaes a famosa «soberania do povo» Esta maneira de encarar ,o problema
não tem significação alguma. de nossa reorganisação politica está em evi-
E um exemplo apenas entre mil; mas, dente antagonismo com o velho idealismo
este exemplo hasta para nos mostrar como dos «hdstor icos».
as grandes modificações da nossa vida po- Estes eram espír-itos deductivos, que
lítica escapam ao domínio exclusivo das partiam de certos postulados utcpícos e
reformas de caracter puramente constitu- delles extrahianu os elementos estructuraes
cional. Estas reformas no texto da Consti- do. seu systema político. Careciam do
tuição representarão apenas um dos meios sentido objectivo da realidade e nem jul-
da nossa reorganisação política, e, ainda gavam necessario po ssuíl-o. Tendo de or-
assim, meio subsidiario ou accessorío ; mas, gunisar uma Constituição para .0 Brazil ou
nunca meio principal e, muito menos ainda, para o Cambodge, para o povo inglez ou
meio unico. pura um kr áal da Hottentocia, criariam o
IlICSmOsysterna de governo, com as mesmas
p ças, as mesmas articulações, a mesma
ronstructura, o mesmo modo de funcciona-

[ 66 ,] [ 67 ]
o IDI!ALIS o DA CONSTITUIÇÃO
o IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO

( tes principios abstractos, nem nos constrín-


mente, OS mesmos freios, as mesmas val- ,gir dentro das estreitezas desse unílatera-
vulas de segurança: não lhe modificariam lisrno doutrinado. O nosso futuro legislador
nada, não alterariam siquer o tamanho da ronstituinte tem que possuir uma mentali-
cabeça de um parafuso - porque isto equi- dade mais ampla e mais illuminada, uma
valeria a comprometter a «belleza do regi- intelligencia mais realista e objectiva, uma
men» ou quebrar a «harmonia do systema». consciencia mais humana da relatividade
Ora, nós, os homens de agora, não dos systemas políticos, E, sobretudo, um'
podemos continuar a cultivar este ingenuo o conhecimento mais perfeito e completo da
estado d' alma de esthetas de Constituições. nossa realidade nacional, das nossas ídío-
O nosso ohjectivo não será mais a «har- syncrasias, das nossas falhas, das nossa in-
monia», nem a «helleza»; mas, sim a «co n- sufficiencias, da nossa condição de povo
veniencía» e a «adaptação». O que devemos em formação; de modo que, na elaboração
querer não são, regirnens bellos ou har- das suas reformas e na architectura do
monicos, mas sim regimens convenientes e novo systema político, possa - como o Je-
adaptados ao nosso povo. SUS, de Renan - «rester toujours prês de
Por isso mesmo, o problema político Ia nature». Isto é, antes de se mostrar ho-
do Brazil ha de ser resolvido com uma mem do seu templo, possa mostrar-se ho-
mentalidade diversa da mentalidade so- mem da sua raça e do seu meio.
nhadora dos «historícos», ou dos que lhes
continuam a tradição. Devemos, pois, rea-
gir, desde já, conlra esses dous preconcei-
tos do velho idealismo republicano: o pre-
conceito do poder das formulas escriptas
e o preconceito das reorganisações políticas
só possíveis por meios políticos.
Não nos podemos inspirar mais nes-

[ 69 ]
[ .68 1
,
OPINIÃO g GOVERNO

O ultimo movimento grevista dos mi-


neiros inglezes nos deixou ver, no segredo
das suas molas interiores, o mecanismo
da opinião ingleza - dessa opinião que
tem sido, ha cem annos, o embeleco dos
noss.os chamados espír itos Iíberaes. Elle
mostrou que o fundamento principal da
opinião britannica está no espirito de co-
operação e na solidariedade das classes.
Esta é que dá á opinião popular britan-
nica o seu caracter propriamente 'demo-
cratico, isto é, o seu poder coercitivo sobre
os detentores eventuaes dos apparelhos do
governo. Mesmo sem a revelação das ur-

[ 85 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO OPINIÃO E GOVERNO

nas, mesmo sem o voto, um grupo poderoso (em estado hibernante, esperando <O 1110-
de interesses, fortemente congregados, re- m~to para brotar, a semente .ou a gem-
presentando uma massa de auasi cinco mi- m Ia de um systemazinho eleitoral. Cada
lhões de homens, conseguiu' - pela forca li 1 tem o ,;seu - chocadinho, mimadinho,
exclusiva da sua solidariedade - impôr tr tadinho. E: de vel-os, bracejantes, ar-
a sua opinião ao poder organizado. dentes, gritarem a plenos pulmões: Or-
Donde se póde concluir que o voto ga tzetnos o volo! Saneemos o uotol
não é condição essencial para que a opi- .M alizemoso voto! E ficam nisto,
nião popular se possa manifestar e - o e I mitam-se a isto, e não sáem disto. Entre-
que é mais - írnpôr-se, ou fazer-se ou- talo, nenhum delles se lembra de gritar
vida e attendida. Eu avançarei mesmo que a lavra justa, a palavra verdadeira, aquil-
não seria absurdo imaginar-se a possibili- 1, rue devia ser gritado aos quatro cantos
dadede uma perfeita democracia funccío- paiz: Organizemos ia opiniãol
nando sem eleições ... Porque isto é que é o essencial.' De-
Os nossos políticos e publicístas, em .ocracia é o governo da opinião. Ora, não
grande maioria, parece que não pensam as- preciso genio para reconhecermos que o
sim. Para eIles tudo numa democracia re- te é apenas uma forma porque a opinião
side no Violo, depende do voto, resolve-se o povo se revela e se impõe ao Poder;
pelo ViOtO.Ha cem annos, não têm feito ou- as, não a f.orma unica, e nem sempre a
tra coisa senão organizar o voto, preparar o elhor forma, <ou a forma mais efficiente.
vot-o e ... corromper o voto. São votomanos, a muitas outras modalidades de expressão
votólatras e votóparos. Todas as vezes que a opinião popular, isto é, muitos outros'
pensam no problema da democracia, a pri- meios pelos quaes a opinião popular se
meíra idéa que lhes acode é o voto, (e mostra capaz de forçar o Poder a obe-
parece que não lhes acóde mais nada). decel-a.
Dentro da cabeça de cada um, ha sempre, N a Inglaterra grande numero de reíor-

[ 87 ]

)
I
o IDEALISMO. DA Co.NSTITUIÇÃo.
OPINIÃO. E Go.VERNo.

mas são realizadas sem nenhuma previa o mais bello caso daquillo que os políticos
manifestação eleitoral, apenas por sirrf les inglezes chamam a - pressure [rom uii-
acção cornpressiva, exerci da pela opin ão tiiout, a pressão. vinda do povo, a força
publica sobre o Parlamento. I
coercitiva da opinião popular, obrigando,
Em nossa historia temos tambem b 1- forçando, coagindo os detentores do Poder
los exemplos disto. Direi mesmo que os a obedecel-a.
nossos maiores movimentos de opiniã _ Mes :o agora, nós estamos vendo o
como o movimento abolicionista, por ex rn- governo, e não recuar, pelo menos revelar
plo - fizeram a sua carreira e imp ze- espirito de transigencia e mostrar-se pro-
ram-se ao Poder extra-eleitoralmente' , ue- penso a ouvir os reclamosda opinião, dean-
ro dizer: fóra da manifestação das ur as, te do movimento, aliás informe e inorga-
independentemente dellas.
nico, das nossas classes, productor-as contra
Realmente, o triumpho do movimen o imposto da renda. Se este movimento to-
abolicionista foi um legitimo triumpho
miar corpo e vencer (e' vencerá se houver
opinião publica; mas, esta opiniã« publi persistencia e solidariedade das classes
triumphou, não porque, por meio da f interessadas), estaremos deante de um
mosa «manifestação das urnas», eleges novo caso de pressure [rotti toitbouê, bôa á

expressamente uma camara abolicionista, maneira anglo-saxonía .: em que, indepen-


sim porque, no espaço que medeia entr
dentemente de qualquermnni!estação pe-
84 (fracasso do, pr.ojecto Dantas) e 88 (ad
las urnas, sem nenhuma renovação dos qua-
vento do, gabinete João Alfredo), consegui
dros dos p.oderes dirigentes, a nossa rudí-
fazer com' 'que um Parlamento hostil á mentarissíma opinião popular - pela sim-
idéa ábolicionista se visse moral e politi-
ples acção moral do seu protesto, expresso
camente coagido, a tornar-se um Parla-
por orqãos leqitimos - pôde coagir o Poder
mento fav:oravel á idéa abolícíonísta.
a ouvíl-a e a attendêl-a (1).
Foi este, por certo,em nossa historia,
(1) V. adeante i-> O poder da opinião.

[ 88 ] L 89 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

Democracia é isto. Como se vê, ella


póde perfeitamente realizar-se sem eleições
e mesmo sem eleitores. Eleições e eleitores
não são ooisas principaes numa democra-
cia; são meios para attingir o fim, - e não
são nem °meio unico, nem °
melhor dos
meios. O que é principal numa democracia
é a existencia de uma opinião organizada.

f
O PODER DA OPINIÃO
E' AS FONTES DA OPINIÃO

[ 90 ] [ 91 ]
o

,
PODEH DA OPINIÃO
E AS FONTES DA OPINIÃO

O principal numa democracia - já o


disse nas paginas anteriores ~ é a exis-
tenda de uma opinião organizada, de que
O> voto seja apenas uma manifestação es·
paçada: periodica e não principal. O mo-
do Ipjrincipal, mais significativo, mais effí-
ciente, d'e manifestação da opinião orga-
nizada é essa sorte de pressão moral exer-
oida pelas agitações populares, quando ra-
cionalmente conduzidas, como no caso da
campanha abolicionista, em que vemos a
opinião do povo dominar a opinião do Par-
Iamento recalcitrante pela torça exclusiva

. [ 93 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO O PODER DA OPINIÃO

de uma pressão moral e não por meio de


c-
de Ruy, com a sua eloquencia e a sua
qualquer manifestação eleitoral. dialectica - e isto nos acabou por impellir
Outros citam também. como exemplo decisivamente para o lado da velha nação
desta pressão popular, o movimento da In- latina e dos seus àlliados. O governo teve
dependencia, o 7 de Abril, a Maioridade, a que ceder a esta pressão" poderosa da opi-
Federação e a Republica. nião publica - e a política da neutralida-
Não sei si seria muito exacto conside- de encarnada em Lauro Muller cedeu D
rarmos puras victorias da opinião a Re- lagar po litíca da guerra
á encarnada em
publica e a Federação (1); mas, o 7 de Abril Nila Peçanha, I
e a Independencia podem ser considerados É um facto de hontem; mas toda a
como, taes, 'apesar das apparencias milita- nossa historia política está cheia de factos
ristas do prinreiro. eguaes.
Poderíamos citar outro exemplo, este Eu tiro então de tudo isto uma con-
muito recente, do, poder cornpressivo da clusão 'muito. differente do jui.zo que todos
opinião: a nossa entrada na grande guerra. costumamos fazer das relações entre a opí-
O nosso governo estava recalcitr aute em nião e :0 governo em nosso paiz. Este juizo
avançar este passo. Houve, porém, um largo corrente é de que os nossos governos an-
movimento da opinião em favor da nossa dam sempre divorciados da opinião. Ora, eu
participação. Os jorn aes alliadophilos, que vejo justamente o' contrario disto: os nossos
eram quasi toda a nossa imprensa, explo- governos (e quando digo os nossos governos
ravam com admiravel insistencia esse fun- entendo o longo periodo da nossa histo ria
do nativo de sympathia que temos pela independente) se têm' mostrado de uma ex-
França. Por fim, deu-se a intervenção trema sensibilidade ás manifestações da opi-
nião.
Ha apenas uma condição a estabelecer:
(1) V. Oliveira Vianna - O oeeaso do Im-
perio, cap, I e III. ",é. que essa sensibilidade opinião só se dá
á

", .::•.... [ '95 ]


[ 94 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
O PODER DA OPINIÃO

quando esta opinião se revela de uma ma- dahi -- e só excepcionalmente e extraordi-


neira real mente p.opular, através das suas nariamente vem de outras fontes.
fontes legitimas. Deste systema de fontes da opinião, eu
Escrevo «fontes legitimas» - e faço° afasto, para argumentar, as maiorias par-
lamentares e a imprensa governista - por-
de proposito ; porque o centro da questão
que amb'as, representando o pensamento
está ahi. No Brasil, só ha até agora para
dos governos, não figuram como agentes
a opinião publica duas fontes de jacto con- modííícadores deste pensamento. Ficam' em
tinuo - a imprensa e os partidos políti- campo apenas estes dois elementos: a írn-
cos. Todas as outras são de jacto inter- prensa opposícionísta e as minorias parla-
mittente, actuando, ás vezes, com interval- mentares. Estas é que passam a representar
los enormes. então a «opinião do povo» - e são ellas que
Em 'boa verdade, a sirnpâicidade é forçam por dobrar á sua feição o pensa-
ainda maior e podemos dizer que só mento dos governos.
ha realmente uma fonte da opinião: Conseguem? Não. Por que ? Porque,
a dos partidos políticos; porque' a imprensa aos ollios dos qooernos, não são fontes le-
é antes uma expressão da opinião dos par- gitimas da opinião - e sim f.ontes suspei-
tidos do, que uma fonte Independente e tas, inspiradas nos despeitos, nas animosi-
própria. Ora, os partidos manifestam a sua dades e nos odios partidarios.
opinião de duas formas: pelas maiorias e . Os governos têm razão em pensar as-
minorias legislativas e pela imprensa go- sim?
vernista e opposionista, Neste mecanismo Não me compete verifical-o. O que sei
simplicissirno está contido todo o nosso sys- é que elles pensam assim - e, por iS8;OI
tema de fontes da opinião, da especie jacto mesmo, a estas revelações da opinião elles
continuo. Todo o dynamismo por assim não se julgam no dever de attendel-as: para
dizer quotidiano da nossa democracia vem estas a sua insensibilidade é manifesta; não

[ 96 J [ 97 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

ha negal-o. Todas as vezes, porém, que a


estes movimentos da opinião, de car acter
estríctamente partidario, ajuntam-se outros
movimentos .da opinião, vindos de outros
campos da vida social ou publica, os nossos
governos tornam-se, ao contrario, de uma
extrema sensibilidade pressão· popular .-
á

e cedem Iacil e rapidamente, como já vi-


mos.
O grande mal está justamente nisto, O PAPEL POLITICO
está .ern que todas essas fontes da opinião DAS CLASSES ECONOlVIICAS
popular, de caracier não pariidario, agem,
em nossa democracia, sempre com' uma
feição inlermittente, descontinua, irregular,
excepcional. Todo o problema está em tor-
nal-as permanentes; quero dizer: em tornal-
as ---'-fontes de jacto oontinuo (1).

(1) v. adeante:- Opinião e governo.

[ 98 ]
[ 99 1

____________________________
-===~~~====~~'
I
I l
!
!
1
I

1,

I,I
o PAPEL POLITICO
f
DAS CLASSES ECONOMICAS

Ha um anno, pelos meiados de 1926,


assistimos um acontecimento da maior si-
gnifícação no ponto de vista do desenvolvi-
mento do espirito democratico: quasi si-
multaneamente, '0 Cornmercío e a .Indus-
tria de São Paulo, pelos seus orgãos le-
gitimamente representativos, realizaram
duas conferencias, urna no' Rio e outra na
capital paulista, respectivamente com o pre-
sidente da Republica e com o presidente do
Estado, para o fim' de assentarem' as medi-
das que estes deviam tomar em favor dos
interesses daquelles, fortemente abalados

[ 101 ]
O PAPEL POLITICO DAS CLASSES ECONOMICAS
o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

para levar o governo a modificar a sua


pela grave crise de numeraria em que então aítitude.
se debatia a praça. Como realizaram esteobjectivo? O
E preciso observar que esta grave cri- .•.. meio de que se utilizaram é uma prova da
se de numerario resultou da acção do go- sensivel evolução por que está passando a
verno sobre o nosso apparelhamentomone- mentalidade das nossas classes econornícas,
tarío, sobre os meios em que se exercita. a o-rl melhor, a mentalidade dos seus grandes
actividade bancaria do paiz. Esta acção d.o leaders.
governo obedecia a un;a certa política, a Logicamente, este movimento junto ao
um certo plano, maduramente estabelecido Poder devia caber aos que, pela ficção
nos bastidores da administração geral. do regimen representativo, oostumamos
Ora, posta em acção, esta politíca co- chamar «os representantes do povo>. Pois
meçou a lançar a perturbação no campo bem, as duas grandes classes producloras,
das nossas actividades econornícas. Os in- attingidas assim pela política do governo,
teresses da lndustria e do. Commercio e, dispensaram-se, quasi sem dar por isto,
pela repercussão destes, os interesses da destes interrnediar.ios naturaes entre ellas
Agricultur-a; começaram a se resentir della c o Poder - e foram directamentc ao Po-
e entraram a atravessar unrcyclo de alar- der expor-lhe as crúas realidades da situa-
mante gravidade, de qJle as successivasIãl- - ção e, ao mesmo tempo, suggerir um plano
lencias e eoncordatas 'preventivas, algumas de medidas necessarias á conjuração da
de empresas poderosas, eram claros symp- crise. Os dois presidentes as ouviram com
tomas denunciadores. attenção e benevolencia, acceitaram, num
.Era preciso então levar o governo a livre debate, os alvitres dos interessados,
mudar de rumo, a quebrar a sua directriz, que eram alvitres de technicos e de enten-
. em summa,' a renunciar a sua política fi- didos - e deste entendimento amistoso re-
'..nanceira. Os grandes. interesses economicos sultou a promessa de uma 'sér-ie de medidas
.tinham. que agir com' presteza e energia ..

[ 103 ]
[102 ]
!
I
!
o IDEALISMO DA CONSTiTUIÇÃO O PAPEL POLITiCO DAS CLASSES ECONOM.ICAS

de emergencia, que importavam, entretan- politicas e gerando os parlamentos moder-


to, numa franca modificação da politica fi- nos.
nanceira até aquelle momento seguida pelo Estes, porém, depois de um cyclo de
governo. esplendor e força, começam evidentemente
Este movimento das classes industriaes a entrar numa phase de evidente involu-
e cornrnercíaes não parece ter sido conside- ção. Passaram a ser apenas a expressão
rado na sua verdadeira significação; mais, dos interesses dos grupos partidarios, isto
para mim, elle abre uma phase nova na é. daquelles grupos sociaes, cuja razão de
vida da nossa rudimentar democracia, as- ser é a conquista do Poder.
sígnalao começo de uma, profunda transfor- Os grandes interesses nacionaes, taes
mação dos nossos costumes politicos, Eu corno .os interesses da vida economica, estes
vejo nelle o primeiro passo Piara a consti- estão procurando outros orgãos de expres-
tuição, com caracter permanente, junto ao são mais competentes, mais efficazes, mais
Poder, dos orgãos co nsultivos das nossas representativos do que as corporações es-
classes econoinicas. Tudo está em' reiterar trietamente políticas.
este expediente, tornal-o uma praxe, fixal-.o E um movimento se está operando em
em costume, organízal-o em tradição. lodo a mundo e que, aqui, também se co-
meça a revelar, sem nenhuma outra causa
Quem estuda em Guizot as origens do
explicativa, sinão a propria força das cir-
regimen parlamentar, verá que os parla-
cumstancias, a força das proprias condições
mentos começaram assim --'- como simples
do meic e do momento. Os parlamentos
delegações de classes sociaes junto do Po- deixam ver cada vez mais a sua inutilidade,
der, primeiro com' caracter excepcional, de- a sua ímprestabilidade como orgãos auxi-
pois com caracter periodico e permanente. hares do governo politico das sociedades.
O expediente do momento normalizou-se, Em compensação, cada vez mais se genera-
incorporando-se ao quadro das instituições liza a praxe do entendimento directo do go-

[. 104 ] [ 105 ]
o IDEALISMO DA CONSTITUiÇÃO O 1"APEL POLITICO DAS CLASSES ECONOMICAS

veruo com os orgãos representativos' dos Os homens de governo, que querem fazer
gruudes interesses sociaes. Estes interesses administração e não politica, não encon-
sociaes, que, até então, se entendiam com o tram nelles nenhuma fonte segura e sadia
poder por interrnedio do Parlamento, dos de orientação, capaz de norteal-os na ges-
«mandatários do POVO», como se .dizia (e tão dos negócios publicos.
penso que ainda se diz ... ); estes Interesses Esta decadencia dos parlamentos e a
agora já passam a procurar o proprio Po- crescente ímportancía das delegações de
der, a debater, frente a frente com elle classes nos conselhos do governo 'têm a sua
num ambiente de perfeita cordialidade os explicação na propria estructura das socie-
seus direitos, a expor as suas necessidades dades modernas. O advento da grande in-
a suggerir-lhe os seus planos de acção, corn dustria. IOS modernos processos Je negocies,
Um! conhecimento de causa que nenhum dos as grandes concentrações cornmerciaes, a
c?amados «representantes do POVO» pode- crescente industrialização do trabalho agri-
na, em caso algum, possuir. cola, elc., deram aos interesses cClonomicos,
Os homens de Eslado, verdadeiramente que são os interesses vilaes da soclcdadc,
e?lpenhados em realizar a prosperidade na- uma complexidade tal de organização e de
Cl~nal, em .corresponder confiança,
á do technica que elles se tornaram, por isso mcs-
p31Z, em deixar de si alguma causa perdu- mo, logicamente, fóra do alcance das cor-
ravel e fecunda, encontram nestas delega- por ações puramente políticas, cujos elemen-
ções de classes,que, em torno delles, se tos ,componentes só conhecem bem' o mane-
v ão organizando a mais preciosa font~ de jo dos interesses eleitoraes e só têm real-
inspirações á sua actividade adruiuistrativa. mente contacto com os meios partidarios.
Os parlamentos vão sendo insensivelmente O que devemos desejar é que as nossas
P?SloS de lado e não sei si seria exaggerado classes sociaes, não só as economicas como
dizer que se estão tornando nrogressi va- todas as outras, comprehendam essas rea-
mente um apparelho inutii e dispendioso. lidades do nosso tempo e, a exemplo do

[ 106] ( 107 ]
o IDEALISMO DA CONSn:!-IlçÃO
- .: ~~ ~::'" '!, .•••:~, .

que acabam de fazer as classes industriaes


c commerciaes, saibam collocar-se, pela sua
organização e pela sua solidariedade, á al-
tura da nova missão politica que as espera.

ORGANISAÇAO DEMOCRATICA
DAS CLASSES ECONOMICAS

I
t

[ 109 ]
[ 108] [

I
i,

ORGANISAÇÃO DEMOCRATICA DAS


CLASSES ECONOMICAS

No manifesto do Partido Democratico, !


recentemente fundado em São Paulo, figura
come um dos itens do seu programma o I
seguinte ponto:
- «3.0 Yuiâicar para a Laooura; para
o Commercio e piara a, Inâustria a inilueti-
da a quem tem direito, por sua importan-
cia.ria direcção dos neqocios publicos».
Eu já tive occasião de mostrar a si-
tuação real das nossas grandes classes eco-
nornícas defronte das organizações partida-
rias e políticas do, paiz. Disse, que, se a
Lavoura, O' Cornmercío e a Industrta
não tinham influencia na direcção dos nego-

[ 111 ]
a IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
..
OROANIZAÇÃO DAS CLASSt:S ECONOMICAS

cios publicas, a culpa não era de ninguém


verno: - é apresentarem-se deante delle
mais senão dessas ires grandes classes pro-. corno uma massa de interesses conscientes
ductoras (1). , . I
de si mesmos, solidarios e unidos como
. a modo, por que está redigido 03.0' as rnoleéulas de um bloco - e isto' todos
Item do ~)l'ogramma democratico, aquelle nós sabemos que não se dá. Os grandes pro-
emprego da palavra - vindicar, tudo dá príetarios territoriaes do paiz - os que
a entend~r que a realidade é outra: parece cultivam o café, os que cultivam a canna,
querer dizer que a Agricultura, Ü' Cornmer- os que cultivam' o algodão, os que cultivam
cio e a Industria estão sendo usurpados ou o cacau, os que criarm rebanhos nos carras-
constrangidos no seu direito de intervir nos caes do Norte, nos campos do Centro, nas
negocias publicos, de influir neIles de diri- planicies do Sul - nenhum delles sabe o
gIL-OS
.'j
- Q, que nao
-
me parece inteiramen-
'
que é solidariedade de classe, nenhum delles
te exacto.
sente o valor dessa solidariedade, .nenhum
a que é inteiramente exacto é que se delles parece ter percebido a força Iormí-
aquellas tres classes productoras não têm davel que ella encerra, a sua incomparável
nenhuma influencia no governo é simples- repercussão sobre a vida eccnomíca, so-
m_ente·porque não querem ter, ou porque bre a vida social e sobre a vida politica:
nao sabem ter, ou - o que é mais certo estão todos atravessando uma espécie de
- porque não, estão em condições de ter. phase atomistica, tendo. apenas entre si a
a Caso não, é propriamente de esbulho ou relação material da proximidade ou da cou-
de injustiça; o caso é antes de incapacida- .tiguidade, mas inteiramente indifferentes
de ou de negligencia. Porque para estas uns aos outros no tocante aos interesses
classes só ha um' modo de influirem no e<10- communs - aos interesses de classe.
Não, muito. differente desta é a situa-
(1) v. capo anterior; O idealismo da Cons- ção do Cornmercio e da Industria. Uma e
tituição, § VII.
outra, embora um pouco menos que a agri-

[ 112 ] [ 113 ] 8
'O IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO

cola, também são classes dissociadas- clas-


ORGANIZAÇÃO DAS CLASSES ECONOMICAS
i
'~

que este pugilo de batalhadores poderia


ses em estado atornistico. Dahi para todas as
prestar ao Brasil, não, seriaprop~iamente
tres a nenhuma influencia no governo poli-
o bater-se pela adopção do voto secreto -
tico do paiz. No primeiro ensaio deste vo-
pura miragem destinada a desvanecer-se
lum'e - O idealismo da Constituição, eu
como todas as outras miragens anteriores.
pens-o ter demonstrado este ponto de modo
O que a nova aggremiação partidária pode-
írrespondivel.
ria fazer de mais benemerito .seria uma
O 'que presumo é que 'os organizadores
obra, não de acção política, -rrras de acção
do Partido Democratíco estão reflectindo
social-e seria isto: impellir as classes pro-
apenas o ambiente paulista, onde as classes
ductor as do Brasil no sentido .da solidarie-
productoras, direi melhor, onde a classe
dade e da organização,
agrícola, composta dos poderosos senhores
O dia em que cada uma dessas classes
de latiíundios caféeiros, parece ter a possi-
tiver apprendido a arregimentar-se para a
bilidade de tornar-se, de uma hora para
sua propria defesa; o dia .em que cada uma
outra, desde que queira, uma possante or-
adquirir a viva consciencia da solidariedade
ganização política perfeitamente autonoma,
dos seus interesses geraes; o. .dia em que
isto é, capaz de Iíbertar-se.das pequenas ag-
em! cada Iocalidade do Brasil .houver uma
gremíações políticantes locaes, que lhe para-
associação agrico la, uma associação com-
sitam a seiva e o prestígio. Seria, porém,
mercial, uma associação industrial, e .em
illusão suppôr esta possibilidade extensível
que todos esses pequenos nodulos .de soli-
a' todo o Brasil. Fórade São Paulo, de nor-
dariedade profissional se acolchetarem, se
te a sul, o estado atomístico, de que falei
syndicalizarem, se congregarem em vastas
acima, domina por inteiro a .estructura de
Federações Estaduaes ou Nacionaes; neste
cada uma das nossas tresgrandes classes
dia teremos preparado a m atería.príma dos
econornicas. verdadeiros partidos pollticos. Errrquanto
E por isso que a obra mais benemerita,
não conseguirmos isto, os partidos, ' que
,I
( 114 ]
[ 115 ] I
ORGANIZAÇÃO DAS CLASSES ECONOMICAS

o IDEALISMO DA CONSTITUIÇÃO
immensamente superior ao da sua missão
politica.
que~ram gravitar em torno de programm'as Eu não. quero, discutir aqui se é ou
e nao em lorno de nesso as, serão sempre não é possivel levar as nossas classes eco-
puras creações artificiaes e, por isso, nom'icas á pratica da solidariedade . Direi
ephemeras. Todas as 110SS2S tentativas de apenas que, se esta solidariedade puder um'
organização partidaria têm fracassado jus- dia ser conseguída, poderemos esperar tran-
tamente porque Ines tem faltado, .sempre quillos o advento da Democracia no Bra-
esta trama viva das organizações .de elas- sil. Mas direi também que, se não fôr pos-
se, que é a base anatomica, o tecido cellu- sível realizar esta solidariedade, é preciso
lar dos grandes organismos partidarios in que renunciemos então a esperança de as-
glezes e americanos. sistirmos o advento da Democracia no Bra-
O 3.0 item do programma democrati- sil. Porque a pedra de toque da possihilida-
co deveria ser redigido assim, de uma ma- de do governo do povo pelo povo em nosso
neira compendiosa, mas muito mais pr oxi- paiz (é este tambem um dos pontos do
ma da verdade do que a primeira: programma do novo Partido), está nisto:
-~ «3.° Pugnar, por iodos os meios ca- na capacidade das nossas classes producto-
pazes de convicção e arrasiamento, junto r as de organizarem-se economicamente.
a Lavouras 'o Conunercio e a Industria Sem isto, o melhor é contentarmo-nos
para que estas classes productoras realizem com o que está: - oom o governo do povo
o • mais_. rapidamente possioel a sua oroa- por olygarchias broncas, que todos os es-
;:J
nizaçao economica e profissional, de mo- pir itos capazes de idealidade deverão pu-
do Cl poderem exercer a influencia a que gnar para transformar em olygarchias es-
têm direito, pela sua importancia, nos nego- clarecidas.
cias publicas».
O Partido Democratico ficaria assim
com uma missão social, cujo. exito seria I
[ 117 ] 'I
[ 116 ]

Você também pode gostar