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Blanchot A Escritura Do Desastre
Blanchot A Escritura Do Desastre
A ESCRITURA DO DESASTRE
O desastre arruína tudo deixando tudo no estado. Não atinge esse ou aquele, « eu»
não estou sob sua ameaça. É na medida em que, poupado, deixado de lado, o
desastre me ameaça que ele ameaça em mim o que está fora de mim, um outro que
não eu que devém passivamente outro. Não há alcance do desastre. Fora de alcance
está aquele que o desastre ameaça, não se saberia dizer se é de perto ou de longe – o
infinito da ameaça de uma certa maneira rompeu todo limite. Estamos à beira do
desastre sem que possamos situá-lo no porvir: ele é, antes, sempre já passado, e, no
porvir se o desastre não fosse o que não vem, o que impediu toda vinda. Pensar o
Quando o desastre sobrevém, ele não vem. O desastre é sua iminência, mas, pois que
desastre sempre já o retirou ou dissuadiu; não há porvir para o desastre, como não há
Ele não crê no desastre, não se pode crer no desastre, que se viva ou que se
morra. Nenhuma fé que esteja à sua medida, e ao mesmo tempo uma espécie de
N. t. Usaremos em itálico o “se” toda vez que ele tiver a função de pronome apassivador
ou índice de indeterminação do sujeito, a fim de diferenciá-lo de sua função de pronome
reflexivo.
desinteresse, desinteressado do desastre. Noite, noite branca - assim o desastre,
Escrever seria, no livro, devir legível para cada um, e, para si mesmo,
quando se interrompeu a relação com o acaso de cima), ele indica a queda sob a
da lei não codificável: aquilo a que somos destinados sem ser concernidos? O
desastre não tem olhos para nós, ele é o ilimitado sem olhar, o que não pode se
Nada é suficiente ao desastre; o que quer dizer que, da mesma maneira que a
destruição em sua pureza de ruína não lhe convém, da mesma maneira a idéia de
totalidade não saberia marcar seus limites: todas as coisas atingidas e destruídas, os
deuses e os homens reconduzidos à ausência, o Nada no lugar de tudo, é demasiado
e demasiado pouco. O desastre não é maiúsculo, talvez ele torne a morte vã; ele não
o suicídio libera (mas a consciência da ilusão não a dissipa, não nos deixa nos
desviar dela). O desastre do qual seria preciso atenuar – reforçando-a - a cor negra,
nos expõe a uma certa ideia da passividade. Somos passivos em relação ao desastre,
movimento interior, não nos permite muito menos jogar com essa questão: o que tu
imóvel do que não foi traçado – o imemorial talvez; lembrar-se por esquecimento, o
fora novamente.
relação a toda visão, todo conhecer. A menos que o conhecimento não nos porte, não
nos deporte, sendo conhecimento não do desastre, mas como desastre e por desastre,
golpeados por esse conhecimento, entretanto não tocados, face a face com a
reconhecer que o esquecimento não é negativo ou que o negativo não vem após a
afirmação (afirmação negada), mas está em proporção com o que há de mais antigo,
o que viria do fundo das idades sem jamais ter sido dado.
É verdade que, em relação ao desastre, se morre demasiado tarde. Mas isso não
nos dissuade de morrer; isso nos convida, escapando ao tempo em que é sempre
demasiado tarde, a suportar a morte inoportuna, sem relação com nada senão o
insuficiente.
Não direi que o desastre é absoluto; ao contrário, ele desorienta o absoluto, vai e
fora, como uma resolução irresistível ou imprevista - que nos viria do além da
decisão.
Não és tu que falarás; deixa o desastre falar em ti, que seja por esquecimento ou por
silêncio.
traço do desastre é que não se está nele jamais senão sob sua ameaça e, como tal,
ultrapassagem ao perigo.
Não sei como cheguei a este ponto, mas pode ser que nele chego ao pensamento que
não-ser. Ele não é advento (o próprio do que chega) – isso não chega, de sorte que
eu, nem por isso, chego mesmo a esse pensamento, exceto sem saber, sem a
apropriação de um saber. Ou então, ele é advento do que não chega, do que viria
sem chegada, fora do ser, e como que por deriva? O desastre póstumo?
Não pensar: isso, sem retenção, com excesso, na fuga pânica do pensamento.
Ele dizia para si mesmo: tu não te matarás, teu suicídio te precede. Ou então: ele
O espaço sem limite de um sol que testemunharia não para o dia, mas para a noite
humanos, até a si, nada senão um cômputo exato de puros motivos rítmicos do ser,
O desastre não é sombrio; ele liberaria de tudo se pudesse ter relação com alguém,
gaio saber. Mas o desastre é desconhecido, o nome desconhecido para aquilo que no
desastrosa do fora.
Uma repetição não religiosa, sem lamento nem nostalgia, retorno não desejado; o
Não há solidão se esta não desfaz a solidão para expor o só ao fora múltiplo.
sem desolação, na passividade de um deixar-ir que não renuncia, não anuncia, senão
o impróprio retorno. O desastre, nós o conhecemos talvez sob outros nomes talvez
todo.
desastre.
Ele não está excluído, mas como alguém que não entraria mais em nenhuma
parte.
Penetrado pela passiva doçura, assim ele tem como que um pressentimento –
fraterna. O desastre seria de mais, em demasia, excesso que não se marca senão em
impura perda.
pensamento do fora. Não temos acesso ao fora, mas o fora sempre já nos tocou na
de desastre.
«Mas não há, aos meus olhos, grandeza senão na doçura» (S.W2.) Direi antes:
nada de extremo senão pela doçura. A loucura por excesso de doçura, a loucura
doce.
significa que o desastre, como força de escritura, se exclua dela, seja fora de
escritura, um fora-do-texto.
fixado, parado num presente. O comentador - crítica, elogio - diz: é isso que tu és,
desarranjo.
a morte: nos dois casos, nós nos aproximamos de um limiar perigoso, de um ponto
Schlegel: aspiração a se dissolver na morte: «O humano é por toda parte o mais alto,
e mesmo mais alto que o divino». Passagem ao limite. Resta possível que, desde que
escrevemos e por tão pouco que escrevamos – o pouco é somente em demasia -, nós
está em jogo.
Para Novalis, o espírito não é agitação, inquietude, mas repouso (o ponto neutro sem
imortalidade» deve trabalhar para o cumprimento do zero onde alma e corpo devêm
agora, mas o prazo da não-razão, o «ele será louco amanhã», loucura da qual não se
o homem das lágrimas, que não se retém mais, que se relaxa, sem palavras ele
também, desnudado de poder, mas mesmo assim mais próximo da palavra que corre
e escorre, do que da escritura que se retém, mesmo que fosse para além da maestria.
Nesse sentido, não há silêncio senão escrito, reserva dilacerada, entalhe que torna
impossível o detalhe.
sulco, da sulcagem, pertencendo ao fora. Não é suficiente dizer (para dizer o não-
poder): tem-se o poder, com a condição de não fazer uso dele, pois essa é a definição
N. t. Palavra alemã que significa “poder” na expressão nietzschiniana “Will der Macht”
(Vontade de poder). Etimologicamente, Macht deriva do verbo “machen” (fazer).
da divindade; a abstenção, o distanciamento da manutenção, não é suficiente, se ela
a maestria. Anelo (por exemplo) um psicanalista a quem o desastre faria sinal. Poder
coisa (de muito importante), o que quer dizer ao mesmo tempo, isso não saberia ser
da ordem do que chega, nem da ordem do que importa, mas, antes, exporta e
deporta. A repetição.
Entre certos « selvagens » (sociedade sem estado), o chefe deve provar sua
chefe não é dita para ser escutada – ninguém presta atenção à palavra do chefe, ou
antes, finge-se a desatenção; e o chefe, efetivamente, não diz nada, repetindo como
primitiva responde essa palavra vazia que emana do lugar aparente do poder? Vazio,
mesma que é o lugar do poder. O chefe deve se mover no elemento da palavra, quer
palavra vazia (não vazia, tradicional, de transmissão) que ele deve à tribo, é a dívida
resposta; há questão, e nada que possa ser dito, mas somente a dizer.
alguma saberia te atormentar? » Não sou o centro daquilo que ignoro, e o tormento
O desejo: faça com que tudo seja mais que tudo e permaneça o tudo.
Escrever pode ter ao menos esse sentido: usar os erros. Falar os propaga, os
Escrever: recusar escrever - escrever por recusa, de sorte que seja suficiente que se
lhe peça algumas palavras para que uma espécie de exclusão se pronuncie, como se
ausência.
Solidão sem consolação. O desastre imóvel que, no entanto, se aproxima.
Como poderia haver um dever de viver? A questão mais séria: o desejo de morrer
seria demasiado forte para se satisfazer com minha morte como com aquilo que o
esgotaria, e ele significa paradoxalmente: que os outros vivam sem que a vida lhes
seja uma obrigação. O desejo de morrer libera do dever de viver, quer dizer, tem
esse efeito de que se vive sem obrigação (mas não sem responsabilidade, a
A angústia de ler: é que todo texto, por tão importante, tão agradável e tão
interessante que seja (e quanto mais ele dá a impressão de sê-lo), é vazio – não
fato de que ele crê que se pode mostrar lá onde não se poderia falar. Mas, sem
porque nós o desejamos. Escritura (ou Dizer) precedendo todo fenômeno, toda
Não escrever – que longo caminho antes de chegar a tal ponto, e isso não é jamais
seguro, não é nem uma recompensa nem um castigo, é preciso somente escrever na
incerteza e na necessidade. Não escrever, efeito de escritura; como uma marca da
passividade, um recurso da desgraça. Quantos esforços para não escrever, para que,
Não escrever: a negligência, a incúria não são suficientes para isso; a intensidade
Ele põe toda sua energia para não escrever, para que, escrevendo, escreva por
a espera do não-poder.
Reportar-se ao desconcerto.
Quando escrever, não escrever, é sem importância, então a escritura muda – que ela
Para além da seriedade, há o jogo, mas para além do jogo, procurando aquilo que
engana o adversário: o gratuito, ao qual não se pode se esquivar, o casual sob o qual
transcendental ou formal, nadificar-se para salvar sua alma (ou o saber, estando
embora isso seja mais ambíguo, a um «Eu não posso escrever» que na verdade
sob a forma de sua perda. Não escrever sem poder, o que supõe a passagem pela
escritura.
Sem certeza, ele não duvida; ele não tem o apoio da duvida.
despreocupados a respeito das sequências que pode ter para nossa vida esse
pensamento mesmo, ele afasta toda idéia de fracasso e de êxito, toma o lugar do
A questão que repousa sobre o desastre já lhe pertence: ela não é interrogação, é
prisma, demanda, chamada de socorro; o desastre chama pelo desastre para que a
mantendo o medo.
O desastre: contratempo.
insubstituível, como se eu não devesse faltar a ela, sempre me retirando daquilo que
me tornaria único: não sou indispensável, não importa quem seja, em mim, chamado
pelo outro como aquele que lhe deve socorro – o não-único, o sempre substituído. O
outro é, ele também, sempre outro, entretanto se prestando a um, outro que não é
nem este nem aquele e, todavia, a cada vez, o só, a quem devo tudo, inclusive a
A responsabilidade da qual sou encarregado não é a minha e faz que eu não seja
somente de minha parte voluntária, mas de meu poder de ser paciente: se eu posso
ser paciente, é que a paciência não usou em mim esse eu [moi] onde eu me retenho.
A paciência me abre de uma parte a outra até a uma passividade que é o «passo do
totalmente passivo», que abandonou, portanto, o nível de vida onde passivo seria
somente oposto a ativo: da mesma maneira que tombamos no fora da inércia (a coisa
inerte que padece sem reagir, com seu corolário, a espontaneidade viva, atividade
puramente autônoma). «Sê paciente». Quem diz isso? Ninguém que possa dizê-lo e
passividade do morrer pela qual um eu [moi] que não é mais eu [moi] responde pelo
Pela paciência, tomo a cargo a relação ao Outro do desastre que não me permite
[moi], se perder na outra noite em que precisamente a noite opressora, vazia, para
relação com o outro o assediasse com sua ausência, com seu infinito longínquo, era
temporária.
entre ser e não ser alguma coisa que não se cumpre, chega, entretanto, como tendo
fragmentário.
A passividade: não podemos evocá-la senão por uma linguagem que se subverta a
si mesma. Outrora, eu chamava pelo sofrimento: sofrimento tal como eu não podia
não é portado (menos ainda vivido) no presente, é sem presente, como é sem
começo nem fim: o tempo radicalmente mudou de sentido. O tempo sem presente, o
eu [moi] sem eu [moi], nada do qual se possa dizer que a experiência - uma forma
Mas a palavra sofrimento é por demais equívoca. O equívoco não será jamais
dissipado, já que, falando da passividade, nós a fazemos aparecer, mesmo que seja
essa palavra que não é senão um duplo de subitamente, a mesma palavra esmagada
limite do cognoscível e designam uma face oculta da humanidade, não nos falam
quase em nada daquilo que buscamos entender deixando se pronunciar essa palavra
desconsiderada: passividade.
Há a passividade que é quietude passiva (figurada talvez por aquilo que sabemos
dos traços pelos quais ele é infiel: não somente o discurso é ativo, ele se projeta, se
desenvolve segundo as regras que lhe asseguram uma certa coerência; não somente
ele é sintético, respondendo a uma certa unidade de palavra respondendo a um
caracteres que não podem se dizer da passividade, mas há mais: o discurso sobre a
afastado da unidade, não saberia dar lugar a nada que apareça ou se mostre, não se
debaixo daquilo que se pode anunciar dela, mesmo que seja a título provisório.
De onde resulta que, se nos sentimos impelidos a dizer alguma coisa da passividade,
falar dela bem como ao nosso poder de fazer-lhe a prova (de prová-la), se põe ou se
depõe como aquilo que interromperia nossa razão, nossa palavra, nossa experiência.
O que é estranho, é que a passividade não é jamais bastante passiva: é nisso que
formulação, mas parece que há nela como que uma exigência que a chamaria para
sempre chegar aquém dela mesma - não passividade, mas exigência da passividade,
da marcha), esse jogo semântico nos dá um deslizamento de sentido, mas nada a que
voluntária, se exprime uma decisão, mesmo que negativa, ela não permite ainda
o nó da recusa que se torna sensível pelo inexorável «Eu preferiria não (fazê-lo)» de
Bartleby o escrivão, uma abstenção que não teve que ser decidida, que precede toda
decisão e que é mais que uma denegação, mas, antes, uma abdicação, a renunciação
intervenção dialética: caímos para fora do ser, no campo do fora onde, imóveis,
A passividade é sem medida: é que ela desborda o ser, o ser na ponta de ser - a
Très-Haut) que revém dispersando pelo retorno o tempo presente em que ele seria
traços comuns: o anonimato, a perda de si, a perda de toda soberania, mas também
paciente.
N. t. Referência ao romance Le Très-Haut, do próprio Maurice Blanchot.
Na paciência da passividade, sou aquele que qualquer um pode substituir, o não-
indispensável por definição e que, todavia, não pode se dispensar de responder por e
refém de fato (como fala Levinas), que é a garantia não consentidora, não escolhida,
de uma promessa que ele não fez, o insubstituível que não detém seu lugar. É pelo
outro que eu sou o mesmo, o outro que sempre me retirou de mim mesmo O Outro,
se ele recorre a mim [moi], é como a alguém que não é eu [moi], o primeiro a vir ou
o último dos homens, em nada o único que eu gostaria de ser; é nisso que ele me
(A responsabilidade de que estou encarregado não é a minha e faz com que eu não
seja eu [moi].)
Se, na paciência da passividade, o eu [moi] sai do eu [moi] de tal sorte que, nesse
fora, lá onde falta o ser sem que se designe o não-ser, o tempo da paciência, tempo
da ausência de tempo, ou tempo do retorno sem presença, tempo do morrer, não tem
mais suporte, não encontra mais alguém para portá-lo, suportá-lo, por qual
tempo pode ser marcado, sem que essa marca o torne presente, o proponha a uma
Na relação de mim [moi] a Outrem, Outrem é aquilo que eu não posso atingir, o
lesa, pesa sobre mim [moi], me separa de mim [moi], como se a separação (que
me obriga não menos do que ele não me contraria ao me fazer responder por seus
crimes, ao me encarregar de uma responsabilidade sem medida que não saberia ser a
minha, já que ela iria até a «substituição». De tal sorte que, segundo essa visão, a
relação de Outrem a mim tenderia a aparecer como sadomasoquista, se ela não nos
fizesse tombar prematuramente para fora do mundo - do ser – onde somente normal
Mesmo, como o Mesmo substitui o Outro por si, é em mim doravante - um eu [moi]
marcam, o que conduz a essa alta contradição, a esse paradoxo de um alto sentido: é
que lá onde a passividade me descobre e me destrói, ao mesmo tempo estou forçado
a uma responsabilidade que não somente me excede mas que não posso exercer, já
que não posso nada e não existo mais como eu [moi]. É essa passividade
responsável que seria Dizer, porque, antes de todo dito, e fora do ser (no ser há
pelo impossível.
Mas o paradoxo não suspende uma ambiguidade: se eu [moi] sem mim [moi]
estou à prova (sem prová-la) da passividade mais passiva quando outrem me esmaga
até à alienação radical, é a outrem que tenho ainda relação, não é, antes, ao « eu
que me abre à mais longa paciência e que é em mim a paixão anônima, eu não devo
somente responder por isso me encarregando disso fora de meu consentimento, mas
devo também responder a ela pela recusa, pela resistência e pelo combate, revindo
ao saber (revindo, se for possível – pois pode ser que não haja retorno), ao eu [moi]
que sabe, e que sabe que está exposto, não a Outrem, mas ao « Eu [Je] » adverso, à
Onipotência egoísta, a Vontade assassina. Naturalmente, por aí, esta me atrai em seu
jogo e me faz seu cúmplice, mas é porque é sempre preciso que haja ao menos duas
linguagens ou duas exigências, uma dialética, a outra não dialética, uma onde a
fraqueza se esquiva a toda violência que não pode nada (mesmo que ela fosse a
mesma maneira que não dizemos nada senão na medida em que podemos fazer
entender previamente que nós o desdizemos, por uma espécie de prolepse, não para
finalmente não dizer nada, mas para que o falar não pare na palavra, dita ou a dizer
ou a desdizer: deixando pressentir que alguma coisa se diz, não se dizendo: a perda
Que outrem não tenha outro sentido que o recurso infinito que eu lhe devo, que
ele seja o apelo por socorro sem termo ao qual nenhum outro que eu [moi] saberia
para valer nem para ser) de uma exigência que não se dirige a uma particularidade,
não pede nada à minha decisão e me excede de todas as maneiras até me
desindividualizar.
tendo em alguma maneira o mesmo sentido que aquilo que não cessa, ambos efeito
da passividade; lá onde não reina o poder, nem a iniciativa, nem o inicial de uma
com o desastre de um tempo sem presente e que nós suportamos esperando, espera
de uma desgraça não por vir, mas sempre já sobrevinda e que não pode se
outro sem presente. Daí que os homens destruídos (destruídos sem destruicão) sejam
como que sem aparência, invisíveis mesmo quando os vemos, e que se eles falam, é
pela voz dos outros, uma voz sempre outra que de alguma maneira os acusa, os põe
em causa, obrigando-os a responder por uma desgraça silenciosa que eles portam
sem consciência.
É como se ele dissesse: «Que possa a felicidade vir para todos, com a condição de
Se Outrem não é meu inimigo (como ele o é às vezes em Hegel - mas um inimigo
devir aquele que me arranca à minha identidade e cuja pressão em qualquer espécie
de posição – aquela do próximo - me fere, me fatiga, me persegue me atormentando
de tal sorte que eu [moi] sem mim [moi] devenha responsável desse tormento, dessa
aquilo pelo qual é preciso que eu responda, enquanto estou sem resposta e estou sem
o golpe desde sempre recebido que me torna tanto mais sensível a todos os golpes. É
minha liberdade, nascido, por um favor que se acha ser uma predestinação, à
constrangedor, mas não é de novo a perspectiva sartriana: a náusea que nos dá, não a
ainda o outro que me vota a ocupar seu lugar, a não ser mais do que seu lugar-
tenente?
Eis aqui talvez uma resposta. Se Outrem me põe em questão até me desnudar de
juntos o mesmo espaço, nem se reunir num mesmo tempo: ser contemporâneos), é
de saída outrem para mim [moi], depois também eu [moi] como outro do que eu
[moi], isso que em mim [moi] não coincide comigo [moi], minha eterna ausência, o
que nenhuma consciência pode readquirir, que não tem nem efeito nem eficácia e
que é o tempo passivo, o morrer que me é, ainda que sem partilha, comum com
todos.
Outrem, não posso acolhê-lo, mesmo que fosse por uma aceitação infinita. Tal é o
traço novo e difícil da intriga. Outrem, como próximo, é a relação que eu não posso
morre: é que «morrer» é uma maneira de ver o invisível, uma maneira de dizer o
Se não posso acolher o Outro na intimação que exerço até me extenuar, é então
loucura) que sou chamada a entrar nessa relação outra, com meu eu [moi]
gangrenado e roído, alienado de uma parte à outra (assim, é por entre os leprosos e
que não é então o si mesmo ou a ipseidade (Levinas escreve: « para além do ser,
está uma Terceira pessoa que não se define pelo si mesmo»). Mas quando outrem
não é mais o longínquo, mas o próximo que pesa sobre mim [moi] até me abrir à
para fora do ser, significa o para-além do ser, no dom mesmo - a doação de signo -
que seu sacrifício desmedido entrega a outrem: ela é, ao mesmo título que outrem e
que o rosto, o enigma que desarranja a ordem e contrasta com o ser: a exceção do
lhe pertence ainda? O desastre pode ser interrogado? Onde encontrar a linguagem
em que resposta, questão, afirmação, negação, intervêm talvez, mas são sem efeito?
Onde está o dizer que escapa a toda marca, aquela da predição, assim como aquela
da interdição?
presença, isso que abala tudo e inverte tudo, o infinito sem abordagem, sem
ausência, e não mais uma exigência, mas o rapto de uma fusão mística. A
infinito da presença do qual não se pode mais falar, já que a relação ela mesma – que
ela seja ética ou ontológica – de um só golpe queimou numa noite sem trevas: não
há mais termos, não há mais relação, não há mais para além - Deus mesmo se
nadificou nisso.
Ou então seria preciso poder entender o imediato no passado. Aquilo que torna o
imediato, nós não podemos pensar nele mais do que não podemos pensar num
sempre por relação a uma desgraça infinita que não nos atinge no presente, mas ao
desgraça.
Responsabilidade: essa palavra banal, essa noção cuja moral mais fácil (a moral
política) nos faz um dever, é preciso tentar entender como Levinas a renovou, a
abriu até fazê-la significar (para além de todo sentido) a responsabilidade de uma
filosofia outra (que permanece, entretanto, em muitos aspectos, a filosofia eterna 1).
1
Nota mais tardia. Que não haja demasiado equívoco: a « filosofia eterna», na medida em
que não há ruptura de aparência com a linguagem dita « grega» em que se guarda a
exigência de universalidade; mas o que se enuncia, ou antes, se anuncia com Levinas, é
uma excedente, um para-além do universal, uma singularidade que se pode dizer judia e
que espera ser ainda pensada. Nisso profética. O judaísmo como o que ultrapassa o
pensamento de sempre por ter sido sempre já pensado, mas porta, entretanto, a
Responsável: isso qualifica, em geral, prosaica e burguesamente, um homem
maduro, lúcido e consciente, que age com medida, dá-se conta de todos os
elementos da situação, calcula e decide, o homem de ação e de êxito. Mas eis que a
obra de uma reflexão agente, não é mesmo um dever que se imporia do fora e do
dentro. Minha responsabilidade por Outrem supõe um abalo tal que ele não pode se
marcar senão por uma mudança de estatuto de « eu [moi] », uma mudança de tempo
ordem - talvez de toda ordem - e, afastando-me de mim [moi] (mesmo que eu [moi]
mim [moi], me dá a responder pela ausência, pela passividade, quer dizer, pela
Pois se, da responsabilidade, não posso falar senão a separando de todas as formas
fundamento, onde nenhuma raiz pode se fixar, se portanto ela atravessa toda base e
não pode ser tomada a cargo por nada de individual, como, de modo outro que
responsabilidade do pensamento por vir, eis o que nos dá a filosofia outra de Levinas, carga
e esperança, carga da esperança.
como resposta ao impossível, por uma relação que me interdita de me pôr a mim
mesmo, mas somente de me pôr como sempre já suposto (aquilo que me entrega ao
do qual a linguagem da moral ordinária faz o uso mais facil ao colocá-lo ao serviço
ser desobrigado), do mesmo modo que, declarado responsável do morrer (de todo
morrer), não posso mais chamar por nenhuma ética, nenhuma experiência, nenhuma
prática, qualquer que seja - salvo aquela de um contra-viver, quer dizer, de uma não-
Resta que, contrastando com a nossa razão e sem, todavia, nos entregar às
morte do Outro como a nossa sempre imprópria. Seria, pois, preciso justamente se
virar em direção a uma língua jamais escrita, mas sempre a prescrever, para que essa
Daí que ela seja ela mesma desastrosa, a responsabilidade que jamais alivia Outrem
(nem me alivia dele), e nos torna mudos da palavra que nós lhe devemos.
contacto daquilo que não atinge, é pela amizade que posso responder a eles, uma
amizade sem partilha, bem como sem reciprocidade, amizade para aquilo que passou
dialética nos propõe o cumprimento de todos os possíveis, por pouco que saibamos
(cooperando nisso pelo poder e pela maestria no mundo) deixar o tempo tomar todo
apelo à ética com sua função conciliadora (justiça e responsabilidade), mas quando a
ética por seu turno devém louca, como ela deve ser, o que ela nos traz senão um
salvo-conduto que não deixa à nossa conduta nenhum direito, nenhum lugar, nem
nenhuma salvação: somente a aturação da dupla paciência, pois ela é dupla, ela
escolhida para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade, senão a
fim de descer ao fundo do sujeito, sem perder o privilégio que este encarna, essa
presença privada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha? Mas
subjetiva que objetiva, o outro é sem interioridade, o anônimo é seu nome, o fora seu
necessário acolher pelo dom do extremo, dom daquilo que (no corpo e pelo corpo) é
o não-pertencimento.
Passividade não é simples recepção, não mais do que ela não seria a informe e a
inerte matéria pronta para toda forma - passivas, as impelidas de morrer (o morrer,
silenciosa intensidade; aquilo que não se deixa acolher, aquilo que se inscreve sem
ser, síncope como recorte do tempo e que não podemos evocar senão como a história
selvagem, inenarrável, não tendo sentido presente). Passivo: o não-relato, aquilo que
Chamo de desastre o que não tem o último por limite: aquilo que arrasta o último
no desastre.
como se com ela « eu» [je] desaparecesse no desastre sem aparência. O fato de
desaparecer não é precisamente um fato, um evento, isso não chega, não somente
experiência, mas porque não seria possível haver uma experiência disso, se o
mim [moi] lhe responda em meu lugar, essa resposta é a amizade imemorial que não
se deixa escolher, não se deixa viver no atual: a parte oferecida da passividade sem
sujeito, o morrer fora de si, o corpo que não pertence a ninguém, no sofrimento, no
Guardar o silêncio. O silêncio não se guarda, ele é sem resguardo para a obra que
pretenderia guardá-lo - é a exigência de uma espera que não tem nada a esperar, de
Como ter relação com o passado passivo, relação que, ela mesma, não saberia se
inconsciência)?
portanto não mais uma abdicação involuntária; quando o sujeito se faz ausência, a
ausência de sujeito ou o morrer como sujeito subverte toda a frase da existência, faz
pensar.
A passividade não consente, não recusa: nem sim nem não, sem grado, só lhe
conviria o ilimitado do neutro, a paciência inamestrada que atura o tempo sem lhe
proteção mantém sob abrigo, que não atinge destruição, fora de submissão assim
como sem iniciativa - com ela, nada começa, lá onde nós entendemos a palavra
sempre já falada (muda) do recomeço, nós nos aproximamos da noite sem trevas. É
humano). A fraqueza humana que mesmo a desgraça não divulga, o que nos transe
pelo fato de que a cada instante pertencemos ao passado imemorial de nossa morte -
Levinas fala da subjetividade do sujeito; se se quer manter essa palavra – por quê?
Mas por que não? -, seria preciso talvez falar de uma subjetividade sem sujeito, o
local ferido, o machucado do corpo morrendo já morto do qual ninguém saberia ser
proprietário ou dizer: eu [moi], meu corpo, isso que anima o só desejo mortal:
desejo de morrer, desejo que passa pelo morrer impróprio sem nele passar além de si
mesmo.
A solidão ou a não-interioridade, a exposição ao fora, a dispersão fora de
aquela que a redobra, a faz durar e não a apazigua, ao contrário lhe concede um
questão convirá, resposta da qual não sabemos que fazer, se só pode recebê-la a
o lugar para introduzir uma questão, sem que, entretanto, essa ausência faça
jamais jovem, mas sempre além da idade, de uma senescência que não pertence à
velhice; em seguida, que não é preciso findar demasiado rápido, que o fim é sempre
prematuro, que ele é a pressa do Finito no qual uma vez por todas se quer se confiar
Não responder ou não receber resposta é a regra: isso não é suficiente para deter
as questões. Mas, quando a resposta é ausência de resposta, a questão, por seu turno,
devém a ausência de questão (a questão mortificada), a palavra passa, faz retorno a
um passado que jamais falou, passado de toda palavra. É nisso que o desastre,
dos lupanares porque eu queria rezar lá». O suicídio: « Não deixo nada para trás de
mim, e é cheio de desafios que parto a teu encontro, Deus - ou Nada». « A Vida não
é senão a camisa xadrez que o Nada usa... Tudo é nada... Por essa parada do Tempo,
absoluta, já que, ao contrário, a vida não nasce senão de uma morte ininterrompida
(se nós resolvêssemos tomar essas ideias até o fundo, isso nos levaria prontamente
para entre os loucos, mas, quanto a mim, não as tomo senão em polichinelo..). »
precisamente que a vida chega a seu apogeu», e Novalis: «Uma ligação concluída
para a morte é uma núpcia que nos concede uma companheira para a noite»; mas
Bonaventura não encara jamais a morte como a relação com uma esperança de
A paciência é a urgência extrema: não tenho mais o tempo, diz a paciência (ou o
tempo que lhe é deixado é ausência de tempo, tempo de antes do começo - tempo do
pacientemente).
tédio, vazio para todo sempre. Fora de mim, tentei me tornar Nada, mas eu
suicídio como movimento mortal do mesmo não pode jamais ser projetado, porque o
inverificável, até mesmo incognoscível, e toda razão que se dá dele, por tão justa
que ela seja, parece sem conveniência. Matar-se é se estabelecer no espaço interdito
nela em jogo do que porque morrer - a passividade mesma – nela devém ação e se
aquele que crê cumpri-lo num espaço definitivamente subtraído à razão (bem como
a seu avesso, o irracional) alheio ao querer e talvez ao desejo, de sorte que aquele
que se mata, mesmo se busca o espetáculo, escapa a toda manifestação, entra numa
zona de «opacidade maléfica» (diz Baudelaire) onde, toda relação consigo mesmo
como com o outro sendo rompida, reina a irrelação, a diferença paradoxal, definitiva
e solene. Isso se passa antes de toda decisão livre, sem necessidade e como que por
acaso: no entanto, sob uma pressão tal que não há nada de bastante passivo em si
risco do pensamento entregue a essa dupla exigência e que ignora que ele precisa ser
constituir em fundo para uma representação. Passivo do qual nada de outro pode ser
dito, senão que ele interdita toda presença de pensamento, todo poder de conduzir o
uma reserva, uma retração para fora da presença, mas deixando-a em proximidade -
pensamento.
Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre, ruína de palavra,
desfalecimento pela escritura, rumor que murmura... o que resta sem resto (o
fragmentário).
O passivo não tem que ter lugar, mas, implicado na virada que, afastando-se da
volta, se faz por meio dela rodeio, ele é o tormento do tempo que, tendo sempre já
passado, vem como retorno sem presente, vindo sem advir na paciência da época,
demarcando, quer dizer talvez – no limite – se apagando (tão logo como em longo
tempo – é preciso todo o tempo para isso), na medida em que ela parece deixar
O outro não está em relação senão com o outro: ele se repete sem que essa
que sempre já fez seu tempo. O Outro não saberia aceitar se afirmar como Todo
Outro, pois que a alteridade não o deixa em repouso, trabalhando-o de uma maneira
nominação, desejo sem desejante nem desejado, ele marca o segredo - a separação -
do morrer em jogo em todo vivente como aquilo que o afasta (sem cessar, pouco a
pouco e cada vez num só golpe) de si como idêntico, como simples e devir vivente.
O que sobre Platão nos ensina Platão no mito da caverna, é que os homens em
Trocar ideias não somente seria se desviar de dizer aquilo que é pela palavra - o
presente de uma presença -, mas é, mantendo a palavra fora de toda unidade, mesmo
que seja a unidade daquilo que é, desviá-la dela mesma deixando-a diferir,
como necessidade de matar aqueles que, tendo se liberado, tendo tido acesso à luz,
violência suprema, mas a chama também, porque a verdade que ele porta e diz pelo
ligada à «possibilidade» da ironia, nós compreendemos por que uma e outra são
sempre decepcionantes, não podendo ser reivindicadas, excluindo toda maestria (cf.
Sylviane Agacinski).
Do sonho não saberíamos nos lembrar; se ele vem a nós - mas de qual vinda?
Através de qual noite? – não é senão pelo esquecimento, um esquecimento que não é
somente de censura ou de recalque. Sonhando sem memória, de uma maneira tal que
todo sonho temporário seria um fragmento de resposta a um morrer imemorial
possível dizer: jamais, sonhador, tu podes te despertar (nem, ao resto, te deixar assim
chamar, interpelar).
O sonho é sem fim, a vigília sem começo, nem um nem a outra voltam a se unir.
Pensando de forma outra do que ele pensa, de tal sorte que o Outro venha ao
Se o livro pudesse por uma primeira vez verdadeiramente estrear, ele teria por
O que nos faz recear e desejar o novo, é que o novo combate contra a verdade
(estabelecida), combate dos mais antigos em que sempre pode se decidir alguma
é que ele não está lá, o desastre que já desviou a palavra estar, cumprindo-se
Quando tudo se obscureceu, reina o aclaramento sem luz que certas palavras
anunciam.
Louvando a vida sem a qual não seria dado viver segundo o movimento de
morrer.
O traço do desastre: o triunfo, a glória não lhe são opostos, muito menos lhe
pertencem, apesar do lugar comum que prevê no auge já o declínio; ele não tem
contrario e não é o Simples. (Daí que nada lhe seja mais estrangeiro do que a
Ele nos interroga: o que fazemos, como vivemos, quais são nossos amigos. Ele é
discreto, como se suas questões não questionassem. E quando, por nossa vez, lhe
perguntamos o que ele faz, ele sorri, se levanta, e é como se ele jamais tivesse
estado presente. As coisas seguem seu curso. Ele não nos desarranja.
A inexperiência de morrer, isso quer dizer também: o mau-jeito em morrer,
O inusitado, o novo, porque ele não pode tomar lugar na história, é também aquilo
que há de mais antigo, alguma coisa de não histórico ao qual somos chamados a
responder como se fosse o impossível, o invisível, aquilo que desde sempre tem
nós mensageiros, nos precede em uma eternidade, nos votando a ser eternos
retardatários? Somos precursores, correndo para fora de nós, adiante de nós; quando
Se a citação, em sua força morselar, destrói de antemão o texto ao qual ela não é
somente arrancada, mas que ela exalta até não ser senão arrancamento: o fragmento
historicamente datada, no entanto sem data, de um país já tão reduzido que parecia
quase apagado do mapa e cuja história, entretanto, desbordava a história do
Ele escreve – ele escreve? - não porque os livros dos outros o deixariam
insatisfeito (ao contrário, todos eles lhe agradam), mas porque são livros e que no
O hoje é pobre; essa pobreza que lhe seria essencial, se ela não estivesse nesse tal
ponto extremo que ela está tão desnudada de essência, lhe permite não chegar a uma
Escreve para não somente destruir, para não somente conservar, para não
transmitir, escreve sob a atração do impossível real, essa parte de desastre onde
(recursos e recusação) à vez, no mesmo tempo, sem neles crer e sem parada. O
com ela jogar no gozo e no mal-estar da perversão que supõe sempre, dissimulado,
um bom uso. Escrever, desvio que afastaria o direito a uma linguagem, mesma que
a biografia da anedota), mas numa outra relação da qual o outro se afastou e sempre
nos afastou até no movimento de atração - donde os nomes vãos de real, de glória ou
tomba, talvez por perda de paciência. Pois poderia ser que todo nome - e
tombaria para fora de toda teleologia e talvez para fora de seu sítio. Pensar sem meta
assim como se morre, é o que parece que impõe, em termos não de gratuidade, mas
Pensar como se morre: sem meta, sem poder, sem unidade e precisamente sem
morrer é também a forma de suas relações, não que pensar procede em direção a
morrer, procedendo em direção a seu outro, mas muito menos em direção a seu
mesmo. É daí que « como » toma seu arrebatamento nem outro nem mesmo.
nós - quem não é nós? – sofreremos antes de tê-lo sofrido, o transe como o passivo
nome próprio (Derrida), nem nome (nem verbo, mas um resto que riscaria de
ausência de operação)».
O desastre é esse tempo em que não se pode mais pôr em jogo, por desejo, astúcia
ou violência, a vida que se busca, por esse jogo, manter ainda, tempo em que o
negativo se cala e aos homens sucedeu a infinita calma (a efervescência) que não se
Uma leitura daquilo que foi escrito: aquele que amestra a morte (a vida-finita),
linguagem hegeliana, pode-se afirmar que o conceito é a morte, o fim da vida natural
e espiritual, e que morrer é o obscuro da vida, esse além da vida, sem agir, sem
fazer, sem ser, a vida sem morte que é então o perecível mesmo, o eternamente
como depois do termo, escutando sem falar o eco daquilo que sempre já passou,
aliviar. Mas a passividade nele se esquiva a toda falta: passivo fora de falha,
talvez seja trazer à superfície alguma coisa como sentido ausente, acolher o impulso
perda; o impulso de morrer arrastando consigo a perda, a perda perdida. Sentido que
não passa pelo ser, por baixo do sentido - suspiro do sentido, sentido expirado. De
acreditemos que tenhamos dito alguma coisa por essas reversões. Desejo, escritura
não permanecem no lugar, passam um acima do outro: esses não são jogos de
escrever, como o escrever é a dilaceração desejada, não desejada, sofrendo bem até a
impaciência. Desejo que morre, desejo de morrer, vivemos isso juntos, sem
Confirma-se – na e pela incerteza - que todo fragmento não está em relação com o
a intensidade desastrosa, fora de prazer, fora de gozo, se marca, quer dizer demarca:
o fragmento seria essa marca, sempre ameaçada por algum êxito. Não seria possível
mesmo que fosse apenas porque todo fragmento, mesmo único, se repete, se desfaz
pela repetição.
destruição do presente.
O saber não se afina nem se alivia senão nos confins, quando a verdade não
constitui mais a instância à qual seria preciso que ele se submetesse finalmente. O
não-verdadeiro que não é o falso, atrai o saber para fora do sistema, no espaço de
uma deriva em que as palavras-chave não dominam mais, em que a repetição não é
passar ao não-saber, não depende mais dele mesmo, não resulta nem produz um
resultado, mas muda imperceptivelmente, apagando-se: não mais saber, mas efeito
de saber.
No saber que sempre deve se liberar do saber, não há saber anterior, ele não se
sucede a si mesmo, não há, pois, muito menos uma presença de saber. Não apliques
um saber, não o repitas. Fim da teoria que detém e organiza o saber. Espaço aberto à
« teoria fictícia », lá onde a teoria, pela ficção, entra em perigo de morte. Vocês,
teóricos, saibam que vocês são mortais e que a teoria é já a morte em vocês. Saibam-
no, conheçam seu companheiro. Talvez seja verdade que «sem teorização, vocês
não dariam um passo adiante», mas esse passo é um passo a mais em direção ao
verdadeiro-falso (inclusive a sua coincidência) não se impõe mais, mesmo que fosse
inscrever, mas num outro espaço onde não há mais direção. Quando o saber não é
mais um saber de verdade, é então de saber que se trata: um saber que queima o
Quando Kafka deixa entender a um amigo que ele escreve porque, de outra forma,
ele deviria louco, ele sabe que escrever é já loucura, é a sua loucura, espécie de
vigília fora de consciência, insônia. Loucura contra loucura: mas Kafka crê que
amestra uma abandonando-se a ela; a outra lhe causa medo, é o seu medo, passa
através dele, o dilacera, o exalta, como se fosse preciso que ele se submetesse a toda
quais ele fala com pavor e não sem um sentimento de glória. É que a glória é o
desastre.
Aceitar essa distinção: « é preciso [il faut] » e não « tu deves [tu dois] » - talvez
fora da lei, sem legalidade, uma necessidade não necessária; assim mesmo uma
afirmação? Uma violência? Busco um «é preciso [il faut]» passivo, usado pela
paciência.
Mas alguma coisa me força a essa aventura antiga, infinita e fora de sentido,
« privada », tudo o que é privado sendo loucura pelo menos na medida em que nós
Quando digo, na sequência de Nietzsche: « il3 faut [é preciso]» - com o jogo entre
« falloir » [ser preciso] e « faillir » [falhar, fracassar] -, digo também: [ele] falta,
[ele] tomba, [ele] engana, é o começo da queda, a lei comanda tombando, e, por aí,
Ele pode ler um livro, um escrito, um texto – passo sempre, não [pas] sempre, e
ele o pode? – porque ele guarda, perdendo-a, uma certa relação com escrever. O que
não quer dizer que ele lê o mais prazerosamente possível aquilo que lhe daria
escritura -, mas, antes, aquilo que fulmina a escritura, faz arroxear sua violência
3
O Il neutro.
N. t. Neste trecho Blanchot joga com dois sentidos de “pas” em francês: negação e passo.
destruindo-a ou, mais simplesmente, mais misteriosamente, está em relação com o
à obra, e nada morre nele, não pode morrer nele. O que resta após o sistema, réliquo
Dizer: eu amo Sade, é não ter relação alguma com Sade. Sade não pode ser amado
nem suportado; aquilo que ele escreve nos desviando absolutamente nos atraindo
o astro do desastre, desaparecido, como ele o anelava, na tumba sem nome do seu
renome.
Mas é bem verdadeiro que há uma ironia de Sade (poder de dissolução); aquele que
não a pressente, lê um autor qualquer em sistema; nada que nisso possa ser dito
sério, ou seu sério é a derrisão do sério como a paixão nele passa pelo momento de
mais nada convém), a grande dissimulação lá onde tudo é/está dito, tudo é/está
Jamais ou então ou então, lógica simples, nem todos os dois juntos que acabam
farão. Eros Tanatos: duas potências ainda; Um domina. A divisão não é suficiente,
Revenho sobre o fragmento: não sendo jamais único, ele não tem, entretanto,
limite externo - o fora em direção ao qual ele tomba não é seu límen, e ao mesmo
tempo nenhuma limitação interna (não é o ouriço, fechado sobre si); no entanto,
alguma coisa de estrito, não por causa de sua brevidade (ele pode se prolongar como
saltaram (elas não faltam). Nenhum rastro [pas] de plenitude, nenhum rastro [pas]
de vazio.
aguda, ponta acerada. E, no entanto, esse combate é debate para a paciência. O nome
Não se saberia «ler» Hegel, salvo a não lê-lo. Lê-lo, não lê-lo, compreendê-lo,
desconhecê- lo, recusá-lo, isso cai sob a decisão de Hegel ou isso não tem lugar. Só
a intensidade desse não-lugar, na impossibilidade de que haja uma, nos dispõe para
uma morte - morte de leitura, morte de escritura - que deixa Hegel vivente, na
fracasso, bem como a impossibilidade do êxito: finalmente não se pode dizer nada
O Saber no repouso; qualquer que seja a inconveniência desses termos, nós não
esgotado seu poder de negação, sua potência de afirmação, retenha ou porte o Saber
no repouso. Escritura para fora da linguagem, nada de outro talvez do que o fim
(sem fim) do saber, fim dos mitos, erosão da utopia, rigor da paciência apertada.
dom, sem perdão, sem consentimento, se arruinou sem dar lugar a nada que possa
se afirmar, se negar, dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se doar.
Como guardá-lo, mesmo que seja no pensamento, como fazer do pensamento aquilo
Haveria na morte alguma coisa mais forte do que a morte: é o morrer mesmo – a
é poder e mesmo potência – portanto limitada -, ela fixa um termo, ela adia, no
sentido em que ela assinala para um dia dito, por acaso e necessário, ao mesmo
tempo que reenvia a um dia não designado. Mas o morrer é não-poder, ele arranca
ao presente, é sempre transposição do limiar, exclui todo termo, todo fim, não libera
ponto, a ponta de acordo, fora de toda orientação, mesmo que seja como
« Mas quem se esconderá diante daquilo que jamais se deita? » A vigília é sem
começo nem fim. Fazer a vigília está no neutro. « Eu [Je] » não faço vigília: vela-se,
a noite vela, sempre e incessantemente, escavando a noite até a outra noite em que
não poderia ser questão de dormir. Não se vela senão a noite. A noite é estrangeira à
vigilância que se exerce, se cumpre e porta a razão lúcida em direção àquilo que ela
ela não se desvela, como se ela saísse de um sono que a precederia, sendo ao
vela: sem espreitar nem espiar. O desastre vela. Quando há vigília, lá onde a
ninguém vela. Velar não é o poder de velar em primeira pessoa, não é um poder,
perspicaz para se entregar à prorrogação ilimitada da insônia, a vigília que não vela,
a intensidade noturna.
como o transe do fora onde queda e fuga são imobilidade - imobilidade de uma
movência. Decepção não deixa a exceção se repousar na altura, mas faz tombar sem
exceção escapa, a decepção esquiva. A consciência pode ser catastrófica sem cessar
de ser consciência, ela não se revira, mas acolhe a reversão. Só o retorno que arranca
com argumentos, mas o extremo tremor sem pensamentos, o abalo rompido até à
Doar não é doar alguma coisa, nem mesmo se doar, pois então doar seria guardar
e salvaguardar, se aquilo que se doá tem por traço que ninguém pode tomá-lo de
possessão. O dom não sendo o poder de uma liberdade, nem o exercício sublime de
um sujeito livre, não haveria dom senão daquilo que não se tem, sob a imposição e
exceto, fora do mundo, a atração e a pressão do outro: dom do desastre, daquilo que
não se saberia pedir nem doar. Dom do dom - que não o anula, sem doador nem
donatário, que faz com que nada se passe, nesse mundo da presença e sob o céu da
ausência aonde chegam as coisas, mesmo não chegando. Eis porque falar de perda,
de pura perda e em pura perda, parece, ainda que a palavra não seja jamais salva,
não importa -, sem intenção: então tu não vives em ti nem fora de ti nem perto das
coisas, mas o vivo da vida passa e te faz passar para fora do espaço sideral, no
pânico ou cósmico; daí que não possa haver desejo do desastre. Velar é sem desejo
Pela obsessão da preocupação, não somos chamados para fora de nós mesmos,
preocupações para fazer lugar à solicitude. Die sorglose Nacht, a noite sem
preocupação, enquanto vela aquilo que não saberia desvelar. Mas a noite, a primeira
noite, se apressa ainda, noite que não rompe com o diurno, em que mesmo se não se
Se eu digo: o desastre vela, não é para dar um sujeito à vigília, é para dizer: a vigília
afirmativa que seja, ela não tem lugar, incapaz de se pousar e repousar no instante
qual ela não marca senão a exclusão. Nós sentimos que não seria possível haver
seus traços: o desastre destitui toda experiência, lhe retira a autoridade, vela somente
O vivo da vida seria o avivamento que não se contenta da presença vivente, que
consume aquilo que é presente até na isenção, a exemplaridade sem exemplo da não-
O silêncio talvez seja uma palavra, uma palavra paradoxal, o mutismo da palavra
(conformemente ao jogo da etimologia), mas sentimos, pois, que ele passa pelo
grito, o grito sem voz, que contrasta com toda palavra, que não se endereça a
ninguém e que ninguém recolhe, o grito que tomba em berro. O grito, assim como a
escritura (do mesmo modo que o vivo teria sempre já excedido a vida), tende a
exceder toda linguagem, mesmo se ela se deixa retomar como efeito de língua, à vez
súbito (submetido) e paciente, a paciência do grito, aquilo que não pára em não-
sentido, ao mesmo tempo que permanece fora de sentido, um sentido infinitamente
Dor, talhando, despedaçando, pondo a vivo aquilo que não saberia mais ser
Então na noite sem trevas, privada de céu, densa da ausência de mundo, em retração
vigília não permite nem despertar nem sono, que ela deixe o pensamento fora de
segredo, privado de toda intimidade, corpo de ausência, exposto a passar, sem si sem
que cesse o incessante, a troca do vivo sem vida e do morrer sem morte, lá onde a
intensidade mais baixa não levanta a espera, não põe fim à prorrogação infinita.
palavra é relativamente silenciosa, na medida em que ela porta aquilo em quê ela se
ordem cósmica, não tendo mais situação ao olhar do universo, sem consentimento
vida fora da vida) à interrupção de ser, ao impulso do morrer que nos fazem cair sob
Que aquilo que se escreve ressoe no silêncio, fazendo-o ressoar por muito tempo,
A escritura, sem se colocar por cima da arte, supõe que não se prefere a arte,
torna irremissível, porta o golpe até a culpabilidade; assim, tudo devém irreparável,
A só culpa seria de posição: é ser «Eu [Je]», enquanto o Mesmo do eu-mesmo [moi-
même] não lhe aporta a identidade, é somente canônico, a fim de permitir a relação
Não posso perdoar, o perdão vem de outrem, mas não sou muito menos perdoado,
sem si até o mais passivo, e se o perdão vem do outro, ele não faz senão vir, não há
jamais certeza de que ele possa chegar já que, no entanto, não lhe cabe ser um poder
crer que o levar à morte seja o perdão, o termo do interminável; só que não há fim,
já que Kafka deixa claro que a vergonha sobrevive, quer dizer, o infinito mesmo, a
a desatenção mais passiva que, para além do interesse e do cálculo, deixa outrem
outro, deixando fora da violência pela qual ele seria apreendido, compreendido,
açambarcado, identificado, reduzido ao mesmo. A desatenção não é então uma
quando mesmo a desgraça que não suporta a vista e que a vista não suporta, se deixa
O que é estranho na certeza cartesiana «eu penso, eu existo [je suis]», é que ela
eu existo [je suis]) pela ausência intensa de um morrer indesejável e atraente. Logo
bastaria que o ego cogito se pronuncie para que ele cesse de se anunciar e para que o
caudaloso e, perdendo-se nela [na linguagem], a transmuta em sua perda. Eis porque
pode-se dizer que Descartes jamais soube que ele falava e, muito menos, que ele
atordoante (aliás perigosa, pois não sem resto), o outro do outro é Mesmo; mas
deixá-lo outro, sempre mais outro (não majorado, mas excedido), pela consagração
do desvio e do retorno?
para que esta não se limite tornando somente atentos alguma coisa, até mesmo
alguém, até mesmo tudo, desatenção nem negativa nem positiva, mas excessiva,
desatenção mortal à qual não temos a liberdade - o poder - de consentir, nem mesmo
de nos deixar ir (de nos doar ao nos abandonar), a paixão desatenta, atraente,
negligente que, enquanto o astro brilha, sob um céu disponível, sobre a terra que
cósmica subsiste, mas como reino arrogante, impotente, abrogado, sob o lampejo
ausente e sempre lá, remente sem fim a uma lei morta que, na queda mesmo,
pudéssemos, mesmo que fosse pela violência de nosso espaço assassinado, sair da
ordem cósmica (o mundo) onde, qualquer que seja a desordem visível, o arranjo a
ainda à descoberta de uma experiência pela qual não teríamos mais que nos deixar
retomar, no lugar de ser expostos àquilo que se esquiva numa fuga imóvel, no
Só o regime médio se deixa afirmar ou negar; mas não há mais lugar para
afirmação, negação, quando a tensão mais alta, a depressão mais baixa (aquilo que
turvo, aquilo que na dor cai sob a dor - demasiado passivo para ser sofrido: sua
nenhuma linguagem dispõe, embora não se separe delas, sem cessar de ser deslocada
nelas.
A intensidade não poderia ser dita alta ou baixa sem restabelecer a escala dos valores
e os princípios de uma medíocre moral. Que ela seja energia ou inércia, ela é o
extremo da diferença, o excesso sobre o ser (tal como o supõe a ontologia), excesso
que, absoluto desarranjamento, não admite mais regime, região, regra, direção,
ereção, insur-reição, nem muito menos o simples contrário destas palavras, de sorte
que ela destrói aquilo que ela indica, queimando o pensamento que a pensa e
exigindo nesta consumpção onde transcendência, imanência não são mais do que
fragmentação sem aparência que supõe, entretanto, ainda uma superfície contínua
sobre a qual ela se inscreveria, como ela supõe a experiência com a qual ela rompe -
Intensidade: aquilo que atrai neste nome não é somente que ele escapa em geral a
denominando tão logo eles se nomeiam e afastando tanto a potência que se exerce
quanto a intencionalidade que marca uma direção, o sinal e o sentido, o espaço que
se projeta e o tempo que se extasia, com esse embaraço de que ele parece uma
pensamento, mas pensamento que se excede e não é mais que o tormento - a retorsão
- deste retorno.
«Intensidade», essa palavra diferente à qual Klossowski nos conduziu para que a
ou palavra-reclame que bastaria simplesmente invocar para que seja aberta a brecha
por onde escorreria, se secaria o sentido, nos permitindo uma vez por todas escapar a
com uma linguagem, não vindo dela, mas tendo sempre já saído dela, vela aquilo
que não começou nem terá fim, essa noite em que outrem é substituído pelo outro,
aquele que Descartes tentou fixar sob os traços do Grande Contraditor, do Outrem
enganador que não tem somente por papel driblar a evidência - o manifesto da visão
este continua a se preservar), mas abala o outro como outrem, com o quê desmorona
muda, como do mutismo falante, não deixando mais a zombaria dar um sinal,
mesmo se este não significa nada, ainda que, através do silêncio do silêncio – aquele
que não viria de uma linguagem (seu fora, entretanto) – transpasse, pelo repetitivo, a
desligar até o fragmentário. Fora. Neutro. Desastre. Retorno. Nomes que certamente
não formam sistema e, naquilo que eles têm de abrupto à maneira de um nome
próprio não designando ninguém, deslizam para fora de todo sentido possível sem
que esse deslizamento faça sentido, deixando somente uma entreluz deslizante que
não clareia nada, nem mesmo esse fora-de-sentido cujo limite não se indica. Nomes
que, num campo devastado, assolado pela ausência que os precedeu e que eles
parecem os restos, cada um, de uma linguagem outra, ao mesmo tempo desaparecida
e jamais pronunciada, que nós não saberíamos tentar restaurar sem reintroduzi-los
eternidade, eles não saberiam ser senão a instável interrupção, a invisível retirada.
Os fragmentos se escrevem como separações não cumpridas; aquilo que eles têm
nem unificáveis, nem consistentes, eles deixam se espaçarem marcas com as quais o
pensamento se detenha neles, sempre revezado pela vigília que não se interrompe.
Daí que não se possa dizer que haja intervalo, já os fragmentos, destinados em parte
ao branco que os separa, encontram nesse intervalo abismal não aquilo que os
permanecer sendo a palavra decaída, posta à parte, o segredo sem segredo que
Lendo essas frases antigas: «A inspiração, essa palavra errante que não pode
tomar fim, é a longa noite da insônia, e é para se defender dela, desviando-se dela,
onde ele pode dormir». E mais esta: «Lá onde eu sonho, isso vela, vigilância que é a
surpresa do sonho e onde vela de fato, num presente sem duração, uma presença sem
pessoa, a não-presença onde não advém jamais nenhum ser e cuja fórmula
gramatical seria «Ele[O Il Neutro]...» Por que esse lembrete? Por que, apesar do
que elas dizem sobre a vigília ininterrupta que persiste por trás do sonho, e sobre a
retomadas, repetidas, para escapar ao sentido que as anima e a fim de ser desviadas
segurança à qual se creria ter cessado de pertencer, elas têm um ar de verdade, dizem
alguma coisa, pretendem a uma coerência, dizem: tu pensaste isso há muito tempo,
que faz os sistemas, fazendo jogar no passado uma função de garantia, deixando isso
devir ativo, citador, incitador e impedindo a invisível ruína que a vigília perpétua,
que faz do silêncio já um dizer, que diz no silêncio já o dizer que o silêncio é. Pois o
A escritura fragmentária seria o próprio risco. Ela não reenvia a uma teoria, não dá
lugar a uma prática que seria definida pela interrupção. Interrompida, ela se
mantê-la) em não-resposta. Se ela pretende não ter seu tempo senão quando o todo -
nunca seguro, ausência de tempo num sentido não privativo, anterior a todo passado-
Se, por entre todas as palavras, há uma palavra inautêntica, é justamente a palavra
«autêntica».
ou rejeitos daquilo que não é ainda uma obra. Que ela atravesse, reverta, arruine a
em si mesma, eis o que pressente F. Schlegel, mas que por fim lhe escapa, sem que
se possa lhe rechaçar esse desconhecimento que ele nos ajudou, que ele nos ajuda
ainda a discernir no momento mesmo em que o partilhamos com ele. A exigência
fragmentária, ligada ao desastre. Que não haja, entretanto, quase nada de desastroso
nesse desastre, será, pois, preciso que aprendamos a pensá-lo sem talvez sabê-lo
jamais.
A fragmentação, marca de uma coerência tanto mais firme quanto seria preciso
que ela se desfaça para se atingir, não por um sistema dispersado, nem pela
jamais pré-existiu (real ou idealmente) como conjunto, nem muito menos poderá se
tempo.
que ele carrega em direção à dissolução de onde ele não se forma (propriamente
obra da ausência de obra (para redizê-lo e calá-lo ao redizê-lo). Daí que a impostura
fragmentária.
A exigência fragmentária faz sinal ao Sistema que ela dispensa (como ela dispensa
alternativa, o outro termo não pode totalmente esquecer o primeiro termo do qual ele
tem necessidade para substituí-lo por si. A crítica justa do Sistema não consiste
torná-lo invencível, incriticável ou, como se diz, incontornável. Então, nada lhe
escapando por sua unidade onipresente e pelo reagrupamento de tudo, não resta mais
quebrando, mas deixando-o de lado sem que se possa sabê-lo. Assim, a escritura
como experiência (sob qualquer forma que se entenda essa palavra) do que o
«Ter um sistema, eis o que é mortal para o espírito; não ter um, eis também o que
Mas isso seria verdadeiro se houvesse uma arte dos detalhes que não teria mais por
mais alto a barra da certeza ou da verdade ou da crença. Não se crê em nada por
necessidade de demasiado crer e porque se crê ainda demasiado quando não se crê
em nada.
parte escritor, quer dizer, em tudo que tu és, és tu mesmo escritura vivente e agente?
A afirmação passa sem prova, com a condição de não pretender provar nada.
Busco aquele que diria não. Pois dizer não é dizer com o lampejo que o « não»
O que chega através da escritura não é da ordem daquilo que chega. Mas então
quem te permite pretender que jamais chegaria alguma coisa como a escritura? Ou
então, a escritura não seria tal que ela não teria jamais necessidade de advir?
Alguém (Clavel) escreveu de Sócrates que todos nós o matamos. Eis o que não é
de modo algum socrático. Sócrates não teria gostado de nos tornar culpados de nada,
nem mesmo responsáveis de um evento que sua ironia tinha de antemão tornado
insignificante, até mesmo benéfico, nos suplicando a não tomá-lo a sério. Mas, com
certeza, Sócrates não esquece senão uma coisa. É que mais ninguém depois dele
podia ser Sócrates, e que sua morte matou a ironia. E à ironia que seus juízes en
tinham todos dessa morte; é à ironia que nós outros, seus justos choradores,
O não-saber não é nada saber, nem mesmo o saber do « não », mas o que
[ressassement].
R. C. é em tal ponto poeta que a partir dele a poesia brilha como um feito, mas
que a partir desse feito da poesia todos os feitos devêm questão e mesmo questão
poética.
O fervor pelo progresso infinito não é válido senão como fervor, pois que o
é cristão, se, longe de se contentar com uma só Mediação (o Cristo), ele faz
mediação de tudo. Só o judaísmo é o pensamento que não mediatiza. E eis por que
O filósofo que escreveria como poeta visaria sua própria destruição. E mesmo
visando-a, ele não pode atingi-la. A poesia é questão para a filosofia que pretende
lhe dar uma resposta, e assim compreendê-la (sabê-la). A filosofia que põe tudo em
Quem escreve está em exílio da escritura: lá é sua pátria onde ele não é profeta.
N. t. René Char.
Aquele que não se interessa por si mesmo não é, no entanto, por isso,
desinteressado. Ele não começaria a sê-lo senão se nele o desinteresse por ele não o
Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para
se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar
Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro - outrem, leitor - que não
Num sentido, o «eu [moi]» não se perde porque ele não se pertence. Não existe,
perdido.
O salto mortal do escritor sem o qual ele não escreveria, é necessariamente uma
ilusão na medida em que, para se cumprir realmente, é preciso que ele não tenha
lugar.
Só um eu [moi] finito (tendo por só destino a finitude) deve por isso vir a se
mantém junto, então o que acontece com o não-laço que desune para além da
unidade, o que acontece com aquilo que escapa à sincronia do «se manter junto»
sem, entretanto, romper toda relação ou sem cessar, nessa ruptura ou nessa ausência
de relação, de abrir uma relação ainda? É preciso ser não-religioso para isso?
Se tu escutas «a época», tu aprenderás que ela te diz em voz baixa, não para falar
Certamente Sócrates não escreve, mas, sob a voz, é pela escritura, entretanto, que
cessar, dando forma ironicamente ao fragmentário e votando por sua morte a palavra
assinatura, todavia).
Entre as duas proposições falsamente interrogativas: por que há, antes, alguma
coisa ao invés de nada? E por que há, antes, o mal ao invés do bem?, eu não
reconheço essa diferença que se pretende nelas discernir, já que ambas são portadas
por um «há» que não é nem ser nem nada, nem bem nem mal e sem o qual tudo isso
questão que recai sobre ele: interrogado, ele absorve ironicamente a interrogação
que não saberia sobrepujá-lo. Mesmo se ele se deixa vencer, é porque a derrota é a
Morrer quer dizer: morto, tu já o és, num passado imemorial, de uma morte que
não foi a tua, que tu, portanto, não conheceste nem viveste, mas sob a ameaça da
porvir para torná-la enfim possível, como alguma coisa que terá lugar e pertencerá à
experiência.
Escrever não é mais pôr no futuro a morte sempre já passada, mas aceitar sofrê-la
sem torná-la presente e sem se tornar presente para ela, saber que ela teve lugar,
ainda que ela não tenha sido provada, e reconhecê-la no esquecimento que ela deixa
Esta morte incerta, sempre anterior, atestação de um passado sem presente, não é
jamais individual, do mesmo modo que ela desborda o todo (aquilo que supõe o
advento do todo, seu cumprimento, o fim sem fim da dialética): fora do todo, fora do
tempo, ela não saberia ser explicada, assim como o pensa Winnicott, somente pelas
[moi], sofre estados abalantes (as agonias primitivas) que ela não pode conhecer já
que ela não existe ainda, que se produziam, portanto, sem ter lugar, aquilo que
conduz mais tarde o adulto, numa lembrança sem lembrança, por seu eu [moi]
fissurado, a esperá-las (seja para desejá-las, seja para temê-las) de sua vida que se a
confronto, esta recusa? Por que apagá-las fazendo delas uma ficção própria a um
autor? É bem natural. O pensamento não pode acolher aquilo que ele porta em si e
que o porta, exceto se ele o esquece. Eu falarei disso sobriamente, utilizando (talvez
não se fala senão matando o infans em si (em outrem também), mas o que é o
infans? Evidentemente, aquilo que ainda não começou a falar e jamais falará, mas,
mais ainda, a criança maravilhosa (terrificante) que fomos nos sonhos e nos desejos
daqueles que nos fizeram e nos viram nascer (pais, toda a sociedade). Esta criança,
onde ela está? Segundo o vocabulário psicanalítico (do qual, creio, só podem utilizar
aqueles que exercem a psicanálise, quer dizer, para quem ela é risco, perigo extremo,
o que quer dizer que ela tem estatuto de representante para sempre inconsciente, e,
«louca»: para não permanecer nos limbos do infans e do aquém do desejo, trata-se
de destruir o indestrutível e mesmo de pôr fim (não de um só golpe, mas
constantemente) àquilo a que não se tem, jamais se teve, nem se terá acesso – ou
seja, a morte impossível necessária. E, de novo, nós não vivemos e não falamos
(mas com que espécie de palavra?) senão porque a morte já teve lugar, evento
insituado, insituável que, para não se tornar mudo por isso no falar mesmo, nós
psicanalítico ao qual não é possível senão que ele não tenha levantado “a confusão
ordinária” entre esta primeira morte que seria o cumprimento incessante e a segunda
morte chamada, por uma simplificação fácil, «orgânica» (como se a primeira não o
fosse).
confusão – aquilo que vocês nomeiam confusão – jamais pode ser dissipada de outro
todo primeiro Hegel. Ele também, antes mesmo daquilo que se chama sua primeira
filosofia, pensou que as duas mortes não eram dissociáveis e que só o fato de
afrontar a morte, não somente de lhe fazer frente ou de se expor a seu perigo (o que
é o traço da coragem heróica), mas de entrar em seu espaço, de sofrê-la como morte
preciso contar. Eu não entrarei no detalhe da maneira com a qual, desde a primeira
superada. Isso é bem conhecido. Resta que se a morte, o assassinato, o suicídio são
impotente, mais tarde negatividade, há, a cada vez que se avança com ajuda da
morte possível, a necessidade de não passar além da morte sem frases, a morte sem
infans glorioso, terrificante, tirânico, que não se pode matar na medida em que não
se alcança uma vida e uma palavra senão cessando de enviá-la à morte, não seria
a criança morta que nenhum saber, nenhuma experiência saberiam fixar no passado
de dizê-lo, como aqui), sempre já morta. Aquilo que nós nos esforçaremos para
matar, é, justamente, a criança morta, não somente aquela que teria por função
carregar a morte na vida e se manter nela, mas aquela para quem a «confusão» das
duas mortes não pode não se produzir e que, por aí, não nos autoriza nunca a
suicídio.
Ressalto que Serge Leclaire e Winnicott se esforçam, quase da mesma maneira, em
nos desviar do suicídio mostrando que este não é uma solução. Nada de mais justo.
Se a morte é a paciência infinita daquilo que não se cumpre jamais uma vez por
«ilusoriamente» em possibilidade ativa a passividade daquilo que não pode ter lugar
porque tendo sempre já tido lugar. Mas talvez seja preciso entender o suicídio de
outra forma.
É possível que o suicídio seja a maneira pela qual o inconsciente (a vigília em sua
vigilância não despertada) nos adverte que alguma coisa claudica na dialética, nos
suicídio – aquilo que nomeamos assim -, não se passa simplesmente nada; de onde o
sentimento de incredulidade, de pavor que ele nos fornece sempre, ao mesmo tempo
em que ele suscita o desejo de refutá-lo, quer dizer, de torná-lo real, quer dizer,
um evento numa história que, por aí, por este fim audacioso, resultado aparente de
uma iniciativa, toma uma feição individual: o que faz enigma, é que, precisamente
me matando, «eu» não «me» mato, mas, entregando de alguma maneira o ouro ao
Outro - para lhe revelar e revelar a todos aquilo que imediatamente escapa: a saber o
há morte agora ou futura (de um presente por vir). O suicídio é talvez, é sem dúvida
uma estupidez, mas tem por lance tornar por um instante evidente – escondida – a
outra estupidez que é a morte dita orgânica ou natural, na medida em que esta aqui
pretende se dar por distinta, definitivamente posta à parte, a não confundir, podendo
ter lugar, mas não tendo lugar senão uma vez, assim a banalidade do único
impensável.
Mas qual seria a diferença entre a morte por suicídio e a morte não suicidária (se há
possibilidade da morte, sobre o uso da morte como poder) é o oráculo obscuro que
cessar, que aquele que foi até o extremo do desejo de morte, invocando seu direito à
morte e exercendo sobre si mesmo um poder de morte - abrindo, assim como o disse
perdendo sua liberdade obstinada, ele se choca, outro do que ele mesmo, com a
morte como com aquilo que não chega ou como com aquilo que se retorna
demonstração (daí seu traço arrogante, enfadado, indiscreto), e aquilo que ele
demonstra é o indemonstrável, a saber que, na morte, não se passa nada e que ela
mesma não passa (de onde a vaidade e a necessidade de seu caráter repetitivo). Mas
resta desta demonstração abortada que nós não morremos «naturalmente», da morte
sem frases e sem conceito (afirmação sempre a pôr em dúvida) senão se, por um
suicídio constante, inaparente e prévio, cumprido por ninguém, nós cheguemos
assim (bem entendido, este não é «nós») ao engodo do fim da história em que tudo
ser uma morte sempre dupla, tendo como que esgotado a passividade infinita do
«Mata-se uma criança». É deste título que é preciso no fim se lembrar naquilo que
ele tem de força indecisa. Não sou eu que teria que matar e sempre matar o infans
que fui como que em primeiro lugar e enquanto eu não era ainda, mas ao menos
sendo nos sonhos, nos desejos e no imaginário de alguns, depois de todos. Há morte
preciso, entretanto, separar); por esta morte e por este assassínio, é um «se»
impessoal, inativo e irresponsável, que tem que responder - e do mesmo modo que a
criança é uma criança, sempre indeterminada e sem relação com quem quer que seja.
Uma criança já morta vai morrendo, de uma morte assassina, criança da qual nós
passado por conseguinte, do qual o infans eterno se faz figura, ao mesmo tempo que
ele se esquiva a isso. «Mata-se uma criança». Não nos enganemos sobre este
presente: significa que a operação não saberia ter lugar uma vez por todas, que ela
inoperável e que assim ela tende a não ser senão o tempo mesmo que destrói (apaga)
de um Dizer fora do dito, palavra de escritura por onde este apagamento, longe de se
apagar por seu turno, se perpetua sem termo até na interrupção que lhe constitui a
marca.
«Mata-se uma criança». Este passivo silencioso, esta eternidade morte e à qual é
preciso dar uma forma temporal de vida a fim de poder se separar dela por um
vivendo então de sua recusa, desejante deste não-desejo e falante por e contra sua
não-palavra, não há nada (saber ou não-saber) que possa nos advertir dela, mesmo se
em poucas palavras a mais simples das frases parece divulgá-lo (mata-se uma
criança), mas frase imediatamente arrancada de toda linguagem, uma vez que é para
fora de consciência e inconsciência que ela nos atrairia, a cada fez que nos seria
pronunciá-la, impronunciável.
(Uma cena primitiva?) Vocês que vivem mais tarde, próximos de um coração que
não bate mais, suponham, suponham-no: a criança – ela teria sete anos, oito anos
talvez? – de pé, afastando a cortina e, através da vidraça, olhando. O que ela vê: o
jardim, as árvores de inverno, o muro de uma casa: enquanto ela vê, sem dúvida à
luz de uma criança, seu espaço de jogo, ela se cansa e lentamente olha para o alto
em direção ao céu ordinário, com as nuvens, a luz cinza, o dia opaco e sem
distância.
uma tal ausência que tudo nela desde sempre e para sempre se perdeu, a ponto que
nela se afirme e se dissipe o saber vertiginoso de que nada é aquilo que há, e de
consolá-la. A criança não diz nada. Ela viverá doravante no segredo. Não chorará
mais.
transformado na unidade do Saber que se sabe a si mesmo, o que quer dizer que o
mundo para sempre deveio ou está morto, assim como o homem que dele foi a figura
passageira, do mesmo modo que o Sujeito cuja identidade sábia não é mais do que a
indiferença à vida, sua vacância imóvel: a partir daí onde nos é dado raramente,
mesmo que seja ativamente, e pelo jogo mais perigoso, nos portar, não somos de
maneira alguma livrados da dialética, mas esta se torna puro Discurso, aquilo que se
fala e não diz nada, o Livro como jogo e jogada do absoluto e da totalidade, o Livro
que se destrói se construindo, o trabalho do “Não” em suas formas múltiplas por trás
última.
linguagem por relação ao que parece que não haja Saber que não deva se
linguagem à vida», se invertesse por seu turno, a vida acabada, quer dizer cumprida,
modelo de toda ciência) a tarefa de dizer tudo se dizendo sem fim. O que pode, sob a
formas, de modo que não se estaria jamais seguro de que a exigência dialética não
pretenda a sua própria renúncia para se renovar com aquilo que a põe fora de causa -
inefetiva. De onde segue, mas não segue talvez nada, nem mesmo este talvez,
mesmo que sejamos condenados a ser sempre salvos pela dialética da qual seria
preciso primeiro saber aquilo que autoriza a duvidar que ela possa ser, não direi
diálogo com Sócrates ou, de modo mais geral, a recusa de preferir à violência muda
a violência já falante: preferência ou decisão sem a qual, segundo Eric Weil, não
seria possível haver nem dialética, nem filosofia, nem saber. Ou antes, será que não
restaria alguma coisa desta recusa no processo dialético? Não persistiria nele ao
mesmo tempo se modificando até dar lugar àquilo que não se poderia chamar uma
faz funcionar poderia se separar dela e sob quais condições, a que preço? Que isso
deva custar caro, muito caro – sem dúvida a razão, em forma de logos, mas há uma
de crer que se possa, uma vez por todas, exceder estes limites, designar zonas de
não é fazendo obstinadamente seu jogo que nos aconteceria de driblá-la ou de pô-la
No lugar da recusa – que é sem lugar – invocada por Eric Weil, talvez seria preciso,
fora de todo misticismo, entender aquilo que não entendemos: a exigência não
há em geral nome separado, nominal, predominante, mas sempre toda uma frase
acabada, em seu sistema não fechado, procura se deixar encarregar por um processo
de verbos, mas, ao mesmo tempo, na tensão jamais apaziguada entre nome e verbo,
pertencer a ela.
Assim a paciência do desastre nos conduz a não esperar nada do «cósmico» e talvez
«desastre», ruptura sempre em ruptura, parece nos dizer: não há lei, interdito, depois
transgressão, mas transgressão sem interdito que termina por se congelar em Lei, em
procura, formando enigma, se escrever, para nos afastar (mas não uma vez por
que nós nos dissolvemos nele, e que seria repouso natural, como se houvesse uma
anuncia nada além do que a recusa do profético com simples evento por vir, abrindo,
poder, isso que não se passa sob um céu sideral, mas aqui, um aqui em excesso sobre
uma extremidade que forma parada e encerramento. Devemos passar por esse saber
uma escritura que profetiza porque ela se cumpre renunciando a tudo: anunciar
talvez seja renunciar. O combate teórico, mesmo que seja contra uma forma de
violência, é sempre a violência de uma incompreensão; não nos deixemos deter pelo
é somente o choque das armas; a razão martelante está à procura de seu derradeiro
confronto por onde não sabemos se começa, se toma fim o pensamento que se
prolonga, como um sonho feito de vigília. Por que o ceticismo, mesmo refutado, é
invencível? Levinas se pergunta isso. Sabia disso Hegel, que fez do ceticismo um
ela parece demasaido exposta para ser dita cética, supõe também que o ceticismo
deixa previamente e sempre de novo o lugar limpo, o que não pode ainda chegar
O ceticismo, nome que rasurou sua etimologia e toda etimologia, não é a dúvida
mesmo tempo não cada vez) que a autoridade, a soberania da razão, até mesmo da
ceticismo não destrói o sistema, ele não destrói nada, é uma espécie de alegria sem
riso, em todo caso sem zombaria, que de um golpe só nos desinteressa da afirmação,
da negação: assim neutro como toda linguagem. O desastre seria, também, esta parte
de alegria cética, sempre indisponível, e que faz passar o sério (da morte, por
exemplo) para além de todo sério, do mesmo modo que ela alivia o teórico não nos
ceticismo».
As tensões que se unificam não podem muito menos dar lugar a uma afirmação;
não se pode então dizer, como se, por aí, se se liberasse de toda dialética: afirmação
das tensões, mas, antes, paciência tendida, paciência até a impaciência. O contínuo o
contínuo se impõe sob todas as formas, como se impõe o Mesmo, de onde o tempo
apaziguada que permite a vida, que inclui a morte (como quando se cita,
complacentemente e sem buscar aquilo que se decidia por ele por esta maneira
tradução aqui carrega aquilo que haveria para traduzir, mas não traduz, como
que fosse como ruptura? Por que este tormento monótono que se escande na
escritura fragmentária e que assim chama pela paciência e não porque esta ajudaria
indecisa sem ponto de interesse, lá onde isso velaria sempre sem que saibamos, no
desfalecimento tendido por uma identidade que põe a nu a subjetividade sem sujeito.
O presente, se ele se exalta em instantes (aparecendo, desaparecendo), esquece
forma pura e vazia onde tudo se ordenaria, se distribuiria seja igualmente, seja
mesmo que seja através da experiência da fenda, numa coerência que se unifica e se
onde se imobilizaria uma vez por todas, sem problemas nem questões, tudo aquilo
que temos que pensar), nos obriga a nos retirar do tempo como irreversível, sem que
A crítica é quase sempre importante, mesmo que ela fosse parcial, travestidora.
irregularidade consigo mesma, portanto com o todo outro, não sabe aquilo que
moral passional. Daí que nos arranjemos para nos reconhecer sempre divididos: um,
o sujeito livre, trabalhando para sua liberdade imaginária pela luta para a liberdade
de todos e nisso respondendo à exigência dialética; o outro que não é mais um, mas
sempre vários e, bem mais, em relação com a pluralidade sem unidade da qual
que ele nos traz de escapar a uma experiência presente e rumo à qual a palavra de
falamos dois; mas como o outro é sempre outro, não podemos nos consolar nem nos
desfaz todo modelo e todo código, é, antes, a não-relação da qual não somos
encarregados.
lá onde é necessário agir quando a linguagem se faz ato, no tumulto da violência que
se desenvolve a partir dela e a domina também: tal é a lei do Mesmo. Não é preciso
se desviar disso nem muito menos parar nisso, e é então em direção a um tipo
inconsciência, por meio daquilo que vacila entre a vigília e despertar, nós nos
pode por seu turno dar lugar a uma dialética, sem que, entretanto, a exigência outra,
aquela que não pede nada que se deixa sempre excluir, o esfacelamento
obras da cultura.
E ainda uma palavra: não é preciso dar fim ao teórico na medida em que este seria
aquilo que não dá fim, na medida também em que todas as teorias, por mais
diferentes que sejam, se intercambiam sem cessar, distintas somente pela escritura
Admito (a título de ideia) que a idade de ouro seria a idade despótica em que a
modo que esta ordem à qual, que eles vivam, que eles morram, todos são submetidos
felizes, é aquilo que há de mais natural, já que a obediência rigorosa ao governo que
a assegura torna este único, invisível e certo. De onde resulta que todo retorno à
ainda que, se se lê bem uma tradição grega, não há natureza, e tudo é «político»
tradição dos camponeses atenienses, era tida como a idade de Cronos ou a idade de
ouro, como se a hierarquia mais dura, quando todos os valores são de um só lado, se
feliz.
ombros curvados, sem pensamento, sem olhar». «Nossos olhares estavam virados
para o solo».
trabalhador toma o poder, devém o extremo castigo em que não se trata mais de
N. t. Inscrições em campos nazistas.
exploração nem de mais-valia, mas o limite em que todo valor se desfez e o
«produtor», longe de reproduzir ao menos sua força de trabalho, não é mesmo mais
o reprodutor de sua vida, o trabalho cessando de ser sua maneira de viver e devindo
seu modo de morrer. Trabalho, morte: equivalentes. E o trabalho está em todo lugar,
em todo momento. Quando a opressão é absoluta, não há mais lazer, «tempo livre».
trabalhar consiste em carregar em passo de corrida pedras até tal lugar, empilhá-las,
mesmo. No entanto, ele guarda um sentido: não somente destruir o trabalhador, mas,
mais imediatamente, ocupá-lo, fixá-lo, controlá-lo e, ao mesmo tempo, talvez lhe dar
consciência de que produzir e não produzir, é uma coisa só, é igualmente o trabalho,
mas, por aí, fazer tomar consciência deste nada, o trabalhador, que a sociedade que
se exprime pelo campo de trabalho é aquilo contra o que é preciso lutar, mesmo
morrendo, mesmo sobrevivendo (vivendo apesar de tudo, abaixo de tudo, para além
sua recusa (eu não me mato, porque isso lhes daria muito prazer, eu me mato,
com aquilo que há de mais insuportável no poder. Penso neste jovem detido de
cadáveres, mas quando os SS fuzilavam, ele devia manter a cabeça da vítima para
que se pudesse alojar mais facilmente uma bala na nuca). A quem lhe perguntava
como ele pudera suportar isso, ele teria respondido que ele «observava o
comportamento dos homens diante da morte». Não acreditarei nele. Assim como nos
crematório: «A verdade foi sempre mais atroz, mais trágica que aquilo que se dirá
dela». Salvo no último instante, é no último instante que o jovem homem de quem
falo era cada vez obrigado a viver e a reviver, cada vez frustrado de sua morte,
trocando-a pela morte de todos. Sua resposta («eu observava o comportamento dos
homens...») não foi uma resposta, ele não podia responder. O que resta, é que,
forçado por uma questão impossível, ele não pôde encontrar o álibi que, na busca do
saber, na pretensa dignidade do saber: esta conveniência última na qual nós cremos
que ela nos seria concedida pelo conhecimento. E como, com efeito, aceitar não
conhecer? Lemos os livros sobre Auschwitz. O voto de todos, lá, o último voto:
saibam o que se passou, não esqueçam, e ao mesmo tempo jamais vocês saberão.
Pode-se dizer: o horror domina em Auschwitz, o não-sentido, no Gulag? O horror
para vencer. No Gulag, até à morte de Stalin e à exceção aos oponentes políticos dos
não há políticos: ninguém sabe por que está lá ; resistir não tem sentido, exceto para
com dez anos, ele vinha às vezes procurar seu pai no campo; um dia, não o
encontraram; imediatamente, seu pai pensou: ele foi recolhido por descuido e
consequência: como ele temia ter-se mostrado fraco, ele deu a ordem de multiplicá-
acrescenta Langbein, para os párias: nem esporte, nem cinema, nem música. Há um
limite onde o exercício de uma arte, qualquer que seja, torna-se um insulto à
necessidade, como o disse vivendo-a Robert Antelme, porta tudo, mantendo uma
relação infinita com a vida, mesmo que seja da maneira mais abjeta (mas não se trata
mais aqui de alto nem baixo), consagrando-a por um egoísmo sem ego, há também
este limite em que a necessidade não ajuda mais a viver, mas é agressão contra toda
a pessoa, suplício que desnuda, obsessão de todo o ser lá onde todo o ser se desfez.
alguns instantes» e de que tanto faz se alimentar ou não. Este clarão, este lampejo
não iluminam nada de vivente. Entretanto, por este olhar que é um último olhar, o
pão nos é dado como pão: dom que, fora de razão, os valores exterminados, na
desolação niilista, toda ordem objetiva renunciada, mantém a chance frágil da vida
coisa que é dada sem partilha por aquele que disso morre («Grande é o comer», diz
Levinas, conforme uma palavra judia). Mas ao mesmo tempo a fascinação do olhar
vida do pão, muito menos para satisfazer uma necessidade, ainda menos para torná-
Mas o perigo (aqui) das palavras em sua insignificância teórica talvez seja
pretender evocar a nadificação onde tudo soçobra sempre, sem ouvir «calem-se»
cessar, porque aquilo que recomeçou a partir deste fim (Israel, nós todos), é marcado
por este fim com o qual não terminamos de, por ele, nos despertar.
ela, esquecer não é somente uma falta, uma omissão, uma ausência, um vazio (a
partir do qual nós nos lembraríamos, mas que, no mesmo momento, sombra
negativo nem positivo, seria a exigência passiva que não acolhe nem retira o
passado, mas, designando nele aquilo que jamais teve lugar (como no por vir aquilo
que não saberá encontrar seu lugar num presente), reenvia a formas não históricas do
tempo, ao outro dos tempos, a sua indecisão eterna ou eternamente provisória, sem
O esquecimento apagaria aquilo que jamais foi inscrito: rasura pela qual o não-
escrito parece ter deixado um traço que seria preciso obliterar, deslizamento que
vem por isso a construir para si um operador por onde o ele sem sujeito, liso e vão,
imitação de nada, que se congelará no Eu [Moi] certo do qual toda ordem revém.
em memória e memória vivente e revificada. É assim. Pode ser de outro modo. Mas
inoperante, para sempre desobrado, que não é nada e não faz nada (e que mesmo o
como ao desconhecimento, não nos deixa tranquilos, não nos inquietando, já que nós
relato fabuloso (retorno ao dizer mesmo). Mas resta que a palavra mito protege, na
inatual que não agirá, ao menos para aqueles (nós todos) que vivendo parecem não
logos) tira de nós como desterrados, privados pela linguagem mesma da linguagem
entendida ainda como terra em que se enterraria a raiz germinal, a promessa de uma
vida em desenvolvimento.
A vida tão precária: jamais presença de vida, mas nossa eterna prece a outrem para
Do «câncer» mítico ou hiperbólico: por que ele nos apavora por seu nome, como
(e «realizaria») a recusa de responder: eis então uma célula que não entende a
ordem, se desenvolve fora da lei, de uma maneira que se diz anárquica – ela faz
universal – tarefa outrora cumprida pela lepra, depois pela peste. Qualquer coisa que
Não é, portanto, pela simples morte no trabalho que o câncer seria uma ameaça
de morrer e devolvendo a este seu traço de não se deixar contar nem entrar em linha
eterna, aquele que dela morre pensa, e é essa a ironia de sua morte: «Eu morro de
minha eternidade».
texto, textual, depois ser, depois finalmente todas as palavras, o que não seria
que as atravessa não saberia se deixar surpreender por uma operação de retração -
atração.
parte. A comunidade não se imuniza, sempre passou além da troca mútua de onde
ela parece vir, vida do irreciproco, do introcável, daquilo que arruína a troca (a troca
tem sempre por lei o estável). Mudar supõe, por contraste, a não-mudança. Mas
mudar a partir do fora que exclui o mutável e o imutável e a relação que se introduz
sistema geral que a lei domina e que faz poucas diferenças entre útil e inútil: a
pertence ao rigor da gestão de coisas que não funciona senão graças a um certo jogo,
que não é o signo de um fracasso, mas uma forma de gasto onde a usura se preserva
fazendo uma parte àquilo que aparentemente não serve. Não se pode então falar da
perda «pura e simples», ou antes, não se pode senão falar dela até o momento em
que a perda, sempre inapropriada e impura, retumba na linguagem como aquilo que
não se deixa jamais dizer, mas ressoa ao infinito se perdendo nele e tornando-o
Nem o sol nem o universo nos ajudam, de outro modo senão por imagens, a
conceber um sistema de trocas marcado pela perda no ponto em que mais nada não
simbólicos. (Georges Bataille jamais pensou por muito tempo: «o sol não é senão a
soberana com a qual nós nos identificamos, mesmo que seja para além de nós
aquilo que não se compreende nele, o ilimitado que se reconstitui sempre pelo
se satisfaz com uma transcendência da qual o ser seria ainda a medida. Procura,
portanto, não procurando nada, aquilo que esgota o ser precisamente onde ele se
por onde não há talvez mais lugar em distinguir entre ser e não ser, verdade e erro,
O dom seria um ato de soberania pelo qual o «eu» que doa livremente e
de mais nada, suspensão de si. O dom seria a paixão passiva que não deixa o poder
tenho mais, não sou mais, como se doar marcasse em sua proximidade a infinita
sempre tomado, quer dizer, talvez o tempo, meu tempo enquanto ele não for jamais
particularidade de vida, o lapso de tempo, o viver e o morrer não na minha hora, mas
mesmo da ordem das coisas, busca por seu turno entrar em linha de conta, seja
reinvestindo-se como outra coisa, seja deixando-se dizer; por aí, por esse dizer que a
eles pregam ou teorizam – todos os dois, homens de arranjo e de unidade para quem
Não contem com a morte, a de vocês, a morte universal, para fundar o que quer que
seja, nem mesmo a realidade desta morte tão incerta e tão irreal que ela se esvanece
sempre de antemão e que com ela se esvanece aquilo que a renuncia. As duas
mostram bem, mostram talvez que a transcendência – esta palavra, esta grande
sempre, mesmo que seja sob uma forma negativa. A morte retoma por sua conta a
transcendência divina para sobrelevar a linguagem acima de todo nome. Que Deus
seja morto tem por sequência que a morte é de Deus; a partir do que a frase imitativa
entendida como noção transitória, mas anuncia quer uma super-humanidade com
todos seus semblantes aventurosos, quer a denúncia da figura humana para que se
anuncie, de novo e em seu lugar, o absoluto divino que a morte importa, do mesmo
Daí que nós sejamos chamados a levar em conta aquilo que, ironicamente
(«senhoras, senhores»), Celan gostaria de nos dizer. Nós o podemos? Ressalto que
ele põe em relação, por uma relação de enigmática justaposição, a palavra o infinito,
a palavra a morte vã, esta redobrada pelo Nada como terminação decisiva: o nada
final que, no entanto, está sobre a mesma linha (sem precessão nem sucessão) do
que a palavra que vem do infinito, onde o infinito se dá, retine infinitamente.
Palavra de infinito, palavra de nada: isso vai junto? Junto mas sem acordo, sem
acordo mas sem discordância, pois há palavra de um e de outro, aquilo que deixaria
pensar que não haveria palavra poética se o entendimento infinito não se desse a
ausência que seria o traço mesmo de todo doar. Assim, venho a esta suposição:
uma possibilidade humana, são talvez somente o signo de uma linguagem ainda
extinção do sopro: únicas marcas de poesia. (Mas «únicas»? Esta palavra, em seu
desígnio de exclusão, falta à pobreza que não saberia se defender, e deve por seu
turno se extinguir).
finito que, por isso, não termina de terminar e se prolonga sem fim pelo desvio
a marca daquilo com que ele rompeu, sendo o rejeito da solução, o distanciar toda
ligação ou toda relação. Mas, enfim, aquilo que um discurso filosófico ou pós-
sequência verdade, não o traço primeiro de tudo aquilo que se mostra em presença,
subtrair que não o é por relação ao homem ou nele mesmo, que não é destinado à
divulgação, mas que é portado pela linguagem como o segredo silencioso desta. De
saber «etimológico» de uma língua (que não é apesar de tudo senão um saber
entendida como ser, não que seja preciso dizer o contrário, a saber que presença
ser e como tal sempre verdadeira, não seria senão uma maneira de afastar a falta,
mais precisamente de faltar à falta, mas que talvez não haveria lugar para estabelecer
uma relação de subordinação ou qualquer relação que seja entre ausência e presença,
e que o «radical» de um termo, longe de ser o sentido primeiro, o sentido próprio,
não alcançaria a linguagem senão pelo jogo de pequenos signos não independentes e
aquilo que gostaria de se dizer numa deriva geral onde não há mais nome que como
sentido pertença a si mesmo, mas não tem por centro senão a possibilidade de se
limite se perder. (Pode-se ainda propor esta observação à reflexão, mesmo se a moda
se apodera dela para pôr em valor como índex cômodo aquilo que na linguagem não
atraído por pré-conceitos que não se quer ou não se pode reconhecer. A palavra
mesma etimologia reenvia por sua etimologia a uma afirmação que regula aquilo
sobre aquilo que se se interroga: saber do sentido «verdadeiro» das palavras (o que
se pode dizer do etymon?). Mas não podemos nos deixar prender a uma tal
Por que a filiação nos impressiona? O sentido mais antigo de uma palavra na
que a linguagem corrente utiliza usada ou em razão da usura. Com esse pensamento-
sorrateiro [arrière-pensée] de que o mais antigo está mais próximo da pura verdade
ou remete em memória aquilo que se perdeu. Ilusão fecunda ou não, mas ilusão.
Jean Paulhan mostrou que a etimologia não saberia constituir prova. Como
Benveniste e com ele, Paulhan mostrou que nós não remontamos necessariamente
pela etimologia a um sentido mais concreto, até mesmo mais «poético», já que
mesmo modo que não se vai da motivação à imotivação. Para, assim, revir à
resta a saber por que, revelando o pensamento grego, ela – a etimologia de alethéia –
parece ignorada pelos gregos - e por que Platão, talvez por jogo, mas que seriedade
no jogo, tenha lido ale-théia, descobrindo um sentido que se pode traduzir por:
errância divina - o que não é também de pouca importância. A verdade (aquilo que
errante, extravio dos deuses; de onde segue que é a palavra «divino» - théia - que
ressoa de saída em alethéia e que o a privativo não funciona então de uma maneira
privilegiada, mesmo se se duvida que a palavra tão antiga, apeíron, tenha podido
ambos tão pouco ingênuos, tão ingenuamente quanto Hegel transportado pela língua
alemã qualificada de especulativa porque ela porta a palavra Aufhebung. Pois foram
um e o outro, seja com a ajuda de uma etimologia suposta (provável), seja por uma
escapa. (Heidegger: «É o dote mais sublime que a língua dos gregos já recebeu ». E,
pensá-la, não pertence ainda à língua grega, pois não há língua e logos senão pela
alethéia que é liberada de todo olhar sobre a verdade e mesmo sobre o ser.
Entretanto, é preciso dizer também que ela «joga na totalidade da língua grega » e
que, se Heráclito não a encontra, não se expõe a ela, é por causa da predominância
nele e por ele do logos. Bloqueio em algum modo da a-lethéia pelo legein. Enfim,
4
N. T: Em francês “Desabritement”.
sentido que tinha previsto Platão (no Crátilo). De onde a precaução de não insistir
mito da caverna é também o mito do abrigo: arrancar-se àquilo que abriga, desviar-
se dele, desabrigar-se, eis aqui uma das peripécias maiores que não é somente aquela
ser », como o diz ainda Platão – retorno brusco que nos põe em face à exigência da
virada. Que tal ou qual maneira de traduzir engaje a esse ponto o pensamento, pode-
se se assustar com isso, lamentar-se e concluir que a filosofia não é senão uma
questão de palavras. Nada a dizer contra isso, senão que é preciso sempre se
perguntar, como o sugeria Paulhan, por que uma palavra é sempre mais do que uma
fácil?).
Resta ainda que a etimologia, saber certo ou incerto, fixa a atenção sobre a palavra
filósofos, o que é preciso elucidar, não são as palavras… são as frases»). Mas muito
menos nada está decidido por aí. O privilégio concedido ao verbo que reduz o nome
a uma ação somente congelada, fixada, mesmo se ele constrange a opção cratiliana,
mesmo se ele torna mais difícil a criação etimológica, nos faz reencontrar os
mesmos problemas quase não modificados: frases, sequências de frases,
sem pensar neles. A menor palavra, dizia já Humboldt, é toda a linguagem, todo o
Resta enfim que o delírio sábio da etimologia está em relação com a vertigem
histórica. Toda a história de uma língua, sob a pressão de certas palavras, se abre e,
dependência de um passado ao qual pedimos contas ou que nos mantém não sem
prestígio em seu esquecimento. O escritor que joga, inventa ou, de uma maneira
do que exageradamente confiante na força criadora da linguagem que ele fala, vida
escritura detém, do mesmo modo que ela tende a nos arrancar a todo natural, a série
linguageiro.
O outro perigo da etimologia não é somente sua relação implícita com uma
maneira sedutora, é que ela nos impõe sem poder justificá-la nem mesmo assim se
explicar com isso uma certa concepção de história – qual? Está longe de estar claro:
necessidade de uma proveniência, continuidade sucessiva, lógica de
em certos momentos se deram livre curso e que, desde que a ciência da linguagem
impôs conquistas quase certas, não aparecem mais do que como uma pequena
mesmo exigindo a miragem lexical ou ainda a mimar, para deles rir, os usos do
importância. Salvo neste fato de que o ceticismo parece ganhar, mas o ceticismo
pede mais.
sentido corrente é «evento»-, Eraügnis, do qual ele o aproxima (por uma decisão
que a palavra olho, Auge, se deixa adivinhar, que chama, pois, pelo olhar, o ser nos
olharia; o que de novo relaciona ser e luz) e Ereignis se analisando de tal sorte que a
palavra eigen, «próprio», se destaca ao ponto que «o evento» devém aquilo que faz
advir ao nosso ser «o mais próprio» («Duden» recusa a relação etimológica entre
nos torna trapaceados por uma espécie de necessidade transhistórica. É verdade que
a exigência de uma «justificação» pode, por seu turno, aqui como alhures, ser
acolhida e rejeitada. Não há nada a justificar, isso não releva do justo ou do não-
justo, mas se dá como uma incitação a pensar e a interrogar. Heidegger diz: «Jamais
crer em nada, tudo tem necessidade da prova». Eis porque nós também nos
filosoficamente oneroso.
não indique nada que anunciaria «propriedade» e «apropriação», que ela é ilimitada,
na medida em que «ser» não é mais sua conveniência e não saberia se decidir a isso.
Mas por que eigen, «próprio» (como traduzi-lo de modo outro?) Ao invés de
«impróprio»? Por que esta palavra? Por que «presença» em sua afirmação teimosa
(paciente), que nos entrega ao repúdio da «ausência», do mesmo modo que, outrora,
do «próprio» que finalemente nós não podemos acolher ao mesmo título que aquilo
verdade sem a qual o dom da escritura, o dom do Dizer, dando tanto a vida quanto a
morte, tanto o ser quanto o não-ser, não seria mais essa despesa que desarranja todo
neles recebido ao mesmo tempo que recusado, é o apelo àquilo que nos obriga, por
isso, a não mais terminar e não saberia se reclamar uma verdade, mesmo que ela
fosse entendida como não-verdade. Assim a errância corre em vão sobre o seu erro.
(Não esqueçamos que, para Heidegger, o Ereignis tem também por traço sua
Nem ler, nem escrever, nem falar, é, no entanto, por aí que escapamos ao já dito,
onde aquilo que é dado talvez não seja recebido por ninguém. Generosidade do
O dom de escrever é precisamente aquilo que a escritura recusa. Aquele que não
sabe mais escrever, que renuncia ao dom que recebeu, cuja linguagem não se deixa
«próprio» que, mesmo sem estar, dá lugar ao advento. Quem louva o estilo, a
tudo e ser abandonado de tudo. Em breve ele será notável; a notoriedade o entrega
Nem ler, nem escrever, nem falar, não é o mutismo, talvez seja o murmúrio inaudito:
estrondo e silêncio.
«Só alcançou o fundo de si mesmo e reconheceu toda a profundidade da vida
aquele que um dia abandonou tudo e foi abandonado por tudo, para quem tudo
soçobrou e que se viu só com o infinito: é um grande passo que Platão comparou
Por que mais um livro ainda, lá onde o abalo da ruptura - uma das formas do
desastre - o devasta? É que a ordem do livro é necessária àquilo que lhe falta, à
que escapa à lei, ao rastro, assim como ao resultado de um sentido garantido. Mas o
tempo que se reporta a ele: ele o atrai no abissal, o mantém ao desabusá-lo. Próprio
aquilo além do qual ele passa. Daí o apelo ao fragmentário e o recurso ao desastre,
Por que mais livros ainda, senão para provar-lhes o fim tranquilo, tumultuoso que
múltiplo nos entregam a essa « tarefa do passamento » da qual fala M'Uzan, mas que
não saberia se contentar, como ele o sugere, de fazer viver a vida até o esgotamento
que a «biografia» já rasurada, que é vida e morrer de escritura (tal como Roger
Laporte nos propôs o nome solitário), não deixa nada chegar, não garante nada, nem
escritor.
Ele escrevia, quer isso fosse possível ou não, mas não falava. Tal é o silêncio da
escritura.
«Escrever é incessante, e, no entanto, o texto não avança senão deixando para trás
mesmas são rapidamente reinscritas, pelo menos por muito tempo que...» (Roger
Laporte) – «Escrever... poderia constituir bem mais do que um gênero novo». Mas
«se Escrever exige e, no entanto, recusa toda escritura, toda tipografia, todo livro,
como escrever?»... «Não compreendo mais como pude por tanto tempo me
identificar com o projeto estético de criar um gênero novo». « Escrever não foi
o fim.
importância do materialismo.
Há uma leitura ativa, produtiva - produzindo texto e leitor, ela nos transporta.
Depois a leitura passiva que trai o texto, parecendo se submeter a ele, dando a ilusão
Enfim, a leitura não mais passiva, mas de passividade, sem prazer, sem gozo,
insônia «inspiradora» em que se ouviria o «Dizer» para além do tudo está dito e em
filosofia (metafísica).
Mesmo em Heidegger, ao longo de um seminário que parece autorizar com sua
presença, a questão da entrada no advento (Ereignis, com tudo o que esta palavra
aporta) implica falar do «fim da história do ser», nuançando-a com estas precauções:
« Há que se meditar se ainda é possível falar de ser e também de história do ser após
Mas é duvidoso que Heidegger se tenha reconhecido numa tal proposição cujo
mérito é a temeridade e cujo sentido é somente demasiado claro: as doações que são
as maneiras pelas quais o ser se dá ao se retirar (para se ater aos Gregos: logos em
advento, advém, cessando de se deixar esquivar pelas «doações de sentidos» que ele
torna possíveis através de sua retração. Mas se uma decisão histórica (já que é
advir a nosso (ser) «o mais próprio», seria preciso muita ingenuidade para não
pensar que a exigência de se retirar cessou, desde então. É antes o «se retirar» que
rege de uma maneira mais obscura, mais instante, pois o que se pode dizer do Eigen,
«nosso ser mais próprio»? Nós não o sabemos, a não ser que ele reenvia a Ereignis,
da mesma maneira que Ereignis o «encerra», ao mesmo tempo que o mostra por
uma análise verbal necessariamente grosseira. De novo, nada é dito quando tudo é
dito pelo mais prudente dos pensadores: exceto que se coloca a questão, com
Heidegger que não a coloca diretamente, do fim da história do ser – assim como
Por que escrever, entendido como mudança de época, entendido como a experiência
deste «fragmento», que ele revoga entretanto? Que ele revoga, mesmo se aquilo que
nele se anuncia, se anuncia como um novo que sempre já teve lugar, mudança
Quanto à afirmação da história, campo de uma dialética que seria outra que a
progresso nem regresso (não circular), ela não pode muito menos renunciar a
o alethéia não se entenderia senão a partir de e em lethé. Mas nós podemos sempre
recusar esta decomposição lexical. Podemos sempre pôr e entrever que a exigência
infinito da linguagem como conjunto infinito é, então, sempre pressuposto para que
que ele fizera o reencontro com uma morte totalmente outra, o não-lugar do sem
fronteiras, cf. Desanti). O uso do bom e do mau infinito devido a Hegel, pelos
finito, é aquele cujo entendimento (que não é de nenhum modo mau) tem
e quantum. Mas o que se pode dizer do mau infinito? Entregue ao repetitivo sem
retorno, ele não se choca com o sistema hegeliano, à maneira de um desastre? O que
leva a sugerir que o infinito se deixaria decidir como aquilo que é dado como
primeiro, dando lugar em seguida ao finito, este infinito imediato desarranjaria todo
ironizando sobre o infinito noturno. Enfim, o apelo a um «infinito atual dado», nós
etimológicas que consideramos por provas e das quais tiramos decisões filosóficas
que nos trabalham em segredo. Tal é o perigo, até mesmo o abuso que põe em causa
Será que os gregos pensavam alethéia a partir de lethé? É duvidoso. E que nós
possamos substituí-los por nós, dizendo que eles eram, entretanto, regidos por esse
im-pensado, é um direito filosófico contra o qual não haveria nada a dizer, se nós
afirmadas por Heidegger entre pensamento e saber, todo saber tendo necessidade de
um «fundamento» que não lhe pertence e que o pensamento está destinado a lhe dar
Ereignis, palavra «última» do pensamento, talvez não ponha em jogo senão o jogo
do idioma do desejo.
necessidade temporal, a vida sem presente, que a duração universal não rege (o
tempo vivido: eis aquilo que extrai de melhor maneira o tempo, pura diferença, o
como sobre-vida, ultrapassamento da vida; mas exigência de uma outra vida que
seja vida do outro, de onde tudo vem e para o qual, virados, nós não nos reviramos.
sua vivacidade, sua retenção ao mesmo tempo que sua doação, recusam a simples
desvela.
Aurora) vai de par com tudo o que Nietzsche diz contra o perigo que haveria em se
seu desgosto pelos «alucinados divagantes, os extáticos que procuram por instantes
excessiva, não vigiada, feita às palavras isolada : «Em todo lugar onde os homens
colocavam uma palavra, eles acreditavam ter feito uma descoberta... tinham
petrificadas, eternizadas», será que ele quer, assim, revir à linguagem como dialética
entanto, a suspeita, ao mesmo tempo que muda de forma, não é apaziguada. Outra
palavras senão para os estados extremos» - alegria, dor -, frustrando o dia cinza, o
que nós não temos palavras para o extremo; que o ofuscamento, a dor fazem
queimar todo vocábulo e o tornam mudo (paradoxo da etimologia: se o
antes de tudo «frágil», depois « de vista fraca», nos admiramos pelo fato de que o
excesso de luz, aquela que cega, tenha que se dizer a partir de uma miopia, de um
déficit do olho – aquilo que atrai na etimologia é sua parte de desrazão mais do que
aquilo que ela explica, a forma de enigma que ela preserva ou redobra decifrando).
Mas Nietzsche não observa somente, como mais tarde Bergson, que as palavras não
suspeita bastante.
intervalo, a descontinuidade.
As raízes, invenções dos gramáticos (Bopp) (dito de outro modo, ficção teórica,
mas a teoria linguageira não é mais fictícia do que não importa qual saber). Ou
então, diz Schlegel, «assim como o nome o exprime», « germe vivente sempre à obra
na linguagem». Assim como o nome o exprime: (o nome, aqui, «raiz»), esse apelo ao
nome mostra a petição de princípio, a circularidade da qual toda linguagem tira sua
fecundidade: a raiz tendo sido nomeada por analogia com o crescimento vegetal e
tira a ideia de que a raiz é o germe formador pelo qual as palavras, em línguas
crentes e crentes: eles todos tendo e não tendo razão. O escritor que, como
Heidegger, retorna à raiz de certas palavras ditas fundamentais e delas recebe uma
concepção segundo a qual há na raiz uma potência ao trabalho e que faz trabalhar.
coisas, do ser em geral (o real) pelas palavras em sua sonoridade que ele tinha
[soprar5], Wind [vento], Wolke [nuvens], wirren [turvar], Wunsch [anelo], o reflexo
ideia de imitação e não lhe presta uma importância decisiva. Mais decisiva é a
5
Em francês respectivamente souffler, vent, nuage, troubler, souhait.
com a língua e se determina sem fim, ação interrompida, ininterrupta, a qual faz em
pode ser comparada a uma trama imensa na qual cada parte está religada a todas as
outras e onde todas estão no conjunto segundo uma coesão mais ou menos
(Quando Humboldt escreve: «Que haja uma conexão estreita entre o elemento
fonético e sua significação, isso é incontestável, mas é raro que se possa apreender
disso sistematicamente a organização: não se pode na maioria das vezes senão ter
disso uma impressão difusa, e sua natureza profunda nos escapa», esta é uma
símbolo mais ou menos como Hegel: pelo símbolo é tornado legível ou mostrável o
elemento fonético»).
O que quer que diga Gérard Génette contrariamente talvez àquilo que ele mesmo
possibilidade de um saber linguístico e que nenhum escritor escreve se ele não o tem
em mente a fim de repelir, mesmo se ele cede a elas, todas as facilidades miméticas
Emmanuel Levinas, Heidegger? A questão vale ser posta sem que haja conveniência
e unidade de resposta. Que se evoque Nietzsche e Mauss para um, isso permite
ordem, transgressão, restituição de uma economia mais geral que a gestão de coisas
obrigação; o que conduz à ideia do dom que não é o ato gracioso de um sujeito livre,
Não seria preciso se ater a interpretação demasiado fácil daquilo que se entende (e
ser se doa enquanto o tempo se retira, nós não dizemos nada porque entendemos
«ser » em maneira do «ente» que doa, se doa e favorece. No entanto, Heidegger diz
(ser)». Sem nada concluir, recebemos daí a doação sempre em relação com a
experiência da presença, sem que, todavia, o « se doa » ou o «ele doa» possa, apesar
das precisões que fazem «o advento» intervir, aceitar qualquer sujeito explícito.
Quem doa? O que é que se doa? Questões sem conveniência que ressoam na
linguagem.
culto, ela tornou-se uma ocupação». «A linguagem, casa do ser». Mas repitamos
com Levinas, ainda que ele privilegie o Dizer como dom de significância: «A
duplo movimento que não é tão contraditório quanto sua formulação bastante
apertada o dá a ler, resta a regra de toda prática escrevente: o «se doar se retirar »
tem aí, não direi sua aplicação nem sua ilustração, termos pouco adequados, mas
distância a distância (igualmente); aquilo que dá a pensar que está à obra por aí o
impulso repetitivo, quer dizer o ritmo. Arte e escritura, não distintas. Uma outra
afirmação: «Se existe um ponto sobre o qual tenhamos agora toda certeza, é que o
afirmar, com esta reserva: abstrato para nós, quer dizer, para nós, separação,
escapa, ao mesmo tempo que permanece em obra. Só que a linguagem porta também
o símbolo em que simbolizante e simbolizado podem ser parte um do outro (isso dito
representação que ele desborda, em todo caso ligado por uma certa relação
signo e «coisa» uma presença-ausência instável que a arte – e a arte como literatura
etimologia nos reenviaria a sreu e rheô, escoar; de onde rhuthmos, fluxo e refluxo
daquilo que escoa (e ritma e rima 1). Mas ninguém decidirá então se é a escansão
1
Como se sabe de agora em diante e como está dito em L'Entretien infini [A Conversa
Infinita], segundo Benveniste, ritmo não deriva provavelmente de rheô, mas, por rhutmos,
de rhusmos que Benveniste fixa na expressão: «configuração cambiante, fluída».
navegadores ousados, apavorados e encantados, amestrando o desconhecido mais
movimento regulado, de uma primeira legalidade: tudo vem do mar para essas
pessoas do mar, como tudo vem do céu para outros que reconhecem tal agrupamento
nascente que rege já toda sua linguagem e que eles falam (escrevem), antes de
nomeá-lo.
segundo a «arte» onde ele parece predominar. O ritmo não é a simples alternância do
ameaça esta entretanto, pois sempre ele a ultrapassa por um retorno brusco que faz
com que estando em jogo ou à obra na mesura, ele não se mensure no jogo e na
libera disso – é o extremo perigo. Que, falando, nós falemos para fazer sentido com
o ritmo e tornar sensível e significante o ritmo fora de sentido, eis o mistério que nos
O atalho não permite alcançar de modo mais direto (mais rápido) um lugar, mas,
aberto e, de uma certa maneira, somente nos abrir ao ritmo ao nos assujeitar
obsessivamente a ele, tornado o Sujeito único que abre e escande o aberto segundo
uma cláusula. Ritmo não é Sujeito de outro modo senão que por abuso. «Tudo é
ritmo» não leva a dizer – o que seria demasiado e demasiado pouco dizer -: o ritmo é
tudo aquilo que é, é segundo o ritmo – afirmação que seria preciso, entretanto,
atingir, pois essa relação do ser com o ritmo, relação inevitável, nos concederia não
pensar o ser sem pensar o ritmo que, ele mesmo, não é segundo o ser. Outra maneira
que repele. O absoluto desejante (o infinito que seria o infinito do desejo, em relação
com o desejo) não passa somente pelo «sem desejo», mas exige o espanto, retração
Nós não repelimos a terra à qual de todas as maneiras pertencemos, mas não
fazemos dela um refúgio, nem mesmo para nela fazer uma estadia, uma obrigação
do imemorável.
ambiguidade que ele mantém do infinito. O indizível seria circunscrito pelo Dizer
elevado ao infinito: aquilo que escapa ao dizer, é não somente isso que é preciso
dizer, mas isso não escapa senão sob a marca e na retenção do Dizer. Do mesmo
faltando a ela.
daquilo que advém, todo presente se exclui. A mudança radical adviria ela mesma
sobre esse modo do não-presente que ela faz advir sem se confiar, no entanto, ao
entre aquilo que se chama por estas palavras, senão uma relação, ao menos uma
como à ficção ; simplesmente para não falar delas assim como de um evento tendo
tido lugar num momento do tempo. – Uma cena: uma sombra, um fraco clarão, um
se fez alusão, é que não há nada de secreto, exceto para aqueles que se recusam à
mallarmeano (ainda que não se possa evitar passar por ele – lembro-me disso
suspender nisso), antes o dito que, sem remeter a um não-dito (como se tornou
espetáculo disso – o assassinato feliz de si mesma que lhe doa o silêncio da palavra.
– As lágrimas são de uma criança ainda. – Lágrimas de toda uma vida, de todas as
vidas, a dissolução absoluta que, alegria ou tristeza, o rosto pueril reergue para
nelas brilhar até a emoção sem signos. – Imediatamente interpretado de modo
muro, jardim de inverno, o espaço do jogo com o que o tédio; é, portanto, o tempo e
seu discurso, o narrável sem episódio ou puramente episódic ; até mesmo o céu, na
dimensão cósmica que ele supõe desde que se o nomeia – os astros, o universo –, é
seja o mesmo. – Nada mudou. – Salvo o abalo de nada - Que rompe, pela quebra de
uma vidraça (por trás da qual se se assegura com uma transparência protegida), o
ausência, a perda e o para o além dissipado. – Mas ''o para além'', embargado pela
decisão desta palavra esvaziada ''nada'' que não é ela mesma nada, é ao contrário
''Não há nada'' . – Nenhuma negação, mas termos que pesam, estâncias justapostas
mudo, e assim usurpando sua relação em frase da qual seríamos bem embaraçados
de designar aquilo que gostaria de se dizer nela. – Embaraço é pouco: que tu
passes por esta frase aquilo que ela não pode conter senão estilhaçando. – De
minha parte, ouço o irrevogável do há que ser e nada, marulho vão, projetando,
não vamos mais longe. – Já tendo sido demasiado avante, voltando atrás. –
qual falar da criança que jamais falou, seria fazer passar na história, na
«A questão sempre suspensa: sendo morto deste ''poder-morrer'' que lhe doa alegria
e assolação, ele sobreviveu, ou antes, que quer dizer então sobreviver, senão viver
fragmentos portam aqui o rastro dela. Mas a etimologia não se mostra neles como
um saber preferencial ou mais original, assegurando sua maestria sobre aquilo que
então não é mais do que uma palavra. Ao contrário, é o indeterminado daquilo que
Que não haja espera do desastre, é na medida em que se pensa que a espera é
que ela não se reporta mais a um porvir do que a um passado acessível, é assim
também espera da espera, o que não nos fixa num presente, pois «eu» tenho sempre
presente dos quais não posso me lembrar mais do que não posso saber se não
esqueço o porvir, o porvir sendo minha relação com aquilo que, naquilo que chega,
não chega, e portanto não se apresenta, não se re-presenta. Eis porque é permitido
Não há origem, se origem supõe uma presença original. Sempre passado, de ora e
já passado, algo que se passou sem ser presente, eis o imemorial que o esquecimento
que detém o Ereignis que não pode se pensar em relação a «ser». Entretanto, mesmo
«impessoal» na morte em relação a que é preciso dizer não «eu» morro, mas se
representar para si nossa própria mortalidade», isso significa além do mais que
morrer é irrepresentável, não somente porque morrer é sem presente, mas porque
não tem lugar, mesmo que seja no tempo, na temporalidade do tempo. Do mesmo
como produção de sentido (sem ser in-sensato), e não se sofre a si mesmo «em nós»
senão como a morte de outrem ou a morte sempre outra, com a qual nós não
Alguma relação, portanto, (na morte) com a violência e a agressividade. Aquilo que
ruptura, a fragmentação, mas sem encerramento, « processo que não tem outra
finalidade que de se cumprir [ou melhor de não se cumprir e à qual seu caráter de
figuras sociais atuais da pulsão da morte (ameaça atômica, etc.) não têm nada a ver
com aquilo que esta tem de infigurável e se reportam ainda mais ao primeiro sentido
do negativo (hegeliano), destruindo para construir talvez. Não a nada a fazer com a
morte que sempre teve lugar: Obra do desobramento, não-relação com um passado
(ou um porvir) sem presente. Assim o desastre estaria para além daquilo que nós
entendemos por morte ou por abismo, em todo caso minha morte, já que não há mais
para Werther o amor-paixão não é senão um desvio para morrer. Após a leitura de
Werther, não houve mais amantes, porém mais suicidas. E Goethe se desencarregou
absolutamente para não morrer, mas pelo movimento de uma morte que não lhe
identidade, responsável daquele a que ele não pode dar resposta, respondente que
não é questão, questão que se reporta a outrem sem muito menos esperar dele uma
portaria e cuja perda deixaria índices de língua a língua, índices que permitiriam de
que, pela escritura, o homem detém um segredo pessoal que ele poderia descobrir
inocentemente sem que o outro saiba, enquanto que, se há um segredo, ele está na
um «mundo»).
qual ele nos encarrega: é que a irreciprocidade com o Outro (outrem) em direção à
qual ele nos orienta - questão imediata e infinita – não se passa no espaço sideral ao
qual ele seria subordinado, substituindo-o por uma heterogeneidade radical. O que
não quer dizer que nós nos desinteressemos dos terceiros que sofrem através de uma
ordem injusta, enquanto que nosso sofrimento seria sempre justificado – para além
da justiça – já que somos responsáveis por aquele que nos faria sofrer (outrem), não
que tenhamos que assumir o mal que ele nos faria sofrer, mas porque a paciência à
qual ele nos vota para além de todo passivo, nos reconduz em direção a um passado
perseguição, o morrer na vida mesma não seria fazer prova de uma espécie de
crueldade para com ele, torná-lo em algum modo cruel? Mas é esquecer que não
tenho que acolher, que assumir aquilo que nos seria feito. Através da passividade da
paciência, o eu [moi] não tem nada a sofrer, tendo perdido até o desaparecimento a
nome, mas esse sem-nome não é o grosseiro anonimato, tal como o define
reconhecê-lo – o ausente - ou, pelas palavras em sua ausência, estar em relação com
não somente ao vazio no sujeito, mas ao sujeito como vazio, seu desaparecimento na
Escrever e a perda; mas a perda sem dom (um dom sem contrapartida) arrisca
sempre ser uma perda apaziguante que traz a segurança. Eis porque não há sem
impossibilidade da morte.
cruel e o odioso para compensar por nosso amor a falta de amor da qual ele é
responsável, a qual provoca uma «dilaceração» das potências do Amor que é preciso
reparar para ele. Mas que significam crueldade, ódio? Eles não são traços de Outrem
pode falar de ódio e de crueldade, é, no entanto, porque, por eles, o mal atinge
ausência, se, por ela, eu não tivesse que portar todo o infinito de todas as linguagens.
nada a acrescentar.
O que diz por vezes Nietzsche dos judeus? «Da pequena comunidade judia
provém o princípio do amor: é uma alma mais apaixonada cuja brasa choca sob
humildade e pobreza: o que não é nem grego nem hindu nem mesmo germânico; o
hino à caridade que Paulo compôs não tem nada de cristão, é o jorrar judeu da eterna
compreende muito bem que os Judeus tornam-se comerciantes porque não se lhes
permitiu qualquer outra atividade. De onde este anelo obscuro anunciando para os
Judeus um porvir novo: « Dar aos Judeus a coragem de qualidades novas, enquanto
eles passaram em novas condições de existência: assim como convém a meu próprio
instinto e nesta via não me deixei extraviar por uma oposição venenosa que
precisamente agora toma a frente». Isto entre muitas observações duvidosas, quando
ele toma emprestado, sem reflexão, sua linguagem dos costumes cristãos do tempo.
Mas se o antissemitismo se faz sistema, movimento organizado, ele o recusa
imediatamente com horror. Quem não sabe disso? (Que o pensamento de Nietzsche
seja perigoso, é verdade. Ele nos ensina isso antes de tudo: se nós pensamos, nada de
repouso).
homem''...» - «Ter posto ao lado do Antigo esse Novo Testamento, esse monumento
livro, a Bíblia, o Livro por excelência, eis talvez a maior das imprudências, o maior
dos ''pecados contra o espírito'' que a literatura moderna tenha sobre a consciência».
O que entende Nietzsche aqui? Ele fala de estilo, de gosto, de literatura, mas por aí
realça aquilo que portam tais palavras. E, eu o noto, a civilização grega não é nisso
menos atingida do que a cristã. Alhures, o cristianismo é louvado por ter sabido
manter o respeito pela Bíblia, mesmo que fosse interditando-lhe a leitura direta: “A
maneira pela qual se manteve até os nossos dias, no conjunto, o respeito pela Bíblia,
constitui talvez o melhor exemplo de disciplina e afinamento dos modos pelos quais
indispensável para esgotar seu sentido e compreendê-lo até o fim ». O que é dito aí
judaísmo. Do mesmo modo, num outro livro quase nos mesmos termos: «O Antigo
Aqui encontro grandes homens, uma paisagem heroica e uma coisa entre as raras do
povo».
maiúsculo que é sempre não importa qual livro, já sem importância ou para além do
importante. «Explosão», um livro; aquilo que quer dizer que o livro não é o
reagrupamento laborioso de uma totalidade enfim obtida, mas tem por ser o
estilhaçamento ruídoso, silencioso, que sem ele não se produziria (não se afirmaria),
posto para fora de ser, ele se indica como sua própria violência de exclusão, a recusa
todos os livros que é o apelo ao qual é preciso responder: não tomando somente
reflexão sobre as circunstâncias de uma época, sobre a crise que se anuncia nela,
sobre o abalo que se prepara nela, grandes coisas, poucas coisas, mesmo se elas
exigem tudo de nós (como o dizia já Hölderlin, pronto para lançar sua pena sob a
mesa, a fim de ser tudo para a Revolução). Resposta que, no entanto, concerne ao
tempo, um outro tempo, um outro modo de temporalidade que não nos deixa mais
suficiência: tácita no fato de que ela não saberia ser senão o eco de uma palavra de
efeito disso em tudo e em todo lugar; basta lhe dar uma forma adjetiva: o que é que
não seria narcísico? Todas as posições do ser e do não-ser. Mesmo quando ele se
renuncia até a devir negativo, com a parte de enigma que então o obscurece, ele não
deixam reconhecer como modos narcísicos, uma maneira bastante fraca para um
6
No original: ....
que reporta todos os valores ao Mesmo, e tanto mais se se trata de um «mesmo» mal
constituído, evanescente, perdido ao mesmo tempo que apreendido, quer dizer, tema
mais acessível. Mas o traço do mito que Ovídio termina por esquecer é que Narciso,
pendido sobre a fonte, não se reconhece na imagem fluida que lhe reenviavam as
águas. Este, portanto, não é ele, seu «eu» talvez inexistente, que ele ama ou deseja,
aquilo que ele vê é uma imagem, que a similitude de uma imagem não remete a
ninguém, tendo por caráter não se parecer com nada, mas ele se «apaixona» por ela,
em seu engodo. O ensinamento do mito que, como todo mito virando fábula, é
educativo, seria que não é preciso se fiar à fascinação das imagens que não somente
enganam (de onde os fáceis comentários plotinianos), mas tornam todo amor
insensato, porque é preciso uma distância para que nasça o desejo de não se
fazendo Narciso dizer (como se Narciso pudesse falar, «se» falar, solilocar):
O que há de mítico neste mito: a morte está nele presente quase sem se nomear, pela
água, a fonte, o jogo floral de um encantamento límpido que não abre sobre o sem-
fundo apavorante do subterrâneo, mas que o mira perigosamente (loucamente) na
ele se dissolve na dissolução imóvel do imaginário onde ele se dilui sem saber,
perdendo uma vida que ele não tem; pois, se se pode reter alguma coisa dos
ou semi-deuses), não se deixando tocar pelos outros, não falando, não se sabendo, já
que, segundo a ordem que ele teria recebido, ele deve permanecer desviado de si –
Sim, mito frágil, mito da fragilidade onde no entre-dois tremente de uma consciência
que não se formou e de uma inconsciência que se deixa ver e assim faz do visível o
fascinante, nos é dado aprender uma das versões do imaginário segundo a qual o
ilusão de uma similitude, talvez bela, talvez mortal, mas de uma morte evasiva que
nada de tão manifesto. Os mitos gregos não dizem, em geral, nada, sedutores por um
saber oculto de oráculo que chama o jogo infinito de adivinhar. O que nós
chamamos de sentido, até mesmo de signo, lhes é estrangeiro: eles fazem signo, sem
turno implicam uma claridade fugidia. Se Ovídio, prolongando talvez uma tradição,
faz intervir na fábula de Narciso a sina que se pode dizer falando da ninfa Eco, é
justamente para nos levar a tentar redescobrir nela uma lição de linguagem que nós
acrescentamos só depois. Mas isto aqui permanece instrutivo: já que é dito que Eco
o ama não se deixando ver, é, portanto, com uma voz sem corpo, condenada a
sempre repetir a última palavra – e nada mais – que Narciso seria chamado ao
de onde o Outro deveria lhe vir, não é senão a aliteração mimética, rimante, de um
presente a si mesmo, mas porque lhe falta, por decreto (tu não verias, esta presença
refletida – o si mesmo – a partir da qual uma relação vivente com a vida outra
poderia se ensaiar; ele é suposto silencioso, não tendo da palavra senão o acordo
repetitivo de uma voz que lhe diz o mesmo sem que ele possa atribuí-lo para si e que
é precisamente narcísico neste sentido de que ele não a ama, que ela não lhe doa
nada de outro a amar. Sina da criança da qual se crê que ela repete as últimas
linguagem; e sina também de apaixonados que se tocam pelas palavras, que estão
em contato com palavras e que podem se repetir sem fim, se maravilhar com o mais
banal, justamente porque sua língua é língua, e não linguagem, e porque eles se
interdição de ver, tão constante na tradição grega que permanece, no entanto, o lugar
aparências. Sempre há alguma coisa para não ver, menos porque não é preciso olhar
visão que expõe ao perigo do sagrado, cada vez que o olhar, por sua arrogância
muito menos encenar com as duas palavras de oráculo, como se elas fossem a
não se conhece», é preciso antes pensar que Narciso, vendo a imagem que ele não
reconhece, vê nela a parte divina, a parte não vivente de eternidade (pois a imagem é
incorruptível) que, sem que ele saiba, seria a sua, e que não tem o direito de olhar
sob pena de um desejo vão, de sorte que se pode dizer que ele morre (se ele morre)
por ser imortal, imortalidade de aparência que atesta a metamorfose em flor, flor
nível de dimensões das quais se dispõe, sempre n - 1; o uno faz parte do múltiplo
constrói se multiplicando sem que todavia a unidade se inscreva nela como falta; é o
ponto mais difícil, e não se trata então de um modelo normativo, sob a guarda de um
caindo sob a fascinação do Uno, não lhe serviram senão de elo, ou de figuras
a fingir. Do uno, sujeito (mesmo que fosse sujeito fissurado, sempre duplo, em vão
terão sido senão passagem: reflexos da Presença maiúscula que, mesmo não
tais condutas, porque a aposta delas é importante, visada quase (até hoje ou ontem)
múltiplo como múltiplo, reconduzindo, mesmo que fosse por desvios, o outro em
direção ao mesmo, e substituindo a diferença pelo diferente, sem deixar esta vir em
de um universo habitável (onde nos é dada a promessa de que tudo será – é portanto
soberania do Mesmo e do Uno, majestosa ou simples (que ela esteja próxima ou por
esperar), dominando tudo de antemão e reinando sobre todo ser, arrastando em sua
orbe todo aparecer bem como todo essência, tudo o que se diz e tudo que está para
como de seu além e quando tudo está cumprido, a morte enfim advinda em forma de
vida contente, que, de uma maneira então mais instante, a exigência sem direito do
outro (o múltiplo, o desnudado, o esparso) se doa como aquilo que sempre escapou
não-presença) que ela não sabe no entanto reconhecer, sabendo somente que esta lhe
premissas talvez de uma escritura, sua revolução em todo caso enquanto extinta.
A atração do simples é que ele é o dom - jamais doado – do Uno: o conjunto que
nós não conhecemos senão como desdobrado e cujo redobrar esquiva a infinita
riqueza do «uma só vez» que nele se suplicia. De modo que estamos sempre
autorizados a dizer: o simples não é simples, sem que sejamos, por essa fórmula,
múltiplo pode também se reduzir facilmente na medida em que ele se constroi pelo
número até o mais: isso enquanto a unidade lhe for o agente constitutivo, em
participação com o Uno imóvel. Mas múltiplo como múltiplo nos reenvia à Als-
unidade sempre se subtrai, relação do outro, pelo outro que não se unifica: ou ainda
somente a soberania em sua ruína, pois a ruína soberana poderia ser ainda uma
nada não esteja aqui ao trabalho e, sob sua forma extravagante e cortada, esquiva
somente aquilo que se esquiva naquilo que não pode ser nomeado, o neutro, o neutro
tenha já rendido: seja na negligência do Uno, seja pela escansão negativa do outro,
negação que não nega nem afirma, e, através da erosão infinita da repetição, deixa o
Outro se marcar e se demarcar e se remarcar como aquilo que não tem relação com
aquilo que vem em presença, nem também com aquilo que se ausenta dele.
Uma frase isolada, aforística, não fragmentária, tende a ressoar como uma palavra
pelos meios da linguagem», ela impacta com uma espécie de evidência: seria preciso
«literária» sem dúvida, até mesmo «filosófica». Mas como conduzir o combate? De
7
Em francês:
novo por meios de linguagem, e desde que se renunciou à esperança do Tractatus, é,
pois, de uma luta da linguagem contra si mesma que seria questão: o que restauraria
razão ideal, tão logo posta em acusação como portando uma violência esquivada,
ser senão um meio neutro através do qual o dizer verdade se transmitiria sem se
deformar. Como se, precisamente, a razão falasse sem falar, aquilo que no rigor pode
se afirmar, mas num sentido não estritamente razoável, de onde as contradições que
tão logo param. Mesmo se nós pressentimos que o neutro está em jogo no infinito da
linguagem, ele não tem a propriedade de dar a este uma neutralidade, sendo
questão negativa a cair seja em direção ao Uno, seja em direção ao Outro que ele
afirma, é fora da afirmação como da negação de que o saber e o uso nos dão a
conhecer. De onde a obrigação de não falar sobre a linguagem sem saber que se se
Resta que a frase de Wittgenstein não se apaga, dizendo talvez, como creio que
então o outro perigo: a tentação do rigor da ordem, de sorte que a filosofia seria
«O azul do céu» é aquilo que melhor diz o vazio do céu: o desastre como
não é legível.
A frase isolada, aforística, atrai porque ela afirma definitivamente, como se mais
nada falasse em torno dela, no fora dela. A frase alusiva, isolada também, dizendo,
não dizendo, apagando aquilo que ela diz ao mesmo tempo que ela o diz, faz da
mesma como verdadeiro, crê que aquilo que foi escrito pode se reter. A exigência do
miragem do retorno, não sabe se ela não dá uma nova segurança àquilo que ela
extrai dele. Ouçamos essa advertência: «É preciso temer que, como a elipse, o
quem diz dois não faz senão repetir Uno (ou a unidade dual), a menos que o
repetição do Uno não o mantenha senão para dissipá-lo (talvez ficticiamente). Não
«sabemos» quase nada, senão que ele escapa ao sistema, à ordem, à possibilidade,
A água onde Narciso vê aquilo que ele não deve ver, não é o espelho capaz de
uma imagem distinta e definida. Aquilo que ele vê, é no visível o invisível, na figura
representação que não reenvia a um modelo: o anônimo que o nome que ele não tem
poderia só manter à distância. É a loucura e a morte (mas para nós, nós que
nomeamos Narciso, o estabelecemos como Mesmo desdobrado, quer dizer, sem que
ele saiba - e o sabendo – encobrindo o Outro no mesmo, a morte no vivente: a
essência talvez do segredo – cisão que não é, por isso, uma cisão -, aquilo que lhe
daria um eu [moi] dividido sem eu [je], ao mesmo tempo que o priva de toda relação
com outrem). O escoamento caudaloso de fonte, à vez, deixou ver algo de claro, a
estável de um visível puro (do qual se poderia apropriar) e arrasta tudo – aquele que
é chamado a ver e aquilo que ele acreditaria ver – numa confusão de desejo e de
medo (termos que escondem o escondido, uma morte que não seria por isso uma
teria dito Schlegel: «Todos os poetas são Narciso», não é preciso se contentar de
que o reflete, do mesmo modo que ele é poeta transformando sua vida de tal maneira
que ele a poetiza encarnando nela sua pura subjetividade, é preciso, sem dúvida,
entendê-lo ainda de modo outro: é que no poema onde ele se escreve, ele não se
reconhece, é que no poema ele não toma consciência de si mesmo, rejeitado dessa
sofreria: ao contrário, rejeitado, excluído daquilo que se escreve e sem mesmo estar
presente nele pela não-presença de sua morte mesma, é preciso que ele renuncie a
toda relação de si (vivente e morrente) com aquilo que pertence doravante ao Outro
As palavras de Ovídio a reter sobre Narciso: «ele perece por seus olhos » (vendo-
se como deus – o que relembra: quem vê Deus morre) e «desgraçado, porque tu não
eras o outro, porque tu eras o outro». Por que desgraçado? A desgraça reenvia à
solitária. Outro sem ser outro. Isso permite os desenvolvimentos dialéticos ou, ao
Viver sem vivente, como morrer sem morte: escrever nos reenvia a essas
proposições enigmáticas.
É a linguagem que seria «críptica», não somente em sua totalidade excedida e não
chave que abre e não abre. Salva-se por aí alguma coisa que libera a perda e lhe
recusa o dom. «''Eu'' não salvo um foro interior senão ao pô-lo em ''mim'', à parte de
(partilhado com alguém outro na falta de uma parte), é com uma linguagem
petrificada que nós temos relação pela qual não pode mesmo mais se transmitir
desejo», com suas motivações miméticas cuja soma é imotivada e que se oferecem
a escritura transporta e que a porta, não permanece sendo o desejo em geral, mas se
cujos efeitos de não-arbitrário (anagrama, ritmo, rima interna, jogo mágico de letras)
fazem da linguagem mais «razoável» um processo contaminado, rico daquilo que ela
não pode dizer, impróprio àquilo que ele diz e enunciando no segredo (bem ou mal
Escrever sem o desejar e sem o querer: o que é que se esconde aí naquilo que
reconhecer nisso a paciência de escrever até sua passividade mais extrema (que
outro numa perpetuidade que parece enganar o tempo, pelo menos o muda, de tal
«Guardar um segredo, na particularidade de uma coisa que não se diz, supõe que
perguntar se o segredo não está ligado ao caso de que haveria ainda algo a dizer,
quando tudo estaria dito: o Dizer (com sua maiúscula gloriosa) sempre em excesso
sobre o tudo está dito. - O não aparente do todo manifesto, aquilo que se retira, se
verdade mesma. - O não-saber após o saber absoluto que precisamente não deixa
mais pensar um «após». – Salvo sob o 'é preciso ('il faut)'' do retorno que
inadaptável. - O segredo escapa, não é jamais limitado, ele se ilimita. Aquilo que se
lugar nenhum, eis o que ele diz sempre. – Não o dizendo, já que, com as palavras
estratagema do segredo é ora se mostrar, se tornar tão visível que ele não se vê
(portanto é se apagar como segredo), ora deixar entender que o segredo não é
segredo senão lá onde falta todo segredo ou toda aparência de segredo. - O segredo
não está ligado a um “eu” [''je''], mas à curvatura do espaço que não se saberia
constrangedora se elucida por aí? – É como se fosse dito que para ele a morte se
cumpriria na vida. – Deixemos ao silêncio essa frase que não quer talvez dizer
senão o silêncio».
Interrogo essa afirmação que não se pode negligenciar nem tratar legalmente: «A
ética da revolta se opõe a todo discurso clássico do Soberano Bem, como a toda
pretensão moral ou imoral, no fato de que ela constroi, protege, administra, um lugar
vazio, deixando vir a nós uma outra história» (Guy Lardreau, Christian Jambet).
responsabilidade. Mas não se pode então assimilar revolta e rebelião. A rebelião não
faz senão reintroduir a guerra, quer dizer, luta para a maestria e a dominação. O que
não quer dizer que não seria necessário lutar contra o mestre pelo meio de sua
maestria, mas que ao mesmo tempo, à vez, há lugar de fazer apelo sem socorro à
que eles exercem, se chocam sem que o saibam (precisamente porque eles sabem
tudo, não sabendo senão o tudo) com o outro múltiplo que jamais se resolve em um,
uno. E o que se pode dizer da outra história, se seu traço é não ser uma história, nem
agrupamento), e também nesse fato de que nela nada advém de presente, que
sempre linear, mesmo quando esta está encabrestada, ziguezagueante tanto quanto
história visível, enquanto ela se priva de toda ideia de começo e de fim: sempre em
relação com um desconhecido que exige a utopia do conhecer tudo, porque ele a
desborda – desconhecido que não se liga ao irracional para além da razão, nem
não quer dizer um puro nada], mas chamando sempre o vazio de um não-lugar, uma
falta onde ela falta a si mesma: incrível porque ela está em ausência em relação a
toda crença.
conhece, que - como filósofo – não queria sê-lo, não queria ser conhecido, do
mesmo modo que ensinou a contragosto, do mesmo modo que a maior parte do que
ele faz pressentir não somente que ele é um isolado – ninguém pode sê-lo -, mas que
há uma história não histórica daquilo que não se sabe nomear senão como
pensamento.
Aquele que espera, precisamente não te espera. É assim que tu és, entretanto,
Deus que tem um nome pronunciável? Uno não é evidentemente um número, «uno»
zero, também, não é um número, não mais que uma ausência de número, nem muito
autoriza a união, mesmo que fosse com o infinitamente longínquo, na mais forte
unidade não permitem mesmo lhe dar por visada a transcendência. O Uno não tem
horizonte, o horizonte por sentido. O Uno não é mesmo único, não mais do que ele
seria singular. Daquilo que subtrai o Uno a toda dialética, como a todo movimento
em direção ao Uno, ele esteja virado, como a agulha em direção ao pólo que ela não
indica - virado? Antes: desviado. A severidade do Uno que não prescreve nada,
alta que não existe altura onde ela se revela. A Lei, pela autoridade acima de toda
justificação que se tende a lhe reconhecer (de sorte que não importa que ela seja
legítima ou ilegítima), abaixa já o Uno que, não sendo nem alto nem baixo, nem
Mesmo, o Simples, a Presença. Mas se pode muito bem também dizer que o Uno
requerer melhor ainda todas as noções de oposição que não lhe são adversas senão
pensar com coerência ou quando estamos mal à vontade porque não unificamos
nosso saber, é somente por causa da unidade ordinária ou não seria por uma
reverência esquecida para o Uno sem referência, como se o sente muito bem cada
vez que se lhe encontram traduções, éticas ou não, como o Super-Ego, até o «eu[je]»
Uno fracassar? Talvez falando, por uma espécie de palavra. É sem dúvida o combate
do desastre. Foi de uma certa maneira o combate de Kafka, combatendo para o Uno
contra o Uno?
Hölderlin: « De onde vem, pois, por entre os homens o desejo doentio de que não
neutro não tem êxito em indicar. Combate para não nomear o combate. Fora de
o que não constitui nenhum dualismo, pois como fazer entrar numa conta, até na
que é tão diferente daquilo que conhecemos sob esse nome ou sob outros nomes que
o desconhecido mesmo não é suficiente para torná-lo sensível para nós, já que ele
É estranho que K., no fim do Castelo, tenha sido por certos comentadores
medida em que tudo o que ele faz, é sem relação com o razoável, entretanto
parece possível que K. morra (condenado ou salvo: isso é quase sem importância),
não somente porque seu combate não se inscreve nos termos de viver e de morrer,
mas porque ele está demasiado cansado (seu cansaço, único traço que se acentua
com a narrativa) para poder morrer: para que o advento de sua morte não se mude
em inadvento interminável.
O messianismo judeu (em certos comentadores) nos deixa pressentir a relação do
e aos leprosos, pode-se crer que seu incógnito o protege ou impede sua vinda, mas
lhe pergunta: «Quando tu virás?» O fato de estar lá não é, pois, a vinda. Junto ao
Messias que está lá, deve sempre ressoar o apelo: «Vem, Vem». Sua presença não é
uma garantia. Futura ou passada (é dito, ao menos uma vez, que o Messias já veio),
sua vinda não corresponde a uma presença. O apelo também não basta; há condições
– o esforço dos homens, sua moralidade, seu arrepender-se - que são conhecidas; há
sempre outras que não são conhecidas. E se ele chega à questão: « Para quando a tua
é, pois, hoje. É agora e sempre agora. Não há que se esperar, ainda que seja como
que uma obrigação esperar. E quando é agora? Um agora que não pertence ao tempo
se lembra que esse «agora» fora de texto, de um relato de severa ficção, reenvia a
«Agora por pouco que tu me prestes atenção, ou se tu queres então escutar minha
voz». Enfim o Messias, contrariamente à hipóstase cristã, não tem nada de divino:
consolador, o justo dos justos, ele não está mesmo seguro de que ele seja uma
pessoa, alguém singular. Quando um comentador diz: esse talvez seja eu, ele não se
exalta por aí, cada um pode sê-lo, deve sê-lo, não o é; pois seria deslocado falar do
supressão de um tempo mais futuro que nenhuma profecia saberia anunciar, assim
como se pode lê-lo nesse texto misterioso: «Todos os profetas – não há exceção –
futuro, qual olho o viu fora de Ti, Senhor, que agirás para aquele que te é fiel e
Por que o cristianismo teve necessidade de um Messias que seja Deus? Não basta
dizer: por impaciência. Mas que nós divinizemos os personagens históricos, é, pois,
por um subterfúgio impaciente. E por que a ideia do Messias? Por que a necessidade
do acabamento na justiça? Por que não suportamos, não desejamos aquilo que é sem
processo privado de sentido. Mas se a razão política devém por sua vez messiânica,
essa confusão que retira sua seriedade à procura de uma história razoável
todo recurso parece justificado: pode-se tomar recuo quando tem lugar Auschwitz?
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Nota do tradutor: de uma palavra hebraica que significa "caos anterior à criação do mundo").
O julgamento final segundo a expressão alemã: o dia mais jovem, o dia para além
dos dias; não que o julgamento esteja reservado para o fim dos tempos; ao contrário,
a justiça não espera, ela está a cada instante por cumprir, render, meditar também
(aprender); cada ato justo (há isso?) faz do dia o último dia ou – como diz Kafka - o
realmente último, não se situando mais na seqüência ordinária dos dias, mas do
A substituição da lei pelas regras parece, nos tempos modernos, uma tentativa não
ligadas da técnica. Mas sempre houve uma ambiguidade sob o nome de lei: sagrada,
soberana, ela reclama para si a natureza, exalta-se dos prestígios do sangue, ela não
é poder, mas onipotência – não há nada senão ela; aquilo contra o qual ela se exerce
judaica é santa e não sagrada: ela põe no lugar da natureza que ela não investe com a
obrigam; no lugar do étnico o ético; os ritos são religiosos; eles, entretanto, não
consentimento sob o dia feliz das lembranças, das antecipações históricas. Resta o
julgamento. Ele é reenviado àquilo que é o mais alto: Deus só julga; quer dizer, de
novo o Uno. O Uno que libera no fato de que não há céus onde ele possa reinar, nem
medida com que se medir, nem pensamento que possa rebaixá-lo a ser só pensável –
da Lei que se pratica menos do que ela faz tremer, que releva menos do estudo que
da leitura fascinada, reverencial. São Paulo quer nos franquear da Lei: a Lei entra no
regulamentar suprime aquilo que o poder evoca, sempre primeiro, pelo nome de lei,
assim como os direitos que a dobram, mas estabelece o reino da técnica, a qual,
afirmação do puro saber, investe tudo, controla tudo, submete todo gesto à sua
gestão, de sorte que não há mais possibilidade de liberação, já que não se pode mais
quarto reino que não releva dos três outros – aquele do domínio saliente da própria
literatura, ao passo que esta recusa esse ponto de vista privilegiado, ao mesmo
tempo que não se deixa depender de uma outra ordem ou de qualquer ordem que
vida tão passiva, tendo a decência escondida do morrer, que ela não tem a morte por
saída, não faz da morte uma saída. Bartleby copia; escreve incessantemente e não
não (fazer). Essa frase fala na intimidade de nossas noites: a preferência negativa, a
negação que apaga a preferência e se apaga nela, o neutro daquilo que não há nada a
fazer, a retenção, a doçura que não se pode dizer obstinada e que falta à obstinação
O pensamento parece imediato (eu penso, eu existo [je suis]), e, no entanto, está
em proporção com o estudo; é preciso se levantar cedo para pensar, é preciso pensar
e jamais estar seguro de pensar; não estamos bastante desvelados: velar além da
vigília; a vigilância é a noite que vela. Dor, ela desune, mas não de uma maneira
visível (por uma deslocação ou uma disjunção que seria espetacular): de uma
maneira silenciosa, fazendo calar o ruído por trás das palavras. A dor perpétua,
perdida, esquecida. Ela não torna o pensamento doloroso. Não se deixa socorrer.
Sorriso pensativo da face não esfacelante que o céu a terra desaparecidos, o dia a
noite passados um no outro, deixam naquele que não olha mais e que, votado ao
A palavra escrita; não vivemos mais nela, não que ela anuncie: «ontem foi o fim»,