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REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS
E DA SOPHIA PERENNIS
NÚMERO 3
SABEDORIA PERENE
REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS E DA SOPHIA PERENNIS
www.sabedoriaperene.blogspot.com
A revista Sabedoria Perene pretende ser um veículo de divulgação de uma corrente de pensamento
conhecia por tradicionalismo ou perenialismo, que tem como principal desígnio o estudo da Tradição,
das doutrinas tradicionais e da Sophia Perennis. Deste modo, esta publicação será dedicada ao estudo
de todas as tradições, consideradas como as muitas expressões da Sabedoria Perene e Divina ou da
Sophia Perennis. Na nossa mente estarão sempre presentes as seguintes palavras de René Guénon:
“Aqueles que possam estar tentados a ceder ao desespero devem ter presente que nada do alcançado nesta busca
poderá alguma vez ser perdido, que a confusão, o erro e a escuridão poderão apenas de uma forma aparente e
efémera vencer uma batalha, que todo o desequilíbrio parcial e transitório terá forçosamente de contribuir para o
grande equilíbrio do todo, e que nada poderá no final prevalecer contra o poder da verdade. A sua máxima deverá
ser a antigamente usada por algumas organizações iniciáticas do Ocidente: Vincit Omnia Veritas.”
A Sabedoria Perene tem publicação não periódica e é disponibilizada em linha sem qualquer custo. Os
artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores, tal como todas as traduções o
são dos respectivos tradutores. A publicação dos artigos e das respectivas traduções foi expressamente
autorizada, pelo que não são permitidas quaisquer reproduções sem autorização.
Editores:
Miguel Conceição e Nuno Almeida
Contacto:
Editor, Sabedoria Perene
Endereço electrónico: mfm.conceicao@gmail.com
Sítio em linha: www.sabedoriaperene.blogspot.com
Gravura da capa: Pintura de Frithjof Schuon datada de 1963, cuja reprodução foi incluída no livro The
Feathered Sun – Plain Indians in art and philosophy de Frithjof Schuon (Plate I), editado pela World
Wisdom Books em 1990.
ISSN: 1647‐3329
Agosto, 2011
Agradecimentos:
Ao Mateus Soares de Azevedo pelo especial apoio e contribuição na revisão de artigos. À editora World
Wisdom (www.worldwisdom.com) pelas autorizações concedidas para este número. Um profundo
agradecimento ainda a todos os que colaboraram na realização deste número da revista.
ÍNDICE
Editorial 7
Introdução
“Direcções para o suprasensível” – Harry Oldmeadow 13
Metafísica e simbolismo: Sacralização da Natureza
Ver Deus em toda a parte – Frithjof Schuon 27
Uma metafísica da natureza virgem – Frithjof Schuon 39
O simbolismo da água – Titus Burckhardt 43
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs
– Alberto Vasconcellos Queiroz 49
Crise ambiental: Profanação da Natureza
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental – Seyyed Hossein Nasr 61
A agricultura e o destino humano – Lord Northborne 71
O protesto da terra – Gai Eaton 85
A nossa mãe terra – Oren Lyons 95
Primitivos e ultra‐sofisticados – Mateus Soares de Azevedo 99
Sobre a ecologia: os quatro poluentes – William Stoddart 103
Epílogo
Pontifex e Khalîfah – Frithjof Schuon 107
Citações espirituais 111
Fontes dos textos 115
Breves notas sobre os autores 119
EDITORIAL
Olhar a infinidade no finito é ver que dada flor à nossa frente é eterna,
porque uma eterna primavera se afirma através do seu frágil sorriso.
Frithjof Schuon
Continuamos, nesta terceira publicação dedicada ao estudo da tradição e da sophia perennis, a
divulgar a corrente de pensamento tradicionalista ou perenialista. O tema em foco no número
anterior da Revista Sabedoria Perene foi a arte. Neste terceiro número, a temática é outra – a
natureza e a crise ambiental –, mas a mensagem subjacente aos textos apresentados é a
mesma, a da sabedoria perene, aquela sabedoria incriada e imutável que dissolve disparidades
aparentes e que perfura a superfície de quaisquer objectos de estudo, para deixar
transparecer o que neles há de mais profundo e de essencialmente idêntico.
É assim, à luz desta sabedoria perene, que o leitor que nos acompanhou no número anterior
poderá reconhecer diversas correspondências entre a arte sagrada e a natureza virgem. De
facto, não deixa de ser significativo que sejam os povos que ainda imprimem uma dimensão
sagrada nas suas realizações artísticas os que melhor protegem e acarinham o meio natural em
que se inserem; é igualmente significativo que, pelo contrário, sejam os povos fundadores da
moderna indústria de produções artísticas mundanas, invariavelmente concentrados em
grandes centros urbanos, os que mais delapidam a natureza e os que com ela se relacionam
como se de uma mera fonte de recursos a explorar se tratasse. Segundo o padrão de
pensamento tradicional que caracteriza a mentalidade dos povos do primeiro tipo, quase
totalmente extintos, tanto a arte sagrada como a natureza virgem são dádivas
“sobrenaturalmente” naturais, pelo que a atitude sã e normal do homem para com essas
dádivas deverá ser a da sua preservação. Ao contrário, o padrão de pensamento moderno que
caracteriza a mentalidade dos povos do segundo tipo, esmagadoramente predominantes nos
dias de hoje, parece conduzir‐nos precisamente à violação destas dádivas, ora pela promoção
de correntes artísticas “desnaturadas”, como é o caso do surrealismo e de toda a forma de
arte abstracta, ora pela adopção de atitudes de vida que nos conduziram a uma crise
ambiental sem precedentes, a qual se tornou já demasiado evidente para poder ser ignorada.
O texto de Harry Oldmeadow, seleccionado para Introdução deste terceiro número da Revista
Sabedoria Perene, oferece uma primeira indicação sobre aquela que é, segundo a perspectiva
tradicionalista ou perenialista, a principal causa da actual crise ambiental (e que é, não o
podemos deixar de salientar, a mesma que explica a crise que assola o mundo da arte). Neste
texto, o autor destaca que esta causa é raramente percebida e que a sua compreensão em
profundidade implica o relembrar de princípios metafísicos e cosmológicos intemporais, os
quais podem ser ignorados mas não refutados. Estes princípios, tidos em consideração em
todos os contextos civilizacionais, épocas e lugares, estão espelhados nos escritos de inúmeros
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Nuno Almeida
autores tradicionalistas ou perenialistas da actualidade, oriundos das mais variadas
proveniências culturais e denominações espirituais ou religiosas. Estes autores, que incluem
figuras contemporâneas tais como René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda Coomaraswamy e
Titus Burckhardt, reflectem, de forma renovada, a mesma perspectiva que um Platão semeou
no seio do mundo greco‐romano, que um Rumi ou um Ibn Arabi traduziram para o mundo
islâmico, que um Mestre Eckhart emprestou à cristandade ou que um Shânkara ofereceu à
tradição hindu, para mencionar apenas alguns dos inspirados precursores tradicionalistas ou
perenialistas de todos os tempos.
São precisamente estes princípios intemporais que permeiam o conteúdo do primeiro bloco de
textos deste terceiro número da revista, agrupados sob o título Metafísica e simbolismo:
Sacralização da Natureza. Este primeiro bloco contém dois ensaios de Frithjof Schuon que
guiam o leitor para uma compreensão mais profunda da dimensão sagrada da Natureza. Os
outros dois textos que compõe este bloco, um de Titus Burckhard e outro de Alberto
Vasconcellos Queiroz, salientam a necessidade de todos os que se preocupam com a actual
crise ambiental ponderarem seriamente sobre esta dimensão sagrada da Natureza, sem a qual
a sua preservação, bem como a da vida de um modo geral, se torna insustentável.
Para compreender a causa mais profunda da crise ambiental é necessário, repetimos,
relembrar princípios metafísicos e cosmológicos e ponderar sobre a dimensão sagrada da
natureza. As consequências que derivam do esquecimento destes princípios e da rejeição
desta dimensão da natureza estão bem patentes no segundo bloco de textos da revista,
reunidos sob o título Crise ambiental: Profanação da Natureza. Os autores destes textos,
Seyyed Hossein Nasr, Lord Northborne, Gai Eaton, Oren Lyons, Mateus Soares de Azevedo e
William Stoddart, são unânimes em reconhecer neste esquecimento e nesta rejeição uma
profunda enfermidade intelectual ou espiritual, enfermidade esta que René Guénon
diagnosticou com precisão há praticamente um século. Em resumo, segundo a perspectiva
tradicionalista ou perenialista, a crise ambiental é apenas um sintoma de uma ainda mais
profunda crise intelectual ou espiritual. Segundo esta mesma perspectiva, a esperança para a
resolução da crise ambiental (e para as demais crises) reside na intelectualidade pura, aliada a
um conhecimento sólido de princípios intemporais e a uma noção clara das implicações
práticas que a perda deste tipo de conhecimento acarreta – uma perda que nenhum avanço na
ciência moderna nem nenhuma solução de engenharia poderá compensar!
Mormente, para além destes textos que nos alertam para a necessidade de reconhecer que
não se perturba impunemente o equilíbrio da natureza, algo que os povos de outrora sabiam
bem melhor do que nós, e que a superioridade do conhecimento científico moderno é
totalmente insuficiente para nos proteger de todos os efeitos provindos de uma natureza
desequilibrada, o Epílogo que encerra este terceiro número da revista e que foi a fonte de
inspiração para a sua capa, um texto penetrante de Frithjof Schuon, recorda‐nos que o homem
é portador de uma missão espiritual e que a deve cumprir, que o homem é pontifex ou
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Editorial
khalîfah, um mediador imediato entre o mundo sobrenatural e o mundo natural, entre o Céu e
a Terra, entre Deus e a Natureza.
Não se poderá certamente exigir que uma mente desconhecedora do conceito da
intelectualidade pura e destreinada na compreensão e aceitação de princípios irrefutáveis,
como é o caso de uma mente formatada ao padrão de pensamento moderno, aceite sem
resistência que existe uma relação directa entre o incumprimento da missão espiritual do
homem e a crise ambiental dos nossos dias. É por essa razão que os autores perenialistas ou
tradicionalistas lidam mais directamente com a enfermidade intelectual ou espiritual que
contagiou o mundo moderno, e não apenas com os sintomas da mesma – um desses sintomas,
entre outros, a crise ambiental. É também por essa razão que os autores perenialistas ou
tradicionalistas não advogam um sentimentalismo ecológico estéril, nem defendem que se
abdique de todos os benefícios que a ciência moderna oferece ou que se retorne a modos de
vida “primitivos”, mas sim que se restaure uma intelectualidade viva, iluminada pela metafísica
e pelo simbolismo, uma intelectualidade que imprima no homem a vontade de conhecer,
adorar e agradar ao “Pai Céu”, de compreender, acarinhar e cuidar da “Mãe Terra”, e de
manter acesa a ligação equilibrada entre estas duas dimensões da vida.
Dito isto, entregamos ao leitor as páginas de mais este número da Revista Sabedoria Perene e,
desde já, estas duas breves passagens que relevam a importância da função espiritual do
homem para a resolução da crise ambiental.
O homem não pode exercer a sua função mediadora se permitir que o seu olhar se afaste do
Deus que o nomeou para a exercer e que está sempre presente para guiá‐lo se este procurar
orientação. Se usar a dádiva divina que é o seu domínio da Natureza sem ser à luz de Deus, mas
antes para seu engrandecimento, cedo se descobre isolado e insignificante, lutando em vão
contra as forças da Natureza. No final, até os seus próprios poderes se terão virado contra si. A
Natureza manifesta na mudança as imutáveis disposições do Todo‐Poderoso Deus. A Natureza
não tem escolha. Nós temos escolha, e temo‐la exercido de uma forma e até a um ponto do
qual parece não existir fuga aos envolvimentos que recaíram sobre nós.
Lord Northborne (p. 79)
A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural é apenas um aspecto da
perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O
esquecem não mais podem sentir‐se em casa na criação. Eles assumem o papel de bactérias que
acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice‐regente de Deus na
terra” deixa de ser o curador da natureza e, ao perder a sua função, passa a ser um estranho
que não reconhece os marcos na terra nem se ajusta aos costumes deste lugar; alienado,
apenas o consegue ver como matéria‐prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas e conforto
na exploração, mas não a felicidade.
Gai Eaton (p. 86)
Nuno M. Almeida
Vale da Lama, 2 de Agosto de 2011
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Nuno Almeida
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INTRODUÇÃO
Direcções para o supra‐sensível1
por Harry Oldmeadow
Traduzido por Miguel Conceição
Um néscio não vê a mesma árvore que vê um homem sábio.
2
William Blake
Introdução
Seyyed Hossein Nasr inicia o seu livro Religion and the Order of Nature (1996) com as seguintes
palavras:
A Terra sangra de feridas infligidas por uma humanidade que perdeu a harmonia com o
Céu e que, por essa razão, vive em constante conflito com o ambiente terrestre.3
Apesar de amplamente reconhecido o facto de nos encontrarmos, presentemente, num
estado de “constante conflito”, as causas mais profundas para esta condição são raramente
compreendidas. Testemunha‐se o surgimento de uma pletora de obras dedicadas à “crise
ecológica” que, apesar de muitas vezes bem intencionadas e esporadicamente denotando
alguma acuidade, são fundamentalmente confusas em resultado da ignorância de princípios
metafísicos e cosmológicos intemporais. Foi precisamente a tarefa de figuras como René
Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon, autoridades na exposição da sophia
perennis, a de relembrar o mundo moderno desses princípios que podem ser ignorados mas
não refutados. O meu propósito com este trabalho é providenciar um esboço,
maioritariamente a partir de citações, de alguns dos princípios e doutrinas que governam o
entendimento de Schuon sobre a ordem natural. Não vou apresentar uma explicação
detalhada mas sim um conjunto elíptico de apontamentos, recorrendo sobretudo a alguns dos
seus primeiros trabalhos, Light on the Ancient Worlds (1965) e Spiritual Perspectives and
Human Facts (1967), bem como aos seus escritos dedicados aos índios americanos das
planícies, reunidos na obra The Feathered Sun: Plains Indians and Philosophy (1990).
The Feathered Sun é um dos livros mais pessoais escritos por Schuon, delineado de certa forma
a partir de referências à sua própria experiência – o seu habitual manto de anonimato é como
que deixado cair por momentos. Esta característica do livro é ainda revelada pelo facto de não
conseguirmos imaginar qualquer um dos seus companheiros tradicionalistas a escrever algo de
comparável. O livro, quer em texto, quer em imagem, é permeado pelo sentimento de tristeza
que marca o desaparecimento de uma economia espiritual e de um modo de vida de uma
beleza e nobreza extraordinárias. É particularmente comovente o facto de Schuon ter sido
adoptado por ambas as tribos Crow e Sioux, considerando a heróica resistência por elas
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Harry Oldmeadow
mantida perante a intrusão da “civilização” europeia. Adicionalmente, não podemos deixar de
ver em Schuon precisamente estas qualidades que ele exaltava nos índios – “um heroísmo
estóico e combativo com uma base sacerdotal [que] conferia aos índios das planícies e das
florestas uma espécie de majestade simultaneamente aquilina e solar…”.4
O amor de Schuon pela natureza, um belo leitmotif nos seus escritos, foi aprofundado durante
os dois períodos que ele e a sua esposa passaram com os índios das planícies no final da
década de cinquenta e no princípio da década de sessenta. Schuon observou,
O índio está predisposto para o supra‐sensível e aspira penetrar a dura parede do
mundo sensível, procura aberturas onde pode e encontra‐as principalmente nos
próprios fenómenos que, na realidade e nos seus conteúdos, não são mais do que
direcções para o supra‐sensível. As coisas são gélidas melodias do Além.5
A natureza virgem está em uníssono com a santa pobreza e também com a infantilidade
espiritual; ela é um livro aberto que contém um ensinamento inesgotável de verdade e
de beleza. É no seio dos seus próprios artifícios que o homem mais facilmente se torna
corrompido, são eles que o tornam cobiçoso e ímpio; perto da natureza virgem, que não
conhece nem agitação nem falsidade, ele tinha a esperança de permanecer
contemplativo como a própria natureza.7
O Absoluto, o relativo e a origem de Maya
Avancemos agora para a nossa série de apontamentos: em primeiro lugar, para a questão do
porquê da existência do mundo, do universo e do reino de maya, e de quais as relações entre
o Absoluto inqualificável (identificado de modos diferentes, tais como Divindade8, Supra‐Ser,
nirguna Brahman e outros), Deus como Criador e o mundo manifestado. Iniciemos com uma
passagem de Schuon, caracteristicamente densa, sobre esta questão:
Em relação à questão da “origem” da ilusão [maya], esta é daquelas que podem ser
resolvidas (…) apesar de ser impossível ajustar a sua resolução a todas as necessidades
de causalidade (…) a infinitude da Realidade implica a possibilidade da sua própria
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Direcções para o supra‐sensível
negação (…) e, sendo esta negação impossível no Absoluto em si mesmo, é necessário
que esta “possibilidade do impossível” se realize numa “dimensão interna” que não é
“nem real nem irreal”, isto é, que é real no seu próprio nível ao mesmo tempo que é
irreal em relação à Essência; daqui resulta que em toda a parte estamos em contacto
com o Absoluto – não podemos sair dele –, o qual é, no entanto e ao mesmo tempo,
infinitamente distante, de tal modo que nenhum pensamento o pode circunscrever.9
Não existe nada de anormal ou idiossincrático na formulação de Schuon de uma dimensão que
“não é real nem irreal”; compare‐se a mesma com esta, por exemplo, de Santo Agostinho:
Eu contemplei todas estas outras coisas sob Vós, e vi que nem existem absolutamente,
nem absolutamente deixam de existir. Por certo têm existência pois procedem de Vós;
e, no entanto, não existem pois não são o que Vós sois. Pois apenas existe
verdadeiramente aquilo que permanece imutável…10
Abordando a nossa questão de outro ângulo, Schuon escreve o seguinte:
Se o mundo é necessário em virtude de um mistério da infinitude divina – e não deve
existir qualquer confusão entre a perfeição da necessidade e a restrição, bem como
entre a perfeição da liberdade e a arbitrariedade – a necessidade do Ser Criador surge
naturalmente antes da necessidade do mundo; aquilo que o mundo é para o Ser, o Ser é
– mutatis mutandis – para o supremo Não‐Ser. Maya não inclui apenas o todo da
manifestação, ela é desde logo afirmada a fortiori “no interior” do Princípio; o Princípio
divino, “ao desejar ser conhecido” – ou “ao desejar conhecer” – aquiesce para um
desdobramento de uma infinitude interior, num primeiro instante potencial e depois
exterior ou cósmico. A relação “Deus‐mundo”, “Criador‐criatura”, “Princípio‐
manifestação” seria inconcebível se não estivesse prefigurada em Deus,
independentemente de qualquer questão de criação.11
Noutro lugar, Schuon aprofunda a relação entre o Criador e a criatura:
Que somos conformes a Deus – feitos à Sua imagem – não existem dúvidas; de outro
modo não existiríamos. Que somos contrários a Deus, também isto é certo; de outro
modo não seríamos diferentes de Deus. Sem analogia a Deus não seríamos nada. Sem
oposição a Deus seríamos Deus. A separação entre o homem e Deus é ao mesmo tempo
absoluta e relativa (…) A separação é absoluta porque apenas Deus é real e não é
possível qualquer continuidade entre a inexistência e a Realidade; mas a separação é
relativa – ou melhor, “não absoluta” – porque nada pode estar fora de Deus. De certa
forma, pode ser dito que a separação é absoluta do homem para Deus e relativa de
Deus para o homem.12
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Harry Oldmeadow
Para aqueles que procuram, de diversas formas, alegar que a ideia de Deus é uma
“projecção”, a “realização de um desejo”, uma “ilusão”, um “expediente”, ou outras
expressões semelhantes, Schuon afirma o seguinte:
Existem aqueles que alegam que a ideia de Deus apenas é explicável por oportunismo
social, sem se darem conta do que existe de infinitamente desproporcionado e de
contraditório numa tal hipótese; se homens como Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino
– sem falar dos Profetas, de Cristo e dos sábios da Ásia – não foram capazes de observar
que Deus é apenas um preconceito social ou outra fraude análoga, e se séculos ou
milénios foram baseados intelectualmente na sua incapacidade, então não há
inteligência humana possível, muito menos qualquer possibilidade de progresso, pois
um ser absurdo por natureza não contém em si a possibilidade de deixar de ser
absurdo.13
Antes de deixarmos o reino da especulação metafísica (e não nos deixemos confundir pela
incompreensão moderna da palavra especulação, mantendo em mente a sua ligação à palavra
“speculum”), podemos relembrar outro dos profícuos dictums de Schuon: “O Infinito é o que é;
podemos compreendê‐lo ou não. A metafísica não pode ser ensinada a todos; mas se pudesse
não existiria o ateísmo.”14
Podemos perguntar‐nos de seguida sobre a natureza do mundo manifestado. Com o que é que
estamos a tratar neste conjunto espácio‐temporal? O que vemos quando olhamos à nossa
volta? – pergunta Schuon.
Em primeiro lugar a existência; em segundo, diferenças; em terceiro, vemos
movimentos, modificações e transformações; em quarto, desaparecimentos. Todas
estas coisas manifestam, em conjunto, um estado de substância universal: esse estado é
simultaneamente uma cristalização e uma rotação, um peso e uma dispersão, uma
solidificação e uma segmentação. Tal como a água está no gelo, e os movimentos do
centro no aro, assim está Deus nos fenómenos; Ele está acessível nesses fenómenos e
através deles; este é o grande mistério do simbolismo e da imanência. Deus é “o
Exterior” e “o Interior”, “o Primeiro” e “o Último”.15
Este mundo de maya é “ilusão”, não no sentido de que é uma miragem ou uma fantasia,
mas no facto da sua “realidade” ser apenas relativa: não tem independência, autonomia ou
existência fora do próprio Princípio Divino. É um tecido de relatividades, sempre esquivo e
em mudança, que simultaneamente vela e revela o Absoluto.
Perante isto, como devemos olhar para os fenómenos deste mundo, ou seja, para as
criaturas, para as formas e os processos da natureza, para as qualidades inerentes à ordem
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Direcções para o supra‐sensível
natural? Para responder a esta questão de forma adequada é preciso compreender que
apesar de maya ser, de facto, “ilusão cósmica”,
(…) ela é também jogo divino. Ela é a grande teofania, o revelar de Deus “em Si mesmo
e por Si mesmo” como diriam os sufis. Maya pode ser associada a um tecido mágico
com uma teia que vela e uma trama que revela; ela é o intermediário quase
incompreensível entre o finito e o Infinito – pelo menos do ponto de vista das criaturas
– e, como tal, ela tem toda a ambiguidade multicolor apropriada à sua natureza, parte
cósmica, parte divina.16
Assim,
(…) o termo maya combina os significados de “poder produtivo” e “ilusão universal”; é o
jogo inesgotável de manifestações, disposições, combinações e reverberações, um jogo
com o qual Atma se reveste, tal como o oceano se reveste com um manto de espuma
sempre renovado e diverso.17
É neste contexto que podemos compreender em profundidade os muitos apotegmas que
caracterizam os escritos de Schuon dedicados à natureza. Aqui fica uma pequena amostra:
Para o sábio, cada flor é uma prova metafísica do Infinito.18
O sol, não sendo Deus, deve prostrar‐se todas as noites perante o trono de Allah (…)19
Deus revela‐se às plantas sob a forma da luz do sol. A planta vira‐se sem resistência para
a luz; não pode ser ateísta ou ímpia.20
Os frutos da terra e a chuva do céu, que tornam a vida possível, não são mais do que
manifestações da Bondade que penetra em toda a parte e que aquece o mundo; e
transportamos essa Bondade no nosso interior, no fundo dos nossos corações gélidos.21
Escusado seria dizer que, neste domínio, uma ciência material e empírica não nos presta
qualquer tipo de auxílio:
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Harry Oldmeadow
uma “inteligência sem sabedoria”, tal como a filosofia pós‐escolástica é, inversamente,
uma “sabedoria sem inteligência”.22
A natureza do simbolismo e o simbolismo da natureza
Uma compreensão adequada da ordem natural deve ter por base um conhecimento da
doutrina dos arquétipos e uma concomitante compreensão do simbolismo.23 Em tempos
antigos, a doutrina dos arquétipos era adoptada em todas as partes do mundo. Nenhuma
tradição integral foi capaz de a dispensar, apesar das diferentes linguagens com as quais se
revestiram possam falar não de arquétipos mas de “essências”, “universais”, “luzes”, “ideias
divinas” e outras similares. Foi Platão quem ofereceu a esta doutrina a sua mais definitiva
expressão europeia, mas esta não tem nada de peculiarmente ocidental. Esta doutrina
reside na raiz de todas as teorias tradicionais da arte. Como introdução, utilizemos a
seguinte amostra de citações sugestivas:
Uma forma é produzida na vontade resignada de acordo com a plataforma ou o modelo
da eternidade, tal como era conhecida na eterna sabedoria de Deus antes dos tempos
deste mundo. (Jacob Boehme)
Todas as formas do ser neste mundo corpóreo são imagens de puras “Luzes”, que
existem no mundo espiritual. (Suhrawardi)
Os Sábios receberam o ensinamento de Deus de que este mundo natural é apenas uma
imagem e uma cópia de um padrão celeste e espiritual; que a própria existência deste
mundo se baseia na realidade dos seus arquétipos celestes. (Michael Sendivogius)
As coisas envolvem sempre universais (…) Se não existissem universais não poderíamos
falar das coisas como coisas. (Kung‐sun Lung)24
O Cavalo Louco teve um sonho no qual ia em direcção ao mundo onde apenas existem
os espíritos das coisas. Esse é o mundo real que está por detrás deste, e tudo o que
vemos aqui é como que uma sombra desse outro mundo. (Alce Negro)25
Formulações deste tipo poderiam ser multiplicadas indefinidamente, mas tal é claramente
desnecessário. Mestre Eckhart forneceu uma formulação muito concisa da doutrina ao
escrever “a forma é revelação da essência”.26 Tudo o que existe, qualquer que seja a sua
modalidade, participa necessariamente em princípios universais que correspondem a
essências incriadas e imutáveis e que estão contidas, recorrendo às palavras de Guénon, na
“actualidade permanente do Intelecto Divino”. Consequentemente, todo o fenómeno, por
muito efémero e contingente que seja, “traduz” ou “representa” estes princípios de acordo
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Direcções para o supra‐sensível
com o seu modo particular e o seu nível de existência. Sem a participação do imutável, eles
seriam “pura e simplesmente inexistentes”.27 A doutrina dos arquétipos implica também a
existência de múltiplos estados do ser e uma estrutura hierárquica do cosmos. Tal como
escreve Abu Bakr Siraj Ad‐Din:
(…) se um mundo não lançasse sombra de cima os mundos inferiores desapareceriam,
pois na criação cada mundo não é mais do que um tecido de sombras totalmente
dependente dos arquétipos do mundo superior.28
As analogias entre os arquétipos ou “Ideias Divinas” e as formas materiais transitórias deste
mundo, “esta multiplicidade volátil e efémera”, como a elas se refere Guénon, concedem
aos fenómenos determinadas significações qualitativas que os tornam expressões
simbólicas de realidades superiores. A mesma ideia está implícita na afirmação de Mircea
Eliade que o homo religiosus é, necessariamente, homo symbolicus.29
O entendimento tradicionalista da natureza e da arte sagrada é baseado numa
compreensão muito precisa da natureza do simbolismo. Um símbolo pode ser definido
como uma realidade de uma ordem inferior que participa de modo analógico numa
realidade de uma ordem superior do ser. Deste modo, um símbolo devidamente constituído
depende das qualidades inerentes e objectivas dos fenómenos, bem como da sua relação
com realidades espirituais. Assim, a ciência do simbolismo resulta numa disciplina rigorosa
que deve ter por base um discernimento das significações qualitativas das substâncias,
cores, formas, relações espaciais, etc. Isto é crucial. Schuon afirma:
(…) não estamos aqui a lidar com apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas
estão ordenadas em relação ao ser e de acordo com uma hierarquia mais real que o
individual; elas são, assim, independentes dos nossos gostos pessoais (…)30
Este princípio é tão importante que merece ser reafirmado, recorrendo agora às palavras de
Seyyed Hossein Nasr:
O símbolo não se baseia em convenções criadas pelo homem. Ele é um aspecto da
realidade ontológica das coisas e, como tal, independente da percepção que o homem
tem dele. O símbolo é a revelação de uma ordem de realidade superior numa ordem
inferior, através da qual o homem pode ser reencaminhado para o reino superior.
Aceitar os símbolos implica aceitar a estrutura hierárquica do universo e dos estados
múltiplos do ser.31
As significações simbólicas não podem ser inventadas ou imputadas. O simbolismo
tradicional é, na realidade, uma linguagem objectiva concebida, não de acordo com os
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Harry Oldmeadow
impulsos individuais ou “gostos” colectivos, mas sim em conformidade com a natureza das
coisas. Este simbolismo deverá ter em consideração não apenas a “beleza sensível” mas
também “as fundações espirituais dessa beleza”.32 Em resultado da sua precisão e
objectividade, um símbolo tradicional pode ser considerado com um “calculus” ou uma
“álgebra” para expressar ideias universais: “a função de qualquer símbolo é quebrar a casca
de esquecimento que resguarda o conhecimento imanente no Intelecto”.33 A concepção do
simbolismo como uma linguagem objectiva é axial no trabalho mais amadurecido de
Coomaraswamy, grande parte do qual foi direccionado para o despertar de uma adequada
compreensão do vocabulário simbólico das artes tradicionais. Numa das suas formulações
características, afirma:
O simbolismo é uma linguagem e uma forma precisa de pensamento; uma linguagem
hierática e metafísica, não uma linguagem determinada por categorias somáticas ou
psicológicas. A sua fundação assenta sobre correspondências analógicas (…) o
simbolismo é um calculus, no mesmo sentido em que uma analogia adequada é uma
prova.34
O estudo de símbolos tradicionais implica, assim, métodos tão rigorosos ou sensíveis como
os do filologista. Nada pode ser mais incorrecto do que uma interpretação subjectiva de
símbolos tradicionais, os quais são tão susceptíveis de palpites como o é uma linguagem
arcaica. Tal como refere Coomaraswamy, o estudo desse simbolismo não é tarefa fácil, não
apenas porque o mesmo símbolo pode ter sido utilizado de formas diferentes, mas porque
já não estamos familiarizados com todo o peso metafísico que outrora carregavam.35
A ciência do simbolismo é uma espécie de analogia objectiva do dom de “ver Deus em toda
a parte,” isto é, da percepção da transparência metafísica dos fenómenos e da dimensão
transcendente presente em qualquer situação cósmica.36 Ramakrishna, um exemplo deste
dom, entrava em êxtase com a visão de um leão, um pássaro ou uma bailarina, apesar de no
seu caso, refere Schuon, não se tratar tanto de um decifrar do simbolismo mas sim de um
“saborear das essências”.37 Eliade, ao aproximar‐se da questão de um ângulo distinto, refere
que para o homo religiosus tudo na natureza era capaz de se revelar como “sacralidade
cósmica”, como uma hierofania. Observa ainda que para a nossa era secular o cosmos se
tornou “opaco, inerte, silencioso; não transmite qualquer mensagem, não contém nenhuma
cifra”.38
Beleza: radiação divina
Não queremos terminar sem dedicar algumas palavras à questão da beleza, a qual
encontramos difundida por toda a parte na ordem natural, na própria forma humana e na
arte sagrada. Em primeiro lugar, existe uma íntima conexão entre a verdade, a bondade e a
beleza. As suas inter‐relações são praticamente inexauríveis e aquilo que poderíamos dizer
Sabedoria Perene 3 20
Direcções para o supra‐sensível
sobre este assunto é infindável. Vamos procurar estabelecer apenas alguns aspectos mais
gerais tomando como ponto de referência a natureza da beleza. Marsilio Ficino, platonista
da renascença, definiu a beleza como “aquele raio que, partindo do rosto de Deus, penetra
todas as coisas”.39 Na generalidade dos cânones tradicionais, a beleza apresenta esta
qualidade divina. A beleza é uma manifestação do Infinito num plano finito e, desta forma,
introduz algo do Absoluto no mundo de relatividades. O seu carácter sagrado “confere às
coisas perecíveis uma textura de eternidade”.40 Schuon refere:
O arquétipo da beleza, ou o seu modelo divino, é a superabundância e o equilíbrio das
qualidades divinas e, simultaneamente, o transbordar das potencialidades existenciais
no Ser puro (…) Assim, a beleza manifesta sempre uma realidade de amor, de
desdobramento, do ilimitado, de equilíbrio, de beatitude e de generosidade.41
Ela é distinta mas não separada da verdade e da virtude. Como afirmou Tomás de Aquino, a
beleza está relacionada com a faculdade cognitiva e, assim, com a sabedoria.42 A relação
entre a beleza e a virtude permite‐nos afirmar que estas não são mais do que duas faces de
uma mesma realidade: “a bondade é a beleza interna, e a beleza é a bondade externa”.43
Por outras palavras, e apesar do que afirmou Óscar Wilde, não existem vícios belos, tal
como não existem virtudes feias. As inter‐relações entre a beleza, a verdade e a bondade
explicam a razão pela qual, nas tradições orientais, todo o avatara personifica uma beleza
perfeita. É dito dos Budas que eles salvam não apenas pela sua doutrina mas também pela
sua beleza sobrehumana.44
A passagem seguinte apresenta um resumo de Schuon sobre estes princípios:
(…) a função terrestre da beleza é a actualização da lembrança platónica dos arquétipos
na criatura inteligente (…) na percepção do belo deve ser feita uma distinguo entre a
sensação estética e a correspondente beleza da alma, isto é, uma determinada virtude.
Para além de qualquer questão de “consolação sensível”, a mensagem da beleza é ao
mesmo tempo intelectual e moral: intelectual porque nos comunica aspectos da
Substância num mundo de acidentalidade, sem que para isso tenha que se recorrer ao
pensamento abstracto; e moral, porque nos relembra do que devemos amar e, por
consequência, ser.45
A beleza, seja ela natural ou criada pelo homem, pode ser uma porta aberta ou uma porta
fechada: quando é identificada apenas com o seu suporte terreno deixa o homem
vulnerável à idolatria e ao mero esteticismo; aproxima‐nos de Deus quando “pressentimos
nela as vibrações da Beatitude e da Infinitude que emanam da Beleza Divina”.46
* * *
Sabedoria Perene 3 21
Harry Oldmeadow
Está para além do objectivo deste texto estabelecer conexões entre os princípios
tradicionais expostos por Schuon e as questões e os problemas particulares que perturbam
o debate contemporâneo sobre o “ambiente”.47 Será suficiente dizer que todos os que se
preocupam com a actual “crise ecológica” (sintoma de uma mais profunda enfermidade
espiritual) deveriam ponderar as implicações da seguinte passagem de Schuon:
Este destronamento da natureza, ou esta cisão entre o homem e a terra – um reflexo da
cisão entre o homem e Deus – tem dado frutos tão amargos que não deveria ser difícil
admitir que, nos dias de hoje, a mensagem intemporal da natureza constitui um
viaticum espiritual da maior importância. (…) Não se trata de projectar um
individualismo sobre‐saturado e desiludido numa natureza dessacralizada – isto seria
uma mundanidade como muitas outras – mas, pelo contrário, uma redescoberta da
substância divina na natureza, a qual lhe é inerente, adoptando como base a
perspectiva tradicional; isto seria, noutras palavras, “ver Deus em toda a parte” (…)48
NOTAS
1 – N.T.: Título original: “Sinais para o supra‐sensível. Notas sobre o entendimento de Frithjof Schuon sobre
“Natureza”.
2 – The Proverbs of Hell.
3 – Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature, New York: Oxford University Press, 1996, p.3.
4 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun: Plains Indians in Art and Philosophy, Bloomington: World Wisdom Books,
1990, pp.39‐40.
5 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun, p.154.
6 – Barbara Perry, Frithjof Schuon, Metaphysician and Artist, Bloomington, 1981, p.6.
7 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds, London: Perennial Books, 1965, p.84.
8 – N.T.: Tradução da palavra inglesa Godhead, em referência à distinção de Mestre Eckhardt entre Gott e Gottheit,
isto é, Got ou Deus como o Divino enquanto expresso de uma forma pessoal (Criador), e Gottgeit ou Divindade
como a transpersonalidade divina do Absoluto como tal.
9 – Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, London: Perennial Books, 1979, 72‐73. Como escreveu também Schuon,
“a Maya divina, relatividade, é a consequência necessária da própria infinitude do Princípio”, Logic and
Transcendence, New York: Harper & Row. 1975,89. Ver também Frithjof Schuon, “Atma‐Maya,” Studies in
Comparative Religion, 7:3. Spring, 1977, passim.
10 – Confessions 9.vii, Harmondsworth: Penguin, 1969.
11 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds, p.190.
12 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, London: Perennial Books, 1967, pp.160‐161.
13 – Frithjof Schuon. Stations of Wisdom, London: Perennial Books, 19110, p.36.
14 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.50.
15 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, pp.111‐112.
16 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, 119. Ver também o editorial What Thirst is For na Sacred Web, 4,
pp.13‐14.
17 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, p.89n.
Sabedoria Perene 3 22
Direcções para o supra‐sensível
18 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.10.
19 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, p.93.
20 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.134.
21 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, p,115.
22 – Frithjof Schuon. Light on the Ancient World, p.117.
23 – Tendo em consideração a popularidade das ideias de Jung sobre os “arquétipos”, é importante referir que
estas ideias não constituem qualquer tipo de doutrina metafísica e que, pelo contrário, não são mais do que
hipóteses precárias sobre determinados fenómenos psíquicos.
24 – Estas quatro citações foram retiradas do magistral compêndio de Whitall Perry’s, A Treasury of Traditional
Wisdom, London: Allen & Unwin, 1971, p.671, 673, 672 & 670 respectivamente.
25 – Em John Neihardt (ed), Black Elk Speaks, London: Abacus, 1974, p.67.
26 – Mester Eckhart, A Treasury of Traditional Wisdom, p.673.
27 – René Guénon, Autorité spirituelle et pouvoir temporel, citado em A Treasury of Traditional Wisdom, p.302.
28 – Abu Bakr Siraj Ad‐Din The Book of Certainty Samuel Weiser, New York, 1974, 50. Este livro apresenta‐nos uma
perspectiva sufi da doutrina dos arquétipos e dos estados múltiplos do ser. Ver também René Guénon, The Multiple
States of Being, New York: Larson, 1984.
29 – Ver Mircea Eliade, “Methodological Remarks on the Study of Religious Symbolism” em Mircea Eliade & Joseph
Kitagawa (eds), The History of Religions: Essays in Methodology, Chicago: University of Chicago Press, 1959, p.95.
30 – Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, p.110.
31 – Seyyed Hossein Nasr, Sufi Essays, London: Allen & Unwin, 1972, p.88. Ver também Marco Pallis, A Buddhist
Spectrum. London: Allen & Unwin, 1980, pp.144‐163.
32 – Frithjof Schuon: “Foundations of an Integral Aesthetics,” Studies in Comparative Religion. 10:3, 1976, p.130.
Ver também Brian Keeble, “Tradition, Intelligence and the Artist,” Studies in Comparative Religion, 11:4, 1977,
pp.240‐241.
33 – Frithjof Schuon, Esoterism as Principle and as Way, London: Perennial Books, 1981, p.11. Ver também Frithjof
Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.40.
34 – A.K. Coomaraswamy, “The Nature of Buddhist Art” em Selected Papers 1: Traditional Art and Symbolism, ed.
Roger Lipsey. Princeton: Bollingen Press, 1977, pp.174‐175. Ver também uma carta não datada de Coomaraswamy
para um anónimo e para Robert Ulich, July 1942, em Selected Letters of Ananda Coomaraswamy, ed. Alvin Moore,
Jr. & Rama P. Coomaraswamy, Delhi: Oxford University Press, 1988, pp.210‐212 & pp.214‐215.
35 – A.K. Coomaraswamy, “The Iconography of Durer’s ‘Knots’ and Leonardo’s ‘Concatenation”’, The Art Quarterly,
7:2, 1944, 125; citado em A Treasury of Traditional Wisdom, p.305.
36 – Ver Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, 106‐121 e Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature, London: Allen &
Unwin, 1976, p.131.
37 – Frithjof Schuon, “Foundations of an Integral Aesthetics,” 135n. Ver também Christopher Isherwood,
Ramakrishna and His Disciples, Calcutta: Advaita Ashram, 1974, 61ff.
38 – Mircea Eliade, The Sacred and the Profane, New York: Harcourt, Brace & Jovanovich, 1959, p.12 & p.178.
39 – Quoted in R.J. Clements, Michelangelo’s Theory of Art, New York: New York University Press, 1971, p.5.
40 – Frithjof Schuon, Understanding Islam, London: Allen & Unwin, 1976, p.48.
41 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, p.241.
42 – Ver A.K. Coomaraswamy, “The Mediaeval Theory of Beauty” em Selected Papers I: Traditional Art and
Symbolism, p.211‐20, e dois ensaios, “Beauty and Truth” e “Why Exhibit works of Art?” em Christian and Oriental
Philosophy of Art, New York: Dover, 1956, pp.7‐22 (esp. pp.16‐18) & pp.102‐109.
Sabedoria Perene 3 23
Harry Oldmeadow
43 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, pp.245‐246. Ver também Frithjof Schuon, Esoterism as Principle and
as Way, p.95.
44 – Como assinala Schuon, o nome “Shunyamurti” – manifestação do vazio – aplicado a um Buda, está repleto de
significado; Spiritual Perspectives and Human Facts, 25n. Ver também Frithjof Schuon, In the Tracks of Buddhism,
London: Allen & Unwin, 1968, p.121.
45 – Frithjof Schuon, “Foundations of an Integral Aesthetics,” pp.131‐132.
46 – Frithjof Schuon, “Foundations of an Integral Aesthetics,” p.135.
47 – Alguns destes são sumariamente discutidos no meu anterior artigo, “‘The Translucence of the Eternal’:
Religious Understandings of the Natural Order”, Sacred Web, 2, pp.11‐31.
48 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun, p.13.
Sabedoria Perene 3 24
METAFÍSICA E SIMBOLISMO:
SACRALIZAÇÃO DA NATUREZA
Ver Deus em toda a parte
por Frithjof Schuon
Traduzido por Miguel Conceição
Ouve‐se dizer com frequência que é necessário “ver Deus em toda a parte” ou “em todas as
coisas”; tal não parece difícil de conceber para homens que crêem em Deus. No entanto,
existem aqui muitos graus, os quais vão desde o simples devaneio até à intuição intelectual.
Como se pode tentar “ver Deus”, que é invisível e infinito, nas coisas visíveis e finitas, sem se
correr risco de iludir‐se ou da queda no erro, ou sem dar àquilo de que se trata um sentido
de tal forma vago que as palavras acabam por perder todo o significado? É isso que nos
propomos a aclarar aqui, apesar de tal nos obrigar a regressar a alguns pontos já tratados
noutras ocasiões.
Em primeiro lugar, há que considerar nas coisas que nos rodeiam – bem como na nossa
própria alma, na medida em que é um objecto da nossa inteligência – esse algo que
poderíamos chamar o “milagre da existência”. Com efeito, a existência tem algo de
milagroso: é através dela que as coisas se separam, por assim dizer, do nada1; a distância
entre elas e o nada é infinita e, visto desta perspectiva, o menor grão de pó tem algo de
absoluto, logo de “divino”. Dizer que é necessário “ver Deus em toda a parte” significa,
antes de tudo, que é necessário vê‐lo na existência dos seres e das coisas, incluindo a nossa.
Mas os fenómenos não têm apenas a existência, caso contrário não seriam distintos; eles
têm também qualidades, as quais se sobrepõem a ela de algum modo e desdobram as suas
virtualidades. A qualidade que distingue uma coisa boa de uma má é, em menor escala,
semelhante à existência que distingue todas as coisas do nada2; por conseguinte, as
qualidades positivas representam Deus, tal como o faz a existência pura e simples. Os seres
são atraídos pelas qualidades porque são atraídos por Deus; toda a qualidade ou virtude,
quer se trate da mais insignificante propriedade física, quer da mais profunda virtude
humana, transmite‐nos algo da Perfeição divina que é a sua fonte imutável, de tal forma
que, metafisicamente falando, não saberíamos amar por qualquer outro motivo que não por
essa Perfeição.
Mas existe ainda uma outra “dimensão” a considerar, para o homem que busca a lembrança
de Deus nas coisas. O gozo que nos proporcionam as qualidades mostra‐nos que estas não
só existem em torno de nós, como também nos dizem respeito pessoalmente em virtude da
Providência; pois uma coisa é uma paisagem que existe sem que a possamos ver, e outra
coisa é uma paisagem que temos perante nós. Existe portanto uma dimensão “subjectiva
temporal” que se adiciona à dimensão “objectiva espacial”, se nos é permitido exprimir
desta forma: as coisas lembram‐nos Deus não somente na medida em que são boas ou que
têm um aspecto de bondade, mas também na medida em que podemos pressentir essa
Sabedoria Perene 3 27
Frithjof Schuon
bondade ou podemos dela gozar de uma maneira directa. No ar que respiramos, e que nos
poderia faltar, encontramos Deus, no sentido em que o Doador divino está no dom. Esta
maneira de “ver Deus” nos seus dons corresponde ao “agradecimento”, enquanto a
percepção das qualidades corresponde ao “louvor”; quanto à “visão” de Deus na simples
existência, esta gera na alma uma consciência geral ou fundamental da Realidade divina.
Assim, Deus revela‐se ao mesmo tempo pela existência e pelas qualidades das coisas, e pelo
dom que nos dá das mesmas; revela‐se também pelos contrários, a saber, pela limitação das
coisas e pelos seus defeitos3, bem como pela ausência ou pelo desaparecimento daquilo
que, sendo bom, nos é útil ou agradável. Assinalaríamos que o oposto concreto da
existência não é o nada – este não é mais do que uma abstracção –, mas sim a limitação, a
qual impede a existência de se estender até ao Ser puro e, portanto, tornar‐se Deus… As
coisas são limitadas de múltiplas maneiras, mas antes de tudo pelas suas determinações
existenciais, que são, para o plano terrestre, a matéria, a forma, o número, o espaço, o
tempo. Há que distinguir claramente entre o aspecto “limite” e o aspecto “defeito”: com
efeito, a fealdade de uma criatura não é da mesma ordem que a limitação espacial de um
corpo perfeito, pois este último exprime uma forma, um princípio normativo ou um
símbolo, enquanto que aquela não corresponde a mais do que uma carência e não faz mais
senão turvar a claridade do simbolismo. Seja como for, aquilo que Deus revela pela
limitação das coisas, depois pelos seus defeitos e também, no que concerne o sujeito
humano, pela privação das coisas ou das qualidades, é o carácter “não divino”, logo
“ilusório” ou “irreal”, de tudo o que não é Ele.
* * *
Todas as coisas não são mais do que as acidentalidades de uma substância única e universal,
a Existência, que permanece sempre virgem em relação às suas produções; ela manifesta,
mas ela mesma não é manifestada; isto é, ela é o acto divino, o acto criador que, a partir do
Ser, produz o conjunto das criaturas. É então a Existência que é real, não as coisas; a
substância, não os acidentes; o invariável, não as variações. Sendo assim, como poderiam as
coisas não ser limitadas, e como poderiam elas não proclamar, pelas suas múltiplas
limitações, a unicidade da Palavra divina, e por isto de Deus? Pois a Substância universal não
é distinta da Palavra criadora, a palavra “sê!”, a partir da qual brotam todos os seres.
Dizer “existir” é dizer “ter qualidades”, mas é também dizer “ter limites”, bem como
defeitos. Já assinalámos que as coisas são limitadas, não apenas em si mesmas, mas
também em relação a nós; elas são limitadas e efémeras e, ao mesmo tempo, escapam‐nos,
seja pelo seu afastamento espacial, seja pelo destino que as arrebata. Também isto nos
permite “ver Deus em todas as coisas”, pois se Deus, ao dar, manifesta a sua Realidade, a
sua Plenitude e a sua Presença, manifesta a nossa relatividade, o nosso vazio e a nossa
ausência – em relação a Ele – ao tirar, isto é, ao recolher aquilo que havia dado.
Sabedoria Perene 3 28
Ver Deus em toda a parte
Assim como as qualidades expressam a existência no próprio plano desta, do mesmo modo
as limitações expressam, em sentido inverso, a irrealidade metafísica das coisas. E essa é
uma outra maneira de “ver Deus em toda a parte”: pois todas as coisas, ao existirem, são
por essa mesma razão “irreais” em relação à Realidade absoluta; é, assim, necessário
discernir em todas as coisas não somente os aspectos existenciais, mas também o “nada”
ante Deus ou, noutros termos, a irrealidade metafísica do mundo. E é a própria existência4
que nos fornece a “substância” desse “nada”: as coisas são irreais ou ilusórias na mesma
medida em que mergulham na existência e que, por esse motivo, o seu contacto com o
Espírito divino se torna cada vez mais indirecto.
A qualidade, dissemos, expressa a existência no próprio plano desta; e, podemos dizer de
maneira análoga, que o defeito expressa a limitação de um modo unicamente negativo e
acidental. Pois a limitação detém‐se, de certa forma, entre a existência e o nada: ela é
positiva na medida em que descreve uma forma‐símbolo, e negativa na medida em que
desfigura essa forma ao querer reduzi‐la de algum modo, mas “por baixo”, em direcção à
indistinção da essência; trata‐se da confusão clássica entre o supra‐formal e o informal,
confusão que é, diga‐se de passagem, a chave da arte “abstracta” e do “surrealismo”. No
entanto, apesar da forma ter uma função positiva graças ao seu poder de expressão, ela
limita ao mesmo tempo aquilo que expressa, e que é uma essência; o mais belo corpo é
como um fragmento congelado de um oceano de inefável beatitude.
* * *
A todas estas categorias existenciais, tanto subjectivas como objectivas, podemos adicionar
as do simbolismo. Embora todo o fenómeno seja forçosamente um símbolo, pois a
existência é essencialmente expressão ou reflexo, há que distinguir contudo os graus de
conteúdo e de inteligibilidade: por exemplo, existe uma diferença eminente – e não
simplesmente quantitativa – entre um símbolo directo como o sol e um símbolo indirecto e
quase acidental; para além disso existe o símbolo negativo, cuja inteligibilidade pode ser
perfeita, mas cujo conteúdo é tenebroso, sem esquecer o duplo sentido de muitos símbolos,
mas não dos mais directos. A ciência simbolista – não o mero conhecimento dos símbolos
tradicionais – procede das significações qualitativas das substâncias, das formas, das
direcções espaciais, dos números, dos fenómenos naturais, das posições, das relações, dos
movimentos, das cores e de outras propriedades ou estados das coisas; não se tratam de
apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas estão ordenadas em direcção ao Ser e
segundo uma hierarquia que é mais real do que o indivíduo; elas são, assim, independentes
dos nossos gostos ou, mais exactamente, os determinam na medida em que nós próprios
somos conformes ao Ser; assentimos as qualidades na medida em que somos
“qualitativos”5. O simbolismo, quer resida na natureza, quer se afirme na arte sagrada,
corresponde, também ele, a uma maneira de “ver Deus em toda a parte”, sob a condição
que esta visão seja espontânea graças a um conhecimento íntimo dos princípios dos quais
Sabedoria Perene 3 29
Frithjof Schuon
procede a ciência simbolista; esta ciência coincide em certo ponto com o “discernimento
dos espíritos”, o qual ela transfere para o plano das formas ou dos fenómenos, daí a sua
estreita conexão com a arte cultual.
Agora, “como” simbolizam as coisas Deus ou os “aspectos divinos”? Não podemos dizer que
Deus é esta árvore, tão pouco que esta árvore é Deus, mas podemos dizer que a árvore, sob
um determinado aspecto, não é “outra coisa senão Deus”, ou que, visto que não é
inexistente, não pode, de forma alguma, não ser Deus. Pois a árvore tem existência, depois,
a vida que a distingue dos minerais, de seguida, as suas qualidades particulares que a
distinguem das outras plantas e, por fim, o seu simbolismo, tudo isso constituindo formas da
árvore não só não “ser o nada”6, como também afirmar Deus sob este ou aquele aspecto: a
vida, a criação, a majestade, a imutabilidade axial ou a generosidade.
O simbolismo não teria qualquer sentido se não fosse um modo contingente, mas sempre
consciente, da percepção da Unidade; pois “ver Deus em toda a parte” é perceber, antes de
tudo, a Unidade – Ātmā, o Si – nos fenómenos. Segundo o Bhagavad‐Gitâ, “a cognição que
reconhece em todos os seres uma essência única, imperecível, indivisível, embora espalhada
nos objectos separados, procede de Sattwa” (tendência “luminosa”, “ascendente”,
“conforme ao Ser”, Sat); e o mesmo texto prossegue: “Mas a cognição que, extraviada pela
multiplicidade dos objectos, vê em todos os seres entidades diversas e distintas, procede de
rajas (tendência “ígnea” e “expansiva”). Quanto à cognição limitada que, sem remontar às
causas, se apega a um objecto particular como se ele fosse tudo, ela procede de tamas”
(tendência “tenebrosa” e “descendente”) (XVIII, 20 a 22). Há que ter aqui em conta o
aspecto sob o qual se consideram as coisas: as tendências cósmicas (gunas) não estão
apenas no espírito do homem, elas formam também, e com toda a evidência, parte das suas
faculdades de conhecimento relativo e dos domínios que lhes correspondem, de tal forma
que a razão, assim como o olho, não pode escapar à diversidade: ademais, dizer que tal
cognição “reconhece em todos os seres uma essência única”, equivale a afirmar que estes
seres existem no seu plano. Trata‐se, assim, de admitir, não que não existam diferenças
objectivas em nosso redor, mas que estas não se opõem à percepção da unidade de
essência; a perspectiva “passional” (rajas) é censurada, não por perceber as diferenças, mas
sim porque lhes atribui um carácter absoluto, como se cada ser fosse uma existência
separada, o que é, de certa forma, o que faz também o olho, precisamente porque
corresponde existencialmente a uma visão “passional”, e na medida em que pertence ao
ego que é “feito de paixão”. O Intelecto, que percebe a unidade de essência nas coisas,
discerne ao mesmo tempo as diferenças de modos e de graus precisamente em função
dessa unidade; caso contrário a distinção entre as gunas seria impossível.
* * *
Sabedoria Perene 3 30
Ver Deus em toda a parte
Fizemos acima alusão às condições da existência sensível ou psicofísica: espaço, tempo,
forma, número, substância; modos que, aliás, não se reduzem ao nosso plano de existência,
uma vez que este não pode ser um sistema fechado, nem tão pouco contém a totalidade do
homem, pois este estende‐se até ao Infinito. Estas condições assinalam outros tantos
princípios que permitem “ver Deus nas coisas”: o espaço estende e conserva, tudo limitando
através da forma; o tempo limita e devora, tudo estendendo pela duração; a forma exprime
e limita ao mesmo tempo; o número é um princípio de expansão, mas sem poder qualitativo
ou sem virtude formal se assim se preferir; e, por fim, a substância, que no plano físico se
converte em “matéria”7, assinala a existência sobre este ou aquele nível, e portanto o “nível
de existência”8. A forma, em si qualitativa, tem algo de quantitativo quando é material; o
número, em si quantitativo, tem algo de qualitativo quando é abstracto. A materialidade da
forma adiciona a esta uma dimensão, logo uma quantidade; o carácter simbólico do número
liberta‐o da sua função quantitativa e confere‐lhe um valor principial, isto é, uma
qualidade.9 O tempo, que é por assim dizer “vertical” em relação ao espaço, que é
“horizontal” – se pudemos arriscar introduzir um simbolismo geométrico numa
consideração que, precisamente, sai da condição espacial –, o tempo, portanto, ultrapassa a
existência terrena e projecta‐se, de uma certa forma e dentro de determinados limites, no
“mais além”, algo que a conexão entre a vida psíquica e o tempo na vida terrena permite já
pressentir; esta conexão é mais íntima do que aquela que liga a alma ao espaço que nos
rodeia, como o mostra o facto de na concentração ser mais fácil fazer abstracção da
extensão espacial do que da duração; a alma de um cego está como que entrincheirada no
espaço, mas não no tempo. Quanto à matéria, esta é, de um modo ainda mais directo que a
substância anímica ou subtil, substância universal “congelada”10 ou “cristalizada” pela fria
proximidade do “nada”; este “nada” nunca poderá ser alcançado pelo processo de
manifestação, pela simples razão que o “nada” 11 absoluto não existe, ou melhor, que existe
apenas a título de “indicação”, de “direcção” ou de “tendência” na própria obra criadora;
vemos uma sua imagem no facto do frio não ser mais do que uma privação que não tem,
portanto, nenhuma realidade positiva, mas que entretanto transforma a água em neve e
gelo como se tivesse o poder de produzir corpos.
O espaço “parte” do ponto ou do centro, é a “expansão” e “tende” – sem jamais a alcançar
– para a infinitude; o tempo parte do instante ou do presente12, é a duração e tende para a
eternidade; a forma parte da simplicidade, é a diferenciação ou complexidade e tende para
a perfeição; o número parte da unidade, é a multiplicidade ou a quantidade e tende para a
totalidade13; por fim, a matéria parte do éter, é a cristalização ou densidade e tende para a
imutabilidade, que é ao mesmo tempo indestrutibilidade. Em cada um destes casos, o
“meio‐termo” – que “é” a sua condição respectiva – busca, em suma, a perfeição ou virtude
do “ponto de partida”, mas busca‐a no seu próprio plano ou, mais precisamente, no seu
próprio movimento, no qual lhe é impossível a alcançar: se a expansão tivesse a virtude do
ponto, seria infinidade; se a duração tivesse a virtude do instante, seria eternidade; se a
forma tivesse a virtude da simplicidade, seria perfeição; se o número tivesse a virtude da
Sabedoria Perene 3 31
Frithjof Schuon
unidade, seria totalidade; e se a matéria tivesse a virtude – imutável porque omnipresente –
do éter, seria imutabilidade.
Se se objectar que, no plano formal, a perfeição é alcançada pela esfera, responderemos
que a perfeição formal não se pode restringir à forma mais simples, pois o que distingue
uma bela forma de carácter complexo – por exemplo, determinado corpo humano – da
esfera não é, de modo algum, uma falta de perfeição, tanto mais que o princípio formal
tende precisamente para a complexidade; apenas nesta pode realizar a beleza. Mas isto não
significa que a perfeição se possa alcançar neste plano; com efeito, a perfeição complexa
exigiria uma forma que combinasse a mais rigorosa necessidade ou inteligibilidade com a
maior diversidade, o que é impossível porque as possibilidades formais são inumeráveis na
mesma medida em que elas se afastam, por via da diferenciação, da forma esférica e inicial.
Com a submersão na complexidade, é possível alcançar‐se a perfeição “unilateral” e
“relativamente absoluta” de determinada beleza, é certo, mas não a perfeição integral e
absoluta de toda a beleza; a condição de pura necessidade realiza‐se apenas na protoforma
esférica e “indiferenciada”.
O que entra no espaço, entra também no tempo; o que entra na forma, entra também no
número; o que entra na matéria entra, através dela, na forma, no número, no espaço, no
tempo. O espaço, que “contém” como uma matriz14 e que “preserva”, recorda a Bondade ou
a Misericórdia; está em conexão com o amor. O tempo, por seu lado, traslada‐nos sem
cessar para um “passado” que já não existe e arrasta‐nos para um “porvir” que todavia
ainda não existe, ou melhor, que nunca existirá, e que ignoramos, à excepção da morte que
é a única certeza da vida – o que implica a associação do tempo com o Rigor ou com a
Justiça e o facto deste se encontrar em conexão com o temor. Quanto à matéria, esta
recorda‐nos a realidade, pois é esse modo de “não‐existência” que nos é perceptível em
toda a parte, tanto no nosso corpo, como na visão da Via Láctea; a forma traz‐nos a
recordação da Lei divina ou da norma universal, porque é verídica ou errónea, justa ou falsa,
essencial ou acidental; por último, o número desdobra perante nós a ilimitação da Omni‐
Possibilidade, que é tão “inumerável” como a areia do deserto ou as estrelas do céu.
Por mais que o espaço limite os seus conteúdos, ele não poderá impedi‐los de existir; e por
mais que o tempo estenda os seus conteúdos, não será por essa razão que deixarão de
existir um dia. A duração não suprime a efemeridade, tal como a limitação espacial não
suprime a extensão. No espaço, jamais se encontra algo totalmente perdido; no tempo,
tudo se perde irremediavelmente.
A existência manifesta‐se a priori pela substância. Esta tem dois recipientes, o espaço e o
tempo, o primeiro dos quais é positivo, enquanto que o segundo é negativo; ela tem
também dois modos, a forma e o número, o primeiro limitativo e o segundo expansivo. O
Sabedoria Perene 3 32
Ver Deus em toda a parte
número reflecte o espaço, porque estende, tal como a forma reflecte o tempo, porque
restringe.
Se o homem pudesse viver mil anos acabaria, sem dúvida, por se sentir como que esmagado
pelos limites das coisas, logo também pelo espaço, pelo tempo, pela forma, pelo número e
pela matéria, e, em compensação, não veria mais do que as essências nos conteúdos. Por
outro lado, a criança, ou mesmo o homem comum, não vê mais do que os conteúdos, ao
mesmo tempo sem essências e sem limites.
* * *
As condições da nossa existência terrena têm, cada uma, duas “aberturas” para Deus: o
espaço comporta, por um lado, o ponto geométrico ou o “centro” e, por outro, a extensão
ilimitada, o “infinito”; da mesma forma, o tempo comporta o instante ou o “presente”, bem
como a duração indefinida, a “eternidade”; no espaço estamos como que entre o centro e o
infinito, e no tempo, entre o presente e a eternidade, e essas são outras tantas moradas de
Deus que nos extraem das duas “dimensões existenciais”; não podemos evitar pensar nisto
quando temos consciência destas dimensões, nas quais vivemos e as quais vivem em nós, se
assim o podemos dizer. O centro e o infinito, o presente e a eternidade são,
respectivamente, os pólos da condição espacial e da condição temporal, mas ao mesmo
tempo escapamos a estas condições precisamente por estes pólos: o centro não está mais
no espaço, falando em rigor, tal como o ponto geométrico não tem extensão, e o presente
absoluto ou o instante puro não estão mais na duração; quanto ao infinito, ele é, de certa
forma, o “não‐espaço”, tal como a eternidade é o “não‐tempo”.
Consideremos agora a condição formal: nela existem a perfeição geométrica e a perfeição
corporal, e ambas revelam Deus; o Criador manifesta‐se no carácter “absoluto” do círculo,
do quadrado, da cruz, bem como na beleza – a “infinitude” – do homem ou de uma flor; a
beleza geométrica é “fria”, a corporal “quente”. Mas falando com rigor, o “centro” da
condição formal é o vazio; as formas geométricas elementares, começando pela esfera, não
são mais do que as primeiras “saídas” da forma para fora do vazio, logo ao mesmo tempo as
primeiras “expressões” e “negações” deste último. A esfera é a forma que se mantém mais
próxima do vazio, daí a sua perfeição de simplicidade; o corpo humano, na sua beleza
normativa – e os diversos modos que esta comporta – é o que mais se aproxima da
plenitude, o que corresponde à perfeição oposta, a da complexidade. A plenitude é o que
reúne um máximo de aspectos homogéneos, ou o que introduz a totalidade na forma; a
esfera e o homem correspondem, num modo formal, à unidade e à totalidade; aquilo que o
número exprime em modo abstracto, separativo e quantitativo, a forma exprime em modo
concreto, unitivo e qualitativo. O zero é para unidade o que o vazio é para a esfera; a
unidade assinala Deus, enquanto a totalidade equivale à sua manifestação, o cosmos.
Sabedoria Perene 3 33
Frithjof Schuon
* * *
“Ver Deus em toda a parte” é ver‐se a Si mesmo (Ātmā) em todas as coisas; é ter
consciência das correspondências analógicas – enquanto “modos de identidade” – entre os
princípios ou possibilidades que, incluídos antes de mais na Natureza divina, se propagam
ou reverberam “em direcção ao nada” e constituem tanto o microcosmos como o
macrocosmos, dos quais se criam ao mesmo tempo os receptáculos e os conteúdos. O
espaço e o tempo são os receptáculos; a forma e o número surgem como os conteúdos,
apesar de serem recipientes em relação às substâncias que coagulam ou que segmentam. A
matéria é, de uma forma mais visível, recipiente e conteúdo ao mesmo tempo, ela “contém”
as coisas e “preenche” o espaço; os seus conteúdos são corroídos e devorados pelo tempo,
mas ela mantém‐se quase intemporal, de tal forma que coincide com a duração total.
O problema do tempo está intimamente ligado ao da alma e pode fazer surgir a seguinte
pergunta: que sentido se deve dar à doutrina dogmática da alma junto dos monoteístas,
segundo a qual a alma não tem um fim, tendo contudo um começo? O absurdo metafísico
de uma eternidade criada no tempo, ou de uma perpetuidade puramente “unilateral”, é
evidente; mas como a teologia ortodoxa exclui o mero absurdo, há que procurar para além
das palavras e no simbolismo a explicação para uma doutrina tão contraditória. Para
começar, o monoteísmo não inclui na sua perspectiva mais do que aquilo que interessa
directamente ao homem, de tal forma que se apresenta como um “nacionalismo espiritual”
do género humano; ora, como o estado que precedeu o nosso nascimento terreno era tão
pouco humano como o são os estados animais e angélicos, ele é considerado inexistente,
exactamente como a alma dos animais e das plantas; por conseguinte, apenas somos
apelidados de “alma” a partir do nosso nascimento humano ou, mais exactamente, desde o
seio materno. Mas há outra coisa que é muito mais importante: a criação temporal da alma
– isto é, a sua entrada no estado humano – expressa a nossa relatividade; por outro lado, a
perpetuidade celeste da alma, ou a sua eternidade junto de Deus, refere‐se ao seu lado
absoluto, a qualidade “incriada” da sua essência; somos ao mesmo tempo relativos e
absolutos, e este paradoxo fundamental do nosso ser explica o que a doutrina teológica da
alma pode ter de ilógico ou de “misterioso” na sua própria formulação. Há que não
esquecer, por outro lado, que a creatio ex nihilo afirma, antes de tudo, a causalidade divina
contra um “naturalismo” sempre ameaçador; e dizer que a alma é “eterna” só pode
significar, no plano da verdade absoluta, que ela é “essencialmente” o Si.
* * *
A faculdade de “Ver Deus em todas as coisas” pode ser independente de toda a análise
intelectual, ela pode ser uma graça cujos modos são imponderáveis e que surge de um
profundo amor a Deus. Quando dizemos “análise intelectual” não nos referimos de forma
alguma às especulações no vazio; as “categorias” de que falámos não têm nada de
Sabedoria Perene 3 34
Ver Deus em toda a parte
“abstracto”, mas a sua percepção depende evidentemente de um discernimento que surge
como tal do ponto de vista das sensações e que, longe de se comprazer em dissecações
estéreis, está, no entanto, obrigado a “separar” para “unir”. Tanto a separação como a
união estão na natureza das coisas, cada qual a seu nível, se assim o podemos dizer: o olho,
para ver melhor uma montanha, necessita de uma certa distância; esta distância revela
diferenças; permite análises visuais, mas ao mesmo tempo “une” ou sintetiza
proporcionando a imagem adequada e total da montanha.
Ver Deus em toda a parte e em tudo é ver a infinidade das coisas, enquanto que a
animalidade humana não percebe mais do que a sua superfície e a sua relatividade; é ver,
de um só golpe, a relatividade das categorias nas quais se move o homem, considerando‐as
absolutas. Olhar a infinidade no finito é ver que dada flor à nossa frente é eterna, porque
uma eterna primavera se afirma através do seu frágil sorriso; ver a relatividade é captar que
esse instante que vivemos não é o “agora”, que ele “já passou” antes mesmo de ter
ocorrido, e que, se fosse possível deter o tempo, com todos os seres que nele assim ficariam
paralisados como que num rio de gelo, a pantomima humana apareceria em toda a sua
sinistra irrealidade; tudo pareceria absurdo, salvo a “lembrança de Deus” que se situa no
imutável.
Ver Deus em toda a parte é, portanto, essencialmente o seguinte: ver que nós não somos,
que apenas Ele é. Se pode ser dito que, de uma determinada perspectiva, a humildade é a
maior das virtudes, é porque esta implica, em última análise, a cessação de todo o egoísmo,
e por nenhuma outra razão. Outro tanto se poderia dizer – mudando um pouco de ponto de
vista – de cada virtude fundamental: a caridade perfeita é perder‐se por Deus, pois não é
possível perder‐se em Deus sem dar‐se, por acréscimo, aos homens. Se o amor ao próximo é
capital, no plano estritamente humano, isso deve‐se não só ao facto do “próximo” ser, em
última análise, “Si” tal como “nós” o somos, mas também porque essa caridade humana –
ou essa projecção no “outro” – é, para a maioria dos homens, o único meio possível para se
desapegar do “eu”; é menos difícil projectar o ego no “outro” do que o perder por Deus,
ainda que as duas coisas estejam indissoluvelmente ligadas.
* * *
A nossa forma é o ego: é essa misteriosa incapacidade de ser outro para além de si mesmo,
e ao mesmo tempo a incapacidade de ser totalmente si mesmo e não “outro para além de
Si”. Mas a nossa Realidade não nos dá opção e obriga‐nos a “convertermo‐nos no que
somos”, ou a permanecer aquilo que não somos. O ego é, empiricamente, um sonho no qual
nos sonhamos a nós mesmos; os conteúdos desse sonho, extraídos do ambiente, não são no
fundo mais do que pretextos, pois ele não quer mais do que a sua própria vida:
independentemente do que possamos sonhar, o nosso sonho não é, em suma, mais do que
um símbolo para o ego que se quer afirmar, um espelho que seguramos perante o “eu” e
Sabedoria Perene 3 35
Frithjof Schuon
que reverbera a sua vida de múltiplas maneiras. Este sonho converteu‐se na nossa segunda
natureza; ele é tecido de imagens e de tendências, elementos estáticos e dinâmicos em
inumeráveis combinações: as imagens vêm de fora e integram‐se na nossa substância,
enquanto que as tendências são as nossas respostas ao mundo que nos rodeia; e, como nos
exteriorizamos, criamos um mundo à imagem do nosso sonho, e o sonho assim objectivado
repercute em nós, e assim sucessivamente até nos encerrar num tecido por vezes
inextricável de sonhos exteriorizados ou materializados e de materializações interiorizadas.
O ego é como um moinho de água cuja roda, sob a pressão de uma corrente – o mundo e a
vida –, gira e repete‐se incansavelmente numa série de imagens sempre diferentes e
sempre semelhantes.
O mundo é como se essa “Substância consciente” que é o Si tivesse caído num estado que a
cindisse de múltiplas maneiras e lhe infligisse uma infinidade de acidentes e imperfeições, e
de facto, o ego é uma ignorância que se debate em modos objectivos de ignorância, tal
como o tempo e o espaço. E o que é o tempo senão a ignorância do que será “depois”, e o
que é o espaço senão a ignorância do que escapa aos nossos sentidos? Se fossemos “pura
consciência” como o Si, seríamos “sempre” e “em toda a parte”; isto é, não seríamos “eu”,
pois este em verdade é, na sua actualidade empírica, uma criação do espaço e do tempo. O
ego é a ignorância do que é o “outro”; toda a nossa existência é um tecido de ignorâncias;
somos como o Si congelado, logo lançado “à terra” e partido em mil pedaços; constatamos
os limites que nos rodeiam e damo‐nos conta que somos fragmentos de consciência e de
ser. A matéria constrange‐nos como uma espécie de paralisia, confere‐nos uma gravidade
mineral e expõe‐nos às misérias da impureza e da mortalidade; a forma talha‐nos segundo
determinado modelo, impõe‐nos determinada máscara e aparta‐nos de um todo ao qual
estamos, no entanto, ligados, mas que na morte nos deixa cair tal como a árvore abandona
o seu fruto; finalmente, o número é o que nos repete – em nós mesmos como ao nosso
redor – e que ao repetir‐nos nos diversifica, pois duas coisas não podem jamais ser
absolutamente idênticas; o número repete a forma como que por magia, e a forma
diversifica o número e deve, assim, recriar‐se sempre de novo, porque a Toda‐Possibilidade
é infinita e tem que manifestar a sua infinitude. Ora, o ego não só é múltiplo no exterior, na
diversidade das almas, como também é dividido em si mesmo na diversidade das tendências
e dos pensamentos, o que não é a menor das nossas misérias; porque “a porta é estreita”, e
“dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus”.
E posto que “não somos outros” senão o Si, estamos condenados à eternidade. A
eternidade espreita‐nos, e é por isso que devemos reencontrar o Centro, esse lugar onde a
eternidade é beatitude. O inferno é a resposta à periferia que se faz Centro, ou ao múltiplo
que usurpa a glória da Unidade; é a resposta da Realidade ao ego que se toma como
absoluto, e que está condenado a sê‐lo sem o poder ser… O Centro é o Si ”liberado”, ou
mais exactamente aquele que jamais deixou de ser livre, – eternamente livre.
Sabedoria Perene 3 36
Ver Deus em toda a parte
NOTAS
1 – N.T.: A palavra nada traduz aqui a palavra francesa “néant” que tem, em rigor, o significado de não existência,
do não‐ser, “o nada” propriamente dito; por outro lado, a palavra francesa “rien” exprime a negação ou a ausência
de algo. O autor analisa estes dois conceitos no seu texto “Catégories universelles” inseridos na obra “Avoir un
Centre”. Ver também nota seguinte.
2 – Falamos aqui do nada como se ele tivesse alguma realidade, o que é metafisicamente necessário em alguns
casos, apesar de ser logicamente absurdo. Se é certo que não existe o nada, existe, no entanto, um “princípio do
nada”, mas que – precisamente pelo nada não existir – se detém sempre a meio caminho. Este princípio é como que
a sombra invertida da infinitude do Supra‐Ser; é Māyā que se separa ilusoriamente de Ātmā, sem dele se poder
libertar, muito menos o abolir.
3 – É neste sentido que Mestre Eckhart pôde dizer: “Quanto mais blasfema, mais louva Deus”.
4 – A Existência é positiva e “divina” em relação às coisas existentes e enquanto causa, mas é limitativa e
“demiúrgica” em relação a Deus, que se limita, num certo sentido ilusório, criando, se nos é permitido expressar
deste modo; sentido ilusório, dissemos, porque Deus é imutável, impassível, inalterável.
5 – É necessário ser‐se muito perverso para não ver nenhuma diferença qualitativa‐objectiva entre o que é nobre e
o que é vil, a não ser que se situe no ponto de vista transcendente da indiferenciação de Ātmā, o qual corresponde
a algo totalmente distinto de um igualitarismo subversivo e iconoclasta. Seja como for, é esta ciência dos
fenómenos qualitativos que permite situar implacavelmente as aberrações da arte contemporânea e rasgar o véu
do seu falso mistério.
6 – Num certo sentido, apenas Deus é “o que não é nada”; apelas Ele é “não‐inexistente”, duas negações
simultâneas, mas que têm uma função precisa. As verdades deste tipo podem dar origem, indirectamente e por
desvio, ao panteísmo e à idolatria, o que não as impede de serem verdadeiras e de terem, consequentemente, a
sua legitimidade num determinado plano, para dizer o menos.
7 – Denominou‐se por vezes esta quinta condição como “vida”, sem dúvida para expressar que a inércia não pode
ser absoluta, ou que o éter possui uma certa potencialidade vital, sem a qual a vida – o “sopro” (πνευµα ou prāna)
– não encontraria nele qualquer receptáculo.
8 – A palavra sânscrita para “matéria”, bhūta, comporta um sentido de “substância” ou de “subsistência”; a matéria
deriva da substância, ela é um seu reflexo no plano das coagulações “grosseiras” e refere‐se, através da substância,
ao Ser.
9 – É o número pitagórico, cujo alcance universal e não quantitativo se adivinha desde logo nas figuras geométricas;
o triângulo e o quadrado são “personalidades” e não quantidades, eles são essenciais e não acidentais. Enquanto
que o número corrente se obtém por adição, o número qualitativo resulta, pelo contrário, de uma diferenciação
interna ou intrínseca da unidade principial; não se adiciona a nada e não sai da unidade. As figuras geométricas são
outras tantas imagens da unidade, excluindo‐se umas das outras, ou seja, assinalando qualidades principiais
diferentes: o triângulo é a harmonia, o quadrado a estabilidade; são números “concêntricos”, não “progressivos”.
10 – Esta “congelação” não alcança a substância em si, tal como, na ordem dos cinco elementos, a “solidificação” –
ou a diversificação dos elementos em geral – não alcança o éter, que subsiste neles. Esta comparação não é,
todavia, adequada, uma vez que o éter é um elemento e não se situa, portanto, num outro plano, apesar da sua
posição “central” e da sua “virgindade”, enquanto que a substância universal é transcendente em relação às suas
produções.
11 – N.T.: O autor usa aqui a palavra francesa “rien” expressando, como referimos na primeira nota, a negação ou
ausência de algo.
12 ‐ O “centro” e o “presente” assinalam, em relação ao “ponto” e ao “instante”, uma perspectiva ao mesmo tempo
qualitativa e subjectiva; subjectividade qualitativa, porque o sujeito é o Si. Os termos objectivos – “ponto” e
“instante” – implicam certamente esta mesma “qualidade”, mas a relação espiritual – não a relação metafísica – é
menos directa e menos aparente, precisamente porque as noções respectivas estão suprimidas da vida.
13 – Nestas duas condições, a forma e o número, os respectivos pontos de partida – a simplicidade e a unidade –
têm uma existência concreta, sem dúvida porque estas condições são “conteúdo” em relação ao espaço e ao
Sabedoria Perene 3 37
Frithjof Schuon
tempo, que são “recipientes”; por outro lado, os pontos de partida destes últimos – o ponto e o instante – não têm
nem extensão, nem duração, respectivamente. Contudo, a simplicidade esférica não é uma forma entre outras, pois
ela é incomparável, tal como a unidade não é uma quantidade propriamente dita, pois ele não se junta a nada; se
não existisse nada mais do que a simplicidade e a unidade, não existiria nem forma, nem número.
14 – É para nós como uma “matriz [N.T.: no sentido de útero] de imortalidade”, e a morte o nascer para a Vida
eterna.
Sabedoria Perene 3 38
Uma metafísica da natureza virgem
por Frithjof Schuon
Traduzido por Noémia Silva
Toda a tradição dos índios da América do Norte, excepto os do Noroeste, Califórnia e alguns do
Sudoeste, está contida, do ponto de vista do simbolismo geométrico, na cruz inscrita no
círculo: o círculo corresponde ao Céu, enquanto que a cruz indica as quatro direcções do
espaço e todos os demais quaternários do Universo; indica igualmente o ternário vertical Terra
– Homem – Céu, o que coloca o quaternário horizontal em três níveis. Pode ainda dizer‐se que
a sabedoria dos índios peles‐vermelhas baseia‐se, simbolicamente falando, nos números
“pitagóricos” quatro e três – o primeiro “horizontal” e o segundo “vertical” – e na sua
combinação, o número doze. Esta “duodecimidade” deve ser visualizada como composta de
três quaternários horizontais, dispostos uns sobre os outros ao longo de um eixo central ou,
mais precisamente, de três discos, em cada um dos quais se encontra a cruz horizontal das
quatro direcções. Estes três níveis são por vezes representados sob a forma de três anéis
pintados na árvore da Dança do Sol1.
No simbolismo da cruz e do círculo, o círculo estático e espacial da terra combina com o círculo
dinâmico e temporal do dia ou do céu: o círculo pode ser o horizonte com os quatro pontos
cardinais se inclui a cruz, ou pode ser o curso do sol com o amanhecer, o dia, o entardecer e a
noite, ou o ano com a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno.
E isto é muito importante: o homem é o centro, tanto das quatro direcções horizontais do
espaço, como do ternário vertical da hierarquia cósmica; em relação a este último aspecto, ele
é identificado com a Vida e é o mediador entre a Terra “sob os seus pés” e o Céu “por cima da
sua cabeça”2, ou entre a inércia e a luz. Em relação ao primeiro aspecto, ele é a Inteligência na
qual os quatro cantos são reflectidos e unidos, e ele é, assim, identificado com o eixo cósmico,
a árvore do mundo. Ele é o Calumet que une todos os seres vivos numa única oração e, ao
mesmo tempo, o Fogo central que marca o centro do mundo e, ainda (o que significa o
mesmo), a brasa que transforma o tabaco em fumo ou a Terra em Céu. O homem está
duplamente “no centro”, primeiro no plano horizontal, como Inteligência e porta‐voz de todas
as criaturas terrestres (fragmentárias em relação a ele), e segundo no eixo vertical como
mediador: nele se encontram a Terra e o Céu, e nele são sintetizadas as possibilidades
essenciais no seu plano de existência.
Se a cabeça humana corresponde ao Céu e os pés representam a Terra, a região do umbigo ou
do útero representa o Homem. O Homem é o espírito encarnado;3 se fosse só matéria, ele
identificar‐se‐ia com os pés; se fosse só espírito, ele seria a cabeça, isto é, o Céu; ele seria o
Grande Espírito. Mas o objectivo da sua existência é estar no centro: é transcender a matéria
enquanto permanece nela, e compreender a luz, o Céu, a partir deste nível intermediário. É
Sabedoria Perene 3 39
Frithjof Schuon
verdade que as outras criaturas também participam na vida, mas o homem sintetiza‐as: ele
carrega toda a vida em si mesmo e, por essa razão, torna‐se o porta‐voz de toda ela, o eixo
vertical onde a vida se abre ao espírito e onde se converte em espírito. Em todas as criaturas
terrestres a inércia fria da matéria converte‐se em calor, mas somente no homem o calor é
convertido em luz.
Dissemos que as criaturas inferiores são fragmentárias; mas elas não têm apenas este aspecto
“acidental” que permite ao homem matá‐las e usá‐las para nutrição, elas têm também um
aspecto “essencial”, devido ao seu simbolismo concreto por um lado, e à sua “anterioridade”
por outro: criadas antes do homem, elas podem manifestar algo da Origem Divina, e é este
aspecto que apela por vezes à sua veneração; é em virtude deste aspecto transcendente que o
Grande Espírito prontamente se manifesta – no mundo dos índios – através de animais e
plantas, e mesmo através dos grandes fenómenos da Natureza, como o sol, a rocha, o céu ou a
terra4. A manifestação múltipla do Grande Espírito, do ponto de vista do simbolismo e da
acção celestial, equivale ao Grande Espírito; as coisas não são mistérios em si mesmas, mas
sim manifestações de mistérios, e o Grande Espírito, ou o Grande Mistério5, sintetiza‐as na Sua
Unidade transcendente.
* * *
Uma característica original da tradição índia é o facto do elemento profético, que noutros
lugares cristaliza em raros avatāras, ser aqui disperso, por assim dizer, por todos os membros
das tribos, sem por isso abolir as diferenças de grau e as manifestações cruciais. Num certo
sentido, por muito surpreendente que possa parecer, cada homem é o seu próprio profeta,
que recebeu a sua própria revelação, embora naturalmente dentro do marco da tradição em
geral, o qual regula estritamente as modalidades exteriores e interiores desta missão profética
colectiva.
Mas, repetimos, isto nunca poderia impedir a existência de revelações maiores, válidas para
uma colectividade tribal particular, ou para todas, como é o caso do Calumet e da Dança do
Sol. O aparente “individualismo” índio é explicado pelo papel espiritual do homem como tal,
da pessoa livre e qualitativa, das acções e do carácter; é também impulsionado pela relação
entre o indivíduo e a tribo, pela reciprocidade de dons, de deveres, de generosidade. Mas o
essencial neste contexto social é a fidelidade a si mesmo, à sua própria visão, ao seu próprio
pacto com uma teofania particular, ou em outros termos, com a sua própria “medicina” ou
com o seu próprio “totem.”6
Outra característica própria dos índios, que parece em contradição com a anterior, é o
“polissintesismo”, isto é, a sua consciência da profunda homogeneidade do mundo criado e o
sentido da solidariedade universal que daí resulta. Todas as criaturas, incluindo as plantas e
até os minerais – bem como coisas na natureza como as estrelas e o vento –, são irmãos; tudo
Sabedoria Perene 3 40
Uma metafísica da natureza virgem
é animado, e cada coisa depende de certo modo de todas as demais. O homem, enquanto
mediador num determinado aspecto, não se opõe, noutros aspectos, ao resto da criação. O
índio, como toda a raça amarela – pois ele é um mongolóide –, vive na Natureza e nunca se
separa dela; psicologicamente, ele é como um samurai tornado caçador ou nómada; a sua
tendência contemplativa, no que tem de mais íntimo e exaltado, está sem dúvida relacionada
com o método intuitivo e inarticulado que é o Zen, ou noutros aspectos, à Natureza
espiritualizada do Xintoísmo.
Nas sabedorias do Mundo Antigo, aquilo que talvez mais adequadamente – e também mais
profundamente – expressa a atitude espiritual do “pele‐vermelha eterno” é a Bhagavad Gītā.
O combate é um modus vivendi – desejado pela natureza – ao qual se sobrepõe uma silenciosa
e impassível contemplação em solidão virgem; no ensinamento de Krishna há um
compromisso combativo, mas desprendido, na corrente das formas e, ao mesmo tempo, uma
contemplação que permanece no centro com a incorruptibilidade da pedra. Não que esta seja
a forma como sempre foram, de facto, os índios – nenhuma civilização foi capaz de realizar
integralmente o seu “ideal” –, mas como a sua tradição desejaria que eles fossem, e como eles
foram, se nos referimos aos seus eleitos e aos seus melhores momentos, se assim se pode
dizer.
A tradição pele‐vermelha é muitas vezes censurada por ter uma concepção inadequada do
outro mundo. Mas esta aparente lacuna tem aqui as mesmas razões que no caso similar do
Xintoísmo: nestas perspectivas não se fazia sentir a necessidade de uma escatologia elaborada,
pois o mundo vindouro é garantido pela qualidade, por assim dizer, obrigatória e inevitável
desta vida; isto é o que explica, em ambas as tradições, a sua rigidez relativamente à doutrina,
às virtudes, ao código de honra e ao sentido de dever. Para mais, não devemos negligenciar
que do ponto de vista hindu e budista, a escatologia dos semitas é, da mesma forma,
relativamente incompleta, pois parece aceitar, por um lado a ideia de uma punição quase
absoluta por um acto que é necessariamente relativo e, por outro, a ideia de uma eternidade
que teve um início. Aqui, contudo, como no caso das escatologias índias e xintoístas, diremos
também que o Céu não somente tem razões para falar, como também pode ter razões para
manter o silêncio, de acordo com a necessidade da natureza do receptáculo humano.
O índio tradicional foi um dos homens mais livres que se pode imaginar e, ao mesmo tempo,
um dos mais presos: a vasta pradaria, as florestas e as montanhas pertenciam‐lhe; de um
ponto de vista prático o seu espaço vital não conhecia limites; mas em nenhum momento ele
podia separar‐se do seu universo religioso e do papel que este lhe impunha. Por um lado, ele
estava encerrado num espaço que era estritamente simbólico – como se o seu credo tivesse
cristalizado espacialmente à sua volta – e, por outro, ele identificava‐se com o curso
implacável dessa grande prova que é a vida; quer no espaço, quer no tempo, o índio nunca
deixou o símbolo visível, o qual ele representava e vivia; pode dizer‐se que ele o experienciava
e realizava simultaneamente. E é desta combinação de liberdade heróica e de coacção divina
Sabedoria Perene 3 41
Frithjof Schuon
que provém a sua fascinante originalidade, e é esta grandeza, em parte guerreira, em parte
sacerdotal, que – juntamente com outros factores como o culto do silêncio e a impassibilidade
– o relacionam com o samurai zen do antigo Japão.
NOTAS
1 ‐ Joseph Epes Brown, conhecido pelo seu estudo do cachimbo sagrado, escreveu‐nos uma vez em relação a um
xamã Corvo: “Ele explicou‐me com grande clareza a metafísica da Dança do Sol, disse‐me, entre outras coisas, que o
recinto (lodge) representa o Universo: a árvore da vida no centro é o seu eixo, cujos ramos se estendem para o alto,
para lá do Universo, até ao Infinito. No tronco estão pintados três anéis que representam os três mundos: o corpo,
a alma e o espírito, ou o “grosseiro”, o “subtil” e o “puro”. O eixo está em toda a parte e consequentemente passa
através de cada ser; o objectivo último da dança é o afastamento da periferia depois da purificação, do sacrifício e
de outros rituais – e a aproximação ao centro, de modo a identificar‐se com ele.”
2 ‐ Hartley Burr Alexander comenta (em The World’s Rim, Lincoln, University of Nebraska Press, 1953) que o homem
deve, ao acordar de manhã, olhar instintivamente para a luz da alvorada que dispersa a escuridão, ou seja, em
direcção a Este, e que esta direcção (para a qual numerosos rituais índios se iniciam e para a qual se abrem as
tendas e os recintos) estará, em concordância, à sua “frente”. Oeste será “atrás”, sul “`a direita”, e norte “à
esquerda”. Por outro lado, para um homem erecto (e esta é a sua posição natural que o distingue dos
quadrúpedes), o mundo sensível é dividido em três esferas, que também se encontram na estrutura do corpo
humano: o chão sob os seus pés, o céu sobre a sua cabeça – ou pés e cabeça – e o centro do corpo, o umbigo ou a
região do útero, símbolo da vida.
3 ‐ Recordamos aqui esta fórmula: Et benedictus fructus ventris tui…. O homem terrestre vive no útero do
macrocosmos e não na sua cabeça celestial.
4 ‐ O filho do homem santo Sioux Alce Negro (cf. Alce Negro Fala, Lisboa, editora Antígona, 2002 e The Sacred Pipe
de Joseph Epes Brown, Lincoln, University of Nebraska Press, 1953) sublinhou‐nos que os índios não veneram as
rochas, as árvores ou os animais; mas como o homem foi criado somente após todas as outras criaturas, ele pode e
deve aproximar‐se de Deus através delas. As seguintes palavras de outro Sioux (proferidas quando passávamos com
ele pelas cumeadas das Black Hills) mostram a mesma veneração pela natureza: “Este é o desfiladeiro do Búfalo. Era
através desta porta que as manadas de búfalos costumavam brotar. Tal como o Grande Espírito fez uma porta
através da qual o homem pode chegar até Ele, assim ele fez uma porta através da qual os búfalos chegavam até ao
homem.” O búfalo não é somente uma oferenda de Deus para o sustento do homem, é igualmente um símbolo da
Palavra Divina e um instrumento da Revelação. O Calumet foi trazido pela Mulher Búfalo Branco, um búfalo celestial
transformado numa mulher. “ A nossa tradição”, disse‐nos um velho Cheyenne, “é a mesma que a da Bíblia; Deus é
invisível, Ele é puro Espírito. O sol e a terra não são Deus, mas para nós eles são algo como pai e mãe.”
5 ‐ Existem línguas índias nas quais o Espírito Divino é designado duma forma totalmente diferente, onde por
exemplo se referem ao “Grande Poder Solar,” mas a doutrina fundamental mantém‐se a mesma.
6 ‐ Esta palavra, que se tornou convencional na linguagem dos brancos, deriva do ojibway ototeman, “família
irmão‐irmã dele.” O animal totémico não carece de analogia com o nosso “anjo da guarda”; ademais, não nos
esqueçamos que o Espírito Santo dos Evangelhos não rejeita aparecer na forma duma pomba, e que foi a aparição
de um cervo milagroso que converteu S. Hubert.
Sabedoria Perene 3 42
O simbolismo da água
por Titus Burckhardt
Traduzido por Alberto Queiroz e revisto por Diana Morais
Apesar de ter à sua disposição todas as descobertas da pesquisa científica, a economia
moderna tem desde há muito tempo vindo a ignorar quase completamente uma das mais
importantes bases da nossa vida e da sua própria existência, nomeadamente a pureza
vivificante da água. Este facto testemunha uma unilateralidade de desenvolvimento que,
independentemente da questão da água, é também prejudicial para muitas outras coisas, das
quais não é menos importante a psique ou alma. Quando o equilíbrio da natureza não é
perturbado, as próprias águas da terra restabelecem continuamente a sua pureza, ao passo
que, quando se perde esse equilíbrio, o resultado é a morte e a poluição. Não é, assim, mera
coincidência que a “vida” das águas seja um símbolo da “vida” da alma humana.
Quando se pondera sobre se existe algo que possa eventualmente alertar as pessoas de mente
não‐científica para a ameaça da poluição da água, percebe‐se rapidamente que o senso
natural de beleza, o qual nos permite distinguir espontaneamente uma árvore enferma de
uma saudável, deveria também, neste caso, servir de aviso. Que isso não tenha acontecido –
ou quase não tenha acontecido – deve‐se ao facto de que o homem moderno separa
completamente não somente o “belo” do “útil”, mas também o “belo” do “real”. Este modo de
pensar é como uma ruptura na consciência, e é difícil de dizer se é a causa ou o efeito de um
estado de coisas que, por um lado, leva sistematicamente o homem a destruir o equilíbrio
natural das coisas numa escala sempre crescente e, por outro lado, impele‐o periodicamente a
fugir do mundo artificial que ele assim cria. Nunca antes existiram os enormes aglomerados de
edifícios de pedra, betão e ferro, e nunca antes os habitantes das cidades, em números tão
grandes, deixaram periodicamente as suas casas a fim de redescobrir a natureza junto ao mar
ou nas montanhas – a mesma natureza que eles próprios tão inexoravelmente baniram. Não
seria correcto dizer que, agindo assim, as pessoas procuram apenas preservar a sua saúde.
Muitos, se não todos, estão ao mesmo tempo à procura de um relaxamento da alma que só é
propiciado por ambientes cujo estado, ainda intacto e harmonioso, garanta a preservação de
uma beleza tal que dê paz à alma e liberte a mente da pressão dos pensamentos calculistas.
Apesar disso, as mesmas pessoas que nas suas férias buscam consciente ou inconscientemente
esta beleza, rapidamente a rejeitam como “romantismo” sempre que ela oferece obstáculos
aos seus interesses utilitários. Neste ponto, a boa ou a má intenção do indivíduo dificilmente
desempenha um papel; todos estão sob a pressão das forças económicas, e é usualmente por
autodefesa inconsciente que alguém esconde de si mesmo as consequências destrutivas de
certos desenvolvimentos. A longo prazo, contudo, tal atitude é desastrosa.
A beleza representa sempre um equilíbrio de forças interior e inesgotável; e isso subjuga a
nossa alma, dado que não pode ser calculado nem mecanicamente produzido. O senso de
Sabedoria Perene 3 43
Titus Burckhardt
beleza pode portanto permitir a experiência directa de relações, antes que, com a nossa razão
discursiva, as possamos perceber de modo diferenciado; nisto, incidentalmente, há uma
protecção para o nosso próprio bem‐estar físico e psíquico, algo que não podemos
negligenciar impunemente.
Pode‐se objectar que os homens sempre distinguiram entre o útil e o belo; os bosques para
lazer sempre foram um luxo, enquanto as matas eram geralmente vistas de modo utilitário.
Poder‐se‐ia mesmo dizer que coube à educação moderna criar o desejo de proteger uma
determinada parte da natureza com base em motivos puramente estéticos.
No entanto, em tempos antigos, existiam também bosques sagrados, que nenhum machado
podia derrubar. Eles não serviam nem para o uso, no sentido comum dessa palavra, nem para
o luxo. A beleza e a realidade – duas qualidades que o mundo moderno espontaneamente
separa – estavam unidas (e, para os homens que têm uma visão pré‐moderna do sagrado,
ainda estão). Nos dias de hoje, ainda existem florestas sagradas no Japão e na Índia, assim
como existiam na Europa pré‐cristã; mencionamo‐las aqui somente como um exemplo de
natureza sagrada, pois há também montanhas sagradas, bem como – e isto toca‐nos mais de
perto – fontes, rios e lagos sagrados. Mesmo no âmbito da Cristandade, que em geral evita a
veneração dos vários fenómenos da natureza, havia e há fontes e lagos – por exemplo, o poço
em Chartres e a fonte em Lourdes – que, por estarem ligados a eventos milagrosos, passaram
a ser considerados sagrados. O importante aqui não é o facto de uma dada montanha ou fonte
ser considerada sagrada e, portanto, inviolável, mas sim o facto de cada fenómeno particular
ser invariavelmente um exemplo de toda uma série de coisas relacionadas entre si, um
exemplo de uma total ordenação da natureza, que tem uma importância vital para
comunidades humanas de maior ou menor dimensão, e expressar uma realidade superior ou
sobrenatural; assim, para os antigos alemães, a floresta era a base indispensável das suas vidas
e, ao mesmo tempo, algo como um templo, um lugar que abrigava a presença divina. Todas as
florestas tinham esta qualidade e, neste sentido, eram invioláveis. No entanto, uma vez que as
florestas também tinham de ser usadas, havia bosques sagrados especiais cuja função era
recordar a inviolabilidade principial e espiritualmente significativa da floresta enquanto tal. O
caso da vaca sagrada dos hindus é semelhante; na realidade, para os hindus, tudo o que vive é
sagrado, ou seja, inviolável e simbólico, pois segundo a sua doutrina, toda a consciência
participa no espírito divino. No entanto, como é impossível evitar que, sempre e em toda a
parte, se matem criaturas vivas, a lei da inviolabilidade foi na prática limitada a umas poucas
espécies simbólicas, entre as quais a vaca, que, enquanto encarnação da misericórdia maternal
do cosmos, assume uma posição especial. Ao renunciar ao abate das vacas, o hindu venera
toda a vida, em princípio, e ao mesmo tempo protege uma das mais importantes bases do seu
modo de vida, o qual, desde há milhares de anos, depende do cultivo e da criação de gado. Do
mesmo modo, as fontes sagradas, que existiam em grande número na cristandade medieval,
chamavam a atenção para a sacralidade da água como tal; elas eram uma lembrança de que a
água é um símbolo de graça, o que se pode facilmente ver no simbolismo do baptismo. O
Sabedoria Perene 3 44
O simbolismo da água
sagrado é aquilo que é objecto de veneração e temor; é o reflexo de algo eterno e, portanto,
indestrutível; a inviolabilidade de que ele goza provém daí directamente.
Dependendo da fé à qual as pessoas aderem, e dependendo da sua mentalidade hereditária,
há outras coisas naturais ou artificiais que podem ser consideradas sagradas. Os quatro
elementos – ar, fogo, água e terra –, os quais são os mais elementares modos de manifestação
de toda a matéria a se oferecerem aos nossos sentidos, estão praticamente em toda a parte –
com excepção do mundo moderno e racionalista –, dotados da qualidade de sacralidade; deste
ponto de vista, a terra é ilimitável, o ar é inapreensível, o fogo é impoluível na sua natureza; só
a água é susceptível de violação, e portanto confiada a uma protecção especial.
Recapitulando, para as culturas pré‐modernas, há realidades que transcendem o nível do mero
utilitarismo e que têm precedência sobre elas. Essas realidades são em si mesmas de natureza
puramente espiritual ou divina. No entanto, reflectem‐se em certos fenómenos sensíveis que
podem, consequentemente, tornar‐se objecto de veneração e temor, e tais fenómenos são,
assim, seja completamente ou em parte (como símbolos representativos), preservados da
interferência violenta dos homens. Naturalmente, tal atitude é muito diferente da
sensibilidade estética, que também nos pode fazer – deixando de lado toda a consideração de
utilidade – admirar e proteger um fenómeno natural. Mas o senso de beleza está de certo
modo contido na veneração do sagrado; pois o verdadeiramente belo é aquilo que jaz oculto
na riqueza inesgotável de possibilidades harmoniosamente unidas. O mesmo vale para o
sagrado, e certamente para todos os fenómenos e elementos que pertençam às bases mesmas
da vida, de modo que essa veneração pelo sagrado também contribui mais ou menos
directamente – nem sempre de maneira previsível – para a preservação da própria vida.
Aqui devem fazer‐se algumas observações relativas aos elementos. Naturalmente, estes nada
têm a ver com o que a química moderna chama de elementos; pelo contrário, tal como já
dissemos, eles representam os modos mais elementares de manifestação nos quais “a matéria
de que o mundo é feito” se comunica com os nossos cinco sentidos: os modos sólido, líquido,
aéreo e ígneo de manifestação. Há, é certo, outros líquidos além da água, mas nenhum deles
tem para nós o mesmo aspecto de pureza, e nenhum exerce papel tão importante na
preservação da vida. Do mesmo modo, há outras substâncias gasosas além do ar, mas
nenhuma delas pode ser respirada.
Cosmicamente, os quatro elementos são então os modos mais simples de manifestação da
matéria. De um ponto de vista interior, por outro lado, eles são também as imagens mais
simples da nossa alma, que é inapreensível como tal, mas cujas características fundamentais
podem ser comparadas aos quatro elementos. É isto que São Francisco de Assis tem em mente
quando louva Deus pelos quatro elementos, um após outro, no seu famoso Cântico do Sol.
Com relação à água, ele diz: “Louvado sejas, Senhor, pela irmã água, que é muito útil, humilde,
preciosa e casta (Laudato si, o Signore, per sor asqua, la quale à molto utiile ed umile e
Sabedoria Perene 3 45
Titus Burckhardt
preziosa e casta)”. Isto pode soar como pura alegoria poética, mas de facto significa muito
mais: a humildade e a castidade descrevem bem a qualidade da água que, num rio, assume
todas as formas, sem com isso perder a pureza. Reside aí também uma imagem da alma, que
possui a capacidade de aceitar todas as impressões e seguir todas as formas, mantendo‐se fiel
à sua própria essência não dividida. “A alma do homem assemelha‐se à água”, disse Goethe,
reiterando assim uma imagem que aparece nas Escrituras tanto do Oriente‐Médio quanto do
Extremo‐Oriente. A alma assemelha‐se à água, do mesmo modo que o espírito se assemelha
ao vento ou ao ar.
Levar‐nos‐ia muito longe mencionar todos os mitos e costumes em que a água aparece como
uma imagem ou reflexo da alma. A consciência de que a alma se reconhece a si mesma nos
aspectos da água – encontrando alegria no seu movimento, repouso na sua quietude e pureza
na sua claridade – talvez não seja em nenhum outro meio tão difundida quanto entre os
japoneses. A vida japonesa como um todo, na medida em que ainda está formada pela
tradição, é penetrada por um senso de pureza e de dócil simplicidade que tem a sua
prefiguração na água. Os japoneses fazem peregrinações às cascatas famosas do seu país, e
podem contemplar durante horas a superfície serena de um lago num templo. É significativa a
história do sábio chinês Hsuyu – um tema recorrente nos pintores japoneses –, que recebeu
uma mensagem de que o Imperador desejava doar‐lhe o reino; Hsuyu fugiu para as montanhas
e lavou os seus ouvidos numa cascata. O pintor Haronobu representou‐o alegoricamente sob a
forma de uma jovem e nobre donzela que, na solidão das montanhas, lava o seu ouvido numa
queda de água.
Para os hindus, a água da vida é corporificada pelo Ganges, o qual, desde a sua fonte nos
Himalaias, as montanhas de Deus, irriga as maiores e mais populosas planícies da Índia. A sua
água é considerada pura, do começo ao fim, e ela é de facto preservada de qualquer poluição
através da areia fina que arrasta consigo. Qualquer pessoa que, com sentido de
arrependimento, se banhe no Ganges, é absolvida de todos os seus pecados; a purificação
interior encontra, neste caso, o seu suporte simbólico na purificação exterior que vem da água
do rio sagrado. É como se a água purificadora viesse do Céu, pois a sua origem no gelo eterno
do tecto do mundo é como um símbolo da origem celeste da graça divina que, como “água
viva”, brota da Paz intemporal e imutável. Aqui, como nos ritos similares de outras religiões e
povos, a correspondência da água com a alma ajuda esta última a purificar‐se ou, mais
exactamente, a reencontrar a sua própria – originalmente pura – essência. Neste processo, o
símbolo prepara o caminho para a graça.
A água simboliza a alma. De outro ponto de vista – mas analogamente – a água simboliza a
materia prima de todo o universo, pois, assim como a água contém em si mesma, como puras
possibilidades, todas as formas que, fluindo e espargindo‐se, pode assumir, do mesmo modo a
materia prima contém todas as formas do mundo num estado de indistinção.
Sabedoria Perene 3 46
O simbolismo da água
Na história bíblica da criação diz‐se que, no princípio, antes da criação da Terra, o Espírito de
Deus movia‐se sobre a face das águas; e os livros sagrados dos hindus contam‐nos que todos
os habitantes da Terra emergiram do mar primordial. Nestes mitos, a água não é considerada
no sentido comum da palavra, e contudo a figura que eles criam na nossa imaginação é, à sua
própria maneira, correcta, e tão apta quanto pode possivelmente sê‐lo, pois nada comunica
melhor a unidade indiferenciada e passiva da materia prima.
O mito da criação de todas as coisas a partir do mar primordial encontra eco nas palavras
corânicas: “Criámos todos os seres vivos a partir da água”. A alegoria bíblica do Espírito de
Deus movendo‐se sobre as águas tem a sua contrapartida no símbolo hindu do cisne divino
Hamsa que, nadando no mar primordial, choca o ovo dourado do mundo; e cada uma dessas
representações alegóricas é finalmente ecoada no Alcorão, onde se diz que no princípio o
Trono de Deus estava sobre a água.
A flor‐de‐lótus aberta, o assento das divindades indianas, é também um “trono de Deus”
flutuando sobre a água da materia prima, ou sobre a água das possibilidades principiais. Este
símbolo, que foi transmitido da mitologia e da arte hindu para a budista, reconduz‐nos da água
enquanto imagem da substância primordial do mundo para a água enquanto imagem da alma.
O regato de lótus do Buda ou Bodisatva surge das águas da alma, do mesmo modo que o
espírito, iluminado pelo conhecimento, se liberta da existência passiva. Neste caso, a água
representa algo a vencer, mas algo em que, não obstante, existe o bem, pois nela está
enraizada a flor cujo cálice contém a “jóia preciosa” de Bodhi, o Espírito Divino. O Buda, a “Jóia
de Lótus”, é ele próprio este Espírito.
O exposto sumariza alguns dos significados que a água pode ter enquanto símbolo, mas muitos
outros exemplos deste tipo poderiam ser mencionados. Não se trata meramente de uma
questão de demonstrar que em todas as culturas que podem ser chamadas de pré‐
racionalistas – e não se usa este termo pejorativamente – a água tem mais que um significado
puramente físico ou biológico; as realidades espirituais de que ela é o símbolo nunca lhe estão
associadas arbitrariamente, mas estão directa e logicamente relacionadas com a sua essência.
A visão contemplativa da natureza que, através das aparências essenciais e constantes,
percebe os protótipos ou causas intemporais dessas aparências, não é algo meramente
sentimental, nem está presa ao tempo e ao lugar, e isto apesar do facto de, no mundo
moderno, parecer que este tipo de contemplação foi banido. Dizemos “parecer” porque uma
tal contemplação das coisas está muito profundamente enraizada no coração do homem para
poder desaparecer completamente. Ela continua, mesmo inconscientemente, e não seria difícil
mostrar como a atracção misteriosa da água enquanto algo sagrado, enquanto uma expressão
simbólica e manifestada de uma realidade psíquica ou cósmica, sobrevive na arte,
especialmente na pintura e na poesia. Quem nunca sentiu, diante de um lago puro nas
montanhas ou de uma fonte que brota da rocha, no mínimo, um pouco do temor e da
veneração que são inseparáveis das coisas sagradas? Os povos de antigamente sabiam, melhor
Sabedoria Perene 3 47
Titus Burckhardt
Concluindo, e para mostrar que, mesmo na Europa moderna, ainda existem águas sagradas, há
que mencionar o lago Derg, em Donegal, o condado mais ao norte da Irlanda. Neste lago há
uma ilha na qual existem um certo número de santuários cristãos que datam da Idade Média,
bem como uma caverna que representa a entrada para o mundo subterrâneo. Ela á chamada
de “Purgatório de São Patrício”, pois diz‐se que foi nela que São Patrício, o Apóstolo da Irlanda,
fez o inferno e o Monte do purgatório aparecerem aos pagãos numa visão.
Desde o início da Idade Média a ilha tem sido um lugar de peregrinação, à qual estão
associadas regras bastante restritas. Os peregrinos, que são levados para a ilha de barco,
devem andar descalços, em jejum, e devem realizar certos exercícios espirituais durante uma
estadia de três dias. Os exercícios consistem principalmente em se ajoelharem sobre pedras e
rezarem diante de um certo número de cruzes que foram levantadas em honra dos principais
santos irlandeses. Sempre que um peregrino completa a sua devoção diante destas “estações”
dispostas como contas de um rosário, dirige‐se a um grande penhasco que se levanta das
águas a uma pequena distância da margem da ilha e, depois de algumas preces, recita em voz
alta o credo, olhando sobre as águas do lago. As pessoas que fizeram esta peregrinação
declaram que os momentos de solidão, de contemplação do lago sereno rodeado por
montanhas desertas, libertam nos seus corações algo que é indescritível.
Sabedoria Perene 3 48
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de
Assis e Swâmi Râmdâs
por Alberto Vasconcellos Queiroz
Para onde quer que vos volteis,
lá está a Face de Deus
(Alcorão, Sura da Vaca, 115)
Um dos traços mais marcantes e mais conhecidos da figura de São Francisco de Assis é sem
dúvida sua relação com a natureza. Enquanto o tom geral da espiritualidade cristã é uma
renúncia ao mundo em que é reduzido o espaço para a natureza como símbolo e reflexo de
realidades superiores – “Meu Reino não é deste mundo”, disse Cristo –, São Francisco
demonstrou, paralelamente a uma renúncia total do mundo e um abandono também total à
Vontade de Deus, um profundo amor por todas as criaturas – homens e animais – e mesmo
por objetos e fenômenos inanimados. Este amor lhe permitia falar com tais criaturas e
fenômenos, ser por elas ouvido e mesmo obedecido.
São muitos e conhecidos os episódios da vida do santo que ilustram essa surpreendente
relação. O quanto, neles, a lenda vem ampliar os fatos, não se pode dizer. No entanto, mesmo
que num ou noutro os piedosos exageros tenham distorcido significativamente a realidade, no
conjunto eles apontam acima de qualquer dúvida para uma relação forte e sobrenatural com a
natureza. E, para quem conhece a religião dos índios americanos – particularmente a bem‐
documentada religião dos índios das pradarias da América do Norte – não é difícil
compreender que o que, no tocante à relação com a natureza, para o homem de mentalidade
moderna entra na categoria de inverossímil e fantasioso é, na realidade, a par de maravilhoso,
perfeitamente “normal”. Como disse Platão, “o maravilhar‐se é o começo da filosofia”.
Entre os mais conhecidos episódios da amizade entre São Francisco e os animais está o do lobo
de Gubbio, um animal de porte avantajado que punha em sobressalto a população dessa
cidade, roubando‐lhe a criação doméstica e até mesmo fazendo vítimas humanas. São
Francisco, ao saber do caso, estando naquela região e encontrando o animal, fala‐lhe como a
um amigo, admoestando‐o e pedindo que reforme seu comportamento. O lobo, a partir de
então, passa a se portar como humilde cão, não causa mais nenhum dano aos moradores
locais e, em contrapartida, é por estes alimentado.
Pela pureza e simplicidade com que o episódio é relatado nas Fioretti, vale a pena reproduzir
uma passagem, ainda que longa:
Sabedoria Perene 3 49
Alberto Vasconcellos Queiroz
O dito lobo foi ao encontro de S. Francisco com a boca aberta: e chegando‐se a ele S.
Francisco fez o sinal da cruz e o chamou a si, e disse‐lhe assim: “Vem cá, irmão lobo,
ordeno‐te da parte de Cristo que não faças mal nem a mim nem a ninguém.” Coisa
admirável! Imediatamente após S. Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e
cessou de correr; e, dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés
de S. Francisco como morto. Então S. Francisco lhe falou assim: “Irmão lobo, tu fazes
muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus
sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de
matar homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno de forca, como ladrão e
homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga.
Mas eu quero, irmão lobo, fazer a paz entre ti e eles; de modo que tu não mais os
ofenderás e eles te perdoarão todas as passadas ofensas, e nem homens nem cães te
perseguirão mais.” Ditas estas palavras, o lobo, com o movimento do corpo e da cauda e
das orelhas e com inclinação de cabeça, mostrava de aceitar o que S. Francisco dizia e de o
querer observar. (...) E estendendo S. Francisco a mão para receber o juramento, o lobo
levantou o pé direito da frente, e domesticamente o pôs sobre a mão de S. Francisco,
dando‐lhe o sinal como podia. Então S. Francisco disse: “Irmão lobo, eu te ordeno em
nome de Jesus Cristo que venhas agora comigo sem duvidar de nada, e vamos concluir
esta paz em nome de Deus.” E o lobo, obediente, foi com ele, a modo de um cordeiro
manso; pelo que os citadinos, vendo isto, muito se maravilharam.
Como disse um autor, este episódio poderia ser apenas uma imagem criada para melhor
comunicar como a fera que há em todo homem deve se submeter a Cristo. Mas não podemos
esquecer que, nas vidas dos grandes santos, dos profetas, dos avatâras, é freqüentemente o
contrário que acontece: elementos arquetípicos, como este sobre o duo sunt in homine de São
Paulo, se manifestam sob a forma de episódios históricos.
Também muito célebres são os casos de pregação aos pássaros. Lemos nas Fioretti esta
famosa passagem, em que Francisco prega a uma multidão de aves e passarinhos nas árvores e
no chão, fazendo, aliás, bela referência a um trecho do Sermão da Montanha:
A substância da prédica de S. Francisco foi esta: ‘Minhas irmãs aves, deveis estar muito
agradecidas a Deus, vosso Criador, e sempre em toda parte o deveis louvar, porque vos
deu liberdade de voar a todos os lugares, vos deu uma veste duplicada e triplicada;
também porque reservou vossa semente na Arca de Noé, a fim de que vossa espécie não
faltasse ao mundo; ainda mais lhe deveis estar gratas pelo elemento do ar que vos
concedeu. Além disto, não plantais e não ceifais; e Deus vos alimenta e vos dá os rios e as
fontes para beberdes, e vos dá os montes e os vales para vosso refúgio, e as altas árvores
para fazerdes vossos ninhos e, porque não sabeis fiar nem coser, Deus vos veste a vós e
aos vossos filhinhos; muito vos ama o vosso Criador, pois vos faz tantos benefícios,
portanto guardai‐vos, irmãs minhas, do pecado da ingratidão e empregai sempre os meios
Sabedoria Perene 3 50
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs
de louvar a Deus.’ Dizendo‐lhes S. Francisco estas palavras, todos e todos estes
passarinhos começaram a abrir os bicos, a estender os pescoços, e a abrir as asas, e a
reverentemente inclinar as cabeças para o chão, e por seus atos e cantos a demonstrar
que as palavras do padre santo lhes deram grandíssima alegria (...) Finalmente, terminada
a pregação, S. Francisco fez sobre elas o sinal da cruz e deu‐lhes licença de partir; e então
todas aquelas aves em bando se levantaram no ar com maravilhosos cantos; e depois,
seguindo a cruz que S. Francisco fizera, dividiram‐se em quatro grupos: um voou para o
oriente e outro para o ocidente, o terceiro para o meio‐dia, o quarto para o aquilão, e cada
bando cantava maravilhosamente...1
Em outra passagem, a pregação do santo na cidade de Alviano é atrapalhada pelo chilreio das
andorinhas, até que ele volta‐se a elas e diz: “Meus irmãos e irmãs andorinhas, chegou agora
minha vez de falar. Vós estivestes a falar bastante todo o tempo.” E as andorinhas logo se
calam, e mantêm‐se silenciosas durante todo o sermão, só voltando aos seus chilreios para
acompanhar o canto de júbilo e louvor entoado pelo povo ao término da pregação.
E há diversas outras histórias, como a dos carneiros, ou do faisão, ou do peixe, que não o
queriam abandonar, da cigarra que ficava em sua mão, das pombas a que ajudou a fazer
ninhos, e mesmo da árvore que Francisco impediu que fosse cortada inteiramente, ao pedir ao
lenhador que lhe deixasse a possibilidade de crescer de novo.
Mas no grande espelho da natureza, não era só nos animais que São Francisco via reflexos de
realidades celestes. É célebre o fato de que, antes mesmo de iniciar sua missão, tendo caído
gravemente doente e ficado longo período acamado, foi o Sol que, por assim dizer, trouxe o
santo de volta à vida. Deitado em seu quarto, Francisco, recuperando‐se da doença, percebia
que sentia‐se bem a partir do momento em que os raios solares entravam no cômodo e até o
momento em que ali ficavam. Percebia que o Sol era como um amigo que vinha visitá‐lo.
Passou, então, a querer sair de casa para encontrar o Sol, e, tão logo possível, ainda
convalescendo, pôs‐se a fazer longas caminhadas pelos arredores de Assis, atraído pelo calor e
pela luminosidade solar. O astro solar era para ele uma manifestação direta do divino.
Além do Sol, e entre outros elementos e fenômenos, Francisco louvou o fogo. Essas duas
fontes de luz e calor – símbolos do conhecimento e do amor – são mencionados juntos nesta
passagem do Speculum Perfectionis:
Pela manhã – costumava dizer, quando o Sol despontava – todos os homens deveriam
louvar a Deus, que criou este astro para bem e proveito deles: já que, graças ao Sol, todas
as coisas podem ser vistas. E quando o Sol se põe e vem a noite, todos os homens
deveriam louvar a Deus por ter criado o irmão fogo, que ilumina nossos olhos com sua luz.
Sabedoria Perene 3 51
Alberto Vasconcellos Queiroz
A relação de Francisco com a natureza ficou consagrada no maravilhoso Cântico das Criaturas
ou Cântico do Sol, em que ele louva o “irmão Sol”, a “irmã Lua”, a “irmã água”, o “irmão fogo”,
e as estrelas, vendo neles sinais espirituais e exemplos para os homens. Relembremos aqui
este maravilhoso canto – talvez a primeira peça literária em italiano – com exclusão das
últimas estrofes:
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
A Ti os louvores, a glória, a honra e todas as bendições.
A Ti só, Altíssimo, são devidos,
E nenhum homem é digno de te mencionar.
Louvado sejas Tu, Senhor, com todas as tuas criaturas,
Especialmente nosso irmão Sol,
Que nos dá o dia, e pelo qual Tu nos iluminas.
E ele é belo e radiante com grande esplendor.
De Ti, Altíssimo, nos dá uma representação.
Louvado sejas Tu, Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas,
Que criastes no céu, claras e preciosas e belas.
Louvado sejas Tu, Senhor, pelo irmão vento
E pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todos os tempos,
Por meio dos quais dás sustento a tuas criaturas.
Louvado sejas Tu, Senhor, pela irmã água,
Que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas Tu, Senhor, pelo irmão fogo,
Pelo qual iluminas a noite,
E que é belo e alegre e robusto e forte.
Louvado sejas Tu, Senhor, por nossa mãe terra,
Que nos sustenta e nos mantém
E produz diversos frutos com coloridas flores e folhas.
Louvai e bendizei ao Senhor e dai‐lhe graças,
E o servi com grande humildade.
* * *
Sabedoria Perene 3 52
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs
É sabido que o papa Inocêncio II, na noite do dia de seu primeiro encontro com Francisco, um
“desconhecido mendigo” que vinha audaciosamente pedir a autorização para criar uma regra
monástica, teve um sonho no qual via a igreja de São João Latrão, centro e símbolo da
cristandade, ruir, quando surge um homenzinho mal‐vestido que, incrivelmente, a sustenta e
repõe no lugar. No sonho, o homenzinho olha então para o papa, e este vê que era ninguém
menos que o mendigo que encontrara. No dia seguinte, o papa concede a Francisco o direito
de ter sua regra e de pregar a religião.
O sonho místico do papa está totalmente de acordo com o que o próprio Cristo tinha dito a
Francisco, anos antes, na pequena igreja de São Damião: “Reconstrói a minha Igreja.”
Francisco, como sabemos, interpretou a mensagem ao pé da letra e pôs‐se reparar a pequena
igrejinha. Foi só depois que se deu conta de sua missão era muito, muitíssimo maior!
Francisco foi o primeiro a portar os estigmas de Cristo. Também foi chamado de alter Christus,
“outro Cristo”. Frithjof Schuon disse que, se Francisco não tivesse surgido, Cristo teria tido de
voltar.
Certamente não poderia ser algo fortuito o fato de aquele a quem o Céu reservou esta missão
gigantesca ter uma espiritualidade em que a natureza, como na religião primordial, é vista e
vivida como símbolo.
* * *
São Francisco foi, para usar o termo hindu, um grande bhâkta, um seguidor da Via do Amor e
da Devoção. Este é o caminho central no Cristianismo, embora, necessariamente, tenha havido
neste também representantes da Via do Conhecimento, o jñâna, com Dante Alighieri e Mestre
Eckhart.
Outro seguidor da bhâkti, de estatura e missão muito menores que as de Francisco, foi o santo
hindu Swâmi Râmdâs, que viveu no século XX.
Râmdâs levou uma vida comum e ocidentalizada até por volta dos quarenta anos de idade.
Subitamente, sentindo um chamado do Céu, abandonou família, casa e emprego e passou a
viver como peregrino e monge mendicante, entregando‐se totalmente à devoção a Râma –
uma das encarnações de Vishnu – por meio do japa‐yoga, a invocação freqüente ou mesmo
incessante de um Nome divino ou de uma fórmula sagrada.
Há dois aspectos da vida e da mensagem de Râmdâs que o assemelham a São Francisco de
Assis. O primeiro, geral e compartilhado por místicos em todas as religiões, é a total renúncia
ao mundo, o abandono integral à Vontade de Deus, a confiança absoluta na Misericórdia
Sabedoria Perene 3 53
Alberto Vasconcellos Queiroz
divina. Sua vida após iniciar seu caminho espiritual está narrada em dois livros principais – In
Quest of God e In the Vision of God – que o santo escreveu em inglês. Ao lermos estes livros,
somos tocados profundamente pelo exemplo de desapego radical e confiança total em Deus –
confiança que Deus nunca falha em atender – como o somos ao ler tantas passagens da vida
de São Francisco.2
Essa entrega radical a Deus é uma coisa, para nós, “maravilhosamente absurda”, e tão
absurda, de fato, que nos atrai, que nos faz pressentir que há ali algo de grandiosamente
verdadeiro e de intensamente feliz, uma proximidade do Céu e da real vocação humana.
Râmdâs – seu nome significa “servo de Râm” ou "Râma" – também abandona‐se por inteiro a
Deus: não só não procura o que comer, como nem mesmo se preocupa em decidir aonde ir;
apenas invoca o Nome de Deus e põe todos os seus cuidados em Suas Mãos. E sucedem‐se as
situações mais inspiradoras, algumas delas mescladas com fino humor, pois que o senso do
humor não faltava ao devoto de Râma.
O segundo aspecto que aproxima São Francisco e Swâmi Râmdâs, este, sim, mais particular – e
à parte a enorme diferença no alcance e na natureza de suas respectivas missões nesta terra,
pois Râmdâs é apenas um santo hindu e um propagador da bhâkti por meio do japa‐yoga,
enquando Francisco é simplesmente o restaurador do Catolicismo – é o amor espiritual à
Natureza.
O santo hindu – que chegou a ter uma visão mística de Cristo – é, em determinado momento
de sua vida, visitado por dois sacerdotes católicos que lhe dizem, precisamente, que o gênero
de vida que levava fazia lembrar o de São Francisco de Assis. De fato, Râmdâs, em
peregrinação pelos locais sagrados de todas as regiões da Índia, banha‐se nos rios mais
gelados, escala os montes mais escarpados, anda mal‐equilibrado à beira dos maiores
precipícios, vive na selva sem ser importunado por animais selvagens, recebe mesmo a visita
de alguns deles, extasia‐se – literalmente – com a visão das mais belas paisagens, e vê em tudo
e em todos o seu amado e bondoso Râma.
Assim como é impossível ao leitor não se sensibilizar pelo abandono total de Râmdâs a Deus,
também não há como não sentir a beleza da relação mágica com a natureza que brota com a
santidade obtida pela invocação do Nome de Râma.
Vejamos uma passagem de uma viagem de Râmdâs aos Himalaias:
Conforme ascenderam, as cenas e paisagens que viam eram simplesmente encantadoras.
À direita, o Ganges sagrado corria montanha abaixo em toda sua glória, e, à esquerda,
altas montanhas rochosas, cheias de arbustos e árvores, apresentavam ao mesmo tempo
Sabedoria Perene 3 54
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs
uma visão emocionante e absorvente. O próprio ar estava ali carregado com a presença
divina de Râm. As montanhas e vales distantes, o céu de tonalidades várias no qual as
brancas e fugazes nuvens assumiam formas fantásticas, os cumes cobertos de neve,
centenas de milhas ao longe e acima, brilhando sob os raios do sol como se fossem
cobertos com folhas de prata: tudo isso constituía, de fato, uma visão imponente! Ó, o
encanto dessas cenas! Ó Râm!, o pobre Râmdâs não pode encontrar palavras adequadas
para descrever a grandeza, a beleza, a glória maravilhosa das paisagens que se ofereciam
ao seu desconcertado olhar.
Subiam cada vez mais alto. Novamente, paisagens e cenas gloriosas e encantadoras
enchiam seus olhos. (...) Por dias e dias caminharam em frente e por fim chegaram a um
local chamado Badrinath ou Badrinarayan. Quando estavam ainda a cerca de meia milha
do lugar, sentaram‐se à beira do caminho e olharam para as montanhas de Badrinath. A
visão era fascinante. (...) Para descrever a cena a pobre pena de Râmdâs é totalmente
inadequada e imprópria. Conforme contemplava a paisagem, ele por um tempo perdeu a
consciência de seu corpo e tornou‐se um com as altas montanhas no meio das quais
estava sentado.
Neste outro interessante relato, em Ajmere, quando Râmdâs é levado por alguns amigos a um
ashram no meio da selva, são porcos selvagens e uma serpente o ponto central:
A selva estava infestada com porcos selvagens, serpentes, escorpiões e outras criaturas
venenosas. Toda noite, uma vara de vinte ou trinta porcos selvagens rodeava o mandir,
cuja porta estava sempre aberta. Os animais vinham para, com suas presas, desenterrar
raízes da terra úmida que rodeava o mandir, pois essas raízes eram seu alimento. Râmdâs
andava à vontade durante as noites quando os porcos estavam ali. Mas, pela graça de
Râm, eles nunca o atacaram. Os aldeões que vinham até o local durante o dia o alertavam
para a natureza feroz desses animais. Mas a confiança completa em Râm significa proteção
total e nenhum temor. Além disso, dia e noite o mandir era visitado livremente por
grandes serpentes negras, nenhuma das quais, contudo, o molestou. Mais ainda, toda
manhã, quando erguia o pedaço de pano estendido no chão pelos gentis sannyasis como
asan ou assento – e que Râmdâs usava como cama durante a noite –, descobria debaixo
dele vários escorpiões, mas nenhum deles jamais o picou.
Ó Râm! Quando Teu braço amoroso está sempre pronto para proteger Teu humilde
escravo, quem o poderia ferir? Tu estás – ó Râm – em toda parte – em todas as criaturas –
todo o universo e todas as coisas que há nele são Tua própria manifestação. Ó Râm – toda
a glória a Ti!
Sabedoria Perene 3 55
Alberto Vasconcellos Queiroz
Um dia, Râmdâs vê uma serpente enrolada em sua perna:
No curso desses últimos dias que passava na gruta, esse estado de êxtase invadia Râmdâs
durante as horas em que se encontrava só. A repetição do mantra se detinha em seus
lábios e ele superava a consciência de seu corpo. (...) Uma manhã em que estava em pé na
entrada da gruta e observava a subida do disco solar, sentiu o êxtase invadi‐lo
completamente. Após algum tempo, quando voltou a si, viu uma serpente enrolada em
sua perna direita, que lambia seu dedão do pé. Râmdâs não se perturbou com isso; imóvel,
observou por um instante a manifestação de amizade do animal. Depois de alguns
minutos, a serpente se desenrolou e saiu da gruta. Râmdâs lembra‐se de a ter interpelado
nestes termos: "Ó Râm amado, por que tens tanta pressa em partir?" O jogo do Senhor é
verdadeiramente maravilhoso. Essa serpente dedicou tanta afeição a Râmdâs que, durante
três dias, veio visitá‐lo pela manhã. Após isso, ela não mais voltou.
Neste outro inspirador relato, Deus se identifica nos elementos da natureza:
Chegando a monção, houve grandes chuvas à noite. A tempestade teve, certa noite, uma
violência particular; os trovões rugiam e os relâmpagos eram ofuscantes; a chuva caía em
jorros e chocava‐se contra as paredes da casa, que tremia, a cada raio, em suas próprias
fundações. Um vento furioso chacoalhava as janelas sem persianas e lançava torrentes de
água até no fundo no quarto onde Râmdâs estava sentado, imóvel e observando com
extrema alegria esssa terrificante batalha. Os terrores do temporal não o impressionavam;
essa situação de terror e de perigo enrijecia cada fibra de seu ser. A Verdade, seu Deus
interior, lhe falou:
"Eu estou na tempestade, no vento e na chuva. Eu estou no trovão e no relâmpago. Eu sou
o Criador ativo, o Conservador pleno de piedade e o Destruidor impiedoso. Eu sou tudo em
tudo. Eu sou tudo."
(...) Râmdâs, até o amanhecer, contemplou a gloriosa batalha dos elementos.
* * *
Como ficou dito acima, estes dois amigos de Deus tinham em comum, além do especial amor
pela natureza, o fato de, neles, a pobreza ser realmente total. A regra franciscana, em sua
origem, dizia que os monges não deveriam ter absolutamente nada de seu, exceto uma tosca
roupa para cobrir o corpo. São Francisco chamava a pobreza de "Dona Pobreza", e dizia que
tinha se casado com ela, que era ela sua esposa. Da mesma forma, Râmdâs não tinha nada,
exceto um pedaço de pano enrolado ao corpo. A entrega a Deus, nos dois casos, era total.
Sabedoria Perene 3 56
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs
Por certo, inúmeros outros santos houve, nas diversas religiões, que renunciaram totalmente
ao mundo e abraçaram a pobreza. Essa está longe de ser uma característica particular de São
Francisco e de Râmdâs. Mas ela nos parece ser uma condição importante de sua “ecologia
espiritual”: longe de todo naturismo, de todo sentimentalismo, de toda ecologia mundana e
“horizontal” que valoriza a natureza pela natureza e “deixa Deus de fora”, foi, ao contrário, em
se entregando primeiramente, e incondicionalmente, ao Céu e, com isso, atingindo o “vazio”
espiritual, que ambos puderam, sendo “preenchidos” pelo Divino, perceber o que Frithjof
Schuon chamou de “transparência metafísica dos fenômenos” – ou, como diz o versículo do
Alcorão citado em nossa epígrafe, perceber a “Face de Deus” em todas as coisas.
NOTAS
1 – Bela imagem do santo ao centro e as aves espalhando‐se, como bênçãos, para os quatro pontos cardeais.
Lembra o rito do Cachimbo Sagrado, entre os índios das pradarias da América do Norte, no qual o cachimbo é
oferecido aos “quatro cantos do universo”.
2 – Para dar apenas um exemplo, encontra‐se na vida do santo cristão um episódio em que, debaixo de forte chuva,
com fome, com frio, com as vestes encharcadas e sujas de lama, sem ter o que comer e onde se abrigar,
hostilizados pelas pessoas, considerados loucos e mendigos, ele e seus primeiros discípulos, no telheiro de Rivo
Torto, põem‐se simplesmente a dançar e a cantar de alegria, e a louvar o Senhor!
Sabedoria Perene 3 57
Alberto Vasconcellos Queiroz
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CRISE AMBIENTAL:
PROFANAÇÃO DA NATUREZA
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental1
por Seyyed Hossein Nasr
Traduzido por Sandro Faria e Nuno Almeida
Não existe nada mais premente para discutir do que a questão da crise ambiental e das
verdades e falsidades associadas a todo este assunto. A palavra “crise” não é utilizada neste
contexto por acidente, pois trata‐se seguramente de uma verdadeira crise, a qual segue o
encalço daquela crise espiritual e intelectual que é indissociável da perspectiva predominante
do mundo moderno. Aquela crise anterior que René Guénon discutiu há praticamente um
século atrás em várias obras, incluindo em Crise do Mundo Moderno2, a qual era conhecida por
uns poucos e ignorada pela maioria. A crise ambiental é todavia demasiado manifesta para ser
ignorada, mesmo pela multidão. É uma crise de extrema gravidade e urgência e qualquer um
que a menospreze está simplesmente a enganar‐se a si mesmo ou a sonhar acordado. Porém,
está na nossa natureza tentarmos nos esquivar do confronto com o que exige de nós as mais
profundas transformações interiores.
Poderá ser da nossa natureza tentarmos nos esquivar de um perigo eminente a menos que
estejamos verdadeiramente perante ele, mas a razão pela qual não o pretendemos encarar é
precisamente por ser um perigo. O cenário sério, retratado por académicos e cientistas
honestos que estão interessados no futuro da humanidade, pode, frequentemente, ser
anulado por uma empresa de filmagens que envie uma câmara para a floresta para fotografar
uns poucos pássaros a voar por ali, com a pretensão de mostrar quão “normal” é a situação
ambiental da terra, mesmo em zonas urbanas. Mas a verdade é o oposto. Estamos perto de
uma enorme crise, a qual tem que ser considerada de forma completamente séria. Mormente,
é também necessário compreender que a crise ambiental não pode ser resolvida através de
boa engenharia (ou melhor engenharia); não pode ser resolvida através de planeamento
económico; nem mesmo pode ser resolvida através de modificações de cosmética na nossa
concepção do desenvolvimento e da mudança. A crise ambiental requer uma transformação
muito radical na nossa consciência, e isto não significa descobrir um estado de consciência
completamente novo, mas sim regressar ao estado de consciência que a humanidade
tradicional sempre teve. Significa redescobrir a forma tradicional de olhar para o mundo da
natureza como presença sagrada.
Para o título desta palestra, escolhi ambas as palavras espiritual e religiosa. Isto foi feito de
propósito, porque, em muitos sectores, o presente uso da palavra religião deixa
frequentemente de fora precisamente o elemento espiritual. Aqueles que procuram a
dimensão interior da experiência religiosa e da verdade religiosa, procuram também outra
palavra para complementar a palavra religião. É trágico que assim seja, mas é contudo um
facto. A palavra espiritualidade no seu sentido corrente, e não no do termo que provém do
latim, é um termo moderno. Tanto quanto apurei com a minha própria investigação, o termo
Sabedoria Perene 3 61
Seyyed Hossein Nasr
espiritualidade, tal como é hoje usado, começou por ser empregue por teólogos católicos
franceses em meados do século XIX, penetrando depois no inglês. Não encontramos o uso
deste termo como o entendemos hoje antes do século XIX. Hoje, para muitas pessoas, este
termo denota precisamente aqueles elementos da religião que foram sendo esquecidos no
Ocidente e que, por conseguinte, passaram a ser erradamente identificados como
espiritualidade distinta da religião.
Do meu ponto de vista, que é evidentemente sempre um ponto de vista tradicional, não há
espiritualidade sem religião. Não há nenhuma maneira de alcançar o espírito sem escolher um
caminho que Deus tenha escolhido para nós, e isso significa religião (religio). Assim sendo, a
razão pela qual estou a utilizar ambas as palavras não é por motivos de expediente, mas para
salientar que pretendo incluir uma realidade que abrange tanto a espiritualidade como a
religião, no entendimento corrente desses termos, embora tradicionalmente o termo religião
fosse suficiente, uma vez que no seu sentido completo inclui tudo o que hoje é entendido
como espiritualidade.
É importante relembrar que todos nós, no planeta, participamos na destruição do nosso
ambiente natural, embora as razões para essa destruição variem nas diferentes partes do
globo. No mundo moderno, o ambiente é destruído por se seguir a filosofia dominante,
enquanto que no que permanece do mundo tradicional isto também acontece, à margem da
visão mundial prevalecente, quase sempre devido a coerção e a tentação externa, quer esta
seja directa ou indirecta. Tenho repetido esta verdade em muitos lugares e tenho provocado a
ira de algumas pessoas, mas o facto é que a única acção em que quase todos participam no
momento presente da história da humanidade, desde comunistas e socialistas a capitalistas,
de hindus e muçulmanos a ateus, de cristãos a xintoístas, é no viver e agir de modo a causar a
destruição do ambiente natural. Este facto deve penetrar completamente na nossa
consciência enquanto, ao mesmo tempo, lembramos as diferenças nas motivações e
perspectivas dos sectores religiosos e secularizados da humanidade. Obviamente, para aqueles
para quem a religião é ainda uma realidade, é muito mais fácil apelar à religião e à visão
religiosa da natureza para descobrir os meios nos quais se encontraria uma solução para a
crise que todos sofremos.
Esquecemo‐nos frequentemente que a vasta maioria das pessoas no mundo ainda vivem pela
religião. No entanto, grande parte dos intelectuais ocidentais pensa sobre as questões
ambientais como se todos fossem agnósticos seguidores de uma filosofia secular cultivada em
Oxford, Cambridge ou Harvard, e portanto procuram desenvolver uma ética ambiental
racionalista baseado no agnosticismo, como se isso fosse produzir qualquer efeito significativo
na crise ambiental. É importante encarar o mundo em que vivemos realisticamente. Se assim o
fizermos, então teremos de perceber porque é que a religião é tão significativa, quer na
compreensão, quer na solução da crise ambiental. Não esqueçamos, repito, que a vasta
maioria das pessoas no mundo vive de acordo com a religião. A estatística frequentemente
Sabedoria Perene 3 62
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental
citada, que diz que apenas metade da humanidade vive assim, é totalmente falsa porque
reclama que, a somar aos ocidentais, existem 1,2 mil milhões de chineses que são ateus ou
não religiosos. Isto não é, de todo, o caso. O confucionismo não é uma filosofia, mas sim uma
religião com base num ritual – voltarei a isto em breves momentos. Existem, no máximo,
algumas centenas de milhões de agnósticos e ateus espalhados sobretudo no mundo
ocidental, com extensões nalgumas grandes cidades na Ásia e em África. Mas este grupo forma
uma pequena minoria das pessoas do mundo. Os que vivem nos outros continentes, tal como
muitas pessoas na Europa e na América, ainda vivem num mundo essencialmente religioso.
Embora a visão religiosa da natureza se tenha perdido no mundo ocidental, mesmo aqui, é
ainda à religião que a maioria das pessoas comuns ouve, e o mesmo acontece com um muito
superior número de pessoas noutras partes do globo. É por isso que qualquer ideologia
secularista que tente substituir a religião tenta sempre também desempenhar o papel próprio
à religião. Isto aconteceu com a ideologia da ciência moderna no ocidente, a qual, para muitas
pessoas, é agora aceite como uma “religião”. É por isso que as pessoas que nos tentam vender
os mais variados tipos de produtos na televisão o fazem como “cientistas” – como agentes de
“autoridade” – e é por isso que usam sempre uma bata branca, não a batina preta dos padres
tradicionais. Eles estão a tentar parecer‐se com membros de um novo “sacerdócio”.
Funcionam como o sacerdócio de uma pseudo‐religião. O seu empreendimento é fazer a
ciência parecer, não simplesmente algo comum, mas algo que substitui a religião. Parece
apropriado aceitar uma ética racionalista relacionada com a ciência para quem aceite esta
tese, mas a vasta maioria das pessoas no mundo ainda seguem a religião autêntica.
Consequentemente, para estas, nenhuma ética teria eficácia a não ser a ética religiosa.
No Ocidente, durante quatrocentos anos, os filósofos influenciados pelo cientismo têm
tentado desenvolver uma ética secular e, com toda a certeza, existem muitos ateus que são
muito éticos nas suas vidas. Mas por que norma podem eles considerar‐se como éticos? Por
nenhuma outra senão aquela que a religião incutiu nas mentes das pessoas no Ocidente. Se
alguém assassina o seu vizinho, consideramos que isso não é ético. Mas porque é que não é
ético? O que é que está errado com isso? Os programas de televisão sobre a natureza em
África mostram animais a comerem‐se uns aos outros constantemente. Se somos apenas
animais, então porque é errado matarmo‐nos uns aos outros? O facto de que todos dizem
“não” a um tal acto é precisamente porque existem certos valores religiosos incutidos, mesmo
na atmosfera secular do mundo ocidental que fala da assim chamada ética secular. Na
verdade, o valor desta ética tem as suas raízes na religião. Seja qual for o caso, nenhuma ética
secular poderia falar com autoridade excepto para aqueles que aceitassem as premissas
filosóficas de uma tal ética.
Permanece o facto de que a vasta maioria das pessoas no mundo não aceita qualquer ética
que não tenha uma fundação religiosa. Em termos práticos, isto significa que se uma figura
religiosa, digamos um mulla ou um brahmin na Índia ou Paquistão, for a um povoado e disser
aos locais que, do ponto de vista da sharī’ah (lei islâmica) ou da lei de Manu (lei hindu), eles
Sabedoria Perene 3 63
Seyyed Hossein Nasr
estão proibidos de cortar uma determinada árvore, muitos o aceitariam. Mas se um qualquer
licenciado da Universidade de Deli ou de Carachi, que seja um representante governamental,
for dizer que, por razões racionais, filosóficas e científicas, é melhor não cortar a mesma
árvore, poucos dariam atenção ao seu conselho. Assim, do ponto de vista prático, a única ética
aceitável para a vasta maioria no momento presente da história do mundo é a ética religiosa.
O fortíssimo preconceito contra a ética religiosa em certos círculos no ocidente, que agora se
preocupam com a crise ambiental, é em si mesmo um dos maiores impedimentos para a
solução da própria crise ambiental.
Existe uma segunda razão pela qual a religião é tão importante na resolução da crise
ambiental. Existem muitos elementos envolvidos aqui, mas vou resumi‐los. Todos sabemos e,
mesmo que não estejamos pessoalmente preocupados com as raízes metafísicas, espirituais e
cosmológicas da crise ambiental, estamos contudo cientes do facto de que, exteriormente
(não digo interiormente), esta crise é conduzida pelo sistema económico moderno que apela
às paixões humanas, especialmente à paixão da ganância intensificada pela criação de
necessidades falsas, que não são verdadeiras necessidades mas sim quereres. Isto opõe‐se à
visão exposta pelas religiões ao longo dos milénios, isto é, o exercício da virtude da resignação,
de se estar grato com o que se tem. O panorama moderno é baseado no atear do fogo da
ganância e da avareza, em fazer todo o possível para aumentar o apego da alma ao mundo e
em tornar num vício o que para a religião sempre foi uma virtude, isto é, manter uma certa
distância e desapego do mundo; noutras palavras, manter um certo ascetismo. Existe um
provérbio alemão famoso, “não existe cultura sem ascetismo”; e isto é verdade para todas as
civilizações.
Estamos a viver no primeiro período da história da humanidade ocidental em que, excepto
para algumas pequenas e dispersas ilhas de monasticismo ortodoxo ou católico ou anglicano e
de umas poucas pessoas que tentam praticar a austeridade, o ascetismo é considerado um
vício, não uma virtude. Não é ensinado nas nossas escolas como virtude; é ensinado como um
vício que nos impede de nos realizarmos a nós próprios, como se o nosso “próprio” fosse
simplesmente a extensão do nosso físico. Esta ideia de auto‐realização é, obviamente, central
para a tradição oriental e para determinadas tradições ocidentais. Mas perverteu‐se da pior
maneira possível e transformou‐se na base do consumismo moderno, o qual pode ser visto na
sua forma mais virulenta na América – agora em rápida conquista da Europa e a trabalhar bem
para atingir a Índia, a China, a Indonésia, etc. (dentro da próxima década teremos vários
milhares de milhões de novos consumidores nestes países sedentos por coisas artificiais sem
as quais viveram nos últimos milhares de anos). E o que isto fará à Terra só Deus sabe. As
consequências da continuação da presente tendência estão para além de qualquer crença ou
especulação. Então o que é que pode refrear as paixões, quer gradual, quer repentinamente?
Para a vasta maioria das pessoas que, acreditando em Deus e na vida eterna, ainda temem as
consequências das suas acções malévolas nas suas vidas neste mundo, nada a não ser a
religião. Se lhes fosse dito que a poluição e a destruição do ambiente é um pecado, no sentido
Sabedoria Perene 3 64
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental
teológico do termo, pensariam duas vezes antes de enveredarem nele. Para o crente comum,
a ira de Deus e o temor da punição na vida eterna é a força mais poderosa contra as
tendências negativas da alma passional. Para quase todas as pessoas que continuam a poluir o
ar e a terra, e cujo estilo de vida implica a destruição do ambiente natural, o que poderá actuar
como travão contra o sempre crescente poder das paixões senão a religião? As religiões
tiveram que lidar com a morte do ego passional durante milhares de anos, com a morte do
dragão interior para utilizar o símbolo mencionado em tantas tradições. A morte do dragão
pela lança de São Miguel tem vários significados, um dos quais é obviamente o de que só a
lança do Espírito é capaz de matar esse dragão; ou o que no sufismo se chama de nafs, a alma
passional, a alma menor dentro de nós. Nos dias de hoje, raramente pensamos nesse
problema. Mas onde está São Miguel com a sua lança? Como é que vamos parar as pessoas de
quererem mais e mais senão pelo poder do Espírito, disponibilizado através da religião? E uma
vez aberta a caixa de Pandora dos apetites, como é que vão pôr o génio outra vez dentro da
caixa? Como é que vão ser capazes de, somente com argumentos racionais, dizer às pessoas
para usarem menos, para cobiçarem menos, para serem menos gananciosas, e por aí em
diante? Nenhuma força hoje em dia tem o poder para fazer isto a não ser a religião, a menos
que se considere a pura coerção física.
Para a vasta maioria das pessoas, não existe outra maneira de controlar as grandes paixões
internas agora ateadas, pelo enfraquecimento da religião primeiro, e, segundo, pela criação de
um novo conjunto de valores derivado de um tipo de pseudo‐religião cujos novos deuses são
ídolos tais como o “desenvolvimento” e “progresso”. Mas este tipo de ídolos não tem o poder
de nos ajudar a controlar as nossas paixões. Pelo contrário, apenas lhes ateia o fogo. Temos
sido testemunhas, durante esta última geração, do cada vez maior descrédito das atitudes
religiosas tradicionais face ao mundo, especialmente do que em árabe chamamos de ridā, que
é resignação com o nosso estado de existência, uma virtude que é exactamente oposta ao
pecado de ganância. Claro que os muçulmanos têm sido criticados pelo Ocidente desde há
muito tempo simplesmente por serem fatalistas face aos eventos, de serem demasiado
resignados à sua sorte. Este mesmo descrédito tem sido dirigido a valores cristãos similares.
Mas isto deve‐se a um profundo mal‐entendido. Onde é que, no actual sistema de educação
ocidental, é dada atenção a estas virtudes tradicionais? Mesmo de um ponto de vista
puramente empírico e científico, estas virtudes devem ser vistas como sendo de grande valor,
uma vez que possibilitaram ao ser humano viver durante milhares de anos no planeta sem
destruir o ambiente natural, como estamos a fazer actualmente. Estas virtudes tradicionais, as
quais possibilitaram que inúmeras gerações vivessem em equilíbrio com o mundo que as
rodeava, foram ao mesmo tempo concebidas como formas de aperfeiçoamento da alma, como
degraus no aperfeiçoamento da existência humana. Estas virtudes providenciaram meios para
viver em paz com o ambiente. Estas permitiram também que o homem vivenciasse o que
significa ser humano e que cumprisse o seu destino aqui na terra, o qual está sempre
relacionado com a tentativa de incutir internamente tais virtudes.
Sabedoria Perene 3 65
Seyyed Hossein Nasr
Outro papel cardeal e central da religião na solução da crise ambiental, um que vai à sua raiz, é
muito mais difícil de compreender no contexto da mentalidade moderna. Este papel está
relacionado com o significado dos rituais religiosos como forma de estabelecer uma harmonia
cósmica. Note‐se, esta ideia é desprovida de sentido no contexto do pensamento moderno,
onde o ritual parece não ter qualquer relação ou correspondência com a natureza da realidade
física. Na visão do mundo moderno, os rituais são na melhor das hipóteses elementos
pessoais, individuais, subjectivos, que criam felicidade no indivíduo ou estabelecem uma
relação entre ele ou ela e Deus. Até aqui, encontra‐se aceitação entre algumas pessoas
modernas. Mas como poderiam os ritos estabelecer uma harmonia cósmica? Do ponto de vista
científico moderno, tal afirmação parece não fazer qualquer sentido. Mas não é disparatada; é
uma verdade bastante subtil que tem de ser exposta e destacada. Quer da perspectiva
espiritual, quer da religiosa, o mundo físico está relacionado com Deus por níveis de realidade
que transcendem o próprio mundo físico e que constituem os vários estados da hierarquia
cósmica. É impossível ter harmonia na natureza, ou harmonia do homem com a natureza, sem
esta harmonia vertical com os estados mais elevados do ser. Uma vez concebida a natureza
como algo puramente material, mesmo aceitando que foi criada por um Deus percepcionado
como um relojoeiro, esta relação cósmica deixa de poder sequer ser concebida, quanto mais
compreendida. Uma vez que se separe a natureza dos seus princípios imediatos – que são os
níveis de realidade psíquico e espiritual ou angélico – então a natureza já perdeu o seu
equilíbrio no que respeita à nossa relação com ela.
Ora, do ponto de vista da religião, os rituais são dados por Deus. Não estou a utilizar o termo
ritual tal como entendido do ponto de vista secular, como se se tratasse de vestir uma túnica
para ir a um qualquer exercício de iniciação ou a qualquer outra acção humanamente criada,
frequentemente chamada de “ritual” no discurso corrente do dia‐a‐dia. Estou a utilizá‐lo no
sentido religioso. De acordo com todas as religiões tradicionais, os rituais desceram do Céu.
Um ritual é um decreto de um protótipo divino, ou antes um re‐decreto, aqui na terra. No
mundo abraâmico, isto significa que os rituais foram revelados por Deus aos profetas e que
foram por eles ensinados ao homem. A “repetição” da Última Ceia do Cristo na Eucaristia, ou
as orações diárias dos muçulmanos – de onde vêm? De acordo com os seguidores destas
religiões, todas elas vêm do Céu. No hinduísmo e no budismo observa‐se a mesma realidade.
As diferenças são de contexto e de visão do mundo, mas os seus fundamentos são os mesmos.
Não há nenhum rito hindu que tenha sido inventado por alguém que, caminhando ao longo do
Ganges, se tivesse lembrado subitamente dele. Para os hindus, eles são de origem divina. As
orações diárias muçulmanas, que todos vemos em fotografias, foram dadas aos muçulmanos
pelo Profeta na base de instruções recebidas de Deus. Nem mesmo o Profeta as inventou. A
Eucaristia “re‐decreta” a Última Ceia que, sendo o rito central do cristianismo, foi
primeiramente celebrado pelo próprio Cristo.
Ora, estes ritos, por virtude da sua re‐decretação na terra, ligam a terra aos níveis de realidade
superiores. Um rito liga‐nos sempre ao eixo vertical da existência, e por virtude disso, liga‐nos
Sabedoria Perene 3 66
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental
também aos princípios da natureza. Esta verdade sustenta‐se não apenas nas religiões
primordiais, onde certos actos são desenvolvidos na própria natureza – mencionemos o caso
das religiões africanas, das religiões aborígenes da Austrália ou as religiões dos índios
americanos – mas também no mundo abraâmico, no mundo hindu e nas religiões iranianas.
Quer se utilizem formas naturais particulares tais como a árvore, a rocha ou a caverna, ou algo
parecido, ou objectos de arte sagrada e litúrgica relacionada com ritos desenvolvidos dentro
de uma igreja, uma sinagoga, uma mesquita ou um templo hindu, objectos estes feitos pelo
homem, não faz qualquer diferença. A mesma verdade pode ser encontrada em todos estes
casos. De um ponto de vista metafísico, um ritual re‐estabelece sempre o equilíbrio com a
ordem cósmica.
Num sentido místico mais profundo, a natureza está faminta das nossas orações, no sentido
que somos como a janela da casa da natureza através da qual a luz e ar do mundo espiritual
penetra no mundo natural. Quando esta janela se torna opaca, a casa da natureza torna‐se
escura. Isso é exactamente o que vivenciamos hoje em dia. Depois de fecharmos os nossos
corações a Deus, a escuridão espalha‐se por todo o mundo. Isto, está claro, é algo muito difícil
de explicar a uma mentalidade agnóstica. Mas pelo menos de um ponto de vista prático,
expediente, deveria ser tomado em consideração mesmo por aqueles que não levam os ritos a
sério, já que está à vista o que aconteceu à natureza nas mãos dos sectores da humanidade
que já não praticam os ritos tradicionais.
Todas as pessoas religiosas que acreditam na eficácia dos ritos, e que os praticam, têm uma
maneira de olhar o mundo natural e o seu lugar nele que é muito diferente da maneira
secular, sendo esta última a mesma que nos conduziu à crise ambiental. Já todos leram ou
ouviram falar de vários exemplos de rituais religiosos e da sua relação com a natureza, mesmo
nas religiões menos conhecidas. Talvez o mais conhecido, no que toca à demonstração da
relação directa entre os rituais e o mundo natural, seja a dança da chuva dos índios
americanos, sobre a qual os cépticos fazem piadas. Mas algumas pessoas levam‐na muito a
sério e procuram nos pajés ou xamãs, “homens da medicina” entre os índios americanos,
ajuda para trazer a chuva. Claro que tal coisa é chacoteada pela ciência oficial, mas isso não
interessa, pois tal ciência negligência a sympathaeia que existe entre o homem e as realidades
cósmicas.
Existem rituais similares por todo o mundo islâmico, hindu, budista e tradicional cristão. Mas
no mundo actual ocidental moderno isto tornou‐se mais ou menos eclipsado, apesar de não
ter desaparecido completamente. Na Grécia, assim que se sai das grandes cidades, vê‐se
ainda, tal como nas aldeias de Itália, quando há notícias de um terramoto, as pessoas a
recitarem o início do Evangelho de S. João em latim, que muitos ainda sabem de cor. Os fiéis
recitam‐no num sentido ritual para ajudar a recrear o equilíbrio e a harmonia com o mundo
natural através do apelo à Misericórdia Divina. Dificilmente consigo sobrevalorizar o
significado deste aspecto religioso, porque é impossível para uma colectividade humana viver
Sabedoria Perene 3 67
Seyyed Hossein Nasr
em harmonia com a natureza sem esta relação ritualizada com o mundo natural e sem a
harmonia com Deus e com os níveis mais elevados da hierarquia cósmica. Sem esta relação, a
natureza fica reduzida a uma “coisa”, a um facto puro, a um nódulo material, não em si
própria, está claro, mas para nós, e nós devemos suportar todas as consequências que uma tal
visão implica.
Ao mesmo tempo que providencia uma base sólida para a ética, talvez o papel mais
importante da religião na compreensão das raízes da crise ambiental (e aqui eu incluiria
especialmente o elemento espiritual da religião, porque é a dimensão espiritual, metafísica e
esotérica da religião que destaca este elemento), é o de que a religião possui uma ampla
doutrina sobre a natureza do mundo em que vivemos. Isto é, a religião, quando era integral e
não truncada como se tornou hoje em dia no ocidente, providenciava não apenas uma
doutrina sobre Deus, não apenas uma doutrina sobre o estado humano, mas também uma
doutrina sobre o mundo da natureza. E aqui, por doutrina, quero dizer conhecimento (docta),
não apenas opinião mas conhecimento autêntico que não é, de forma alguma, negado pelo
conhecimento científico do mundo. Todas as religiões providenciam não apenas ensinamentos
pertencentes ao campo emocional e sentimental, não apenas princípios para a acção ética,
mas também conhecimento, conhecimento no mais profundo sentido do termo;
conhecimento de Deus, do estado humano e também da natureza. Não há nenhuma grande
religião cuja tradição integral não providencie este conhecimento. Algumas religiões enfatizam
um elemento, outras outro. Certas religiões, tal como o confucionismo, não falam sobre
cosmogonia e escatologia, mas têm uma vasta cosmologia. Noutras religiões é verdade o
inverso. Mas estes três tipos de conhecimento, isto é, o conhecimento de Deus ou do Princípio
Último, do estado humano, e da natureza, têm de existir em todas as religiões integrais.
Ora, não é necessário procurar muito longe para ver o que aconteceu no mundo moderno.
Gradualmente, a partir do século XVII, primeiro no Ocidente e depois, nas décadas mais
recentes, espalhando‐se a outras partes do mundo, a legitimidade do conhecimento religioso
da natureza foi sendo rejeitado. Grande parte das pessoas que estuda as visões sobre a
natureza de um Erigena ou de um S. Tomás de Aquino, fazem‐no como historiadores. Mas as
suas visões não são aceites pela maioria da sociedade moderna ocidental como conhecimento
legítimo do mundo. O que se perdeu foi a forma de estudar a natureza religiosamente, não
simplesmente como “poesia”, tal como este termo é utilizado hoje em dia num sentido trivial
e, claro está, não num sentido positivo. A verdadeira poesia possui uma grande mensagem no
que concerne à natureza, uma mensagem que geralmente é em si mesma religiosa. Em
qualquer caso, a sociedade moderna desassociou do conhecimento da natureza a religião, tal
como fez com o da própria poesia sapiencial, e relegou a atitude religiosa e o conhecimento da
natureza para um sentimento ou “simplesmente” para uma sensibilidade poética.
Temos maravilhosos exemplos de poesia da natureza na grande produção poética inglesa do
século XIX. Os poetas românticos produziram bela poesia sobre a natureza. Mas que efeito
Sabedoria Perene 3 68
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental
teve nos departamentos de física das universidades? Absolutamente nenhum, precisamente
porque a ciência que se desenvolveu no século XVII, através de processos muito complicados
que não posso aprofundar agora, começou a excluir da sua visão do mundo a possibilidade de
uma forma de conhecimento religioso ou metafísico da natureza. Esta ciência excluiu até a
visão poética da natureza, na medida em que esta reclamava legitimidade intelectual e
proclamava ser mais do que aquilo a que alguns chamariam de “mera poesia”. A ciência
moderna tem‐se agarrado fortemente a esse monopólio, mesmo nesta nossa era de
pluralismo, em que tudo o que não é ciência é relativizado. Normalmente, os pós‐modernistas
desconstroem tudo excepto a ciência moderna porque, se isto fosse feito, toda a visão
mundial do modernismo, bem como o pós‐modernismo, colapsariam. Assim, tem‐se um tipo
de exclusividade e de monopólio científico que foi sendo criado e aceite por grande parte, mas
não por todas as pessoas no mundo moderno. Goethe, o supremo poeta e também cientista
alemão, insurgiu‐se de forma veemente contra a reivindicação monopolista da ciência
moderna. Também certos cientistas, tais como Oswald, um reputável químico, rejeitaram o
mecanismo científico; e podem‐se nomear outros. Mas estes são excepções à regra. Tornou‐se
regra que não existe outro conhecimento da natureza excepto o que é chamado de
conhecimento científico. E se alguém reivindica que existe um conhecimento religioso da
natureza, então é habitual argumentar‐se que este é baseado no sentimento, nas emoções,
ou, por outras palavras, em factores subjectivos. Se, por exemplo, alguém vir uma pomba a
voar e pensar no Espírito Santo, isso é simplesmente uma correlação subjectiva entre a
percepção da pomba e os sentimentos desse alguém. Não é concedida qualquer objectividade
à realidade da natureza percebida através do conhecimento religioso. É por isto que até o
simbolismo se tornou subjectivizado – é reivindicado como sendo “meramente” psicológico, à
la Jung. Todos os símbolos que o homem tradicional via no mundo da natureza como sendo
objectivos e como sendo parte da realidade ontológica da natureza foram postos de parte por
este tipo de mentalidade que já não leva a sério o conhecimento religioso da natureza.
Durante estes últimos trinta anos, quando se fez sentir a sede por uma aproximação mais
holística à natureza, algo ainda pior aconteceu, pois nem a religião convencional nem a ciência
moderna mostraram qualquer interesse no conhecimento religioso e simbólico da natureza e
numa aproximação holística. A procura de água para esta sede infiltrou‐se sob as estruturas da
cultura ocidental e surgiu na forma de movimentos “Nova Era”, dos quais praticamente todos
estão muito interessados na ciência do cosmos. Mas o que estes movimentos reivindicam
como ciência é na realidade uma pseudo‐ciência da “Nova Era” do cosmos. Não é uma ciência
tradicional autêntica, porque a ciência tradicional do cosmos tem que estar relacionada com a
estrutura religiosa tradicional. Neste clima da “Nova Era”, a palavra “cósmico” ganhou uma
grande prevalência precisamente devido à escassez de um conhecimento religioso autêntico
do cosmos no mundo actual. De algum modo a sede tinha de ser satisfeita. Assim ocorreu a
escavação dos ensinamentos esotéricos ocidentais sobre a natureza – geralmente apresentado
de modo distorcido – ou empréstimos das religiões orientais e dos seus ensinamentos sobre a
natureza, muitas vezes distorcidos. Nem mesmo o famoso e influente livro de Fritjof Capra, O
Sabedoria Perene 3 69
Seyyed Hossein Nasr
Tao da Física, fala verdadeiramente de cosmologia hindu ou de física chinesa, mas apenas
menciona certas comparações entre a física moderna e ideias metafísicas hindu e taoistas.
NOTAS
1 – N.T.: Selecção e compilação dos conteúdos leccionados no âmbito do Programa de Educação Religiosa e
Ambiente (REEP) dos Amigos do Centro e da Academia Temenos em 22 de Maio de 1998.
2 – N.T.: René Guénon, Crise do Mundo Moderno, tradução de António Carlos Carvalho, 1977 (Vega, Colecção
Janus); publicada originalmente em 1927 com o título La crise du monde moderne.
Sabedoria Perene 3 70
A agricultura e o destino humano
por Lord Northborne
Traduzido por Sandro Faria
A Crosta desta terra experimenta convulsões periódicas de várias naturezas e escalas. Durante
as maiores, submergem continentes existentes e novos emergem. Entre convulsões, poderão
existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas
partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras
que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações
que ocorrem numa escala cósmica e que surpreendem a nossa imaginação pela sua
imensidade e duração, reduzindo todos os fenómenos terrestres a uma insignificância
quantitativa. Em termos quantitativos, a vida humana é duplamente insignificante, pois
desempenha um papel deveras pequeno na história geológica do planeta; e este planeta não
pode ser considerado à parte do sistema solar nem este último à parte do resto do universo.
Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas
sim no domínio da qualidade. Apenas valerá a pena preservar a vida humana em virtude do
seu conteúdo qualitativo ou potencialidade qualitativa, ainda que aquela tenha um aspecto
quantitativo inerente que não pode ser preservado a menos que se satisfaçam os seus
requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos apenas se justifica na medida em que é
necessária para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade.
A maior dificuldade que surge desta afirmação é que não se pode definir a natureza dessas
potencialidades qualitativas com precisão. Apenas a quantidade é mensurável, a qualidade
como tal pode ser enunciada mas não medida. A qualidade é eternamente o que é, ou é
percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem
não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave
para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao
discutir qualidade, o mais que se pode fazer é comparar coisas que possuem uma qualidade
com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para quem
conhece por experiência a qualidade em questão.
Isto é tanto ou mais verdade para a qualidade, ou qualidades, que podem ser chamadas de
“espirituais”. A palavra espiritual é inevitavelmente mal aplicada ou mal interpretada por
aqueles cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável
é, em última análise, tudo o que pode ser contido nos poderes analíticos e descritivos do
cérebro humano. Se não houvesse nada que transcendesse esses poderes, toda a qualidade
poderia em princípio ser reduzida a quantidade. A distinção qualitativa essencial do homem
reside nas suas potencialidades espirituais.
Sabedoria Perene 3 71
Lord Northborne
As convulsões terrestres envolvem a destruição periódica de vidas, humanas ou outras. Isto
pode surgir‐nos como algo terrível e difilcultar a compreensão de um Deus todo
misericordioso que ordena acontecimentos destes. Esquecemo‐nos que a lei da vida e da
morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com
a quantidade, é conferido de uma forma – universos e o que fica para baixo. Tudo deve
perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio.
Somos perecíveis, quer como indivíduos, quer como sociedades humanas. O Homem sempre
soube isto, mas ao mesmo tempo também sempre considerou que deve haver, por assim
dizer, algo por detrás de tudo, algo imperecível e maior que ele próprio.1 Aceitar a
perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a
humildade que essa aceitação implica, é um prelúdio necessário para o entendimento da
nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente,
os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa
dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de
direcção e frustrando muitas acções bem‐intencionadas.
O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Na realidade, tudo; pela dupla razão de que
o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física, e que a relação
da qualidade com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na
nossa abordagem aos seus problemas, envolve‐nos a todos mais do que normalmente
pensamos.
Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana
no planeta e assim tem sido desde que o aumento da população ultrapassou as
potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna‐se
a principal expressão do relacionamento entre o homem e a Natureza. Todas as restantes
actividades humanas surgem como ramificações desta relação e são dela dependentes.
Poderíamos prosseguir sem elas mas não sem a agricultura. Consequentemente, afecta‐nos
mais directamente do que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa
posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte‐se em nós.
Esta verdade auto‐evidente tem vindo a ser obscurecida pelas atracções e distracções do
desenvolvimento industrial, mas surge‐nos novamente, agora no seu aspecto quantitativo,
devido ao rápido crescimento da população mundial. Este incremento parece acompanhar
sempre uma revolução industrial.2 Num período de tempo incrivelmente curto, o progresso
industrial passou a ser o objectivo de quase todas as nações; e, uma vez estabelecido, um
objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta
parece alcançável. Embora nos encontremos perante um risco de fome mundial dentro de
poucas décadas, continuamos a dedicar uma proporção cada vez maior do nosso dinheiro e
energia ao desenvolvimento industrial, cujas exigências são insaciáveis. A indústria gera
Sabedoria Perene 3 72
A agricultura e o destino humano
constantemente novos crescimentos, que por sua vez criam novas oportunidades, mas com
elas também novos desejos e novas necessidades.3
A visão dominante na indústria, o princípio na qual esta se baseia e à qual todos os outros
devem ceder passagem, é à progressiva redução no custo financeiro da produção e
comercialização de um dado produto. O propósito de tal redução é o da libertação de
recursos, humanos e físicos, para a produção de outros produtos. O processo é, por inerência,
cumulativo e acelerativo. Este processo implica uma mudança contínua de um tipo que hoje
em dia seria chamada de “reposicionamento dos recursos”. Implica igualmente um estímulo
incansável de procura de bens, ou noutras palavras, de desejo. Trata‐se de persuadir
continuamente as pessoas a quererem o que estas não sabiam querer. Seria difícil inventar
uma base económica menos bem adaptada que esta para o cumprimento das funções vitais da
agricultura.
Com o panorama industrial a tornar‐se cada vez mais universal, torna‐se cada vez mais difícil
para a agricultura, e eventualmente impossível, manter métodos e técnicas incompatíveis com
os da indústria. A agricultura é afectada, acima de tudo, pela contínua pressão mundial para
reduzir custos unitários através da adopção de novos métodos que demonstrem vantagens
financeiras marginais, mas que são prontamente suplantados por um outro novo método. A
instabilidade resultante não faz mais do que prejudicar. A agricultura adopta a paisagem
industrial na medida em que as suas circunstâncias o permitem. Resistiu durante muito tempo,
mas está agora densamente envolvida.
A organização típica da agricultura sedentária foi, até recentemente, conhecida como
campestre; desapareceu talvez primeiro na Grã‐Bretanha, antes de desaparecer nos restantes
países. As suas características essenciais são unidades económicas relativamente pequenas,
normalmente trabalhadas por famílias que obtêm a maioria do seu sustento pela sua
produção, vendendo ou trocando apenas o seu excesso. Cada unidade, ou grupo de unidades,
é mais ou menos auto‐contida e auto‐suportada, quer economicamente quer biologicamente.
As técnicas de cultivo e de pecuária são passadas de geração em geração, com poucas ou
nenhumas alterações. Dentro deste enquadramento podem‐se encontrar muitas variações, já
estudadas; algumas sobreviveram aqui e ali até ao presente, embora não sem modificações. O
modo de vida de um camponês é acima de tudo tradicional; a sua resistência à mudança foi,
no passado, talvez o principal factor de estabilização na civilização humana, assim como foi, ao
mesmo tempo, solo fértil de admiráveis qualidades humanas. Mesmo hoje, de entre os poucos
sobreviventes do campestre ancestral, é possível encontrar exemplos de dignidade, equilíbrio
e orgulho associado ao real artesão, o que está sem dúvida relacionado com o verdadeiro
sentido do lugar do homem na Natureza e, consequentemente, com a sua relação com Deus.
Estas qualidades compensam muitas faltas. Hoje em dia, estas não são suficientemente
apreciadas pois não são geradoras de dinheiro, mas a civilização fica seriamente empobrecida
quando estas rareiam. O camponês tem sido chacota do citadino esperto, ainda que o seu
Sabedoria Perene 3 73
Lord Northborne
estilo de vida tenha sido também romantizado. Não há qualquer justificação para desvalorizar
a função do camponês, pois esta é indispensável para o sedentarismo.
Enquanto o camponês retém vestígios do estado paradisíaco do qual brotou, a sua função vai
muito para além da simples produção de comida, uma vez que esta é a função pela qual o
homem é integrado no seu meio envolvente. O seu aspecto romântico está intimamente
associado a essa origem. Na sua decadência, muito pouco dessa origem subsiste.
O modo de vida campestre tem vindo a ser erradicado do mapa‐mundo. É verdade que este
não pode ir ao encontro do que as pessoas consideram as necessidades dos nossos tempos,
mas também é verdade que as pessoas dos nossos tempos não sabem quais são as suas
necessidades reais. Se um camponês pode preservar algo que seja conforme às necessidades
humanas mais profundas, isso pelo menos explicará o porquê de ser, entre todas as outras
formas de sociedade humana, a forma de vida mais persistente. Mas apesar de ter sobrevivido
até aos dias de hoje, parece estar actualmente condenada. O tractor está a substituir o animal,
a electricidade está por todo o lado, a televisão na sala de estar, e o carro motorizado está no
palheiro do animal de carga. Nalguns sítios onde, apesar de tudo, o espírito ancestral possa
ainda sobreviver durante mais algum tempo, o turismo está a inundá‐los com artificialidade.
O camponês europeu e asiático, ao qual evidentemente nos referimos aqui, é tido como o
representante da agricultura tradicional. O modo de vida do caçador nómada é, por definição,
apenas marginalmente agrícola e é por isso excluído da presente discussão, excepto para
mencionar que o verdadeiro nómada pode, em muitos aspectos, estar mais próximo do estado
paradisíaco do que o camponês, e que o advento do modernismo destruiu o seu modo de vida
completa e ainda mais rapidamente.
Valerá a pena resumir a natureza das mudanças trazidas à agricultura pelo emergir da
dominância do espectro industrial.
Primeiro: a redução progressiva do número de pessoas directamente envolvidas na
agricultura, quer proporcionalmente ao volume da sua produção, quer proporcionalmente à
população não agrícola. Esta tendência é mais profunda na Grã‐Bretanha e nos Estados Unidos
do que em qualquer outra parte, e a proporção de população agrícola para o total da
população continua a cair.4 Isto tem sido possível devido ao aumento da mecanização de
processos e tarefas, incluindo no cuidado dos animais. A mecanização é a característica mais
típica da industrialização em todas as suas formas. É usualmente acompanhada pela
substituição do assalariado pelo trabalhador com interesses proprietários.
Segundo; e directamente resultante do ponto anterior: o aumento progressivo da dimensão
média das quintas e dos terrenos para que o custo dos equipamentos e maquinaria, complexos
e dispendiosos, possa ser distribuído por uma área maior e para que possam ser usados em
Sabedoria Perene 3 74
A agricultura e o destino humano
toda a sua capacidade sem restrições. Consequentes alterações relacionadas com sistemas de
utilização dos terrenos, finanças, etc., não necessitam de ser consideradas aqui, embora sejam
importantes.
Terceiro: a substituição de métodos mais antigos por métodos químicos para manutenção da
produtividade dos solos e combate a doenças, ervas daninhas e pestes.
Quarto; e surgindo directamente das três mudanças anteriormente mencionadas: uma perda
progressiva de independência económica, quer na unidade agrícola individual, quer na
agricultura como um todo. A agricultura está já muito dependente da indústria para a
concretização das suas funções e, particularmente em Inglaterra, dependente da indústria e de
produtos de terras distantes. Aqui jaz um risco de fome tão largamente por reconhecer.5
Quinto: um aumento na padronização dos produtos agrícolas e hortícolas, para satisfazer os
requisitos de uma população maioritariamente urbanizada, e dos distribuidores que não só a
servem, mas também a persuadem a querer aquilo que lhes convém oferecer, nomeadamente
produtos que sejam uniformes, bem embalados em quantidades padrão e o mais imperecíveis
possível. A consequência de tudo isto é a difusão da prática de adicionar conservantes numa
gama cada vez maior de produtos.6 Mais uma vez, a redução no preço é a suposta justificação
deste tipo de práticas, mas mesmo esta vantagem pode ser mais do que neutralizada pelos
custos de processamento, embalagem e distribuição. Existe uma cada vez maior distância
entre o produtor primário e o consumidor, mais notável no seu aspecto financeiro do que no
seu mais importante aspecto biológico. Esta é claramente uma grande questão, uma vez que
cobre todo o campo da nutrição humana.
Sexto: Uma instabilidade crescente que surge do ritmo com que novas ideias são produzidas
pela investigação, em conjunto com alterações económicas e políticas, carece do ajustamento
ou alteração dos métodos e da maneira de atacar os problemas actuais. A agricultura deixa de
ser o principal factor de estabilidade, quer económico quer social, na civilização e encontra‐se
envolvida num ciclo vicioso que se pode apelidar de “corrida desenfreada”.7 Não será talvez
uma estimativa errada dizer que têm existido mais alterações nos últimos cem anos que nos
anteriores mil, e mais nos últimos vinte anos que nos últimos duzentos. E esta aceleração não
mostra sinais de decréscimo.
Todas estas alterações marcam o abandono da visão tradicional em favor da visão industrial da
agricultura. O progresso industrial é baseado na ciência moderna e, assim sendo, não é
surpresa que a agricultura se considere cada vez mais científica; e, em grande parte, assim o é.
A maior parte dos agricultores aceitam esta situação e muitos até a recebem de bom grado,
pois estes não são imunes à infecção da ideologia do progresso industrial. Por eles ou por
outros, todos os passos neste processo são vistos como um avanço; e assim o é do ponto de
vista puramente industrial. Qualquer evolução trás pelo menos um ganho potencial que pode
Sabedoria Perene 3 75
Lord Northborne
ser medido em termos financeiros, mas na agricultura o preço pode ter de ser pago numa
moeda menos mensurável, uma que é qualitativa e não quantitativa. Nenhum exemplo
poderia ser mais auto‐evidente do que o do sacrifício da beleza associado ao desenvolvimento
industrial, incluindo o desenvolvimento da agricultura em moldes industriais; uma perda não
apenas na beleza natural mas também na beleza das coisas que o homem faz para o seu
próprio uso e prazer. Esta é uma das perdas qualitativas que não passou despercebida. É
lamentável, e apesar de várias tentativas serem feitas para a minimizar, pouco é feito para
atacar ou mesmo para perceber as suas causas.
Existem ainda outros problemas. Por exemplo, tem havido uma considerável contestação
pública contra a chamada “agricultura fabril”, tal como é aplicada aos animais, sobretudo em
bases de crueldade, e tem havido argumentação variada de ambos os lados. Sem entrar nesta
argumentação, pode‐se afirmar com confiança que enquanto houver produtores que podem
cortar os seus custos, produzindo artigos ainda vendáveis, a pressionar produtores incapazes
de o fazer, haverá “agricultura fabril” ou qualquer coisa muito parecida, com todos os seus
efeitos inevitáveis na qualidade dos seus produtos e dos animais envolvidos.
Existe também a controvérsia sobre a qualidade da comida criada com métodos “naturais” em
oposição à criada com métodos “artificiais”. Não é uma questão de natural vs artificial mas sim
do grau de artificialidade, os únicos produtos naturais são aqueles produzidos pela natureza
sem assistência do homem; mas questões de grau podem ser cruciais. O assunto pode ser
discutido ad nauseam e a resposta alcançada é garantidamente alvo de crítica, como sendo
resultado de preconceito, uma vez que provavelmente não será possível obter qualquer prova
científica. Nada menos do que experimentação com comunidades completas e prolongada
durante várias gerações pode providenciar qualquer coisa que possa ser chamada de prova
científica e, por essa altura, seria tarde demais para ser de qualquer utilidade.8
Um retorno aos métodos tradicionais de cultivo e fertilização não toca na raiz do problema
deste tema. Isto não implica que isto não seja proveitoso apenas por si, desde que daí não
sejam depositadas demasiadas expectativas. Algumas pessoas tentaram e continuam a tentar
produzir comida sem ajuda de fertilizantes químicos e pulverizações; e algumas pessoas –
talvez em número crescente – preferem comprar comida assim produzida. Quem ousa dizer
que estão errados? A larga maioria não está interessada e prefere seguir a corrente e ignorar
os objectores da comida criada pelos métodos modernos como sendo meros fanáticos.
Novas técnicas são adoptadas pelos agricultores, pois estes sabem que se não se mantêm
actualizados serão eliminados do negócio. A agricultura moderna tornou‐se muito mais um
negócio do que um modo de vida. A pressão no sentido da industrialização total da agricultura
é ainda crescente. Na Grã‐Bretanha, onde certos preços mínimos são fixados pelo Governo, os
agricultores são oficialmente encorajados a esperar nada menos; aos agricultores é‐lhes dito
que estes preços serão baseados no crescimento expectável de tanto por cento ao ano da sua
Sabedoria Perene 3 76
A agricultura e o destino humano
“eficiência”, e a medida dessa eficiência é exclusivamente financeira. É por isto que já foram
excluídas do mercado a maioria das poucas unidades agrícolas que, de uma forma ou de outra,
tentaram combater as tendências contemporâneas. Descobriram que o que era
economicamente viável ontem já o não é hoje e será ainda menos amanhã.9
Uma coisa é abundantemente clara. No futuro, é pouco provável que a crescente população
mundial possa de todo ser alimentada sem o emprego das técnicas científicas da agricultura
moderna. Para esta ser alimentada sem a utilização dessas técnicas, a condição necessária
seria a abolição de todos os quantitativos e ideais sentimentalistas da civilização moderna e
dos desejos que estes engendram, bem como a recuperação de uma apreciação e
compreensão da Natureza agora ausente. É inegável que populações bastante densas se
alimentaram por longos períodos sem as técnicas modernas,10 mas as suas perspectivas de
vida, os seus problemas, e a sua estrutura de valores, eram tão diferentes dos nossos que não
podemos, como sociedade, sequer compreendê‐los, quanto mais viver como estes o fizeram.
Onde quer que a linha que divide o artificial do natural possa ser traçada, a sua separação
atingiu um ponto em que se pode dizer que a revolução agrícola desencadeada pela revolução
industrial trouxe algo como um divórcio entre o homem e a Natureza. Anteriormente, o
homem vivia em relativa harmonia com a Natureza e exercia o seu papel naquilo que
chamamos o “equilíbrio da Natureza”. Esse equilíbrio natural, se não o pudermos ver de outra
forma, representa a concretização das ordenações divinas pelas quais todos os seres vivos
estão relacionados entre si através da sua origem comum em Deus, e essas ordenações têm
tanto um aspecto gentil como um rigoroso, um facto que o sentimentalismo moderno se
recusa a reconhecer.11 Do ponto de vista moderno o homem ancestral era “supersticioso”,
significando que os seus motivos pareciam muitas vezes outros que puramente racionais.
Nenhuma consideração é feita de que esses motivos poderiam ser de origem supra‐racional;
de que a agricultura – à semelhança de outras actividades humanas, sociais, artísticas,
militares e outras – podia ser considerada sagrada. Descrevemo‐la frequentemente como
tendo sido tradicional. As palavras “sagrado” e “tradicional” são, ou deveriam ser, de
significado muito semelhante; hoje ambas se tornaram mais ou menos assimiladas no
significado da palavra “superstição”, o que em linguagem correcta é aplicado a coisas que
perderam a sua virtude através da perda da ligação com a sua origem divina. As práticas
ancestrais não podem ser entendidas em termos puramente económicos; e quando nenhuns
outros termos são considerados suficientemente sérios, estes não podem ser compreendidos
de todo.12
Sabedoria Perene 3 77
Lord Northborne
A superfície de uma esfera em expansão distancia‐se do seu centro, o qual é o princípio da sua
esfericidade; e, ao mesmo tempo, conforme a esfera se expande, as suas partes constituintes
afastam‐se umas das outras. Esta é a imagem de todo o conhecimento superficial e periférico;
ao tornarem‐se mais extensivas, as suas partes constituintes afastam‐se umas das outras e do
seu princípio comum.14 Nesta analogia, a superfície da esfera representa o universo visível, o
mundo de aparências com o qual a ciência moderna está preocupada, enquanto que a esfera
completa, incluindo a superfície, representa a realidade como um todo, centrada na unidade.
A superfície é indefinida na extensão; não tem fronteiras, e nenhuma parte sua é principal em
relação a qualquer outra. Uma busca pela verdade confinada à superfície não pode ter
qualquer finalidade. A sua finalidade é procurada na superfície, a sua procura torna‐se
inevitavelmente mais e mais extensiva e fragmentada. A multiplicidade e diversidade
resultante é representada como um enriquecimento, mas é um enriquecimento falso e
ultimamente danoso, pois é mais e mais quantitativo, sem contacto com o seu centro
puramente qualitativo.
A aparente necessidade de pesquisa experimental cresce rapidamente, uma vez que o campo
de observações cresce. Cada experiência pode cobrir deste apenas uma fracção cada vez
menor. A abordagem da ciência, sendo experimental, é a aproximação da tentativa e erro,
quer isto dizer, é puramente empírica. Se as boas práticas não podem ser estabelecidas em
nenhuma outra fundação, na agricultura ou noutra coisa qualquer, segue‐se que a inquisição e
a inventividade são as medidas verdadeiras de inteligência. Se assim for, a inteligência dos
nossos antepassados era de facto inferior à nossa. Devemos então inferir uma recente
ocorrência de mudança no poder do cérebro humano tão grande, tão rápida, e ocorrida no
mundo inteiro, que nenhuma teoria da evolução baseada num processo de adaptação gradual
a poderá enquadrar.15 O que na realidade aconteceu é que uma mudança de perspectiva, o
que pode acontecer sem a aquisição de novos poderes, trouxe tantas alterações nas nossas
vidas que tem sido confundida com a aquisição de novos poderes.
Escolhemos a direcção em que queremos ir, e chegámos a um ponto onde a única esperança
para o futuro parece residir na extensão e aceleração da investigação, para que alterações na
direcção escolhida possam tomar lugar mais e mais rapidamente. Esta aceleração é
extremamente negativa para a agricultura e, se é má para a agricultura, é má para a
humanidade.
Sabedoria Perene 3 78
A agricultura e o destino humano
O solo, os animais e as plantas têm uma amplitude de adaptabilidade limitada e a adaptação é
lenta dentro dessa amplitude. Quando o processo de forçar a produção chegar a um certo
ponto, já terá chegado longe demais. Nessa altura será tarde demais. Ninguém pode dizer que
ponto será esse porque antes de qualquer inovação ter uma oportunidade de uma prova justa
e antes da criatura envolvida – com o homem incluído – ter tido a oportunidade de se adaptar
a ela, já esta foi suplantada por outra. Não há qualquer oportunidade de antecipar ou medir os
efeitos de longo prazo, simplesmente porque estes apenas podem ser medidos no final de um
longo prazo; simplesmente não há tempo para aprender nem para ter em consideração algo
que vá para além dos efeitos mais óbvios e imediatos.
A única coisa que sabemos sobre essas alterações de longo prazo é quão complexas e
imprevisíveis são e que são muitas vezes irreversíveis, como por exemplo no caso da erosão
dos solos. Qualquer tentativa de prever a sua natureza é mera adivinhação. Tão profundos os
perigos parecem ser, no solo a perda de textura e deficiências nos elementos característicos,
nos animais e nas plantas os riscos de doenças e problemas genéticos e, na agricultura como
um todo, as invasões de ervas daninhas e pestes. Até agora, a ciência tem sido mais ou menos
capaz de acompanhar as tendências nestas direcções, à medida que estas vão surgindo, mas
novos problemas surgem cada vez mais rapidamente. Tudo isto enfatiza a dependência da
agricultura numa complicada e vulnerável organização industrial e científica sobre a qual tem
pouco controlo.
Talvez este seja o lugar para mencionar o recente desenvolvimento da relativamente nova
ciência genética, a qual oferece possibilidades de produção artificial do que seriam
efectivamente novas espécies de plantas e animais. Até ao momento, a maioria do seu
trabalho tem sido confinado à indução de variações em espécies existentes ou híbridos, pela
escolha e combinação de genes existentes, mas a produção de genes artificiais já foi
seriamente considerada. Quer algo desta natureza seja actualmente possível ou não, futuros
desenvolvimentos vão com certeza ter maiores alcances que os actuais. Temos boas razões
para saber quão potencialmente perigosas são as experiências na estrutura dos átomos para
as criaturas vivas. Que dizer então de experiências na constituição genética das próprias
criaturas? A produção não intencional de monstruosidades incontroláveis, embora possam não
ser maiores do que viroses, não pode ser excluída. Uma potencial descoberta descrita
jornalisticamente como “grande descoberta” é largamente de ser receada, se apenas
encorajar a atribuição à humanidade de um novo poder “criativo”. Um perigo ainda maior e
sinistro pode ser a deterioração qualitativa nos animais e nas plantas com a qual estamos
profundamente associados.16 E serão estas experiências sempre confinadas apenas a animais e
plantas? Experiências na constituição humana não serão, provavelmente, deferidas por muito
tempo.
Olhando para a imagem da agricultura moderna como um todo, e mais particularmente para o
factor de aceleração que a domina, é difícil de ver como é que uma crise grave poderá ser
Sabedoria Perene 3 79
Lord Northborne
evitada ou até mesmo adiada por muito tempo. É impossível prever a forma que poderá
tomar, sobretudo porque a sua causa pode não ser interna à agricultura. Poderá, por exemplo,
estar relacionada com a perda de independência e de auto‐suficiência. Poderá também estar
relacionada directa ou indirectamente com o crescimento da população humana. Não é de
todo difícil vislumbrar uma situação em que a procura por comida mais barata seja substituída
por procura por comida a qualquer preço. Haveria então ainda pressão, talvez ainda mais
severa que a que existe agora, e seria certamente ainda mais quantitativa e menos qualitativa.
A natureza de qualquer crise futura é impossível de antever; mas afectando a agricultura como
um todo, irá afectar todos os homens na terra. Entretanto, na Bretanha, uma média de 50,000
acres de terreno arável estão a ser permanentemente alienados todos os anos para outros
propósitos.
Uma das formas que uma crise desta natureza poderá tomar é aquilo a que nos habituámos a
chamar “acto de Deus”; por exemplo, pode ser precipitado por um reajustamento na crosta
terrestre. Vale a pena relembrar que nos dias em que desastres imprevisíveis eram
especificamente atribuídos a Deus, era igualmente costume agradecer‐Lhe pelos benefícios
recebidos. As duas atitudes combinadas representam um reconhecimento, bom para a alma,
da dependência de Deus. É bom para a alma porque nos deixa em contacto com a realidade.
Nada é pior para a alma, porque nada é mais falso, que qualquer assunção da sua
independência de Deus, em matérias grandes ou pequenas. Se no passado desastres eram
“actos de Deus”, são‐no ainda; se eles eram então “julgamentos”, são‐no ainda. Isto admitimo‐
lo involuntariamente quando usamos a palavra “crise”, cujo sentido literal é “julgamento”.17
Tanto a alma do homem como a crosta da terra estão sujeitos às disposições de Deus e aos
Seus julgamentos. O mundo, incluindo os seus habitantes, é múltiplo, mas por virtude da sua
origem na Unidade divina constitui uma unidade. O que afectar uma parte afecta o todo e o
que afectar o todo afecta cada parte. Assim sendo, seria estranho se as alterações na crosta
terrestre e na mentalidade humana fossem mutuamente independentes. Não é tanto o caso
de uma mudança numa causar uma mudança na outra, mas mais o de ambas as mudanças
procederem de uma causa comum. Todas as coisas se movem em conjunto, em direcção ao
cumprimento do plano do Grande Arquitecto do Universo; e estão inter‐relacionadas em todas
as fases e não apenas nas suas fases conspícuas, críticas ou explosivas. Fases preparatórias
podem não ser reconhecidas como tal. Estas podem ser imperceptíveis no caso de alterações
na crosta terrestre, enquanto podem ao mesmo tempo ser evidentes nos assuntos humanos,
onde se podem encontrar “sinais dos tempos” para qualquer um que os consiga interpretar.
A conclusão de qualquer fase pode ser um desastre do ponto de vista humano,
nomeadamente quando é acompanhada por uma convulsão terrestre. Esquecemo‐nos que
uma convulsão terrestre, embora seja uma morte do ponto de vista do que a precede, é um
nascimento do ponto de vista do que se segue. O mundo, ou um mundo, renasce, e é
renascido num novo solo mais fértil que as terras antigas, desgastadas. E se o cataclismo é um
Sabedoria Perene 3 80
A agricultura e o destino humano
julgamento divino no que diz respeito à humanidade precedente, também pode ser uma
inauguração divina de uma nova humanidade, restaurada ao seu estado paradisíaco, pois não
mais se encontra distante de uma intervenção divina directa nem esquecida desta. E assim um
novo ciclo começa e, algures no seu curso, uma agricultura de qualquer espécie virá a ser
necessária, tal como aconteceu com Adão.
A ciência concorda com a religião no que concerne à ocorrência dos cataclismos terrestres,
mas as duas diferem profundamente no que diz respeito às suas implicações.18 A ciência
apenas consegue ver uma saída para o homem, e esta através de um aumento hipotético da
sua inventividade, onde as ainda mais hipotéticas oportunidades para a vida humana, no
padrão terrestre proporcionado pelo universo estrelar, poderão ser abertas para descoberta e
exploração.
A religião oferece uma libertação de um tipo completamente diferente. É uma libertação de
todos os enlaçes, físicos ou de outro tipo, e o homem pode apenas encontrá‐la no Centro
imutável do seu próprio ser, e de todo o ser, onde o Espírito habita eternamente e pela sua
radiação, confere em tudo o que é periférico toda a excelência qualitativa que possa possuir.
Se parece termos por vezes vagueado longe da agricultura, é porque a agricultura não pode
ser considerada de forma isolada e ao mesmo tempo de forma realista. É a principal expressão
na nossa relação com a Natureza, é muito mais do que, por exemplo, uma relação estética ou
sentimental; está tecida na textura de toda a nossa existência e toca‐nos em todos os pontos.
Do ponto de vista da criatura que somos, existe Deus, existe a Natureza e existe também o
homem cujo corpo e mente são um com a Natureza, mas feito à imagem e semelhança de
Deus. Por nomeação, o homem é assim mediador entre Deus e a Natureza. O homem não
pode exercer a sua função mediadora se permitir que o seu olhar se afaste do Deus que o
nomeou para a exercer e que está sempre presente para guiá‐lo se este procurar orientação.
Se usar a dádiva divina que é o seu domínio da Natureza sem ser à luz de Deus, mas antes para
seu engrandecimento, cedo se descobre isolado e insignificante, lutando em vão contra as
forças da Natureza. No final, até os seus próprios poderes se terão virado contra si.
A Natureza manifesta na mudança as imutáveis disposições do Todo‐Poderoso Deus. A
Natureza não tem escolha. Nós temos escolha, e temo‐la exercido de uma forma e até a um
ponto do qual parece não existir fuga aos envolvimentos que recaíram sobre nós. A
industrialização da agricultura é um desses envolvimentos, e pode bem não ser o último deles.
NOTAS
1 – Se não fosse assim, tanto ele próprio como o mundo perecível das formas seriam inteiramente irreais, uma
mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de
existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.
Sabedoria Perene 3 81
Lord Northborne
2 – Uma explosão populacional não é necessariamente ou somente resultado de mais ou melhor comida, habitação,
ou atenção médica; por exemplo, nenhuma destas condições estiveram particularmente presentes no início da
revolução industrial britânica. Elas podem sem dúvida ajudar a sua concretização assim que esta começa, mas não
são a sua causa.
3 – Curiosamente – ou talvez não tão curiosamente – os novos desejos são ao mesmo tempo os mais dispendiosos e
os mais absurdos, por exemplo, televisão a cores, viagens cada vez mais rápidas e a colocação do homem na lua.
Expansão pela expansão é a máxima; apenas pode ser alcançada mais rapidamente à custa de terceiros; quando
todos a têm como objectivo, por toda a parte se exacerbam rivalidades entre interesses sectários, nacionais ou
outros, e a preparação para a guerra, “fria” ou “quente”, torna‐se de longe a maior consumidora de recursos.
4 – N.E.: Em 1870, entre 70% a 80% da população dos Estados Unidos trabalhava na agricultura; actualmente, essa
percentagem deverá estar situada perto dos 2% a 3%. Em França, apenas cerca de 3,5% da população activa
trabalha directamente com a agricultura. No Reino Unido, dados recentes indicam um rácio de 0,5%!
5 – Por exemplo, a agricultura bretã de hoje é absolutamente dependente de maquinaria e das suas peças
suplentes, combustíveis, lubrificantes, electricidade e outros requisitos, muitos dos quais de origem estrangeira. A
agricultura intensiva com contornos modernos seria impossível sem drogas protectoras e curativas e suplementos
para alimentos naturais; e enquanto a pressão da economia dos dias de hoje contínua, os padrões de produção das
colheitas actuais não seriam alcançados sem fertilizantes químicos e controladores de ervas daninhas. Foi calculado
que para manter um homem a tempo inteiro na agricultura na Grã‐Bretanha são necessários dois homens
empregados a tempo inteiro na indústria.
6 – Têm‐se comprovado em experiências que os materiais utilizados são inofensivos no curto prazo, mas temos
direito a esperar que a nossa comida seja algo melhor que apenas inofensiva.
7 – N.T.: “Rat‐race”. Tem sido descrito como “fazer aos outros antes que o façam a ti”.
8 – Estudos de populações vivas podem contudo ser informativos. Ver, por exemplo, em The Wheel of Healht por
Dr. G.T. Wrench (Nova Yoruqe: Schoken Books, 1972), um estudo da comunidade Hunza, população do noroeste da
Índia, e em Farmers of Forty Centuries por F. H. King (Emmaus, PA: Rodale Press, 1973), um estudo sobre os
camponeses chineses.
9 – Se alguém se quer proteger da tendência contemporânea e influências que considere perniciosas e produzir a
sua própria comida na sua própria terra à sua maneira, e com todo o direito de assim o fazer, não terá qualquer
ajuda e muito pouca empatia de outrem. Este deve estar numa posição para enfrentar um isolamento económico
que na prática é extremamente difícil de concretizar. É ainda mais difícil de concretizar isto isoladamente da
influência da civilização moderna noutros domínios e, a não ser que este isolamento seja possível, o propósito do
isolamento económico será apenas parcialmente concretizado.
10 – Ver nota 8. Os textos referidos são igualmente informativos em relação à alimentação de populações densas a
partir de pequenas áreas de terreno arável.
11 – Quando falamos da “lei da selva”, estamos apenas a olhar para o aspecto rigoroso da ordenação divina. É
inegável que os animais selvagens são responsáveis por infortúnios que nos parecem cruéis e mesmo
desnecessários, mas é dúbio se estes são piores do que os de responsabilidade humana, mais particularmente
porque os problemas criados pelo homem são mais variados, subtis e persistentes. É evidente, nas observações
mais ocasionais, que os animais selvagens parecem quase sempre estar vigorosos e bem nutridos, ou então mortos.
O método da Natureza para eliminar doenças e lesões, e com estas o sofrimento que causam, pode parecer duro
aos nossos olhos, mas são inegavelmente eficientes; e onde a apreensão consciente da morte é, tanto quanto
podemos observar, ausente ou apenas momentânea, esta não poderia ser mais misericordiosa, dado que a dor
numa forma ou noutra é inevitável num mundo que é necessariamente imperfeito. Certamente os animais
selvagens parecem mais felizes que nós.
12 – Muitas das práticas ancestrais tornaram‐se de facto superstições no sentido próprio da palavra, e talvez por
isso não pareçam ser eficazes (um exemplo poderia ser a regulação do semeio e plantação seguindo as fases da
lua). A atitude do homem ancestral face à Natureza foi provavelmente uma de aceitação mais ou menos não
analítica, acompanhada por um sentido de reverência pela maravilhosa obra de Deus, uma reverência hoje em dia
muitas vezes caricaturada como “adoração da natureza”.
Sabedoria Perene 3 82
A agricultura e o destino humano
13 – Uma inquisição excessiva concentra a atenção em matérias cuja complexidade externa cria a ilusão de
compreensão, embora na realidade estas estejam apenas relacionadas com aparências e sejam por isso superficiais.
14 – Poderemos interrogar‐nos, qual é a realidade por detrás das teorias da astronomia moderna de um universo
em expansão? Até que ponto não reflectem elas as tendências puramente superficiais da mentalidade moderna? É
perfeitamente possível que o universo físico nos pareça em expansão quando visto de um ponto de vista particular,
necessariamente limitado mas não necessariamente ilegítimo; enquanto que de um ponto de vista distinto, não
menos legítimo mas talvez menos limitado, poderia aparentar ser de outra forma.
15 – Poderia apenas ser enquadrada segundo algo a que os biólogos chamam de mutação; mas seria uma mutação
de uma magnitude e universalidade de tal ordem que o nosso conhecimento presente não conhece nenhum
paralelo.
16 – A nossa associação com plantas e animais é de dependência mútua. A nossa dependência das plantas para a
sobrevivência é total, a nossa dependência nos animais é menor embora seja real o suficiente; em ambos os casos,
o aspecto quantitativo é mais evidente que o qualitativo, embora ignoremos o último a nosso risco. As plantas e os
animais, por outro lado, excepto as espécies cultivadas, não estão fisicamente dependentes de nós da mesma
maneira; poderiam sobreviver se desaparecêssemos. Do ponto de vista científico, dizer que a dependência das
plantas e dos animais no homem é de ordem espiritual nada significa, pois a ciência não está equipada para
apreender conhecimento desta ordem; isto é contudo verdade, e por isso deve ser afirmado. A função da
humanidade é essencialmente espiritual e mediadora e é exercida em nome de toda a criação. Quando é
negligenciada, toda a criação sofre. Assim sendo, as plantas e os animais serão testemunhas contra esta geração de
homens no dia do julgamento final, apesar de todas as nossas sociedades de conservação da Natureza e de
prevenção da crueldade.
17 – Que o curso dos eventos nos dias de hoje seja feito de uma sucessão de “crises” cada vez mais frequentes é
provavelmente mais significativo do que a maioria das pessoas parece pensar.
18 – A cosmologia hindu toma total consideração da sucessão de ciclos através dos quais cada “mundo” e cada
humanidade passa, a caminho da sua final reintegração no Absoluto. O primeiro capítulo do Livro do Génesis e do
Novo Testamento (em particular o capítulo vinte e quatro do Evangelho de São Mateus e do Livro de Revelação)
aparentam estar preocupados apenas com o ciclo que a presente humanidade está envolvida; contudo, uma vez
que cada ciclo, pequeno ou grande, é uma manifestação das leis universais, todos os ciclos são basicamente
análogos; a afirmação bíblica é, assim, de aplicação mais genérica do que à primeira vista possa aparentar. Noutras
religiões, o ponto de vista pode ser diferente, mas em todos os casos existe uma adaptação de uma verdade
completa a uma mentalidade particular das pessoas a quem a mensagem é dirigida. A mensagem é essencialmente
sempre a mesma.
Sabedoria Perene 3 83
Lord Northborne
Sabedoria Perene 3 84
O protesto da terra
por Gai Eaton
Traduzido por Miguel Conceição
Quando a terra tremer com um grandioso tremor, e a terra ceder aos seus
fardos, e o homem gritar “O que a aflige?” – Nesse Dia ela contará as suas
histórias, pois o seu Senhor a inspirou. Nesse Dia a humanidade sairá em
grupos separados para lhe serem mostradas as suas acções. Quem quer que
tenha feito o peso de um átomo de bem o verá nesse momento, e quem quer
que tenha feito o peso de um átomo de mal o verá nesse momento.
Alcorão 99:1‐8
Como reforço às implicações desta curta sûra, o Profeta terá dito que, quando nascer o Último
Dia, a própria terra testemunhará tudo o que o homem fez. Poder‐se‐ia dizer que deixamos as
nossas impressões digitais em tudo o que tocamos, e que estas permanecem bem para lá do
momento em que seguimos o nosso caminho. Esquecemos facilmente o passado, mas ele não
desaparece nem pode ser eliminado, a não ser que Deus – sob o Seu Nome “O Eliminador” (al‐
‘Afû) – decida eliminá‐lo dos nossos registos. Mas como pode esta terra, sobre a qual
caminhamos tão desrespeitosamente, testemunhar contra nós? A resposta corânica diz que
Deus a inspirará a revelar os seus segredos, mas perguntamos ainda: como poderá isto
acontecer? Existem várias respostas possíveis para esta questão, mas irei sugerir apenas uma.
Entre os nomes divinos revelados no Alcorão está al‐Hayy, o “Sempre‐Vivo”ou, simplesmente,
“Vida”. Dado que o Criador dispensa os Seus atributos a tudo o que Ele cria, não existe nada na
existência que não possua um tipo de vida, mesmo que não compreendamos em que medida
tal se verifica. Tal como todas as outras distinções rígidas que se aplicam a este mundo, a
distinção entre o animado e o inanimado é apenas provisória, de modo algum absoluta.
Isto leva‐nos para o problema da terminologia e para a forma como o significado das palavras
se altera. A palavra “psychic”1 passou a estar associada a adivinhos, a fantasmas e a coisas que
fazem barulho durante a noite. No entanto, quando lhe é anexado um sufixo e se torna
“psicologia”, sabemos de imediato que não estamos a lidar com magia mas sim com a ciência
da alma, tal como praticada pelos cientistas que nela não acreditam. O reino da psique, o
“reino subtil” como é por vezes apelidado, não está aberto à percepção dos sentidos, mas isto
não significa que seja sobrenatural. É a face invisível do mundo natural. Para os muçulmanos, é
também o reino dos jinn, esses seres misteriosos que vivem em comunidades e que são, tal
como nós, capazes da virtude e do vício. Toda a natureza tem uma face invisível, um aspecto
“subtil” que quase sempre ignoramos, apesar de, por vezes, nos referirmos ao espírito de um
local sem compreender que esse “espírito” é tão real como o local que se apresenta
fisicamente. É neste lado escondido do mundo natural que deixamos a nossa impressão
inerradicável.
Sabedoria Perene 3 85
Gai Eaton
Não existem lugares onde nos possamos esconder. Estamos, como nos relembra de diversas
formas o Alcorão, rodeados de uma hoste de testemunhas, desde Deus e os Seus anjos até à
terra que pisamos. Não lhes conseguimos esconder os nossos segredos. Por vezes interrogo‐
me se será por essa razão que os árabes tendem tanto para o secretismo. Sabendo que são
observados de todo o lado, de cima e de baixo, estimam a única privacidade que lhes resta
colocando um véu discreto entre eles e o seu próximo, quer seja homem ou mulher. No outro
extremo, os ocidentais actuais confessam tudo avidamente, não apenas aos seus amigos mas
também na televisão e na imprensa. Crendo‐se sós, murados e inobservados, eles sentem a
necessidade de se auto‐exporem como forma de escapar ao isolamento.
No entanto, o rasto que deixamos atrás de nós na terra é apenas um dos lados da relação
recíproca que temos com tudo o que nos rodeia. Não somos estanques mas sim como que
porosos. Embebemos elementos de tudo quanto vemos, ouvimos ou tocamos, os quais
absorvemos na nossa substância. Quando tratamos o mundo natural como um objecto a ser
explorado e conquistado, danificamo‐nos também. Sem dúvida, os ambientalistas não deixam
de ter razão quando predizem que o nosso abuso da terra terá consequências desastrosas para
a humanidade, mas essa deveria ser a menor das nossas preocupações. As consequências
ocorrem a vários níveis; quanto mais elevado o nível, mais mortais podem elas ser. O Alcorão
ordena: “Não geres confusão na terra após este justo comando.” Quando diz também que a
terra e tudo o que nela existe é criado para nosso uso, isto não implica uma transferência de
propriedade; é uma incumbência a nós delegada, e respondemos perante o “Senhor de todas
as coisas” pelo nosso ministério. O muçulmano é constantemente relembrado, quer no
Alcorão, quer nos ditos preservados do Profeta, que a ganância e o desperdício estão entre os
maiores pecados. Podemos usar aquilo que nos é disponibilizado para o nosso sustento, mas
nada mais; e mesmo esse pouco não é mais do que um roubo se abandonámos a nossa função
humana e decidimos renunciar à oração universal que conduz toda a criação de regresso à sua
origem.
O muçulmano é assegurado de que toda a terra é para ele uma mesquita. As construções
emparedadas para as quais é chamado para a oração são apenas uma conveniência. Os
campos, as florestas e o deserto são igualmente adequados como locais de oração e, assim,
exigem o mesmo respeito que é prestado a uma mesquita convencional. A ligação com o céu
pode ser estabelecida em toda e qualquer parte (“Para onde quer que te vires, aí está a Face
de Deus”). Uma das principais características do Islão está expressa na palavra árabe adab, que
significa “bons modos”, “cortesia” ou “comportamento correcto”, e que anda a par com a
dignidade que um muçulmano deve demonstrar em todas as circunstâncias. O Vice‐regente de
Deus na terra não é, com efeito, uma figura menor, quer vista uma túnica ou uns trapos.
Mostrar bons modos, não apenas para com os nossos semelhantes mas também para com
toda a criação de Deus, faz parte da fé, pois a marca da Sua mão está em toda a parte. O
homem ou a mulher que se levanta, se dobra e se prostra na natureza é um membro de uma
Sabedoria Perene 3 86
O protesto da terra
congregação universal, que se junta numa oração universal. Pois diz o Alcorão, “Tudo o que
está nos céus e na terra glorifica Deus”.
Este é um tema tão recorrente na revelação corânica que não podemos deixar de ficar
espantados com o facto de tantos muçulmanos – com a excepção dos sufis – o ignorarem.
Não viram que tudo o que está nos céus e na terra glorifica Deus, e os pássaros no seu
voo? Na verdade, Ele conhece a adoração e o louvor de cada um, e Deus está ciente do
que fazem.
Para mais, Ele “rejeita não cunhar a similitude mesmo de uma melga”. Quão maior a similitude
de um leão ou de um cisne, de uma montanha ou de uma árvore. “Vê! Na criação dos céus e
da terra, e na diferença entre o dia e a noite (…) e na água que Deus envia do céu,
revivificando a terra depois da sua morte, e dispersando todo o tipo de animais, e na
ordenação dos ventos, e nas nuvens obedientes entre o céu e a terra: (nisto) estão sinais para
os homens com bom senso”. Tudo o que Ele criou na terra “com diferentes cores” nos
transmite uma mensagem. Então: “Olhem para as marcas da misericórdia de Deus.” Elas estão
em toda a parte.
As belezas da terra – os seus “ornamentos” – são, diz‐nos o Alcorão, uma “nota para a
humanidade”, uma nota para aqueles que estão dispostos a recordar a sua origem e o seu fim.
Para estes, o mundo natural cintila com luz, mas seria escuro se não fosse apreendido pelo
homem como ser central da criação, isto é, como ligação entre o que está em cima e o que
está em baixo. Aqui existe de novo reciprocidade. Este mundo não é uma aglomeração
ocasional de átomos materiais, desligados do nosso ser interior. Este mundo dá e recebe. Nós
recebemos e damos. Existe intercâmbio e mutualidade; o mundo objectivo e a subjectividade
humana podem ser comparados a dois círculos que se interceptam ao invés de flutuarem,
independentes um do outro, separados e divididos. Este facto está desde logo implícito na
palavra “cosmos” (em oposição a universo, um termo neutro sem quaisquer implicações). O
cosmos é, por definição, um todo ordenado, organizado e harmonioso, onde as partes são
interdependentes. Deste modo, adquire um significado e, tal como sugere a palavra
“cosmética”, é belo.
Mas apreender, mesmo que de uma forma vaga, os “sinais de Deus” à nossa volta – aqueles
sinais que o Alcorão refere repetidamente – exige os olhos de uma criança preservados na
maturidade. É dito que o Profeta rogou em oração: “Senhor, acresce‐me em espanto!” É assim
que uma criança vê o mundo, puro como acabado de criar pela mão de Deus e repleto de
maravilhas. No entanto, com a passagem dos anos e das ansiedades que o tempo impõe, essa
visão esmorece; por outro lado, nas palavras do Alcorão: “Não são os olhos que cegam, mas os
corações nos peitos que cegam.” Imbuído de fé, o coração ainda pode recuperar a sua visão, a
sua visão interior2. Depois da chamada para a oração, quando os muçulmanos se alinham em
Sabedoria Perene 3 87
Gai Eaton
filas apertadas atrás do seu Imam, o líder da oração, eles são chamados a gastar alguns
instantes na renúncia de todas os cuidados do dia e de todos os assuntos urgentes que
prenderam a sua atenção, a virar a sua face para o Criador e a dirigirem‐se a Ele. Por vezes o
Imam oferece‐lhes alguns concelhos: “Rezem como se esta fosse a vossa última oração!” E
assim será para os que estão destinados a morrer antes da próxima chamada para a oração,
mas poder‐se‐ia igualmente dizer: “Rezem como se esta fosse a vossa primeira oração!”. Cada
vez que nos voltamos para Deus é um novo começo, um renascer, e o mesmo deveria suceder
quando olhamos, com os corações despertos, para o mundo que nos rodeia.
Ao agirmos assim devemo‐nos lembrar que nada é o que parece, ou melhor, que nada é
apenas aquilo que parece. Tal como com os versos do Alcorão (no árabe, usa‐se a mesma
palavra para versos e para “sinais” na natureza), existe um significado literal e, ao mesmo
tempo, um significado mais profundo. Os versos são sagrados, tal como o são os “sinais”. É
aqui que chegamos a um dos sintomas mais perigosos da alienação; a perda do sentido do
sagrado no mundo moderno, uma perda – uma privação – que afecta tanto a Umma
muçulmana como o ocidente. O Alcorão condena aqueles que separam aquilo que Deus
juntou, e a fragmentação que vemos hoje é um exemplo claro desta separação de conexões. O
crítico francês da nossa civilização tecnológica, Jacques Elull, referiu que, no passado, a
experiência mais profunda do sagrado era o seu contacto imediato com o mundo natural. É
praticamente impossível compreender totalmente o que é a religião como tal – ou os grandes
mitos que testemunhavam a unidade do cosmos – quando a natureza se tornou remota e
inteiramente “outra”. Como diz Elull, o sentido do sagrado decai quando deixa de ser
rejuvenescido pela experiência. A percepção dos habitantes das cidades torna‐se seca devido à
falta de suportes na sua nova experiência com o mundo artificial da tecnologia urbana.
A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural é apenas um aspecto da
perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O
esquecem não mais podem sentir‐se em casa na criação. Eles assumem o papel de bactérias
que acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice‐regente de Deus
na terra” deixa de ser o curador da natureza e, ao perder a sua função, passa a ser um
estranho que não reconhece os marcos na terra nem se ajusta aos costumes deste lugar;
alienado, apenas o consegue ver como matéria‐prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas
e conforto na exploração, mas não a felicidade. Ele nunca poderá cantar como o poeta persa
Sa’di:
Eu estou radiante com o cosmos,
pois o cosmos recebe a sua alegria através Dele;
eu amo o mundo,
pois o mundo a Ele pertence.
Sabedoria Perene 3 88
O protesto da terra
Somos, segundo o Alcorão, “os pobres” em relação a Deus, necessitados desde o instante do
nascimento até ao fim das nossas vidas, e outro dos Seus Nomes corânicos é al‐Kāfī, “Aquele
que satisfaz todas as necessidades”. A Causa desta fome, inerente à nossa substância como
seres humanos, é a necessidade Dele, por mais que esteja encoberta ou desviada pelas paixões
terrenas. Uma vez que Ele é o único e o derradeiro detentor da capacidade de satisfazer o
desejo, o facto de Lhe voltarmos as costas implica estarmos em perpétua insatisfação e, em
busca do alívio dos nossos apetites, exceder todos os limites. Até ao desenvolvimento da
tecnologia este facto penalizava apenas o transgressor e pouco mal fazia à terra. Actualmente,
o nosso alcance foi inexoravelmente aumentado e tornámo‐nos os grandes destruidores. Um
dos infernos budistas é habitado por enormes criaturas que outrora foram homens e mulheres
devastados pela ganância, mas que agora possuem bocas do tamanho de cabeças de alfinete.
Rodeados por um festim de comida, não conseguem comer mais do que o mais ínfimo dos
caranguejos.
Hoje, quer sejamos muçulmanos ou cristãos, parece que perdemos a chave da linguagem dos
“sinais”, a linguagem de Deus. Ela tornou‐se incompreensível e irrelevante. Isto é
particularmente perigoso para os muçulmanos, para quem o Alcorão se tornará um livro
fechado caso as constantes referências ao mundo natural como um tecido de “sinais” deixem
de coincidir com as suas experiências ou de tocar os seus corações. Esse mundo, quando visto
da janela de um veículo motorizado ou de uma altura de 9000 metros, nada tem para nos
dizer, mesmo que seja uma bela imagem. Adicionalmente, uma vez que nos dias de hoje tudo
tem que ser “esmiuçado”, é típico da mente moderna interrogar‐se: O que significam
exactamente esses “sinais”? Se eles pudessem ser expressos por palavras seriam redundantes.
Eles tocam‐nos a um nível mais profundo do que o discurso articulado, tal como acontece com
o Alcorão que, quando recitado para aqueles que desconhecem a língua árabe, ainda comove
os seus corações mesmo que dele nada compreendam em termos de linguagem humana.
Então Deus tem à sua disposição duas linguagens, uma composta por palavras e outra por
“sinais”, apesar de também poder ser dito que, na prática, Ele tem três meios de comunicação,
sendo este terceiro os nossos destinos pessoais. Também estes contêm mensagens caso
estejamos preparados para as compreender, e mesmo o mais árido dos cépticos, quando
devastado por um terrível infortúnio, pergunta: “Porquê? Porquê eu?” Seria expectável que
ele pensasse que a vida não teria qualquer significado mas, no entanto, ele acredita ou sabe no
seu coração aquilo que a sua mente nega.
Falar do mundo natural é falar de beleza. Uma vez que “Deus é belo”, a beleza deve de alguma
forma estar universalmente presente, uma vez que Ele está presente em toda a parte. O dito
popular que afirma que “a beleza está no olho de quem vê” é uma daquelas meias verdades
que tanto pode iluminar como enganar, dependendo do nosso ponto de vista. Um
determinado indivíduo ou uma determinada cultura encontrará o sagrado em lugares onde
outros não o poderão ver, enquanto estes outros o encontraram noutras partes. O mesmo se
aplica à percepção da beleza. Isto não a torna menos real ou menos objectiva. Mas o dito
Sabedoria Perene 3 89
Gai Eaton
profético “Deus é belo, Ele ama a beleza” é uma afirmação relacionada com a natureza da
Realidade e indica algo de muito importante. Tal como o bem e o mal estão a diferentes níveis
– o primeiro mais perto do Real que o último – a beleza e a fealdade pertencem a ordens
diferentes. A fealdade não tem par, como o frio e o calor, o branco e o preto. Ela representa o
estragar da beleza, o desfazer daquilo que tinha sido bem feito. Ela pode ser comparada a uma
nódoa num tecido, e pertence à classe de coisas que, diz‐nos o Alcorão, duram por um curto
espaço de tempo e depois se extinguem. É esta a razão pela qual um muçulmano, quando
encontra algo feio ou impróprio, tende a desviar o olhar, não porque deseje negar a sua
existência mas sim porque nem tudo o que existe merece atenção. Existe na tradição islâmica
uma história de Jesus que toca neste ponto. Ele caminhava com os seus discípulos quando
passaram por um cadáver de um cão. “Como fede!” – disseram os seus companheiros. Jesus
respondeu: “Como são brancos os seus dentes!
O que é a beleza da natureza senão um acto de adoração, na medida em que reflecte a Beleza
divina? “Não vêem”, pergunta o Alcorão, “que tudo o que existe nos céus e tudo o que existe
na terra presta adoração a Deus, como o sol e a lua e as estrelas, as montanhas e as árvores e
os animais…?” Existe uma história turca de um guia espiritual que enviou os seus discípulos a
apanhar flores para a casa. Todos, à excepção de um, regressaram com ramos das mais belas
flores que encontraram. Esse, no entanto, tardou muito a chegar, e quando regressou trazia na
sua mão apenas uma flor já muito esmorecida. “Quando parti para apanhar flores” – disse –
“todas elas cantavam os louvores do seu Criador e não me atrevi a interrompê‐las. Finalmente,
vi uma que tinha acabado a sua canção, e foi essa precisamente que lhe trouxe.” Seria um erro
olhar para esta pequena história como mera divagação poética. O sangue que percorre os
nossos corpos pode ser fecundo para mitos e poesias, mas mantém‐se o facto de ter uma
importante função prática. Quando o Alcorão se refere a esta adoração perpétua e universal
está a dizer‐nos, nem mais nem menos, o que acontece, a realidade factual da situação. A
nossa percepção subjectiva – ou incapacidade para tal – não altera os factos.
Se não existe nada na existência que é apenas e exclusivamente aquilo que parece ser, então
tudo tem a sua importância particular. Posso imaginar alguém dizer: “Isto é demais! Direitos
da mulher, direitos dos animais, até direitos das plantas, e agora falam‐me também de direitos
das pedras! Onde acabará?” Não tem fim. Essa é a única resposta possível. Não fomos nós que
criámos o mundo, ele não é nosso. Não podemos, relembra‐nos o Alcorão, sequer criar uma
mosca. Este vasto livro de imagens, repleto de “sinais” de Deus, é aquilo que é. As aparências,
como nos é dito vezes sem conta, são enganadoras e, se flutuamos apenas à superfície do
nosso mundo, estaremos bem equivocados. Existe sempre algo mais, e mais e ainda mais, até
mergulharmos nas profundezas e descobrirmos – por detrás dos “setenta mil véus de luz e de
trevas” – a Face de Deus. A era moderna é frequentemente condenada pelo seu
“materialismo.” Talvez não seja suficientemente materialista, isto é, ela já não procura, para
além da superfície inconstante dos objectos materiais – essas nuvens em constante geração e
regeneração – aquilo que eles velam e revelam.
Sabedoria Perene 3 90
O protesto da terra
Outros dois nomes pelos quais Deus Se definiu a Ele mesmo no Alcorão são al‐Muhīt, “Aquele
que tudo abraça” ou “Aquele que tudo envolve”, e az‐Zāhir, que significa “o Exterior”. Assim,
em última análise e por trás de todas as aparências, Ele é o nosso “ambiente” e não existe
outro. Mas esta é uma afirmação intelectual que pode parecer privar as coisas que vemos e
tocamos da sua devida medida de realidade. Enquanto estamos nesta vida, situados por entre
os “véus”, elas são a única realidade que conhecemos, mas que reflectem à sua maneira as
realidades superiores que se mantém escondidas, demasiado luminosas para a nossa
percepção. A nossa principal preocupação deveria ser o seu significado, não a sua estrutura
material. O mecanismo de um relógio pode ter interesse prático, mas o seu propósito é marcar
o tempo.
Os próprios sons da natureza podem ser adicionados a este universo de significados, esta
abundância de comunicação entre o Criador e a criação. Lembro‐me de um certo Sheikh que
estava prestes a dar o seu sermão quando subitamente se ouviram trovões, os quais se
mantiveram durante um longo período. Ele manteve‐se sempre silencioso, mesmo depois dos
céus terminarem o seu discurso. O que poderia ele ter acrescentado? Mas devemos ser muito
pacientes e atentos para captar, pela audição e pela visão, essa nota de louvor universal.
Quando um muçulmano está em oração nas primeiras horas do dia ou no acto de lembrança
de Deus, o cantar de um pássaro, o bater das ondas do mar ou o cair da chuva não o
perturbam, contribuem sim, pelo contrário, para a sua lembrança. Mas o barulho de carros ou
de máquinas introduz na harmonia da sua adoração uma discórdia com a qual é obrigado a se
gladiar.
A oração e a contemplação, suportadas por uma ambiência cósmica que, de certa forma,
anseia ser vista, ouvida e compreendida, são centrais para a vida religiosa. Mas existe ainda a
participação, sem a qual nos mantemos distantes do mundo natural. Existem crianças na
Europa e na América que não estão cientes do facto de que as embalagens nas prateleiras dos
talhos dos supermercados são a carne de criaturas existentes, e que os vegetais, dos quais são
lavados todos os vestígios de terra, cresceram em vastos campos e que levaram o seu tempo a
crescer. A paciência do agricultor é inimaginável para uma geração cada vez menos paciente.
As suas necessidades são satisfeitas em relação aos ponteiros de um relógio, e não pelas
estações ou pela disciplina imposta pelo clima. Elas estão “desligadas”3; e esta expressão tem
um significado profundo. Representa distanciamento, separação e – uma vez mais – alienação.
As estrelas são encobertas pelas luzes das cidades, a sua luminosidade é oculta e a sua
mensagem ofuscada. Aqui não é apenas a contemplação mas também a participação que foi
perdida. “Foi Ele”, diz o Alcorão, “que vos estabeleceu as estrelas para que se pudessem
orientar no meio da escuridão da terra e do mar”. Já não precisamos delas. Elas podem ser
deixadas aos especialistas que falam em anos‐luz e que nada têm para nos oferecer que nos
possa ajudar no caminho por entre a escuridão que penetrou nos nossos corações e nas nossas
mentes.
Sabedoria Perene 3 91
Gai Eaton
Isto, claro está, é “progresso”, e é certamente conveniente, apesar de uma das ironias da
situação ser o facto dos nossos contemporâneos no ocidente, libertos do trabalho que lhes era
requerido no seu encontro com o mundo natural e da sua dependência dele, terem agora de
trabalhar mais do que nunca como “mais um” na máquina industrial ou burocrática, de forma
a poder suportar o estilo de vida a que se julga ter “direito”. Este trabalho não oferece
qualquer alimento espiritual. Não se espera que o faça. Não promove contacto com qualquer
nível de realidade e nenhuma participação com os “sinais” que indicam o caminho e que nos
recordam quem somos. Seria necessário um esforço quase sobre‐humano para nos
relembrarmos que somos os “Vice‐regentes” de Deus, responsáveis pela nossa província tal
como o agricultor é responsável pela sua colheita e o seu gado. Nós mantemos a roda a girar,
mas ela gira sem qualquer outro propósito que não seja manter o comboio de alta velocidade
em linhas que nos levam para lugar nenhum. Eventualmente atingirá as protecções, os limites
invisíveis que demarcam a nossa existência terrena.
O muçulmano procura viver dentro dos limites da Sharī’ah, a estrada ou o trilho que o leva
com segurança à nascente e, assim, para além de todos os limites, ao Paraíso e à satisfação de
todas as necessidades. Por sermos humanos, somos livres para vaguear fora dessa estrada. A
restante criação não dispõe desta liberdade. Segundo a perspectiva islâmica, os animais e as
plantas, as montanhas e os oceanos, têm cada um a sua própria Sharī’ah. Eles estão
inextrincavelmente ligados à função que lhes foi decretada. Eles não podem ser diferentes
daquilo que devem ser e aqui reside uma lição para a humanidade. O nosso ambiente obedece
a Deus e encoraja‐nos a agir de igual modo. As rochas e os rios estão sujeitos às “leis da
natureza”, os animais seguem os seus “instintos”; esta não é mais do que uma forma de
descrever o Decreto divino que governa a sua existência. Eles não podem pecar, não podem
ultrapassar limites, e este facto expõe claramente o absurdo patente na afirmação
frequentemente endereçada por juízes instruídos a criminosos: “não passa de um animal!”
Como criaturas humanas, podemos ser melhores ou piores do que os animais; no entanto, não
podemos existir ao seu nível uma vez que não estamos sujeitos às leis que dirigem e limitam as
suas vidas. “Não existe um animal na terra”, diz o Alcorão, “nem um pássaro que voa com duas
asas, que não sejam comunidades como vós” (ou “à vossa semelhança”); e o verso termina: “e
para junto do seu Senhor eles serão reunidos”. Não nos é permitido juntar a uma ou outra
dessas comunidades, mas podemos, caso nos afastemos da Sharī’ah que nos foi atribuída,
tornar‐nos não apenas sub‐humanos mas também “sub‐animais”. Existe uma grande confusão
na mente ocidental no que respeita à espécie animal. É difícil que passe um dia sem que se
oiça alguém afirmar: “apesar de tudo, somos apenas animais.” Isto não se trata de uma
opinião mas sim de uma afirmação ideológica relativa à origem e ao estatuto do ser humano.
Ela proclama uma aderência inquestionável à teoria darwinista e soa muitas vezes a um slogan
político. O facto mais curioso é que as implicações desta teoria são ignoradas. Pelo menos por
enquanto – embora as coisas possam mudar – os homens e as mulheres são tratados de forma
bem diferente dos animais. Não nos ocorre levar um porco a tribunal, como por vezes
acontecia na Idade Média, e acusá‐lo de um crime. O dono de um animal é acusado por não
Sabedoria Perene 3 92
O protesto da terra
ter “abatido” o mesmo se mortalmente doente; a mesma pessoa será acusada de homicídio
caso o faça a um paciente terminal. A maior parte das pessoas crêem que não somos mais nem
menos do que primatas inteligentes (ou assim lhes é dito), mas ficam horrorizadas quando
seres humanos são tratados como se fossem macacos.
Da mesma forma, creio que existe também confusão, apesar de outro tipo, na mente
muçulmana. Não existe nenhuma outra religião que saliente tanto o cuidado no tratamento
dos animais como o Islão, no entanto, os muçulmanos têm uma péssima reputação neste
aspecto (tal como tinham os cristãos até bem recentemente). Se representarmos uma religião
– uma qualquer religião tradicional – por um círculo ou uma esfera, é provável que os seus
aderentes absorvam e pratiquem apenas um segmento da sua totalidade. Eles irão também
enfatizar este segmento, como que para preencher o espaço vazio, e ficar cegos para tudo o
que ignoraram. Poderíamos dizer que a sua religião é demasiado grande para eles. Não é
possível colocar um oceano num copo. O facto de diferentes pessoas da mesma Fé escolherem
diferentes segmentos para dedicaram a sua atenção exclusiva é uma das razões para os
conflitos no seio da religião, tal como se verifica na Umma islâmica.
Uma vida correcta para um muçulmano é vivida em imitação do exemplo do Profeta, a qual é
seguido o mais fielmente possível em função do que as circunstâncias permitirem. É neste
exemplo, nos actos e nos ditos do Mensageiro de Deus, que encontramos o maior número de
referências ao bem‐estar dos animais. Se forem levadas seriamente – e como poderão os
muçulmanos fazer o contrário? – elas têm graves implicações para aqueles que descuidam o
cuidado com os seus animais. Não só existem as famosas histórias da mulher que foi enviada
para o inferno por ter deixado um gato fechado até morrer à fome, ou da prostituta a quem
lhe foram perdoados os pecados por ter dado água a um cão que estava a morrer de sede, mas
também um pequeno número de incidentes relatados onde é enfatizado o mesmo princípio.
Quando o Profeta viu um burro que havia sido ferido na face, gritou: “Deus, amaldiçoa aquele
que o feriu”. Um homem que estava prestes a matar uma cabra para seu sustento foi
severamente repreendido por permitir que o animal o visse a afiar a faca. Um antigo profeta
foi mesmo repreendido por Deus por ter incendiado um formigueiro em resultado de ter sido
picado por uma formiga – “Destruíste uma comunidade que Me glorificava” – e, de acordo
com outro dito, existe uma recompensa no paraíso para todo aquele que mostra gentileza
para com uma criatura que possui um “coração que bate”. Os livros da lei dizem‐nos como
actuar caso encontremos uma cobra venenosa no nosso jardim. Ela deve ser convidada a sair.
Se regressar uma segunda vez deve ser de novo avisada, mas se voltar uma terceira vez pode
ser morta.
O Alcorão diz‐nos: “O vosso Senhor inspirou a abelha e disse‐lhe: escolhe locais nos montes e
nas árvores e no que está construído; depois, come todo o tipo de frutos e segue
humildemente os modos que o teu Senhor tornou suaves”; por outras palavras, segue a tua
Sharī’ah, pois esse é o teu caminho e o teu destino. Isto sublinha de novo a perspectiva
Sabedoria Perene 3 93
Gai Eaton
islâmica de que cada uma das diversas “comunidades” não‐humanas tem uma relação
particular com o seu Senhor, mas o Senhor é um; tanto o nosso como o delas. As relações
diferem e portanto também diferem os caminhos, mas o objectivo é o mesmo. É a interacção
harmoniosa de todos os componentes do cosmos, animados e inanimados, que reflecte de
inúmeras formas diferentes a unidade do Real. A morte de um animal por outra razão que não
para alimento, e mesmo neste caso apenas o mínimo permitido, e mesmo o corte
desnecessário de uma árvore ou o arrancar de uma planta é, digamos assim, contra natura.
Excede, por motivos de ganância, os limites estabelecidos para a humanidade. Não há aqui
forma de desculpar os luxos da civilização moderna.
Não fosse pela Misericórdia divina, espalhada como chuva por toda a criação, e a prontidão de
Deus em desculpar todos os pecados se seguidos de um sincero arrependimento, e estaríamos
num mau caminho; mas o que mais importa é ter estes princípios sempre em mente, e isso
apenas é possível se observarmos aquilo que poderíamos designar por Principal Directiva do
Islão: a constante “lembrança de Deus”. Tudo o que precisamos saber e tudo o que nos é
pedido está incluído nesta lembrança; é o escudo contra a tentação e o estímulo para nos
mantermos no “caminho recto” que nos foi tornado suave. Ao escolher segui‐lo, estamos a par
com os animais, as plantas e a própria terra que, aí e apenas aí, não terá motivo para
protestar.
NOTAS
1 – N.T.: Mantivemos a palavra original inglesa para ajudar a compreensão do texto. No entanto, a palavra toma
aqui o significado de vidente ou médium.
2 – N.T.: O autor joga aqui com as palavras inglesas sight e insight. Segundo a Tradição, o coração é o local onde
reside o Intelecto (nous) e, por conseguinte, esta “visão interior”, o “olho do coração”, não é mais do que o
conhecimento intuitivo conferido pelo despertar do Intelecto.
3 – N.T.: Da expressão inglesa “out of touch”.
Sabedoria Perene 3 94
A nossa mãe terra
por Oren Lyons
Traduzido por Diana Morais
Há mil anos atrás, um homem chegou do oeste. E ele chegou através da água, e ele trouxe
uma grande mensagem de paz. Ele chegou através da água, o grande lago que vocês agora
chamam de Ontário; ele parou nas margens e visitou as várias nações que estavam em guerra
e que se tinham esquecido de como viver juntos. Ele chegou com uma grande mensagem de
paz; e ele reuniu os líderes mais fortes e mais temidos no Grande Conselho. E demorou muitos
anos; mas com a ajuda de Hiawentah, a quem vocês chamam Hiawatha, juntos criaram a
Houdenosaunee, a grande liga da paz – há mil anos atrás. E, naquela altura, foram
estabelecidos os princípios de como nos conduzirmos a nós mesmos, de como instruir os
chefes, de como instruir as mães do clã; e em como estabelecer os homens em conselho, para
que eles pudessem primeiramente celebrar as cerimónias, como ser espiritual ou centro da
nação. As cerimónias eram a primeira obrigação dos chefes, e dos defensores da fé, e das
mães do clã. E só depois se sentariam em conselho para o bem‐estar do povo.
Esta mensagem foi‐nos dada pelo Criador há mil anos atrás; um governo foi‐nos dado pelo
Criador. Este governo não foi fabricado pelas mentes dos homens, foi‐nos dado; e nós
devíamos acalentá‐lo. E cada geração devia instruir os seus chefes e olhar pelo bem‐estar das
sete gerações vindouras. Devíamos compreender os princípios de como viver juntos; devíamos
proteger a vida que nos rodeia; e devíamos dar o que tínhamos aos idosos e às crianças. Os
homens deviam providenciar; as mulheres deviam cuidar da família e ser o centro, o coração,
da casa. E a nossa nação foi fundada na família espiritual, e foram‐nos dados clãs: o tartaruga,
o águia, o veado, o castor, o lobo, o urso, o narceja, o falcão – símbolos de liberdade. Foi‐nos
dado a perceber como vivem as pessoas livres. E foi‐nos dito para proteger a liberdade de cada
indivíduo; e foi‐nos dito que a soberania começou com o indivíduo, e isso protege‐se. E assim
uma nação permaneceu livre, e prevaleceu uma grande paz.
Muitos anos mais tarde, nas nossas costas viradas para o Leste, desembarcou o nosso irmão
branco. E ele trouxe coisas com as quais não conseguíamos lidar. Num tempo longínquo foi‐
nos dito que o nome Ga‐nyadi‐yo, a quem vocês chamam Lago Elegante1, seria importante; e
assim aconteceu, no ano 1800 foi‐nos dada a terceira e última mensagem sobre como lidar
com as coisas que foram trazidas através da água – quando os nossos homens se
embriagaram; quando o fogo das nossas casas se apagou; quando os cães caminharam pelas
cinzas; e as crianças e as mulheres se esconderam nos bosques por causa do que o whisky e o
licor fez aos nossos homens. E naquela altura foi‐nos dada uma mensagem; e esta mensagem
falou‐nos sobre Ga‐nyadi‐yo; e outra vez o Criador teve piedade de nós, Ele sentiu pena de
nós, e Ele deu‐nos a terceira mensagem sobre como lidar com o whisky e com o jogo, de como
lidar com a Bíblia e com os missionários. Naquela altura, foi‐nos dito o que aconteceria a esta
Sabedoria Perene 3 95
Oren Lyons
terra. E enquanto Ga‐nyadi‐yo caminhava com os Quatro Seres, os Quatro Protectores, que
foram enviados pelo Criador para cuidar da humanidade, estes apontavam para aqui e para ali,
“O que vês?” “Eu vejo uma mulher tão gorda que não se consegue erguer e que contudo
continua a atulhar a sua boca, continua a comer como um glutão.” E eles nunca disseram se
isto estava certo ou errado; eles perguntaram‐lhe o que tinha visto. E assim partiram, e foi‐lhe
dada a oportunidade de ver, e para que se contasse que um dia a água não seria própria para
beber, que na realidade a água queimaria, que as árvores começariam a morrer de cima para
baixo, que a mais importante de todas as árvores, o Bordo, assinalaria o momento da
deterioração da vida, o momento em que o final estaria perto. Ele disse‐nos, e explicou os
vários eventos que iriam ocorrer: a doença das crianças e dos idosos, e o que o dinheiro faria –
a maior de todas as doenças.
Agora defrontamos estas coisas, como líderes do nosso povo, como pessoas a quem foi dada
uma grande responsabilidade; nós, nesta geração, temos de lidar com todos estes elementos.
Quando o Criador deu a Sua Grande Lei e plantou a grande árvore da paz, desenraizou‐a e
lançou para de baixo dela todas as armas de guerra. Ele disse: Agora, sois uma nação de paz; e
dar‐vos‐ei oyankgwa‐oohway, o tabaco sagrado; e essa será a vossa força. Será disso que
dependerão, do poder espiritual da oração, de uma crença: a crença do vosso povo. E se
tiverem uma mente, e se considerarem isto outra vez, é este o poder que possuem. E assim
sucede que, quando se queima o tabaco e se usa o milho sagrado, todos os animais param e
ouvem; eles viram‐se e ouvem estas palavras.
Os nossos irmãos, os ursos e os lobos e as águias, são Índios. Eles são Nativos, tal como nós.
Em tempos falámos a sua língua; em tempos, há muito tempo atrás, nós conversámos. Os das
duas‐pernas decaíram da graça. Aqueles animais e aqueles alados viviam num estado de
absoluta graça; eles não conseguem errar. Só a nós nos foi dada uma escolha, tão claramente
apontada pelos Quatro Seres: é assim que é, disseram eles, e o que vês aqui? Eles não lhe
disseram: Faz isto ou aquilo; eles disseram, é assim que é: o que fizeres cabe‐te a ti. E isto foi o
que o Criador nos deu, a escolha: uma grande dádiva, a mentalidade que nós temos. E entre
nós há ainda pessoas com outras dádivas – uma dádiva de arte, ou uma dádiva de discurso, ou
a dádiva de um sorriso capaz de fazer todas as pessoas rir. Qualquer que seja, cada um de nós
nasceu com uma missão. Nós nascemos com uma missão, e devemos saber qual é e
desenvolvê‐la e concretizá‐la. E essa é uma escolha – essa é a nossa escolha.
Nós fomos a Genebra – as seis Nações e a grande Nação Lakota – como representantes do
povo indígena do hemisfério ocidental. Nós fomos a Genebra e falámos no fórum das Nações
Unidas. Durante um curto período de tempo, nós permanecemos iguais entre os povos e as
nações do mundo. E qual foi a mensagem que demos? Existe grande alarido pelos direitos
humanos – direitos humanos, diziam eles, para todas as pessoas. E o povo indígena dizia:
Quais são os direitos do mundo natural? Onde está o assento para o Búfalo ou para a Águia?
Sabedoria Perene 3 96
A nossa mãe terra
Quem é que os representa neste fórum? Quem é que está a falar pelas águas da terra? Quem
é que está a falar pelas árvores e pelas florestas? Quem é que está a falar pelo peixe – pelas
baleias, pelos castores, pelas nossas crianças? Nós dissemos: Dada a oportunidade de falar
neste fórum internacional, então é nosso dever dizer que devemos defender estas pessoas, e o
mundo natural e os seus direitos; e também as gerações vindouras. Nós não cumpriríamos o
nosso dever se não dissemos isto. Isto torna‐se importante porque sem a água, sem as
árvores, não existe vida.
Cidade de Nova Iorque – vocês vivem aqui; aqui, vocês não conseguem obter água limpa para
beber. A água que vocês bebem é imunda. Vocês não sabem o que é a água límpida da
nascente porque têm de beber o que sai das torneiras. E, eventualmente, isto irá matar‐vos.
Eventualmente, vocês não irão conseguir limpá‐la; nem os vossos filhos, nem os vossos avôs,
nem as vossas avós… Pensem nisto… Quando estiverem doentes e quando os vossos filhos
estiverem doentes, lembrem‐se do que o Índio vos disse sobre a água.
Nós somos um povo indígena para esta terra. Nós somos como uma consciência. Nós somos
pequenos, mas não somos uma minoria. Nós somos os proprietários da terra, nós somos os
guardiões da terra; nós não somos uma minoria. Porque os nossos irmãos são todo o mundo
natural, e por isso nós somos, de longe, a maioria. Nós queremos que vocês percebam a
oportunidade, agora. Não é tempo para ter medo – não há tempo para o medo. Só há tempo
para ser forte, apenas há tempo para pensar no futuro e enfrentar a destruição dos nossos
netos, e para nos afastarmos dos ciclos de quatro anos em que este país vive, de uma eleição
para outra, e pensar nas gerações futuras.
Nós falámos de direitos humanos e falámos em defesa de todas as pessoas e de todas crianças.
Mas lembrem‐se que enquanto nós queimarmos tabaco, enquanto as nações índias existirem,
também vocês existirão. Mas quando nos formos, vocês também irão.
Dahnato. (Agora acabei.)
NOTAS
1 – N.T.: Handsome Lake.
Sabedoria Perene 3 97
Oren Lyons
Sabedoria Perene 3 98
Primitivos (refinados) e ultra‐civilizados (bárbaros)
por Mateus Soares de Azevedo
Uma questão: os povos ditos “primitivos” têm relação mais sadia e rica com a natureza do que
os “ultra‐civilizados”?
A resposta aqui deve ser um sonoro ‘sim’: neste ponto, nós ocidentais ultra‐civilizados, somos
“índios”, ou seja, brutos e incultos, que é como nós vemos tais povos.
Por que tais diferentes atitudes em relação ao mundo natural? Por que o destruímos, e isso de
forma intensa desde o fim do período medieval, e os indígenas e outros povos o preservam e
mesmo o respeitam e o veneram?
A resposta, creio, está no fato de que tais comunidades ‘primitivas’ encaram a natureza como
um santuário – não apenas como a fonte de seu sustento e de sua existência, mas ainda mais
como um santuário. Como reflexo, no tempo, de uma Realidade Intemporal; como
corporificação, na terra, de Realidade celeste, não sujeita à corrupção. Algo, portanto, sagrado,
de origem divina, que não deve ser destruído pelos homens – destruição esta que, uma vez
realizada, engendraria terríveis conseqüências para todo o ambiente terreno.
Entre esses povos ‘selvagens’, os índios norte‐americanos, especialmente os das planícies, têm
um entendimento metafísico da natureza que é profundo e abrangente.1 Para estes povos, a
natureza é como uma Revelação divina. Em sua beleza, pureza e grandeza, a natureza é o
templo dos índios – templo não erguido por mãos humanas, mas pelo próprio “Grande
Arquiteto” do Universo. E os pajés, os ‘medicine‐men’, são os sacerdotes deste santuário
primordial. Para eles, subir uma montanha é aproximar‐se de Deus; no silêncio, na solidão,
distantes da agitação e do ruído do mundo, eles contemplam as realidades eternas.
Para o homem moderno, ao contrário, o caráter espiritual deste gênero de ascensão se
perdeu; escalar uma montanha é ‘conquistá‐la’; uma ação espiritual se torna quase uma
profanação.
A religião dos peles‐vermelhas deriva, como explicaram Frithof Schuon e William Stoddart em
seus livros, do grande (e desigual) tronco xamânico hiperbóreo, que inclui também o Xintô
japonês, o Bon tibetano, e o Taoísmo chinês, sem contar seus ramos africanos. Racialmente, o
índio das Américas é também de tipo mongólico, como os extremo‐orientais acima citados.
Sabedoria Perene 3 99
Mateus Soares de Azevedo
Além de santuário, a natureza intocada é a escritura sacra dos índios. Um livro que, para quem
sabe lê‐lo, contém tesouros inexauríveis de verdade, utilidade e beleza. Por sua centralidade,
imobilidade, fonte de luz e calor, o Sol é como um ícone de Deus. O índio sabe que o Sol não é
Deus, mas crê não obstante que há um traço – uma ‘centelha’ diria o mestre Eckhart – Dele no
astro solar. A chuva é símbolo da graça. O trovão, da revelação. E o vento é como o espírito,
que “sopra aonde quer”.
A natureza é, em suma, preservada, respeitada e venerada por tais povos de mentalidade
simbólica e mitológica porque é vista e vivida como santuário e, simultaneamente, como
escritura. Para o homem moderno, ao contrário, ela é uma coisa a ser explorada, um
adversário a dobrar e conquistar. Paradoxalmente, ele foge sempre que possível dos
ambientes urbanos artificiais que construiu, rumo a praias e montanhas – onde busca não
somente relaxamento físico, mas também repouso para sua alma tensionada e cansada.
A luta que tais povos têm travado, já há mais de cinco séculos, contra o mundo moderno tem,
aliás, um caráter de ”jihad”, de guerra santa – pois, para eles, a terra e a ambiência natural em
geral, incluindo plantas, animais e espaços, não é vista como algo puramente quantitativo e
mensurável, portanto comprado e vendido; não, é algo sagrado.
O gravíssimo desequilíbrio ecológico engendrado e mantido pelo mundo moderno – incluindo
efeito estufa, El Nino, furacões, tufões, terremotos e tsunamis, poluição de mares, rios e lagos,
frio no verão, calor no inverno, chuva na primavera, secura no outono etc. – já engendra
efeitos catastróficos no presente. Pelo menos é isto que sustentam os próprios corifeus da
ciência moderna, os cientistas, esses ‘sacerdotes’ do mundo frio e desesperançado da
modernidade. Não podemos esquecer, contudo, que há uma relação direta entre o
desenvolvimento da ciência moderna e a destruição da natureza virgem. Como o professor
S.H. Nasr apontou no seu Knowledge and the sacred, muitos dos pais fundadores da ciência de
tipo moderno, como Francis Bacon, por exemplo, consideravam que o propósito da ciência era
o poder e o domínio sobre a natureza. O esquecimento da sacralidade do cosmo remonta ao
racionalismo e cienticismo da Renascença (séculos 15 e 16), época em que começa o “nosso”
mundo. Portanto, parece‐me lógico concluir que não será a ciência moderna que nos
protegerá nem nos salvará dos desequilíbrios naturais causados ou que tem sua origem
primeira nesta própria ciência materialista, quantitativa, totalitária, que não inclui nem o
psicológico, nem o espiritual, em seu limitado campo de vista. Ou seja, tal ciência não pode por
princípio ajudar‐nos a ganhar equilíbrio neste domínio porque ela não aceita a totalidade da
realidade, ou seja, que tanto o mundo, como o homem que é seu centro, são feitos de corpo,
alma e espírito ‐‐ e não apenas de matéria quantificável. O egoísmo, o materialismo, o
ateísmo, o consumismo, a falta de auto‐controle e moderação etc., não serão solucionados
pela ciência moderna.
Sabedoria Perene 3 100
Primitivos (refinados) e ultra‐civilizados (bárbaros)
Nesta hora tardia, a “décima ‐ primeira hora”, no dizer de Martin Lings, não cabem mais
mudanças apenas estéticas e superficiais. A crise ecológica é apenas o sintoma exterior de um
profundo mal estar espiritual do homem secularizado. Se continuarmos mantendo o padrão
destes últimos cinco séculos, o padrão iniciado na Renascença (nome impróprio, pois significou
a ‘morte’ da cultura tradicional, com suas catedrais, sua arte românica, a Divina Comédia, a
escolástica, os ícones, cidades como Istambul, Siena, Fes etc.), o padrão do “progresso’ e do
“desenvolvimento”, avançaremos ainda mais no rumo do abismo...
NOTAS
1 – Acerca do patrimônio intelectual e espiritual desses povos, ver especialmente o fascinante livro de Frithjof
Schuon The Feathered Sun – Plains indians in art and philosophy (World Wisdom, 2003). Há tradução em espanhol:
El Sol Emplumado – Los indios de las praderas a través del arte y la filosofía (José J. de Olañeta editores, Palma de
Mallorca, 2004).
Sabedoria Perene 3 101
Mateus Soares de Azevedo
Sabedoria Perene 3 102
Sobre a ecologia: os quatro poluentes
por William Stoddart
Traduzido por Nuno Almeida
São quatro os poluentes: intelectual (ou espiritual), visual, auditivo e físico.
Intelectual (ou espiritual): ateísmo, indiferença quanto a Deus, relativismo (não existe
qualquer verdade absoluta); dualidade de critérios.
Visual: fábricas, laboratórios, arquitectura moderna, etc.
Auditivo: ubiquidade da música “rock”.
Físico: emissões de carbono, chuva ácida, etc.
Estes poluentes estão listados por ordem de importância. Os três primeiros mataram a alma
do homem; o quarto corre o risco de matar o seu corpo.
* * *
Muito se tem dito sobre a necessidade de alimento puro para que se obtenha desenvolvimento
espiritual. Para mim, o verdadeiro alimento é a assimilação de pensamentos puros e a devoção à
Verdade ou Deus. Em vão tomam as vossas refeições diárias perfeitamente sátvicas; que alimento
pode a vossa alma retirar dessa massa de comida pura se a vossa mente permanece
constantemente absorvida em pensamentos materiais?
Mâ Ânanda Mâyî
Estava um grupo de pessoas a falar sobre a vida vindoura. Uns diziam que quem comesse peixe
nasceria na Terra Pura, outros diziam o contrário. Hônen ouviu‐os de passagem e disse: “Se
dependesse de comer peixe, então os corvos marinhos nasceriam na Terra Pura, e se dependesse
de não comer peixe, então seria esse o caso dos macacos. Mas estou certo de que quer um homem
coma ou não peixe, basta‐lhe chamar o Nome Sagrado e nascerá na Terra Pura.”
Hônen
Sabedoria Perene 3 103
William Stoddart
Uma característica essencial que distingue o homem dos animais é a de que o homem sabe que tem
de morrer, enquanto os animais não. Este conhecimento da morte é uma prova da imortalidade; é
apenas pelo facto do homem ser imortal que as suas faculdades lhe permitem tomar consciência da
sua impermanência terrena. Dizer percepção da morte é dizer fenómeno religioso; e permitamo‐
nos notar que este fenómeno forma parte da ecologia no sentido total do termo, pois sem religião –
ou sem religião autêntica – uma colectividade humana não pode sobreviver a longo prazo; isto é o
mesmo que dizer, não pode permanecer humana.
Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 12
As religiões e os sistemas de sabedoria são valores tão “naturais” – ainda que “sobrenaturalmente”
naturais – como o ar que respiramos, a água que bebemos e a comida que ingerimos; não
reconhecer o “imperativo categórico” daquilo que por comparação poderíamos chamar de
“ecologia espiritual” é, consequentemente, uma atitude que é tão auto‐destrutiva quanto irrealista.
Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 66
Os ateus militantes negligenciam intencionalmente que a religião é, de certa forma, uma questão
de ecologia. Mesmo assumindo que a religião contém um elemento de “ópio” – e não só “para o
povo” – este elemento é “ecologicamente” indispensável para o psiquismo humano; em qualquer
caso, a sua ausência envolve abusos incomparavelmente mais graves do que a sua presença,
porque é melhor ter bons sonhos do que pesadelos. Seja como for, apenas a religião, ou a
espiritualidade, oferece aquele significado integral e aquela alegria ancorada na natureza deiforme
do homem, sem a qual a vida não é inteligível nem digna de ser vivida.
Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 78
Sabedoria Perene 3 104
EPÍLOGO
Pontifex e Khalifa
por Frithjof Schuon
Traduzido por Miguel Conceição
A situação do homem é ver Deus a partir do mundo. Pois bem, ver Deus a partir do mundo é
ver o mundo a partir de Deus. Ver Deus a partir do mundo é ver Deus como Senhor, como
Princípio que determina tudo; ver o mundo a partir de Deus é ver o mundo como unidade
contingente e passageira. O homem profano vê em seu redor as coisas, as pessoas, os
acontecimentos, mas não o véu ontológico e escatológico no qual eles estão tecidos; não vê o
mundo à distância, como se vê uma paisagem do alto de uma montanha; vê os conteúdos mas
não o receptáculo. “Por causa das árvores, ele não vê o bosque” («vor Bäumen den Wald nicht
sehen»): debaixo da hipnose das aparências ele não vê nem a Mâyâ, pela e na qual ele existe,
nem o Samsâra, no qual se joga o seu destino. O homem espiritual, ao contrário, na medida
em que jamais perde de vista o Principio, não pode, ao perceber as coisas, perder de vista o
que elas são em relação ao Princípio que as determina. O homem espiritual situa‐se
conscientemente entre Deus e o mundo, e é por esse motivo que é pontifex ou khalîfah: deve
religar o mundo com Deus enquanto representando Deus no mundo. Ele deve introduzir Deus
no mundo e reconduzir o mundo – a sua alma – a Deus.
Ver o mundo a partir de Deus é, não somente ver a sua contingência e a sua infinitude, mas
ver também, nas coisas, a sua mensagem de ‘Absolutez’ e de Infinitude; pois se o mundo por
um lado vela Deus, por outro lado ele comunica os seus Arquétipos, as suas Qualidades, os
seus Mistérios, através dos símbolos e das belezas; bem como através das privações e dos
contrastes.
Ver Deus a partir do mundo é ver o mundo a partir de Deus. Mas há no homem uma região – o
Coração‐Intelecto – que não está no mundo, e no qual Deus se conhece a si mesmo. De forma
inversamente análoga, há um plano no qual o homem percebe as coisas nelas mesmas e
independentemente do seu contexto ontológico e escatológico. Com toda a evidência, estas
perspectivas são paralelas e não se contradizem.
Ver Deus a partir do mundo, como Senhor transcendente; mas conhecê‐lo também por si
mesmo, como Si imanente. Ver o mundo a partir de Deus, como véu impermanente; mas
compreender igualmente as suas mensagens de Realidade e de Eternidade. Ver Deus nas
raízes das coisas é ver no mundo os reflexos de Deus.
Sabedoria Perene 3 107
Frithjof Schuon
Sabedoria Perene 3 108
CITAÇÕES ESPIRITUAIS
Citações espirituais
Deus está para o homem como o magnete está para o ferro. Então por que não atrai Ele o homem? Tal
como o ferro profundamente embebido em lama não é movido pela atracção do magnete, também a
alma profundamente embebida em Maya não sente a atracção do Senhor. Mas tal como o ferro se move
livremente quando a lama é lavada com água, também a alma por constantes lágrimas de oração e de
arrependimento lava a lama de Maya que a prende à terra, e é rapidamente atraída pelo Senhor.
Excerto do Evangelho de Sri Ramakrishna
Existe uma "fonte na Divindade, que brota sobre todas as coisas na Eternidade e no Tempo".
Mestre Eckhart
Acredita na minha experiência. Encontrarás mais nos bosques que nos livros. As árvores e os rochedos
ensinar‐te‐ão o que nunca poderás ouvir dos mestres.
São Bernardo de Claraval
O mundo é a mais bela das criações.
Platão
O sumo Bem, quem em si só se compraz, fez o homem bom e para o bem, e logo lhe deu como arras este
lugar de eterna paz.
Dante Alighieri
A Sabedoria Divina criou o mundo para que todas as coisas por Si conhecidas fossem reveladas.
Rûmi
Mostrar a Sua sabedoria enquanto fazia todas as coisas.
Hermes
Eu era um tesouro escondido; queria ser conhecido; por essa razão Eu criei o mundo.
Mohammad (hadîth qudsî)
O homem é a ligação entre Deus e a natureza… Tal como Deus desceu ao homem, assim o homem deve
ascender a Deus.
Jîlî
Sabedoria Perene 3 111
Citações espirituais
Sabedoria Perene 3 112
FONTES DOS TEXTOS
Fontes dos textos
“Ver Deus em toda a parte” – Frithjof Schuon: original “Voir Dieu partout”, capítulo do livro
Sentiers de Gnose, editado por La Colombe, Paris, 1957.
“Uma metafísica da Natureza Virgem” – Frithjof Schuon: original “A Metaphysic of Virgin
Nature”, capítulo do livro The Feathered Sun – Plain Indians in art and philosophy de Frithjof
Schuon, editado pela World Wisdom Books em 1990.
“O simbolismo da água” – Titus Burckhardt: original “The Symbolism of Water”, do livro Mirror
of the Intelect, Quinta Essencia, Cambridge, 1987, reimpresso com autorização da World
Wisdom no livro Water: Its Spiritual Significance, Fons Vitae, 2009.
“Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs” – Alberto
Vasconcellos Queiroz [artigo original].
“As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental” – Seyyed Hossein Nasr: selecção e
compilação dos conteúdos leccionados no âmbito do Programa de Educação Religiosa e
Ambiente (REEP) dos Amigos do Centro e da Academia Temenos em 22 de Maio de 1998,
publicados no artigo The Spiritual and Religious Dimensions of the Environmental Crisis,
incluído no livro Seeing God Everywhere: Essays on Nature and the Sacred, ed. Barry
Macdonald, World Wisdom, 2003
“A agricultura e o destino humano” – Lord Northborne: traduzido do capítulo Agriculture and
Human Destiny do livro Of the Land and the Spirit: The Essential Lord Northbourne on Ecology
and Religion, ed. Joseph A. Fitzgerald, World Wisdom, 2008, originalmente publicado no livro
do autor Looking Back on Progress (1970).
“O protesto da terra” – Gai Eaton: traduzido do livro “The Essential SOPHIA – The Journal of
Traditional Studies”, Word Wisdom 2006. O texto, “The Earth’s Complaint”, foi inicialmente
publicado no Volume 3 – nº1 da publicação periódica SOPHIA.
“A nossa mãe terra “ – Oren Lyons: traduzido do capítulo Our Mother Earth incluído no livro
Seeing God Everywhere: Essays on Nature and the Sacred, ed. Barry Macdonald, World
Wisdom, 2003.
Sabedoria Perene 3 115
Fontes dos textos
“Primitivos e ultra‐sofisticados – Mateus Soares de Azevedo [artigo original].
“Sobre a ecologia: os quatro poluentes” – William Stoddart: tradução de um texto original do
autor.
“Pontifex e Khalîfah” – Frithjof Schuon: traduzido de um texto privado do autor publicado
inéditamente na revista Connaissance des Religions, nº 67‐68 – La Contemplation de la Nature,
Dervy, 2003.
Sabedoria Perene 3 116
BREVES NOTAS SOBRE OS AUTORES
Breves notas sobre os autores
Harry Oldmeadow
Harry Oldmeadow nasceu em Melborne em 1947. Os seus pais foram missionários cristãos na Índia, onde viveu
nove anos da sua infância e cedo desenvolveu um interesse pelas civilizações do oriente. Estudou história, política e
literatura na Universidade Nacional Australiana e, após posteriores estudos na Universidade de Sidney, trabalhou
como tutor na Universidade La Trobe em Melbourne. Em 1971 partiu para continuar os seus estudos na
Universidade de Oxford, tendo viajado extensivamente na Europa e no Norte de África.
Em 1980 inscreveu‐se num mestrado em Estudos Religiosos na Universidade de Sidney onde completou a sua
dissertação sobre o trabalho de Frithjof Schuon e outros escritores tradicionalistas. Este estudo mereceu a medalha
de ouro da Universidade de Sidney pela excelência da sua pesquisa, o qual foi publicada pelo Sri Lanka Institute of
Traditional Studies com o título de Traditionalism: Religion in the Light of the Perennial Philosophy (Colombo, 2000).
Por solicitação desta Instituição, proferiu a lição inaugural da ‘Ananda Coomaraswamy Memorial Lecture’, em
Colombo, com o título "The Religious Tradition of the Australian Aborigines".
Actualmente é o coordenador da área de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade La Trobe, em Bendigo,
Austrália. Durante os últimos anos tem publicado extensivamente em publicações periódicas como a Sacred Web
(Vancouver), Sophia: Journal of Traditional Studies (Washington DC), Asian Philosophy (Nottingham, UK), Vincit
Omnia Veritas (e‐journal), Australian Religion Studies Review (Sydney) and Sophia: Journal of Philosophy of Religion,
Metaphysical Theology and Ethics (Melbourne).
Harry Oldmeadow vive com a sua esposa numa pequena propriedade em Mandurang, a Sul de Bendigo.
Frithjof Schuon
Frithjof Schuon nasceu em 1907 em Basle, na Suiça, filho de pais alemães. Sendo seu pai músico, cresceu num
ambiente onde, para além da constante presença da música, prevalecia a arte e literatura, quer do Oriente, quer do
Ocidente. Viveu em Basle e frequentou a escola da cidade até à morte do pai em 1920, após a qual se deslocou com
a sua mãe para Mulhouse, onde foi forçado a adquirir nacionalidade francesa. Tendo recebido a sua edução inicial
em Alemão, era agora exposto ao sistema de educação francês, o que o levou a adquirir o conhecimento das duas
línguas ainda muito jovem. Com a idade de 16 anos abandonou a escola para se dedicar ao desenho de tecidos,
iniciando‐se assim no caminho da arte, a qual era uma sua paixão desde criança, nunca tendo, no entanto, tido
qualquer instrução formal.
Ainda em criança, Schuon havia sido atraído pelo Oriente pelas belas canções do Bhagavad‐Gita, um dos seus
livros favoritos, bem como as “Mil e uma noites”. Tinha uma propensão natural para a metafísica, tendo‐se
dedicado à leitura de Platão ainda muito jovem. Ainda em Mulhouse, teve conhecimento das obras de Guénon, as
quais serviram como confirmação das suas intuições intelectuais e que lhe vieram a providenciaram o suporte para
os princípios metafísicos que tinha começado a descobrir.
Schuon viajou para Paris depois de cumprir serviço militar durante um ano e meio com o exército Francês. Em
Paris, para além de continuar o seu antigo trabalho, iniciou o estudo da língua árabe. Em 1932 visitou pela primeira
vez a Algéria, o que marca a sua primeira experiência com uma civilização tradicional e o seu primeiro contacto com
o mundo islâmico. Aí obteve um conhecimento em primeira‐mão sobre a tradição islâmica, incluindo o Sufismo, e
conheceu alguns dos seus maiores representantes, tal como o Shaykh al‐‘Alawi. Na sua segunda viagem ao Norte de
Sabedoria Perene 3 119
Breves notas sobre os autores
África em 1935, visitou não só a Algéria mas também Marrocos, tendo em 1938 viajado até ao Cairo, onde
finalmente se encontrou com René Guénon, com quem se correspondia há vários anos.
Em 1939 voltou a parar no Egipto enquanto viajava para a Índia, uma terra que sempre amou e cuja
espiritualidade o atraía desde a juventude. Pouco depois da sua chegada à Índia deu‐se o início da Segunda Grande
Guerra, e foi forçado a regressar a França e a ingressar no exército. Pouco tempo depois foi capturado e preso pelos
alemães. Quando soube que estes planeavam colocá‐lo no seu exército devido ao seu passado fugiu para a Suíça
onde acabou por se fixar.
Durante cerca de 40 anos a Suíça foi o seu lar, onde casou em 1949. Foi aqui que escreveu grande parte das
suas obras. Em 1959 e 1963, Schuon viajou para os Estados Unidos para visitar as tribos dos Índios americanos,
pelos quais tinha uma profunda admiração e afinidade. Ele e a sua esposa visitaram as reservas Sioux e Crow no
Dakota do Sul e Montana, tendo sido aceites pela tribo Sioux.
Em 1981, os Schuon emigraram para os Estados Unidos, estabelecendo‐se no estado de Indiana. Ali, numa casa
de madeira num condomínio situado numa floresta, Schuon viveu 17 anos, onde faleceu a 5 de Maio de 1998.
Titus Burckhardt
Titus Burckhardt, Titus Burckhardt, suíço alemão descendente de uma família patrícia de Basileia, nasceu em
Florença em 1908 e morreu em Lausanne em 1984. Dedicou toda a sua vida ao estudo e à exposição dos diferentes
aspectos da Sabedoria e da Tradição. Na era da ciência moderna e da tecnocracia, Titus Burckhardt foi um dos mais
admiráveis dos expositores da verdade universal, quer no âmbito da metafísica, quer no da cosmologia e arte
tradicional. Filho do escultor Carl Burckhardt e sobrinho do famoso historiador de arte Jacob Burckhardt, Titus
Burckhardt conheceu Frithjof Schuon em Basileia durante a sua infância, altura em que iniciaram uma profunda e
harmoniosa amizade intelectual e espiritual, a qual perdurou ao longo das suas vidas.
Durante os anos cinquenta e sessenta Burckhardt foi o director artístico da Urs Graf Publishing House de
Lausanne e Olten. A sua actividade principal durante estes anos foi a produção e publicação de uma série de fac‐
similes de manuscritos medievais, especialmente antigos manuscritos Celtas dos Evangelhos, tal como o “Book of
Kells” e o “Book of Durrow” (do Trinity College, Dublin) e o “Book of Lindisfarne” (da British Library, London). Este
foi um trabalho pioneiro da mais alta qualidade e uma realização editorial que imediatamente recebeu grandes
ovações de peritos e do público em geral. A principal exposição metafísica de Burckhardt, complementando com
beleza a obra de Schuon, foi Introduction aux Doctrines Ésotériques de l’Islam. A principal obra de Burckhardt no
campo da cosmologia foi seu livro Alchemie, Sinn – und Weltbild (Alquimia: significado e imagem do mundo), uma
apresentação brilhante da alquimia como expressão de uma psicologia espiritual e de um suporte intelectual e
simbólico para a contemplação e a realização. O principal trabalho de Burckhardt no campo da arte foi Principes et
Méthodes de l’Art Sacré, que contém vários capítulos maravilhosos sobre a metafísica e a estética do Hinduísmo, do
Budismo, do Taoísmo, do Cristianismo e do Islão, e termina com uma útil e prática visão da situação contemporânea
intitulada “A decadência e a renovação da arte cristã”. Um das várias obras‐primas de Burckhardt é sem dúvida Fez,
Cidade do Islão, para além dos livros Siena, Cidade da Virgem, Chartres e o Nascimento da Catedral e A Cultura
Moura na Espanha.
Sabedoria Perene 3 120
Breves notas sobre os autores
Durante os seus anos em Marrocos, Burckhardt assimilou os principais clássicos do Sufismo na sua forma
original. Mais tarde, viria a partilhar estes tesouros através das suas traduções de Ibn ‘Arabî e Jîlî. Um dos seus
trabalhos mais importantes foi a tradução das cartas espirituais de Mulay al‐‘Arabî ad‐Darqâwî. O último grande
trabalho de Burckhardt foi seu amplamente festejado e impressionante Arte do Islão.
Alberto Vasconcellos Queiroz
Lord Northborne
Lord Northborne (1896‐1982), Walter Ernest Christopher James, foi o 4.º Barão Northbourne de Kent, Inglaterra.
Agricultor, educador, tradutor, cujos escritos versam sobre agricultura e religião comparada. Recebeu a sua
educação em Oxford e foi Reitor do Wye College — o colégio de agricultura da Universidade de Londres. Lord
Northbourne era um agrónomo perspicaz e escreveu um influente livro em 1940, Look to the Land. Neste livro,
introduziu ao mundo o termo "agricultura biológica", bem como os conceitos relacionados com a gestão de uma
proriedade agrícola como um “todo orgânico”.
Depois de ler este livro, Marco Pallis contactou e introduziu Lord Northbourne aos escritos e às ideias
tradicionalistas/perenialistas. Desde então, Lord Northbourne passou a adoptar este padrão de pensamento nos
seus próprios escritos e a integrá‐lo na sua própria vida, mantendo correspondência com muitos dos mais
proeminentes escritores desta escola de pensamento, bem como com Thomas Merton.
Os seus escritos são frequentemente citados como excelentes introduções à perspectiva tradicionalista,
destacando‐se também como tradutor e editor de importantes obras, tais como The Reign of Quantity and the Signs
of the Times, de René Guénon, Light on the Ancient Worlds, de Frithjof Schuon e Sacred Art in East and West, de
Titus Burckhardt.
Charles le Gai Eaton
Sabedoria Perene 3 121
Breves notas sobre os autores
artigos para a publicação periódica Studies in Comparative Religion. O seu último livro e autobiografia intitulado A
Bad Beginning and the Path to Islam foi publicado pela editora Archetype em Janeiro de 2010. Deixou‐nos
recentemente, a 26 de Fevereiro do mesmo ano.
Oren Lyons
Oren Lyons é um Guardião da Fé Traidicional do Clã da Tartaruga e membro do Concelho de Chefes da Nação
Onondaga da Confederação de Seis Nações de Iroquois (a Haudenosaunee). Graduou‐se em Belas Artes na Syracuse
University e estabeleceu‐se em Nova Iorque, onde exerceu a sua actividade profissional como ilustrador de livros e
pintor.
Em 1970, regresou à sua terra para assumir a função de Guardião da Fé do Clã Tartaruga, função que vem
desempenhando para manter vivas as tradições, os valores e a história do seu povo. É Professor Associado na SUNY
(University at Buffalo) no Centro para as Américas. Lecciona cursos e orienta trabalhos sobre história e estudos dos
Índios e participa em muitas conferências e reuniões relacionados com os Índios Americanos, com os direitos
humanos, com o diálogo inter‐religioso e com o ambiente.
É fundador e editor da revista Daybreak desde 1987 e editor do livro Exiled In The Land Of The Free: Democracy,
The Iroquois and The Constitution (1992), um importante estudo sobre o impacto dos Índios na democracia
Americana e na Constituição dos Estados Unidos da América.
Mateus Soares de Azevedo
Mateus Soares de Azevedo, jornalista, historiador das religiões e islamólogo brasileiro, nasceu em Belo Horizonte
no dia 24 de Janeiro de 1959. Formou‐se em Comunicações pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
obteve uma pós graduação em Relações Internacionais pela Universidade George Washington nos Estados Unidos.
É ainda mestre em História das Religiões, título académico obtido na Universidade de São Paulo.
É autor de cinco livros sobre a Filosofia Perene e as dimensões místicas do Cristianismo e do Islão. Publicou mais
de sessenta artigos e ensaios de filosofia das religiões e de crítica da mentalidade materialista da modernidade nos
principais jornais brasileiros. Alguns deles foram traduzidos para o inglês, o francês e o espanhol, e publicados nas
revistas Sophia (EUA), Sacred Web (Canadá), Sophia Perennis (Espanha) e Dossier H (França).
Em 2005, publicou a antologia Ye Shall Know the Truth: Christianity and the Perennial Philosophy pela editora
World Wisdom Books dos Estados Unidos, onde colaborou com a introdução e o ensaio "Sábios e santos da nossa
época à luz da Filosofia Perene”. No Brasil tem já três livros publicados: o seu recente Homens de um livro só: o
fundamentalismo no islã e no pensamento moderno (2008); A Inteligência da Fé: cristianismo, islã, judaísmo (2006)
e Mística Islâmica (2001). Traduziu e editou onze obras dedicadas à Filosofia Perene e à importância da
espiritualidade tradicional no mundo contemporâneo. Entre eles, O Homem no Universo, O Sentido das Raças e
Para Compreender o Islão, de Frithjof Schuon; A Arte Sagrada de Shakespeare, de Martin Lings, e Cartas do diabo ao
seu aprendiz, de C. S. Lewis. Nos Estados Unidos, co‐editou, com Alberto V. Queiroz, Remembering in a World of
Forgetting: Thoughts on Tradition and post‐modernism, colectânea de ensaios do escritor perenialista britânico
William Stoddart publicado pela World Wisdom Books.
Sabedoria Perene 3 122
Breves notas sobre os autores
William Stoddart
William Stoddart nasceu em 1925 na vila de Carstairs no Sul da Escócia. Os seus estudos iniciais foram sobretudo
dedicados às línguas modernas, tendo estudado Francês, Alemão e Espanhol na Universidade de Glasgow. Ainda
nesta Universidade acabou por mudar para medicina, tendo posteriormente frequentado as Universidades de
Edimburgo e Dublin.
Com o decorrer da sua vida viria a entregar‐se ao estudo das grandes tradições religiosas do mundo, em grande
parte devido ao seu encontro com os trabalhos de Coomaraswamy, Guénon e Schuon, viajando extensivamente
pela Europa, Norte de África, Turquia, Índia e Ceilão.
Foi autor de três livros: Hinduism and its Spiritual Masters, Outline of Budhism e Sufism: The Mystical Doctrines
and Methods of Islam, e contribui com diversos artigos para prestigiadas revistas da especialidade. Foi ainda editor
assistente da publicação Studies in Comparative Religion durante vários anos. Os seus livros e ensaios são
reconhecidos pela sua clareza e, em particular, pelo seu carácter “sintético”, ou melhor, “essencialista”.
Teve ainda um papel fundamental na tradução de numerosos livros, salientando‐se as suas traduções das obras
de Frithjof Schuon e Titus Burckhardt.
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Breves notas sobre os autores
Sabedoria Perene 3 124
Cântico do Sol
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos; e homem algum é digno de te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor Irmão Sol, que clareia o dia, e com sua luz nos alumia
E ele é belo e radiante com grande esplendor: de ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras e preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor pela irmã Água, que é mui útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo e vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa mãe Terra, que nos sustenta e governa,
e produz frutos diversos com coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor, e suportam enfermidades e tribulações.
Bem‐aventurados os que sustentam a paz, que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã Morte corporal, da qual homem algum pode escapar:
Ai dos que morrerem em pecado mortal.
Felizes os que ela achar conformes à tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai‐lhe graças, e servi‐o com grande humildade.
S. Francisco de Assis
SABEDORIA PERENE
REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS E DA SOPHIA PERENNIS
www.sabedoriaperene.blogspot.com