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SABEDORIA PERENE 

REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS 
 E DA SOPHIA PERENNIS 
 
 

 
NÚMERO 3
 
 
SABEDORIA PERENE 
REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS E DA SOPHIA PERENNIS 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

www.sabedoriaperene.blogspot.com 
A  revista  Sabedoria  Perene  pretende  ser  um  veículo  de  divulgação  de  uma  corrente  de  pensamento 
conhecia por tradicionalismo ou perenialismo, que tem como principal desígnio o estudo da Tradição, 
das doutrinas tradicionais e da Sophia Perennis. Deste modo, esta publicação será dedicada ao estudo 
de  todas  as  tradições,  consideradas  como  as  muitas  expressões  da  Sabedoria  Perene  e  Divina  ou  da 
Sophia Perennis. Na nossa mente estarão sempre presentes as seguintes palavras de René Guénon:  
 
 “Aqueles que possam estar tentados a ceder ao desespero devem ter presente que nada do alcançado nesta busca 

poderá alguma vez ser perdido, que a confusão, o erro e a escuridão poderão apenas de uma forma aparente e 

efémera vencer uma batalha, que todo o desequilíbrio parcial e transitório terá forçosamente de contribuir para o 

grande equilíbrio do todo, e que nada poderá no final prevalecer contra o poder da verdade. A sua máxima deverá 

ser a antigamente usada por algumas organizações iniciáticas do Ocidente: Vincit Omnia Veritas.” 

 
A Sabedoria Perene tem publicação não periódica e é disponibilizada em linha sem qualquer custo. Os 
artigos  publicados  são  da  exclusiva  responsabilidade  dos  seus  autores,  tal  como  todas  as  traduções  o 
são dos respectivos tradutores. A publicação dos artigos e das respectivas traduções foi expressamente 
autorizada, pelo que não são permitidas quaisquer reproduções sem autorização. 
 
Editores: 
Miguel Conceição e Nuno Almeida 
 
Contacto: 
Editor, Sabedoria Perene 
Endereço electrónico: mfm.conceicao@gmail.com 
Sítio em linha: www.sabedoriaperene.blogspot.com 
 
Gravura da capa: Pintura de Frithjof Schuon datada de 1963, cuja reprodução foi incluída no livro The 
Feathered  Sun  –  Plain  Indians  in  art  and  philosophy  de  Frithjof  Schuon  (Plate  I),  editado  pela  World 
Wisdom Books em 1990. 
 
ISSN: 1647‐3329 
Agosto, 2011 
 
Agradecimentos: 
Ao Mateus Soares de Azevedo pelo especial apoio e contribuição na revisão de artigos. À editora World 
Wisdom  (www.worldwisdom.com)  pelas  autorizações  concedidas  para  este  número.  Um  profundo 
agradecimento ainda a todos os que colaboraram na realização deste número da revista.  
ÍNDICE 
 

Editorial                                                                                                                                                         7 

Introdução 
“Direcções para o suprasensível” – Harry Oldmeadow  13 

Metafísica e simbolismo: Sacralização da Natureza 
Ver Deus em toda a parte – Frithjof Schuon  27 
Uma metafísica da natureza virgem – Frithjof Schuon  39 
O simbolismo da água – Titus Burckhardt  43 
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs  
                                                                                    – Alberto Vasconcellos Queiroz  49 

Crise ambiental: Profanação da Natureza 
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental – Seyyed Hossein Nasr  61 
A agricultura e o destino humano – Lord Northborne  71 
O protesto da terra – Gai Eaton  85 
A nossa mãe terra – Oren Lyons  95 
Primitivos e ultra‐sofisticados – Mateus Soares de Azevedo  99 
Sobre a ecologia: os quatro poluentes – William Stoddart   103 

Epílogo 
Pontifex e Khalîfah – Frithjof Schuon   107 

Citações espirituais   111 

Fontes dos textos   115 

Breves notas sobre os autores   119 
 
 
 
 

EDITORIAL 
 
Olhar a infinidade no finito é ver que dada flor à nossa frente é eterna, 
porque uma eterna primavera se afirma através do seu frágil sorriso. 
Frithjof Schuon 

Continuamos, nesta terceira publicação dedicada ao estudo da tradição e da sophia perennis, a 
divulgar a corrente de pensamento tradicionalista ou perenialista. O tema em foco no número 
anterior da Revista Sabedoria Perene foi a arte. Neste terceiro número, a temática é outra – a 
natureza  e  a  crise  ambiental  –,  mas  a  mensagem  subjacente  aos  textos  apresentados  é  a 
mesma, a da sabedoria perene, aquela sabedoria incriada e imutável que dissolve disparidades 
aparentes  e  que  perfura  a  superfície  de  quaisquer  objectos  de  estudo,  para  deixar 
transparecer o que neles há de mais profundo e de essencialmente idêntico.  

É assim, à luz desta sabedoria perene, que o leitor que nos acompanhou no número anterior 
poderá  reconhecer  diversas  correspondências  entre  a  arte  sagrada  e  a  natureza  virgem.  De 
facto, não deixa de ser significativo que sejam os povos que ainda imprimem uma dimensão 
sagrada nas suas realizações artísticas os que melhor protegem e acarinham o meio natural em 
que se inserem; é igualmente significativo que, pelo contrário, sejam os povos fundadores da 
moderna  indústria  de  produções  artísticas  mundanas,  invariavelmente  concentrados  em 
grandes centros urbanos, os que mais delapidam a natureza e os que com ela se relacionam 
como  se  de  uma  mera  fonte  de  recursos  a  explorar  se  tratasse.  Segundo  o  padrão  de 
pensamento  tradicional  que  caracteriza  a  mentalidade  dos  povos  do  primeiro  tipo,  quase 
totalmente  extintos,  tanto  a  arte  sagrada  como  a  natureza  virgem  são  dádivas 
“sobrenaturalmente”  naturais,  pelo  que  a  atitude  sã  e  normal  do  homem  para  com  essas 
dádivas deverá ser a da sua preservação. Ao contrário, o padrão de pensamento moderno que 
caracteriza a mentalidade dos povos do segundo tipo, esmagadoramente predominantes nos 
dias de hoje, parece conduzir‐nos precisamente à violação destas dádivas, ora pela promoção 
de  correntes  artísticas  “desnaturadas”,  como  é  o  caso  do  surrealismo  e  de  toda  a  forma  de 
arte  abstracta,  ora  pela  adopção  de  atitudes  de  vida  que  nos  conduziram  a  uma  crise 
ambiental sem precedentes, a qual se tornou já demasiado evidente para poder ser ignorada. 

O texto de Harry Oldmeadow, seleccionado para Introdução deste terceiro número da Revista 
Sabedoria Perene, oferece uma primeira indicação sobre aquela que é, segundo a perspectiva 
tradicionalista  ou  perenialista,  a  principal  causa  da  actual  crise  ambiental  (e  que  é,  não  o 
podemos deixar de salientar, a mesma que explica a crise que assola o mundo da arte). Neste 
texto,  o  autor  destaca  que  esta  causa  é  raramente  percebida  e  que  a  sua  compreensão  em 
profundidade  implica  o  relembrar  de  princípios  metafísicos  e  cosmológicos  intemporais,  os 
quais  podem  ser  ignorados  mas  não  refutados.  Estes  princípios,  tidos  em  consideração  em 
todos os contextos civilizacionais, épocas e lugares, estão espelhados nos escritos de inúmeros 

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Nuno Almeida 
 

autores  tradicionalistas  ou  perenialistas  da  actualidade,  oriundos  das  mais  variadas 
proveniências  culturais  e  denominações  espirituais  ou  religiosas.  Estes  autores,  que  incluem 
figuras  contemporâneas  tais  como  René  Guénon,  Frithjof  Schuon,  Ananda  Coomaraswamy  e 
Titus Burckhardt, reflectem, de forma renovada, a mesma perspectiva que um Platão semeou 
no  seio  do  mundo  greco‐romano,  que  um  Rumi  ou  um  Ibn  Arabi  traduziram  para  o  mundo 
islâmico,  que  um  Mestre  Eckhart  emprestou  à  cristandade  ou  que  um  Shânkara  ofereceu  à 
tradição  hindu,  para  mencionar  apenas  alguns  dos  inspirados  precursores  tradicionalistas  ou 
perenialistas de todos os tempos. 

São precisamente estes princípios intemporais que permeiam o conteúdo do primeiro bloco de 
textos  deste  terceiro  número  da  revista,  agrupados  sob  o  título  Metafísica  e  simbolismo: 
Sacralização  da  Natureza.  Este  primeiro  bloco  contém  dois  ensaios  de  Frithjof  Schuon  que 
guiam  o  leitor  para  uma  compreensão  mais  profunda  da  dimensão  sagrada  da  Natureza.  Os 
outros  dois  textos  que  compõe  este  bloco,  um  de  Titus  Burckhard  e  outro  de  Alberto 
Vasconcellos  Queiroz,  salientam  a  necessidade  de  todos  os  que  se  preocupam  com  a  actual 
crise ambiental ponderarem seriamente sobre esta dimensão sagrada da Natureza, sem a qual 
a sua preservação, bem como a da vida de um modo geral, se torna insustentável.  

Para  compreender  a  causa  mais  profunda  da  crise  ambiental  é  necessário,  repetimos, 
relembrar  princípios  metafísicos  e  cosmológicos  e  ponderar  sobre  a  dimensão  sagrada  da 
natureza.  As  consequências  que  derivam  do  esquecimento  destes  princípios  e  da  rejeição 
desta  dimensão  da  natureza  estão  bem  patentes  no  segundo  bloco  de  textos  da  revista, 
reunidos  sob  o  título  Crise  ambiental:  Profanação  da  Natureza.  Os  autores  destes  textos, 
Seyyed  Hossein  Nasr,  Lord  Northborne,  Gai  Eaton,  Oren  Lyons,  Mateus  Soares  de  Azevedo  e 
William  Stoddart,  são  unânimes  em  reconhecer  neste  esquecimento  e  nesta  rejeição  uma 
profunda  enfermidade  intelectual  ou  espiritual,  enfermidade  esta  que  René  Guénon 
diagnosticou  com  precisão  há  praticamente  um  século.  Em  resumo,  segundo  a  perspectiva 
tradicionalista  ou  perenialista,  a  crise  ambiental  é  apenas  um  sintoma  de  uma  ainda  mais 
profunda crise intelectual ou espiritual. Segundo esta mesma perspectiva, a esperança para a 
resolução da crise ambiental (e para as demais crises) reside na intelectualidade pura, aliada a 
um  conhecimento  sólido  de  princípios  intemporais  e  a  uma  noção  clara  das  implicações 
práticas que a perda deste tipo de conhecimento acarreta – uma perda que nenhum avanço na 
ciência moderna nem nenhuma solução de engenharia poderá compensar!  

Mormente,  para  além  destes  textos  que  nos  alertam  para  a  necessidade  de  reconhecer  que 
não se perturba impunemente o equilíbrio da natureza, algo que os povos de outrora sabiam 
bem  melhor  do  que  nós,  e  que  a  superioridade  do  conhecimento  científico  moderno  é 
totalmente  insuficiente  para  nos  proteger  de  todos  os  efeitos  provindos  de  uma  natureza 
desequilibrada,  o  Epílogo  que  encerra  este  terceiro  número  da  revista  e  que  foi  a  fonte  de 
inspiração para a sua capa, um texto penetrante de Frithjof Schuon, recorda‐nos que o homem 
é  portador  de  uma  missão  espiritual  e  que  a  deve  cumprir,  que  o  homem  é  pontifex  ou 

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Editorial 
 

khalîfah, um mediador imediato entre o mundo sobrenatural e o mundo natural, entre o Céu e 
a Terra, entre Deus e a Natureza.  

Não  se  poderá  certamente  exigir  que  uma  mente  desconhecedora  do  conceito  da 
intelectualidade  pura  e  destreinada  na  compreensão  e  aceitação  de  princípios  irrefutáveis, 
como  é  o  caso  de  uma  mente  formatada  ao  padrão  de  pensamento  moderno,  aceite  sem 
resistência  que  existe  uma  relação  directa  entre  o  incumprimento  da  missão  espiritual  do 
homem e a crise ambiental dos nossos dias. É por essa razão que os autores perenialistas ou 
tradicionalistas  lidam  mais  directamente  com  a  enfermidade  intelectual  ou  espiritual  que 
contagiou o mundo moderno, e não apenas com os sintomas da mesma – um desses sintomas, 
entre  outros,  a  crise  ambiental.  É  também  por  essa  razão  que  os  autores  perenialistas  ou 
tradicionalistas  não  advogam  um  sentimentalismo  ecológico  estéril,  nem  defendem  que  se 
abdique de todos os benefícios que a ciência moderna oferece ou que se retorne a modos de 
vida “primitivos”, mas sim que se restaure uma intelectualidade viva, iluminada pela metafísica 
e  pelo  simbolismo,  uma  intelectualidade  que  imprima  no  homem  a  vontade  de  conhecer, 
adorar  e  agradar  ao  “Pai  Céu”,  de  compreender,  acarinhar  e  cuidar  da  “Mãe  Terra”,  e  de 
manter acesa a ligação equilibrada entre estas duas dimensões da vida. 

Dito isto, entregamos ao leitor as páginas de mais este número da Revista Sabedoria Perene e, 
desde  já,  estas  duas  breves  passagens  que  relevam  a  importância  da  função  espiritual  do 
homem para a resolução da crise ambiental.  

O homem não pode exercer a sua função mediadora se permitir que o seu olhar se afaste do 
Deus  que  o nomeou  para  a exercer  e  que  está  sempre  presente  para  guiá‐lo  se  este procurar 
orientação. Se usar a dádiva divina que é o seu domínio da Natureza sem ser à luz de Deus, mas 
antes  para  seu  engrandecimento,  cedo  se  descobre  isolado  e  insignificante,  lutando  em  vão 
contra as forças da Natureza. No final, até os seus próprios poderes se terão virado contra si. A 
Natureza manifesta na mudança as imutáveis disposições do Todo‐Poderoso Deus. A Natureza 
não  tem  escolha.  Nós  temos  escolha,  e  temo‐la  exercido  de  uma  forma  e  até  a  um  ponto  do 
qual parece não existir fuga aos envolvimentos que recaíram sobre nós. 
Lord Northborne (p. 79) 
 

A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural é apenas um aspecto da 
perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O 
esquecem não mais podem sentir‐se em casa na criação. Eles assumem o papel de bactérias que 
acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice‐regente de Deus na 
terra” deixa de ser o curador da natureza e, ao perder a sua função, passa a ser um estranho 
que  não  reconhece  os  marcos  na  terra  nem  se  ajusta  aos  costumes  deste  lugar;  alienado, 
apenas o consegue ver como matéria‐prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas e conforto 
na exploração, mas não a felicidade. 
 Gai Eaton (p. 86) 
 

Nuno M. Almeida 
Vale da Lama, 2 de Agosto de 2011 

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Nuno Almeida 
 

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INTRODUÇÃO 

 
 

 
 

 
 

Direcções para o supra‐sensível1 
por Harry Oldmeadow 
Traduzido por Miguel Conceição 

Um néscio não vê a mesma árvore que vê um homem sábio.  
2
William Blake  
 
 

Introdução 

Seyyed Hossein Nasr inicia o seu livro Religion and the Order of Nature (1996) com as seguintes 
palavras: 

A Terra sangra de feridas infligidas por uma humanidade que perdeu a harmonia com o 
Céu e que, por essa razão, vive em constante conflito com o ambiente terrestre.3  

Apesar  de  amplamente  reconhecido  o  facto  de  nos  encontrarmos,  presentemente,  num 
estado  de  “constante  conflito”,  as  causas  mais  profundas  para  esta  condição  são  raramente 
compreendidas.  Testemunha‐se  o  surgimento  de  uma  pletora  de  obras  dedicadas  à  “crise 
ecológica”  que,  apesar  de  muitas  vezes  bem  intencionadas  e  esporadicamente  denotando 
alguma  acuidade,  são  fundamentalmente  confusas  em  resultado  da  ignorância  de  princípios 
metafísicos  e  cosmológicos  intemporais.  Foi  precisamente  a  tarefa  de  figuras  como  René 
Guénon,  Ananda  Coomaraswamy  e  Frithjof  Schuon,  autoridades  na  exposição  da  sophia 
perennis, a de relembrar  o mundo moderno desses princípios que podem ser ignorados mas 
não  refutados.  O  meu  propósito  com  este  trabalho  é  providenciar  um  esboço, 
maioritariamente  a  partir  de  citações,  de  alguns  dos  princípios  e  doutrinas  que  governam  o 
entendimento  de  Schuon  sobre  a  ordem  natural.  Não  vou  apresentar  uma  explicação 
detalhada mas sim um conjunto elíptico de apontamentos, recorrendo sobretudo a alguns dos 
seus  primeiros  trabalhos,  Light  on  the  Ancient  Worlds  (1965)  e  Spiritual  Perspectives  and 
Human  Facts  (1967),  bem  como  aos  seus  escritos  dedicados  aos  índios  americanos  das 
planícies, reunidos na obra The Feathered Sun: Plains Indians and Philosophy (1990).  

The Feathered Sun é um dos livros mais pessoais escritos por Schuon, delineado de certa forma 
a partir de referências à sua própria experiência – o seu habitual manto de anonimato é como 
que deixado cair por momentos. Esta característica do livro é ainda revelada pelo facto de não 
conseguirmos imaginar qualquer um dos seus companheiros tradicionalistas a escrever algo de 
comparável. O livro, quer em texto, quer em imagem, é permeado pelo sentimento de tristeza 
que  marca  o  desaparecimento  de  uma  economia  espiritual  e  de  um  modo  de  vida  de  uma 
beleza  e  nobreza  extraordinárias.  É  particularmente  comovente  o  facto  de  Schuon  ter  sido 
adoptado  por  ambas  as  tribos  Crow  e  Sioux,  considerando  a  heróica  resistência  por  elas 

Sabedoria Perene 3  13 

 
Harry Oldmeadow 
 

mantida perante a intrusão da “civilização” europeia. Adicionalmente, não podemos deixar de 
ver  em  Schuon  precisamente  estas  qualidades  que  ele  exaltava  nos  índios  –  “um  heroísmo 
estóico  e  combativo  com  uma  base  sacerdotal  [que]  conferia  aos  índios  das  planícies  e  das 
florestas uma espécie de majestade simultaneamente aquilina e solar…”.4  

O amor de Schuon pela natureza, um belo leitmotif nos seus escritos, foi aprofundado durante 
os  dois  períodos  que  ele  e  a  sua  esposa  passaram  com  os  índios  das  planícies  no  final  da 
década de cinquenta e no princípio da década de sessenta. Schuon observou,  

O  índio  está  predisposto  para  o  supra‐sensível  e  aspira  penetrar  a  dura  parede  do 
mundo  sensível,  procura  aberturas  onde  pode  e  encontra‐as  principalmente  nos 
próprios  fenómenos  que,  na  realidade  e  nos  seus  conteúdos,  não  são  mais  do  que 
direcções para o supra‐sensível. As coisas são gélidas melodias do Além.5 

A  sensibilidade  de  Schuon  para  a  transparência  metafísica  dos  fenómenos  e  a  “percepção 


simbolista”  dos  índios  estavam  em  perfeita  sintonia.  Aquilo  que  um  comentador  escreveu 
sobre  o  metafísico  aplica‐se  perfeitamente  aos  próprios  índios:  “para  Schuon,  a  natureza 
virgem transporta uma mensagem de eterna verdade e realidade primordial; e mergulhar na 
mesma é redescobrir uma dimensão da alma que se tornou atrofiada no homem moderno”.6 O 
próprio  Schuon,  ao  escrever  sobre  a  receptividade  dos  índios  pele‐vermelha  às  lições  na 
natureza, afirma: 

A natureza virgem está em uníssono com a santa pobreza e também com a infantilidade 
espiritual; ela é um livro aberto que contém um ensinamento inesgotável de verdade e 
de beleza.   É no seio dos seus próprios artifícios que o homem mais facilmente se torna 
corrompido, são eles que o tornam cobiçoso e ímpio; perto da natureza virgem, que não 
conhece  nem  agitação  nem  falsidade,  ele  tinha  a  esperança  de  permanecer 
contemplativo como a própria natureza.7 

O Absoluto, o relativo e a origem de Maya 

Avancemos agora para a nossa série de apontamentos: em primeiro lugar, para a questão do 
porquê da existência do mundo, do universo e do reino de maya, e de quais as relações entre 
o Absoluto inqualificável  (identificado de modos diferentes, tais  como Divindade8, Supra‐Ser, 
nirguna Brahman e outros), Deus como Criador e o mundo manifestado. Iniciemos com uma 
passagem de Schuon, caracteristicamente densa, sobre esta questão: 

Em  relação  à  questão  da  “origem”  da  ilusão  [maya],  esta  é  daquelas  que  podem  ser 
resolvidas (…) apesar de ser impossível ajustar a sua resolução a todas as necessidades 
de  causalidade  (…)  a  infinitude  da  Realidade  implica  a  possibilidade  da  sua  própria 

Sabedoria Perene 3  14 

 
Direcções para o supra‐sensível 
 

negação (…) e, sendo esta negação impossível no Absoluto em si mesmo, é necessário 
que  esta  “possibilidade  do  impossível”  se  realize  numa  “dimensão  interna”  que  não  é 
“nem  real  nem  irreal”,  isto  é,  que  é  real  no  seu  próprio  nível  ao  mesmo  tempo  que  é 
irreal  em  relação  à  Essência;  daqui  resulta  que  em  toda  a  parte  estamos  em  contacto 
com  o  Absoluto  –  não  podemos  sair  dele  –,  o  qual  é,  no  entanto  e  ao  mesmo  tempo, 
infinitamente distante, de tal modo que nenhum pensamento o pode circunscrever.9 

Não existe nada de anormal ou idiossincrático na formulação de Schuon de uma dimensão que 
“não é real nem irreal”; compare‐se a mesma com esta, por exemplo, de Santo Agostinho: 

Eu contemplei todas estas outras coisas sob Vós, e vi que nem existem absolutamente, 
nem absolutamente deixam de existir. Por certo têm existência pois procedem de Vós; 
e,  no  entanto,  não  existem  pois  não  são  o  que  Vós  sois.  Pois  apenas  existe 
verdadeiramente aquilo que permanece imutável…10  

Abordando a nossa questão de outro ângulo, Schuon escreve o seguinte: 

Se o mundo é necessário em virtude de um mistério da infinitude divina – e não deve 
existir  qualquer  confusão  entre  a  perfeição  da  necessidade  e  a  restrição,  bem  como 
entre a perfeição da liberdade e a arbitrariedade – a necessidade do Ser Criador surge 
naturalmente antes da necessidade do mundo; aquilo que o mundo é para o Ser, o Ser é 
–  mutatis  mutandis  –  para  o  supremo  Não‐Ser.  Maya  não  inclui  apenas  o  todo  da 
manifestação, ela é desde logo afirmada a fortiori “no interior” do Princípio; o Princípio 
divino,  “ao  desejar  ser  conhecido”  –  ou  “ao  desejar  conhecer”  –  aquiesce  para  um 
desdobramento  de  uma  infinitude  interior,  num  primeiro  instante  potencial  e  depois 
exterior  ou  cósmico.  A  relação  “Deus‐mundo”,  “Criador‐criatura”,  “Princípio‐
manifestação”  seria  inconcebível  se  não  estivesse  prefigurada  em  Deus, 
independentemente de qualquer questão de criação.11 

Noutro lugar, Schuon aprofunda a relação entre o Criador e a criatura: 

Que  somos  conformes  a  Deus  –  feitos  à  Sua  imagem  –  não  existem  dúvidas;  de  outro 
modo  não  existiríamos.  Que  somos  contrários  a  Deus,  também  isto  é  certo;  de  outro 
modo não seríamos diferentes de Deus. Sem analogia a Deus não seríamos nada. Sem 
oposição a Deus seríamos Deus. A separação entre o homem e Deus é ao mesmo tempo 
absoluta  e  relativa  (…)  A  separação  é  absoluta  porque  apenas  Deus  é  real  e  não  é 
possível  qualquer  continuidade  entre  a  inexistência  e  a  Realidade;  mas  a  separação  é 
relativa – ou melhor, “não absoluta” – porque nada pode estar fora de Deus. De certa 
forma,  pode  ser  dito  que  a  separação  é  absoluta  do  homem  para  Deus  e  relativa  de 
Deus para o homem.12 

Sabedoria Perene 3  15 

 
Harry Oldmeadow 
 

Para  aqueles  que  procuram,  de  diversas  formas,  alegar  que  a  ideia  de  Deus  é  uma 
“projecção”,  a  “realização  de  um  desejo”,  uma  “ilusão”,  um  “expediente”,  ou  outras 
expressões semelhantes, Schuon afirma o seguinte: 

Existem aqueles que alegam que a ideia de Deus apenas é explicável por oportunismo 
social,  sem  se  darem  conta  do  que  existe  de  infinitamente  desproporcionado  e  de 
contraditório numa tal hipótese; se homens como Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino 
– sem falar dos Profetas, de Cristo e dos sábios da Ásia – não foram capazes de observar 
que  Deus  é  apenas  um  preconceito  social  ou  outra  fraude  análoga,  e  se  séculos  ou 
milénios  foram  baseados  intelectualmente  na  sua  incapacidade,  então  não  há 
inteligência  humana  possível,  muito  menos  qualquer  possibilidade  de  progresso,  pois 
um  ser  absurdo  por  natureza  não  contém  em  si  a  possibilidade  de  deixar  de  ser 
absurdo.13 

Antes  de  deixarmos  o  reino  da  especulação  metafísica  (e  não  nos  deixemos  confundir  pela 
incompreensão moderna da palavra especulação, mantendo em mente a sua ligação à palavra 
“speculum”), podemos relembrar outro dos profícuos dictums de Schuon: “O Infinito é o que é; 
podemos compreendê‐lo ou não. A metafísica não pode ser ensinada a todos; mas se pudesse 
não existiria o ateísmo.”14 

Podemos perguntar‐nos de seguida sobre a natureza do mundo manifestado. Com o que é que 
estamos  a  tratar  neste  conjunto  espácio‐temporal?  O  que  vemos  quando  olhamos  à  nossa 
volta? – pergunta Schuon. 

Em  primeiro  lugar  a  existência;  em  segundo,  diferenças;  em  terceiro,  vemos 
movimentos,  modificações  e  transformações;  em  quarto,  desaparecimentos.  Todas 
estas coisas manifestam, em conjunto, um estado de substância universal: esse estado é 
simultaneamente  uma  cristalização  e  uma  rotação,  um  peso  e  uma  dispersão,  uma 
solidificação  e  uma  segmentação.  Tal  como  a  água  está  no  gelo,  e  os  movimentos  do 
centro no aro, assim está Deus nos fenómenos; Ele está acessível nesses fenómenos e 
através  deles;  este  é  o  grande  mistério  do  simbolismo  e  da  imanência.  Deus  é  “o 
Exterior” e “o Interior”, “o Primeiro” e “o Último”.15 

Este  mundo  de  maya  é  “ilusão”,  não  no  sentido  de  que  é  uma  miragem  ou  uma  fantasia, 
mas no facto da sua “realidade” ser apenas relativa: não tem independência, autonomia ou 
existência fora do próprio Princípio Divino. É um tecido de relatividades, sempre esquivo e 
em mudança, que simultaneamente vela e revela o Absoluto. 

Perante  isto,  como  devemos  olhar  para  os  fenómenos  deste  mundo,  ou  seja,  para  as 
criaturas, para as formas e os processos da natureza, para as qualidades inerentes à ordem 

Sabedoria Perene 3  16 

 
Direcções para o supra‐sensível 
 

natural?  Para  responder  a  esta  questão  de  forma  adequada  é  preciso  compreender  que 
apesar de maya ser, de facto, “ilusão cósmica”, 

(…) ela é também jogo divino. Ela é a grande teofania, o revelar de Deus “em Si mesmo 
e  por  Si  mesmo”  como  diriam  os  sufis.  Maya  pode  ser  associada  a  um  tecido  mágico 
com  uma  teia  que  vela  e  uma  trama  que  revela;  ela  é  o  intermediário  quase 
incompreensível entre o finito e o Infinito – pelo menos do ponto de vista das criaturas 
– e, como tal, ela tem toda a ambiguidade multicolor apropriada à sua natureza, parte 
cósmica, parte divina.16 

Assim,  

(…) o termo maya combina os significados de “poder produtivo” e “ilusão universal”; é o 
jogo inesgotável de manifestações, disposições, combinações e reverberações, um jogo 
com o qual Atma se reveste, tal como o oceano se reveste com um manto de espuma 
sempre renovado e diverso.17 

É  neste  contexto  que  podemos  compreender  em  profundidade  os  muitos  apotegmas  que 
caracterizam os escritos de Schuon dedicados à natureza. Aqui fica uma pequena amostra: 

Para o sábio, cada flor é uma prova metafísica do Infinito.18 

O sol, não sendo Deus, deve prostrar‐se todas as noites perante o trono de Allah (…)19 

Deus revela‐se às plantas sob a forma da luz do sol. A planta vira‐se sem resistência para 
a luz; não pode ser ateísta ou ímpia.20 

Os frutos da terra e a chuva do céu, que tornam a vida possível, não são mais do que 
manifestações  da  Bondade  que  penetra  em  toda  a  parte  e  que  aquece  o  mundo;  e 
transportamos essa Bondade no nosso interior, no fundo dos nossos corações gélidos.21 

Escusado  seria  dizer  que,  neste  domínio,  uma  ciência  material  e  empírica  não  nos  presta 
qualquer tipo de auxílio: 

(…)  a  ciência  moderna  é  um  racionalismo  totalitarista  que  elimina  a  Revelação  e  o 


Intelecto  e,  ao  mesmo  tempo,  um  totalitarismo  materialista  que  ignora  a  relatividade 
metafísica  –  e  daí  a  impermanência  –  da  matéria  e  do  mundo.  Ignora  que  o 
supra‐sensível,  situado  para  além  do  espaço  e  do  tempo,  é  o  princípio  concreto  do 
mundo  e  que,  consequentemente,  está  na  origem  daquela  coagulação  contingente  e 
mutável a que chamamos “matéria”. Uma ciência denominada “exacta” é, na realidade, 

Sabedoria Perene 3  17 

 
Harry Oldmeadow 
 

uma “inteligência sem sabedoria”, tal como a filosofia pós‐escolástica é, inversamente, 
uma “sabedoria sem inteligência”.22 

A natureza do simbolismo e o simbolismo da natureza 

Uma  compreensão  adequada  da  ordem  natural  deve  ter  por  base  um  conhecimento  da 
doutrina  dos  arquétipos  e  uma  concomitante  compreensão  do  simbolismo.23  Em  tempos 
antigos,  a  doutrina  dos  arquétipos  era adoptada  em  todas  as  partes  do  mundo.  Nenhuma 
tradição integral foi capaz de a dispensar, apesar das diferentes linguagens com as quais se 
revestiram possam falar não de arquétipos mas de “essências”, “universais”, “luzes”, “ideias 
divinas” e outras similares. Foi Platão quem ofereceu a esta doutrina a sua mais definitiva 
expressão  europeia,  mas  esta  não  tem  nada  de  peculiarmente  ocidental.  Esta  doutrina 
reside  na  raiz  de  todas  as  teorias  tradicionais  da  arte.  Como  introdução,  utilizemos  a 
seguinte amostra de citações sugestivas: 

Uma forma é produzida na vontade resignada de acordo com a plataforma ou o modelo 
da eternidade, tal como era conhecida na eterna sabedoria de Deus antes dos tempos 
deste mundo. (Jacob Boehme) 

Todas  as  formas  do  ser  neste  mundo  corpóreo  são  imagens  de  puras  “Luzes”,  que 
existem no mundo espiritual. (Suhrawardi) 

Os Sábios receberam o ensinamento de Deus de que este mundo natural é apenas uma 
imagem e uma cópia de um padrão celeste e espiritual; que a própria existência deste 
mundo se baseia na realidade dos seus arquétipos celestes. (Michael Sendivogius) 

As coisas envolvem sempre universais (…) Se não existissem universais não poderíamos 
falar das coisas como coisas. (Kung‐sun Lung)24 

O Cavalo Louco teve um sonho no qual ia em direcção ao mundo onde apenas existem 
os  espíritos  das  coisas.  Esse  é  o  mundo  real  que  está  por  detrás  deste,  e  tudo  o  que 
vemos aqui é como que uma sombra desse outro mundo. (Alce Negro)25 

Formulações deste tipo poderiam ser multiplicadas indefinidamente, mas tal é claramente 
desnecessário.  Mestre  Eckhart  forneceu  uma  formulação  muito  concisa  da  doutrina  ao 
escrever  “a  forma  é  revelação  da  essência”.26  Tudo  o  que  existe,  qualquer  que  seja  a  sua 
modalidade,  participa  necessariamente  em  princípios  universais  que  correspondem  a 
essências incriadas e imutáveis e que estão contidas, recorrendo às palavras de Guénon, na 
“actualidade  permanente  do  Intelecto  Divino”.  Consequentemente,  todo  o  fenómeno,  por 
muito efémero e contingente que seja, “traduz” ou “representa” estes princípios de acordo 

Sabedoria Perene 3  18 

 
Direcções para o supra‐sensível 
 

com o seu modo particular e o seu nível de existência. Sem a participação do imutável, eles 
seriam “pura e simplesmente inexistentes”.27 A doutrina dos arquétipos implica também a 
existência  de  múltiplos  estados  do  ser  e  uma  estrutura  hierárquica  do  cosmos.  Tal  como 
escreve Abu Bakr Siraj Ad‐Din:  

(…) se um mundo não lançasse sombra de cima os mundos inferiores desapareceriam, 
pois  na  criação  cada  mundo  não  é  mais  do  que  um  tecido  de  sombras  totalmente 
dependente dos arquétipos do mundo superior.28 

As analogias entre os arquétipos ou “Ideias Divinas” e as formas materiais transitórias deste 
mundo,  “esta  multiplicidade  volátil  e  efémera”,  como  a  elas  se  refere  Guénon,  concedem 
aos  fenómenos  determinadas  significações  qualitativas  que  os  tornam  expressões 
simbólicas  de  realidades  superiores.  A  mesma  ideia  está  implícita  na  afirmação  de  Mircea 
Eliade que o homo religiosus é, necessariamente, homo symbolicus.29 

 O  entendimento  tradicionalista  da  natureza  e  da  arte  sagrada  é  baseado  numa 
compreensão  muito  precisa  da  natureza  do  simbolismo.  Um  símbolo  pode  ser  definido 
como  uma  realidade  de  uma  ordem  inferior  que  participa  de  modo  analógico  numa 
realidade de uma ordem superior do ser. Deste modo, um símbolo devidamente constituído 
depende  das  qualidades  inerentes  e  objectivas  dos  fenómenos,  bem  como  da  sua  relação 
com realidades espirituais. Assim, a ciência do simbolismo resulta numa disciplina rigorosa 
que  deve  ter  por  base  um  discernimento  das  significações  qualitativas  das  substâncias, 
cores, formas, relações espaciais, etc. Isto é crucial. Schuon afirma: 

(…) não estamos aqui a lidar com apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas 
estão  ordenadas  em  relação  ao  ser  e  de  acordo  com  uma  hierarquia  mais  real  que  o 
individual; elas são, assim, independentes dos nossos gostos pessoais (…)30 

Este princípio é tão importante que merece ser reafirmado, recorrendo agora às palavras de 
Seyyed Hossein Nasr: 

O  símbolo  não  se  baseia  em  convenções  criadas  pelo  homem.  Ele  é  um  aspecto  da 
realidade ontológica das coisas e, como tal, independente da percepção que o homem 
tem  dele.  O  símbolo  é  a  revelação  de  uma  ordem  de  realidade  superior  numa  ordem 
inferior,  através  da  qual  o  homem  pode  ser  reencaminhado  para  o  reino  superior. 
Aceitar  os  símbolos  implica  aceitar  a  estrutura  hierárquica  do  universo  e  dos  estados 
múltiplos do ser.31 

As  significações  simbólicas  não  podem  ser  inventadas  ou  imputadas.  O  simbolismo 
tradicional  é,  na  realidade,  uma  linguagem  objectiva  concebida,  não  de  acordo  com  os 

Sabedoria Perene 3  19 

 
Harry Oldmeadow 
 

impulsos individuais ou “gostos” colectivos, mas sim em conformidade com a natureza das 
coisas.  Este  simbolismo  deverá  ter  em  consideração  não  apenas  a  “beleza  sensível”  mas 
também  “as  fundações  espirituais  dessa  beleza”.32  Em  resultado  da  sua  precisão  e 
objectividade,  um  símbolo  tradicional  pode  ser  considerado  com  um  “calculus”  ou  uma 
“álgebra” para expressar ideias universais: “a função de qualquer símbolo é quebrar a casca 
de esquecimento que resguarda o conhecimento imanente no Intelecto”.33 A concepção do 
simbolismo  como  uma  linguagem  objectiva  é  axial  no  trabalho  mais  amadurecido  de 
Coomaraswamy, grande parte do qual foi direccionado para o despertar de uma adequada 
compreensão  do  vocabulário  simbólico  das  artes  tradicionais.  Numa  das  suas  formulações 
características, afirma: 

O  simbolismo  é  uma  linguagem  e  uma  forma  precisa  de  pensamento;  uma  linguagem 
hierática  e  metafísica,  não  uma  linguagem  determinada  por  categorias  somáticas  ou 
psicológicas.  A  sua  fundação  assenta  sobre  correspondências  analógicas  (…)  o 
simbolismo  é  um  calculus,  no  mesmo  sentido  em  que  uma  analogia  adequada  é  uma 
prova.34 

O estudo de símbolos tradicionais implica, assim, métodos tão rigorosos ou sensíveis como 
os  do  filologista.  Nada  pode  ser  mais  incorrecto  do  que  uma  interpretação  subjectiva  de 
símbolos  tradicionais,  os  quais  são  tão  susceptíveis  de  palpites  como  o  é  uma  linguagem 
arcaica. Tal como refere Coomaraswamy, o estudo desse simbolismo não é tarefa fácil, não 
apenas porque o mesmo símbolo pode ter sido utilizado de formas diferentes, mas porque 
já não estamos familiarizados com todo o peso metafísico que outrora carregavam.35 

A ciência do simbolismo é uma espécie de analogia objectiva do dom de “ver Deus em toda 
a  parte,”  isto  é,  da  percepção  da  transparência  metafísica  dos  fenómenos  e  da  dimensão 
transcendente  presente  em  qualquer  situação  cósmica.36  Ramakrishna,  um  exemplo  deste 
dom, entrava em êxtase com a visão de um leão, um pássaro ou uma bailarina, apesar de no 
seu caso, refere Schuon, não se tratar tanto de um decifrar do simbolismo mas sim de um 
“saborear das essências”.37 Eliade, ao aproximar‐se da questão de um ângulo distinto, refere 
que  para  o  homo  religiosus  tudo  na  natureza  era  capaz  de  se  revelar  como  “sacralidade 
cósmica”,  como  uma  hierofania.  Observa  ainda  que  para  a  nossa  era  secular  o  cosmos  se 
tornou “opaco, inerte, silencioso; não transmite qualquer mensagem, não contém nenhuma 
cifra”.38 

Beleza: radiação divina 

Não  queremos  terminar  sem  dedicar  algumas  palavras  à  questão  da  beleza,  a  qual 
encontramos difundida por toda a parte na ordem natural, na própria forma humana e na 
arte sagrada. Em primeiro lugar, existe uma íntima conexão entre a verdade, a bondade e a 
beleza. As suas inter‐relações são praticamente inexauríveis e aquilo que poderíamos dizer 

Sabedoria Perene 3  20 

 
Direcções para o supra‐sensível 
 

sobre  este  assunto  é  infindável.  Vamos  procurar  estabelecer  apenas  alguns  aspectos  mais 
gerais tomando como ponto de referência a natureza da beleza. Marsilio Ficino, platonista 
da renascença, definiu a beleza como “aquele raio que, partindo do rosto de Deus, penetra 
todas  as  coisas”.39  Na  generalidade  dos  cânones  tradicionais,  a  beleza  apresenta  esta 
qualidade divina. A beleza é uma manifestação do Infinito num plano finito e, desta forma, 
introduz  algo  do  Absoluto  no  mundo  de  relatividades.  O  seu  carácter  sagrado  “confere  às 
coisas perecíveis uma textura de eternidade”.40 Schuon refere: 

O arquétipo da beleza, ou o seu modelo divino, é a superabundância e o equilíbrio das 
qualidades  divinas  e,  simultaneamente,  o  transbordar  das  potencialidades  existenciais 
no  Ser  puro  (…)  Assim,  a  beleza  manifesta  sempre  uma  realidade  de  amor,  de 
desdobramento, do ilimitado, de equilíbrio, de beatitude e de generosidade.41 

Ela é distinta mas não separada da verdade e da virtude. Como afirmou Tomás de Aquino, a 
beleza  está  relacionada  com  a  faculdade  cognitiva  e,  assim,  com  a  sabedoria.42  A  relação 
entre a beleza e a virtude permite‐nos afirmar que estas não são mais do que duas faces de 
uma  mesma  realidade:  “a  bondade  é  a  beleza  interna,  e  a  beleza  é  a  bondade  externa”.43 
Por  outras  palavras,  e  apesar  do  que  afirmou  Óscar  Wilde,  não  existem  vícios  belos,  tal 
como  não  existem  virtudes  feias.  As  inter‐relações  entre  a  beleza,  a  verdade  e  a  bondade 
explicam a razão pela qual, nas tradições orientais, todo o avatara personifica uma beleza 
perfeita. É dito dos Budas que eles salvam não apenas pela sua doutrina mas também pela 
sua beleza sobrehumana.44 

A passagem seguinte apresenta um resumo de Schuon sobre estes princípios: 

(…) a função terrestre da beleza é a actualização da lembrança platónica dos arquétipos 
na  criatura  inteligente  (…)  na  percepção  do  belo  deve  ser  feita  uma  distinguo  entre  a 
sensação estética e a correspondente beleza da alma, isto é, uma determinada virtude. 
Para  além  de  qualquer  questão  de  “consolação  sensível”,  a  mensagem  da  beleza  é  ao 
mesmo  tempo  intelectual  e  moral:  intelectual  porque  nos  comunica  aspectos  da 
Substância num mundo de acidentalidade, sem que para isso tenha que se recorrer ao 
pensamento  abstracto;  e  moral,  porque  nos  relembra  do  que  devemos  amar  e,  por 
consequência, ser.45 

A beleza, seja ela natural ou criada pelo homem, pode ser uma porta aberta ou uma porta 
fechada:  quando  é  identificada  apenas  com  o  seu  suporte  terreno  deixa  o  homem 
vulnerável à idolatria e ao mero esteticismo; aproxima‐nos de Deus quando “pressentimos 
nela as vibrações da Beatitude e da Infinitude que emanam da Beleza Divina”.46 

* * * 

Sabedoria Perene 3  21 

 
Harry Oldmeadow 
 

Está  para  além  do  objectivo  deste  texto  estabelecer  conexões  entre  os  princípios 
tradicionais expostos por Schuon e as questões e os problemas particulares que perturbam 
o  debate  contemporâneo  sobre  o  “ambiente”.47  Será  suficiente  dizer  que  todos  os  que  se 
preocupam  com  a  actual  “crise  ecológica”  (sintoma  de  uma  mais  profunda  enfermidade 
espiritual) deveriam ponderar as implicações da seguinte passagem de Schuon: 

Este destronamento da natureza, ou esta cisão entre o homem e a terra – um reflexo da 
cisão entre o homem e Deus – tem dado frutos tão amargos que não deveria ser difícil 
admitir  que,  nos  dias  de  hoje,  a  mensagem  intemporal  da  natureza  constitui  um 
viaticum  espiritual  da  maior  importância.  (…)  Não  se  trata  de  projectar  um 
individualismo  sobre‐saturado  e  desiludido  numa  natureza  dessacralizada  –  isto  seria 
uma  mundanidade  como  muitas  outras  –  mas,  pelo  contrário,  uma  redescoberta  da 
substância  divina  na  natureza,  a  qual  lhe  é  inerente,  adoptando  como  base  a 
perspectiva tradicional; isto seria, noutras palavras, “ver Deus em toda a parte” (…)48  

NOTAS 
1  –  N.T.:  Título  original:  “Sinais  para  o  supra‐sensível.  Notas  sobre  o  entendimento  de  Frithjof  Schuon  sobre 
“Natureza”. 

2 – The Proverbs of Hell. 

3 – Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature, New York: Oxford University Press, 1996, p.3. 
4 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun: Plains Indians  in Art and Philosophy, Bloomington: World Wisdom Books, 
1990, pp.39‐40.  

5 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun, p.154.  

6 – Barbara Perry, Frithjof Schuon, Metaphysician and Artist, Bloomington, 1981, p.6. 
7 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds, London: Perennial Books, 1965, p.84.  

8 – N.T.: Tradução da palavra inglesa Godhead, em referência à distinção de Mestre Eckhardt entre Gott e Gottheit, 
isto  é,  Got  ou  Deus  como  o  Divino  enquanto  expresso  de  uma  forma  pessoal  (Criador),  e  Gottgeit  ou  Divindade 
como a transpersonalidade divina do Absoluto como tal. 

9 – Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, London: Perennial Books, 1979, 72‐73. Como escreveu também Schuon, 
“a  Maya  divina,  relatividade,  é  a  consequência  necessária  da  própria  infinitude  do  Princípio”,  Logic  and 
Transcendence,  New  York:  Harper  &  Row.  1975,89.  Ver  também  Frithjof  Schuon,  “Atma‐Maya,”  Studies  in 
Comparative Religion, 7:3. Spring, 1977, passim.  

10 – Confessions 9.vii, Harmondsworth: Penguin, 1969.  

11 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds, p.190. 

12 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, London: Perennial Books, 1967, pp.160‐161.  

13 – Frithjof Schuon. Stations of Wisdom, London: Perennial Books, 19110, p.36.  

14 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.50.  

15 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, pp.111‐112.  

16 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, 119. Ver também o editorial What Thirst is For na Sacred Web, 4, 
pp.13‐14.  
17 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, p.89n.  

Sabedoria Perene 3  22 

 
Direcções para o supra‐sensível 
 

18 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.10.  

19 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, p.93.  

20 – Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.134. 

21 – Frithjof Schuon, Light on the Ancient World, p,115.  

22 – Frithjof Schuon. Light on the Ancient World, p.117.  

23  –  Tendo  em  consideração  a  popularidade  das  ideias  de  Jung  sobre  os  “arquétipos”,  é  importante  referir  que 
estas  ideias  não  constituem  qualquer  tipo  de  doutrina  metafísica  e  que,  pelo  contrário,  não  são  mais  do  que 
hipóteses precárias sobre determinados fenómenos psíquicos. 

24  –  Estas  quatro  citações  foram  retiradas  do  magistral  compêndio  de  Whitall  Perry’s,  A  Treasury  of  Traditional 
Wisdom, London: Allen & Unwin, 1971, p.671, 673, 672 & 670 respectivamente. 

25 – Em John Neihardt (ed), Black Elk Speaks, London: Abacus, 1974, p.67.  

26 – Mester Eckhart, A Treasury of Traditional Wisdom, p.673.  

27 – René Guénon, Autorité spirituelle et pouvoir temporel, citado em A Treasury of Traditional Wisdom, p.302.  

28 – Abu Bakr Siraj Ad‐Din The Book of Certainty Samuel Weiser, New York, 1974, 50. Este livro apresenta‐nos uma 
perspectiva sufi da doutrina dos arquétipos e dos estados múltiplos do ser. Ver também René Guénon, The Multiple 
States of Being, New York: Larson, 1984.  

29 – Ver Mircea Eliade, “Methodological Remarks on the Study of Religious Symbolism” em Mircea Eliade & Joseph 
Kitagawa (eds), The History of Religions: Essays in Methodology, Chicago: University of Chicago Press, 1959, p.95. 

30 – Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, p.110.  
31  –  Seyyed  Hossein  Nasr,  Sufi  Essays,  London:  Allen  &  Unwin,  1972,  p.88.  Ver  também  Marco  Pallis,  A  Buddhist 
Spectrum. London: Allen & Unwin, 1980, pp.144‐163. 

32  –  Frithjof  Schuon:  “Foundations  of  an  Integral  Aesthetics,”  Studies  in  Comparative  Religion.  10:3,  1976,  p.130. 
Ver  também  Brian  Keeble,  “Tradition,  Intelligence  and  the  Artist,”  Studies  in  Comparative  Religion,  11:4,  1977, 
pp.240‐241.  

33 – Frithjof Schuon, Esoterism as Principle and as Way, London: Perennial Books, 1981, p.11. Ver também Frithjof 
Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p.40.  

34 – A.K. Coomaraswamy, “The Nature of Buddhist Art” em Selected Papers 1: Traditional Art and Symbolism, ed. 
Roger Lipsey. Princeton: Bollingen Press, 1977, pp.174‐175. Ver também uma carta não datada de Coomaraswamy 
para um anónimo e para Robert Ulich, July 1942, em Selected Letters of Ananda Coomaraswamy, ed. Alvin Moore, 
Jr. & Rama P. Coomaraswamy, Delhi: Oxford University Press, 1988, pp.210‐212 & pp.214‐215.  

35 – A.K. Coomaraswamy, “The Iconography of Durer’s ‘Knots’ and Leonardo’s ‘Concatenation”’, The Art Quarterly, 
7:2, 1944, 125; citado em A Treasury of Traditional Wisdom, p.305.  
36 – Ver Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom, 106‐121 e Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature, London: Allen & 
Unwin, 1976, p.131. 

37  –  Frithjof  Schuon,  “Foundations  of  an  Integral  Aesthetics,”  135n.  Ver  também  Christopher  Isherwood, 
Ramakrishna and His Disciples, Calcutta: Advaita Ashram, 1974, 61ff.  

38 – Mircea Eliade, The Sacred and the Profane, New York: Harcourt, Brace & Jovanovich, 1959, p.12 & p.178.  

39 – Quoted in R.J. Clements, Michelangelo’s Theory of Art, New York: New York University Press, 1971, p.5.  

40 – Frithjof Schuon, Understanding Islam, London: Allen & Unwin, 1976, p.48. 

41 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, p.241.  

42  –  Ver  A.K.  Coomaraswamy,  “The  Mediaeval  Theory  of  Beauty”  em  Selected  Papers  I:  Traditional  Art  and 
Symbolism, p.211‐20, e dois ensaios, “Beauty and Truth” e “Why Exhibit works of Art?” em Christian and Oriental 
Philosophy of Art, New York: Dover, 1956, pp.7‐22 (esp. pp.16‐18) & pp.102‐109.  

Sabedoria Perene 3  23 

 
Harry Oldmeadow 
 

43 – Frithjof Schuon, Logic and Transcendence, pp.245‐246. Ver também Frithjof Schuon, Esoterism as Principle and 
as Way, p.95. 

44 – Como assinala Schuon, o nome “Shunyamurti” – manifestação do vazio – aplicado a um Buda, está repleto de 
significado; Spiritual Perspectives and Human Facts, 25n. Ver também Frithjof Schuon, In the Tracks of Buddhism, 
London: Allen & Unwin, 1968, p.121. 

45 – Frithjof Schuon, “Foundations of an Integral Aesthetics,” pp.131‐132. 

46 – Frithjof Schuon, “Foundations of an Integral Aesthetics,” p.135. 

47  –  Alguns  destes  são  sumariamente  discutidos  no  meu  anterior  artigo,  “‘The  Translucence  of  the  Eternal’: 
Religious Understandings of the Natural Order”, Sacred Web, 2, pp.11‐31. 

48 – Frithjof Schuon, The Feathered Sun, p.13. 

Sabedoria Perene 3  24 

 
 

METAFÍSICA E SIMBOLISMO: 
SACRALIZAÇÃO DA NATUREZA 

   

 
 

 
 

   

 
 

Ver Deus em toda a parte 
por Frithjof Schuon 
Traduzido por Miguel Conceição 

Ouve‐se dizer com frequência que é necessário “ver Deus em toda a parte” ou “em todas as 
coisas”;  tal  não  parece  difícil  de  conceber  para  homens  que  crêem  em  Deus.  No  entanto, 
existem aqui muitos graus, os quais vão desde o simples devaneio até à intuição intelectual. 
Como se pode tentar “ver Deus”, que é invisível e infinito, nas coisas visíveis e finitas, sem se 
correr risco de iludir‐se ou da queda no erro, ou sem dar àquilo de que se trata um sentido 
de  tal  forma  vago  que  as  palavras  acabam  por  perder  todo  o  significado?  É  isso  que  nos 
propomos a aclarar aqui, apesar de tal nos obrigar a regressar a alguns pontos já tratados 
noutras ocasiões. 

Em  primeiro  lugar,  há  que  considerar  nas  coisas  que  nos  rodeiam  –  bem  como  na  nossa 
própria  alma,  na  medida  em  que  é  um  objecto  da  nossa  inteligência  –  esse  algo  que 
poderíamos  chamar  o  “milagre  da  existência”.  Com  efeito,  a  existência  tem  algo  de 
milagroso:  é  através  dela  que  as  coisas  se  separam,  por  assim  dizer,  do  nada1;  a  distância 
entre  elas  e  o  nada  é  infinita  e,  visto  desta  perspectiva,  o  menor  grão  de  pó  tem  algo  de 
absoluto,  logo  de  “divino”.  Dizer  que  é  necessário  “ver  Deus  em  toda  a  parte”  significa, 
antes de tudo, que é necessário vê‐lo na existência dos seres e das coisas, incluindo a nossa. 

Mas  os  fenómenos  não  têm  apenas  a  existência,  caso  contrário  não  seriam  distintos;  eles 
têm também qualidades, as quais se sobrepõem a ela de algum modo e desdobram as suas 
virtualidades.  A  qualidade  que  distingue  uma  coisa  boa  de  uma  má  é,  em  menor  escala, 
semelhante  à  existência  que  distingue  todas  as  coisas  do  nada2;  por  conseguinte,  as 
qualidades positivas representam Deus, tal como o faz a existência pura e simples. Os seres 
são  atraídos  pelas  qualidades  porque  são  atraídos  por  Deus;  toda  a  qualidade  ou  virtude, 
quer  se  trate  da  mais  insignificante  propriedade  física,  quer  da  mais  profunda  virtude 
humana,  transmite‐nos  algo  da  Perfeição  divina  que  é  a  sua  fonte  imutável,  de  tal  forma 
que, metafisicamente falando, não saberíamos amar por qualquer outro motivo que não por 
essa Perfeição. 

Mas existe ainda uma outra “dimensão” a considerar, para o homem que busca a lembrança 
de Deus nas coisas. O gozo que nos proporcionam as qualidades mostra‐nos que estas não 
só existem em torno de nós, como também nos dizem respeito pessoalmente em virtude da 
Providência;  pois  uma  coisa  é  uma  paisagem  que  existe  sem  que  a  possamos  ver,  e  outra 
coisa  é  uma  paisagem  que  temos  perante  nós.  Existe  portanto  uma  dimensão  “subjectiva 
temporal”  que  se  adiciona  à  dimensão  “objectiva  espacial”,  se  nos  é  permitido  exprimir 
desta forma: as coisas lembram‐nos Deus não somente na medida em que são boas ou que 
têm  um  aspecto  de  bondade,  mas  também  na  medida  em  que  podemos  pressentir  essa 

Sabedoria Perene 3  27 

 
Frithjof Schuon 
 

bondade ou podemos dela gozar de uma maneira directa. No ar que respiramos, e que nos 
poderia  faltar,  encontramos  Deus,  no  sentido  em  que  o  Doador  divino  está  no  dom.  Esta 
maneira  de  “ver  Deus”  nos  seus  dons  corresponde  ao  “agradecimento”,  enquanto  a 
percepção  das  qualidades  corresponde  ao  “louvor”;  quanto  à  “visão”  de  Deus  na  simples 
existência, esta gera na alma uma consciência geral ou fundamental da Realidade divina. 

Assim, Deus revela‐se ao mesmo tempo pela existência e pelas qualidades das coisas, e pelo 
dom que nos dá das mesmas; revela‐se também pelos contrários, a saber, pela limitação das 
coisas  e  pelos  seus  defeitos3,  bem  como  pela  ausência  ou  pelo  desaparecimento  daquilo 
que,  sendo  bom,  nos  é  útil  ou  agradável.  Assinalaríamos  que  o  oposto  concreto  da 
existência não é o nada – este não é mais do que uma abstracção –, mas sim a limitação, a 
qual  impede  a  existência  de  se  estender  até  ao  Ser  puro  e,  portanto,  tornar‐se  Deus…  As 
coisas  são  limitadas  de  múltiplas  maneiras,  mas  antes  de  tudo  pelas  suas  determinações 
existenciais,  que  são,  para  o  plano  terrestre,  a  matéria,  a  forma,  o  número,  o  espaço,  o 
tempo.  Há  que  distinguir  claramente  entre  o  aspecto  “limite”  e  o  aspecto  “defeito”:  com 
efeito, a fealdade de uma criatura não é da mesma ordem que a limitação espacial de um 
corpo  perfeito,  pois  este  último  exprime  uma  forma,  um  princípio  normativo  ou  um 
símbolo, enquanto que aquela não corresponde a mais do que uma carência e não faz mais 
senão  turvar  a  claridade  do  simbolismo.  Seja  como  for,  aquilo  que  Deus  revela  pela 
limitação  das  coisas,  depois  pelos  seus  defeitos  e  também,  no  que  concerne  o  sujeito 
humano,  pela  privação  das  coisas  ou  das  qualidades,  é  o  carácter  “não  divino”,  logo 
“ilusório” ou “irreal”, de tudo o que não é Ele. 

* * * 

Todas as coisas não são mais do que as acidentalidades de uma substância única e universal, 
a Existência,  que  permanece sempre virgem em relação às suas produções; ela manifesta, 
mas ela mesma não é manifestada; isto é, ela é o acto divino, o acto criador que, a partir do 
Ser,  produz  o  conjunto  das  criaturas.  É  então  a  Existência  que  é  real,  não  as  coisas;  a 
substância, não os acidentes; o invariável, não as variações. Sendo assim, como poderiam as 
coisas  não  ser  limitadas,  e  como  poderiam  elas  não  proclamar,  pelas  suas  múltiplas 
limitações, a unicidade da Palavra divina, e por isto de Deus? Pois a Substância universal não 
é distinta da Palavra criadora, a palavra “sê!”, a partir da qual brotam todos os seres. 

Dizer  “existir”  é  dizer  “ter  qualidades”,  mas  é  também  dizer  “ter  limites”,  bem  como 
defeitos.  Já  assinalámos  que  as  coisas  são  limitadas,  não  apenas  em  si  mesmas,  mas 
também em relação a nós; elas são limitadas e efémeras e, ao mesmo tempo, escapam‐nos, 
seja  pelo  seu  afastamento  espacial,  seja  pelo  destino  que  as  arrebata.  Também  isto  nos 
permite “ver Deus em todas as coisas”, pois se Deus, ao dar, manifesta a sua Realidade, a 
sua  Plenitude  e  a  sua  Presença,  manifesta  a  nossa  relatividade,  o  nosso  vazio  e  a  nossa 
ausência – em relação a Ele – ao tirar, isto é, ao recolher aquilo que havia dado. 

Sabedoria Perene 3  28 

 
Ver Deus em toda a parte 
 

Assim como as qualidades expressam a existência no próprio plano desta, do mesmo modo 
as  limitações  expressam,  em  sentido  inverso,  a  irrealidade  metafísica  das  coisas.  E  essa  é 
uma outra maneira de “ver Deus em toda a parte”: pois todas as coisas, ao existirem, são 
por  essa  mesma  razão  “irreais”  em  relação  à  Realidade  absoluta;  é,  assim,  necessário 
discernir  em  todas  as  coisas  não  somente  os  aspectos  existenciais,  mas  também  o  “nada” 
ante Deus ou, noutros termos, a irrealidade metafísica do mundo. E é a própria existência4 
que  nos  fornece  a  “substância”  desse  “nada”:  as  coisas  são  irreais  ou  ilusórias  na  mesma 
medida  em  que  mergulham  na  existência  e  que,  por  esse  motivo,  o  seu  contacto  com  o 
Espírito divino se torna cada vez mais indirecto. 

A  qualidade,  dissemos,  expressa  a  existência  no  próprio  plano  desta;  e,  podemos  dizer  de 
maneira  análoga,  que  o  defeito  expressa  a  limitação  de  um  modo  unicamente  negativo  e 
acidental.  Pois  a  limitação  detém‐se,  de  certa  forma,  entre  a  existência  e  o  nada:  ela  é 
positiva  na  medida  em  que  descreve  uma  forma‐símbolo,  e  negativa  na  medida  em  que 
desfigura  essa  forma  ao  querer  reduzi‐la  de  algum  modo,  mas  “por  baixo”,  em  direcção  à 
indistinção  da  essência;  trata‐se  da  confusão  clássica  entre  o  supra‐formal  e  o  informal, 
confusão  que  é,  diga‐se  de  passagem,  a  chave  da  arte  “abstracta”  e  do  “surrealismo”.  No 
entanto,  apesar  da  forma  ter  uma  função  positiva  graças  ao  seu  poder  de  expressão,  ela 
limita  ao  mesmo  tempo  aquilo  que  expressa,  e  que  é  uma  essência;  o  mais  belo  corpo  é 
como um fragmento congelado de um oceano de inefável beatitude. 

* * * 

A todas estas categorias existenciais, tanto subjectivas como objectivas, podemos adicionar 
as  do  simbolismo.  Embora  todo  o  fenómeno  seja  forçosamente  um  símbolo,  pois  a 
existência  é  essencialmente  expressão  ou  reflexo,  há  que  distinguir  contudo  os  graus  de 
conteúdo  e  de  inteligibilidade:  por  exemplo,  existe  uma  diferença  eminente  –  e  não 
simplesmente quantitativa – entre um símbolo directo como o sol e um símbolo indirecto e 
quase  acidental;  para  além  disso  existe  o  símbolo  negativo,  cuja  inteligibilidade  pode  ser 
perfeita, mas cujo conteúdo é tenebroso, sem esquecer o duplo sentido de muitos símbolos, 
mas não dos mais directos. A ciência simbolista – não o mero conhecimento dos símbolos 
tradicionais  –  procede  das  significações  qualitativas  das  substâncias,  das  formas,  das 
direcções espaciais, dos números, dos fenómenos naturais, das posições, das relações, dos 
movimentos,  das  cores  e  de  outras  propriedades  ou  estados  das  coisas;  não  se  tratam  de 
apreciações subjectivas, pois as qualidades cósmicas estão ordenadas em direcção ao Ser e 
segundo uma hierarquia que é mais real do que o indivíduo; elas são, assim, independentes 
dos  nossos  gostos  ou,  mais  exactamente,  os  determinam  na  medida  em  que  nós  próprios 
somos  conformes  ao  Ser;  assentimos  as  qualidades  na  medida  em  que  somos 
“qualitativos”5.  O  simbolismo,  quer  resida  na  natureza,  quer  se  afirme  na  arte  sagrada, 
corresponde, também  ele, a uma  maneira de “ver Deus em toda  a parte”, sob a condição 
que esta visão seja espontânea graças a um conhecimento íntimo dos princípios dos quais 

Sabedoria Perene 3  29 

 
Frithjof Schuon 
 

procede  a  ciência  simbolista;  esta  ciência  coincide  em  certo  ponto  com  o  “discernimento 
dos  espíritos”,  o  qual  ela  transfere  para  o  plano  das  formas  ou  dos  fenómenos,  daí  a  sua 
estreita conexão com a arte cultual. 

Agora, “como” simbolizam as coisas Deus ou os “aspectos divinos”? Não podemos dizer que 
Deus é esta árvore, tão pouco que esta árvore é Deus, mas podemos dizer que a árvore, sob 
um  determinado  aspecto,  não  é  “outra  coisa  senão  Deus”,  ou  que,  visto  que  não  é 
inexistente, não pode, de forma alguma, não ser Deus. Pois a árvore tem existência, depois, 
a  vida  que  a  distingue  dos  minerais,  de  seguida,  as  suas  qualidades  particulares  que  a 
distinguem das outras plantas e, por fim, o seu simbolismo, tudo isso constituindo formas da 
árvore não só não “ser o nada”6, como também afirmar Deus sob este ou aquele aspecto: a 
vida, a criação, a majestade, a imutabilidade axial ou a generosidade. 

O simbolismo não teria qualquer sentido se não fosse um modo contingente, mas sempre 
consciente, da percepção da Unidade; pois “ver Deus em toda a parte” é perceber, antes de 
tudo, a Unidade – Ātmā, o Si – nos fenómenos. Segundo o Bhagavad‐Gitâ, “a cognição que 
reconhece em todos os seres uma essência única, imperecível, indivisível, embora espalhada 
nos  objectos  separados,  procede  de  Sattwa”  (tendência  “luminosa”,  “ascendente”, 
“conforme ao Ser”, Sat); e o mesmo texto prossegue: “Mas a cognição que, extraviada pela 
multiplicidade dos objectos, vê em todos os seres entidades diversas e distintas, procede de 
rajas (tendência “ígnea” e “expansiva”). Quanto à cognição limitada que, sem remontar às 
causas,  se  apega  a  um  objecto  particular  como  se  ele  fosse  tudo,  ela  procede  de  tamas” 
(tendência  “tenebrosa”  e  “descendente”)  (XVIII,  20  a  22).  Há  que  ter  aqui  em  conta  o 
aspecto  sob  o  qual  se  consideram  as  coisas:  as  tendências  cósmicas  (gunas)  não  estão 
apenas no espírito do homem, elas formam também, e com toda a evidência, parte das suas 
faculdades de conhecimento relativo e dos domínios que lhes correspondem, de tal forma 
que  a  razão,  assim  como  o  olho,  não  pode  escapar  à  diversidade:  ademais,  dizer  que  tal 
cognição “reconhece em todos os seres uma essência única”, equivale a afirmar que estes 
seres  existem  no  seu  plano.  Trata‐se,  assim,  de  admitir,  não  que  não  existam  diferenças 
objectivas  em  nosso  redor,  mas  que  estas  não  se  opõem  à  percepção  da  unidade  de 
essência; a perspectiva “passional” (rajas) é censurada, não por perceber as diferenças, mas 
sim  porque  lhes  atribui  um  carácter  absoluto,  como  se  cada  ser  fosse  uma  existência 
separada,  o  que  é,  de  certa  forma,  o  que  faz  também  o  olho,  precisamente  porque 
corresponde  existencialmente  a  uma  visão  “passional”,  e  na  medida  em  que  pertence  ao 
ego  que  é  “feito  de  paixão”.  O  Intelecto,  que  percebe  a  unidade  de  essência  nas  coisas, 
discerne  ao  mesmo  tempo  as  diferenças  de  modos  e  de  graus  precisamente  em  função 
dessa unidade; caso contrário a distinção entre as gunas seria impossível. 

* * * 

Sabedoria Perene 3  30 

 
Ver Deus em toda a parte 
 

Fizemos  acima  alusão  às  condições  da  existência  sensível  ou  psicofísica:  espaço,  tempo, 
forma, número, substância; modos que, aliás, não se reduzem ao nosso plano de existência, 
uma vez que este não pode ser um sistema fechado, nem tão pouco contém a totalidade do 
homem,  pois  este  estende‐se  até  ao  Infinito.  Estas  condições  assinalam  outros  tantos 
princípios que permitem “ver Deus nas coisas”: o espaço estende e conserva, tudo limitando 
através da forma; o tempo limita e devora, tudo estendendo pela duração; a forma exprime 
e limita ao mesmo tempo; o número é um princípio de expansão, mas sem poder qualitativo 
ou sem virtude formal se assim se preferir; e, por fim, a substância, que no plano físico se 
converte em “matéria”7, assinala a existência sobre este ou aquele nível, e portanto o “nível 
de  existência”8.  A  forma,  em  si  qualitativa,  tem  algo  de  quantitativo  quando  é  material;  o 
número, em si quantitativo, tem algo de qualitativo quando é abstracto. A materialidade da 
forma adiciona a esta uma dimensão, logo uma quantidade; o carácter simbólico do número 
liberta‐o  da  sua  função  quantitativa  e  confere‐lhe  um  valor  principial,  isto  é,  uma 
qualidade.9  O  tempo,  que  é  por  assim  dizer  “vertical”  em  relação  ao  espaço,  que  é 
“horizontal”  –  se  pudemos  arriscar  introduzir  um  simbolismo  geométrico  numa 
consideração que, precisamente, sai da condição espacial –, o tempo, portanto, ultrapassa a 
existência terrena e projecta‐se, de uma certa forma e dentro de determinados limites, no 
“mais além”, algo que a conexão entre a vida psíquica e o tempo na vida terrena permite já 
pressentir;  esta  conexão  é  mais  íntima  do  que  aquela  que  liga  a  alma  ao  espaço  que  nos 
rodeia,  como  o  mostra  o  facto  de  na  concentração  ser  mais  fácil  fazer  abstracção  da 
extensão espacial do que da duração; a alma de um cego está como que entrincheirada no 
espaço, mas não no tempo. Quanto à matéria, esta é, de um modo ainda mais directo que a 
substância  anímica  ou  subtil,  substância  universal  “congelada”10  ou  “cristalizada”  pela  fria 
proximidade  do  “nada”;  este  “nada”  nunca  poderá  ser  alcançado  pelo  processo  de 
manifestação, pela simples razão que o “nada” 11 absoluto não existe, ou melhor, que existe 
apenas  a  título  de  “indicação”,  de  “direcção”  ou  de  “tendência”  na  própria  obra  criadora; 
vemos uma sua imagem no facto do frio não ser mais do que uma privação que não tem, 
portanto,  nenhuma  realidade  positiva,  mas  que  entretanto  transforma  a  água  em  neve  e 
gelo como se tivesse o poder de produzir corpos. 

O espaço “parte” do ponto ou do centro, é a “expansão” e “tende” – sem jamais a alcançar 
– para a infinitude; o tempo parte do instante ou do presente12, é a duração e tende para a 
eternidade; a forma parte da simplicidade, é a diferenciação ou complexidade e tende para 
a perfeição; o número parte da unidade, é a multiplicidade ou a quantidade e tende para a 
totalidade13; por fim, a matéria parte do éter, é a cristalização ou densidade e tende para a 
imutabilidade,  que  é  ao  mesmo  tempo  indestrutibilidade.  Em  cada  um  destes  casos,  o 
“meio‐termo” – que “é” a sua condição respectiva – busca, em suma, a perfeição ou virtude 
do  “ponto  de  partida”,  mas  busca‐a  no  seu  próprio  plano  ou,  mais  precisamente,  no  seu 
próprio movimento, no qual lhe é impossível a alcançar: se a expansão tivesse a virtude do 
ponto,  seria  infinidade;  se  a  duração  tivesse  a  virtude  do  instante,  seria  eternidade;  se  a 
forma  tivesse  a  virtude  da  simplicidade,  seria  perfeição;  se  o  número  tivesse  a  virtude  da 

Sabedoria Perene 3  31 

 
Frithjof Schuon 
 

unidade, seria totalidade; e se a matéria tivesse a virtude – imutável porque omnipresente – 
do éter, seria imutabilidade. 

Se  se  objectar  que,  no  plano  formal,  a  perfeição  é  alcançada  pela  esfera,  responderemos 
que  a  perfeição  formal  não  se  pode  restringir  à  forma  mais  simples,  pois  o  que  distingue 
uma  bela  forma  de  carácter  complexo  –  por  exemplo,  determinado  corpo  humano  –  da 
esfera  não  é,  de  modo  algum,  uma  falta  de  perfeição,  tanto  mais  que  o  princípio  formal 
tende precisamente para a complexidade; apenas nesta pode realizar a beleza. Mas isto não 
significa  que  a  perfeição  se  possa  alcançar  neste  plano;  com  efeito,  a  perfeição  complexa 
exigiria  uma  forma  que  combinasse  a  mais  rigorosa  necessidade  ou  inteligibilidade  com  a 
maior diversidade, o que é impossível porque as possibilidades formais são inumeráveis na 
mesma medida em que elas se afastam, por via da diferenciação, da forma esférica e inicial. 
Com  a  submersão  na  complexidade,  é  possível  alcançar‐se  a  perfeição  “unilateral”  e 
“relativamente  absoluta”  de  determinada  beleza,  é  certo,  mas  não  a  perfeição  integral  e 
absoluta de toda a beleza; a condição de pura necessidade realiza‐se apenas na protoforma 
esférica e “indiferenciada”. 

O que entra no espaço, entra também no tempo; o que entra na forma, entra também no 
número;  o  que  entra  na  matéria  entra,  através  dela,  na  forma,  no  número, no  espaço,  no 
tempo. O espaço, que “contém” como uma matriz14 e que “preserva”, recorda a Bondade ou 
a  Misericórdia;  está  em  conexão  com  o  amor.  O  tempo,  por  seu  lado,  traslada‐nos  sem 
cessar  para  um  “passado”  que  já  não  existe  e  arrasta‐nos  para  um  “porvir”  que  todavia 
ainda não existe, ou melhor, que nunca existirá, e que ignoramos, à excepção da morte que 
é  a  única  certeza  da  vida  –  o  que  implica  a  associação  do  tempo  com  o  Rigor  ou  com  a 
Justiça  e  o  facto  deste  se  encontrar  em  conexão  com  o  temor.  Quanto  à  matéria,  esta 
recorda‐nos  a  realidade,  pois  é  esse  modo  de  “não‐existência”  que  nos  é  perceptível  em 
toda  a  parte,  tanto  no  nosso  corpo,  como  na  visão  da  Via  Láctea;  a  forma  traz‐nos  a 
recordação da Lei divina ou da norma universal, porque é verídica ou errónea, justa ou falsa, 
essencial  ou  acidental;  por  último,  o  número  desdobra  perante  nós  a  ilimitação  da  Omni‐
Possibilidade, que é tão “inumerável” como a areia do deserto ou as estrelas do céu.  

Por mais que o espaço limite os seus conteúdos, ele não poderá impedi‐los de existir; e por 
mais  que  o  tempo  estenda  os  seus  conteúdos,  não  será  por  essa  razão  que  deixarão  de 
existir  um  dia.  A  duração  não  suprime  a  efemeridade,  tal  como  a  limitação  espacial  não 
suprime  a  extensão.  No  espaço,  jamais  se  encontra  algo  totalmente  perdido;  no  tempo, 
tudo se perde irremediavelmente. 

A  existência  manifesta‐se  a  priori  pela  substância.  Esta  tem  dois  recipientes,  o  espaço  e  o 
tempo,  o  primeiro  dos  quais  é  positivo,  enquanto  que  o  segundo  é  negativo;  ela  tem 
também dois modos, a forma e o número, o primeiro limitativo e o segundo expansivo. O 

Sabedoria Perene 3  32 

 
Ver Deus em toda a parte 
 

número  reflecte  o  espaço,  porque  estende,  tal  como  a  forma  reflecte  o  tempo,  porque 
restringe. 

Se o homem pudesse viver mil anos acabaria, sem dúvida, por se sentir como que esmagado 
pelos limites das coisas, logo também pelo espaço, pelo tempo, pela forma, pelo número e 
pela matéria, e, em compensação, não veria mais do que as essências nos conteúdos. Por 
outro  lado,  a  criança,  ou  mesmo  o  homem  comum,  não  vê  mais  do  que  os  conteúdos,  ao 
mesmo tempo sem essências e sem limites. 

* * * 

As  condições  da  nossa  existência  terrena  têm,  cada  uma,  duas  “aberturas”  para  Deus:  o 
espaço comporta, por um lado, o ponto geométrico ou o “centro” e, por outro, a extensão 
ilimitada, o “infinito”; da mesma forma, o tempo comporta o instante ou o “presente”, bem 
como a duração indefinida, a “eternidade”; no espaço estamos como que entre o centro e o 
infinito, e no tempo, entre o presente e a eternidade, e essas são outras tantas moradas de 
Deus que nos extraem das duas “dimensões existenciais”; não podemos evitar pensar nisto 
quando temos consciência destas dimensões, nas quais vivemos e as quais vivem em nós, se 
assim  o  podemos  dizer.  O  centro  e  o  infinito,  o  presente  e  a  eternidade  são, 
respectivamente,  os  pólos  da  condição  espacial  e  da  condição  temporal,  mas  ao  mesmo 
tempo escapamos a estas condições precisamente por estes pólos: o centro não está mais 
no espaço, falando em rigor, tal como o ponto geométrico não tem extensão, e o presente 
absoluto ou o instante puro não estão mais na duração; quanto ao infinito, ele é, de certa 
forma, o “não‐espaço”, tal como a eternidade é o “não‐tempo”. 

Consideremos agora a condição formal: nela existem a perfeição geométrica e a perfeição 
corporal, e ambas revelam Deus; o Criador manifesta‐se no carácter “absoluto” do círculo, 
do quadrado, da cruz, bem como na beleza – a “infinitude” – do homem ou de uma flor; a 
beleza  geométrica  é  “fria”,  a  corporal  “quente”.  Mas  falando  com  rigor,  o  “centro”  da 
condição formal é o vazio; as formas geométricas elementares, começando pela esfera, não 
são mais do que as primeiras “saídas” da forma para fora do vazio, logo ao mesmo tempo as 
primeiras “expressões” e “negações” deste último. A esfera é a forma que se mantém mais 
próxima  do  vazio,  daí  a  sua  perfeição  de  simplicidade;  o  corpo  humano,  na  sua  beleza 
normativa  –  e  os  diversos  modos  que  esta  comporta  –  é  o  que  mais  se  aproxima  da 
plenitude, o que corresponde à perfeição oposta, a da complexidade. A plenitude é o que 
reúne  um  máximo  de  aspectos  homogéneos,  ou  o  que  introduz  a  totalidade  na  forma;  a 
esfera e o homem correspondem, num modo formal, à unidade e à totalidade; aquilo que o 
número exprime em modo abstracto, separativo e quantitativo, a forma exprime em modo 
concreto,  unitivo  e  qualitativo.  O  zero  é  para  unidade  o  que  o  vazio  é  para  a  esfera;  a 
unidade assinala Deus, enquanto a totalidade equivale à sua manifestação, o cosmos. 

Sabedoria Perene 3  33 

 
Frithjof Schuon 
 

* * * 

“Ver  Deus  em  toda  a  parte”  é  ver‐se  a  Si  mesmo  (Ātmā)  em  todas  as  coisas;  é  ter 
consciência das correspondências analógicas – enquanto “modos de identidade” – entre os 
princípios  ou  possibilidades  que,  incluídos  antes  de  mais  na  Natureza  divina,  se  propagam 
ou  reverberam  “em  direcção  ao  nada”  e  constituem  tanto  o  microcosmos  como  o 
macrocosmos,  dos  quais  se  criam  ao  mesmo  tempo  os  receptáculos  e  os  conteúdos.  O 
espaço  e  o  tempo  são  os  receptáculos;  a  forma  e  o  número  surgem  como  os  conteúdos, 
apesar de serem recipientes em relação às substâncias que coagulam ou que segmentam. A 
matéria é, de uma forma mais visível, recipiente e conteúdo ao mesmo tempo, ela “contém” 
as coisas e “preenche” o espaço; os seus conteúdos são corroídos e devorados pelo tempo, 
mas ela mantém‐se quase intemporal, de tal forma que coincide com a duração total. 

O  problema  do  tempo  está  intimamente  ligado  ao  da  alma  e  pode  fazer  surgir  a  seguinte 
pergunta:  que  sentido  se  deve  dar  à  doutrina  dogmática  da  alma  junto  dos  monoteístas, 
segundo a qual a alma não tem um fim, tendo contudo um começo? O absurdo metafísico 
de  uma  eternidade  criada  no  tempo,  ou  de  uma  perpetuidade  puramente  “unilateral”,  é 
evidente; mas como a teologia ortodoxa exclui o mero absurdo, há que procurar para além 
das  palavras  e  no  simbolismo  a  explicação  para  uma  doutrina  tão  contraditória.  Para 
começar,  o  monoteísmo  não  inclui  na  sua  perspectiva  mais  do  que  aquilo  que  interessa 
directamente ao homem, de tal forma que se apresenta como um “nacionalismo espiritual” 
do género humano; ora, como o estado que precedeu o nosso nascimento terreno era tão 
pouco  humano  como  o  são  os  estados  animais  e  angélicos,  ele  é  considerado  inexistente, 
exactamente  como  a  alma  dos  animais  e  das  plantas;  por  conseguinte,  apenas  somos 
apelidados de “alma” a partir do nosso nascimento humano ou, mais exactamente, desde o 
seio materno. Mas há outra coisa que é muito mais importante: a criação temporal da alma 
– isto é, a sua entrada no estado humano – expressa a nossa relatividade; por outro lado, a 
perpetuidade  celeste  da  alma,  ou  a  sua  eternidade  junto  de  Deus,  refere‐se  ao  seu  lado 
absoluto,  a  qualidade  “incriada”  da  sua  essência;  somos  ao  mesmo  tempo  relativos  e 
absolutos, e este paradoxo fundamental do nosso ser explica o que a doutrina teológica da 
alma  pode  ter  de  ilógico  ou  de  “misterioso”  na  sua  própria  formulação.  Há  que  não 
esquecer, por outro lado, que a creatio ex nihilo afirma, antes de tudo, a causalidade divina 
contra  um  “naturalismo”  sempre  ameaçador;  e  dizer  que  a  alma  é  “eterna”  só  pode 
significar, no plano da verdade absoluta, que ela é “essencialmente” o Si. 

* * * 

A  faculdade  de  “Ver  Deus  em  todas  as  coisas”  pode  ser  independente  de  toda  a  análise 
intelectual,  ela  pode  ser  uma  graça  cujos  modos  são  imponderáveis  e  que  surge  de  um 
profundo  amor  a  Deus.  Quando  dizemos  “análise  intelectual”  não  nos  referimos  de  forma 
alguma  às  especulações  no  vazio;  as  “categorias”  de  que  falámos  não  têm  nada  de 

Sabedoria Perene 3  34 

 
Ver Deus em toda a parte 
 

“abstracto”, mas a sua percepção depende evidentemente de um discernimento que surge 
como  tal  do  ponto  de  vista  das  sensações  e  que,  longe  de  se  comprazer  em  dissecações 
estéreis,  está,  no  entanto,  obrigado  a  “separar”  para  “unir”.  Tanto  a  separação  como  a 
união estão na natureza das coisas, cada qual a seu nível, se assim o podemos dizer: o olho, 
para  ver  melhor  uma  montanha,  necessita  de  uma  certa  distância;  esta  distância  revela 
diferenças;  permite  análises  visuais,  mas  ao  mesmo  tempo  “une”  ou  sintetiza 
proporcionando a imagem adequada e total da montanha. 

Ver  Deus  em  toda  a  parte  e  em  tudo  é  ver  a  infinidade  das  coisas,  enquanto  que  a 
animalidade humana não percebe mais do que a sua superfície e a sua relatividade; é ver, 
de um só golpe, a relatividade das categorias nas quais se move o homem, considerando‐as 
absolutas. Olhar a infinidade no finito é ver que dada flor à nossa frente é eterna, porque 
uma eterna primavera se afirma através do seu frágil sorriso; ver a relatividade é captar que 
esse  instante  que  vivemos  não  é  o  “agora”,  que  ele  “já  passou”  antes  mesmo  de  ter 
ocorrido, e que, se fosse possível deter o tempo, com todos os seres que nele assim ficariam 
paralisados  como  que  num  rio  de  gelo,  a  pantomima  humana  apareceria  em  toda  a  sua 
sinistra  irrealidade;  tudo  pareceria  absurdo,  salvo  a  “lembrança  de  Deus”  que  se  situa  no 
imutável. 

Ver Deus em toda a parte é, portanto, essencialmente o seguinte: ver que nós não somos, 
que apenas Ele é. Se pode ser dito que, de uma determinada perspectiva, a humildade é a 
maior das virtudes, é porque esta implica, em última análise, a cessação de todo o egoísmo, 
e por nenhuma outra razão. Outro tanto se poderia dizer – mudando um pouco de ponto de 
vista  –  de  cada  virtude  fundamental:  a  caridade  perfeita  é  perder‐se  por  Deus,  pois  não  é 
possível perder‐se em Deus sem dar‐se, por acréscimo, aos homens. Se o amor ao próximo é 
capital, no plano estritamente humano, isso deve‐se não só ao facto do “próximo” ser, em 
última análise, “Si” tal como “nós” o somos, mas também porque essa caridade humana – 
ou essa projecção no “outro” – é, para a maioria dos homens, o único meio possível para se 
desapegar  do  “eu”;  é  menos  difícil  projectar  o  ego  no  “outro”  do  que  o  perder  por  Deus, 
ainda que as duas coisas estejam indissoluvelmente ligadas. 

* * * 

A nossa forma é o ego: é essa misteriosa incapacidade de ser outro para além de si mesmo, 
e ao mesmo tempo a incapacidade de ser totalmente si mesmo e não “outro para além de 
Si”.  Mas  a  nossa  Realidade  não  nos  dá  opção  e  obriga‐nos  a  “convertermo‐nos  no  que 
somos”, ou a permanecer aquilo que não somos. O ego é, empiricamente, um sonho no qual 
nos sonhamos a nós mesmos; os conteúdos desse sonho, extraídos do ambiente, não são no 
fundo  mais  do  que  pretextos,  pois  ele  não  quer  mais  do  que  a  sua  própria  vida: 
independentemente do que possamos sonhar, o nosso sonho não é, em suma, mais do que 
um símbolo para o ego que se quer afirmar, um espelho que seguramos perante o “eu” e 

Sabedoria Perene 3  35 

 
Frithjof Schuon 
 

que reverbera a sua vida de múltiplas maneiras. Este sonho converteu‐se na nossa segunda 
natureza;  ele  é  tecido  de  imagens  e  de  tendências,  elementos  estáticos  e  dinâmicos  em 
inumeráveis  combinações:  as  imagens  vêm  de  fora  e  integram‐se  na  nossa  substância, 
enquanto que as tendências são as nossas respostas ao mundo que nos rodeia; e, como nos 
exteriorizamos, criamos um mundo à imagem do nosso sonho, e o sonho assim objectivado 
repercute  em  nós,  e  assim  sucessivamente  até  nos  encerrar  num  tecido  por  vezes 
inextricável de sonhos exteriorizados ou materializados e de materializações interiorizadas. 
O ego é como um moinho de água cuja roda, sob a pressão de uma corrente – o mundo e a 
vida  –,  gira  e  repete‐se  incansavelmente  numa  série  de  imagens  sempre  diferentes  e 
sempre semelhantes. 

O mundo é como se essa “Substância consciente” que é o Si tivesse caído num estado que a 
cindisse de múltiplas maneiras e lhe infligisse uma infinidade de acidentes e imperfeições, e 
de  facto,  o  ego  é  uma  ignorância  que  se  debate  em  modos  objectivos  de  ignorância,  tal 
como o tempo e o espaço. E o que é o tempo senão a ignorância do que será “depois”, e o 
que é o espaço senão a ignorância do que escapa aos nossos sentidos? Se fossemos “pura 
consciência” como o Si, seríamos “sempre” e “em toda a parte”; isto é, não seríamos “eu”, 
pois este em verdade é, na sua actualidade empírica, uma criação do espaço e do tempo. O 
ego é a ignorância do que é o “outro”; toda a nossa existência é um tecido de ignorâncias; 
somos como o Si congelado, logo lançado “à terra” e partido em mil pedaços; constatamos 
os  limites  que  nos  rodeiam  e  damo‐nos  conta  que  somos  fragmentos  de  consciência  e  de 
ser.  A  matéria  constrange‐nos  como  uma  espécie  de  paralisia,  confere‐nos  uma  gravidade 
mineral e expõe‐nos às misérias da impureza e da mortalidade; a forma talha‐nos segundo 
determinado  modelo,  impõe‐nos  determinada  máscara  e  aparta‐nos  de  um  todo  ao  qual 
estamos, no entanto, ligados, mas que na morte nos deixa cair tal como a árvore abandona 
o  seu  fruto;  finalmente,  o  número  é  o  que  nos  repete  –  em  nós  mesmos  como  ao  nosso 
redor  –  e  que  ao  repetir‐nos  nos  diversifica,  pois  duas  coisas  não  podem  jamais  ser 
absolutamente  idênticas;  o  número  repete  a  forma  como  que  por  magia,  e  a  forma 
diversifica o número e deve, assim, recriar‐se sempre de novo, porque a Toda‐Possibilidade 
é infinita e tem que manifestar a sua infinitude. Ora, o ego não só é múltiplo no exterior, na 
diversidade das almas, como também é dividido em si mesmo na diversidade das tendências 
e dos pensamentos, o que não é a menor das nossas misérias; porque “a porta é estreita”, e 
“dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus”. 

E  posto  que  “não  somos  outros”  senão  o  Si,  estamos  condenados  à  eternidade.  A 
eternidade espreita‐nos, e é por isso que devemos reencontrar o Centro, esse lugar onde a 
eternidade é beatitude. O inferno é a resposta à periferia que se faz Centro, ou ao múltiplo 
que  usurpa  a  glória  da  Unidade;  é  a  resposta  da  Realidade  ao  ego  que  se  toma  como 
absoluto,  e  que  está  condenado  a  sê‐lo  sem  o  poder  ser…  O  Centro  é  o  Si  ”liberado”,  ou 
mais exactamente aquele que jamais deixou de ser livre, – eternamente livre. 

Sabedoria Perene 3  36 

 
Ver Deus em toda a parte 
 

NOTAS 

1 – N.T.: A palavra nada traduz aqui a palavra francesa “néant” que tem, em rigor, o significado de não existência, 
do não‐ser, “o nada” propriamente dito; por outro lado, a palavra francesa “rien” exprime a negação ou a ausência 
de  algo.  O  autor  analisa  estes  dois  conceitos  no  seu  texto  “Catégories  universelles”  inseridos  na  obra  “Avoir  un 
Centre”. Ver também nota seguinte. 

 2  –  Falamos  aqui  do  nada  como  se  ele  tivesse  alguma  realidade,  o  que  é  metafisicamente  necessário  em  alguns 
casos, apesar de ser logicamente absurdo. Se é certo que não existe o nada, existe, no entanto, um “princípio do 
nada”, mas que – precisamente pelo nada não existir – se detém sempre a meio caminho. Este princípio é como que 
a  sombra  invertida  da  infinitude  do  Supra‐Ser;  é  Māyā  que  se  separa  ilusoriamente  de  Ātmā,  sem  dele  se  poder 
libertar, muito menos o abolir. 

3 – É neste sentido que Mestre Eckhart pôde dizer: “Quanto mais blasfema, mais louva Deus”. 

4  –  A  Existência  é  positiva  e  “divina”  em  relação  às  coisas  existentes  e  enquanto  causa,  mas  é  limitativa  e 
“demiúrgica”  em  relação  a  Deus,  que se  limita,  num  certo  sentido  ilusório,  criando,  se  nos  é permitido  expressar 
deste modo; sentido ilusório, dissemos, porque Deus é imutável, impassível, inalterável. 

5 – É necessário ser‐se muito perverso para não ver nenhuma diferença qualitativa‐objectiva entre o que é nobre e 
o que é vil, a não ser que se situe no ponto de vista transcendente da indiferenciação de Ātmā, o qual corresponde 
a  algo  totalmente  distinto  de  um  igualitarismo  subversivo  e  iconoclasta.  Seja  como  for,  é  esta  ciência  dos 
fenómenos qualitativos que permite situar implacavelmente as aberrações da arte contemporânea e rasgar o véu 
do seu falso mistério. 

6  –  Num  certo  sentido,  apenas  Deus  é  “o  que  não  é  nada”;  apelas  Ele  é  “não‐inexistente”,  duas  negações 
simultâneas,  mas  que  têm  uma  função  precisa.  As  verdades  deste  tipo  podem  dar  origem,  indirectamente  e  por 
desvio, ao panteísmo e à idolatria, o que não as impede de serem verdadeiras e de terem, consequentemente, a 
sua legitimidade num determinado plano, para dizer o menos. 

7 – Denominou‐se por vezes esta quinta condição como “vida”, sem dúvida para expressar que a inércia não pode 
ser absoluta, ou que o éter possui uma certa potencialidade vital, sem a qual a vida – o “sopro” (πνευµα ou prāna) 
– não encontraria nele qualquer receptáculo. 

8 – A palavra sânscrita para “matéria”, bhūta, comporta um sentido de “substância” ou de “subsistência”; a matéria 
deriva da substância, ela é um seu reflexo no plano das coagulações “grosseiras” e refere‐se, através da substância, 
ao Ser. 

9 – É o número pitagórico, cujo alcance universal e não quantitativo se adivinha desde logo nas figuras geométricas; 
o triângulo e o quadrado são “personalidades” e não quantidades, eles são essenciais e não acidentais. Enquanto 
que  o  número  corrente  se  obtém  por  adição,  o  número  qualitativo  resulta,  pelo  contrário,  de  uma  diferenciação 
interna ou intrínseca da unidade principial; não se adiciona a nada e não sai da unidade. As figuras geométricas são 
outras  tantas  imagens  da  unidade,  excluindo‐se  umas  das  outras,  ou  seja,  assinalando  qualidades  principiais 
diferentes: o triângulo é a harmonia, o quadrado a estabilidade; são números “concêntricos”, não “progressivos”. 

10 – Esta “congelação” não alcança a substância em si, tal como, na ordem dos cinco elementos, a “solidificação” – 
ou  a  diversificação  dos  elementos  em  geral  –  não  alcança  o  éter,  que  subsiste  neles.  Esta  comparação  não  é, 
todavia, adequada, uma vez que o éter é um elemento e não se situa, portanto, num outro plano, apesar da sua 
posição “central” e da sua “virgindade”, enquanto que a substância universal é transcendente em relação às suas 
produções. 

11 – N.T.: O autor usa aqui a palavra francesa “rien” expressando, como referimos na primeira nota, a negação ou 
ausência de algo. 

12 ‐ O “centro” e o “presente” assinalam, em relação ao “ponto” e ao “instante”, uma perspectiva ao mesmo tempo 
qualitativa  e  subjectiva;  subjectividade  qualitativa,  porque  o  sujeito  é  o  Si.  Os  termos  objectivos  –  “ponto”  e 
“instante” – implicam certamente esta mesma “qualidade”, mas a relação espiritual – não a relação metafísica – é 
menos directa e menos aparente, precisamente porque as noções respectivas estão suprimidas da vida. 

13 – Nestas duas condições, a forma e o número, os respectivos pontos de partida – a simplicidade e a unidade – 
têm  uma  existência  concreta,  sem  dúvida  porque  estas  condições  são  “conteúdo”  em  relação  ao  espaço  e  ao 

Sabedoria Perene 3  37 

 
Frithjof Schuon 
 

tempo, que são “recipientes”; por outro lado, os pontos de partida destes últimos – o ponto e o instante – não têm 
nem extensão, nem duração, respectivamente. Contudo, a simplicidade esférica não é uma forma entre outras, pois 
ela é incomparável, tal como a unidade não é uma quantidade propriamente dita, pois ele não se junta a nada; se 
não existisse nada mais do que a simplicidade e a unidade, não existiria nem forma, nem número. 

14  –  É  para  nós  como  uma  “matriz  [N.T.:  no  sentido  de  útero]  de  imortalidade”,  e  a  morte  o  nascer  para  a  Vida 
eterna. 

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Uma metafísica da natureza virgem 
por Frithjof Schuon 
Traduzido por Noémia Silva 

Toda a tradição dos índios da América do Norte, excepto os do Noroeste, Califórnia e alguns do 
Sudoeste,  está  contida,  do  ponto  de  vista  do  simbolismo  geométrico,  na  cruz  inscrita  no 
círculo:  o  círculo  corresponde  ao  Céu,  enquanto  que  a  cruz  indica  as  quatro  direcções  do 
espaço e todos os demais quaternários do Universo; indica igualmente o ternário vertical Terra 
– Homem – Céu, o que coloca o quaternário horizontal em três níveis. Pode ainda dizer‐se que 
a  sabedoria  dos  índios  peles‐vermelhas  baseia‐se,  simbolicamente  falando,  nos  números 
“pitagóricos”  quatro  e  três  –  o  primeiro  “horizontal”  e  o  segundo  “vertical”  –  e  na  sua 
combinação,  o  número  doze.  Esta  “duodecimidade”  deve  ser  visualizada  como  composta  de 
três quaternários horizontais, dispostos uns sobre os outros ao longo de um eixo central ou, 
mais  precisamente,  de  três  discos,  em  cada  um  dos  quais  se  encontra  a  cruz  horizontal  das 
quatro  direcções.  Estes  três  níveis  são  por  vezes  representados  sob  a  forma  de  três  anéis 
pintados na árvore da Dança do Sol1. 

No simbolismo da cruz e do círculo, o círculo estático e espacial da terra combina com o círculo 
dinâmico e temporal do dia ou do céu: o círculo pode ser o horizonte com os quatro pontos 
cardinais se inclui a cruz, ou pode ser o curso do sol com o amanhecer, o dia, o entardecer e a 
noite, ou o ano com a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno. 

E  isto  é  muito  importante:  o  homem  é  o  centro,  tanto  das  quatro  direcções  horizontais  do 
espaço, como do ternário vertical da hierarquia cósmica; em relação a este último aspecto, ele 
é identificado com a Vida e é o mediador entre a Terra “sob os seus pés” e o Céu “por cima da 
sua cabeça”2, ou entre a inércia e a luz. Em relação ao primeiro aspecto, ele é a Inteligência na 
qual os quatro cantos são reflectidos e unidos, e ele é, assim, identificado com o eixo cósmico, 
a  árvore  do  mundo.  Ele  é  o  Calumet  que  une  todos  os  seres  vivos  numa  única  oração  e,  ao 
mesmo  tempo,  o  Fogo  central  que  marca  o  centro  do  mundo  e,  ainda  (o  que  significa  o 
mesmo),  a  brasa  que  transforma  o  tabaco  em  fumo  ou  a  Terra  em  Céu.  O  homem  está 
duplamente “no centro”, primeiro no plano horizontal, como Inteligência e porta‐voz de todas 
as  criaturas  terrestres  (fragmentárias  em  relação  a  ele),  e  segundo  no  eixo  vertical  como 
mediador:  nele  se  encontram  a  Terra  e  o  Céu,  e  nele  são  sintetizadas  as  possibilidades 
essenciais no seu plano de existência. 

Se a cabeça humana corresponde ao Céu e os pés representam a Terra, a região do umbigo ou 
do  útero  representa  o  Homem.  O  Homem  é  o  espírito  encarnado;3    se  fosse  só  matéria,  ele 
identificar‐se‐ia com os pés; se fosse só espírito, ele seria a cabeça, isto é, o Céu; ele seria o 
Grande Espírito. Mas o objectivo da sua existência é estar no centro: é transcender a matéria 
enquanto  permanece  nela,  e  compreender  a  luz,  o  Céu,  a  partir  deste  nível  intermediário.  É 

Sabedoria Perene 3  39 

 
Frithjof Schuon 
 

verdade  que  as  outras  criaturas  também  participam  na  vida,  mas  o  homem  sintetiza‐as:  ele 
carrega  toda  a  vida  em  si mesmo  e,  por  essa  razão, torna‐se  o  porta‐voz  de  toda  ela,  o  eixo 
vertical onde a vida se abre ao espírito e onde se converte em espírito. Em todas as criaturas 
terrestres  a  inércia  fria  da  matéria  converte‐se  em  calor,  mas  somente  no  homem  o  calor  é 
convertido em luz. 

Dissemos que as criaturas inferiores são fragmentárias; mas elas não têm apenas este aspecto 
“acidental”  que  permite  ao  homem  matá‐las  e  usá‐las  para  nutrição,  elas  têm  também  um 
aspecto “essencial”, devido ao seu simbolismo concreto por um lado, e à sua “anterioridade” 
por  outro:  criadas  antes  do  homem,  elas  podem  manifestar  algo  da  Origem  Divina,  e  é  este 
aspecto que apela por vezes à sua veneração; é em virtude deste aspecto transcendente que o 
Grande  Espírito  prontamente  se  manifesta  –  no  mundo  dos  índios  –  através  de  animais  e 
plantas, e mesmo através dos grandes fenómenos da Natureza, como o sol, a rocha, o céu ou a 
terra4.  A  manifestação  múltipla  do  Grande  Espírito,  do  ponto  de  vista  do  simbolismo  e  da 
acção  celestial,  equivale  ao  Grande  Espírito;  as  coisas  não  são  mistérios  em  si  mesmas,  mas 
sim manifestações de mistérios, e o Grande Espírito, ou o Grande Mistério5, sintetiza‐as na Sua 
Unidade transcendente. 

* * * 

Uma  característica  original  da  tradição  índia  é  o  facto  do  elemento  profético,  que  noutros 
lugares cristaliza em raros avatāras, ser aqui disperso, por assim dizer, por todos os membros 
das  tribos,  sem  por  isso  abolir  as  diferenças  de  grau  e  as  manifestações  cruciais.  Num  certo 
sentido,  por  muito  surpreendente  que  possa  parecer,  cada  homem  é  o  seu  próprio  profeta, 
que recebeu a sua própria revelação, embora naturalmente dentro do marco da tradição em 
geral, o qual regula estritamente as modalidades exteriores e interiores desta missão profética 
colectiva.  

Mas,  repetimos,  isto  nunca  poderia  impedir  a  existência  de  revelações  maiores,  válidas  para 
uma colectividade tribal particular, ou para todas, como é o caso do Calumet e da Dança do 
Sol. O aparente “individualismo” índio é explicado pelo papel espiritual do homem como tal, 
da  pessoa  livre  e  qualitativa,  das  acções  e  do  carácter;  é  também  impulsionado  pela  relação 
entre  o  indivíduo  e  a  tribo,  pela  reciprocidade  de  dons,  de  deveres,  de  generosidade.  Mas  o 
essencial neste contexto social é a fidelidade a si mesmo, à sua própria visão, ao seu próprio 
pacto  com  uma  teofania  particular,  ou  em  outros  termos,  com  a  sua  própria  “medicina”  ou 
com o seu próprio “totem.”6  

Outra  característica  própria  dos  índios,  que  parece  em  contradição  com  a  anterior,  é  o 
“polissintesismo”, isto é, a sua consciência da profunda homogeneidade do mundo criado e o 
sentido  da  solidariedade  universal  que  daí  resulta.  Todas  as  criaturas,  incluindo  as  plantas  e 
até os minerais – bem como coisas na natureza como as estrelas e o vento –, são irmãos; tudo 

Sabedoria Perene 3  40 

 
Uma metafísica da natureza virgem 
 

é  animado,  e  cada  coisa  depende  de  certo  modo  de  todas  as  demais.  O  homem,  enquanto 
mediador  num  determinado  aspecto,  não  se  opõe,  noutros  aspectos,  ao  resto  da  criação.  O 
índio, como toda a raça amarela – pois ele é um mongolóide –, vive na Natureza e nunca se 
separa  dela;  psicologicamente,  ele  é  como  um  samurai  tornado  caçador  ou  nómada;  a  sua 
tendência contemplativa, no que tem de mais íntimo e exaltado, está sem dúvida relacionada 
com  o  método  intuitivo  e  inarticulado  que  é  o  Zen,  ou  noutros  aspectos,  à  Natureza 
espiritualizada do Xintoísmo. 

Nas  sabedorias  do  Mundo  Antigo,  aquilo  que  talvez  mais  adequadamente  –  e  também  mais 
profundamente – expressa a atitude espiritual do “pele‐vermelha eterno” é a Bhagavad Gītā. 
O combate é um modus vivendi – desejado pela natureza – ao qual se sobrepõe uma silenciosa 
e  impassível  contemplação  em  solidão  virgem;  no  ensinamento  de  Krishna  há  um 
compromisso combativo, mas desprendido, na corrente das formas e, ao mesmo tempo, uma 
contemplação que permanece no centro com a incorruptibilidade da pedra. Não que esta seja 
a  forma  como  sempre  foram,  de  facto,  os  índios  –  nenhuma  civilização  foi  capaz  de  realizar 
integralmente o seu “ideal” –, mas como a sua tradição desejaria que eles fossem, e como eles 
foram,  se  nos  referimos  aos  seus  eleitos  e  aos  seus  melhores  momentos,  se  assim  se  pode 
dizer. 

A  tradição  pele‐vermelha  é  muitas  vezes  censurada  por  ter  uma  concepção  inadequada  do 
outro  mundo.  Mas  esta  aparente  lacuna  tem  aqui  as  mesmas  razões  que  no  caso  similar  do 
Xintoísmo: nestas perspectivas não se fazia sentir a necessidade de uma escatologia elaborada, 
pois  o  mundo  vindouro  é  garantido  pela  qualidade,  por  assim  dizer,  obrigatória  e  inevitável 
desta vida; isto é o que explica, em ambas as tradições, a sua rigidez relativamente à doutrina, 
às virtudes, ao código de  honra e ao sentido  de dever. Para mais, não devemos negligenciar 
que  do  ponto  de  vista  hindu  e  budista,  a  escatologia  dos  semitas  é,  da  mesma  forma, 
relativamente  incompleta,  pois  parece  aceitar,  por  um  lado  a  ideia  de  uma  punição  quase 
absoluta por um acto que é necessariamente relativo e, por outro, a ideia de uma eternidade 
que teve um início. Aqui, contudo, como no caso das escatologias índias e xintoístas, diremos 
também que o Céu não somente tem  razões para falar, como também pode  ter razões para 
manter o silêncio, de acordo com a necessidade da natureza do receptáculo humano. 

O índio tradicional foi um dos homens mais livres que se pode imaginar e, ao mesmo tempo, 
um  dos  mais  presos:  a  vasta  pradaria,  as  florestas  e  as  montanhas  pertenciam‐lhe;  de  um 
ponto de vista prático o seu espaço vital não conhecia limites; mas em nenhum momento ele 
podia separar‐se do seu universo religioso e do papel que este lhe impunha. Por um lado, ele 
estava encerrado num espaço que era estritamente simbólico – como se o seu credo tivesse 
cristalizado  espacialmente  à  sua  volta  –  e,  por  outro,  ele  identificava‐se  com  o  curso 
implacável  dessa  grande  prova  que  é  a  vida;  quer  no  espaço,  quer  no  tempo,  o  índio  nunca 
deixou o símbolo visível, o qual ele representava e vivia; pode dizer‐se que ele o experienciava 
e realizava simultaneamente. E é desta combinação de liberdade heróica e de coacção divina 

Sabedoria Perene 3  41 

 
Frithjof Schuon 
 

que  provém  a  sua  fascinante  originalidade,  e  é  esta  grandeza,  em  parte  guerreira,  em  parte 
sacerdotal, que – juntamente com outros factores como o culto do silêncio e a impassibilidade 
– o relacionam com o samurai zen do antigo Japão. 

NOTAS 

1 ‐ Joseph Epes Brown, conhecido pelo seu estudo do cachimbo sagrado, escreveu‐nos uma vez em relação a um 
xamã Corvo: “Ele explicou‐me com grande clareza a metafísica da Dança do Sol, disse‐me, entre outras coisas, que o 
recinto (lodge) representa o Universo: a árvore da vida no centro é o seu eixo, cujos ramos se estendem para o alto, 
para lá do Universo, até ao Infinito. No tronco estão pintados três anéis que representam os três mundos: o corpo, 
a alma e o espírito, ou o “grosseiro”, o “subtil” e o “puro”. O eixo está em toda a parte e consequentemente passa 
através de cada ser; o objectivo último da dança é o afastamento da periferia depois da purificação, do sacrifício e 
de outros rituais – e a aproximação ao centro, de modo a identificar‐se com ele.” 

2 ‐ Hartley Burr Alexander comenta (em The World’s Rim, Lincoln, University of Nebraska Press, 1953) que o homem 
deve,  ao  acordar  de  manhã,  olhar  instintivamente  para  a  luz  da  alvorada  que  dispersa  a  escuridão,  ou  seja,  em 
direcção  a  Este,  e  que  esta  direcção  (para  a  qual  numerosos    rituais  índios  se  iniciam  e  para  a  qual  se  abrem  as 
tendas  e  os  recintos)  estará,  em  concordância,  à  sua  “frente”.  Oeste  será  “atrás”,  sul  “`a  direita”,  e  norte  “à 
esquerda”.  Por  outro  lado,  para  um  homem  erecto  (e  esta  é  a  sua  posição  natural  que  o  distingue  dos 
quadrúpedes),  o  mundo  sensível  é  dividido  em  três  esferas,  que  também  se  encontram  na  estrutura  do  corpo 
humano: o chão sob os seus pés, o céu sobre a sua cabeça – ou pés e cabeça – e o centro do corpo, o umbigo ou a 
região do útero, símbolo da vida. 

3  ‐  Recordamos  aqui  esta  fórmula:  Et  benedictus  fructus  ventris  tui….  O  homem  terrestre  vive  no  útero  do 
macrocosmos e não na sua cabeça celestial. 

4 ‐ O filho do homem santo Sioux Alce Negro (cf. Alce Negro Fala, Lisboa, editora Antígona, 2002 e The Sacred Pipe 
de  Joseph  Epes  Brown,  Lincoln,  University  of  Nebraska  Press,  1953)  sublinhou‐nos  que  os  índios  não  veneram  as 
rochas, as árvores ou os animais; mas como o homem foi criado somente após todas as outras criaturas, ele pode e 
deve aproximar‐se de Deus através delas. As seguintes palavras de outro Sioux (proferidas quando passávamos com 
ele pelas cumeadas das Black Hills) mostram a mesma veneração pela natureza: “Este é o desfiladeiro do Búfalo. Era 
através  desta  porta  que  as  manadas  de  búfalos  costumavam  brotar.  Tal  como  o  Grande  Espírito  fez  uma  porta 
através da qual o homem pode chegar até Ele, assim ele fez uma porta através da qual os búfalos chegavam até ao 
homem.” O búfalo não é somente uma oferenda de Deus para o sustento do homem, é igualmente um símbolo da 
Palavra Divina e um instrumento da Revelação. O Calumet foi trazido pela Mulher Búfalo Branco, um búfalo celestial 
transformado numa mulher. “ A nossa tradição”, disse‐nos um velho Cheyenne, “é a mesma que a da Bíblia; Deus é 
invisível, Ele é puro Espírito. O sol e a terra não são Deus, mas para nós eles são algo como pai e mãe.” 

5  ‐  Existem  línguas  índias  nas  quais  o  Espírito  Divino  é  designado  duma  forma  totalmente  diferente,  onde  por 
exemplo se referem ao “Grande Poder Solar,” mas a doutrina fundamental mantém‐se a mesma. 

6  ‐  Esta  palavra,  que  se  tornou  convencional  na  linguagem  dos  brancos,  deriva  do  ojibway  ototeman,  “família 
irmão‐irmã  dele.”  O  animal  totémico  não  carece  de  analogia  com  o  nosso  “anjo  da  guarda”;  ademais,  não  nos 
esqueçamos que o Espírito Santo dos Evangelhos não rejeita aparecer na forma duma pomba, e que foi a aparição 
de um cervo milagroso que converteu S. Hubert. 

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O simbolismo da água 
por Titus Burckhardt 
Traduzido por Alberto Queiroz e revisto por Diana Morais 

Apesar  de  ter  à  sua  disposição  todas  as  descobertas  da  pesquisa  científica,  a  economia 
moderna  tem  desde  há  muito  tempo  vindo  a  ignorar  quase  completamente  uma  das  mais 
importantes  bases  da  nossa  vida  e  da  sua  própria  existência,  nomeadamente  a  pureza 
vivificante  da  água.  Este  facto  testemunha  uma  unilateralidade  de  desenvolvimento  que, 
independentemente da questão da água, é também prejudicial para muitas outras coisas, das 
quais  não  é  menos  importante  a  psique  ou  alma.  Quando  o  equilíbrio  da  natureza  não  é 
perturbado,  as  próprias  águas  da  terra  restabelecem  continuamente  a  sua  pureza,  ao  passo 
que, quando se perde esse equilíbrio, o resultado é a morte e a poluição. Não é, assim, mera 
coincidência que a “vida” das águas seja um símbolo da “vida” da alma humana. 

Quando se pondera sobre se existe algo que possa eventualmente alertar as pessoas de mente 
não‐científica  para  a  ameaça  da  poluição  da  água,  percebe‐se  rapidamente  que  o  senso 
natural  de  beleza,  o  qual  nos  permite  distinguir  espontaneamente  uma  árvore  enferma  de 
uma saudável, deveria também, neste caso, servir de aviso. Que isso não tenha acontecido – 
ou  quase  não  tenha  acontecido  –  deve‐se  ao  facto  de  que  o  homem  moderno  separa 
completamente não somente o “belo” do “útil”, mas também o “belo” do “real”. Este modo de 
pensar é como uma ruptura na consciência, e é difícil de dizer se é a causa ou o efeito de um 
estado  de  coisas  que,  por  um  lado,  leva  sistematicamente  o  homem  a  destruir  o  equilíbrio 
natural das coisas numa escala sempre crescente e, por outro lado, impele‐o periodicamente a 
fugir do mundo artificial que ele assim cria. Nunca antes existiram os enormes aglomerados de 
edifícios  de  pedra,  betão  e  ferro,  e  nunca  antes  os  habitantes  das  cidades,  em  números  tão 
grandes, deixaram periodicamente as suas casas a fim de redescobrir a natureza junto ao mar 
ou nas montanhas – a mesma natureza que eles próprios tão inexoravelmente baniram. Não 
seria  correcto  dizer  que,  agindo  assim,  as  pessoas  procuram  apenas  preservar  a  sua  saúde. 
Muitos, se não todos, estão ao mesmo tempo à procura de um relaxamento da alma que só é 
propiciado por ambientes cujo estado, ainda intacto e harmonioso, garanta a preservação de 
uma beleza tal que dê paz à alma e liberte a mente da pressão dos pensamentos calculistas. 
Apesar disso, as mesmas pessoas que nas suas férias buscam consciente ou inconscientemente 
esta  beleza,  rapidamente  a  rejeitam  como  “romantismo”  sempre  que  ela  oferece  obstáculos 
aos seus interesses utilitários. Neste ponto, a boa ou a má intenção do indivíduo dificilmente 
desempenha um papel; todos estão sob a pressão das forças económicas, e é usualmente por 
autodefesa  inconsciente  que  alguém  esconde  de  si  mesmo  as  consequências  destrutivas  de 
certos desenvolvimentos. A longo prazo, contudo, tal atitude é desastrosa. 

A  beleza  representa  sempre  um  equilíbrio  de  forças  interior  e  inesgotável;  e  isso  subjuga  a 
nossa  alma,  dado  que  não  pode  ser  calculado  nem  mecanicamente  produzido.  O  senso  de 

Sabedoria Perene 3  43 

 
Titus Burckhardt 
 

beleza pode portanto permitir a experiência directa de relações, antes que, com a nossa razão 
discursiva,  as  possamos  perceber  de  modo  diferenciado;  nisto,  incidentalmente,  há  uma 
protecção  para  o  nosso  próprio  bem‐estar  físico  e  psíquico,  algo  que  não  podemos 
negligenciar impunemente. 

Pode‐se  objectar  que  os  homens  sempre  distinguiram  entre  o  útil  e  o  belo;  os  bosques  para 
lazer  sempre  foram  um  luxo,  enquanto  as  matas  eram  geralmente  vistas  de  modo  utilitário. 
Poder‐se‐ia  mesmo  dizer  que  coube  à  educação  moderna  criar  o  desejo  de  proteger  uma 
determinada parte da natureza com base em motivos puramente estéticos. 

No  entanto,  em  tempos  antigos,  existiam  também  bosques  sagrados,  que  nenhum  machado 
podia derrubar. Eles não serviam nem para o uso, no sentido comum dessa palavra, nem para 
o  luxo.  A  beleza  e  a  realidade  –  duas  qualidades  que  o  mundo  moderno  espontaneamente 
separa  –  estavam  unidas  (e,  para  os  homens  que  têm  uma  visão  pré‐moderna  do  sagrado, 
ainda  estão).  Nos  dias  de  hoje,  ainda  existem  florestas  sagradas  no  Japão  e  na  Índia,  assim 
como  existiam  na  Europa  pré‐cristã;  mencionamo‐las  aqui  somente  como  um  exemplo  de 
natureza sagrada, pois há também montanhas sagradas, bem como – e isto toca‐nos mais de 
perto – fontes, rios e lagos sagrados. Mesmo no âmbito da Cristandade, que em geral evita a 
veneração dos vários fenómenos da natureza, havia e há fontes e lagos – por exemplo, o poço 
em Chartres e a fonte em Lourdes – que, por estarem ligados a eventos milagrosos, passaram 
a ser considerados sagrados. O importante aqui não é o facto de uma dada montanha ou fonte 
ser considerada sagrada e, portanto, inviolável, mas sim o facto de cada fenómeno particular 
ser  invariavelmente  um  exemplo  de  toda  uma  série  de  coisas  relacionadas  entre  si,  um 
exemplo  de  uma  total  ordenação  da  natureza,  que  tem  uma  importância  vital  para 
comunidades humanas de maior ou menor dimensão, e expressar uma realidade superior ou 
sobrenatural; assim, para os antigos alemães, a floresta era a base indispensável das suas vidas 
e, ao mesmo tempo, algo como um templo, um lugar que abrigava a presença divina. Todas as 
florestas tinham esta qualidade e, neste sentido, eram invioláveis. No entanto, uma vez que as 
florestas  também  tinham  de  ser  usadas,  havia  bosques  sagrados  especiais  cuja  função  era 
recordar a inviolabilidade principial e espiritualmente significativa da floresta enquanto tal. O 
caso da vaca sagrada dos hindus é semelhante; na realidade, para os hindus, tudo o que vive é 
sagrado,  ou  seja,  inviolável  e  simbólico,  pois  segundo  a  sua  doutrina,  toda  a  consciência 
participa  no  espírito  divino.  No  entanto,  como  é  impossível  evitar  que,  sempre  e  em  toda  a 
parte, se matem criaturas vivas, a lei da inviolabilidade foi na prática limitada a umas poucas 
espécies simbólicas, entre as quais a vaca, que, enquanto encarnação da misericórdia maternal 
do  cosmos,  assume  uma  posição  especial.  Ao  renunciar  ao  abate  das  vacas,  o  hindu  venera 
toda a vida, em princípio, e ao mesmo tempo protege uma das mais importantes bases do seu 
modo de vida, o qual, desde há milhares de anos, depende do cultivo e da criação de gado. Do 
mesmo modo, as fontes sagradas, que existiam em grande número na cristandade medieval, 
chamavam a atenção para a sacralidade da água como tal; elas eram uma lembrança de que a 
água  é  um  símbolo  de  graça,  o  que  se  pode  facilmente  ver  no  simbolismo  do  baptismo.  O 

Sabedoria Perene 3  44 

 
O simbolismo da água 
 

sagrado é aquilo que é objecto de veneração e temor; é o reflexo de algo eterno e, portanto, 
indestrutível; a inviolabilidade de que ele goza provém daí directamente. 

Dependendo da fé à qual as pessoas aderem, e dependendo da sua mentalidade hereditária, 
há  outras  coisas  naturais  ou  artificiais  que  podem  ser  consideradas  sagradas.  Os  quatro 
elementos – ar, fogo, água e terra –, os quais são os mais elementares modos de manifestação 
de toda a matéria a se oferecerem aos nossos sentidos, estão praticamente em toda a parte – 
com excepção do mundo moderno e racionalista –, dotados da qualidade de sacralidade; deste 
ponto de vista, a terra é ilimitável, o ar é inapreensível, o fogo é impoluível na sua natureza; só 
a água é susceptível de violação, e portanto confiada a uma protecção especial. 

Recapitulando, para as culturas pré‐modernas, há realidades que transcendem o nível do mero 
utilitarismo e que têm precedência sobre elas. Essas realidades são em si mesmas de natureza 
puramente espiritual ou divina. No entanto, reflectem‐se em certos fenómenos sensíveis que 
podem,  consequentemente,  tornar‐se  objecto  de  veneração  e  temor,  e  tais  fenómenos  são, 
assim,  seja  completamente  ou  em  parte  (como  símbolos  representativos),  preservados  da 
interferência  violenta  dos  homens.  Naturalmente,  tal  atitude  é  muito  diferente  da 
sensibilidade estética, que também nos pode fazer – deixando de lado toda a consideração de 
utilidade  –  admirar  e  proteger  um  fenómeno  natural.  Mas  o  senso  de  beleza  está  de  certo 
modo contido na veneração do sagrado; pois o verdadeiramente belo é aquilo que jaz oculto 
na  riqueza  inesgotável  de  possibilidades  harmoniosamente  unidas.  O  mesmo  vale  para  o 
sagrado, e certamente para todos os fenómenos e elementos que pertençam às bases mesmas 
da  vida,  de  modo  que  essa  veneração  pelo  sagrado  também  contribui  mais  ou  menos 
directamente – nem sempre de maneira previsível – para a preservação da própria vida. 

Aqui devem fazer‐se algumas observações relativas aos elementos. Naturalmente, estes nada 
têm  a  ver  com  o  que  a  química  moderna  chama  de  elementos;  pelo  contrário,  tal  como  já 
dissemos, eles representam os modos mais elementares de manifestação nos quais “a matéria 
de que o mundo é feito” se comunica com os nossos cinco sentidos: os modos sólido, líquido, 
aéreo e ígneo de manifestação. Há, é certo, outros líquidos além da água, mas nenhum deles 
tem  para  nós  o  mesmo  aspecto  de  pureza,  e  nenhum  exerce  papel  tão  importante  na 
preservação  da  vida.  Do  mesmo  modo,  há  outras  substâncias  gasosas  além  do  ar,  mas 
nenhuma delas pode ser respirada. 

Cosmicamente,  os  quatro  elementos  são  então  os  modos  mais  simples  de  manifestação  da 
matéria.  De  um  ponto  de  vista  interior,  por  outro  lado,  eles  são  também  as  imagens  mais 
simples da nossa alma, que é inapreensível como tal, mas cujas características fundamentais 
podem ser comparadas aos quatro elementos. É isto que São Francisco de Assis tem em mente 
quando  louva  Deus  pelos  quatro  elementos,  um  após  outro,  no  seu  famoso  Cântico  do  Sol. 
Com relação à água, ele diz: “Louvado sejas, Senhor, pela irmã água, que é muito útil, humilde, 
preciosa  e  casta  (Laudato  si,  o  Signore,  per  sor  asqua,  la  quale  à  molto  utiile  ed  umile  e 

Sabedoria Perene 3  45 

 
Titus Burckhardt 
 

preziosa  e  casta)”.  Isto  pode  soar  como  pura  alegoria  poética,  mas  de  facto  significa  muito 
mais:  a  humildade  e  a  castidade  descrevem  bem  a  qualidade  da  água  que,  num  rio,  assume 
todas as formas, sem com isso perder a pureza. Reside aí também uma imagem da alma, que 
possui a capacidade de aceitar todas as impressões e seguir todas as formas, mantendo‐se fiel 
à sua própria essência não dividida. “A alma do homem assemelha‐se à água”, disse Goethe, 
reiterando assim uma imagem que aparece nas Escrituras tanto do Oriente‐Médio quanto do 
Extremo‐Oriente. A alma assemelha‐se à água, do mesmo modo que o espírito se assemelha 
ao vento ou ao ar. 

Levar‐nos‐ia muito longe mencionar todos os mitos e costumes em que a água aparece como 
uma imagem ou reflexo da alma. A consciência de  que a alma se reconhece  a si mesma nos 
aspectos da água – encontrando alegria no seu movimento, repouso na sua quietude e pureza 
na  sua  claridade  –  talvez  não  seja  em  nenhum  outro  meio  tão  difundida  quanto  entre  os 
japoneses.  A  vida  japonesa  como  um  todo,  na  medida  em  que  ainda  está  formada  pela 
tradição,  é  penetrada  por  um  senso  de  pureza  e  de  dócil  simplicidade  que  tem  a  sua 
prefiguração  na  água.  Os  japoneses  fazem  peregrinações  às  cascatas  famosas  do  seu  país,  e 
podem contemplar durante horas a superfície serena de um lago num templo. É significativa a 
história do sábio chinês Hsuyu – um  tema recorrente nos pintores japoneses –, que recebeu 
uma mensagem de que o Imperador desejava doar‐lhe o reino; Hsuyu fugiu para as montanhas 
e lavou os seus ouvidos numa cascata. O pintor Haronobu representou‐o alegoricamente sob a 
forma de uma jovem e nobre donzela que, na solidão das montanhas, lava o seu ouvido numa 
queda de água. 

Para  os  hindus,  a  água  da  vida  é  corporificada  pelo  Ganges,  o  qual,  desde  a  sua  fonte  nos 
Himalaias, as montanhas de Deus, irriga as maiores e mais populosas planícies da Índia. A sua 
água é considerada pura, do começo ao fim, e ela é de facto preservada de qualquer poluição 
através  da  areia  fina  que  arrasta  consigo.  Qualquer  pessoa  que,  com  sentido  de 
arrependimento,  se  banhe  no  Ganges,  é  absolvida  de  todos  os  seus  pecados;  a  purificação 
interior encontra, neste caso, o seu suporte simbólico na purificação exterior que vem da água 
do rio sagrado. É como se a água purificadora viesse do Céu, pois a sua origem no gelo eterno 
do  tecto  do  mundo  é  como  um  símbolo  da  origem  celeste  da  graça  divina  que,  como  “água 
viva”, brota da Paz intemporal e imutável. Aqui, como nos ritos similares de outras religiões e 
povos,  a  correspondência  da  água  com  a  alma  ajuda  esta  última  a  purificar‐se  ou,  mais 
exactamente, a reencontrar a sua própria – originalmente pura – essência. Neste processo, o 
símbolo prepara o caminho para a graça.  

A  água  simboliza  a  alma.  De  outro  ponto  de  vista  –  mas  analogamente  –  a  água  simboliza  a 
materia prima de todo o universo, pois, assim como a água contém em si mesma, como puras 
possibilidades, todas as formas que, fluindo e espargindo‐se, pode assumir, do mesmo modo a 
materia prima contém todas as formas do mundo num estado de indistinção. 

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O simbolismo da água 
 

Na história bíblica da criação diz‐se que, no princípio, antes da criação da Terra, o Espírito de 
Deus movia‐se sobre a face das águas; e os livros sagrados dos hindus contam‐nos que todos 
os habitantes da Terra emergiram do mar primordial. Nestes mitos, a água não é considerada 
no sentido comum da palavra, e contudo a figura que eles criam na nossa imaginação é, à sua 
própria  maneira,  correcta,  e  tão  apta  quanto  pode  possivelmente  sê‐lo,  pois  nada  comunica 
melhor a unidade indiferenciada e passiva da materia prima. 

O  mito  da  criação  de  todas  as  coisas  a  partir  do  mar  primordial  encontra  eco  nas  palavras 
corânicas:  “Criámos  todos  os  seres  vivos  a  partir  da  água”.  A  alegoria  bíblica  do  Espírito  de 
Deus  movendo‐se  sobre  as  águas  tem  a  sua  contrapartida  no  símbolo  hindu  do  cisne  divino 
Hamsa que, nadando no mar primordial, choca o ovo dourado do mundo; e cada uma dessas 
representações  alegóricas  é  finalmente  ecoada  no  Alcorão,  onde  se  diz  que  no  princípio  o 
Trono de Deus estava sobre a água. 

A  flor‐de‐lótus  aberta,  o  assento  das  divindades  indianas,  é  também  um  “trono  de  Deus” 
flutuando sobre a água da materia prima, ou sobre a água das possibilidades principiais. Este 
símbolo, que foi transmitido da mitologia e da arte hindu para a budista, reconduz‐nos da água 
enquanto imagem da substância primordial do mundo para a água enquanto imagem da alma. 
O  regato  de  lótus  do  Buda  ou  Bodisatva  surge  das  águas  da  alma,  do  mesmo  modo  que  o 
espírito,  iluminado  pelo  conhecimento,  se  liberta  da  existência  passiva.  Neste  caso,  a  água 
representa  algo  a  vencer,  mas  algo  em  que,  não  obstante,  existe  o  bem,  pois  nela  está 
enraizada a flor cujo cálice contém a “jóia preciosa” de Bodhi, o Espírito Divino. O Buda, a “Jóia 
de Lótus”, é ele próprio este Espírito. 

O exposto sumariza alguns dos significados que a água pode ter enquanto símbolo, mas muitos 
outros  exemplos  deste  tipo  poderiam  ser  mencionados.  Não  se  trata  meramente  de  uma 
questão  de  demonstrar  que  em  todas  as  culturas  que  podem  ser  chamadas  de  pré‐
racionalistas – e não se usa este termo pejorativamente – a água tem mais que um significado 
puramente físico ou biológico; as realidades espirituais de que ela é o símbolo nunca lhe estão 
associadas arbitrariamente, mas estão directa e logicamente relacionadas com a sua essência. 
A  visão  contemplativa  da  natureza  que,  através  das  aparências  essenciais  e  constantes, 
percebe  os  protótipos  ou  causas  intemporais  dessas  aparências,  não  é  algo  meramente 
sentimental,  nem  está  presa  ao  tempo  e  ao  lugar,  e  isto  apesar  do  facto  de,  no  mundo 
moderno, parecer que este tipo de contemplação foi banido. Dizemos “parecer” porque uma 
tal contemplação das coisas está muito profundamente enraizada no coração do homem para 
poder desaparecer completamente. Ela continua, mesmo inconscientemente, e não seria difícil 
mostrar como a atracção misteriosa da água enquanto algo sagrado, enquanto uma expressão 
simbólica  e  manifestada  de  uma  realidade  psíquica  ou  cósmica,  sobrevive  na  arte, 
especialmente  na  pintura  e  na  poesia.  Quem  nunca  sentiu,  diante  de  um  lago  puro  nas 
montanhas  ou  de  uma  fonte  que  brota  da  rocha,  no  mínimo,  um  pouco  do  temor  e  da 
veneração que são inseparáveis das coisas sagradas? Os povos de antigamente sabiam, melhor 

Sabedoria Perene 3  47 

 
Titus Burckhardt 
 

do que nós, que  não se perturba impunemente o  equilíbrio da natureza. A superioridade do 


nosso conhecimento científico é totalmente insuficiente para nos proteger de todos os efeitos 
provindos  de  uma  natureza  desequilibrada;  e,  ainda  que  fosse,  não  teríamos  nenhuma 
garantia de que o mundo psíquico ou subtil não se vingaria em nós. Um simples olhar para a 
Ásia e para a África, onde o equilíbrio espiritual das culturas antigas tem sido perturbado por 
todos os lados, e a sua própria existência colocada em questão, é suficiente para percebermos 
que  isto  pode  levar  à  destruição  das  “águas  vivas”,  destruição  esta  que  fará  a  poluição  das 
nossas águas físicas parecer inofensiva. 

Concluindo, e para mostrar que, mesmo na Europa moderna, ainda existem águas sagradas, há 
que mencionar o lago Derg, em Donegal, o condado mais ao norte da Irlanda. Neste lago há 
uma ilha na qual existem um certo número de santuários cristãos que datam da Idade Média, 
bem como uma caverna que representa a entrada para o mundo subterrâneo. Ela á chamada 
de “Purgatório de São Patrício”, pois diz‐se que foi nela que São Patrício, o Apóstolo da Irlanda, 
fez o inferno e o Monte do purgatório aparecerem aos pagãos numa visão. 

Desde  o  início  da  Idade  Média  a  ilha  tem  sido  um  lugar  de  peregrinação,  à  qual  estão 
associadas  regras  bastante  restritas.  Os  peregrinos,  que  são  levados  para  a  ilha  de  barco, 
devem andar descalços, em jejum, e devem realizar certos exercícios espirituais durante uma 
estadia de três dias. Os exercícios consistem principalmente em se ajoelharem sobre pedras e 
rezarem diante de um certo número de cruzes que foram levantadas em honra dos principais 
santos irlandeses. Sempre que um peregrino completa a sua devoção diante destas “estações” 
dispostas  como  contas  de  um  rosário,  dirige‐se  a  um  grande  penhasco  que  se  levanta  das 
águas a uma pequena distância da margem da ilha e, depois de algumas preces, recita em voz 
alta  o  credo,  olhando  sobre  as  águas  do  lago.  As  pessoas  que  fizeram  esta  peregrinação 
declaram  que  os  momentos  de  solidão,  de  contemplação  do  lago  sereno  rodeado  por 
montanhas desertas, libertam nos seus corações algo que é indescritível. 

Sabedoria Perene 3  48 

 
 

Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de 
Assis e Swâmi Râmdâs 
por Alberto Vasconcellos Queiroz 
  

Para onde quer que vos volteis, 
lá está a Face de Deus 
(Alcorão, Sura da Vaca, 115) 

Um  dos  traços  mais  marcantes  e  mais  conhecidos  da  figura  de  São  Francisco  de  Assis  é  sem 
dúvida  sua  relação  com  a  natureza.  Enquanto  o  tom  geral  da  espiritualidade  cristã  é  uma 
renúncia ao mundo em que é reduzido o espaço para a natureza como símbolo e reflexo de 
realidades  superiores  –  “Meu  Reino  não  é  deste  mundo”,  disse  Cristo  –,  São  Francisco 
demonstrou, paralelamente a uma renúncia total do mundo e um abandono também total à 
Vontade de  Deus, um profundo amor por todas as criaturas – homens e animais – e mesmo 
por  objetos  e  fenômenos  inanimados.  Este  amor  lhe  permitia  falar  com  tais  criaturas  e 
fenômenos, ser por elas ouvido e mesmo obedecido. 

São  muitos  e  conhecidos  os  episódios  da  vida  do  santo  que  ilustram  essa  surpreendente 
relação. O quanto, neles, a lenda vem ampliar os fatos, não se pode dizer. No entanto, mesmo 
que num ou noutro os piedosos exageros tenham distorcido significativamente a realidade, no 
conjunto eles apontam acima de qualquer dúvida para uma relação forte e sobrenatural com a 
natureza.  E,  para  quem  conhece  a  religião  dos  índios  americanos  –  particularmente  a  bem‐
documentada  religião  dos  índios  das  pradarias  da  América  do  Norte  –  não  é  difícil 
compreender que o que, no tocante à relação com a natureza, para o homem de mentalidade 
moderna entra na categoria de inverossímil e fantasioso é, na realidade, a par de maravilhoso, 
perfeitamente “normal”. Como disse Platão, “o maravilhar‐se é o começo da filosofia”. 

Entre os mais conhecidos episódios da amizade entre São Francisco e os animais está o do lobo 
de  Gubbio,  um  animal  de  porte  avantajado  que  punha  em  sobressalto  a  população  dessa 
cidade,  roubando‐lhe  a  criação  doméstica  e  até  mesmo  fazendo  vítimas  humanas.  São 
Francisco, ao saber do caso, estando naquela região e encontrando o animal, fala‐lhe como a 
um  amigo,  admoestando‐o  e  pedindo  que  reforme  seu  comportamento.  O  lobo,  a  partir  de 
então,  passa  a  se  portar  como  humilde  cão,  não  causa  mais  nenhum  dano  aos  moradores 
locais e, em contrapartida, é por estes alimentado. 

Pela pureza e simplicidade com que o episódio é relatado nas Fioretti, vale a pena reproduzir 
uma passagem, ainda que longa: 

Sabedoria Perene 3  49 

 
Alberto Vasconcellos Queiroz 
 

O  dito  lobo  foi  ao  encontro  de  S.  Francisco  com  a  boca  aberta:  e  chegando‐se  a  ele  S. 
Francisco  fez  o  sinal  da  cruz  e  o  chamou  a  si,  e  disse‐lhe  assim:  “Vem  cá,  irmão  lobo, 
ordeno‐te  da  parte  de  Cristo  que  não  faças  mal  nem  a  mim  nem  a  ninguém.”  Coisa 
admirável! Imediatamente após S. Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e 
cessou de correr; e, dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés 
de  S.  Francisco  como  morto.  Então  S.  Francisco  lhe  falou  assim:  “Irmão  lobo,  tu  fazes 
muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus 
sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de 
matar homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno de forca, como ladrão e 
homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga. 
Mas  eu  quero,  irmão  lobo,  fazer  a  paz  entre  ti  e  eles;  de  modo  que  tu  não  mais  os 
ofenderás  e  eles  te  perdoarão  todas  as  passadas  ofensas,  e  nem  homens  nem  cães  te 
perseguirão mais.” Ditas estas palavras, o lobo, com o movimento do corpo e da cauda e 
das orelhas e com inclinação de cabeça, mostrava de aceitar o que S. Francisco dizia e de o 
querer  observar.  (...)  E  estendendo  S.  Francisco  a  mão  para  receber  o  juramento,  o  lobo 
levantou  o  pé  direito  da  frente,  e  domesticamente  o  pôs  sobre  a  mão  de  S.  Francisco, 
dando‐lhe  o  sinal  como  podia.  Então  S.  Francisco  disse:  “Irmão  lobo,  eu  te  ordeno  em 
nome  de  Jesus  Cristo  que  venhas  agora  comigo  sem  duvidar  de  nada,  e  vamos  concluir 
esta  paz  em  nome  de  Deus.”  E  o  lobo,  obediente,  foi  com  ele,  a  modo  de  um  cordeiro 
manso; pelo que os citadinos, vendo isto, muito se maravilharam. 

Como  disse  um  autor,  este  episódio  poderia  ser  apenas  uma  imagem  criada  para  melhor 
comunicar como a fera que há em todo homem deve se submeter a Cristo. Mas não podemos 
esquecer que, nas vidas dos grandes santos, dos profetas, dos avatâras, é freqüentemente o 
contrário que acontece: elementos arquetípicos, como este sobre o duo sunt in homine de São 
Paulo, se manifestam sob a forma de episódios históricos. 

Também  muito  célebres  são  os  casos  de  pregação  aos  pássaros.  Lemos  nas  Fioretti  esta 
famosa passagem, em que Francisco prega a uma multidão de aves e passarinhos nas árvores e 
no chão, fazendo, aliás, bela referência a um trecho do Sermão da Montanha: 

A  substância  da  prédica  de  S.  Francisco  foi  esta:  ‘Minhas  irmãs  aves,  deveis  estar  muito 
agradecidas  a  Deus,  vosso  Criador,  e  sempre  em  toda  parte  o  deveis  louvar,  porque  vos 
deu  liberdade  de  voar  a  todos  os  lugares,  vos  deu  uma  veste  duplicada  e  triplicada; 
também porque reservou vossa semente na Arca de Noé, a fim de que vossa espécie não 
faltasse  ao  mundo;  ainda  mais  lhe  deveis  estar  gratas  pelo  elemento  do  ar  que  vos 
concedeu. Além disto, não plantais e não ceifais; e Deus vos alimenta e vos dá os rios e as 
fontes para beberdes, e vos dá os montes e os vales para vosso refúgio, e as altas árvores 
para fazerdes vossos ninhos e, porque não sabeis fiar nem coser, Deus vos veste a vós e 
aos  vossos  filhinhos;  muito  vos  ama  o  vosso  Criador,  pois  vos  faz  tantos  benefícios, 
portanto guardai‐vos, irmãs minhas, do pecado da ingratidão e empregai sempre os meios 

Sabedoria Perene 3  50 

 
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs 
 

de  louvar  a  Deus.’  Dizendo‐lhes  S.  Francisco  estas  palavras,  todos  e  todos  estes 
passarinhos  começaram  a  abrir  os  bicos,  a  estender  os  pescoços,  e  a  abrir  as  asas,  e  a 
reverentemente  inclinar  as  cabeças  para  o  chão,  e  por  seus  atos  e  cantos  a  demonstrar 
que as palavras do padre santo lhes deram grandíssima alegria (...) Finalmente, terminada 
a pregação, S. Francisco fez sobre elas o sinal da cruz e deu‐lhes licença de partir; e então 
todas  aquelas  aves  em  bando  se  levantaram  no  ar  com  maravilhosos  cantos;  e  depois, 
seguindo  a  cruz  que  S.  Francisco  fizera,  dividiram‐se  em  quatro  grupos:  um  voou  para  o 
oriente e outro para o ocidente, o terceiro para o meio‐dia, o quarto para o aquilão, e cada 
bando cantava maravilhosamente...1 

Em outra passagem, a pregação do santo na cidade de Alviano é atrapalhada pelo chilreio das 
andorinhas, até que ele volta‐se a elas e diz: “Meus irmãos e irmãs andorinhas, chegou agora 
minha  vez  de  falar.  Vós  estivestes  a  falar  bastante  todo  o  tempo.”  E  as  andorinhas  logo  se 
calam,  e  mantêm‐se  silenciosas  durante  todo  o  sermão,  só  voltando  aos  seus  chilreios  para 
acompanhar o canto de júbilo e louvor entoado pelo povo ao término da pregação. 

E  há  diversas  outras  histórias,  como  a  dos  carneiros,  ou  do  faisão,  ou  do  peixe,  que  não  o 
queriam  abandonar,  da  cigarra  que  ficava  em  sua  mão,  das  pombas  a  que  ajudou  a  fazer 
ninhos, e mesmo da árvore que Francisco impediu que fosse cortada inteiramente, ao pedir ao 
lenhador que lhe deixasse a possibilidade de crescer de novo. 

Mas no grande espelho da natureza, não era só nos animais que São Francisco via reflexos de 
realidades celestes. É célebre o fato de que, antes mesmo de iniciar sua missão, tendo caído 
gravemente doente e ficado longo período acamado, foi o Sol que, por assim dizer, trouxe o 
santo de volta à vida. Deitado em seu quarto, Francisco, recuperando‐se da doença, percebia 
que sentia‐se bem a partir do momento em que os raios solares entravam no cômodo e até o 
momento  em  que  ali  ficavam.  Percebia  que  o  Sol  era  como  um  amigo  que  vinha  visitá‐lo. 
Passou,  então,  a  querer  sair  de  casa  para  encontrar  o  Sol,  e,  tão  logo  possível,  ainda 
convalescendo, pôs‐se a fazer longas caminhadas pelos arredores de Assis, atraído pelo calor e 
pela luminosidade solar. O astro solar era para ele uma manifestação direta do divino. 

Além  do  Sol,  e  entre  outros  elementos  e  fenômenos,  Francisco  louvou  o  fogo.  Essas  duas 
fontes de luz e calor – símbolos do conhecimento e do amor – são mencionados juntos nesta 
passagem do Speculum Perfectionis: 

Pela  manhã  –  costumava  dizer,  quando  o  Sol  despontava  –  todos  os  homens  deveriam 
louvar a Deus, que criou este astro para bem e proveito deles: já que, graças ao Sol, todas 
as  coisas  podem  ser  vistas.  E  quando  o  Sol  se  põe  e  vem  a  noite,  todos  os  homens 
deveriam louvar a Deus por ter criado o irmão fogo, que ilumina nossos olhos com sua luz. 

Sabedoria Perene 3  51 

 
Alberto Vasconcellos Queiroz 
 

A relação de Francisco com a natureza ficou consagrada no maravilhoso Cântico das Criaturas 
ou Cântico do Sol, em que ele louva o “irmão Sol”, a “irmã Lua”, a “irmã água”, o “irmão fogo”, 
e  as  estrelas,  vendo  neles  sinais  espirituais  e  exemplos  para  os  homens.  Relembremos  aqui 
este  maravilhoso  canto  –  talvez  a  primeira  peça  literária  em  italiano  –  com  exclusão  das 
últimas estrofes: 

Altíssimo, onipotente, bom Senhor, 
A Ti os louvores, a glória, a honra e todas as bendições. 
A Ti só, Altíssimo, são devidos, 
E nenhum homem é digno de te mencionar. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, com todas as tuas criaturas, 
Especialmente nosso irmão Sol, 
Que nos dá o dia, e pelo qual Tu nos iluminas. 
E ele é belo e radiante com grande esplendor. 
De Ti, Altíssimo, nos dá uma representação. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, 
Que criastes no céu, claras e preciosas e belas. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, pelo irmão vento 
E pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todos os tempos, 
Por meio dos quais dás sustento a tuas criaturas. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, pela irmã água, 
Que é muito útil e humilde e preciosa e casta. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, pelo irmão fogo, 
Pelo qual iluminas a noite, 
E que é belo e alegre e robusto e forte. 
 
Louvado sejas Tu, Senhor, por nossa mãe terra, 
Que nos sustenta e nos mantém 
E produz diversos frutos com coloridas flores e folhas. 
 
Louvai e bendizei ao Senhor e dai‐lhe graças, 
E o servi com grande humildade. 
 
* * * 

Sabedoria Perene 3  52 

 
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs 
 

É sabido que o papa Inocêncio II, na noite do dia de seu primeiro encontro com Francisco, um 
“desconhecido mendigo” que vinha audaciosamente pedir a autorização para criar uma regra 
monástica,  teve  um  sonho  no  qual  via  a  igreja  de  São  João  Latrão,  centro  e  símbolo  da 
cristandade, ruir, quando surge um homenzinho mal‐vestido que, incrivelmente, a sustenta e 
repõe no lugar. No sonho, o homenzinho olha então para o papa, e este vê que era ninguém 
menos que o mendigo que encontrara. No dia seguinte, o papa concede a Francisco o direito 
de ter sua regra e de pregar a religião. 

O sonho místico do papa está totalmente de acordo com o que o próprio Cristo tinha dito a 
Francisco,  anos  antes,  na  pequena  igreja  de  São  Damião:  “Reconstrói  a  minha  Igreja.” 
Francisco, como sabemos, interpretou a mensagem ao pé da letra e pôs‐se reparar a pequena 
igrejinha. Foi só depois que se deu conta de sua missão era muito, muitíssimo maior! 

Francisco foi o primeiro a portar os estigmas de Cristo. Também foi chamado de alter Christus, 
“outro Cristo”. Frithjof Schuon disse que, se Francisco não tivesse surgido, Cristo teria tido de 
voltar. 

Certamente não poderia ser algo fortuito o fato de aquele a quem o Céu reservou esta missão 
gigantesca ter uma espiritualidade em que a natureza, como na religião primordial, é vista e 
vivida como símbolo. 

* * * 

São Francisco foi, para usar o termo hindu, um grande bhâkta, um seguidor da Via do Amor e 
da Devoção. Este é o caminho central no Cristianismo, embora, necessariamente, tenha havido 
neste também representantes da Via do Conhecimento, o jñâna, com Dante Alighieri e Mestre 
Eckhart. 

Outro seguidor da bhâkti, de estatura e missão muito menores que as de Francisco, foi o santo 
hindu Swâmi Râmdâs, que viveu no século XX. 

Râmdâs  levou  uma  vida  comum  e  ocidentalizada  até  por  volta  dos  quarenta  anos  de  idade. 
Subitamente,  sentindo  um  chamado  do  Céu,  abandonou  família,  casa  e  emprego  e  passou  a 
viver  como  peregrino  e  monge  mendicante,  entregando‐se  totalmente  à  devoção  a  Râma  – 
uma  das  encarnações  de  Vishnu  –  por  meio  do  japa‐yoga,  a  invocação  freqüente  ou  mesmo 
incessante de um Nome divino ou de uma fórmula sagrada. 

Há  dois  aspectos  da  vida  e  da  mensagem  de  Râmdâs  que  o  assemelham  a  São  Francisco  de 
Assis. O primeiro, geral e compartilhado por místicos em todas as religiões, é a total renúncia 
ao  mundo,  o  abandono  integral  à  Vontade  de  Deus,  a  confiança  absoluta  na  Misericórdia 

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Alberto Vasconcellos Queiroz 
 

divina. Sua vida após iniciar seu caminho espiritual está narrada em dois livros principais – In 
Quest of God e In the Vision of God – que o santo escreveu em inglês. Ao lermos estes livros, 
somos tocados profundamente pelo exemplo de desapego radical e confiança total em Deus – 
confiança que Deus nunca falha em atender – como o somos ao ler tantas passagens da vida 
de São Francisco.2 

Essa  entrega  radical  a  Deus  é  uma  coisa,  para  nós,  “maravilhosamente  absurda”,  e  tão 
absurda,  de  fato,  que  nos  atrai,  que  nos  faz  pressentir  que  há  ali  algo  de  grandiosamente 
verdadeiro e de intensamente feliz, uma proximidade do Céu e da real vocação humana. 

Râmdâs – seu nome significa “servo de Râm” ou "Râma" – também abandona‐se por inteiro a 
Deus: não só não procura o que comer, como nem mesmo se preocupa em decidir aonde ir; 
apenas invoca o Nome de Deus e põe todos os seus cuidados em Suas Mãos. E sucedem‐se as 
situações  mais  inspiradoras,  algumas  delas  mescladas  com  fino  humor,  pois  que  o  senso  do 
humor não faltava ao devoto de Râma. 

O segundo aspecto que aproxima São Francisco e Swâmi Râmdâs, este, sim, mais particular – e 
à parte a enorme diferença no alcance e na natureza de suas respectivas missões nesta terra, 
pois  Râmdâs  é  apenas  um  santo  hindu  e  um  propagador  da  bhâkti  por  meio  do  japa‐yoga, 
enquando  Francisco  é  simplesmente  o  restaurador  do  Catolicismo  –  é  o  amor  espiritual  à 
Natureza. 

O santo hindu – que chegou a ter uma visão mística de Cristo – é, em determinado momento 
de sua vida, visitado por dois sacerdotes católicos que lhe dizem, precisamente, que o gênero 
de  vida  que  levava  fazia  lembrar  o  de  São  Francisco  de  Assis.  De  fato,  Râmdâs,  em 
peregrinação  pelos  locais  sagrados  de  todas  as  regiões  da  Índia,  banha‐se  nos  rios  mais 
gelados,  escala  os  montes  mais  escarpados,  anda  mal‐equilibrado  à  beira  dos  maiores 
precipícios, vive na selva sem ser importunado por animais selvagens, recebe mesmo a visita 
de alguns deles, extasia‐se – literalmente – com a visão das mais belas paisagens, e vê em tudo 
e em todos o seu amado e bondoso Râma. 

Assim como é impossível ao leitor não se sensibilizar pelo abandono total de Râmdâs a Deus, 
também não há como não sentir a beleza da relação mágica com a natureza que brota com a 
santidade obtida pela invocação do Nome de Râma. 

Vejamos uma passagem de uma viagem de Râmdâs aos Himalaias: 

Conforme ascenderam, as cenas e paisagens que viam eram simplesmente encantadoras. 
À  direita,  o  Ganges  sagrado  corria  montanha  abaixo  em  toda  sua  glória,  e,  à  esquerda, 
altas montanhas rochosas, cheias de arbustos e árvores, apresentavam ao mesmo tempo 

Sabedoria Perene 3  54 

 
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs 
 

uma  visão  emocionante  e  absorvente.  O  próprio  ar  estava  ali  carregado  com  a  presença 
divina  de  Râm.  As  montanhas  e  vales  distantes,  o  céu  de  tonalidades  várias  no  qual  as 
brancas  e  fugazes  nuvens  assumiam  formas  fantásticas,  os  cumes  cobertos  de  neve, 
centenas  de  milhas  ao  longe  e  acima,  brilhando  sob  os  raios  do  sol  como  se  fossem 
cobertos  com  folhas  de  prata:  tudo  isso  constituía,  de  fato,  uma  visão  imponente!  Ó,  o 
encanto dessas cenas! Ó Râm!, o pobre Râmdâs não pode encontrar palavras adequadas 
para descrever a grandeza, a beleza, a glória maravilhosa das paisagens que se ofereciam 
ao seu desconcertado olhar. 

Nesta  outra  passagem,  a  experiência  espiritual  de  maravilhamento  com  a  natureza 


circundante é intensificada: 

Subiam  cada  vez  mais  alto.  Novamente,  paisagens  e  cenas  gloriosas  e  encantadoras 
enchiam seus olhos. (...) Por dias e dias caminharam em frente e por fim chegaram a um 
local chamado Badrinath ou Badrinarayan. Quando estavam ainda a cerca de meia milha 
do lugar, sentaram‐se à beira do caminho e olharam para as montanhas de Badrinath. A 
visão  era  fascinante.  (...)  Para  descrever  a  cena  a  pobre  pena  de  Râmdâs  é  totalmente 
inadequada e imprópria. Conforme contemplava a paisagem, ele por um tempo perdeu a 
consciência  de  seu  corpo  e  tornou‐se  um  com  as  altas  montanhas  no  meio  das  quais 
estava sentado. 

Neste outro interessante relato, em Ajmere, quando Râmdâs é levado por alguns amigos a um 
ashram no meio da selva, são porcos selvagens e uma serpente o ponto central: 

A  selva  estava  infestada  com  porcos  selvagens,  serpentes,  escorpiões  e  outras  criaturas 
venenosas.  Toda  noite,  uma  vara  de  vinte  ou  trinta  porcos  selvagens  rodeava  o  mandir, 
cuja  porta  estava  sempre  aberta.  Os  animais  vinham  para,  com  suas  presas,  desenterrar 
raízes da terra úmida que rodeava o mandir, pois essas raízes eram seu alimento. Râmdâs 
andava  à  vontade  durante  as  noites  quando  os  porcos  estavam  ali.  Mas,  pela  graça  de 
Râm, eles nunca o atacaram. Os aldeões que vinham até o local durante o dia o alertavam 
para a natureza feroz desses animais. Mas a confiança completa em Râm significa proteção 
total  e  nenhum  temor.  Além  disso,  dia  e  noite  o  mandir  era  visitado  livremente  por 
grandes  serpentes  negras,  nenhuma  das  quais,  contudo,  o  molestou.  Mais  ainda,  toda 
manhã, quando erguia o pedaço de pano estendido no chão pelos gentis sannyasis como 
asan ou assento – e que Râmdâs usava como cama durante a noite –, descobria debaixo 
dele vários escorpiões, mas nenhum deles jamais o picou. 

Ó  Râm!  Quando  Teu  braço  amoroso  está  sempre  pronto  para  proteger  Teu  humilde 
escravo, quem o poderia ferir? Tu estás – ó Râm – em toda parte – em todas as criaturas – 
todo o universo e todas as coisas que há nele são Tua própria manifestação. Ó Râm – toda 
a glória a Ti! 

Sabedoria Perene 3  55 

 
Alberto Vasconcellos Queiroz 
 

Um dia, Râmdâs vê uma serpente enrolada em sua perna: 

No curso desses últimos dias que passava na gruta, esse estado de êxtase invadia Râmdâs 
durante  as  horas  em  que  se  encontrava  só.  A  repetição  do  mantra  se  detinha  em  seus 
lábios e ele superava a consciência de seu corpo. (...) Uma manhã em que estava em pé na 
entrada  da  gruta  e  observava  a  subida  do  disco  solar,  sentiu  o  êxtase  invadi‐lo 
completamente.  Após  algum  tempo,  quando  voltou  a  si,  viu  uma  serpente  enrolada  em 
sua perna direita, que lambia seu dedão do pé. Râmdâs não se perturbou com isso; imóvel, 
observou  por  um  instante  a  manifestação  de  amizade  do  animal.  Depois  de  alguns 
minutos, a serpente se desenrolou e saiu da gruta. Râmdâs lembra‐se de a ter interpelado 
nestes termos: "Ó Râm amado, por que tens tanta pressa em partir?" O jogo do Senhor é 
verdadeiramente maravilhoso. Essa serpente dedicou tanta afeição a Râmdâs que, durante 
três dias, veio visitá‐lo pela manhã. Após isso, ela não mais voltou. 

Neste outro inspirador relato, Deus se identifica nos elementos da natureza: 

Chegando a monção, houve grandes chuvas à noite. A tempestade teve, certa noite, uma 
violência particular; os trovões rugiam e os relâmpagos eram ofuscantes; a chuva caía em 
jorros e chocava‐se contra as paredes da casa, que tremia, a cada raio, em suas próprias 
fundações. Um vento furioso chacoalhava as janelas sem persianas e lançava torrentes de 
água  até  no  fundo  no  quarto  onde  Râmdâs  estava  sentado,  imóvel  e  observando  com 
extrema alegria esssa terrificante batalha. Os terrores do temporal não o impressionavam; 
essa  situação  de  terror  e  de  perigo  enrijecia  cada  fibra  de  seu  ser.  A  Verdade,  seu  Deus 
interior, lhe falou: 

"Eu estou na tempestade, no vento e na chuva. Eu estou no trovão e no relâmpago. Eu sou 
o Criador ativo, o Conservador pleno de piedade e o Destruidor impiedoso. Eu sou tudo em 
tudo. Eu sou tudo." 

(...) Râmdâs, até o amanhecer, contemplou a gloriosa batalha dos elementos. 

* * * 

Como ficou dito acima, estes dois amigos de Deus tinham em comum, além do especial amor 
pela  natureza,  o  fato  de,  neles,  a  pobreza  ser  realmente  total.  A  regra  franciscana,  em  sua 
origem, dizia que os monges não deveriam ter absolutamente nada de seu, exceto uma tosca 
roupa para cobrir o corpo. São Francisco chamava a pobreza de "Dona Pobreza", e dizia que 
tinha  se  casado  com  ela,  que  era  ela  sua  esposa.  Da  mesma  forma,  Râmdâs  não  tinha  nada, 
exceto um pedaço de pano enrolado ao corpo. A entrega a Deus, nos dois casos, era total. 

Sabedoria Perene 3  56 

 
Notas sobre a ecologia espiritual de São Francisco de Assis e Swâmi Râmdâs 
 

Por certo, inúmeros outros santos houve, nas diversas religiões, que renunciaram totalmente 
ao mundo e abraçaram a pobreza. Essa está longe de ser uma característica particular de São 
Francisco  e  de  Râmdâs.  Mas  ela  nos  parece  ser  uma  condição  importante  de  sua  “ecologia 
espiritual”:  longe  de  todo  naturismo,  de  todo  sentimentalismo,  de  toda  ecologia  mundana  e 
“horizontal” que valoriza a natureza pela natureza e “deixa Deus de fora”, foi, ao contrário, em 
se entregando primeiramente, e incondicionalmente, ao Céu e, com isso, atingindo o “vazio” 
espiritual,  que  ambos  puderam,  sendo  “preenchidos”  pelo  Divino,  perceber  o  que  Frithjof 
Schuon  chamou  de  “transparência  metafísica  dos  fenômenos”  –  ou,  como  diz  o  versículo  do 
Alcorão citado em nossa epígrafe, perceber a “Face de Deus” em todas as coisas. 

NOTAS 

1  –  Bela  imagem  do  santo  ao  centro  e  as  aves  espalhando‐se,  como  bênçãos,  para  os  quatro  pontos  cardeais. 
Lembra  o  rito  do  Cachimbo  Sagrado,  entre  os  índios  das  pradarias  da  América  do  Norte,  no  qual  o  cachimbo  é 
oferecido aos “quatro cantos do universo”. 
2 – Para dar apenas um exemplo, encontra‐se na vida do santo cristão um episódio em que, debaixo de forte chuva, 
com  fome,  com  frio,  com  as  vestes  encharcadas  e  sujas  de  lama,  sem  ter  o  que  comer  e  onde  se  abrigar, 
hostilizados  pelas  pessoas,  considerados  loucos  e  mendigos,  ele  e  seus  primeiros  discípulos,  no  telheiro  de  Rivo 
Torto, põem‐se simplesmente a dançar e a cantar de alegria, e a louvar o Senhor! 

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Alberto Vasconcellos Queiroz 
 

Sabedoria Perene 3  58 

 
 

CRISE AMBIENTAL: 
PROFANAÇÃO DA NATUREZA 
 

   

 
 

   

 
 

As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental1 
por Seyyed Hossein Nasr 
Traduzido por Sandro Faria e Nuno Almeida 

Não  existe  nada  mais  premente  para  discutir  do  que  a  questão  da  crise  ambiental  e  das 
verdades e falsidades associadas a todo este assunto. A palavra  “crise” não é utilizada neste 
contexto  por  acidente,  pois  trata‐se  seguramente  de  uma  verdadeira  crise,  a  qual  segue  o 
encalço daquela crise espiritual e intelectual que é indissociável da perspectiva predominante 
do  mundo  moderno.  Aquela  crise  anterior  que  René  Guénon  discutiu  há  praticamente  um 
século atrás em várias obras, incluindo em Crise do Mundo Moderno2, a qual era conhecida por 
uns poucos e ignorada pela maioria. A crise ambiental é todavia demasiado manifesta para ser 
ignorada, mesmo pela multidão. É uma crise de extrema gravidade e urgência e qualquer um 
que a menospreze está simplesmente a enganar‐se a si mesmo ou a sonhar acordado. Porém, 
está na nossa natureza tentarmos nos esquivar do confronto com o que exige de nós as mais 
profundas transformações interiores. 

Poderá  ser  da  nossa  natureza  tentarmos  nos  esquivar  de  um  perigo  eminente  a  menos  que 
estejamos verdadeiramente perante ele, mas a razão pela qual não o pretendemos encarar é 
precisamente  por  ser  um  perigo.  O  cenário  sério,  retratado  por  académicos  e  cientistas 
honestos  que  estão  interessados  no  futuro  da  humanidade,  pode,  frequentemente,  ser 
anulado por uma empresa de filmagens que envie uma câmara para a floresta para fotografar 
uns poucos pássaros a voar por ali, com a pretensão de mostrar quão “normal” é a situação 
ambiental da terra, mesmo em zonas urbanas. Mas a verdade é o oposto. Estamos perto  de 
uma enorme crise, a qual tem que ser considerada de forma completamente séria. Mormente, 
é  também  necessário  compreender  que  a  crise  ambiental  não  pode  ser  resolvida  através  de 
boa  engenharia  (ou  melhor  engenharia);  não  pode  ser  resolvida  através  de  planeamento 
económico;  nem  mesmo  pode  ser  resolvida  através  de  modificações  de  cosmética  na  nossa 
concepção  do  desenvolvimento  e  da  mudança.  A  crise  ambiental  requer  uma  transformação 
muito  radical  na  nossa  consciência,  e  isto  não  significa  descobrir  um  estado  de  consciência 
completamente  novo,  mas  sim  regressar  ao  estado  de  consciência  que  a  humanidade 
tradicional  sempre  teve.  Significa  redescobrir  a  forma  tradicional  de  olhar  para  o  mundo  da 
natureza como presença sagrada. 

Para  o  título  desta  palestra,  escolhi  ambas  as  palavras  espiritual  e  religiosa.  Isto  foi  feito  de 
propósito,  porque,  em  muitos  sectores,  o  presente  uso  da  palavra  religião  deixa 
frequentemente de fora precisamente o elemento espiritual.   Aqueles  que  procuram  a 
dimensão  interior  da  experiência  religiosa  e  da  verdade  religiosa,  procuram  também  outra 
palavra  para  complementar  a  palavra  religião.  É  trágico  que  assim  seja,  mas  é  contudo  um 
facto.  A  palavra  espiritualidade  no  seu  sentido  corrente,  e  não  no  do  termo  que  provém  do 
latim, é um termo moderno. Tanto quanto apurei com a minha própria investigação, o termo 

Sabedoria Perene 3  61 

 
Seyyed Hossein Nasr 
 

espiritualidade,  tal  como  é  hoje  usado,  começou  por  ser  empregue  por  teólogos  católicos 
franceses  em  meados  do  século  XIX,  penetrando  depois  no  inglês.  Não  encontramos  o  uso 
deste  termo  como  o  entendemos  hoje  antes  do  século  XIX.  Hoje,  para  muitas  pessoas,  este 
termo  denota  precisamente  aqueles  elementos  da  religião  que  foram  sendo  esquecidos  no 
Ocidente  e  que,  por  conseguinte,  passaram  a  ser  erradamente  identificados  como 
espiritualidade distinta da religião. 

Do  meu  ponto  de  vista,  que  é  evidentemente  sempre  um  ponto  de  vista  tradicional,  não  há 
espiritualidade sem religião. Não há nenhuma maneira de alcançar o espírito sem escolher um 
caminho que Deus tenha  escolhido para nós, e isso significa religião (religio).  Assim sendo, a 
razão pela qual estou a utilizar ambas as palavras não é por motivos de expediente, mas para 
salientar  que  pretendo  incluir  uma  realidade  que  abrange  tanto  a  espiritualidade  como  a 
religião, no entendimento corrente desses termos, embora tradicionalmente o termo religião 
fosse  suficiente,  uma  vez  que  no  seu  sentido  completo  inclui  tudo  o  que  hoje  é  entendido 
como espiritualidade. 

É  importante  relembrar  que  todos  nós,  no  planeta,  participamos  na  destruição  do  nosso 
ambiente  natural,  embora  as  razões  para  essa  destruição  variem  nas  diferentes  partes  do 
globo.  No  mundo  moderno,  o  ambiente  é  destruído  por  se  seguir  a  filosofia  dominante, 
enquanto que no que permanece do mundo tradicional isto também acontece, à margem da 
visão  mundial  prevalecente,  quase  sempre  devido  a coerção  e  a  tentação  externa,  quer  esta 
seja directa ou indirecta. Tenho repetido esta verdade em muitos lugares e tenho provocado a 
ira de algumas pessoas, mas o facto é que a única acção em que quase todos participam no 
momento  presente  da  história  da  humanidade,  desde  comunistas  e  socialistas  a  capitalistas, 
de hindus e muçulmanos a ateus, de cristãos a xintoístas, é no viver e agir de modo a causar a 
destruição  do  ambiente  natural.  Este  facto  deve  penetrar  completamente  na  nossa 
consciência  enquanto,  ao  mesmo  tempo,  lembramos  as  diferenças  nas  motivações  e 
perspectivas dos sectores religiosos e secularizados da humanidade. Obviamente, para aqueles 
para  quem  a  religião  é  ainda  uma  realidade,  é  muito  mais  fácil  apelar  à  religião  e  à  visão 
religiosa  da  natureza  para  descobrir  os  meios  nos  quais  se  encontraria  uma  solução  para  a 
crise que todos sofremos. 

Esquecemo‐nos frequentemente que a vasta maioria das pessoas no mundo ainda vivem pela 
religião.  No  entanto,  grande  parte  dos  intelectuais  ocidentais  pensa  sobre  as  questões 
ambientais como se todos fossem agnósticos seguidores de uma filosofia secular cultivada em 
Oxford,  Cambridge  ou  Harvard,  e  portanto  procuram  desenvolver  uma  ética  ambiental 
racionalista baseado no agnosticismo, como se isso fosse produzir qualquer efeito significativo 
na crise ambiental. É importante encarar o mundo em que vivemos realisticamente. Se assim o 
fizermos,  então  teremos  de  perceber  porque  é  que  a  religião  é  tão  significativa,  quer  na 
compreensão,  quer  na  solução  da  crise  ambiental.  Não  esqueçamos,  repito,  que  a  vasta 
maioria  das  pessoas  no  mundo  vive  de  acordo  com  a  religião.  A  estatística  frequentemente 

Sabedoria Perene 3  62 

 
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental 
 

citada,  que  diz  que  apenas  metade  da  humanidade  vive  assim,  é  totalmente  falsa  porque 
reclama  que,  a  somar  aos  ocidentais,  existem  1,2  mil  milhões  de  chineses  que  são  ateus  ou 
não religiosos. Isto não é, de todo, o caso. O confucionismo não é uma filosofia, mas sim uma 
religião  com  base  num  ritual  –  voltarei  a  isto  em  breves  momentos.  Existem,  no  máximo, 
algumas  centenas  de  milhões  de  agnósticos  e  ateus  espalhados  sobretudo  no  mundo 
ocidental, com extensões nalgumas grandes cidades na Ásia e em África. Mas este grupo forma 
uma pequena minoria das pessoas do mundo. Os que vivem nos outros continentes, tal como 
muitas  pessoas  na  Europa  e  na  América,  ainda  vivem  num  mundo  essencialmente  religioso. 
Embora  a  visão  religiosa  da  natureza  se  tenha  perdido  no  mundo  ocidental,  mesmo  aqui,  é 
ainda à religião que a maioria das pessoas comuns ouve, e o mesmo acontece com um muito 
superior  número  de  pessoas  noutras  partes  do  globo.  É  por  isso  que  qualquer  ideologia 
secularista que tente substituir a religião tenta sempre também desempenhar o papel próprio 
à religião. Isto aconteceu com a ideologia da ciência moderna no ocidente, a qual, para muitas 
pessoas, é agora aceite como uma “religião”. É por isso que as pessoas que nos tentam vender 
os mais variados tipos de produtos na televisão o fazem como “cientistas” – como agentes de 
“autoridade” – e é por isso que usam sempre uma bata branca, não a batina preta dos padres 
tradicionais.  Eles  estão  a  tentar  parecer‐se  com  membros  de  um  novo  “sacerdócio”. 
Funcionam  como  o  sacerdócio  de  uma  pseudo‐religião.  O  seu  empreendimento  é  fazer  a 
ciência  parecer,  não  simplesmente  algo  comum,  mas  algo  que  substitui  a  religião.  Parece 
apropriado  aceitar  uma  ética  racionalista  relacionada  com  a  ciência  para  quem  aceite  esta 
tese,  mas  a  vasta  maioria  das  pessoas  no  mundo  ainda  seguem  a  religião  autêntica. 
Consequentemente, para estas, nenhuma ética teria eficácia a não ser a ética religiosa. 

No  Ocidente,  durante  quatrocentos  anos,  os  filósofos  influenciados  pelo  cientismo  têm 
tentado  desenvolver  uma  ética  secular  e,  com  toda  a  certeza,  existem  muitos  ateus  que  são 
muito éticos nas suas vidas. Mas por que norma podem eles considerar‐se como éticos? Por 
nenhuma  outra  senão  aquela  que  a  religião  incutiu  nas  mentes  das  pessoas  no  Ocidente.  Se 
alguém assassina o seu vizinho, consideramos que isso não é ético. Mas porque é que não é 
ético?  O  que  é  que  está  errado  com  isso?  Os  programas  de  televisão  sobre  a  natureza  em 
África  mostram  animais  a  comerem‐se  uns  aos  outros  constantemente.  Se  somos  apenas 
animais,  então  porque  é  errado  matarmo‐nos  uns  aos  outros?  O  facto  de  que  todos  dizem 
“não” a um tal acto é precisamente porque existem certos valores religiosos incutidos, mesmo 
na  atmosfera  secular  do  mundo  ocidental  que  fala  da  assim  chamada  ética  secular.  Na 
verdade, o valor desta ética tem as suas raízes na religião. Seja qual for o caso, nenhuma ética 
secular  poderia  falar  com  autoridade  excepto  para  aqueles  que  aceitassem  as  premissas 
filosóficas de uma tal ética. 

Permanece  o  facto  de  que  a  vasta  maioria  das  pessoas  no  mundo  não  aceita  qualquer  ética 
que  não  tenha  uma  fundação  religiosa.  Em  termos  práticos,  isto  significa  que  se  uma  figura 
religiosa, digamos um mulla ou um brahmin na Índia ou Paquistão, for a um povoado e disser 
aos locais que, do ponto de vista da sharī’ah (lei islâmica) ou da lei de Manu (lei hindu), eles 

Sabedoria Perene 3  63 

 
Seyyed Hossein Nasr 
 

estão proibidos de cortar uma determinada árvore, muitos o aceitariam. Mas se um qualquer 
licenciado da Universidade de Deli ou de Carachi, que seja um representante governamental, 
for  dizer  que,  por  razões  racionais,  filosóficas  e  científicas,  é  melhor  não  cortar  a  mesma 
árvore, poucos dariam atenção ao seu conselho. Assim, do ponto de vista prático, a única ética 
aceitável para a vasta maioria no momento presente da história do mundo é a ética religiosa. 
O fortíssimo preconceito contra a ética religiosa em certos círculos no ocidente, que agora se 
preocupam  com  a  crise  ambiental,  é  em  si  mesmo  um  dos  maiores  impedimentos  para  a 
solução da própria crise ambiental.  

Existe  uma  segunda  razão  pela  qual  a  religião  é  tão  importante  na  resolução  da  crise 
ambiental. Existem muitos elementos envolvidos aqui, mas vou resumi‐los. Todos sabemos e, 
mesmo que não estejamos pessoalmente preocupados com as raízes metafísicas, espirituais e 
cosmológicas  da  crise  ambiental,  estamos  contudo  cientes  do  facto  de  que,  exteriormente 
(não digo interiormente), esta crise é conduzida pelo sistema económico moderno que apela 
às  paixões  humanas,  especialmente  à  paixão  da  ganância  intensificada  pela  criação  de 
necessidades  falsas,  que  não  são  verdadeiras  necessidades  mas  sim  quereres.  Isto  opõe‐se à 
visão exposta pelas religiões ao longo dos milénios, isto é, o exercício da virtude da resignação, 
de  se  estar  grato  com  o  que  se  tem.  O  panorama  moderno  é  baseado  no  atear  do  fogo  da 
ganância e da avareza, em fazer todo o possível para aumentar o apego da alma ao mundo e 
em tornar  num vício o que para a religião sempre foi uma virtude, isto é, manter uma certa 
distância  e  desapego  do  mundo;  noutras  palavras,  manter  um  certo  ascetismo.  Existe  um 
provérbio alemão famoso, “não existe cultura sem ascetismo”; e isto é verdade para todas as 
civilizações. 

Estamos  a  viver  no  primeiro  período  da  história  da  humanidade  ocidental  em  que,  excepto 
para algumas pequenas e dispersas ilhas de monasticismo ortodoxo ou católico ou anglicano e 
de  umas  poucas  pessoas  que  tentam  praticar  a  austeridade,  o  ascetismo  é  considerado  um 
vício, não uma virtude. Não é ensinado nas nossas escolas como virtude; é ensinado como um 
vício  que  nos  impede  de  nos  realizarmos  a  nós  próprios,  como  se  o  nosso  “próprio”  fosse 
simplesmente a extensão do nosso físico. Esta ideia de auto‐realização é, obviamente, central 
para  a  tradição  oriental  e  para  determinadas  tradições  ocidentais.  Mas  perverteu‐se  da  pior 
maneira possível e transformou‐se na base do consumismo moderno, o qual pode ser visto na 
sua forma mais virulenta na América – agora em rápida conquista da Europa e a trabalhar bem 
para  atingir  a  Índia,  a  China,  a  Indonésia,  etc.  (dentro  da  próxima  década  teremos  vários 
milhares de milhões de novos consumidores nestes países sedentos por coisas artificiais sem 
as  quais  viveram  nos  últimos  milhares  de  anos).  E  o  que  isto  fará  à  Terra  só  Deus  sabe.  As 
consequências da continuação da presente tendência estão para além de qualquer crença ou 
especulação. Então o que é que pode refrear as paixões, quer gradual, quer repentinamente? 
Para a vasta maioria das pessoas que, acreditando em Deus e na vida eterna, ainda temem as 
consequências  das  suas  acções  malévolas  nas  suas  vidas  neste  mundo,  nada  a  não  ser  a 
religião. Se lhes fosse dito que a poluição e a destruição do ambiente é um pecado, no sentido 

Sabedoria Perene 3  64 

 
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental 
 

teológico do termo, pensariam duas vezes antes de enveredarem nele. Para o crente comum, 
a  ira  de  Deus  e  o  temor  da  punição  na  vida  eterna  é  a  força  mais  poderosa  contra  as 
tendências negativas da alma passional. Para quase todas as pessoas que continuam a poluir o 
ar e a terra, e cujo estilo de vida implica a destruição do ambiente natural, o que poderá actuar 
como  travão  contra  o  sempre  crescente  poder  das  paixões  senão  a  religião?  As  religiões 
tiveram  que  lidar  com  a  morte  do  ego  passional  durante  milhares  de  anos,  com  a  morte  do 
dragão  interior  para  utilizar  o  símbolo  mencionado  em  tantas  tradições.  A  morte  do  dragão 
pela  lança  de  São  Miguel  tem  vários  significados,  um  dos  quais  é  obviamente  o  de  que  só  a 
lança do Espírito é capaz de matar esse dragão; ou o que no sufismo se chama de nafs, a alma 
passional,  a  alma  menor  dentro  de  nós.  Nos  dias  de  hoje,  raramente  pensamos  nesse 
problema. Mas onde está São Miguel com a sua lança? Como é que vamos parar as pessoas de 
quererem mais e mais senão pelo poder do Espírito, disponibilizado através da religião? E uma 
vez aberta a caixa de Pandora dos apetites, como é que vão pôr o génio outra vez dentro da 
caixa? Como é que vão ser capazes de, somente com argumentos racionais, dizer às pessoas 
para  usarem  menos,  para  cobiçarem  menos,  para  serem  menos  gananciosas,  e  por  aí  em 
diante? Nenhuma força hoje em dia tem o poder para fazer isto a não ser a religião, a menos 
que se considere a pura coerção física. 

Para  a  vasta  maioria  das  pessoas,  não  existe  outra  maneira  de  controlar  as  grandes  paixões 
internas agora ateadas, pelo enfraquecimento da religião primeiro, e, segundo, pela criação de 
um novo conjunto de valores derivado de um tipo de pseudo‐religião cujos novos deuses são 
ídolos tais como o “desenvolvimento” e “progresso”. Mas este tipo de ídolos não tem o poder 
de nos ajudar a controlar as nossas paixões. Pelo contrário, apenas lhes ateia o fogo. Temos 
sido  testemunhas,  durante  esta  última  geração,  do  cada  vez  maior  descrédito  das  atitudes 
religiosas tradicionais face ao mundo, especialmente do que em árabe chamamos de ridā, que 
é  resignação  com  o  nosso  estado  de  existência,  uma  virtude  que  é  exactamente  oposta  ao 
pecado  de  ganância.  Claro  que  os  muçulmanos  têm  sido  criticados  pelo  Ocidente  desde  há 
muito  tempo  simplesmente  por  serem  fatalistas  face  aos  eventos,  de  serem  demasiado 
resignados  à  sua  sorte.  Este  mesmo  descrédito  tem  sido  dirigido  a  valores  cristãos  similares. 
Mas isto deve‐se a um profundo mal‐entendido. Onde é que, no actual sistema de educação 
ocidental,  é  dada  atenção  a  estas  virtudes  tradicionais?  Mesmo  de  um  ponto  de  vista 
puramente empírico e científico, estas virtudes devem ser vistas como sendo de grande valor, 
uma  vez  que  possibilitaram  ao  ser  humano  viver  durante  milhares  de  anos  no  planeta  sem 
destruir o ambiente natural, como estamos a fazer actualmente. Estas virtudes tradicionais, as 
quais  possibilitaram  que  inúmeras  gerações  vivessem  em  equilíbrio  com  o  mundo  que  as 
rodeava, foram ao mesmo tempo concebidas como formas de aperfeiçoamento da alma, como 
degraus no aperfeiçoamento da existência humana. Estas virtudes providenciaram meios para 
viver  em  paz  com  o  ambiente.  Estas  permitiram  também  que  o  homem  vivenciasse  o  que 
significa  ser  humano  e  que  cumprisse  o  seu  destino  aqui  na  terra,  o  qual  está  sempre 
relacionado com a tentativa de incutir internamente tais virtudes. 

Sabedoria Perene 3  65 

 
Seyyed Hossein Nasr 
 

Outro papel cardeal e central da religião na solução da crise ambiental, um que vai à sua raiz, é 
muito  mais  difícil  de  compreender  no  contexto  da  mentalidade  moderna.  Este  papel  está 
relacionado com o significado dos rituais religiosos como forma de estabelecer uma harmonia 
cósmica.  Note‐se,  esta  ideia  é  desprovida  de  sentido  no  contexto  do  pensamento  moderno, 
onde o ritual parece não ter qualquer relação ou correspondência com a natureza da realidade 
física.  Na  visão  do  mundo  moderno,  os  rituais  são  na  melhor  das  hipóteses  elementos 
pessoais,  individuais,  subjectivos,  que  criam  felicidade  no  indivíduo  ou  estabelecem  uma 
relação  entre  ele  ou  ela  e  Deus.  Até  aqui,  encontra‐se  aceitação  entre  algumas  pessoas 
modernas. Mas como poderiam os ritos estabelecer uma harmonia cósmica? Do ponto de vista 
científico moderno, tal afirmação parece não fazer qualquer sentido. Mas não é disparatada; é 
uma  verdade  bastante  subtil  que  tem  de  ser  exposta  e  destacada.  Quer  da  perspectiva 
espiritual, quer da religiosa, o mundo físico está relacionado com Deus por níveis de realidade 
que  transcendem  o  próprio  mundo  físico  e  que  constituem  os  vários  estados  da  hierarquia 
cósmica. É impossível ter harmonia na natureza, ou harmonia do homem com a natureza, sem 
esta  harmonia  vertical  com  os  estados  mais  elevados  do  ser.  Uma  vez  concebida  a  natureza 
como algo puramente material, mesmo aceitando que foi criada por um Deus percepcionado 
como um relojoeiro, esta relação cósmica deixa de poder sequer ser concebida, quanto mais 
compreendida. Uma vez que se separe a natureza dos seus princípios imediatos – que são os 
níveis  de  realidade  psíquico  e  espiritual  ou  angélico  –  então  a  natureza  já  perdeu  o  seu 
equilíbrio no que respeita à nossa relação com ela. 

Ora, do ponto de vista da religião, os rituais são dados por Deus. Não estou a utilizar o termo 
ritual tal como entendido do ponto de vista secular, como se se tratasse de vestir uma túnica 
para ir a um qualquer exercício de iniciação ou a qualquer outra acção humanamente criada, 
frequentemente  chamada  de  “ritual”  no  discurso  corrente  do  dia‐a‐dia.  Estou  a  utilizá‐lo  no 
sentido  religioso.  De  acordo  com  todas  as  religiões  tradicionais,  os  rituais  desceram  do  Céu. 
Um  ritual  é  um  decreto  de  um  protótipo  divino,  ou  antes  um  re‐decreto,  aqui  na  terra.  No 
mundo  abraâmico,  isto  significa  que  os  rituais  foram  revelados  por  Deus  aos  profetas  e  que 
foram por eles ensinados ao homem. A “repetição” da Última Ceia do Cristo na Eucaristia, ou 
as  orações  diárias  dos  muçulmanos  –  de  onde  vêm?  De  acordo  com  os  seguidores  destas 
religiões, todas elas vêm do Céu. No hinduísmo e no budismo observa‐se a mesma realidade. 
As diferenças são de contexto e de visão do mundo, mas os seus fundamentos são os mesmos. 
Não há nenhum rito hindu que tenha sido inventado por alguém que, caminhando ao longo do 
Ganges, se tivesse lembrado subitamente dele. Para os hindus, eles são de origem divina. As 
orações diárias muçulmanas, que todos vemos em fotografias, foram dadas aos muçulmanos 
pelo Profeta na base de instruções recebidas de Deus. Nem mesmo o Profeta as inventou. A 
Eucaristia  “re‐decreta”  a  Última  Ceia  que,  sendo  o  rito  central  do  cristianismo,  foi 
primeiramente celebrado pelo próprio Cristo. 

Ora, estes ritos, por virtude da sua re‐decretação na terra, ligam a terra aos níveis de realidade 
superiores. Um rito liga‐nos sempre ao eixo vertical da existência, e por virtude disso, liga‐nos 

Sabedoria Perene 3  66 

 
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental 
 

também  aos  princípios  da  natureza.  Esta  verdade  sustenta‐se  não  apenas  nas  religiões 
primordiais, onde certos actos são desenvolvidos na própria natureza – mencionemos o caso 
das  religiões  africanas,  das  religiões  aborígenes  da  Austrália  ou  as  religiões  dos  índios 
americanos  –  mas  também  no  mundo  abraâmico,  no  mundo  hindu  e  nas  religiões  iranianas. 
Quer se utilizem formas naturais particulares tais como a árvore, a rocha ou a caverna, ou algo 
parecido, ou objectos de  arte sagrada e litúrgica relacionada com ritos desenvolvidos dentro 
de  uma  igreja,  uma  sinagoga,  uma  mesquita  ou  um  templo  hindu,  objectos  estes  feitos  pelo 
homem,  não  faz  qualquer  diferença.  A  mesma  verdade  pode  ser  encontrada  em  todos  estes 
casos.  De  um  ponto  de  vista  metafísico,  um  ritual  re‐estabelece  sempre  o  equilíbrio  com  a 
ordem cósmica. 

Num sentido místico mais profundo, a  natureza está faminta das nossas orações, no sentido 
que somos como a janela da casa da natureza através da qual a luz e ar do mundo espiritual 
penetra  no  mundo  natural.  Quando  esta  janela  se  torna  opaca,  a  casa  da  natureza  torna‐se 
escura.  Isso  é  exactamente  o  que  vivenciamos  hoje  em  dia.  Depois  de  fecharmos  os  nossos 
corações a Deus, a escuridão espalha‐se por todo o mundo. Isto, está claro, é algo muito difícil 
de  explicar  a  uma  mentalidade  agnóstica.  Mas  pelo  menos  de  um  ponto  de  vista  prático, 
expediente, deveria ser tomado em consideração mesmo por aqueles que não levam os ritos a 
sério, já que está à vista o que aconteceu à natureza nas mãos dos sectores da humanidade 
que já não praticam os ritos tradicionais. 

Todas as pessoas religiosas que acreditam na eficácia dos ritos, e que os praticam, têm  uma 
maneira  de  olhar  o  mundo  natural  e  o  seu  lugar  nele  que  é  muito  diferente  da  maneira 
secular,  sendo  esta  última  a  mesma  que  nos  conduziu  à  crise  ambiental.  Já  todos  leram  ou 
ouviram falar de vários exemplos de rituais religiosos e da sua relação com a natureza, mesmo 
nas  religiões  menos  conhecidas.  Talvez  o  mais  conhecido,  no  que  toca  à  demonstração  da 
relação  directa  entre  os  rituais  e  o  mundo  natural,  seja  a  dança  da  chuva  dos  índios 
americanos,  sobre  a  qual  os  cépticos  fazem  piadas.  Mas  algumas  pessoas  levam‐na  muito  a 
sério  e  procuram  nos  pajés  ou  xamãs,  “homens  da  medicina”  entre  os  índios  americanos, 
ajuda para trazer a chuva. Claro que tal coisa é chacoteada pela ciência oficial, mas isso não 
interessa, pois tal ciência negligência a sympathaeia que existe entre o homem e as realidades 
cósmicas. 

Existem rituais similares por todo o mundo islâmico, hindu, budista e tradicional cristão. Mas 
no mundo actual ocidental moderno isto tornou‐se mais ou menos eclipsado, apesar de não 
ter  desaparecido  completamente.  Na  Grécia,  assim  que  se  sai  das  grandes  cidades,  vê‐se 
ainda,  tal  como  nas  aldeias  de  Itália,  quando  há  notícias  de  um  terramoto,  as  pessoas  a 
recitarem o início do Evangelho de S. João em latim, que muitos ainda sabem de cor. Os fiéis 
recitam‐no num sentido ritual para ajudar a recrear o equilíbrio  e a harmonia com o mundo 
natural  através  do  apelo  à  Misericórdia  Divina.  Dificilmente  consigo  sobrevalorizar  o 
significado deste aspecto religioso, porque é impossível para uma colectividade humana viver 

Sabedoria Perene 3  67 

 
Seyyed Hossein Nasr 
 

em  harmonia  com  a  natureza  sem  esta  relação  ritualizada  com  o  mundo  natural  e  sem  a 
harmonia com Deus e com os níveis mais elevados da hierarquia cósmica. Sem esta relação, a 
natureza  fica  reduzida  a  uma  “coisa”,  a  um  facto  puro,  a  um  nódulo  material,  não  em  si 
própria, está claro, mas para nós, e nós devemos suportar todas as consequências que uma tal 
visão implica. 

Ao  mesmo  tempo  que  providencia  uma  base  sólida  para  a  ética,  talvez  o  papel  mais 
importante  da  religião  na  compreensão  das  raízes  da  crise  ambiental  (e  aqui  eu  incluiria 
especialmente o elemento espiritual da religião, porque é a dimensão espiritual, metafísica e 
esotérica  da  religião  que  destaca  este  elemento),  é  o  de  que  a  religião  possui  uma  ampla 
doutrina sobre a natureza do mundo em que vivemos. Isto é, a religião, quando era integral e 
não  truncada  como  se  tornou  hoje  em  dia  no  ocidente,  providenciava  não  apenas  uma 
doutrina  sobre  Deus,  não  apenas  uma  doutrina  sobre  o  estado  humano,  mas  também  uma 
doutrina sobre o mundo da natureza. E aqui, por doutrina, quero dizer conhecimento (docta), 
não  apenas  opinião  mas  conhecimento  autêntico  que  não  é,  de  forma  alguma,  negado  pelo 
conhecimento científico do mundo. Todas as religiões providenciam não apenas ensinamentos 
pertencentes  ao  campo  emocional  e  sentimental,  não  apenas  princípios  para  a  acção  ética, 
mas  também  conhecimento,  conhecimento  no  mais  profundo  sentido  do  termo; 
conhecimento de Deus, do estado humano e também da natureza. Não há nenhuma grande 
religião cuja tradição integral não providencie este conhecimento. Algumas religiões enfatizam 
um  elemento,  outras  outro.  Certas  religiões,  tal  como  o  confucionismo,  não  falam  sobre 
cosmogonia  e  escatologia,  mas  têm  uma  vasta  cosmologia.  Noutras  religiões  é  verdade  o 
inverso. Mas estes três tipos de conhecimento, isto é, o conhecimento de Deus ou do Princípio 
Último, do estado humano, e da natureza, têm de existir em todas as religiões integrais. 

Ora,  não  é  necessário  procurar  muito  longe  para  ver  o  que  aconteceu  no  mundo  moderno. 
Gradualmente,  a  partir  do  século  XVII,  primeiro  no  Ocidente  e  depois,  nas  décadas  mais 
recentes, espalhando‐se a outras partes do mundo, a legitimidade do conhecimento religioso 
da  natureza  foi  sendo  rejeitado.  Grande  parte  das  pessoas  que  estuda  as  visões  sobre  a 
natureza de um Erigena ou de um S. Tomás de Aquino, fazem‐no como historiadores. Mas as 
suas visões não são aceites pela maioria da sociedade moderna ocidental como conhecimento 
legítimo  do  mundo.  O  que  se  perdeu  foi  a  forma  de  estudar  a  natureza  religiosamente,  não 
simplesmente como “poesia”, tal como este termo é utilizado hoje em dia num sentido trivial 
e, claro está, não num sentido positivo. A verdadeira poesia possui uma grande mensagem no 
que  concerne  à  natureza,  uma  mensagem  que  geralmente  é  em  si  mesma  religiosa.  Em 
qualquer caso, a sociedade moderna desassociou do conhecimento da natureza a religião, tal 
como fez com o da própria poesia sapiencial, e relegou a atitude religiosa e o conhecimento da 
natureza para um sentimento ou “simplesmente” para uma sensibilidade poética. 

Temos maravilhosos exemplos de poesia da natureza na grande produção poética inglesa do 
século  XIX.  Os  poetas  românticos  produziram  bela  poesia  sobre  a  natureza.  Mas  que  efeito 

Sabedoria Perene 3  68 

 
As dimensões espiritual e religiosa da crise ambiental 
 

teve  nos  departamentos  de  física  das  universidades?  Absolutamente  nenhum,  precisamente 
porque a ciência que se desenvolveu no século XVII, através de processos muito complicados 
que não posso aprofundar agora, começou a excluir da sua visão do mundo a possibilidade de 
uma  forma  de  conhecimento  religioso  ou  metafísico  da  natureza.  Esta  ciência  excluiu  até  a 
visão  poética  da  natureza,  na  medida  em  que  esta  reclamava  legitimidade  intelectual  e 
proclamava  ser  mais  do  que  aquilo  a  que  alguns  chamariam  de  “mera  poesia”.  A  ciência 
moderna  tem‐se  agarrado  fortemente  a  esse  monopólio,  mesmo  nesta  nossa  era  de 
pluralismo, em que tudo o que não é ciência é relativizado. Normalmente, os pós‐modernistas 
desconstroem  tudo  excepto  a  ciência  moderna  porque,  se  isto  fosse  feito,  toda  a  visão 
mundial do modernismo, bem como o pós‐modernismo, colapsariam. Assim, tem‐se um tipo 
de exclusividade e de monopólio científico que foi sendo criado e aceite por grande parte, mas 
não por todas as pessoas no mundo moderno. Goethe, o supremo poeta e também cientista 
alemão,  insurgiu‐se  de  forma  veemente  contra  a  reivindicação  monopolista  da  ciência 
moderna.  Também  certos  cientistas,  tais  como  Oswald,  um  reputável  químico,  rejeitaram  o 
mecanismo científico; e podem‐se nomear outros. Mas estes são excepções à regra. Tornou‐se 
regra  que  não  existe  outro  conhecimento  da  natureza  excepto  o  que  é  chamado  de 
conhecimento  científico.  E  se  alguém  reivindica  que  existe  um  conhecimento  religioso  da 
natureza,  então  é  habitual  argumentar‐se  que  este  é  baseado  no  sentimento,  nas  emoções, 
ou,  por  outras  palavras,  em  factores  subjectivos.  Se,  por  exemplo,  alguém  vir  uma  pomba  a 
voar  e  pensar  no  Espírito  Santo,  isso  é  simplesmente  uma  correlação  subjectiva  entre  a 
percepção da pomba e os sentimentos desse alguém. Não é concedida qualquer objectividade 
à  realidade  da  natureza  percebida  através  do  conhecimento  religioso.  É  por  isto  que  até  o 
simbolismo se tornou subjectivizado – é reivindicado como sendo “meramente” psicológico, à 
la Jung. Todos os símbolos que o homem tradicional via no mundo da natureza como sendo 
objectivos e como sendo parte da realidade ontológica da natureza foram postos de parte por 
este tipo de mentalidade que já não leva a sério o conhecimento religioso da natureza. 

Durante  estes  últimos  trinta  anos,  quando  se  fez  sentir  a  sede  por  uma  aproximação  mais 
holística à natureza, algo ainda pior aconteceu, pois nem a religião convencional nem a ciência 
moderna mostraram qualquer interesse no conhecimento religioso e simbólico da natureza e 
numa aproximação holística. A procura de água para esta sede infiltrou‐se sob as estruturas da 
cultura ocidental e surgiu na forma de movimentos “Nova Era”, dos quais praticamente todos 
estão  muito  interessados  na  ciência  do  cosmos.  Mas  o  que  estes  movimentos  reivindicam 
como ciência é na realidade uma pseudo‐ciência da “Nova Era” do cosmos. Não é uma ciência 
tradicional autêntica, porque a ciência tradicional do cosmos tem que estar relacionada com a 
estrutura  religiosa  tradicional.  Neste  clima  da  “Nova  Era”,  a  palavra  “cósmico”  ganhou  uma 
grande  prevalência  precisamente  devido  à  escassez  de  um  conhecimento  religioso  autêntico 
do cosmos no mundo actual. De algum modo a sede tinha de ser satisfeita. Assim ocorreu a 
escavação dos ensinamentos esotéricos ocidentais sobre a natureza – geralmente apresentado 
de modo distorcido – ou empréstimos das religiões orientais e dos seus ensinamentos sobre a 
natureza, muitas vezes distorcidos. Nem mesmo o famoso e influente livro de Fritjof Capra, O 

Sabedoria Perene 3  69 

 
Seyyed Hossein Nasr 
 

Tao  da  Física,  fala  verdadeiramente  de  cosmologia  hindu  ou  de  física  chinesa,  mas  apenas 
menciona certas comparações entre a física moderna e ideias metafísicas hindu e taoistas. 

Certamente  que  existem  muitas  e  profundas  correlações  e  concordâncias  para  serem 


encontradas entre certos aspectos da biologia, da astronomia e da física quântica, de um lado, 
e  as  doutrinas  orientais  da  natureza,  do  cosmos,  do  outro  lado.  Eu  seria  a  última  pessoa  a 
duvidar  desta  verdade.  Mas  o  que  quase  sempre  ocorreu  não  foi  o  tipo  de  comparação 
profunda  que  temos  em  mente,  mas  a  sua  paródia,  um  tipo  de  versão  popularizada  de  um 
conhecimento  religioso  da  natureza,  que  habitualmente  envolve  algum  tipo  de  ocultismo  ou 
mesmo algum tipo de culto existente. O grande e visível interesse pelo xamanismo na América, 
e pelo fenómeno integral da tradição dos índios americanos (a qual é uma das maiores e mais 
belas  tradições  primordiais  que  ainda  sobrevive  até  certo  ponto),  com  sessões  xamânicas  de 
fim‐de‐semana, deve‐se precisamente ao facto de que tais ensinamentos apelam a um tipo de 
mentalidade que procura alguma forma de conhecimento da natureza com carácter espiritual 
e  holístico,  para  além  daquele  que  a  ciência  moderna  oferece.  Este  fenómeno  é  um  dos 
paradoxos dos nossos dias e não ajudou a crise ambiental em nenhuma maneira apreciável. Na 
verdade,  criou  uma  certa  confusão  no  domínio  da  religião  e  criou  um  vazio  entre  as 
organizações religiosas convencionais que ainda sobrevivem no ocidente – sejam elas católica, 
protestante  ou  ortodoxa  –  e  estes  pseudo‐movimentos  e  o  fenómeno  “Nova  Era”,  contra  os 
quais  aquelas  organizações  se  opõem  justamente.  O  facto  destes  movimentos  pseudo‐
religiosos  serem  muito  pró‐ambiente,  ainda  que  de  uma  maneira  ineficiente,  provocou  que 
muitas  das  pessoas  comuns  adoptassem  uma  postura  contrária  às  posições  que  deveriam 
defender.  Assim  temos,  na  América,  a  situação  paradoxal  de  que  os  grupos  de  cristãos  mais 
conservadores são os menos interessados no ambiente. Este fenómeno não foi originalmente 
causado pelo surgimento das religiões “Nova Era”, mas está certamente relacionado com e é 
fortalecido por eles. 

NOTAS 
1  –  N.T.:  Selecção  e  compilação  dos  conteúdos  leccionados  no  âmbito  do  Programa  de  Educação  Religiosa  e 
Ambiente (REEP) dos Amigos do Centro e da Academia Temenos em 22 de Maio de 1998. 
2  –  N.T.:  René  Guénon,  Crise  do  Mundo  Moderno,  tradução  de  António  Carlos  Carvalho,  1977  (Vega,  Colecção 
Janus); publicada originalmente em 1927 com o título La crise du monde moderne. 

Sabedoria Perene 3  70 

 
 

A agricultura e o destino humano 
por Lord Northborne 
Traduzido por Sandro Faria 

A Crosta desta terra experimenta convulsões periódicas de várias naturezas e escalas. Durante 
as maiores, submergem continentes existentes e novos emergem. Entre convulsões, poderão 
existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas 
partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras 
que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações 
que  ocorrem  numa  escala  cósmica  e  que  surpreendem  a  nossa  imaginação  pela  sua 
imensidade  e  duração,  reduzindo  todos  os  fenómenos  terrestres  a  uma  insignificância 
quantitativa.  Em  termos  quantitativos,  a  vida  humana  é  duplamente  insignificante,  pois 
desempenha um papel deveras pequeno na história geológica do planeta; e este planeta não 
pode ser considerado à parte do sistema solar nem este último à parte do resto do universo. 

Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas 
sim  no  domínio  da  qualidade.  Apenas  valerá  a  pena  preservar  a  vida  humana  em  virtude  do 
seu  conteúdo  qualitativo  ou  potencialidade  qualitativa,  ainda  que  aquela  tenha  um  aspecto 
quantitativo  inerente  que  não  pode  ser  preservado  a  menos  que  se  satisfaçam  os  seus 
requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos apenas se justifica na medida em que é 
necessária para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade. 

A  maior  dificuldade  que  surge  desta  afirmação  é  que  não  se  pode  definir  a  natureza  dessas 
potencialidades  qualitativas  com  precisão.  Apenas  a  quantidade  é  mensurável,  a  qualidade 
como  tal  pode  ser  enunciada  mas  não  medida.  A  qualidade  é  eternamente  o  que  é,  ou  é 
percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem 
não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave 
para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao 
discutir qualidade, o mais que se pode fazer é  comparar coisas que possuem uma qualidade 
com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para quem 
conhece por experiência a qualidade em questão. 

Isto  é  tanto  ou  mais  verdade  para  a  qualidade,  ou  qualidades,  que  podem  ser  chamadas  de 
“espirituais”.  A  palavra  espiritual  é  inevitavelmente  mal  aplicada  ou  mal  interpretada  por 
aqueles cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável 
é,  em  última  análise,  tudo  o  que  pode  ser  contido  nos  poderes  analíticos  e  descritivos  do 
cérebro  humano.  Se  não  houvesse  nada  que  transcendesse  esses  poderes,  toda  a  qualidade 
poderia  em  princípio  ser  reduzida  a  quantidade.  A  distinção  qualitativa  essencial  do  homem 
reside nas suas potencialidades espirituais. 

Sabedoria Perene 3  71 

 
Lord Northborne 
 

As  convulsões  terrestres  envolvem  a  destruição  periódica  de  vidas,  humanas  ou  outras.  Isto 
pode  surgir‐nos  como  algo  terrível  e  difilcultar  a  compreensão  de  um  Deus  todo 
misericordioso  que  ordena  acontecimentos  destes.  Esquecemo‐nos  que  a  lei  da  vida  e  da 
morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com 
a  quantidade,  é  conferido  de  uma  forma  –  universos  e  o  que  fica  para  baixo.  Tudo  deve 
perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio. 
Somos perecíveis, quer como indivíduos, quer como sociedades humanas. O Homem sempre 
soube  isto,  mas  ao  mesmo  tempo  também  sempre  considerou  que  deve  haver,  por  assim 
dizer,  algo  por  detrás  de  tudo,  algo  imperecível  e  maior  que  ele  próprio.1  Aceitar  a 
perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a 
humildade  que  essa  aceitação  implica,  é  um  prelúdio  necessário  para  o  entendimento  da 
nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente, 
os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa 
dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de 
direcção e frustrando muitas acções bem‐intencionadas. 

O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Na realidade, tudo; pela dupla razão de que 
o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física, e que a relação 
da qualidade com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na 
nossa  abordagem  aos  seus  problemas,  envolve‐nos  a  todos  mais  do  que  normalmente 
pensamos. 

Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana 
no  planeta  e  assim  tem  sido  desde  que  o  aumento  da  população  ultrapassou  as 
potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna‐se 
a  principal  expressão  do  relacionamento  entre  o  homem  e  a  Natureza.  Todas  as  restantes 
actividades  humanas  surgem  como  ramificações  desta  relação  e  são  dela  dependentes. 
Poderíamos  prosseguir  sem  elas  mas  não  sem  a  agricultura.  Consequentemente,  afecta‐nos 
mais directamente do que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa 
posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte‐se em nós. 

Esta  verdade  auto‐evidente  tem  vindo  a  ser  obscurecida  pelas  atracções  e  distracções  do 
desenvolvimento  industrial,  mas  surge‐nos  novamente,  agora  no  seu  aspecto  quantitativo, 
devido  ao  rápido  crescimento  da  população  mundial.  Este  incremento  parece  acompanhar 
sempre  uma  revolução  industrial.2  Num  período  de  tempo  incrivelmente  curto,  o  progresso 
industrial  passou  a  ser  o  objectivo  de  quase  todas  as  nações;  e,  uma  vez  estabelecido,  um 
objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta 
parece  alcançável.  Embora  nos  encontremos  perante  um  risco  de  fome  mundial  dentro  de 
poucas  décadas,  continuamos  a  dedicar  uma  proporção  cada  vez  maior  do  nosso  dinheiro  e 
energia  ao  desenvolvimento  industrial,  cujas  exigências  são  insaciáveis.  A  indústria  gera 

Sabedoria Perene 3  72 

 
A agricultura e o destino humano 
 

constantemente  novos  crescimentos,  que  por  sua  vez  criam  novas  oportunidades,  mas  com 
elas também novos desejos e novas necessidades.3 

A  visão  dominante  na  indústria,  o  princípio  na  qual  esta  se  baseia  e  à  qual  todos  os  outros 
devem  ceder  passagem,  é  à  progressiva  redução  no  custo  financeiro  da  produção  e 
comercialização  de  um  dado  produto.  O  propósito  de  tal  redução  é  o  da  libertação  de 
recursos, humanos e físicos, para a produção de outros produtos. O processo é, por inerência, 
cumulativo e acelerativo.  Este processo implica  uma mudança contínua de um tipo  que hoje 
em  dia  seria  chamada  de  “reposicionamento  dos  recursos”.  Implica  igualmente  um  estímulo 
incansável  de  procura  de  bens,  ou  noutras  palavras,  de  desejo.  Trata‐se  de  persuadir 
continuamente  as  pessoas  a  quererem  o  que  estas  não  sabiam  querer.  Seria  difícil  inventar 
uma base económica menos bem adaptada que esta para o cumprimento das funções vitais da 
agricultura. 

Com o panorama industrial a tornar‐se cada vez mais universal, torna‐se cada vez mais difícil 
para a agricultura, e eventualmente impossível, manter métodos e técnicas incompatíveis com 
os da indústria. A agricultura é afectada, acima de tudo, pela contínua pressão mundial para 
reduzir  custos  unitários  através  da  adopção  de  novos  métodos  que  demonstrem  vantagens 
financeiras  marginais,  mas  que  são  prontamente  suplantados  por  um  outro  novo  método.  A 
instabilidade  resultante  não  faz  mais  do  que  prejudicar.  A  agricultura  adopta  a  paisagem 
industrial na medida em que as suas circunstâncias o permitem. Resistiu durante muito tempo, 
mas está agora densamente envolvida.  

A  organização  típica  da  agricultura  sedentária  foi,  até  recentemente,  conhecida  como 
campestre; desapareceu talvez primeiro na Grã‐Bretanha, antes de desaparecer nos restantes 
países.  As  suas  características  essenciais  são  unidades  económicas  relativamente  pequenas, 
normalmente  trabalhadas  por  famílias  que  obtêm  a  maioria  do  seu  sustento  pela  sua 
produção, vendendo ou trocando apenas o seu excesso. Cada unidade, ou grupo de unidades, 
é mais ou menos auto‐contida e auto‐suportada, quer economicamente quer biologicamente. 
As  técnicas  de  cultivo  e  de  pecuária  são  passadas  de  geração  em  geração,  com  poucas  ou 
nenhumas alterações. Dentro deste enquadramento podem‐se encontrar muitas variações, já 
estudadas; algumas sobreviveram aqui e ali até ao presente, embora não sem modificações. O 
modo de vida de um camponês é acima de tudo tradicional; a sua resistência à mudança foi, 
no passado, talvez o principal factor de estabilização na civilização humana, assim como foi, ao 
mesmo tempo, solo fértil de admiráveis qualidades humanas. Mesmo hoje, de entre os poucos 
sobreviventes do campestre ancestral, é possível encontrar exemplos de dignidade, equilíbrio 
e  orgulho  associado  ao  real  artesão,  o  que  está  sem  dúvida  relacionado  com  o  verdadeiro 
sentido do lugar do homem na Natureza e, consequentemente, com a sua relação com Deus. 
Estas  qualidades  compensam  muitas  faltas.  Hoje  em  dia,  estas  não  são  suficientemente 
apreciadas pois não são geradoras de dinheiro, mas a civilização fica seriamente empobrecida 
quando  estas  rareiam.  O  camponês  tem  sido  chacota  do  citadino  esperto,  ainda  que  o  seu 

Sabedoria Perene 3  73 

 
Lord Northborne 
 

estilo de vida tenha sido também romantizado. Não há qualquer justificação para desvalorizar 
a função do camponês, pois esta é indispensável para o sedentarismo. 

Enquanto o camponês retém vestígios do estado paradisíaco do qual brotou, a sua função vai 
muito  para  além  da  simples  produção  de  comida,  uma  vez  que  esta  é  a  função  pela  qual  o 
homem  é  integrado  no  seu  meio  envolvente.  O  seu  aspecto  romântico  está  intimamente 
associado a essa origem. Na sua decadência, muito pouco dessa origem subsiste. 

O modo de vida campestre tem vindo a ser erradicado do mapa‐mundo. É verdade que este 
não  pode  ir  ao  encontro  do  que  as  pessoas  consideram  as  necessidades  dos  nossos  tempos, 
mas  também  é  verdade  que  as  pessoas  dos  nossos  tempos  não  sabem  quais  são  as  suas 
necessidades reais. Se um camponês pode preservar algo que seja conforme às necessidades 
humanas  mais  profundas,  isso  pelo  menos  explicará  o  porquê  de  ser,  entre  todas  as  outras 
formas de sociedade humana, a forma de vida mais persistente. Mas apesar de ter sobrevivido 
até aos dias de hoje, parece estar actualmente condenada. O tractor está a substituir o animal, 
a electricidade está por todo o lado, a televisão na sala de estar, e o carro motorizado está no 
palheiro  do  animal  de  carga.  Nalguns  sítios  onde,  apesar  de  tudo,  o  espírito  ancestral  possa 
ainda sobreviver durante mais algum tempo, o turismo está a inundá‐los com artificialidade. 

O  camponês  europeu  e  asiático,  ao  qual  evidentemente  nos  referimos  aqui,  é  tido  como  o 
representante da agricultura tradicional. O modo de vida do caçador nómada é, por definição, 
apenas  marginalmente  agrícola  e  é  por  isso  excluído  da  presente  discussão,  excepto  para 
mencionar que o verdadeiro nómada pode, em muitos aspectos, estar mais próximo do estado 
paradisíaco do que o camponês, e que o advento do modernismo destruiu o seu modo de vida 
completa e ainda mais rapidamente. 

Valerá  a  pena  resumir  a  natureza  das  mudanças  trazidas  à  agricultura  pelo  emergir  da 
dominância do espectro industrial. 

Primeiro:  a  redução  progressiva  do  número  de  pessoas  directamente  envolvidas  na 
agricultura,  quer  proporcionalmente  ao  volume  da  sua  produção,  quer  proporcionalmente  à 
população não agrícola. Esta tendência é mais profunda na Grã‐Bretanha e nos Estados Unidos 
do  que  em  qualquer  outra  parte,  e  a  proporção  de  população  agrícola  para  o  total  da 
população  continua  a  cair.4  Isto  tem  sido  possível  devido  ao  aumento  da  mecanização  de 
processos e tarefas, incluindo no cuidado dos animais. A mecanização é a característica mais 
típica  da  industrialização  em  todas  as  suas  formas.  É  usualmente  acompanhada  pela 
substituição do assalariado pelo trabalhador com interesses proprietários. 

Segundo;  e  directamente  resultante  do  ponto  anterior:  o  aumento  progressivo  da  dimensão 
média das quintas e dos terrenos para que o custo dos equipamentos e maquinaria, complexos 
e  dispendiosos,  possa  ser  distribuído  por  uma  área  maior  e  para  que  possam  ser  usados  em 

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A agricultura e o destino humano 
 

toda a sua capacidade sem restrições. Consequentes alterações relacionadas com sistemas de 
utilização dos terrenos, finanças, etc., não necessitam de ser consideradas aqui, embora sejam 
importantes. 

Terceiro: a substituição de métodos mais antigos por métodos químicos para manutenção da 
produtividade dos solos e combate a doenças, ervas daninhas e pestes. 

Quarto; e surgindo directamente das três mudanças anteriormente mencionadas: uma perda 
progressiva  de  independência  económica,  quer  na  unidade  agrícola  individual,  quer  na 
agricultura  como  um  todo.  A  agricultura  está  já  muito  dependente  da  indústria  para  a 
concretização das suas funções e, particularmente em Inglaterra, dependente da indústria e de 
produtos de terras distantes. Aqui jaz um risco de fome tão largamente por reconhecer.5 

Quinto:  um  aumento  na  padronização  dos  produtos  agrícolas  e  hortícolas,  para  satisfazer  os 
requisitos de uma população maioritariamente urbanizada, e dos distribuidores que não só a 
servem, mas também a persuadem a querer aquilo que lhes convém oferecer, nomeadamente 
produtos que sejam uniformes, bem embalados em quantidades padrão e o mais imperecíveis 
possível. A consequência de tudo isto é a difusão da prática de adicionar conservantes numa 
gama cada vez maior de produtos.6 Mais uma vez, a redução no preço é a suposta justificação 
deste  tipo  de  práticas,  mas  mesmo  esta  vantagem  pode  ser  mais  do  que  neutralizada  pelos 
custos  de  processamento,  embalagem  e  distribuição.  Existe  uma  cada  vez  maior  distância 
entre o produtor primário e o consumidor, mais notável no seu aspecto financeiro do que no 
seu mais importante aspecto biológico. Esta é claramente uma grande questão, uma vez que 
cobre todo o campo da nutrição humana. 

Sexto: Uma instabilidade crescente que surge do ritmo com que novas ideias são produzidas 
pela investigação, em conjunto com alterações económicas e políticas, carece do ajustamento 
ou alteração dos métodos e da maneira de atacar os problemas actuais. A agricultura deixa de 
ser o principal factor de estabilidade, quer económico quer social, na civilização e encontra‐se 
envolvida  num  ciclo  vicioso  que  se  pode  apelidar  de  “corrida  desenfreada”.7  Não  será  talvez 
uma estimativa errada dizer que têm existido mais alterações nos últimos cem anos que nos 
anteriores mil, e mais nos últimos vinte anos que nos últimos duzentos. E esta aceleração não 
mostra sinais de decréscimo. 

Todas estas alterações marcam o abandono da visão tradicional em favor da visão industrial da 
agricultura.  O  progresso  industrial  é  baseado  na  ciência  moderna  e,  assim  sendo,  não  é 
surpresa que a agricultura se considere cada vez mais científica; e, em grande parte, assim o é. 
A maior parte dos agricultores aceitam esta situação e muitos até a recebem de bom grado, 
pois  estes  não  são  imunes  à  infecção  da  ideologia  do  progresso  industrial.  Por  eles  ou  por 
outros, todos os passos neste processo são vistos como um avanço; e assim o é do ponto de 
vista puramente industrial. Qualquer evolução trás pelo menos um ganho potencial que pode 

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Lord Northborne 
 

ser  medido  em  termos  financeiros,  mas  na  agricultura  o  preço  pode  ter  de  ser  pago  numa 
moeda  menos  mensurável,  uma  que  é  qualitativa  e  não  quantitativa.  Nenhum  exemplo 
poderia ser mais auto‐evidente do que o do sacrifício da beleza associado ao desenvolvimento 
industrial, incluindo o desenvolvimento da agricultura em moldes industriais; uma perda não 
apenas  na  beleza  natural  mas  também  na  beleza  das  coisas  que  o  homem  faz  para  o  seu 
próprio  uso  e  prazer.  Esta  é  uma  das  perdas  qualitativas  que  não  passou  despercebida.  É 
lamentável,  e  apesar  de  várias  tentativas  serem  feitas  para  a  minimizar,  pouco  é  feito  para 
atacar ou mesmo para perceber as suas causas. 

Existem  ainda  outros  problemas.  Por  exemplo,  tem  havido  uma  considerável  contestação 
pública contra a chamada “agricultura fabril”, tal como é aplicada aos animais, sobretudo em 
bases de crueldade, e tem havido argumentação variada de ambos os lados. Sem entrar nesta 
argumentação,  pode‐se  afirmar  com  confiança  que  enquanto  houver  produtores  que  podem 
cortar os seus custos, produzindo artigos ainda vendáveis, a pressionar produtores incapazes 
de  o  fazer,  haverá  “agricultura  fabril”  ou  qualquer  coisa  muito  parecida,  com  todos  os  seus 
efeitos inevitáveis na qualidade dos seus produtos e dos animais envolvidos. 

Existe também a controvérsia sobre a qualidade da comida criada com métodos “naturais” em 
oposição à criada com métodos “artificiais”. Não é uma questão de natural vs artificial mas sim 
do  grau  de  artificialidade,  os  únicos  produtos  naturais  são  aqueles  produzidos  pela  natureza 
sem  assistência  do  homem;  mas  questões  de  grau  podem  ser  cruciais.  O  assunto  pode  ser 
discutido  ad  nauseam  e  a  resposta  alcançada  é  garantidamente  alvo  de  crítica,  como  sendo 
resultado de preconceito, uma vez que provavelmente não será possível obter qualquer prova 
científica.  Nada  menos  do  que  experimentação  com  comunidades  completas  e  prolongada 
durante  várias  gerações  pode  providenciar  qualquer  coisa  que  possa  ser  chamada  de  prova 
científica e, por essa altura, seria tarde demais para ser de qualquer utilidade.8 

Um  retorno  aos  métodos  tradicionais  de  cultivo  e  fertilização  não  toca  na  raiz  do  problema 
deste  tema.  Isto  não  implica  que  isto  não  seja  proveitoso  apenas  por  si,  desde  que  daí  não 
sejam depositadas demasiadas expectativas. Algumas pessoas tentaram e continuam a tentar 
produzir  comida  sem  ajuda  de  fertilizantes  químicos  e  pulverizações;  e  algumas  pessoas  – 
talvez  em  número  crescente  –  preferem  comprar  comida  assim  produzida.  Quem  ousa  dizer 
que estão errados? A larga maioria não está interessada e prefere seguir a corrente e ignorar 
os objectores da comida criada pelos métodos modernos como sendo meros fanáticos. 

Novas  técnicas  são  adoptadas  pelos  agricultores,  pois  estes  sabem  que  se  não  se  mantêm 
actualizados  serão  eliminados  do  negócio.  A  agricultura  moderna  tornou‐se  muito  mais  um 
negócio do que um modo de vida. A pressão no sentido da industrialização total da agricultura 
é ainda crescente. Na Grã‐Bretanha, onde certos preços mínimos são fixados pelo Governo, os 
agricultores são oficialmente encorajados a esperar nada menos; aos agricultores é‐lhes dito 
que estes preços serão baseados no crescimento expectável de tanto por cento ao ano da sua 

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A agricultura e o destino humano 
 

“eficiência”, e a medida dessa eficiência é exclusivamente financeira. É por isto que já foram 
excluídas do mercado a maioria das poucas unidades agrícolas que, de uma forma ou de outra, 
tentaram  combater  as  tendências  contemporâneas.  Descobriram  que  o  que  era 
economicamente viável ontem já o não é hoje e será ainda menos amanhã.9  

Uma coisa é abundantemente  clara. No futuro, é pouco provável que a crescente população 
mundial  possa  de  todo  ser  alimentada  sem  o  emprego  das  técnicas  científicas  da  agricultura 
moderna.  Para  esta  ser  alimentada  sem  a  utilização  dessas  técnicas,  a  condição  necessária 
seria  a  abolição  de  todos  os  quantitativos  e  ideais  sentimentalistas  da  civilização  moderna  e 
dos  desejos  que  estes  engendram,  bem  como  a  recuperação  de  uma  apreciação  e 
compreensão  da  Natureza  agora  ausente.  É  inegável  que  populações  bastante  densas  se 
alimentaram  por  longos  períodos  sem  as  técnicas  modernas,10  mas  as  suas  perspectivas  de 
vida, os seus problemas, e a sua estrutura de valores, eram tão diferentes dos nossos que não 
podemos, como sociedade, sequer compreendê‐los, quanto mais viver como estes o fizeram. 

Onde  quer  que  a  linha  que  divide  o  artificial  do  natural  possa  ser  traçada,  a  sua  separação 
atingiu um ponto em que se pode dizer que a revolução agrícola desencadeada pela revolução 
industrial  trouxe  algo  como  um  divórcio  entre  o  homem  e  a  Natureza.  Anteriormente,  o 
homem  vivia  em  relativa  harmonia  com  a  Natureza  e  exercia  o  seu  papel  naquilo  que 
chamamos o “equilíbrio da Natureza”. Esse equilíbrio natural, se não o pudermos ver de outra 
forma,  representa  a  concretização  das  ordenações  divinas  pelas  quais  todos  os  seres  vivos 
estão relacionados entre  si através da sua origem comum em Deus, e essas ordenações têm 
tanto  um  aspecto  gentil  como  um  rigoroso,  um  facto  que  o  sentimentalismo  moderno  se 
recusa  a  reconhecer.11  Do  ponto  de  vista  moderno  o  homem  ancestral  era  “supersticioso”, 
significando  que  os  seus  motivos  pareciam  muitas  vezes  outros  que  puramente  racionais. 
Nenhuma consideração é feita de que esses motivos poderiam ser de origem supra‐racional; 
de  que  a  agricultura  –  à  semelhança  de  outras  actividades  humanas,  sociais,  artísticas, 
militares  e  outras  –  podia  ser  considerada  sagrada.  Descrevemo‐la  frequentemente  como 
tendo  sido  tradicional.  As  palavras  “sagrado”  e  “tradicional”  são,  ou  deveriam  ser,  de 
significado  muito  semelhante;  hoje  ambas  se  tornaram  mais  ou  menos  assimiladas  no 
significado  da  palavra  “superstição”,  o  que  em  linguagem  correcta  é  aplicado  a  coisas  que 
perderam  a  sua  virtude  através  da  perda  da  ligação  com  a  sua  origem  divina.  As  práticas 
ancestrais não podem ser entendidas em termos puramente económicos; e quando nenhuns 
outros termos são considerados suficientemente sérios, estes não podem ser compreendidos 
de todo.12 

Os  nossos  antepassados  compreenderam  sem  dúvida,  conscientemente,  inconscientemente 


ou  semi‐conscientemente,  que  a  complexidade  e  as  subtilezas  nas  relações  entre  os  seres 
vivos  são  infindáveis,  e  que  estas  estão  para  além  do  poder  do  cérebro  humano  para  as 
resolver sozinho. Os nossos antepassados não foram demasiado inquisitivos sobre o seu meio 
envolvente,  tendo  sido  ensinados  pelas  suas  religiões  e  tradições  a  aceitar  a  sua  condição 

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Lord Northborne 
 

humana. A justificação de  todo este ensinamento é  que a experiência humana directa e não 


elaborada  providencia  o  que,  e  mesmo  mais  do  que,  a  maioria  das  pessoas  é  capaz  de 
compreender.  Uma  amplitude  inquisitória  demasiado  alargada  pode  distrair  a  atenção  de 
experiências  que,  embora  ridiculamente  simples  e  até  mesmo  lugares‐comuns,  são 
simbolicamente adequadas a providenciar o apoio para as necessidades espirituais.13 

A superfície de uma esfera em expansão distancia‐se do seu centro, o qual é o princípio da sua 
esfericidade; e, ao mesmo tempo, conforme a esfera se expande, as suas partes constituintes 
afastam‐se umas das outras. Esta é a imagem de todo o conhecimento superficial e periférico; 
ao tornarem‐se mais extensivas, as suas partes constituintes afastam‐se umas das outras e do 
seu princípio comum.14 Nesta analogia, a superfície da esfera representa o universo visível, o 
mundo de aparências com o qual a ciência moderna está preocupada, enquanto que a esfera 
completa, incluindo a superfície, representa a realidade como um todo, centrada na unidade. 
A superfície é indefinida na extensão; não tem fronteiras, e nenhuma parte sua é principal em 
relação  a  qualquer  outra.  Uma  busca  pela  verdade  confinada  à  superfície  não  pode  ter 
qualquer  finalidade.  A  sua  finalidade  é  procurada  na  superfície,  a  sua  procura  torna‐se 
inevitavelmente  mais  e  mais  extensiva  e  fragmentada.  A  multiplicidade  e  diversidade 
resultante  é  representada  como  um  enriquecimento,  mas  é  um  enriquecimento  falso  e 
ultimamente  danoso,  pois  é  mais  e  mais  quantitativo,  sem  contacto  com  o  seu  centro 
puramente qualitativo. 

A aparente necessidade de pesquisa experimental cresce rapidamente, uma vez que o campo 
de  observações  cresce.  Cada  experiência  pode  cobrir  deste  apenas  uma  fracção  cada  vez 
menor.  A  abordagem  da  ciência,  sendo  experimental,  é  a  aproximação  da  tentativa  e  erro, 
quer  isto  dizer,  é  puramente  empírica.  Se  as  boas  práticas  não  podem  ser  estabelecidas  em 
nenhuma outra fundação, na agricultura ou noutra coisa qualquer, segue‐se que a inquisição e 
a  inventividade  são  as  medidas  verdadeiras  de  inteligência.  Se  assim  for,  a  inteligência  dos 
nossos  antepassados  era  de  facto  inferior  à  nossa.  Devemos  então  inferir  uma  recente 
ocorrência  de  mudança  no  poder  do  cérebro  humano  tão  grande,  tão  rápida,  e  ocorrida  no 
mundo inteiro, que nenhuma teoria da evolução baseada num processo de adaptação gradual 
a  poderá  enquadrar.15  O  que  na  realidade  aconteceu  é  que  uma  mudança  de  perspectiva,  o 
que  pode  acontecer  sem  a  aquisição  de  novos  poderes,  trouxe  tantas  alterações  nas  nossas 
vidas que tem sido confundida com a aquisição de novos poderes. 

Escolhemos a direcção em que queremos ir, e chegámos a um ponto onde a única esperança 
para o futuro parece residir na extensão e aceleração da investigação, para que alterações na 
direcção  escolhida  possam  tomar  lugar  mais  e  mais  rapidamente.  Esta  aceleração  é 
extremamente  negativa  para  a  agricultura  e,  se  é  má  para  a  agricultura,  é  má  para  a 
humanidade. 

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A agricultura e o destino humano 
 

O solo, os animais e as plantas têm uma amplitude de adaptabilidade limitada e a adaptação é 
lenta  dentro  dessa  amplitude.  Quando  o  processo  de  forçar  a  produção  chegar  a  um  certo 
ponto, já terá chegado longe demais. Nessa altura será tarde demais. Ninguém pode dizer que 
ponto será esse porque antes de qualquer inovação ter uma oportunidade de uma prova justa 
e antes da criatura envolvida – com o homem incluído – ter tido a oportunidade de se adaptar 
a ela, já esta foi suplantada por outra. Não há qualquer oportunidade de antecipar ou medir os 
efeitos de longo prazo, simplesmente porque estes apenas podem ser medidos no final de um 
longo prazo; simplesmente não há tempo para aprender nem para ter em consideração algo 
que vá para além dos efeitos mais óbvios e imediatos. 

A  única  coisa  que  sabemos  sobre  essas  alterações  de  longo  prazo  é  quão  complexas  e 
imprevisíveis  são  e  que  são  muitas  vezes  irreversíveis,  como  por  exemplo  no  caso  da  erosão 
dos solos. Qualquer tentativa de prever a sua natureza é mera adivinhação. Tão profundos os 
perigos parecem ser, no solo a perda de textura e deficiências nos elementos característicos, 
nos animais e nas plantas os riscos de doenças e problemas genéticos e, na agricultura como 
um todo, as invasões de ervas daninhas e pestes. Até agora, a ciência tem sido mais ou menos 
capaz de acompanhar as tendências nestas direcções, à medida que estas vão surgindo, mas 
novos  problemas  surgem  cada  vez  mais  rapidamente.  Tudo  isto  enfatiza  a  dependência  da 
agricultura numa complicada e vulnerável organização industrial e científica sobre a qual tem 
pouco controlo. 

Talvez  este  seja  o  lugar  para  mencionar  o  recente  desenvolvimento  da  relativamente  nova 
ciência  genética,  a  qual  oferece  possibilidades  de  produção  artificial  do  que  seriam 
efectivamente  novas  espécies  de  plantas  e  animais.  Até  ao  momento,  a  maioria  do  seu 
trabalho tem sido confinado à indução de variações em espécies existentes ou híbridos, pela 
escolha  e  combinação  de  genes  existentes,  mas  a  produção  de  genes  artificiais  já  foi 
seriamente considerada. Quer algo desta natureza seja actualmente possível ou não, futuros 
desenvolvimentos  vão  com  certeza  ter  maiores  alcances  que  os  actuais.  Temos  boas  razões 
para saber quão potencialmente perigosas são as experiências na estrutura dos átomos para 
as  criaturas  vivas.  Que  dizer  então  de  experiências  na  constituição  genética  das  próprias 
criaturas? A produção não intencional de monstruosidades incontroláveis, embora possam não 
ser  maiores  do  que  viroses,  não  pode  ser  excluída.  Uma  potencial  descoberta  descrita 
jornalisticamente  como  “grande  descoberta”  é  largamente  de  ser  receada,  se  apenas 
encorajar a atribuição à humanidade de um novo poder “criativo”. Um perigo ainda maior  e 
sinistro  pode  ser  a  deterioração  qualitativa  nos  animais  e  nas  plantas  com  a  qual  estamos 
profundamente associados.16 E serão estas experiências sempre confinadas apenas a animais e 
plantas? Experiências na constituição humana não serão, provavelmente, deferidas por muito 
tempo. 

Olhando para a imagem da agricultura moderna como um todo, e mais particularmente para o 
factor  de  aceleração  que  a  domina,  é  difícil  de  ver  como  é  que  uma  crise  grave  poderá  ser 

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Lord Northborne 
 

evitada  ou  até  mesmo  adiada  por  muito  tempo.  É  impossível  prever  a  forma  que  poderá 
tomar, sobretudo porque a sua causa pode não ser interna à agricultura. Poderá, por exemplo, 
estar relacionada com a perda de independência e de auto‐suficiência. Poderá também estar 
relacionada  directa  ou  indirectamente  com  o  crescimento  da  população  humana.  Não  é  de 
todo difícil vislumbrar uma situação em que a procura por comida mais barata seja substituída 
por  procura  por  comida  a  qualquer  preço.  Haveria  então  ainda  pressão,  talvez  ainda  mais 
severa que a que existe agora, e seria certamente ainda mais quantitativa e menos qualitativa. 
A natureza de qualquer crise futura é impossível de antever; mas afectando a agricultura como 
um todo, irá afectar todos os homens na terra. Entretanto, na Bretanha, uma média de 50,000 
acres  de  terreno  arável  estão  a  ser  permanentemente  alienados  todos  os  anos  para  outros 
propósitos. 

Uma das formas que uma crise desta natureza poderá tomar é aquilo a que nos habituámos a 
chamar  “acto  de  Deus”;  por  exemplo,  pode  ser  precipitado  por  um  reajustamento  na  crosta 
terrestre.  Vale  a  pena  relembrar  que  nos  dias  em  que  desastres  imprevisíveis  eram 
especificamente  atribuídos  a  Deus,  era  igualmente  costume  agradecer‐Lhe  pelos  benefícios 
recebidos. As duas atitudes combinadas representam um reconhecimento, bom para a alma, 
da dependência de Deus. É bom para a alma porque nos deixa em contacto com a realidade. 
Nada  é  pior  para  a  alma,  porque  nada  é  mais  falso,  que  qualquer  assunção  da  sua 
independência  de  Deus,  em  matérias  grandes  ou  pequenas.  Se  no  passado  desastres  eram 
“actos de Deus”, são‐no ainda; se eles eram então “julgamentos”, são‐no ainda. Isto admitimo‐
lo involuntariamente quando usamos a palavra “crise”, cujo sentido literal é “julgamento”.17  

Tanto  a  alma  do  homem  como  a  crosta  da  terra  estão  sujeitos às  disposições  de  Deus  e aos 
Seus julgamentos. O mundo, incluindo os seus habitantes, é múltiplo, mas por virtude da sua 
origem na Unidade divina constitui uma unidade. O que afectar uma parte afecta o todo e o 
que afectar o todo afecta cada parte. Assim sendo, seria estranho se as alterações na crosta 
terrestre e na mentalidade humana fossem mutuamente independentes. Não é tanto o caso 
de  uma  mudança  numa  causar  uma  mudança  na  outra,  mas  mais  o  de  ambas  as  mudanças 
procederem  de  uma  causa  comum.  Todas  as  coisas  se  movem  em  conjunto,  em  direcção  ao 
cumprimento do plano do Grande Arquitecto do Universo; e estão inter‐relacionadas em todas 
as  fases  e  não  apenas  nas  suas  fases  conspícuas,  críticas  ou  explosivas.  Fases  preparatórias 
podem não ser reconhecidas como tal. Estas podem ser imperceptíveis no caso de alterações 
na crosta terrestre, enquanto podem ao mesmo tempo ser evidentes nos assuntos humanos, 
onde se podem encontrar “sinais dos tempos” para qualquer um que os consiga interpretar. 

A  conclusão  de  qualquer  fase  pode  ser  um  desastre  do  ponto  de  vista  humano, 
nomeadamente  quando  é  acompanhada  por  uma  convulsão  terrestre.  Esquecemo‐nos  que 
uma convulsão terrestre, embora seja uma morte do ponto de vista do que a precede, é um 
nascimento  do  ponto  de  vista  do  que  se  segue.  O  mundo,  ou  um  mundo,  renasce,  e  é 
renascido num novo solo mais fértil que as terras antigas, desgastadas. E se o cataclismo é um 

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A agricultura e o destino humano 
 

julgamento  divino  no  que  diz  respeito  à  humanidade  precedente,  também  pode  ser  uma 
inauguração divina de uma nova humanidade, restaurada ao seu estado paradisíaco, pois não 
mais se encontra distante de uma intervenção divina directa nem esquecida desta. E assim um 
novo  ciclo  começa  e,  algures  no  seu  curso,  uma  agricultura  de  qualquer  espécie  virá  a  ser 
necessária, tal como aconteceu com Adão. 

A  ciência  concorda  com  a  religião  no  que  concerne  à  ocorrência  dos  cataclismos  terrestres, 
mas  as  duas  diferem  profundamente  no  que  diz  respeito  às  suas  implicações.18  A  ciência 
apenas consegue ver uma saída para o homem, e esta através de um aumento hipotético da 
sua  inventividade,  onde  as  ainda  mais  hipotéticas  oportunidades  para  a  vida  humana,  no 
padrão terrestre proporcionado pelo universo estrelar, poderão ser abertas para descoberta e 
exploração. 

A  religião  oferece  uma  libertação  de  um  tipo  completamente  diferente.  É  uma  libertação  de 
todos  os  enlaçes,  físicos  ou  de  outro  tipo,  e  o  homem  pode  apenas  encontrá‐la  no  Centro 
imutável do  seu próprio ser, e de todo o ser, onde o Espírito habita eternamente e pela sua 
radiação, confere em tudo o que é periférico toda a excelência qualitativa que possa possuir. 

Se  parece  termos  por  vezes  vagueado  longe  da  agricultura,  é  porque  a  agricultura  não  pode 
ser considerada de forma isolada e ao mesmo tempo de forma realista. É a principal expressão 
na nossa relação com a Natureza, é muito mais do que, por exemplo, uma relação estética ou 
sentimental; está tecida na textura de toda a nossa existência e toca‐nos em todos os pontos. 

Do  ponto  de  vista  da  criatura  que  somos,  existe  Deus,  existe  a  Natureza  e  existe  também  o 
homem  cujo  corpo  e  mente  são  um  com  a  Natureza,  mas  feito  à  imagem  e  semelhança  de 
Deus.  Por  nomeação,  o  homem  é  assim  mediador  entre  Deus  e  a  Natureza.  O  homem  não 
pode  exercer  a  sua  função  mediadora  se  permitir  que  o  seu  olhar  se  afaste  do  Deus  que  o 
nomeou para a exercer e que está sempre presente para guiá‐lo se este procurar orientação. 
Se usar a dádiva divina que é o seu domínio da Natureza sem ser à luz de Deus, mas antes para 
seu  engrandecimento,  cedo  se  descobre  isolado  e  insignificante,  lutando  em  vão  contra  as 
forças da Natureza. No final, até os seus próprios poderes se terão virado contra si. 

A  Natureza  manifesta  na  mudança  as  imutáveis  disposições  do  Todo‐Poderoso  Deus.  A 
Natureza não tem escolha. Nós temos escolha, e temo‐la exercido de uma forma e até a um 
ponto  do  qual  parece  não  existir  fuga  aos  envolvimentos  que  recaíram  sobre  nós.  A 
industrialização da agricultura é um desses envolvimentos, e pode bem não ser o último deles. 

NOTAS 
1  –  Se  não  fosse  assim,  tanto  ele  próprio  como  o  mundo  perecível  das  formas  seriam  inteiramente  irreais,  uma 
mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de 
existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.  

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Lord Northborne 
 

2 – Uma explosão populacional não é necessariamente ou somente resultado de mais ou melhor comida, habitação, 
ou  atenção  médica;  por  exemplo,  nenhuma  destas  condições  estiveram  particularmente  presentes  no  início  da 
revolução industrial britânica. Elas podem sem dúvida ajudar a sua concretização assim que esta começa, mas não 
são a sua causa. 

3 – Curiosamente – ou talvez não tão curiosamente – os novos desejos são ao mesmo tempo os mais dispendiosos e 
os mais absurdos, por exemplo, televisão a cores, viagens cada vez mais rápidas e a colocação do homem na lua. 
Expansão  pela  expansão  é  a  máxima;  apenas  pode  ser  alcançada  mais  rapidamente  à  custa  de  terceiros;  quando 
todos  a  têm  como  objectivo,  por  toda  a  parte  se  exacerbam  rivalidades  entre  interesses  sectários,  nacionais  ou 
outros, e a preparação para a guerra, “fria” ou “quente”, torna‐se de longe a maior consumidora de recursos. 

4 – N.E.: Em 1870, entre 70% a 80% da população dos Estados Unidos trabalhava na agricultura; actualmente, essa 
percentagem  deverá  estar  situada  perto  dos  2%  a  3%.  Em  França,  apenas  cerca  de  3,5%  da  população  activa 
trabalha directamente com a agricultura. No Reino Unido, dados recentes indicam um rácio de 0,5%! 

5  –  Por  exemplo,  a  agricultura  bretã  de  hoje  é  absolutamente  dependente  de  maquinaria  e  das  suas  peças 
suplentes, combustíveis, lubrificantes, electricidade e outros requisitos, muitos dos quais de origem estrangeira. A 
agricultura intensiva com contornos modernos seria impossível sem drogas protectoras e curativas e suplementos 
para alimentos naturais; e enquanto a pressão da economia dos dias de hoje contínua, os padrões de produção das 
colheitas actuais não seriam alcançados sem fertilizantes químicos e controladores de ervas daninhas. Foi calculado 
que  para  manter  um  homem  a  tempo  inteiro  na  agricultura  na  Grã‐Bretanha  são  necessários  dois  homens 
empregados a tempo inteiro na indústria. 

6  –  Têm‐se  comprovado  em  experiências  que  os  materiais  utilizados  são  inofensivos  no  curto  prazo,  mas  temos 
direito a esperar que a nossa comida seja algo melhor que apenas inofensiva. 

7 – N.T.: “Rat‐race”. Tem sido descrito como “fazer aos outros antes que o façam a ti”. 

8 – Estudos de populações vivas podem contudo ser informativos. Ver, por exemplo, em The Wheel of Healht por 
Dr. G.T. Wrench (Nova Yoruqe: Schoken Books, 1972), um estudo da comunidade Hunza, população do noroeste da 
Índia,  e  em  Farmers  of  Forty  Centuries  por  F.  H.  King  (Emmaus,  PA:  Rodale  Press,  1973),  um  estudo  sobre  os 
camponeses chineses. 

9 – Se alguém se quer proteger da tendência contemporânea e influências que considere perniciosas e produzir a 
sua própria comida na sua própria terra à sua maneira, e com todo o direito de assim o fazer, não terá qualquer 
ajuda e muito pouca empatia de outrem. Este deve estar numa posição para enfrentar um isolamento económico 
que  na  prática  é  extremamente  difícil  de  concretizar.  É  ainda  mais  difícil  de  concretizar  isto  isoladamente  da 
influência da civilização moderna noutros domínios e, a não ser que este isolamento seja possível, o propósito do 
isolamento económico será apenas parcialmente concretizado.  

10 – Ver nota 8. Os textos referidos são igualmente informativos em relação à alimentação de populações densas a 
partir de pequenas áreas de terreno arável.  

 11  –  Quando  falamos  da  “lei  da  selva”,  estamos  apenas  a  olhar  para  o  aspecto  rigoroso  da  ordenação  divina.  É 
inegável  que  os  animais  selvagens  são  responsáveis  por  infortúnios  que  nos  parecem  cruéis  e  mesmo 
desnecessários,  mas  é  dúbio  se  estes  são  piores  do  que  os  de  responsabilidade  humana,  mais  particularmente 
porque  os  problemas  criados  pelo  homem  são  mais  variados,  subtis  e  persistentes.  É  evidente,  nas  observações 
mais ocasionais, que os animais selvagens parecem quase sempre estar vigorosos e bem nutridos, ou então mortos. 
O método da Natureza para eliminar doenças e lesões, e com estas o sofrimento que causam, pode parecer duro 
aos  nossos  olhos,  mas  são  inegavelmente  eficientes;  e  onde  a  apreensão  consciente  da  morte  é,  tanto  quanto 
podemos  observar,  ausente  ou  apenas  momentânea,  esta  não  poderia  ser  mais  misericordiosa,  dado  que  a  dor 
numa  forma  ou  noutra  é  inevitável  num  mundo  que  é  necessariamente  imperfeito.  Certamente  os  animais 
selvagens parecem mais felizes que nós. 

12 – Muitas das práticas ancestrais tornaram‐se de facto superstições no sentido próprio da palavra, e talvez por 
isso  não  pareçam  ser  eficazes  (um  exemplo  poderia  ser  a  regulação  do  semeio  e  plantação  seguindo  as  fases  da 
lua).  A  atitude  do  homem  ancestral  face  à  Natureza  foi  provavelmente  uma  de  aceitação  mais  ou  menos  não 
analítica, acompanhada por um sentido de reverência pela maravilhosa obra de Deus, uma reverência hoje em dia 
muitas vezes caricaturada como “adoração da natureza”.  

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A agricultura e o destino humano 
 

13  –  Uma  inquisição  excessiva  concentra  a  atenção  em  matérias  cuja  complexidade  externa  cria  a  ilusão  de 
compreensão, embora na realidade estas estejam apenas relacionadas com aparências e sejam por isso superficiais. 

14 – Poderemos interrogar‐nos, qual é a realidade por detrás das teorias da astronomia moderna de um universo 
em expansão? Até que ponto não reflectem elas as tendências puramente superficiais da mentalidade moderna? É 
perfeitamente possível que o universo físico nos pareça em expansão quando visto de um ponto de vista particular, 
necessariamente  limitado  mas  não  necessariamente  ilegítimo;  enquanto  que  de  um  ponto  de  vista  distinto,  não 
menos legítimo mas talvez menos limitado, poderia aparentar ser de outra forma. 

15 – Poderia apenas ser enquadrada segundo algo a que os biólogos chamam de mutação; mas seria uma mutação 
de  uma  magnitude  e  universalidade  de  tal  ordem  que  o  nosso  conhecimento  presente  não  conhece  nenhum 
paralelo. 

16 – A nossa associação com plantas e animais é de dependência mútua. A nossa dependência das plantas para a 
sobrevivência é total, a nossa dependência nos animais é menor embora seja real o suficiente; em ambos os casos, 
o aspecto quantitativo é mais evidente que o qualitativo, embora ignoremos o último a nosso risco. As plantas e os 
animais,  por  outro  lado,  excepto  as  espécies  cultivadas,  não  estão  fisicamente  dependentes  de  nós  da  mesma 
maneira;  poderiam  sobreviver  se  desaparecêssemos.  Do  ponto  de  vista  científico,  dizer  que  a  dependência  das 
plantas  e  dos  animais  no  homem  é  de  ordem  espiritual  nada  significa,  pois  a  ciência  não  está  equipada  para 
apreender  conhecimento  desta  ordem;  isto  é  contudo  verdade,  e  por  isso  deve  ser  afirmado.  A  função  da 
humanidade  é  essencialmente  espiritual  e  mediadora  e  é  exercida  em  nome  de  toda  a  criação.  Quando  é 
negligenciada, toda a criação sofre. Assim sendo, as plantas e os animais serão testemunhas contra esta geração de 
homens  no  dia  do  julgamento  final,  apesar  de  todas  as  nossas  sociedades  de  conservação  da  Natureza  e  de 
prevenção da crueldade.  

17 – Que o curso dos eventos nos dias de hoje seja feito de uma sucessão de “crises” cada vez mais frequentes é 
provavelmente mais significativo do que a maioria das pessoas parece pensar. 

18  –  A  cosmologia  hindu  toma  total  consideração  da  sucessão  de  ciclos  através  dos  quais  cada  “mundo”  e  cada 
humanidade passa, a caminho da sua final reintegração no Absoluto. O primeiro capítulo do Livro do Génesis e do 
Novo Testamento (em particular o capítulo vinte e quatro do Evangelho de São Mateus e do Livro de Revelação) 
aparentam  estar  preocupados  apenas  com  o  ciclo  que  a  presente  humanidade  está  envolvida;  contudo,  uma  vez 
que  cada  ciclo,  pequeno  ou  grande,  é  uma  manifestação  das  leis  universais,  todos  os  ciclos  são  basicamente 
análogos; a afirmação bíblica é, assim, de aplicação mais genérica do que à primeira vista possa aparentar. Noutras 
religiões,  o  ponto  de  vista  pode  ser  diferente,  mas  em  todos  os  casos  existe  uma  adaptação  de  uma  verdade 
completa a uma mentalidade particular das pessoas a quem a mensagem é dirigida. A mensagem é essencialmente 
sempre a mesma. 

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Lord Northborne 
 

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O protesto da terra 
por Gai Eaton 
Traduzido por Miguel Conceição 

Quando  a  terra  tremer  com  um  grandioso  tremor,  e  a  terra  ceder  aos  seus 
fardos,  e  o  homem  gritar  “O  que  a  aflige?”  –  Nesse  Dia  ela  contará  as  suas 
histórias,  pois  o  seu  Senhor  a  inspirou.  Nesse  Dia  a  humanidade  sairá  em 
grupos separados para lhe serem mostradas as suas acções. Quem quer que 
tenha feito o peso de um átomo de bem o verá nesse momento, e quem quer 
que tenha feito o peso de um átomo de mal o verá nesse momento. 
 
Alcorão 99:1‐8 
 

Como reforço às implicações desta curta sûra, o Profeta terá dito que, quando nascer o Último 
Dia, a própria terra testemunhará tudo o que o homem fez. Poder‐se‐ia dizer que deixamos as 
nossas impressões digitais em tudo o que tocamos, e que estas permanecem bem para lá do 
momento em que seguimos o nosso caminho. Esquecemos facilmente o passado, mas ele não 
desaparece nem pode ser eliminado, a não ser que Deus – sob o Seu Nome “O Eliminador” (al‐
‘Afû)  –  decida  eliminá‐lo  dos  nossos  registos.  Mas  como  pode  esta  terra,  sobre  a  qual 
caminhamos  tão  desrespeitosamente,  testemunhar  contra  nós?  A  resposta  corânica  diz  que 
Deus  a  inspirará  a  revelar  os  seus  segredos,  mas  perguntamos  ainda:  como  poderá  isto 
acontecer? Existem várias respostas possíveis para esta questão, mas irei sugerir apenas uma. 
Entre os nomes divinos revelados no Alcorão está al‐Hayy, o “Sempre‐Vivo”ou, simplesmente, 
“Vida”. Dado que o Criador dispensa os Seus atributos a tudo o que Ele cria, não existe nada na 
existência que não possua um tipo de vida, mesmo que não compreendamos em que medida 
tal  se  verifica.  Tal  como  todas  as  outras  distinções  rígidas  que  se  aplicam  a  este  mundo,  a 
distinção entre o animado e o inanimado é apenas provisória, de modo algum absoluta. 

Isto leva‐nos para o problema da terminologia e para a forma como o significado das palavras 
se altera. A palavra “psychic”1 passou a estar associada a adivinhos, a fantasmas e a coisas que 
fazem  barulho  durante  a  noite.  No  entanto,  quando  lhe  é  anexado  um  sufixo  e  se  torna 
“psicologia”, sabemos de imediato que não estamos a lidar com magia mas sim com a ciência 
da  alma,  tal  como  praticada  pelos  cientistas  que  nela  não  acreditam.  O  reino  da  psique,  o 
“reino subtil” como é por vezes apelidado, não está aberto à percepção dos sentidos, mas isto 
não significa que seja sobrenatural. É a face invisível do mundo natural. Para os muçulmanos, é 
também  o  reino  dos  jinn,  esses  seres  misteriosos  que  vivem  em  comunidades  e  que  são,  tal 
como nós, capazes da virtude e do vício. Toda a natureza tem uma face invisível, um aspecto 
“subtil” que quase sempre ignoramos, apesar de, por vezes, nos referirmos ao espírito de um 
local  sem  compreender  que  esse  “espírito”  é  tão  real  como  o  local  que  se  apresenta 
fisicamente.  É  neste  lado  escondido  do  mundo  natural  que  deixamos  a  nossa  impressão 
inerradicável. 

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Gai Eaton 
 

Não  existem  lugares  onde  nos  possamos  esconder.  Estamos,  como  nos  relembra  de  diversas 
formas o Alcorão, rodeados de uma hoste de testemunhas, desde Deus e os Seus anjos até à 
terra que pisamos. Não lhes conseguimos esconder os nossos segredos. Por vezes interrogo‐
me  se  será  por  essa  razão  que  os  árabes  tendem  tanto  para  o  secretismo.  Sabendo  que  são 
observados  de  todo  o  lado,  de  cima  e  de  baixo,  estimam  a  única  privacidade  que  lhes  resta 
colocando um véu discreto entre eles e o seu próximo, quer seja homem ou mulher. No outro 
extremo, os ocidentais actuais confessam tudo avidamente, não apenas aos seus amigos mas 
também  na  televisão  e  na  imprensa.  Crendo‐se  sós,  murados  e  inobservados,  eles  sentem  a 
necessidade de se auto‐exporem como forma de escapar ao isolamento. 

No  entanto,  o  rasto  que  deixamos  atrás  de  nós  na  terra  é  apenas  um  dos  lados  da  relação 
recíproca  que  temos  com  tudo  o  que  nos  rodeia.  Não  somos  estanques  mas  sim  como  que 
porosos.  Embebemos  elementos  de  tudo  quanto  vemos,  ouvimos  ou  tocamos,  os  quais 
absorvemos na nossa substância. Quando tratamos o mundo natural como um objecto a ser 
explorado e conquistado, danificamo‐nos também. Sem dúvida, os ambientalistas não deixam 
de ter razão quando predizem que o nosso abuso da terra terá consequências desastrosas para 
a  humanidade,  mas  essa  deveria  ser  a  menor  das  nossas  preocupações.  As  consequências 
ocorrem a vários níveis; quanto mais elevado o nível, mais mortais podem elas ser. O Alcorão 
ordena: “Não geres confusão na terra após este justo comando.” Quando diz  também que a 
terra e tudo o que nela existe é criado para nosso uso, isto não implica uma transferência de 
propriedade; é uma incumbência a nós delegada, e respondemos perante o “Senhor de todas 
as  coisas”  pelo  nosso  ministério.  O  muçulmano  é  constantemente  relembrado,  quer  no 
Alcorão, quer nos ditos preservados do Profeta, que a ganância e o desperdício estão entre os 
maiores pecados. Podemos usar aquilo que nos é disponibilizado para o nosso sustento, mas 
nada mais; e mesmo esse pouco não é mais do que um roubo se abandonámos a nossa função 
humana e decidimos renunciar à oração universal que conduz toda a criação de regresso à sua 
origem.  

O  muçulmano  é  assegurado  de  que  toda  a  terra  é  para  ele  uma  mesquita.  As  construções 
emparedadas  para  as  quais  é  chamado  para  a  oração  são  apenas  uma  conveniência.  Os 
campos,  as  florestas  e  o  deserto  são  igualmente  adequados  como  locais  de  oração  e,  assim, 
exigem o mesmo respeito que é prestado a uma mesquita convencional. A ligação com o céu 
pode ser estabelecida em toda e qualquer parte (“Para onde quer que te vires, aí está a Face 
de Deus”). Uma das principais características do Islão está expressa na palavra árabe adab, que 
significa  “bons  modos”,  “cortesia”  ou  “comportamento  correcto”,  e  que  anda  a  par  com  a 
dignidade que um muçulmano deve demonstrar em todas as circunstâncias. O Vice‐regente de 
Deus  na  terra  não  é,  com  efeito,  uma  figura  menor,  quer  vista  uma  túnica  ou  uns  trapos. 
Mostrar  bons  modos,  não  apenas  para  com  os  nossos  semelhantes  mas  também  para  com 
toda  a  criação  de  Deus,  faz  parte  da  fé,  pois  a  marca  da  Sua  mão  está  em  toda  a  parte.  O 
homem ou a mulher que se levanta, se dobra e se prostra na natureza é um membro de uma 

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O protesto da terra 
 

congregação  universal,  que  se  junta  numa  oração  universal.  Pois  diz  o  Alcorão,  “Tudo  o  que 
está nos céus e na terra glorifica Deus”. 

Este  é  um  tema  tão  recorrente  na  revelação  corânica  que  não  podemos  deixar  de  ficar 
espantados com o facto de tantos muçulmanos – com a excepção dos sufis – o ignorarem. 

Não viram que tudo o que está nos céus e na terra glorifica Deus, e os pássaros no seu 
voo? Na verdade, Ele conhece a adoração e o louvor de cada um, e Deus está ciente do 
que fazem. 

Para mais, Ele “rejeita não cunhar a similitude mesmo de uma melga”. Quão maior a similitude 
de um leão ou de um cisne, de uma montanha ou de uma árvore. “Vê! Na criação dos céus e 
da  terra,  e  na  diferença  entre  o  dia  e  a  noite  (…)  e  na  água  que  Deus  envia  do  céu, 
revivificando  a  terra  depois  da  sua  morte,  e  dispersando  todo  o  tipo  de  animais,  e  na 
ordenação dos ventos, e nas nuvens obedientes entre o céu e a terra: (nisto) estão sinais para 
os  homens  com  bom  senso”.  Tudo  o  que  Ele  criou  na  terra  “com  diferentes  cores”  nos 
transmite uma mensagem. Então: “Olhem para as marcas da misericórdia de Deus.” Elas estão 
em toda a parte. 

As  belezas  da  terra  –  os  seus  “ornamentos”  –  são,  diz‐nos  o  Alcorão,  uma  “nota  para  a 
humanidade”, uma nota para aqueles que estão dispostos a recordar a sua origem e o seu fim. 
Para  estes,  o  mundo  natural  cintila  com  luz,  mas  seria  escuro  se  não  fosse  apreendido  pelo 
homem  como  ser  central  da  criação,  isto  é,  como  ligação  entre  o  que  está  em  cima  e  o  que 
está  em  baixo.  Aqui  existe  de  novo  reciprocidade.  Este  mundo  não  é  uma  aglomeração 
ocasional de átomos materiais, desligados do nosso ser interior. Este mundo dá e recebe. Nós 
recebemos e damos. Existe intercâmbio e mutualidade; o mundo objectivo e a subjectividade 
humana  podem  ser  comparados  a  dois  círculos  que  se  interceptam  ao  invés  de  flutuarem, 
independentes  um  do  outro,  separados  e  divididos.  Este  facto  está  desde  logo  implícito  na 
palavra  “cosmos”  (em  oposição  a  universo,  um  termo  neutro  sem  quaisquer  implicações).  O 
cosmos  é,  por  definição,  um  todo  ordenado,  organizado  e  harmonioso,  onde  as  partes  são 
interdependentes.  Deste  modo,  adquire  um  significado  e,  tal  como  sugere  a  palavra 
“cosmética”, é belo.  

Mas apreender, mesmo que de uma forma vaga, os “sinais de Deus” à nossa volta – aqueles 
sinais  que  o  Alcorão  refere  repetidamente  –  exige  os  olhos  de  uma  criança  preservados  na 
maturidade. É dito que o Profeta rogou em oração: “Senhor, acresce‐me em espanto!” É assim 
que  uma  criança  vê  o  mundo,  puro  como  acabado  de  criar  pela  mão  de  Deus  e  repleto  de 
maravilhas. No entanto, com a passagem dos anos e das ansiedades que o tempo impõe, essa 
visão esmorece; por outro lado, nas palavras do Alcorão: “Não são os olhos que cegam, mas os 
corações nos peitos que cegam.” Imbuído de fé, o coração ainda pode recuperar a sua visão, a 
sua visão interior2. Depois da chamada para a oração, quando os muçulmanos se alinham em 

Sabedoria Perene 3  87 

 
Gai Eaton 
 

filas  apertadas  atrás  do  seu  Imam,  o  líder  da  oração,  eles  são  chamados  a  gastar  alguns 
instantes  na  renúncia  de  todas  os  cuidados  do  dia  e  de  todos  os  assuntos  urgentes  que 
prenderam a sua atenção, a virar a sua face para o Criador e a dirigirem‐se a Ele. Por vezes o 
Imam  oferece‐lhes  alguns  concelhos:  “Rezem  como  se  esta  fosse  a  vossa  última  oração!”  E 
assim será para os que estão destinados a morrer antes da próxima chamada para a oração, 
mas poder‐se‐ia igualmente dizer: “Rezem como se esta fosse a vossa primeira oração!”. Cada 
vez que nos voltamos para Deus é um novo começo, um renascer, e o mesmo deveria suceder 
quando olhamos, com os corações despertos, para o mundo que nos rodeia. 

Ao  agirmos  assim  devemo‐nos  lembrar  que  nada  é  o  que  parece,  ou  melhor,  que  nada  é 
apenas  aquilo  que  parece.  Tal  como  com  os  versos  do  Alcorão  (no  árabe,  usa‐se  a  mesma 
palavra  para  versos  e  para  “sinais”  na  natureza),  existe  um  significado  literal  e,  ao  mesmo 
tempo,  um  significado  mais  profundo.  Os  versos  são  sagrados,  tal  como  o  são  os  “sinais”.  É 
aqui  que  chegamos  a  um  dos  sintomas  mais  perigosos  da  alienação;  a  perda  do  sentido  do 
sagrado  no  mundo  moderno,  uma  perda  –  uma  privação  –  que  afecta  tanto  a  Umma 
muçulmana  como  o  ocidente.  O  Alcorão  condena  aqueles  que  separam  aquilo  que  Deus 
juntou, e a fragmentação que vemos hoje é um exemplo claro desta separação de conexões. O 
crítico  francês  da  nossa  civilização  tecnológica,  Jacques  Elull,  referiu  que,  no  passado,  a 
experiência  mais  profunda  do  sagrado  era  o  seu  contacto  imediato  com  o  mundo  natural.  É 
praticamente impossível compreender totalmente o que é a religião como tal – ou os grandes 
mitos  que  testemunhavam  a  unidade  do  cosmos  –  quando  a  natureza  se  tornou  remota  e 
inteiramente  “outra”.  Como  diz  Elull,  o  sentido  do  sagrado  decai  quando  deixa  de  ser 
rejuvenescido pela experiência. A percepção dos habitantes das cidades torna‐se seca devido à 
falta de suportes na sua nova experiência com o mundo artificial da tecnologia urbana. 

A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural é apenas um aspecto da 
perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O 
esquecem não mais podem sentir‐se em casa na criação. Eles assumem o papel de bactérias 
que acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice‐regente de Deus 
na  terra”  deixa  de  ser  o  curador  da  natureza  e,  ao  perder  a  sua  função,  passa  a  ser  um 
estranho  que  não  reconhece  os  marcos  na  terra  nem  se  ajusta  aos  costumes  deste  lugar; 
alienado, apenas o consegue ver como matéria‐prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas 
e conforto na exploração, mas não a felicidade. Ele nunca poderá cantar como o poeta persa 
Sa’di: 

Eu estou radiante com o cosmos, 
pois o cosmos recebe a sua alegria através Dele; 
eu amo o mundo, 
pois o mundo a Ele pertence. 

Sabedoria Perene 3  88 

 
O protesto da terra 
 

Somos, segundo o Alcorão, “os pobres” em relação a Deus, necessitados desde o instante do 
nascimento até ao fim das nossas vidas, e outro dos Seus Nomes corânicos é al‐Kāfī, “Aquele 
que  satisfaz  todas  as  necessidades”.  A  Causa  desta  fome,  inerente  à  nossa  substância  como 
seres humanos, é a necessidade Dele, por mais que esteja encoberta ou desviada pelas paixões 
terrenas.  Uma  vez  que  Ele  é  o  único  e  o  derradeiro  detentor  da  capacidade  de  satisfazer  o 
desejo,  o  facto  de  Lhe  voltarmos  as  costas  implica  estarmos  em  perpétua  insatisfação  e,  em 
busca  do  alívio  dos  nossos  apetites,  exceder  todos  os  limites.  Até  ao  desenvolvimento  da 
tecnologia este facto penalizava apenas o transgressor e pouco mal fazia à terra. Actualmente, 
o nosso alcance foi inexoravelmente aumentado e tornámo‐nos os grandes destruidores. Um 
dos infernos budistas é habitado por enormes criaturas que outrora foram homens e mulheres 
devastados pela ganância, mas que agora possuem bocas do tamanho de cabeças de alfinete. 
Rodeados  por  um  festim  de  comida,  não  conseguem  comer  mais  do  que  o  mais  ínfimo  dos 
caranguejos. 

Hoje, quer sejamos muçulmanos ou cristãos, parece que perdemos a chave da linguagem dos 
“sinais”,  a  linguagem  de  Deus.  Ela  tornou‐se  incompreensível  e  irrelevante.  Isto  é 
particularmente  perigoso  para  os  muçulmanos,  para  quem  o  Alcorão  se  tornará  um  livro 
fechado caso as constantes referências ao mundo natural como um tecido de “sinais” deixem 
de coincidir com as suas experiências ou de tocar os seus corações. Esse mundo, quando visto 
da  janela  de  um  veículo  motorizado  ou  de  uma  altura  de  9000  metros,  nada  tem  para  nos 
dizer, mesmo que seja uma bela imagem. Adicionalmente, uma vez que nos dias de hoje tudo 
tem  que  ser  “esmiuçado”,  é  típico  da  mente  moderna  interrogar‐se:  O  que  significam 
exactamente esses “sinais”? Se eles pudessem ser expressos por palavras seriam redundantes. 
Eles tocam‐nos a um nível mais profundo do que o discurso articulado, tal como acontece com 
o Alcorão que, quando recitado para aqueles que desconhecem a língua árabe, ainda comove 
os  seus  corações  mesmo  que  dele  nada  compreendam  em  termos  de  linguagem  humana. 
Então  Deus  tem  à  sua  disposição  duas  linguagens,  uma  composta  por  palavras  e  outra  por 
“sinais”, apesar de também poder ser dito que, na prática, Ele tem três meios de comunicação, 
sendo  este  terceiro  os  nossos  destinos  pessoais.  Também  estes  contêm  mensagens  caso 
estejamos  preparados  para  as  compreender,  e  mesmo  o  mais  árido  dos  cépticos,  quando 
devastado  por  um  terrível  infortúnio,  pergunta:  “Porquê?  Porquê  eu?”  Seria  expectável  que 
ele pensasse que a vida não teria qualquer significado mas, no entanto, ele acredita ou sabe no 
seu coração aquilo que a sua mente nega. 

Falar do mundo natural é falar de beleza. Uma vez que “Deus é belo”, a beleza deve de alguma 
forma estar universalmente presente, uma vez que Ele está presente em toda a parte. O dito 
popular que afirma que “a beleza está no olho de quem vê” é uma daquelas meias verdades 
que  tanto  pode  iluminar  como  enganar,  dependendo  do  nosso  ponto  de  vista.  Um 
determinado  indivíduo  ou  uma  determinada  cultura  encontrará  o  sagrado  em  lugares  onde 
outros não o poderão ver, enquanto estes outros o encontraram noutras partes. O mesmo se 
aplica  à  percepção  da  beleza.  Isto  não  a  torna  menos  real  ou  menos  objectiva.  Mas  o  dito 

Sabedoria Perene 3  89 

 
Gai Eaton 
 

profético  “Deus  é  belo,  Ele  ama  a  beleza”  é  uma  afirmação  relacionada  com  a  natureza  da 
Realidade e indica algo de muito importante. Tal como o bem e o mal estão a diferentes níveis 
–  o  primeiro  mais  perto  do  Real  que  o  último  –  a  beleza  e  a  fealdade  pertencem  a  ordens 
diferentes. A fealdade não tem par, como o frio e o calor, o branco e o preto. Ela representa o 
estragar da beleza, o desfazer daquilo que tinha sido bem feito. Ela pode ser comparada a uma 
nódoa num tecido, e pertence à classe de coisas que, diz‐nos o Alcorão, duram por um curto 
espaço  de  tempo  e  depois  se  extinguem.  É  esta  a  razão  pela  qual  um  muçulmano,  quando 
encontra  algo  feio  ou  impróprio,  tende  a  desviar  o  olhar,  não  porque  deseje  negar  a  sua 
existência mas sim porque nem tudo o que existe merece atenção. Existe na tradição islâmica 
uma  história  de  Jesus  que  toca  neste  ponto.  Ele  caminhava  com  os  seus  discípulos  quando 
passaram por um cadáver de um cão. “Como fede!” – disseram os seus companheiros. Jesus 
respondeu: “Como são brancos os seus dentes! 

O que é a beleza da natureza senão um acto de adoração, na medida em que reflecte a Beleza 
divina? “Não vêem”, pergunta o Alcorão, “que tudo o que existe nos céus e tudo o que existe 
na terra presta adoração a Deus, como o sol e a lua e as estrelas, as montanhas e as árvores e 
os animais…?” Existe uma história turca de um guia espiritual que enviou os seus discípulos a 
apanhar flores para a casa. Todos, à excepção de um, regressaram com ramos das mais belas 
flores que encontraram. Esse, no entanto, tardou muito a chegar, e quando regressou trazia na 
sua mão apenas uma flor já muito esmorecida. “Quando parti para apanhar flores” – disse – 
“todas elas cantavam os louvores do seu Criador e não me atrevi a interrompê‐las. Finalmente, 
vi uma que tinha acabado a sua canção, e foi essa precisamente que lhe trouxe.” Seria um erro 
olhar  para  esta  pequena  história  como  mera  divagação  poética.  O  sangue  que  percorre  os 
nossos  corpos  pode  ser  fecundo  para  mitos  e  poesias,  mas  mantém‐se  o  facto  de  ter  uma 
importante função prática. Quando o Alcorão se refere a esta adoração perpétua e universal 
está  a  dizer‐nos,  nem  mais  nem  menos,  o  que  acontece,  a  realidade  factual  da  situação.  A 
nossa percepção subjectiva – ou incapacidade para tal – não altera os factos. 

Se não existe nada na existência que é apenas e exclusivamente aquilo que parece ser, então 
tudo tem a sua importância particular. Posso imaginar alguém dizer: “Isto é demais! Direitos 
da mulher, direitos dos animais, até direitos das plantas, e agora falam‐me também de direitos 
das pedras! Onde acabará?” Não tem fim. Essa é a única resposta possível. Não fomos nós que 
criámos o mundo, ele não é nosso. Não podemos, relembra‐nos o Alcorão, sequer criar uma 
mosca. Este vasto livro de imagens, repleto de “sinais” de Deus, é aquilo que é. As aparências, 
como  nos  é  dito  vezes  sem  conta,  são  enganadoras  e,  se  flutuamos  apenas  à  superfície  do 
nosso mundo, estaremos bem equivocados. Existe sempre algo mais, e mais e ainda mais, até 
mergulharmos nas profundezas e descobrirmos – por detrás dos “setenta mil véus de luz e de 
trevas”  –  a  Face  de  Deus.  A  era  moderna  é  frequentemente  condenada  pelo  seu 
“materialismo.”  Talvez  não  seja suficientemente  materialista,  isto  é,  ela  já  não  procura,  para 
além da superfície inconstante dos objectos materiais – essas nuvens em constante geração e 
regeneração – aquilo que eles velam e revelam. 

Sabedoria Perene 3  90 

 
O protesto da terra 
 

Outros dois nomes pelos quais Deus Se definiu a Ele mesmo no Alcorão são al‐Muhīt, “Aquele 
que tudo abraça” ou “Aquele que tudo envolve”, e az‐Zāhir, que significa “o Exterior”. Assim, 
em  última  análise  e  por  trás  de  todas  as  aparências,  Ele  é  o  nosso  “ambiente”  e  não  existe 
outro.  Mas  esta  é  uma  afirmação  intelectual  que  pode  parecer  privar  as  coisas  que  vemos  e 
tocamos da sua devida medida de realidade. Enquanto estamos nesta vida, situados por entre 
os  “véus”,  elas  são  a  única  realidade  que  conhecemos,  mas  que  reflectem  à  sua  maneira  as 
realidades  superiores  que  se  mantém  escondidas,  demasiado  luminosas  para  a  nossa 
percepção.  A  nossa  principal  preocupação  deveria  ser  o  seu  significado,  não  a  sua  estrutura 
material. O mecanismo de um relógio pode ter interesse prático, mas o seu propósito é marcar 
o tempo. 

Os  próprios  sons  da  natureza  podem  ser  adicionados  a  este  universo  de  significados,  esta 
abundância de comunicação entre o Criador e a criação. Lembro‐me de um certo Sheikh que 
estava  prestes  a  dar  o  seu  sermão  quando  subitamente  se  ouviram  trovões,  os  quais  se 
mantiveram durante um longo período. Ele manteve‐se sempre silencioso, mesmo depois dos 
céus terminarem o seu discurso. O que poderia ele ter acrescentado? Mas devemos ser muito 
pacientes  e  atentos  para  captar,  pela  audição  e  pela  visão,  essa  nota  de  louvor  universal. 
Quando um muçulmano está em oração nas primeiras horas do dia ou no acto de lembrança 
de  Deus,  o  cantar  de  um  pássaro,  o  bater  das  ondas  do  mar  ou  o  cair  da  chuva  não  o 
perturbam, contribuem sim, pelo contrário, para a sua lembrança. Mas o barulho de carros ou 
de máquinas introduz na harmonia da sua adoração uma discórdia com a qual é obrigado a se 
gladiar.  

A  oração  e  a  contemplação,  suportadas  por  uma  ambiência  cósmica  que,  de  certa  forma, 
anseia ser vista, ouvida e compreendida, são centrais para a vida religiosa. Mas existe ainda a 
participação,  sem  a  qual  nos  mantemos  distantes  do  mundo  natural.  Existem  crianças  na 
Europa e na América que não estão cientes do facto de que as embalagens nas prateleiras dos 
talhos dos supermercados são a carne de criaturas existentes, e que os vegetais, dos quais são 
lavados todos os vestígios de terra, cresceram em vastos campos e que levaram o seu tempo a 
crescer. A paciência do agricultor é inimaginável para uma geração cada vez menos paciente. 
As  suas  necessidades  são  satisfeitas  em  relação  aos  ponteiros  de  um  relógio,  e  não  pelas 
estações ou pela disciplina imposta pelo clima. Elas estão “desligadas”3; e esta expressão tem 
um significado profundo. Representa distanciamento, separação e – uma vez mais – alienação. 
As  estrelas  são  encobertas  pelas  luzes  das  cidades,  a  sua  luminosidade  é  oculta  e  a  sua 
mensagem ofuscada. Aqui não é apenas a contemplação mas também a participação que foi 
perdida.  “Foi  Ele”,  diz  o  Alcorão,  “que  vos  estabeleceu  as  estrelas  para  que  se  pudessem 
orientar  no  meio  da  escuridão  da  terra  e  do  mar”.  Já  não  precisamos  delas.  Elas  podem  ser 
deixadas aos especialistas que falam em anos‐luz e que nada têm para nos oferecer que nos 
possa ajudar no caminho por entre a escuridão que penetrou nos nossos corações e nas nossas 
mentes. 

Sabedoria Perene 3  91 

 
Gai Eaton 
 

Isto,  claro  está,  é  “progresso”,  e  é  certamente  conveniente,  apesar  de  uma  das  ironias  da 
situação ser o facto dos nossos contemporâneos no ocidente, libertos do trabalho que lhes era 
requerido no seu encontro com o mundo natural e da sua dependência dele, terem agora de 
trabalhar mais do que nunca como “mais um” na máquina industrial ou burocrática, de forma 
a  poder  suportar  o  estilo  de  vida  a  que  se  julga  ter  “direito”.  Este  trabalho  não  oferece 
qualquer alimento espiritual. Não se espera que o faça. Não promove contacto com qualquer 
nível de realidade e nenhuma participação com os “sinais” que indicam o caminho e que nos 
recordam  quem  somos.  Seria  necessário  um  esforço  quase  sobre‐humano  para  nos 
relembrarmos  que  somos  os  “Vice‐regentes”  de  Deus,  responsáveis  pela  nossa  província  tal 
como o agricultor é responsável pela sua colheita e o seu gado. Nós mantemos a roda a girar, 
mas ela gira sem qualquer outro propósito que não seja manter o comboio de alta velocidade 
em linhas que nos levam para lugar nenhum. Eventualmente atingirá as protecções, os limites 
invisíveis que demarcam a nossa existência terrena. 

O  muçulmano  procura  viver  dentro  dos  limites  da  Sharī’ah,  a  estrada  ou  o  trilho  que  o  leva 
com segurança à nascente e, assim, para além de todos os limites, ao Paraíso e à satisfação de 
todas as necessidades. Por sermos humanos, somos livres para vaguear fora dessa estrada. A 
restante criação não dispõe desta liberdade. Segundo a perspectiva islâmica, os animais e as 
plantas,  as  montanhas  e  os  oceanos,  têm  cada  um  a  sua  própria  Sharī’ah.  Eles  estão 
inextrincavelmente  ligados  à  função  que  lhes  foi  decretada.  Eles  não  podem  ser  diferentes 
daquilo que devem ser e aqui reside uma lição para a humanidade. O nosso ambiente obedece 
a  Deus  e  encoraja‐nos  a  agir  de  igual  modo.  As  rochas  e  os  rios  estão  sujeitos  às  “leis  da 
natureza”,  os  animais  seguem  os  seus  “instintos”;  esta  não  é  mais  do  que  uma  forma  de 
descrever o Decreto divino que governa a sua existência. Eles não podem pecar, não podem 
ultrapassar  limites,  e  este  facto  expõe  claramente  o  absurdo  patente  na  afirmação 
frequentemente  endereçada  por  juízes    instruídos  a  criminosos:  “não  passa  de  um  animal!” 
Como criaturas humanas, podemos ser melhores ou piores do que os animais; no entanto, não 
podemos existir ao seu nível uma vez que não estamos sujeitos às leis que dirigem e limitam as 
suas vidas. “Não existe um animal na terra”, diz o Alcorão, “nem um pássaro que voa com duas 
asas, que não sejam comunidades como vós” (ou “à vossa semelhança”); e o verso termina: “e 
para  junto  do  seu  Senhor  eles  serão  reunidos”.  Não  nos  é  permitido  juntar  a  uma  ou  outra 
dessas  comunidades,  mas  podemos,  caso  nos  afastemos  da  Sharī’ah  que  nos  foi  atribuída, 
tornar‐nos não apenas sub‐humanos mas também “sub‐animais”. Existe uma grande confusão 
na  mente  ocidental  no  que  respeita  à  espécie  animal.  É  difícil  que  passe  um  dia  sem  que  se 
oiça  alguém  afirmar:  “apesar  de  tudo,  somos  apenas  animais.”  Isto  não  se  trata  de  uma 
opinião mas sim de uma afirmação ideológica relativa à origem e ao estatuto do ser humano. 
Ela proclama uma aderência inquestionável à teoria darwinista e soa muitas vezes a um slogan 
político. O facto mais curioso é que as implicações desta teoria são ignoradas. Pelo menos por 
enquanto – embora as coisas possam mudar – os homens e as mulheres são tratados de forma 
bem  diferente  dos  animais.  Não  nos  ocorre  levar  um  porco  a  tribunal,  como  por  vezes 
acontecia na Idade Média, e acusá‐lo de um crime. O dono de um animal é acusado por não 

Sabedoria Perene 3  92 

 
O protesto da terra 
 

ter  “abatido”  o  mesmo  se  mortalmente  doente;  a  mesma  pessoa  será  acusada  de  homicídio 
caso o faça a um paciente terminal. A maior parte das pessoas crêem que não somos mais nem 
menos  do  que  primatas  inteligentes  (ou  assim  lhes  é  dito),  mas  ficam  horrorizadas  quando 
seres humanos são tratados como se fossem macacos. 

Da  mesma  forma,  creio  que  existe  também  confusão,  apesar  de  outro  tipo,  na  mente 
muçulmana.  Não  existe  nenhuma  outra  religião  que  saliente  tanto  o  cuidado  no  tratamento 
dos  animais  como  o  Islão,  no  entanto,  os  muçulmanos  têm  uma  péssima  reputação  neste 
aspecto (tal como tinham os cristãos até bem recentemente). Se representarmos uma religião 
–  uma  qualquer  religião  tradicional  –  por  um  círculo  ou  uma  esfera,  é  provável  que  os  seus 
aderentes  absorvam  e  pratiquem  apenas  um  segmento  da  sua  totalidade.  Eles  irão  também 
enfatizar este segmento, como que para preencher o espaço vazio, e ficar cegos para tudo o 
que  ignoraram.  Poderíamos  dizer  que  a  sua  religião  é  demasiado  grande  para  eles.  Não  é 
possível colocar um oceano num copo. O facto de diferentes pessoas da mesma Fé escolherem 
diferentes  segmentos  para  dedicaram  a  sua  atenção  exclusiva  é  uma  das  razões  para  os 
conflitos no seio da religião, tal como se verifica na Umma islâmica. 

Uma vida correcta para um muçulmano é vivida em imitação do exemplo do Profeta, a qual é 
seguido  o  mais  fielmente  possível  em  função  do  que  as  circunstâncias  permitirem.  É  neste 
exemplo, nos actos e nos ditos do Mensageiro de Deus, que encontramos o maior número de 
referências  ao  bem‐estar  dos  animais.  Se  forem  levadas  seriamente  –  e  como  poderão  os 
muçulmanos fazer o contrário? – elas têm graves implicações para aqueles que descuidam o 
cuidado com os seus animais. Não só existem as famosas histórias da mulher que foi enviada 
para o inferno por ter deixado um gato fechado até morrer à fome, ou da prostituta a quem 
lhe foram perdoados os pecados por ter dado água a um cão que estava a morrer de sede, mas 
também um pequeno número de incidentes relatados onde é enfatizado o mesmo princípio. 
Quando o Profeta viu um burro que havia sido ferido na face, gritou: “Deus, amaldiçoa aquele 
que  o  feriu”.  Um  homem  que  estava  prestes  a  matar  uma  cabra  para  seu  sustento  foi 
severamente repreendido por permitir que o animal o visse a afiar a faca. Um antigo profeta 
foi mesmo repreendido por Deus por ter incendiado um formigueiro em resultado de ter sido 
picado  por  uma  formiga  –  “Destruíste  uma  comunidade  que  Me  glorificava”  –  e,  de  acordo 
com  outro  dito,  existe  uma  recompensa  no  paraíso  para  todo  aquele  que  mostra  gentileza 
para  com  uma  criatura  que  possui  um  “coração  que  bate”.  Os  livros  da  lei  dizem‐nos  como 
actuar caso encontremos uma cobra venenosa no nosso jardim. Ela deve ser convidada a sair. 
Se regressar uma segunda vez deve ser de novo avisada, mas se voltar uma terceira vez pode 
ser morta. 

O Alcorão diz‐nos: “O vosso Senhor inspirou a abelha e disse‐lhe: escolhe locais nos montes e 
nas  árvores  e  no  que  está  construído;  depois,  come  todo  o  tipo  de  frutos  e  segue 
humildemente  os  modos  que  o  teu  Senhor  tornou  suaves”;  por  outras  palavras,  segue  a  tua 
Sharī’ah,  pois  esse  é  o  teu  caminho  e  o  teu  destino.  Isto  sublinha  de  novo  a  perspectiva 

Sabedoria Perene 3  93 

 
Gai Eaton 
 

islâmica  de  que  cada  uma  das  diversas  “comunidades”  não‐humanas  tem  uma  relação 
particular  com  o  seu  Senhor,  mas  o  Senhor  é  um;  tanto  o  nosso  como  o  delas.  As  relações 
diferem e portanto também diferem os caminhos, mas o objectivo é o mesmo. É a interacção 
harmoniosa  de  todos  os  componentes  do  cosmos,  animados  e  inanimados,  que  reflecte  de 
inúmeras formas diferentes a unidade do Real. A morte de um animal por outra razão que não 
para  alimento,  e  mesmo  neste  caso  apenas  o  mínimo  permitido,  e  mesmo  o  corte 
desnecessário  de  uma  árvore  ou  o  arrancar  de  uma  planta  é,  digamos  assim,  contra  natura. 
Excede,  por  motivos  de  ganância,  os  limites  estabelecidos  para  a  humanidade.  Não  há  aqui 
forma de desculpar os luxos da civilização moderna. 

Não fosse pela Misericórdia divina, espalhada como chuva por toda a criação, e a prontidão de 
Deus em desculpar todos os pecados se seguidos de um sincero arrependimento, e estaríamos 
num  mau  caminho;  mas  o  que  mais  importa  é  ter  estes  princípios  sempre  em  mente,  e  isso 
apenas é  possível se observarmos aquilo que  poderíamos designar por Principal Directiva  do 
Islão:  a  constante  “lembrança  de  Deus”.  Tudo  o  que  precisamos  saber  e  tudo  o  que  nos  é 
pedido  está  incluído  nesta  lembrança;  é  o  escudo  contra  a  tentação  e  o  estímulo  para  nos 
mantermos no “caminho recto” que nos foi tornado suave. Ao escolher segui‐lo, estamos a par 
com  os  animais,  as  plantas  e  a  própria  terra  que,  aí  e  apenas  aí,  não  terá  motivo  para 
protestar. 

NOTAS 
1 – N.T.: Mantivemos a palavra original inglesa para ajudar a compreensão do texto. No entanto, a palavra toma 
aqui o significado de vidente ou médium.  

2 – N.T.: O autor joga aqui com as palavras inglesas sight e insight. Segundo a Tradição, o coração é o local onde 
reside  o  Intelecto  (nous)  e,  por  conseguinte,  esta  “visão  interior”,  o  “olho  do  coração”,  não  é  mais  do  que  o 
conhecimento intuitivo conferido pelo despertar do Intelecto. 

3 – N.T.: Da expressão inglesa “out of touch”. 

Sabedoria Perene 3  94 

 
 

A nossa mãe terra 
por Oren Lyons 
Traduzido por Diana Morais 

Há  mil  anos  atrás,  um  homem  chegou  do  oeste.  E  ele  chegou  através  da  água,  e  ele  trouxe 
uma  grande  mensagem  de  paz.  Ele  chegou  através  da  água,  o  grande  lago  que  vocês  agora 
chamam de Ontário; ele parou nas margens e visitou as várias nações que estavam em guerra 
e que se tinham esquecido de como viver juntos. Ele chegou com uma grande mensagem de 
paz; e ele reuniu os líderes mais fortes e mais temidos no Grande Conselho. E demorou muitos 
anos;  mas  com  a  ajuda  de  Hiawentah,  a  quem  vocês  chamam  Hiawatha,  juntos  criaram  a 
Houdenosaunee,  a  grande  liga  da  paz  –  há  mil  anos  atrás.  E,  naquela  altura,  foram 
estabelecidos  os  princípios  de  como  nos  conduzirmos  a  nós  mesmos,  de  como  instruir  os 
chefes, de como instruir as mães do clã; e em como estabelecer os homens em conselho, para 
que  eles  pudessem  primeiramente  celebrar  as  cerimónias,  como  ser  espiritual  ou  centro  da 
nação.  As  cerimónias  eram  a  primeira  obrigação  dos  chefes,  e  dos  defensores  da  fé,  e  das 
mães do clã. E só depois se sentariam em conselho para o bem‐estar do povo. 

Esta  mensagem  foi‐nos  dada  pelo  Criador  há  mil  anos  atrás;  um  governo  foi‐nos  dado  pelo 
Criador.  Este  governo  não  foi  fabricado  pelas  mentes  dos  homens,  foi‐nos  dado;  e  nós 
devíamos acalentá‐lo. E cada geração devia instruir os seus chefes e olhar pelo bem‐estar das 
sete gerações vindouras. Devíamos compreender os princípios de como viver juntos; devíamos 
proteger a vida que nos rodeia; e devíamos dar o que tínhamos aos idosos e às crianças.  Os 
homens deviam providenciar; as mulheres deviam cuidar da família e ser o centro, o coração, 
da casa. E a nossa nação foi fundada na família espiritual, e foram‐nos dados clãs: o tartaruga, 
o águia, o veado, o castor, o lobo, o urso, o narceja, o falcão – símbolos de liberdade. Foi‐nos 
dado a perceber como vivem as pessoas livres. E foi‐nos dito para proteger a liberdade de cada 
indivíduo; e foi‐nos dito que a soberania começou com o indivíduo, e isso protege‐se. E assim 
uma nação permaneceu livre, e prevaleceu uma grande paz. 

Muitos anos mais tarde, nas nossas costas viradas para o Leste, desembarcou o nosso irmão 
branco. E ele trouxe coisas com as quais não conseguíamos lidar. Num tempo longínquo foi‐
nos dito que o nome Ga‐nyadi‐yo, a quem vocês chamam Lago Elegante1, seria importante; e 
assim  aconteceu,  no  ano  1800  foi‐nos  dada  a  terceira  e  última  mensagem  sobre  como  lidar 
com  as  coisas  que  foram  trazidas  através  da  água  –  quando  os  nossos  homens  se 
embriagaram; quando o fogo das nossas casas se apagou; quando os cães caminharam pelas 
cinzas; e as crianças e as mulheres se esconderam nos bosques por causa do que o whisky e o 
licor fez aos nossos homens. E naquela altura foi‐nos dada uma mensagem; e esta mensagem 
falou‐nos  sobre  Ga‐nyadi‐yo;  e  outra  vez  o  Criador  teve  piedade  de  nós,  Ele  sentiu  pena  de 
nós, e Ele deu‐nos a terceira mensagem sobre como lidar com o whisky e com o jogo, de como 
lidar com a Bíblia e com os missionários. Naquela altura, foi‐nos dito o que aconteceria a esta 

Sabedoria Perene 3  95 

 
Oren Lyons 
 

terra.  E  enquanto  Ga‐nyadi‐yo  caminhava  com  os  Quatro  Seres,  os  Quatro  Protectores,  que 
foram enviados pelo Criador para cuidar da humanidade, estes apontavam para aqui e para ali, 
“O  que  vês?”  “Eu  vejo  uma  mulher  tão  gorda  que  não  se  consegue  erguer  e  que  contudo 
continua a atulhar a sua boca, continua a comer como um glutão.” E eles nunca disseram se 
isto estava certo ou errado; eles perguntaram‐lhe o que tinha visto. E assim partiram, e foi‐lhe 
dada a oportunidade de ver, e para que se contasse que um dia a água não seria própria para 
beber, que na realidade a água queimaria, que as árvores começariam a morrer de cima para 
baixo,  que  a  mais  importante  de  todas  as  árvores,  o  Bordo,  assinalaria  o  momento  da 
deterioração  da  vida,  o  momento  em  que  o  final  estaria  perto.  Ele  disse‐nos,  e  explicou  os 
vários eventos que iriam ocorrer: a doença das crianças e dos idosos, e o que o dinheiro faria – 
a maior de todas as doenças. 

Agora defrontamos estas coisas, como líderes do nosso povo, como pessoas a quem foi dada 
uma grande responsabilidade; nós, nesta geração, temos de lidar com todos estes elementos. 

Quando  o  Criador  deu  a  Sua  Grande  Lei  e  plantou  a  grande  árvore  da  paz,  desenraizou‐a  e 
lançou para de baixo dela todas as armas de guerra. Ele disse: Agora, sois uma nação de paz; e 
dar‐vos‐ei  oyankgwa‐oohway,  o  tabaco  sagrado;  e  essa  será  a  vossa  força.  Será  disso  que 
dependerão,  do  poder  espiritual  da  oração,  de  uma  crença:  a  crença  do  vosso  povo.  E  se 
tiverem uma mente, e se considerarem isto outra vez, é este o poder que possuem. E assim 
sucede que, quando se queima o tabaco e se usa o milho sagrado, todos os animais param e 
ouvem; eles viram‐se e ouvem estas palavras. 

Os nossos irmãos, os ursos e os lobos e as águias, são Índios. Eles são Nativos, tal como nós. 
Em tempos falámos a sua língua; em tempos, há muito tempo atrás, nós conversámos. Os das 
duas‐pernas  decaíram  da  graça.  Aqueles  animais  e  aqueles  alados  viviam  num  estado  de 
absoluta graça; eles não conseguem errar. Só a nós nos foi dada uma escolha, tão claramente 
apontada  pelos  Quatro  Seres:  é  assim  que  é,  disseram  eles,  e  o  que  vês  aqui?  Eles  não  lhe 
disseram: Faz isto ou aquilo; eles disseram, é assim que é: o que fizeres cabe‐te a ti. E isto foi o 
que o Criador nos deu, a escolha: uma grande dádiva, a mentalidade que nós temos. E entre 
nós há ainda pessoas com outras dádivas – uma dádiva de arte, ou uma dádiva de discurso, ou 
a dádiva de um sorriso capaz de fazer todas as pessoas rir. Qualquer que seja, cada um de nós 
nasceu  com  uma  missão.  Nós  nascemos  com  uma  missão,  e  devemos  saber  qual  é  e 
desenvolvê‐la e concretizá‐la. E essa é uma escolha – essa é a nossa escolha. 

Nós  fomos  a  Genebra  –  as  seis  Nações  e  a  grande  Nação  Lakota  –  como  representantes  do 
povo indígena do hemisfério ocidental. Nós fomos a Genebra e falámos no fórum das Nações 
Unidas.  Durante  um  curto  período  de  tempo,  nós  permanecemos  iguais  entre  os  povos  e  as 
nações  do  mundo.  E  qual  foi  a  mensagem  que  demos?  Existe  grande  alarido  pelos  direitos 
humanos  –  direitos  humanos,  diziam  eles,  para  todas  as  pessoas.  E  o  povo  indígena  dizia: 
Quais são os direitos do mundo natural? Onde está o assento para o Búfalo ou para a Águia? 

Sabedoria Perene 3  96 

 
A nossa mãe terra 
 

Quem é que os representa neste fórum? Quem é que está a falar pelas águas da terra? Quem 
é que está a falar pelas árvores e pelas florestas? Quem é que está a falar pelo peixe – pelas 
baleias,  pelos  castores,  pelas  nossas  crianças?  Nós  dissemos:  Dada  a  oportunidade  de  falar 
neste fórum internacional, então é nosso dever dizer que devemos defender estas pessoas, e o 
mundo natural e os seus direitos; e também as gerações vindouras. Nós não cumpriríamos o 
nosso  dever  se  não  dissemos  isto.  Isto  torna‐se  importante  porque  sem  a  água,  sem  as 
árvores, não existe vida. 

Cidade de Nova Iorque – vocês vivem aqui; aqui, vocês não conseguem obter água limpa para 
beber.  A  água  que  vocês  bebem  é  imunda.  Vocês  não  sabem  o  que  é  a  água  límpida  da 
nascente porque têm de beber o que sai das torneiras. E, eventualmente, isto irá matar‐vos. 
Eventualmente, vocês não irão conseguir limpá‐la; nem os vossos filhos, nem os vossos avôs, 
nem  as  vossas  avós…  Pensem  nisto…  Quando  estiverem  doentes  e  quando  os  vossos  filhos 
estiverem doentes, lembrem‐se do que o Índio vos disse sobre a água. 

Nós somos um povo indígena para esta terra. Nós somos como uma consciência. Nós somos 
pequenos,  mas  não  somos  uma  minoria.  Nós  somos  os  proprietários  da  terra,  nós  somos  os 
guardiões da terra; nós não somos uma minoria. Porque os nossos irmãos são todo o mundo 
natural,  e  por  isso  nós  somos,  de  longe,  a  maioria.  Nós  queremos  que  vocês  percebam  a 
oportunidade, agora. Não é tempo para ter medo – não há tempo para o medo. Só há tempo 
para  ser  forte,  apenas  há  tempo  para  pensar  no  futuro  e  enfrentar  a  destruição  dos  nossos 
netos, e para nos afastarmos dos ciclos de quatro anos em que este país vive, de uma eleição 
para outra, e pensar nas gerações futuras. 

Nós falámos de direitos humanos e falámos em defesa de todas as pessoas e de todas crianças. 
Mas lembrem‐se que enquanto nós queimarmos tabaco, enquanto as nações índias existirem, 
também vocês existirão. Mas quando nos formos, vocês também irão.  

Dahnato. (Agora acabei.) 

NOTAS 
1 – N.T.: Handsome Lake. 

Sabedoria Perene 3  97 

 
Oren Lyons 
 

Sabedoria Perene 3  98 

 
 

Primitivos (refinados) e ultra‐civilizados (bárbaros) 
por Mateus Soares de Azevedo 
  

Uma questão: os povos ditos “primitivos” têm relação mais sadia e rica com a natureza do que 
os “ultra‐civilizados”?  

A resposta aqui deve ser um sonoro ‘sim’: neste ponto, nós ocidentais ultra‐civilizados, somos 
“índios”, ou seja, brutos e incultos, que é como nós vemos tais povos. 

Por que tais diferentes atitudes em relação ao mundo natural? Por que o destruímos, e isso de 
forma intensa desde o fim do período medieval, e os indígenas e outros povos o preservam e 
mesmo o respeitam e o veneram? 

A resposta, creio, está no fato de que tais comunidades ‘primitivas’ encaram a natureza como 
um santuário – não apenas como a fonte de seu sustento e de sua existência, mas ainda mais 
como  um  santuário.  Como  reflexo,  no  tempo,  de  uma  Realidade  Intemporal;  como 
corporificação, na terra, de Realidade celeste, não sujeita à corrupção. Algo, portanto, sagrado, 
de  origem  divina,  que  não  deve  ser  destruído  pelos  homens  –  destruição  esta  que,  uma  vez 
realizada, engendraria terríveis conseqüências para todo o ambiente terreno. 

Entre esses povos ‘selvagens’, os índios norte‐americanos, especialmente os das planícies, têm 
um entendimento metafísico da natureza que é profundo e abrangente.1 Para estes povos, a 
natureza  é  como  uma  Revelação  divina.  Em  sua  beleza,  pureza  e  grandeza,  a  natureza  é  o 
templo  dos  índios  –  templo  não  erguido  por  mãos  humanas,  mas  pelo  próprio  “Grande 
Arquiteto”  do  Universo.  E  os  pajés,  os  ‘medicine‐men’,  são  os  sacerdotes  deste  santuário 
primordial.  Para  eles,  subir  uma  montanha  é  aproximar‐se  de  Deus;  no  silêncio,  na  solidão, 
distantes da agitação e do ruído do mundo, eles contemplam as realidades eternas. 

Para  o  homem  moderno,  ao  contrário,  o  caráter  espiritual  deste  gênero  de  ascensão  se 
perdeu;  escalar  uma  montanha  é  ‘conquistá‐la’;  uma  ação  espiritual  se  torna  quase  uma 
profanação. 

A religião dos peles‐vermelhas deriva, como explicaram Frithof Schuon e William Stoddart em 
seus  livros,  do  grande  (e  desigual)  tronco  xamânico  hiperbóreo,  que  inclui  também  o  Xintô 
japonês, o Bon tibetano, e o Taoísmo chinês, sem contar seus ramos africanos. Racialmente, o 
índio das Américas é também de tipo mongólico, como os extremo‐orientais acima citados. 

Sabedoria Perene 3  99 

 
Mateus Soares de Azevedo 
 

Além de santuário, a natureza intocada é a escritura sacra dos índios. Um livro que, para quem 
sabe lê‐lo, contém tesouros inexauríveis de verdade, utilidade e beleza. Por sua centralidade, 
imobilidade, fonte de luz e calor, o Sol é como um ícone de Deus. O índio sabe que o Sol não é 
Deus, mas crê não obstante que há um traço – uma ‘centelha’ diria o mestre Eckhart – Dele no 
astro solar. A chuva é símbolo da graça. O trovão, da revelação. E o vento é como o espírito, 
que “sopra aonde quer”. 

A  natureza  é,  em  suma,  preservada,  respeitada  e  venerada  por  tais  povos  de  mentalidade 
simbólica  e  mitológica  porque  é  vista  e  vivida  como  santuário  e,  simultaneamente,  como 
escritura.  Para  o  homem  moderno,  ao  contrário,  ela  é  uma  coisa  a  ser  explorada,  um 
adversário  a  dobrar  e  conquistar.  Paradoxalmente,  ele  foge  sempre  que  possível  dos 
ambientes  urbanos  artificiais  que  construiu,  rumo  a  praias  e  montanhas  –  onde  busca  não 
somente relaxamento físico, mas também repouso para sua alma tensionada e cansada. 

A luta que tais povos têm travado, já há mais de cinco séculos, contra o mundo moderno tem, 
aliás, um caráter de ”jihad”, de guerra santa – pois, para eles, a terra e a ambiência natural em 
geral,  incluindo  plantas,  animais  e  espaços,  não  é  vista  como  algo  puramente  quantitativo  e 
mensurável, portanto comprado e vendido; não, é algo sagrado.  

O gravíssimo desequilíbrio ecológico engendrado e mantido pelo mundo moderno – incluindo 
efeito estufa, El Nino, furacões, tufões, terremotos e tsunamis, poluição de mares, rios e lagos, 
frio  no  verão,  calor  no  inverno,  chuva  na  primavera,  secura  no  outono  etc.  –  já  engendra 
efeitos  catastróficos  no  presente.  Pelo  menos  é  isto  que  sustentam  os  próprios  corifeus  da 
ciência  moderna,  os  cientistas,  esses  ‘sacerdotes’  do  mundo  frio  e  desesperançado  da 
modernidade.  Não  podemos  esquecer,  contudo,  que  há  uma  relação  direta  entre  o 
desenvolvimento  da  ciência  moderna  e  a  destruição  da  natureza  virgem.  Como  o  professor 
S.H. Nasr apontou no seu Knowledge and the sacred, muitos dos pais fundadores da ciência de 
tipo moderno, como Francis Bacon, por exemplo, consideravam que o propósito da ciência era 
o poder e o domínio sobre a natureza. O esquecimento da sacralidade do cosmo remonta ao 
racionalismo e cienticismo da Renascença (séculos 15 e 16), época em que começa o “nosso” 
mundo.  Portanto,  parece‐me  lógico  concluir  que  não  será  a  ciência  moderna  que  nos 
protegerá  nem  nos  salvará  dos  desequilíbrios  naturais  causados  ou  que  tem  sua  origem 
primeira  nesta  própria  ciência  materialista,  quantitativa,  totalitária,  que  não  inclui  nem  o 
psicológico, nem o espiritual, em seu limitado campo de vista. Ou seja, tal ciência não pode por 
princípio ajudar‐nos a ganhar equilíbrio neste domínio porque ela não aceita a totalidade da 
realidade, ou seja, que tanto o mundo, como o homem que é seu centro, são feitos de corpo, 
alma  e  espírito  ‐‐  e  não  apenas  de  matéria  quantificável.  O  egoísmo,  o  materialismo,  o 
ateísmo,  o  consumismo,  a  falta  de  auto‐controle  e  moderação  etc.,  não  serão  solucionados 
pela ciência moderna. 

Sabedoria Perene 3  100 

 
Primitivos (refinados) e ultra‐civilizados (bárbaros) 
 

Nesta  hora  tardia,  a  “décima  ‐  primeira  hora”,  no  dizer  de  Martin  Lings,  não  cabem  mais 
mudanças apenas estéticas e superficiais. A crise ecológica é apenas o sintoma exterior de um 
profundo  mal  estar  espiritual  do  homem  secularizado.  Se  continuarmos  mantendo  o  padrão 
destes últimos cinco séculos, o padrão iniciado na Renascença (nome impróprio, pois significou 
a  ‘morte’  da  cultura  tradicional,  com  suas  catedrais,  sua  arte  românica,  a  Divina  Comédia,  a 
escolástica, os ícones, cidades como Istambul, Siena, Fes  etc.), o padrão do “progresso’  e do 
“desenvolvimento”, avançaremos ainda mais no rumo do abismo... 

NOTAS 
1  –  Acerca  do  patrimônio  intelectual  e  espiritual  desses  povos,  ver  especialmente  o  fascinante  livro  de  Frithjof 
Schuon The Feathered Sun – Plains indians in art and philosophy (World Wisdom, 2003). Há tradução em espanhol: 
El Sol Emplumado – Los indios de las praderas a través del arte y la filosofía (José J. de Olañeta editores, Palma de 
Mallorca, 2004). 

Sabedoria Perene 3  101 

 
Mateus Soares de Azevedo 
 

Sabedoria Perene 3  102 

 
 

Sobre a ecologia: os quatro poluentes 
por William Stoddart 
 

Traduzido por Nuno Almeida  

São quatro os poluentes: intelectual (ou espiritual), visual, auditivo e físico. 

Intelectual  (ou  espiritual):  ateísmo,  indiferença  quanto  a  Deus,  relativismo  (não  existe 
qualquer verdade absoluta); dualidade de critérios.   

Visual: fábricas, laboratórios, arquitectura moderna, etc.  

Auditivo: ubiquidade da música “rock”. 

Físico: emissões de carbono, chuva ácida, etc.  

Estes poluentes estão listados por ordem de importância.  Os três primeiros mataram a alma 
do homem; o quarto corre o risco de matar o seu corpo. 

* * * 

Muito  se  tem  dito  sobre  a  necessidade  de  alimento  puro  para  que  se  obtenha  desenvolvimento 
espiritual. Para mim, o verdadeiro alimento é a assimilação de pensamentos puros e a devoção à 
Verdade ou Deus. Em vão tomam as vossas refeições diárias perfeitamente sátvicas; que alimento 
pode  a  vossa  alma  retirar  dessa  massa  de  comida  pura  se  a  vossa  mente  permanece 
constantemente absorvida em pensamentos materiais? 

                Mâ Ânanda Mâyî 

Estava  um  grupo  de  pessoas  a  falar  sobre  a  vida  vindoura.  Uns  diziam  que  quem  comesse  peixe 
nasceria  na  Terra  Pura,  outros  diziam  o  contrário.  Hônen  ouviu‐os  de  passagem  e  disse:  “Se 
dependesse de comer peixe, então os corvos marinhos nasceriam na Terra Pura, e se dependesse 
de não comer peixe, então seria esse o caso dos macacos. Mas estou certo de que quer um homem 
coma ou não peixe, basta‐lhe chamar o Nome Sagrado e nascerá na Terra Pura.”   

Hônen 

Sabedoria Perene 3  103 

 
William Stoddart 
 

Uma característica essencial que distingue o homem dos animais é a de que o homem sabe que tem 
de morrer, enquanto os animais não. Este conhecimento da morte é uma prova da imortalidade; é 
apenas pelo facto do homem ser imortal que as suas faculdades lhe permitem tomar consciência da 
sua  impermanência  terrena.  Dizer  percepção  da  morte  é  dizer  fenómeno  religioso;  e  permitamo‐
nos notar que este fenómeno forma parte da ecologia no sentido total do termo, pois sem religião – 
ou sem religião autêntica – uma colectividade humana não pode sobreviver a longo prazo; isto é o 
mesmo que dizer, não pode permanecer humana. 

Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 12 

As religiões e os sistemas de sabedoria são valores tão “naturais” – ainda que “sobrenaturalmente” 
naturais  –  como  o  ar  que  respiramos,  a  água  que  bebemos  e  a  comida  que  ingerimos;  não 
reconhecer  o  “imperativo  categórico”  daquilo  que  por  comparação  poderíamos  chamar  de 
“ecologia espiritual” é, consequentemente, uma atitude que é tão auto‐destrutiva quanto irrealista. 

Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 66 

Os ateus militantes negligenciam intencionalmente que a religião é, de certa forma, uma questão 
de ecologia. Mesmo assumindo que a religião contém um elemento de “ópio” – e não só “para o 
povo” – este elemento é “ecologicamente” indispensável para o psiquismo humano; em qualquer 
caso,  a  sua  ausência  envolve  abusos  incomparavelmente  mais  graves  do  que  a  sua  presença, 
porque  é  melhor  ter  bons  sonhos  do  que  pesadelos.  Seja  como  for,  apenas  a  religião,  ou  a 
espiritualidade, oferece aquele significado integral e aquela alegria ancorada na natureza deiforme 
do homem, sem a qual a vida não é inteligível nem digna de ser vivida. 

Frithjof Schuon, The Play of Masks, p. 78 

Sabedoria Perene 3  104 

 
 

EPÍLOGO 
 

   

 
 

   

 
 

Pontifex e Khalifa 
por Frithjof Schuon 
 

Traduzido por Miguel Conceição 

A situação do homem é ver Deus a partir do mundo. Pois bem, ver Deus a partir do mundo é 
ver  o  mundo  a  partir  de  Deus.  Ver  Deus  a  partir  do  mundo  é  ver  Deus  como  Senhor,  como 
Princípio  que  determina  tudo;  ver  o  mundo  a  partir  de  Deus  é  ver  o  mundo  como  unidade 
contingente  e  passageira.  O  homem  profano  vê  em  seu  redor  as  coisas,  as  pessoas,  os 
acontecimentos, mas não o véu ontológico e escatológico no qual eles estão tecidos; não vê o 
mundo à distância, como se vê uma paisagem do alto de uma montanha; vê os conteúdos mas 
não o receptáculo. “Por causa das árvores, ele não vê o bosque” («vor Bäumen den Wald nicht 
sehen»): debaixo da hipnose das aparências ele não vê nem a Mâyâ, pela e na qual ele existe, 
nem o Samsâra, no qual se joga o seu destino. O homem espiritual, ao contrário, na medida 
em que jamais perde de vista o Principio, não pode, ao perceber as coisas, perder de vista o 
que  elas  são  em  relação  ao  Princípio  que  as  determina.  O  homem  espiritual  situa‐se 
conscientemente entre Deus e o mundo, e é por esse motivo que é pontifex ou khalîfah: deve 
religar o mundo com Deus enquanto representando Deus no mundo. Ele deve introduzir Deus 
no mundo e reconduzir o mundo – a sua alma – a Deus.  

Ver o mundo a partir de Deus é, não somente ver a sua contingência e a sua infinitude, mas 
ver também, nas coisas, a sua mensagem de ‘Absolutez’ e de Infinitude; pois se o mundo por 
um  lado  vela  Deus,  por  outro  lado  ele  comunica  os  seus  Arquétipos,  as  suas  Qualidades,  os 
seus  Mistérios,  através  dos  símbolos  e  das  belezas;  bem  como  através  das  privações  e  dos 
contrastes. 

Ver Deus a partir do mundo é ver o mundo a partir de Deus. Mas há no homem uma região – o 
Coração‐Intelecto – que não está no mundo, e no qual Deus se conhece a si mesmo. De forma 
inversamente  análoga,  há  um  plano  no  qual  o  homem  percebe  as  coisas  nelas  mesmas  e 
independentemente  do  seu  contexto  ontológico  e  escatológico.  Com  toda  a  evidência,  estas 
perspectivas são paralelas e não se contradizem. 

Ver  Deus  a  partir  do  mundo,  como  Senhor  transcendente;  mas  conhecê‐lo  também  por  si 
mesmo,  como  Si  imanente.  Ver  o  mundo  a  partir  de  Deus,  como  véu  impermanente;  mas 
compreender  igualmente  as  suas  mensagens  de  Realidade  e  de  Eternidade.  Ver  Deus  nas 
raízes das coisas é ver no mundo os reflexos de Deus. 

Sabedoria Perene 3  107 

 
Frithjof Schuon 
 

Sabedoria Perene 3  108 

 
 

CITAÇÕES ESPIRITUAIS 
 

   

 
 

   

 
Citações espirituais 
 

Deus está para o homem como o magnete está para o ferro. Então por que não atrai Ele o homem? Tal 
como o ferro profundamente embebido em lama não é movido pela atracção do magnete, também a 
alma profundamente embebida em Maya não sente a atracção do Senhor. Mas tal como o ferro se move 
livremente quando a lama é lavada com água, também a alma por constantes lágrimas de oração e de 
arrependimento lava a lama de Maya que a prende à terra, e é rapidamente atraída pelo Senhor. 
Excerto do Evangelho de Sri Ramakrishna 
 
 
Existe uma "fonte na Divindade, que brota sobre todas as coisas na Eternidade e no Tempo". 
Mestre Eckhart 
 
 
Acredita na minha experiência. Encontrarás mais nos bosques que nos livros. As árvores e os rochedos 
ensinar‐te‐ão o que nunca poderás ouvir dos mestres. 
São Bernardo de Claraval 
 
O mundo é a mais bela das criações. 
Platão 
 
O sumo Bem, quem em si só se compraz, fez o homem bom e para o bem, e logo lhe deu como arras este 
lugar de eterna paz. 
Dante Alighieri 
 
A Sabedoria Divina criou o mundo para que todas as coisas por Si conhecidas fossem reveladas. 
Rûmi 
 
Mostrar a Sua sabedoria enquanto fazia todas as coisas. 
Hermes 
 
Eu era um tesouro escondido; queria ser conhecido; por essa razão Eu criei o mundo. 
Mohammad (hadîth qudsî) 
 
O homem é a ligação entre Deus e a natureza… Tal como Deus desceu ao homem, assim o homem deve 
ascender a Deus. 
Jîlî 
 

Sabedoria Perene 3  111 

 
Citações espirituais 
 

 
 
 

Sabedoria Perene 3  112 

 
 

FONTES DOS TEXTOS 
 

   

 
 

   

 
Fontes dos textos 
 

“Direcções  para  o  suprasensível”  –  Harry  Oldmeadow:  originalmente  publicado  no  sexto 


número da Revista Sacred Web em 2001, com o título “‘Signposts to the suprasensible’. Notes 
on Frithjof Schuon’s understanding of ‘Nature’”. 

“Ver Deus em toda a  parte” – Frithjof Schuon: original “Voir Dieu partout”, capítulo do livro 
Sentiers de Gnose, editado por La Colombe, Paris, 1957. 

“Uma  metafísica  da  Natureza  Virgem”  –  Frithjof  Schuon:  original  “A  Metaphysic  of  Virgin 
Nature”, capítulo do livro The Feathered Sun – Plain Indians in art and philosophy de Frithjof 
Schuon, editado pela World Wisdom Books em 1990. 

“O simbolismo da água” – Titus Burckhardt: original “The Symbolism of Water”, do livro Mirror 
of  the  Intelect,  Quinta  Essencia,  Cambridge,  1987,  reimpresso  com  autorização  da  World 
Wisdom no livro Water: Its Spiritual Significance, Fons Vitae, 2009. 

“Notas  sobre  a  ecologia  espiritual  de  São  Francisco  de  Assis  e  Swâmi  Râmdâs”  –  Alberto 
Vasconcellos Queiroz [artigo original]. 

“As  dimensões  espiritual  e  religiosa  da  crise  ambiental”  –  Seyyed  Hossein  Nasr:  selecção  e 
compilação  dos  conteúdos  leccionados  no  âmbito  do  Programa  de  Educação  Religiosa  e 
Ambiente  (REEP)  dos  Amigos  do  Centro  e  da  Academia  Temenos  em  22  de  Maio  de  1998, 
publicados  no  artigo  The  Spiritual  and  Religious  Dimensions  of  the  Environmental  Crisis, 
incluído  no  livro  Seeing  God  Everywhere:  Essays  on  Nature  and  the  Sacred,  ed.  Barry 
Macdonald, World Wisdom, 2003 

“A agricultura e o destino humano” – Lord Northborne: traduzido do capítulo Agriculture and 
Human Destiny do livro Of the Land and the Spirit: The Essential Lord Northbourne on Ecology 
and Religion, ed. Joseph A. Fitzgerald, World Wisdom, 2008, originalmente publicado no livro 
do autor Looking Back on Progress (1970). 

“O protesto da terra” – Gai Eaton: traduzido do livro “The Essential SOPHIA – The Journal of 
Traditional  Studies”,  Word  Wisdom  2006.  O  texto,  “The  Earth’s  Complaint”,  foi  inicialmente 
publicado no Volume 3 – nº1 da publicação periódica SOPHIA. 

“A nossa mãe terra “ – Oren Lyons: traduzido do capítulo Our Mother Earth incluído no livro 
Seeing  God  Everywhere:  Essays  on  Nature  and  the  Sacred,  ed.  Barry  Macdonald,  World 
Wisdom, 2003. 

Sabedoria Perene 3  115 

 
Fontes dos textos 
 

“Primitivos e ultra‐sofisticados – Mateus Soares de Azevedo [artigo original]. 

“Sobre a ecologia: os quatro poluentes” – William Stoddart: tradução de um texto original do 
autor. 

“Pontifex  e  Khalîfah”  –  Frithjof  Schuon:  traduzido  de  um  texto  privado  do  autor  publicado 
inéditamente na revista Connaissance des Religions, nº 67‐68 – La Contemplation de la Nature, 
Dervy, 2003. 

Sabedoria Perene 3  116 

 
 

BREVES NOTAS SOBRE OS AUTORES 
 

   

 
 

   

 
Breves notas sobre os autores 
 

Harry Oldmeadow 

Harry  Oldmeadow nasceu em Melborne em 1947. Os seus pais foram missionários cristãos na Índia, onde viveu 
nove anos da sua infância e cedo desenvolveu um interesse pelas civilizações do oriente. Estudou história, política e 
literatura na  Universidade Nacional Australiana  e, após posteriores estudos na Universidade de Sidney, trabalhou 
como  tutor  na  Universidade  La  Trobe  em  Melbourne.  Em  1971  partiu  para  continuar  os  seus  estudos  na 
Universidade de Oxford, tendo viajado extensivamente na Europa e no Norte de África. 
Em 1980 inscreveu‐se num mestrado em Estudos Religiosos na Universidade de Sidney onde completou a sua 
dissertação sobre o trabalho de Frithjof Schuon e outros escritores tradicionalistas. Este estudo mereceu a medalha 
de ouro da Universidade de Sidney pela excelência da sua pesquisa, o qual foi publicada pelo Sri Lanka Institute of 
Traditional Studies com o título de Traditionalism: Religion in the Light of the Perennial Philosophy (Colombo, 2000).  
Por solicitação desta Instituição, proferiu a lição inaugural da ‘Ananda Coomaraswamy Memorial Lecture’, em 
Colombo, com o título "The Religious Tradition of the Australian Aborigines". 
Actualmente é o coordenador da área de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade La Trobe, em Bendigo, 
Austrália. Durante os últimos anos tem publicado extensivamente em publicações periódicas como a Sacred Web 
(Vancouver),  Sophia:  Journal  of  Traditional  Studies  (Washington  DC),  Asian  Philosophy  (Nottingham,  UK),  Vincit 
Omnia Veritas (e‐journal), Australian Religion Studies Review (Sydney) and Sophia: Journal of Philosophy of Religion, 
Metaphysical Theology and Ethics (Melbourne). 
Harry Oldmeadow vive com a sua esposa numa pequena propriedade em Mandurang, a Sul de Bendigo. 

Frithjof Schuon 

Frithjof  Schuon  nasceu  em  1907  em  Basle,  na  Suiça,  filho  de  pais  alemães.  Sendo  seu  pai  músico,  cresceu  num 
ambiente onde, para além da constante presença da música, prevalecia a arte e literatura, quer do Oriente, quer do 
Ocidente. Viveu em Basle e frequentou a escola da cidade até à morte do pai em 1920, após a qual se deslocou com 
a sua mãe para Mulhouse, onde foi forçado a adquirir nacionalidade francesa. Tendo recebido a sua edução inicial 
em Alemão, era agora exposto ao sistema de educação francês, o que o levou a adquirir o conhecimento das duas 
línguas  ainda  muito  jovem.  Com  a  idade  de  16  anos  abandonou  a  escola  para  se  dedicar  ao  desenho  de  tecidos, 
iniciando‐se  assim  no  caminho  da  arte,  a  qual  era  uma  sua  paixão  desde  criança,  nunca  tendo,  no  entanto,  tido 
qualquer instrução formal. 
Ainda em criança, Schuon havia sido atraído pelo Oriente pelas belas canções do Bhagavad‐Gita, um dos seus 
livros  favoritos,  bem  como  as  “Mil  e  uma  noites”.  Tinha  uma  propensão  natural  para  a  metafísica,  tendo‐se 
dedicado à leitura de Platão ainda muito jovem. Ainda em Mulhouse, teve conhecimento das obras de Guénon, as 
quais serviram como confirmação das suas intuições intelectuais e que lhe vieram a providenciaram o suporte para 
os princípios metafísicos que tinha começado a descobrir. 
Schuon viajou para Paris depois de cumprir serviço militar durante um ano e meio com o exército Francês. Em 
Paris, para além de continuar o seu antigo trabalho, iniciou o estudo da língua árabe. Em 1932 visitou pela primeira 
vez a Algéria, o que marca a sua primeira experiência com uma civilização tradicional e o seu primeiro contacto com 
o mundo islâmico. Aí obteve um conhecimento em primeira‐mão sobre a tradição islâmica, incluindo o Sufismo, e 
conheceu alguns dos seus maiores representantes, tal como o Shaykh al‐‘Alawi. Na sua segunda viagem ao Norte de 

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Breves notas sobre os autores 
 

África  em  1935,  visitou  não  só  a  Algéria  mas  também  Marrocos,  tendo  em  1938  viajado  até  ao  Cairo,  onde 
finalmente se encontrou com René Guénon, com quem se correspondia há vários anos. 
Em  1939  voltou  a  parar  no  Egipto  enquanto  viajava  para  a  Índia,  uma  terra  que  sempre  amou  e  cuja 
espiritualidade o atraía desde a juventude. Pouco depois da sua chegada à Índia deu‐se o início da Segunda Grande 
Guerra, e foi forçado a regressar a França e a ingressar no exército. Pouco tempo depois foi capturado e preso pelos 
alemães. Quando soube que estes planeavam colocá‐lo no seu exército devido ao seu passado fugiu para a Suíça 
onde acabou por se fixar. 
Durante cerca de 40 anos a Suíça foi o seu lar,  onde casou em 1949. Foi aqui que escreveu grande parte das 
suas  obras.  Em  1959  e  1963,  Schuon  viajou  para  os  Estados  Unidos  para  visitar  as  tribos  dos  Índios  americanos, 
pelos  quais  tinha  uma profunda  admiração  e  afinidade.  Ele e  a sua  esposa  visitaram  as  reservas  Sioux  e  Crow  no 
Dakota do Sul e Montana, tendo sido aceites pela tribo Sioux. 
Em 1981, os Schuon emigraram para os Estados Unidos, estabelecendo‐se no estado de Indiana. Ali, numa casa 
de madeira num condomínio situado numa floresta, Schuon viveu 17 anos, onde faleceu a 5 de Maio de 1998. 

Titus Burckhardt 

Titus  Burckhardt,  Titus  Burckhardt,  suíço  alemão  descendente  de  uma  família  patrícia  de  Basileia,  nasceu  em 
Florença em 1908 e morreu em Lausanne em 1984. Dedicou toda a sua vida ao estudo e à exposição dos diferentes 
aspectos da Sabedoria e da Tradição. Na era da ciência moderna e da tecnocracia, Titus Burckhardt foi um dos mais 
admiráveis  dos  expositores  da  verdade  universal,  quer  no  âmbito  da  metafísica,  quer  no  da  cosmologia  e  arte 
tradicional.  Filho  do  escultor  Carl  Burckhardt  e  sobrinho  do  famoso  historiador  de  arte  Jacob  Burckhardt,  Titus 
Burckhardt conheceu Frithjof Schuon em Basileia durante a sua infância, altura em que iniciaram uma profunda e 
harmoniosa amizade intelectual e espiritual, a qual perdurou ao longo das suas vidas. 
Durante  os  anos  cinquenta  e  sessenta  Burckhardt  foi  o  director  artístico  da  Urs  Graf  Publishing  House  de 
Lausanne e Olten. A sua actividade principal durante estes anos foi a produção e publicação de uma série de fac‐
similes de manuscritos medievais, especialmente antigos manuscritos Celtas dos Evangelhos, tal como o “Book of 
Kells” e o “Book of Durrow” (do Trinity College, Dublin) e o “Book of Lindisfarne” (da British Library, London). Este 
foi  um  trabalho  pioneiro  da  mais  alta  qualidade  e  uma  realização  editorial  que  imediatamente  recebeu  grandes 
ovações  de  peritos  e  do  público  em  geral.  A  principal  exposição  metafísica  de  Burckhardt,  complementando  com 
beleza a obra de Schuon, foi Introduction aux Doctrines Ésotériques de l’Islam. A principal obra de Burckhardt no 
campo da cosmologia foi seu livro Alchemie, Sinn – und Weltbild (Alquimia: significado e imagem do mundo), uma 
apresentação  brilhante  da  alquimia  como  expressão  de  uma  psicologia  espiritual  e  de  um  suporte  intelectual  e 
simbólico para a contemplação e a realização. O principal trabalho de Burckhardt no campo da arte foi Principes et 
Méthodes de l’Art Sacré, que contém vários capítulos maravilhosos sobre a metafísica e a estética do Hinduísmo, do 
Budismo, do Taoísmo, do Cristianismo e do Islão, e termina com uma útil e prática visão da situação contemporânea 
intitulada “A decadência e a renovação da arte cristã”. Um das várias obras‐primas de Burckhardt é sem dúvida Fez, 
Cidade  do  Islão,  para  além  dos  livros  Siena,  Cidade  da  Virgem,  Chartres  e  o  Nascimento  da  Catedral  e  A  Cultura 
Moura na Espanha. 
 

Sabedoria Perene 3  120 

 
Breves notas sobre os autores 
 

Durante  os  seus  anos  em  Marrocos,  Burckhardt  assimilou  os  principais  clássicos  do  Sufismo  na  sua  forma 
original.  Mais  tarde,  viria  a  partilhar  estes  tesouros  através  das  suas  traduções  de  Ibn  ‘Arabî  e  Jîlî.  Um  dos  seus 
trabalhos  mais  importantes  foi  a  tradução  das  cartas  espirituais  de  Mulay  al‐‘Arabî  ad‐Darqâwî.  O  último  grande 
trabalho de Burckhardt foi seu amplamente festejado e impressionante Arte do Islão. 

Alberto Vasconcellos Queiroz 

Alberto  Vasconcellos  Queiroz nasceu e foi criado na cidade brasileira de Santos, o maior porto marítimo da 


América Latina. Estudou psicologia na Universidade Pontifícia de São Paulo onde obteve a sua licenciatura.  
Foi co‐editor da obra Remembering in a World of Forgetting: Thoughts on Tradition and Postmodernism, uma 
colecção de escritos de William Stoddart. 
Dirige  desde  o  ano  de  2009,  juntamente  com  Mateus  Soares  de  Azevedo,  a  editora  Sapientia,  dedicada  à 
publicação  de  autores  da  “escola”  perenialista:  Frithjof  Schuon,  René  Guénon,  Titus  Burckhardt,  Ananda 
Coomaraswamy, Martin Lings, William Stoddart e outros, bem como de obras clássicas da espiritualidade universal. 
 

Lord Northborne 

Lord  Northborne (1896‐1982), Walter Ernest Christopher James, foi o 4.º Barão Northbourne de Kent, Inglaterra. 
Agricultor,  educador,  tradutor,  cujos  escritos  versam  sobre  agricultura  e  religião  comparada.  Recebeu  a  sua 
educação  em  Oxford  e  foi  Reitor  do  Wye  College  —  o  colégio  de  agricultura  da  Universidade  de  Londres.  Lord 
Northbourne  era  um  agrónomo  perspicaz  e  escreveu  um  influente  livro  em  1940, Look  to  the  Land.  Neste  livro, 
introduziu  ao  mundo  o  termo  "agricultura  biológica",  bem  como  os  conceitos  relacionados  com  a  gestão  de uma 
proriedade agrícola como um “todo orgânico”.  
Depois  de  ler  este  livro,  Marco  Pallis  contactou  e  introduziu  Lord  Northbourne  aos  escritos  e  às  ideias 
tradicionalistas/perenialistas.  Desde  então,  Lord  Northbourne  passou  a  adoptar  este  padrão  de  pensamento  nos 
seus  próprios  escritos  e  a  integrá‐lo  na  sua  própria  vida,  mantendo  correspondência  com  muitos  dos  mais 
proeminentes escritores desta escola de pensamento, bem como com Thomas Merton.  
Os  seus  escritos  são  frequentemente  citados  como  excelentes  introduções  à  perspectiva  tradicionalista, 
destacando‐se também como tradutor e editor de importantes obras, tais como The Reign of Quantity and the Signs 
of the Times, de René Guénon, Light on the Ancient Worlds, de Frithjof Schuon e Sacred Art in East and West, de 
Titus Burckhardt. 

Charles le Gai Eaton  

Charles le  Gai  Eaton nasceu em Lausanne, Suíça, e recebeu a sua educação no Chasterhouse e King´s College em 


Cambridge. Trabalhou vários anos como professor e jornalista na Jamaica e no Egipto antes de ingressar no Serviço 
Diplomático Inglês. Desempenhou o papel de consultor do Centro Cultural Islâmico de Londres. Foi autor de vários 
livros: Islam  and  the  Destiny  of  Man, King  of  the  Castle e Remembering  God, e  contribuía  frequentemente  com 

Sabedoria Perene 3  121 

 
Breves notas sobre os autores 
 

artigos para a publicação periódica Studies in Comparative Religion. O seu último livro e autobiografia intitulado A 
Bad  Beginning  and  the  Path  to  Islam foi  publicado  pela  editora Archetype em  Janeiro  de  2010.  Deixou‐nos 
recentemente, a 26 de Fevereiro do mesmo ano. 

Oren Lyons  

Oren  Lyons  é  um  Guardião  da  Fé  Traidicional  do  Clã  da  Tartaruga  e  membro  do  Concelho  de  Chefes  da  Nação 
Onondaga da Confederação de Seis Nações de Iroquois (a Haudenosaunee). Graduou‐se em Belas Artes na Syracuse 
University e estabeleceu‐se em Nova Iorque, onde exerceu a sua actividade profissional como ilustrador de livros e 
pintor.  
Em  1970,  regresou  à  sua  terra  para  assumir  a  função  de  Guardião  da  Fé  do  Clã  Tartaruga,  função  que  vem 
desempenhando para manter vivas as tradições, os valores e a história do seu povo. É Professor Associado na SUNY 
(University at Buffalo) no Centro para as Américas. Lecciona cursos e orienta trabalhos sobre história e estudos dos 
Índios  e  participa  em  muitas  conferências  e  reuniões  relacionados  com  os  Índios  Americanos,  com  os  direitos 
humanos, com o diálogo inter‐religioso e com o ambiente.  
É fundador e editor da revista Daybreak desde 1987 e editor do livro Exiled In The Land Of The Free: Democracy, 
The  Iroquois  and  The  Constitution  (1992),  um  importante  estudo  sobre  o  impacto  dos  Índios  na  democracia 
Americana e na Constituição dos Estados Unidos da América. 

Mateus Soares de Azevedo 

Mateus Soares de Azevedo, jornalista, historiador das religiões e islamólogo brasileiro, nasceu em Belo Horizonte 
no  dia  24  de  Janeiro  de  1959.  Formou‐se  em  Comunicações  pela  Pontifícia  Universidade  Católica  de  São  Paulo  e 
obteve uma pós graduação em Relações Internacionais pela Universidade George Washington nos Estados Unidos. 
É ainda mestre em História das Religiões, título académico obtido na Universidade de São Paulo.  
É autor de cinco livros sobre a Filosofia Perene e as dimensões místicas do Cristianismo e do Islão. Publicou mais 
de sessenta artigos e ensaios de filosofia das religiões e de crítica da mentalidade materialista da modernidade nos 
principais jornais brasileiros. Alguns deles foram traduzidos para o inglês, o francês e o espanhol, e publicados nas 
revistas Sophia (EUA), Sacred Web (Canadá), Sophia Perennis (Espanha) e Dossier H (França).  
Em 2005, publicou a antologia Ye Shall Know the Truth: Christianity and the Perennial Philosophy pela editora 
World Wisdom Books dos Estados Unidos, onde colaborou com a introdução e o ensaio "Sábios e santos da nossa 
época  à  luz  da  Filosofia  Perene”.  No  Brasil  tem  já  três  livros  publicados:  o  seu  recente  Homens  de  um  livro  só:  o 
fundamentalismo no islã e no pensamento moderno (2008); A Inteligência da Fé: cristianismo, islã, judaísmo (2006) 
e  Mística  Islâmica  (2001).  Traduziu  e  editou  onze  obras  dedicadas  à  Filosofia  Perene  e  à  importância  da 
espiritualidade  tradicional  no  mundo  contemporâneo.  Entre  eles,  O  Homem  no  Universo,  O  Sentido  das  Raças  e 
Para Compreender o Islão, de Frithjof Schuon; A Arte Sagrada de Shakespeare, de Martin Lings, e Cartas do diabo ao 
seu  aprendiz,  de  C.  S.  Lewis. Nos  Estados  Unidos,  co‐editou,  com  Alberto  V.  Queiroz,  Remembering  in  a  World  of 
Forgetting:  Thoughts  on  Tradition  and  post‐modernism,  colectânea  de  ensaios  do  escritor  perenialista  britânico 
William Stoddart publicado pela World Wisdom Books. 

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Breves notas sobre os autores 
 

William Stoddart 

William Stoddart nasceu em 1925 na vila de Carstairs no Sul da Escócia. Os seus estudos iniciais foram sobretudo 
dedicados  às  línguas  modernas,  tendo  estudado  Francês,  Alemão  e  Espanhol  na  Universidade  de  Glasgow.  Ainda 
nesta  Universidade  acabou  por  mudar  para  medicina,  tendo  posteriormente  frequentado  as  Universidades  de 
Edimburgo e Dublin. 
Com o decorrer da sua vida viria a entregar‐se ao estudo das grandes tradições religiosas do mundo, em grande 
parte  devido  ao  seu  encontro  com  os  trabalhos  de  Coomaraswamy,  Guénon  e  Schuon,  viajando  extensivamente 
pela Europa, Norte de África, Turquia, Índia e Ceilão. 
Foi autor de três livros: Hinduism and its Spiritual Masters, Outline of Budhism e Sufism: The Mystical Doctrines 
and Methods of Islam, e contribui com diversos artigos para prestigiadas revistas da especialidade. Foi ainda editor 
assistente  da  publicação  Studies  in  Comparative  Religion  durante  vários  anos.  Os  seus  livros  e  ensaios  são 
reconhecidos pela sua clareza e, em particular, pelo seu carácter “sintético”, ou melhor, “essencialista”.  
Teve ainda um papel fundamental na tradução de numerosos livros, salientando‐se as suas traduções das obras 
de Frithjof Schuon e Titus Burckhardt. 
 

Sabedoria Perene 3  123 

 
Breves notas sobre os autores 
 

 
 

Sabedoria Perene 3  124 

 
 

 
 
Cântico do Sol 
 
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor, 
Teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. 
Só a ti, Altíssimo, são devidos; e homem algum é digno de te mencionar. 
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, 
Especialmente o Senhor Irmão Sol, que clareia o dia, e com sua luz nos alumia 
E ele é belo e radiante com grande esplendor: de ti, Altíssimo, é a imagem. 
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas, 
Que no céu formaste claras e preciosas e belas. 
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento, 
Pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo pelo qual às tuas criaturas dás sustento. 
Louvado sejas, meu Senhor pela irmã Água, que é mui útil e humilde e preciosa e casta. 
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo pelo qual iluminas a noite. 
E ele é belo e jucundo e vigoroso e forte. 
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa mãe Terra, que nos sustenta e governa,  
e produz frutos diversos com coloridas flores e ervas. 
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor, e suportam enfermidades e tribulações. 
Bem‐aventurados os que sustentam a paz, que por ti, Altíssimo, serão coroados. 
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã Morte corporal, da qual homem algum pode escapar:  
Ai dos que morrerem em pecado mortal. 
Felizes os que ela achar conformes à tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal. 
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai‐lhe graças, e servi‐o com grande humildade. 
 
S. Francisco de Assis 
 

 
 

 
 

 
 

SABEDORIA PERENE 
REVISTA DEDICADA AO ESTUDO DAS DOUTRINAS TRADICIONAIS E DA SOPHIA PERENNIS 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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