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Revista Brasileira 72 - CICLO NOVENTA ANOS DE ARTE MODERNA - Eucanaã PDF
Revista Brasileira 72 - CICLO NOVENTA ANOS DE ARTE MODERNA - Eucanaã PDF
d e a rt e m o d e r na ”
A proposta modernista:
ruptura cultural *
Euca na ã Fe r r a z Poeta, autor de,
entre outros, Rua
do mundo (2004),
Cinemateca (2008)
e Sentimental
(2012). Também
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Eucanaã Fer raz
Mas demoraria até que a “revelação” ganhasse sua forma literária. Momen-
taneamente, tudo não passava de “um fenômeno estritamente sentimental,
uma intuição divinatória, um... estado de poesia”5. Quanto ao atraso das letras
em relação às formas que acabavam de descobrir, é igualmente conhecida ou-
tra recordação de Mário:
3 Idem.
4 Idem, p. 232.
5 Idem.
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A proposta moder nista: ruptura cultural
É bem esta a direção tomada por Aracy Amaral no livro Artes plásticas na
Semana de 22. Porém, diante de sua convicção de que os artistas plásticos foram
6 Idem.
7 Idem,
p. 233.
8 Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna, 5.a ed.,
Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1978, p. 114.
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Eucanaã Fer raz
Para o crítico, o correto seria “admitir que artes plásticas, poesia e prosa
se misturaram, sem predominância, no caldeirão do modernismo iniciático
(...)”.10
É curioso que Inojosa se refira à leitura de Pauliceia desvairada no Rio de
Janeiro e não faça menção à conferência de seu autor em 1942. Também seria
preciso considerar que, anterior à leitura do livro, está, obviamente, sua gê-
nese, e que esta, segundo Mário de Andrade, se deveu às telas expressionistas
de Anita Malfatti e à “Cabeça de Cristo”, de Brecheret. Quanto ao fato de a
caravana paulista – composta por Mário, Oswald e Armando Pamplona – não
ter levado quadros e esculturas para o Rio, pode-se imaginar a dificuldade de
tal empresa, tornando-se também dispensável a presença de pintores ou es-
cultores. Além disso, Pauliceia desvairada parecia ser, e o foi, de fato, uma síntese
9 Joaquim Inojosa, “Artes plásticas”, texto datado de 24.11.1971, publicado em Os Andrades e outros
aspectos do modernismo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, pp. 116-117.
10 Idem, p. 117.
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A proposta moder nista: ruptura cultural
“(...) o alarido foi bem maior que o escândalo que os trabalhos mos-
traram. Contudo, as artes visuais não se apresentaram sós, e a fúria dos
passadistas se ergueu contra o movimento em si e pelo conjunto das dis-
sonâncias que assinalou em relação às manifestações artísticas consagradas
até então, fosse música, fosse pintura e escultura e poesia.”11
11 Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22; subsídios para uma história da renovação das artes no
p. 30.
13 Op. cit, p. 43.
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Eucanaã Fer raz
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A proposta moder nista: ruptura cultural
notícias, sem emitir opinião própria”19. É estranho que Wilson Martins iguale
as duas reações, substituindo, na segunda, a carga negativa por uma positivida-
de auspiciosa. Mais inusitado ainda é que o crítico tenha avaliado o texto de
Monteiro Lobato como estando “dentro dos limites normais de uma crítica
desfavorável”. Era preciso observar, em primeiro lugar, a completa ignorância
de Lobato. Não vale a pena citar as gaiatices de maior ou menor violência,
mas passagens de conservadorismo inculto como esta:
19 Idem.
20 Idem, p. 53.
21 Idem, p. 55.
22 Idem, p. 60. É preciso, a esta altura, resistirmos à vontade de acompanhar passo a passo as análises de
Wilson Martins, plenas de mal-entendidos, nascidos talvez de uma vontade de recolocar as consagradas
leituras do Modernismo sob um certo olhar desmistificador. O resultado, no entanto, não raro é a má
vontade e o equívoco.
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A proposta moder nista: ruptura cultural
25 Plínio Salgado, “A poesia em São Paulo – Breves apontamentos sobre os vivos”, Ilustração Brasileira, Rio
de Janeiro, n.o 28, 22.09.1922. In.: 22 por 22: a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contempo-
râneos, org. Maria Eugênia Boaventura, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 325.
26 Idem, p. 326.
27 Idem, p. 327.
28 Idem.
29 Idem.
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Eucanaã Fer raz
Diante de tal quadro, Salgado defende que o crítico “não poderá passar de
um anotador.”31 Seguindo este preceito, passa a comentar brevemente as obras
de 45 poetas. Entre eles, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia – vis-
tos com reservas e alguma ironia –, Cassiano Ricardo, que estaria “entre os
parnasianos rebuscados”, e, por último, Mário de Andrade:
A ainda:
30 Idem.
31 Idem, p. 328.
32 Idem, p. 341.
33 Idem. O livro transcreve “expressões bem namoradas”
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A proposta moder nista: ruptura cultural
“Para mim, bem entendido, o salão é uma galeria grotesca aonde vou
mais para exercer o senso humorístico. Não me pode interessar de outra
maneira aquela exibição de um monótono realismo anedótico.”35
E, adiante, acrescenta:
34 Na pintura, o Impressionismo quase sempre era até onde iam esses artistas em suas fugas para longe
dos moldes acadêmicos. Uma pintora como Georgina de Albuquerque é um caso exemplar, seja por
seu papel pioneiro ao lado do marido, Lucílio de Albuquerque, quando praticamente inauguraram o
Impressionismo em terras brasileiras, o que significou uma forte reação à pintura acadêmica, seja pela
permanência dentro dos limites do Impressionismo até sua morte, em 1962.
35 Manuel Bandeira, “O Brasil que insiste em pintar”,A Província, 13.09.1928. In.: Crônicas inéditas 1,
1920-1931, Org. Júlio Castañon Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 132.
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36 Idem, p. 133.
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A Escolha – Rita Soliéri
C i c l o “ N o v e n ta a n o s
d e a rt e m o d e r na ”
A proposta modernista:
a revolução na palavra *
Adri ano E s p í no la Autor, entre
outros livros, de
Praia provisória
(Prêmio ABL de
Poesia, 2007),
A palavra é metade de quem a pronuncia, metade de quem a escuta. As artes de enganar: as
máscaras de Gregório
Montaigne
de Matos (ensaio)
S
e Malindrânia
e é verdade que toda mudança cultural – na política, no com- (contos). Mestre
em Teoria
portamento, na economia, nas artes, na ciência, na literatura –
Literária e Doutor
passa necessariamente pela palavra, com o nosso Modernismo não em Literatura
poderia ser diferente: os artistas e particularmente os escritores e Brasileira pela
UFRJ, é professor
poetas ligados ou comprometidos com a Semana de Arte Moderna
aposentado da
trataram logo de defender e pôr em prática uma nova política da UFC, tendo
linguagem. ensinando
também na
De modo que o tema que me foi proposto se volta exatamente
Université
para aquilo que é mais central na aguerrida proposta modernista de Stendhal Grenoble
1922: a busca da palavra nova. Isto é, de uma nova linguagem. De III-FR e na UFRJ.
Membro do
novos pactos narrativos e vozes, quer na poesia, quer na ficção, quer
PEN Clube e da
também no ensaio, sobretudo no ensaio interpretativo do Brasil. Academia Carioca
de Letras.
* Conferência proferida em 12 de junho de 2012.
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Adriano Espínola
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mais de Mário de Andrade do que de Mário Sobral – surgia aos olhos de Oswald,
como uma confirmação às suas frustradas tentativas inovadoras”. Eis a estrofe:
os 90 anos da Semana de Arte Moderna, na ABL, que a fez ao término da minha intervenção.
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A proposta moder nista: a revolução na palavra
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou
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O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam.
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A proposta moder nista: a revolução na palavra
Sem dúvida, Bandeira, no seu livro Libertinagem (1930), “vai ao âmago dessa
autêntica linguagem do Brasil, com sua peculiaridade e idiossincrasias, que
espelham o temperamento e a perspectivas individuais da sua sociedade mul-
tirracial”, como sobre ele afirma Giovanni Pontiero (1986:125).
Se Bandeira se volta para celebrar o seu Recife provinciano, “Recife mor-
to, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”, é porque está
consciente de que nas formas de falar regionais se encontra a expressão mais
autêntica da sensibilidade nacional, como, àquela altura, o próprio Moder-
nismo apontava. Não por acaso, Mário de Andrade vai percorrer o Norte e
Nordeste do país, em 1928, para ali colher dados do folclore, da fala, e da
dança para o seu trabalho de escritor, etnólogo e musicólogo.
Pois bem. Vale a pena recordar, nesse sentido, o decerto poema regionalista,
também primitivista e indianista, mais bem-sucedido do Modernismo: Cobra
Norato (escrito em 1928 e publicado em 31), de Raul Bopp. Trata-se, como
se sabe, de um poema que narra as andanças do Cobra Norato – mito ama-
zônico, símbolo do poder criador ou gerador – pela pátria das águas, atrás da
filha da rainha Luzia para casar. Poema rico de imagens de grande intensidade
sensorial, sobretudo visual, no qual a linguagem funciona “como um espelho
(...) onde se refletem as particularidades regionais de toda a língua”, no dizer
de Othon M. Garcia. Um pequeno exemplo: “Aqui um pedaço do mato está
de castigo/Arvorezinhas acocoram-se no charco/Um fio de água atrasada
lambe a lama.”
Saindo do território encharcado e mítico da Amazônia, voltemos nosso
olhar para a região empoeirada e dura do Nordeste, através inicialmente da
poesia, quase prosa, de Jorge de Lima. 2Não do Jorge de Lima acendedor de
lampiões da rua e escultor dos 14 alexandrinos perfeitos, mas do Jorge de
Lima cantor do “Mundo do menino impossível”, que é o Nordeste brasilei-
ro, onde o menino/poeta rejeita brinquedos estrangeiros e trata de brincar
com coisas da sua cultura: sabugos de milho, tacos de pau, cangaceiros de
2 A inserção aqui do poeta Jorge de Lima deve-se à observação crítica do acadêmico Lêdo Ivo, depois
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A proposta moder nista: a revolução na palavra
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
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Adriano Espínola
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Moderno, modernismo,
modernista *
O pes o da S em a na d e A rte Mode r na
n o s o m b ro s da l i t er at ur a b r as ile ir a
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Luís Augusto Fischer
mas também por ela, este que aqui fala se tem ocupado da matéria em vários
níveis, o mais saliente dos quais é um livro, Literatura gaúcha – Formação, História
e Atualidade (Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2003). Mas, ao lado dele, há
ensaios, palpites, cursos de graduação e de pós-graduação, que com alguma
pertinácia e talvez algum acerto giram em torno desse tema.
O tema já rendeu muita reflexão, das mais eufóricas (pelo lado do chamado
regionalismo, em geral aquelas ligadas a movimentos folclóricos ingênuos,
enquanto que, pelo lado dos modernistas, aquelas satisfeitas com o paradig-
ma atual de compreensão da literatura no Brasil) às mais críticas. Aqui, nos
estreitos limites deste ensaio, será abordado pelos dois lados, aparentemente
contraditórios, mas, na verdade, apenas opostos complementares: primeiro, a
postulação da existência do problema que vive em torno do conceito de regio-
nalismo, particularmente na Literatura; segundo, a arguição da centralidade
excessiva que o Modernismo de feição paulistana ocupa na atual descrição da
Literatura e da cultura brasileiras. Vamos tentar os dois, pela ordem. A abor-
dagem, quase escusava dizer, tomará por base a experiência gaúcha (mas não
será exclusiva), por ser a mais familiar para este professor aqui e, não menos,
por ser um caso exemplar do problema.
Vale um mergulho na palavra “moderno”, no centro de nosso problema.
Como se sabe, é daqueles termos que serve para quase qualquer tarefa: ao longo
dos séculos e ao largo da geografia ocidental, tem-se prestado para conteúdos
variados. Sem ir muito longe, lembremos que no mundo hispano-americano se
chama “modernismo” aquela literatura, particularmente aquela poesia, que se
estabeleceu como moda dominante no último quarto do século XIX, na suces-
são da moda romântica. Foi o caso notável de Rubén Darío, o poeta nicaraguen-
se de tanto sucesso em todo o mundo hispânico. Pois bem: o modernismo de
Darío se traduziria, em português brasileiro, como o parnasianismo de Darío,
eis que essa foi a regra estética por ele seguida, de mescla com algum Simbolis-
mo, como era regra entre os bons poetas do período, em geral.
Se recuarmos mais, encontraremos o latim modernus (a,um) em uso desde o sé-
culo IV da Era Cristã, já naquele momento para distinguir entre o que era novo,
daquele momento, e o que era antigo, passado. Uma associação rápida com a
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história aponta para a sincronia entre esse uso e a novidade do Império Romano,
que se cristianizou sob Constantino e, ao que, tudo indica, imediatamente se
reconheceu como algo distinto do passado – como algo moderno. Bem depois,
mas em sentido próximo, vai-se chamar Idade Moderna ao período aberto com
as grandes navegações, no Ocidente, cujo apogeu estético é chamado de Renas-
cimento, em mais um movimento de designação do presente como distinto do
passado, o presente sendo então moderno. (A Idade Moderna é sucedida, na
cronologia dos manuais de história ocidental, pela Idade Contemporânea, cujo
marco inicial é a Revolução Francesa: mais uma nomeação que quer enfatizar a
diferença entre o presente, novo, moderno, e o passado, velho.) Em dimensão de
tempo mais larga, mas na mesma frequência semântica, vai-se chamar Moder-
nidade ao período começado no Renascimento e cujo apogeu teria ocorrido no
século XVIII, mas não se teria encerrado com a Queda da Bastilha; eis que se
vai falar de modernidade no século XIX também.
Bem, chegamos ao Brasil, e aqui deparamos com o termo “modernismo”
para designar um conjunto irregular de novidades estéticas que teriam sido
inauguradas na Semana de Arte Moderna de 1922. Por que em nosso país
calhou de chamar isso de modernismo? Por que aqui não usamos o termo
para a literatura pós-romântica? Sem ir muito longe, lembremos de José Verís-
simo, que em sua História da Literatura Brasileira, de 1916, reservou um capítulo
inteiro, o XV, para o que chama de “O Modernismo”, consistindo este no
movimento de ideias posto em ação pelo Positivismo, o Darwinismo, o Evo-
lucionismo, o “Intelectualismo de Taine” e pelo Socialismo. Essa nomeação,
porém, perdeu força para a tomada da palavra pelos que fizeram a Semana
e/ou a confirmaram criticamente, numa operação bem-sucedida, do ponto
de vista historiográfico, a um ponto tal que hoje ainda parece que a palavra
modernismo nasceu para designar Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
(Atenção lateral mereceria outra discussão: por que a palavra se ligou ape-
nas às posições e práticas estéticas dos paulistas, em prejuízo de algumas ou-
tras atitudes renovadoras que efetivamente ocorreram nas décadas de 1900 a
1930? Por que o melhor Simbolismo é visto como pré-moderno, quando ele é
matriz da, talvez, melhor poesia dita moderna? E o que dizer dos escritores de
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2.
Mas bem, isso são preliminares. Comecemos, mesmo, o raciocínio central
deste ensaio de modo leve e panorâmico: os países sul-americanos de língua
espanhola se reconhecem em sua singularidade, em sua separação, mas tam-
bém em sua base comum, naquilo que compartilham – a língua espanhola,
que veio junto com a colonização, operada a partir de uma mesma metrópole
–, a Espanha. Argentinos sabem quem são e têm seus esquemas mentais para
pensar nos mexicanos, nos chilenos, nos colombianos, nos cubanos; e assim
reciprocamente, numa dimensão que se espalha, se não por todos, pela maio-
ria dos países independentes hispano-americanos (alguma exceção deve ser
computada para países muito pequenos, que nem chegam a ser característicos
de nada, e que, pelo contrário, compartilham com outros as marcas centrais
de sua vida, como será o caso das Antilhas de língua espanhola).
Sabendo que são diversos, sabendo que pertencem a países com fronteira
nacional, com exército, com moeda e com história, eles podem também usu-
fruir um certo grau de compartilhamento de suas singularidades. De alguma
forma, colombianos ganham em saber que são como são e que deram origem
a um escritor como García Márquez e que, simultaneamente, podem ler e,
portanto, aproveitar as experiências de outros países, como a Argentina (mais
verdadeiro seria dizer a Buenos Aires) de Borges, o México, de Rulfo, e assim
por diante. São países distintos unidos pela língua.
O caso brasileiro, agora. A tradição centralista do Estado nacional brasi-
leiro, herdeira do Estado português até mesmo na burocracia pequena e de
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3.
Sei; essa é uma reflexão idealista, no mau sentido da palavra. Pois então vamos
a uma dimensão materialista da coisa. A recente onda de liberalização da econo-
mia brasileira, começada por Collor e mantida, em linhas gerais, por Fernando
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Moder no, moder nismo, moder nista
4.
Uma reflexão que transitasse de modo simplista entre as duas dimensões
aqui apontadas, a cultural e a fiscal-financeira, resultaria numa conclusão cí-
nica e inevitável: bem, estamos finalmente integrados nacionalmente, de for-
ma que agora chega de ilusões autonomistas, numa esfera ou na outra. Sim,
mas então o que fazer com o ensino e a saúde, que são de responsabilidade
do mesmo cofre que não pode cobrar ICMS da exportação e não recebe a
prometida compensação por isso? Mandamos o pessoal pra casa e esperamos
morrerem todos analfabetos?
Ocorre que há mais: mesmo com a centralização estupenda dos tributos,
mesmo com o esvaziamento da capacidade de gestão do governo estadual,
ou talvez por isso mesmo, há entre as pessoas, das mais simples às mais so-
fisticadas, um sentimento de pertencimento a esse mundo, ao mundo sul-
rio-grandense. No plano popular, o que quer dizer no plano do que resta de
singelamente popular e também, majoritariamente, no plano do que já está
integrado à engrenagem do mercado na forma de cultura de massas, nunca
houve tantos Centros de Tradição Gaúcha (CTG), entidades que são como
clubes sociais, de agregação espontânea e voluntária, mas que apresentam a
singularidade de serem dedicados ao cultivo de certas tradições (modos de
vestir e de dançar, modos de preparar comidas representativas etc.), que são
condificadas e controladas por várias instâncias de organização. Nunca houve
tanta ênfase nos desfiles chamados de Farroupilhas, realizados nos dias 20 de
setembro, marca inicial da guerra iniciada em 1835 e data da proclamação da
República do Piratini, em 1836: no Rio Grande do Sul, tais desfiles são mais
entusiasmados do que os de 7 de setembro, a data da Independência brasi-
leira. Há festivais de música chamada de nativista ou regionalista, de música
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que lê alguma poesia, canta algumas canções, dança; gente comum, para dizer
de modo simples e abreviado.
A mesma visão cínica diria, cortando a conversa, que, bem, assim é, os
simples vivem subordinados à indústria cultural, que nesse caso guarda certa
proximidade com um movimento de raízes folclóricas; tudo isso, no entanto,
sendo destinado à grande lixeira geral da cultura de massas de nosso tempo.
De acordo, digo eu, em termos amplos; mas, à parte a dimensão humana que
pode ser salientada nisso tudo, vale a pena sublinhar que talvez essa modalida-
de de cultura trivial seja menos idiota do que, por exemplo, aquela que tomou
conta do interior de São Paulo, e não só ali, aquela modalidade de reversão
histórica em que saiu o caipira, tragado pela voragem do mercado e sem algo
como um Centro de Tradições Caipiras, e foi substituído pelo caipira texano,
já de butique, já industrializado, que vem com o modelo de rodeio, de baile,
de chapéu e mesmo de sotaque mental, por assim dizer.
5.
A intenção não é fazer um campeonato de horrores, em que no fim das
contas só há perdedores, mas de pensar a partir de alguns dados constatáveis,
como esses aí de cima, que, por certo, poderiam ser replicados por outros
referentes ao mundo pernambucano, ao mundo goiano, talvez a tantos mais,
certamente a várias das culturas – passe o termo – regionais do Brasil. Em
cada uma delas, haverá casos similares, em que itens da identidade cultural
são fortes entre a gente mais simples intelectualmente e apresentam vigência
mesmo em patamares refinados de percepção e de produção cultural.
Agora migremos em direção ao mundo da produção cultural mais sofis-
ticada, para continuar pensando no tema. O que se verifica nele, seja no Rio
Grande do Sul ou em Pernambuco, mas também noutras das regiões brasi-
leiras, é a permanência das referências locais, algumas delas bem próximas
àquele mundo da cultura popular e/ou massiva. Naturalmente há, em Porto
Alegre ou no Recife, artistas que se movimentam esteticamente em patamares
alheios aos temas e pressões locais, artistas para quem faria pouca diferença
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(a única arte, nos casos delirantes) válida. O prezado leitor percebeu aqui o
mecanismo básico da perpetuação da nefasta categoria “regionalismo”?
6.
Se o leitor for rápido no gatilho, vai jogar no meu metafórico rosto algu-
mas contestações, especialmente esta: que Guimarães Rosa, ao contrário da
massa de escritores de tema rural, parece regionalista mas não é, porque ele,
argumentará meu leitor, transcendeu os dados regionais para alcançar o uni-
versal (isso se o leitor for dado à metafísica); porque ele, argumentará o leitor,
remexeu no esterco regionalista mas teve – olha aí – teve atitude de vanguarda,
adequada, ao recriar a linguagem e tal; porque ele, argumentará meu leitor em
caso de ser um modernistocêntrico assumido, fez o que os grandes inovadores
do século XX fizeram, como Joyce. Nem vai adiantar em argumentar com ele
que Rosa aprendeu parte do que inventou não com a vanguarda europeia, mas
com gente nativa que havia experimentado procedimentos inovadores, como
por exemplo Simões Lopes Neto. Não vai adiantar porque a visão que esposa
meu hipotético antagonista determinou que o que é bom deriva daquela equa-
ção, acima exposta, e portanto outras hipóteses simplesmente não existem.
Pois bem: eu queria, mesmo assim, deixar aqui uma sugestão, nem que seja
como matéria para uma conversa frouxa, de bar, uma hora dessas. Que é a
seguinte: antes de mais nada, preste um pouco de atenção à faca com que está
sendo fatiada a História da Literatura Brasileira, e veja que ela existe, para co-
meço de conversa; depois tente avaliar a natureza dessa faca, o ângulo de corte
que ela opera; depois tente retornar para a Literatura Brasileira ela mesma,
quero dizer, para os livros, os importantes e os não importantes, e tente ver
se eles não seriam mais bem descritos segundo outras fatias, mediante outros
recortes, com o uso de outra faca.
Tenho até mesmo uma sugestão prática para oferecer: enumere, como exer-
cício, os romances, para ficar em um gênero apenas, e gênero forte na tradição
brasileira, ou mais amplamente nos relatos narrativos, incluindo os contos,
mas prestando atenção aos relatos que se ocupam da Cidade e do Centro e, ao
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7.
Por isto essa conversa toda: para tentar dizer que o que se chama de regio-
nalismo, seja por que lado se tome, merece ser submetido a uma leitura mais
histórica, a uma leitura rigorosamente materialista, para além das idealidades
que tantas vezes têm impedido sua mera visibilidade. Ah, sim, ia faltando eu
dizer o nome da idealidade, da fantasia idealista mais problemática que atua
no discurso crítico, pedagógico, historiográfico, sobre a Literatura e a cultura
brasileiras, há já algum tempo: o nome dessa idealidade que merece ser varrida
para a lata de lixo do pensamento crítico, em companhia da outra idealidade
(negativa) que é “regionalismo”, é...
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Moder no, moder nismo, moder nista
PS: Tenho um outro argumento para integrar nessa conversa, mas não achei
tempo nem caminho lógico para harmonizar sua entrada. É o seguinte: para
além ou para aquém de tantas razões para pensar melhor no dito regionalis-
mo, em qualquer sentido da palavra (a categoria descritiva, o preconceito, as
produções qualificadas com esse rótulo etc.), há uma, bem singela, que pode
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Luís Augusto Fischer
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C i c l o “ N o v e n ta a n o s
d e a rt e m o d e r na ”
ȄȄ Introdução
Passados 90 anos desde a realização da Semana de Arte Moderna
de 1922, os muitos juízos críticos emitidos sobre o acontecimento
e suas decorrências deixam pouco a dizer sobre a sua significação e
representatividade. Retomar o tema é correr o risco da reiteração.
Diante do tema que me coube neste Ciclo, arrisco-me. Desneces-
sário advertir que, basicamente, direi o dito.
Alguma singularidade, se existir nesta fala, será devida à dinâ-
mica que impulsiona as águas da cultura, à subjetividade do olhar
do observador e à forma de apresentação. Mudam-se os tempos,
mudam-se as verdades.
Justifica-me uma constatação tridimensionada: o pensamento
navega num oceano de interpretações; a verdade não tem centro e
viver é compartilhar discursos.
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Domício Proença Filho
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ȄȄ O saldo da Semana
E o que fica, o que resta da festa de fevereiro?
Sintetizo, didaticamente, com o risco do reducionismo e sem a pretensão
de esgotar o alcance da auditoria.
1. O impacto do choque: aos artistas e aos conferencistas coube abalar os
alicerces do comodismo, mobilizar reações.
2. A mobilização da consciência da ruptura com a tradição. A proposta,
como destaca Afrânio Coutinho, alicerçava-se num espírito polêmico e des-
truidor. Preconizava o abandono de “uma arte artificial, produzida à custa de
imitação estrangeira”, a “demolição de ‘uma ordem social e política fictícia,
colonial’”. O alvo imediato eram as manifestações parnasianas dominantes no
gosto comunitário. O poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, e a “Ode ao
burguês”, de Mário de Andrade, são, nessa direção, significativos. Observe-se
que o primeiro se vale de verso tradicional e se permite a rima.
3. A abertura para o novo. A Semana emerge sob a égide do Futurismo de Ma-
rinetti. O repúdio, entretanto, não tardará. Na verdade, pretende-se a eleição do
moderno como um valor em si mesmo, embora “moderno”, na época, carecesse
de significação mais precisa, sobretudo em termos de avaliação literária.
4. A proposta da busca de originalidade a qualquer preço, o que implicava
a autonomia da obra de arte e a autonomia do artista. Ambos libertam-se da
vinculação ao referente e às modelizações preestabelecidas.
5. A pregação da liberdade ampla no uso da língua-suporte da manifesta-
ção literária. O tópico não se concretizou em plenitude. A coerção social e
o condicionamento foram mais poderosos. Voltarei ao assunto, enunciados
adiante.
6. A fragmentação e a constituição de correntes aglutinadoras, na procura
dos caminhos do novo. Atingidos os objetivos propugnados, o grupo que
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ȄȄ O legado
O legado é esse terreno fértil, pronto para ser trabalhado. É o que acon-
tece. Ele se amplifica concretizado nas decorrências das propostas e do seu
desenvolvimento e, por força da ampla liberdade preconizada, largamente as
ultrapassa.
Essa amplitude da herança perpassa a vasta produção artística nos pri-
meiros 30 anos após a Semana, cuja avaliação foi objeto da famosa confe-
rência de Mário de Andrade, no Itamarati, em 1942, publicada na edição
da Martins dos Aspectos da Literatura Brasileira, citada e comentada ao longo
deste Ciclo.
Entendo que se estende, marcado pela sedimentação, até a atualidade do
alvorecer do século XXI. Essa permanência justifica a revisita, na comemora-
ção dos seus 90 anos.
Culmina, se me é permitido categorizar, na instauração de uma Tradição
modernista revisitada.
E tudo isso se verifica a médio e longo prazos, estabilizadas e pouco a pouco as-
similadas as propostas. É extremamente lento o processo assimilatório do novo.
O texto avaliatório de Mário dá, a propósito, a primeira medida do resul-
tado do balanço.
Na retrospectiva do movimento de que foi uma das lideranças mais atuan-
tes, ele define o que pode ser considerado uma espécie de cânon da poética do
Modernismo então sedimentado, mas, em termos de incorporação comunitá-
ria, ainda objeto de forte resistência.
Na avaliação de Mário, seja-me permitido reiterar, o multifacetado estilo
epocal caracterizou-se pela “fusão de três princípios fundamentais”: o “direi-
to à pesquisa estética”; a “atualização da inteligência artística brasileira”; “a
estabilização de uma consciência criadora nacional”.
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Verdade que se trata de um movimento difuso, uma geleia geral, embora com
um pano de fundo ideológico comum.
Nas pegadas da liberação do Tropicalismo, a chamada poesia marginal,
marcada por procedimentos que começaram a proliferar significativamente
nos anos de 1970, assumido basicamente por jovens, exibe uma produção,
variada e irregular. Caracteriza-a um retorno à preocupação conteudística e
ao coloquialismo , com ampla liberdade de expressão e retomada dos cami-
nhos abertos pelos modernistas de 22 , na direção da valorização poética
do cotidiano, do discursivo quase prosa, do predomínio da expressão sobre
a construção. Evidencia-se ainda um afastamento da linha esteticista e do
formalismo.
São movimentos que permaneceram vanguarda, mas que pontuam signifi-
cativamente o processo da Literatura Brasileira.
Todos tiveram seus momentos de impacto, todos dialogaram criticamente
com os posicionamentos modernistas, ponto de referência comum.
Na dinâmica do processo, decorridos 90 anos da Semana, o movimento dela
decorrente culmina com a instauração de uma tradição modernista na Litera-
tura Brasileira, de forte presença na contemporaneidade. Esclareça-se que essa
tradição se insere, insisto, numa realidade multifacetada.
Em paralelo, o convívio com linhas de força que perpassam o processo
literário: em poesia, a tradição do verso medido, da rima, da imagística de
base objetiva; em prosa, a permanência revitalizada dos modelos realistas-
naturalistas do Oitocentos.
Marcas modernistas sedimentadas ganham vulto em dezenas de autores.
Desde traços das tendências iniciais, com experiências – na fronteira dos li-
mites entre o verso e a prosa, até as preocupações metafísicas e o equilíbrio
formal da estabilidade do movimento.
Os textos acrescentam-se de novas dimensões, caracterizadoras de singula-
rização, notadamente no nível do enfoque da realidade poetizada. Mas o verso
livre, os traços do humor, a valorização poética do cotidiano, o vezo metalin-
guístico, a preocupação existencial ao lado da perspectiva crítica em relação à
realidade brasileira, esta em menor escala, continuam elementos marcantes.
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