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WALZER, Michael. Philosophy and Democracy. Political Theory, Vol. 9, No. 3 (Aug., 1981), pp.
379-399. Texto traduzido pelo professor da disciplina para fins didáticos.
práticas e instituições. Wittgenstein está afirmando um distanciamento mais radical. O
filósofo é e deve ser um forasteiro (outsider); permanecendo separado, não
ocasionalmente (em julgamento), mas sistematicamente (em pensamento). Eu não sei se
o filósofo precisa ser um forasteiro político. Wittgenstein diz qualquer comunidade e o
Estado (pólis, república, país, reino ou seja o que for) é certamente uma comunidade de
ideias. Naturalmente, as comunidades das quais o filósofo, mais importantemente, não é
um cidadão, podem ser maiores ou menores do que o Estado. Isto dependerá daquilo
sobre o que ele filosofa. Mas se ele é um filósofo político – que não é o que
Wittgenstein tinha em mente – então o Estado é a mais provável comunidade da qual ele
terá que se distanciar, não fisicamente, mas intelectual e, em certa visão da moralidade,
moralmente.
Uma rápida comparação pode ser útil aqui. Poetas têm sua própria tradição de
retirada e compromisso, mas retirada radical não é comum entre eles. Alguém poderia
plausivelmente colocar ao lado das frases de Wittgenstein, as seguintes linhas de C. P
Cavafy, escritas para consolar um jovem poeta que conseguiu, depois de um grande
esforço, terminar um único poema. Isso, Cavafy diz, é um primeiro passo, e não
pequena realização:
A poet's hope:
to be like some valley cheese,
local, but prized elsewhere.vii
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A alegação do filósofo em tal caso é que ele conhece “o modelo estabelecido nos
céus.” Ele sabe o que deve ser feito. Ele só não pode fazê-lo ele mesmo e, então, deve
buscar um instrumento político. Um príncipe maleável é, por razões práticas óbvias, o
melhor instrumento possível. Mas, a princípio, qualquer instrumento servirá – uma
aristocracia, uma vanguarda, um serviço público, mesmo o povo servirá, à medida que
seus membros são comprometidos com a verdade filosófica e possuidores do poder
soberano. Porém, claramente, o povo levanta as maiores dificuldades. Se ele não é um
monstro de muitas cabeças, ao menos tem muitas cabeças, difíceis de educar e que
provavelmente discordarão entre si. O instrumento filosófico também não pode ser uma
maioria entre o povo, já que maiorias, em qualquer democracia genuína, são
temporárias, inconstantes, instáveis. A verdade é uma, mas as pessoas têm muitas
opiniões; a verdade é eterna, mas as pessoas mudam suas opiniões continuamente. Aqui
está, em sua forma mais simples, a tensão entre Filosofia e Democracia.
Claramente, estas duas primeiras restrições abrem o caminho para algum tipo de
revisão da tomada de decisões popular, algum tipo de cumprimento, contra o povo se
necessário, de não-discriminação e de lutas democráticas. Qualquer um que aplique esta
revisão e este cumprimento terá que fazer julgamentos sobre o caráter discriminatório
de peças particulares da legislação e sobre o significado, para a política democrática, de
restrições particulares sobre a liberdade de expressão, reunião e assim por diante. Mas
estes julgamentos, ainda que eu não queira subestimar sua importância nem suas
dificuldades, serão relativamente limitados em seus efeitos comparados ao tipo de coisa
exigido pela terceira restrição. E é a terceira restrição que eu quero focar, já que não
acredito que filósofos da tradição heroica possam se satisfazer com as duas primeiras.
Assim, em terceiro, as pessoas devem desejar o que é certo. Segundo Rousseau, devem
desejar o bem comum e, ele segue adiante argumentando, as pessoas desejarão o bem
comum se elas forem um verdadeiro povo, uma comunidade, e não uma mera coleção
de indivíduos egoístas e grupos corporativos.xiv Aqui, a ideia parece ser a de que exista
um conjunto singular – ainda que não necessariamente um conjunto exaustivo - de leis
corretas ou justas que as pessoas reunidas, os eleitores ou seus representantes, podem
não obter corretamente. Com frequência suficiente, elas obtêm-no incorretamente e,
assim, elas requerem a guia de um legislador ou a restrição de um juiz. O legislador de
Rousseau é simplesmente o filósofo com veste heroica e, ainda que Rousseau lhe negue
o direito a coagir o povo, ele insiste sobre seu direito a iludir o povo. O legislador fala
em nome de Deus, não da Filosofia. xv Pode-se buscar por um engano paralelo entre
juízes contemporâneos. Em todo caso, esta terceira restrição claramente levanta as
questões mais sérias sobre o argumento fundamental de Rousseau, segundo o qual a
legitimidade política repousa sobre a vontade (consentimento) e não sobre a razão
(correção).
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(1) Eu concluo que A é a política que o povo deveria escolher para implementação.
Então, não haveria nada incoerente em dizer:
(3) Desde que o povo não escolheu A, mas escolheu B em vez disso, eu agora concluo
que B deve ser implementado.
Isso não é muito interessante, mas é consistente, e eu penso que faz sentido na
posição democrática. O que subjaz à versão de Wollheim do primeiro passo é um
argumento filosófico e provavelmente antidemocrático, que tem essa forma:
(1) Eu concluo que A é a política correta, e que ela deve ser implementada porque é a
correta.
Mas não é de todo óbvio que a correção de uma política é a razão certa para
implementá-la. Ela pode ser a razão certa apenas para esperar que ela será
implementada e, assim, para defendê-la na assembleia. Suponha-se que existisse um
sistema de implementação “aperte o botão” e que os dois botões, marcando A e B,
estivessem na minha mesa. Qual botão eu devo apertar e por quais razões? Certamente
eu não poderia apertar A simplesmente porque eu decidi que A é o correto. Quem sou
eu? Como um cidadão de uma comunidade democrática, eu devo esperar a decisão das
pessoas, que têm o direito a decidir. E então, se as pessoas escolhem B, não é o caso que
eu enfrente uma escolha existencial, onde meus argumentos filosóficos apontam para A
e meus compromissos democráticos apontam para B, e não haja nenhuma maneira de
decidir entre eles. Existe uma maneira de decidir.
A distinção que eu estou tentando traçar aqui, entre ter um direito a decidir e
conhecer a decisão correta, pode ser descrita em termos de justiça processual e
substantiva. Democratas, pode-se dizer, estão comprometidos com a justiça processual e
podem esperar apenas que os resultados de processos justos serão também
substancialmente justos. Mas eu estou relutante em aceitar essa formulação, porque a
fronteira entre procedimento e substância parece menos clara do que ela sugere. O que
está em disputa nas discussões sobre justiça processual é a distribuição de poder, e isso
é certamente um assunto substantivo. Nenhum arranjo processual pode ser defendido
exceto por algum argumento substantivo, e cada argumento substantivo (em Filosofia
Política) produz também algum arranjo processual. A democracia repousa, como eu já
sugeri, em um argumento sobre liberdade e obrigação política. Por isso, não é apenas o
caso que as pessoas têm um direito processual a fazer as leis. Na perspectiva
democrática, é direito que elas façam as leis – mesmo se elas as fizerem erroneamente.
Contra essa visão, o filósofo heroico pode argumentar que nunca pode ser certo
fazer errado (não, pelo menos, uma vez que nós sabemos ou podemos saber o que é
correto). Isso é também, pelo menos de forma incipiente, um argumento sobre a
distribuição de poder político e ele tem duas implicações. Primeira, que o poder do povo
deve ser limitado pela correção do que ele faz; segunda, que alguém mais deve ser
habilitado para revisar o que o povo faz e se envolver quando ele se move para além
daqueles limites. Quem mais? Em princípio, eu suponho, qualquer um que sabe a
verdade sobre a correção. Mas, na prática, em qualquer ordem política em curso, terá
que ser encontrado algum grupo de pessoas que se pode presumir saber a verdade,
melhor ou de forma mais consistente do que o povo como um todo. Então, a esse grupo
será concedido um direito processual a intervir, baseado em um argumento substantivo
sobre conhecimento e verdade moral.
Hoje, nos EUA, é evidente que algo como este papel tem sido atribuído aos nove
juízes da Suprema Corte. Esta atribuição é mais claramente demonstrada no trabalho de
um grupo de professores de Direito contemporâneos, todos os quais também são
filósofos ou, ao menos, muito influenciados pela Filosofia Política. xviii De fato, o
renascimento da Filosofia Política vem tendo seu impacto mais dramático nas escolas
de Direito – e por uma razão que não é difícil decifrar. Em uma democracia
estabelecida, com nenhuma revolução em perspectiva, juízes são o instrumento mais
provável para reforma filosófica. Naturalmente, o papel convencional dos juízes da
Suprema Corte não se estende além da aplicação de uma constituição escrita, que
repousa sobre consentimento democrático e é sujeita à emenda democrática. E mesmo
quando os juízes agem de modo que vai além de sustentar a integridade textual da
constituição, geralmente, eles não alegam uma compreensão especial da verdade e da
correção, mas se referem, em vez disto, a precedentes históricos, a princípios legais há
muito estabelecidos ou a valores comuns. Todavia, o lugar que eles ocupam e o poder
que têm tornam possível para eles impor restrições filosóficas sobre a escolha
democrática. E eles estão prontamente disponíveis (como as pessoas não estão) para
instrução filosófica quanto à natureza daquelas restrições. Aqui, estou preocupado com
juízes somente na medida em que estão de fato instruídos – e com filósofos antes de
juízes, porque vários daqueles parecem tão prontos para fornecer as instruções. A tensão
entre revisão judicial e democracia é diretamente paralela à tensão entre Filosofia e
democracia. Mas a segunda é a tensão mais profunda, pois é provável que os juízes
expandam seus direitos constitucionais ou apoiem um programa de expansão somente
quando eles estão agarrados em uma doutrina filosófica.
2
No caso do Brasil, os indicados ao STF passam por processo semelhante, uma “sabatina” no Senado Federal,
prevista na Constituição Federal com o nome de arguição pública (art. 52, III). Se aprovado, o indicado é nomeado
pelo Presidente da República (Art. 101, parágrafo único, da CF).
houvesse outra pessoa presente, ela seria idêntica ao filósofo, sujeita às mesmas
restrições e, então, levada a dizer as mesmas coisas e a se mover em direção às mesmas
conclusões. Ou ela seria uma pessoa particular, com características e opiniões
historicamente derivadas e, então, sua presença enfraqueceria a universalidade do
argumento.
O filósofo retorna de seu retiro com conclusões que são diferentes das
conclusões de qualquer debate democrático real. Ao menos elas têm, ou ele alega para
elas, um status diferente. Elas corporificam o que é certo, quer dizer, para nossos
propósitos atuais, elas foram acordadas por um conjunto de representantes ideais,
enquanto que conclusões obtidas através de debate democrático são acordadas
meramente pelo povo ou por seus representantes reais. O povo ou seus representantes
podem, então, ser convidados a revisar suas próprias conclusões à luz do trabalho do
filósofo. Eu suponho que este convite seja implicitamente estendido a cada vez que um
filósofo publica um livro. No momento da publicação, ao menos, ele é um democrata
adequado: seu livro é um dom para o povo. Mas o dom raramente é apreciado. Na arena
política, as verdades do filósofo provavelmente se tornarão mais um conjunto de
opiniões, experimentadas, discutidas, parcialmente adotadas e parcialmente rejeitadas
ou ignoradas. Juízes, por outro lado, podem bem ser persuadidos a dar um tipo de escuta
diferente ao filósofo. Seu papel especial na comunidade democrática é ligado, como já
disse, à sua reflexividade e esta é uma postura filosófica: o status judicial só pode ser
aperfeiçoado por um pouco de Filosofia. Entretanto, juízes estão admiravelmente
colocados para mediarem entre as opiniões (temporariamente) estabelecidas na arena
democrática e as verdades descobertas na comunidade ideal. Através da arte da
interpretação, eles podem fazer o que o legislador de Rousseau faz através da arte
divinatória. xx
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Esse tipo de coisa seria mais fácil para democratas comprometidos se a lista
expandida dos direitos fosse incorporada à constituição através de um processo de
alteração popularmente controlado. Então, existiria alguma base democrática para o
novo poder (não democrático) dos filósofos e juízes. As pessoas, eu penso, seriam mal
aconselhadas a concordar com tal incorporação e a renunciar a tão grande parte de sua
autoridade do dia-a-dia. No Estado moderno, entretanto, essa autoridade é exercida tão
indiretamente – ela está tão distante, de fato, de ser autoridade do dia-a-dia – que eles
poderiam sentir a renúncia como uma questão menor. Os direitos que eles ganham
como indivíduos (nesse caso, os serviços de bem-estar de uma burocracia benevolente)
poderiam, em sua visão, prevalecer de longe sobre os direitos que eles perderiam como
membros. Assim, não é implausível imaginar o estabelecimento constitucional de algo
como, digamos, os dois princípios da justiça de Rawls. xxv Então, a inteira área de justiça
redistributiva irá efetivamente ser entregue às cortes. Que série de decisões eles teriam
que fazer! Imagine um pedido de ação coletiva testando o significado do princípio da
diferença. Os juízes teriam que decidir se a classe representada na ação era realmente
aquela com maior desvantagem na sociedade (ou se todos ou o suficiente dos seus
membros cairiam nessa classe). E, se fossem, os juízes teriam então que decidir que
direitos se seguem do princípio da diferença sob as condições materiais que estariam
atualmente prevalecendo. Sem dúvida, eles seriam levados a consultar especialistas e
autoridades para tomar essas decisões. Contudo, faria pouco sentido para eles consultar
a legislatura para essas questões, pois se direitos estão realmente em questão, tem de
haver uma resposta correta – e essa resposta é mais provavelmente conhecida por
filósofos, juízes, especialistas e autoridades do que pelos cidadãos ordinários ou por
seus representantes políticos. xxvi
“O filósofo não é cidadão de qualquer comunidade de ideias. É isto que faz dele
um filósofo.” Eu tomo estas frases como significando que o filósofo político deve se
separar da comunidade política, soltar-se de seus laços afetivos e ideias convencionais.
Somente então ele pode indagar e lutar para responder as mais profundas questões,
sobre o significado e o propósito da associação política e sobre a estrutura apropriada da
comunidade (de toda comunidade) e de seu governo. Este tipo de conhecimento só é
possível a partir do exterior. No interior, outro tipo de conhecimento está disponível,
mais limitado, mais particular em seu caráter. Eu o chamarei de conhecimento político,
em vez de filosófico. Ele responde às questões: Quais são o significado e o propósito
desta associação? Qual é a estrutura apropriada de nossa comunidade e nosso governo?
Mesmo se presumirmos que há respostas corretas a essas últimas questões (e é duvidoso
que as questões particulares tenham respostas corretas, ainda que as questões gerais
tenham), é o caso que haverá, todavia, tantas respostas corretas quanto há comunidades.
Fora das comunidades, entretanto, há apenas uma resposta correta. Há muitas cavernas,
mas apenas um sol, assim, o conhecimento político é de caráter particular e pluralista,
enquanto o conhecimento filosófico é universalista e singular. Então, o sucesso político
dos filósofos teria o efeito de compelir a uma verdade singular em detrimento de uma
pluralista, isto é, de reiterar a estrutura da comunidade ideal em cada comunidade
previamente particularista. Imagine-se não um, mas doze reis filósofos: seus reinos
seriam identicamente formados e governados, exceto por aqueles ajustes exigidos por
uma geografia inerradicavelmente particularista (se Deus fosse um rei filósofo, Ele teria
distribuído a cada comunidade um conjunto idêntico ou equivalente de condições
geográficas). O caso seria o mesmo com uma dúzia de comunidades fundadas na
posição original. E seria novamente o mesmo com uma dúzia de comunidades formadas
por comunicação não distorcida entre um conjunto idealizado de membros: pois é um
aspecto da comunicação não distorcida, enquanto distinta da conversa ordinária, que
apenas umas poucas coisas possam ser ditas. xxviii
Agora, nós podemos ou não estar prontos para atribuir valor ao particularismo e
ao pluralismo. Não é fácil saber como decidir. Pois o pluralismo implica uma variedade
de opiniões, estruturas, regimes, políticas – com relação aos quais é provável que nos
sintamos diversamente. Nós podemos valorizar esta variedade ou a ideia de uma
variedade e ainda ser intimidados por um grande número de exemplos, e então buscar
algum princípio de exclusão. De fato, muitos pluralistas são restritos e as restrições que
eles defendem derivam de princípios universais. Ainda pode ser dito que eles valorizam
o pluralismo? Talvez, eles apreciem meramente a variedade, ainda não estejam prontos
para escolher em cada caso, sejam tolerantes ou indiferentes. Talvez tenham uma visão
instrumentalista: algum dia (mas este dia está distante), muitos experimentos sociais
levarão à verdade singular. Todas estas são perspectivas filosóficas, no sentido de que
exigem um ponto de partida de fora da variedade. E a partir deste ponto de vista, eu
suspeito, o pluralismo sempre terá, na melhor hipótese, um valor incerto. Mas a maior
parte das pessoas permanece diferentemente disto. Elas estão dentro de suas próprias
comunidades e valorizam suas próprias opiniões e convenções. Elas chegam ao
pluralismo somente através de atos de empatia e identificação, reconhecendo que outras
pessoas têm sentimentos como os seus. Similarmente, o filósofo pode chegar ao
pluralismo imaginando-se um cidadão de toda comunidade, em vez de uma. Mas, então,
ele pode perder este firme sentido de si mesmo e de sua solidão, que faz dele um
filósofo. E os dons que ele traz podem ficar menos valiosos do que são.
Eu não quero subestimar estes dons. Mas é importante sugerir agora que o valor
da verdade universal é tão incerto, quando visto do interior de uma comunidade
particular, quanto é o valor do pluralismo, quando visto de fora de toda comunidade
particular. Incerto, eu quero dizer, não irreal ou insignificante: pois eu não duvido que
comunidades particulares se aprimorem aspirando a realizar verdades universais e
incorporando aspectos (particulares) de doutrinas filosóficas em seus próprios modos de
vida. E isto os cidadãos também compreendem. Mas, de seu ponto de vista, nem sempre
será óbvio que os direitos, digamos, de homens e mulheres abstratos, os habitantes de
alguma comunidade ideal, devam ser aplicados aqui e agora. Provavelmente, eles terão
duas preocupações com tal aplicação. Antes de tudo, ela envolverá passar por cima de
suas próprias tradições, convenções e expectativas. Naturalmente, estas são
imediatamente acessíveis à crítica filosófica; elas não são “projetadas à vontade de
modo ordenado” por um fundador ou um sábio; elas são resultado de negociação
histórica, intriga e luta. Mas este é justamente o ponto. Produto de uma experiência
compartilhada, elas são valorizadas pelas pessoas acima dos dons dos filósofos, porque
pertencem a elas e os dons não – tanto como eu posso valorizar alguma posse familiar e
muito usada e ficar desconfortável com um modelo novo e mais perfeito.
3 O termo original em inglês “strict constructionists” pertence ao mundo jurídico e se refere àqueles juízes,
habitualmente tidos como conservadores, que aplicam as leis de modo formalista, agarrados à letra dos textos.
que eles dirigem e mais limitadas serão as escolhas coletivas dos cidadãos. Então, o
exagero tem um objetivo: em algum grau, os cidadãos perderão controle sobre suas
próprias vidas. E então, eles não têm nenhuma razão, nenhuma razão democrática, para
obedecer às decisões dos juízes.
(8)
Tudo isso pode ser evitado, é claro, se os juízes adotarem uma política de
“restrição judicial,” antecipando ou anulando decisões legislativas, apenas em casos
raros e extremos. Mas eu sugeriria que a restrição judicial, como a intervenção judicial,
tira sua força de alguma visão filosófica mais profunda. Historicamente, a restrição tem
xxix
sido conectada com ceticismo ou relativismo. É verdade, é claro, que visões
filosóficas mudam e os juízes devem ser cuidadosos para não caírem em uma moda
passageira. Mas eu sou inclinado a pensar que a restrição judicial é consistente com as
mais fortes reivindicações que filósofos fazem para as verdades que eles descobrem ou
constroem. Pois há certa atitude que acompanha adequadamente tais reivindicações e
tem sua origem na comunidade ideal ou no encontro perfeito do qual as reivindicações
derivam. Essa atitude é restrição filosófica e é simplesmente o respeito que estrangeiros
devem às decisões que cidadãos tomam entre eles e para eles mesmos. O filósofo se
distanciou da comunidade. É precisamente porque o conhecimento que ele procura pode
ser encontrado apenas fora desse lugar particular que ele não produz direitos no seu
interior.
Ao mesmo tempo, tem de ser dito que, desde que o afastamento do filósofo é
apenas especulativo, ele não perde os direitos que tem como um cidadão ordinário. Suas
opiniões valem tanto quanto as de quaisquer outros cidadãos; ele é qualificado, como
todos os outros, para trabalhar pela implementação delas, para argumentar, tramar, lutar
e por aí vai. Mas quando ele age dessas maneiras, ele é um filósofo engajado, isto é, um
sofista, crítico, jornalista ou intelectual e ele deve aceitar os riscos desses papéis sociais.
Eu não quero dizer que ele deve aceitar o risco de morte, isso dependerá das condições
Pertence a esse “construtivismo estrito” a ideia de que a lei manifesta as decisões mais valiosas para a democracia,
dado que decorrem do Legislativo, eleito pela maioria do povo.
de engajamento em sua comunidade. Filósofos, como outros cidadãos, vão esperar
alguma coisa melhor do que guerra civil e perseguição política. Eu tenho em mente dois
tipos diferentes de riscos. O primeiro é o risco da derrota, pois embora o filósofo
engajado ainda possa reivindicar estar certo, ele não pode reivindicar nenhum dos
privilégios da correção. Ele deve viver com as probabilidades ordinárias das políticas
democráticas. O segundo é o risco do particularismo, que é, talvez, outro tipo de derrota
para a Filosofia. Engajamento sempre envolve uma perda – não total, mas séria o
suficiente – de distância, perspectiva crítica, objetividade e por aí vai. O sofista, crítico,
jornalista ou intelectual, deve lidar com as preocupações dos seus concidadãos, tentar
responder às suas questões, tecer seus argumentos na fábrica da história deles. Ele deve,
de fato, fazer de si mesmo um concidadão na comunidade de ideias e, então, ele será
incapaz de se esquivar inteiramente dos emaranhados morais e até mesmo emocionais
da cidadania. Ele pode agarrar-se às verdades filosóficas da lei natural, justiça
distributiva ou direitos humanos, mas seus argumentos políticos são mais comumente
parecidos com alguma versão improvisada daquelas verdades, adaptada às necessidades
de um povo particular: do ponto de vista da posição original, provinciana; do ponto de
vista da situação ideal de fala, ideológica.
Talvez, nós devamos dizer que, uma vez engajado, naturalizado outra vez dentro
da comunidade de ideias, o filósofo é como um poeta político, o legislador de Shelley,
não de Rousseau. Embora ele ainda espere que seus argumentos alcancem além de sua
própria comunidade, ele é antes de tudo “local”. E, assim, ele precisa estar pronto para
abandonar as prerrogativas da distância, do projeto coerente e da inteira soberania, e
procurar, ao invés, “pensamentos que respiram e palavras que queimam”, tocar e
comover seu próprio povo. E ele deve desistir de quaisquer meios mais diretos de
estabelecer a comunidade ideal. Essa rendição é restrição filosófica.
Mais uma vez, eu não quero negar que direitos possam ser validados em outro
lugar. De fato, as verdades mais gerais da política e moralidade podem ser validadas
apenas no reino filosófico e este reino tem seu lugar fora, além, separado de cada
comunidade particular. Mas validação filosófica e autorização política são duas coisas
inteiramente diferentes. Elas pertencem a duas esferas inteiramente distintas da
atividade humana. Autorização é o trabalho de cidadãos governando a si mesmos e entre
eles próprios. Validação é o trabalho do filósofo raciocinando sozinho no mundo que
ele habita sozinho ou preenche com os produtos de suas próprias especulações.
Democracia não tem reivindicações no reino filosófico e filósofos não têm direitos
especiais na comunidade política. No mundo da opinião, verdade é, de fato, outra
opinião e o filósofo é apenas outro formador de opinião.
Notas
i
Zettel. ed. G.E.M. Anscombe and G.H. von Wright (Berkeley. University of California
Press, 1970), no. 455.
ii
L. Wittgenstein (trans. G.E.M. Anscombe) Philosophical Investigations. (New York:
Macmillan, 1958), para. 124.
iii
Para um relato desta forma especial de heroísmo filosófico, veja Sheldon S.Wolin,
Hobbes and the Epic Tradition of Political Theory (Los Angeles: Univ. of California
Press, 1970).
iv
Rene Descartes, Discourse on Method, trans. Arthur Wollaston (Hammonds-worth:
Penguin, 1960), pp. 44-45.
v
Thomas Hobbes, Leviathan, Part II, ch. 31 (end).
vi
C. P Cavafy, "The First Step," in The Complete Poems of Cavafy. trans. Rae Dalven
(New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1976), p. 6.
vii
W. H. Auden, "Shorts II," Collected Poems. ed. Edward Mendelsohn. (New York:
Random House, 1976).
viii
"In Memory of W. B. Yeats," in The English Auden: Poems, Essays and Dramatic
Writings, 1927-1939, ed. Edward Mendelshon (New York: Random House, 1977).
ix
The Letters of John Keats, ed. M. B. Forman (London: Oxford Unv. Press, 1952), p.
67.
x
The Republic of Plato, trans. F M. Cornford (New York: Oxford Univ. Press, 1945),
591A-592B.
xi
Assim, um orador ateniense à assembleia: "Está em seu poder, certamente, dispor do
que pertence a você, bem, ou, se quiser, mal." Citado em K. J. Dover, Greek Popular
Morality in the Time of Plato and Aristotle (Berkeley: Univ. of California Press, 1974),
pp. 290-291.
xii
The Social Contract, book 11, chs. IV and VI.
xiii
Isso se segue, eu penso, do argumento de que a vontade geral é inalienável, embora
Rousseau queira fazer ainda mais da inalienabilidade do que isso, como em seu ataque à
representação, book III, ch. XV.
xiv
Social Contract, book II, ch. III and passim.
xv
Social Contract, book II, ch. VII.
xvi
Richard Wollheim, "A Paradox in the Theory of Democracy," in ‘Philosophy,
Politics and Societ' (Second Series), ed. Peter Laslett and W G. Runclman (Oxford:
Basil Blackwell, 1962), pp. 71-87. Gostaria de salientar que o argumento aqui é sobre a
implementação, não sobre obediência. O que está em questão é como ou por que razões
políticas devem ser escolhidas para a comunidade como um todo. Se os cidadãos devem
apoiar esta ou aquela política, uma vez que foi escolhida, ou ajudar a realizá-la, é outra
questão.
xvii
A.H.M. Jones, Athenian Democracy (Oxford: Basil Blackwell, 1960), pp. 122-123.
xviii
Veja-se, por exemplo, Ronald Dworkin, Taking Rights Seriousli (Cambridge, MA.
Harvard Univ. Press, 1977); Frank Michelman, "In Pursuit of Constitutional Welfare
Rights," University of Pennsylvania Law Review (1973) 121:962-1019; Owen Fiss,
"The Forms of Justice," Harvard Law Review (1979) 93: 1-58; Bruce Ackerman, Social
Justice in the Liberal State (New Haven: Yale Univ. Press, 1980).
xix
Neste modo de argumento, John Rawls é, obviamente, o grande pioneiro. Mas o uso
específico da nova filosofia com a qual eu estou preocupado não é defendido por ele em
“Uma Teoria da Justiça” ou em quaisquer artigos subsequentes.
xx
Como o legislador de Rousseau, mais uma vez, os juízes não têm poder coercitivo
próprio: em certo sentido final, eles devem sempre procurar apoio entre as pessoas ou
entre as elites políticas alternativas. Daí, a expressão "tirania judicial" aplicada à
execução de uma posição validada filosoficamente, mas não democraticamente, é
sempre uma hipérbole. Por outro lado, existem formas de autoridade, que não a tirania,
que levantam problemas para o governo democrático.
xxi
O convite especial e o senso de urgência são mais claros em “Taking Rights
Seriously”, de Dworkin. Mas Dworkin parece acreditar que a comunidade ideal
realmente existe, por assim dizer, nos subúrbios. O conjunto de direitos filosoficamente
validados também pode ser validado, ele argumenta, em termos de história
constitucional e dos princípios legais atuais dos Estados Unidos e, quando os juízes
fazem valer esses direitos, eles estão fazendo o que deveriam estar fazendo, dado o tipo
de governo que temos. Para uma leitura diferente da nossa história constitucional, ver
Richard Ely, Democracy and Distrust (Cambridge, MA: Harvard Univ. Press, 1980).
Ely defende algo muito parecido com as duas restrições que eu defendi. Para ele,
também, a comunidade ideal está em algum lugar além da Constituição dos EUA. É a
meta adequada de partidos e movimentos, não dos tribunais.
xxii
Para um argumento cuidadoso e bastante experimental para este efeito, ver T. M.
Scanlon, "Due Process" in Nomos XXII, ed. R. Pennock and J. Chapman (New York:
New York Unlv. Press, 1977), pp. 120-121.
XXIII Fiss provê alguns exemplos claros em "Forms of Justice."
xxiv
Cf. Michelman "Welfare Rights," e também "On Protecting the Poor Through the
Fourteenth Amendment," Harvard Law Review (1969) 83.
xxv
Para uma proposta para esse efeito, veja Amy Gutmann, Liberal Equality
(Cambridge, England: Cambridge Univ. Press, 1980), p. 199.
xxvi
Dworkin, Taking Rights Seriously, especially Chapters 4 and 13.
xxvii
Intervenções judiciais em favor de direitos individuais, amplamente compreendidos,
também podem levar a uma erosão das energias populares – ao menos na esquerda. Para
uma discussão resumida deste efeito, veja-se meu artigo “A esquerda e os tribunais”,
Dissent (Spring, 1981).
xxviii
Mesmo que fosse para conectar conclusões filosóficas a um conjunto de
circunstâncias históricas, como Habermas faz quando ele imagina a "formação
discursiva da vontade" que ocorre "em um determinado estágio de desenvolvimento das
forças produtivas", ou como Rawls faz quando sugere que o princípios trabalhados na
posição original aplicam-se apenas às "sociedades democráticas sob condições
modernas", permanece verdade que as conclusões são objetivamente verdadeiras ou
corretas para uma série de comunidades particulares, sem levar em conta as políticas
reais dessas comunidades. Veja Habermas, Legitimation Crisis (Boston: Beacon, 1975),
p. 113; Rawls, "Kantian Constructivism in Moral Theory," The Journal of Philosophy,
77 (September, 1980), p. 518.
xxix
Veja-se, por exemplo, Ely, Democracy and Distrust, pp. 57-59.