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SUMÁRIO

Prefácio
Agradecimentos
Capítulo 1
O Intelecto e os Intelectuais
Capítulo 2
Conhecimento e Noções
Capítulo 3
Os Intelectuais e a Ciência Econômica
Capítulo 4
Os Intelectuais e as Visões de Sociedade
Capítulo 5
Realidade Paralela na Mídia e no Mundo Acadêmico
Capítulo 6
Os Intelectuais e a Justiça
Capítulo 7
Os Intelectuais e a Guerra
Capítulo 8
Os Intelectuais e a Guerra: Repetindo a História
Capítulo 9
Os Intelectuais e a Sociedade
Índice
PREFÁCIO

Provavelmente, nunca houve outro período na história


no qual os intelectuais tenham desempenhado um papel tão
extenso na sociedade. Quando aqueles que são
responsáveis pela geração de ideias, os intelectuais
propriamente falando, estão cercados por uma espessa
penumbra de auxiliares, os quais disseminarão suas ideias -
falo de jornalistas, professores, funcionários Públicos,
burocratas e outros membros que compõem a intelligentsia
-, podemos, então, esperar que a influência dos intelectuais
possa tomar, no curso da evolução social, proporções
consideráveis ou mesmo cruciais. Essa influência depende,
é claro, das circunstâncias adjacentes, incluindo os níveis de
liberdade para a propagação de suas ideias, em vez de se
tornarem meros instrumentos de propaganda, como
acontece nos países totalitários. Certamente, não haveria
muito valor em se estudar as ideias expressas por
proeminentes escritores como Ilya Ehrenburg, durante a
época da União Soviética, uma vez que suas ideias eram
simplesmente às permitidas ou defendidas pela ditadura
soviética. Portanto, o estudo sobre a influência dos
intelectuais é, aqui, centrado nos lugares onde os
intelectuais gozam de grande liberdade para exercer sua
influência, ou seja, nas modernas nações democráticas.
Por diferentes razões, este estudo sobre os padrões da
atividade dos intelectuais dará pouca atenção a gigantes
intelectuais, como Milton Friedman, assim como a outros
excelentes intelectuais de menor iminência, simplesmente
porque o professor Friedman foi, para sua época e de
diversas formas, um intelectual muito atípico, tanto do
ponto de vista da erudição de sua obra, que o levou a
receber um prêmio Nobel, quanto pelo seu trabalho como
analista popular das questões de sua época. Uma história
intelectual geral "equilibrada" de nossa época teria que dar
ao professor Friedman muito mais atenção do que o estudo
aqui proposto, o qual se foca, contudo, em padrões gerais,
em relação aos quais ele se fazia uma exceção notável.
Aleksandr Solzhenitsyn foi outra figura notável na história
intelectual, moral e política de seu período, o qual também
se apresentava como uma figura muito atípica aos padrões
intelectuais de nossa época, para que fosse incluído neste
estudo sobre os padrões gerais da profissão.
Muitos livros já foram escritos sobre os intelectuais.
Alguns fazem análises profundas sobre algumas figuras
proeminentes, e o livro Intellectuals [Os Intelectuais], de
Paul Johnson, é um clássico nesse tipo de abordagem.
Outros livros sobre os intelectuais têm o foco nas ideias
dominantes de cada época em particular. O livro de Richard
A. Posner, Public Intelectuais [Intelectuais Públicos] trata
dos intelectuais que se dirigem diretamente ao público,
como formadores de opinião, ao passo que em Os
Intelectuais e a Sociedade veremos a influência que eles
exercem sobre as atitudes e crenças da sociedade em geral
- moldando-as, mesmo quando não são amplamente lidos e
reconhecidos pelo grande público. Como disse J. A.
Schumpeter, "há muitos keynesianos e marxistas que nunca
leram uma só linha de Keynes e Marx".[1] Eles retiram suas
ideias e seus posicionamentos de segunda ou de terceira
mão, a partir da influência da intelligentsia.
Dentre as muitas observações ditas por aqueles que
estudaram os intelectuais, um comentário feito pelo
professor Mark Lilla da Columbia University, em seu livro
The Reckless Mind [A Mente Leviana] é especialmente
revelador:

Professores distintos, poetas talentosos e


jornalistas influentes reuniram suas habilidades a
fim de convencer, a todos seus ouvintes e
admiradores, que os tiranos modernos eram
libertadores e que seus crimes hediondos eram
nobres, bastava vê-los na perspectiva correta.
Quem quer que se dedique a escrever,
honestamente, sobre a história intelectual do
século XX na Europa tem que ter estômago forte.

Mas ele precisará de algo mais. Precisará superar


seu nojo para que comece a ponderar sobre as
causas desse intrigante e estranho fenômeno.[2]

Embora Os Intelectuais e a Sociedade não seja uma


história intelectual
do século XX na Europa - isso levaria a um projeto muito
maior a ser realizado por alguém muito mais jovem -, o livro
esforça-se por descortinar alguns fenômenos intrigantes
que formam o mundo dos intelectuais, na medida em que
esse mundo afeta o funcionamento da sociedade em geral.
Em vez de simplesmente generalizar a partir dos escritos ou
comportamentos de determinados intelectuais, este livro se
propõe a analisar tanto a visão quanto os incentivos e as
restrições que estão por trás dos padrões gerais
encontrados nos membros atuais da intelligentsia, assim
como o que eles dizem e o impacto que isso tem sobre a
sociedade.
Embora já saibamos muita coisa sobre as biografias e
ideologias de determinados intelectuais de destaque,
análises sistemáticas sobre a natureza e o papel dos
intelectuais como grupo social são muito menos comuns.
Este livro busca desenvolver uma análise desse tipo,
explorando suas implicações e mostrando a direção para a
qual a intelligentsia está conduzindo nossa sociedade e a
civilização ocidental em geral.
Embora este livro fale sobre os intelectuais, ele não foi
escrito para os intelectuais. Seu propósito é alcançar a
compreensão sobre um importante fenômeno social e
compartilhá-la com aqueles que buscam compreendê-la,
sejam lá quais forem as atividades de cada um. Aqueles
membros da intelligentsia que buscam autopromoção ou
motivos para melindres serão deixados a agir conforme sua
própria consciência. Este livro foi escrito para aqueles
leitores que estão dispostos a me acompanhar na busca de
compreensão de um segmento distinto da população, cujas
atividades podem ter e têm grande peso sobre as nações e
as civilizações.
Thomas Sowell
Hoover Institution
Stanford University
◆ ◆ ◆
AGRADECIMENTOS

Assim como aconteceu com meus outros livros, este livro


deve muito ao dedicado trabalho de minhas extraordinárias
assistentes de pesquisa, Na Liu e Elizabeth Costa. A senhora
Liu já trabalha comigo há vinte anos e não apenas extraiu
muitos fatos, mas também contribuiu com muitos insights
na elaboração desta obra, como fizera com as outras. Ela
também criou os arquivos digitais a partir dos quais meus
livros podem ser impressos diretamente. Minha outra
assistente, a senhora Costa realiza o trabalho de edição e
checagem dos fatos para mim, e raramente um lapso de
minha parte escapa de seu escrutínio. Também sou
beneficiário das informações e dos comentários fornecidos
pelo dr. Gerald, P. O'Driscoll, do Cato Institute, professor
Lino A. Graglia da Universidade do Texas em Austin, e do Dr.
Victor Davis Hanson, do Hoover Institute. Quaisquer erros ou
deficiências que possam ter permanecido apesar de seus
esforços só podem ser de minha responsabilidade.
◆ ◆ ◆
OS INTELECTUAIS
E A SOCIEDADE
CAPÍTULO 1
O INTELECTO E OS INTELECTUAIS

Inteligência é a rapidez com que se apreendem as


coisas e que se distingue de outra habilidade, a qual se
verifica na capacidade de agir com sabedoria sobre o
que foi apreendido.

ALFRED NORTH WHITEHEAD[3]

Intelecto não se confunde com sabedoria. Podemos


ter, portanto, o caso de "intelectos insensatos", como bem
colocou Thomas Carlyle ao caracterizar o pensamento de
Harriet Taylor[4] amiga e posteriormente esposa de John
Stuart Mill. Puro poder mental, o intelecto é a capacidade de
apreensão e manipulação de conceitos e ideias complexas,
e pode estar a serviço de conceitos e ideias que
desembocam, por sua vez, tanto em conclusões
equivocadas quanto em ações insensatas, tendo-se em
vista todos os fatores envolvidos, incluindo aqueles que são
deixados de lado durante as engenhosas construções do
intelecto imaturo.
O Capital, de Karl Marx, é um exemplo clássico de
elaboração intelectual primorosa, mas que se encontra, no
entanto, fundamentada num equívoco conceitual - no caso,
a noção de que o "trabalho", a manipulação física de
materiais e ferramentas de produção, apresenta-se como a
real fonte de riqueza econômica. Caso isso fosse verdade,
certamente que os países com grande quantidade de
trabalho, mas que gozassem de baixa tecnologia ou
apresentassem baixos níveis de empreendedorismo, seriam
mais prósperos do que os países na situação inversa,
quando, na verdade, é estrondosamente óbvio que temos
exatamente o contrário. O mesmo acontece com o
elaborado e intrincado A Theory of Justice [A Teoria da
Justiça] de John Rawls, no qual a justiça se torna,
categoricamente, mais importante do que qualquer outra
consideração social. No entanto, é certo que se duas coisas
têm algum valor, nenhuma delas pode ser,
indiscutivelmente, mais valiosa que a outra. Um diamante
pode valer muito mais que um centavo, mas uma
quantidade suficiente de centavos valerá mais que qualquer
diamante.
◆ ◆ ◆

INTELIGÊNCIA VERSUS INTELECTO


A capacidade para apreensão e manipulação de ideias
complexas é suficiente para definirmos o intelecto, mas não
é suficiente para darmos conta da inteligência, cuja
realidade envolve a combinação do intelecto com
capacidade de julgamento e acuidade na seleção de fatores
explicativos relevantes; assim como envolve a capacidade
de, ao fazer uso das teorias que surgem, promover testes
empíricos. Inteligência menos julgamento é igual a
intelecto. Temos também a sabedoria, que é a qualidade
mais rara de todas - a qual se verifica na habilidade de
combinar intelecto, conhecimento, experiência e
julgamento, de forma a produzir uma compreensão ou
avaliação coerente. A sabedoria é a realização da antiga
advertência: "Em posse do que tens, tenhas compreensão".
É algo que exige disciplina e compreensão acurada sobre as
realidades do mundo, incluindo a devida apreciação sobre
os limites de nossas experiências e de nossa razão. O
contrário do intelecto é o estado obtuso e a lerdeza mental,
mas o contrário da sabedoria é a estupidez, cuja
manifestação é muito mais perigosa.
George Orwell chegou a dizer que algumas ideias são
tão estúpidas que apenas um intelectual poderia acreditar
nelas, já que o homem comum nunca se faz tão tolo. Nesse
sentido, o histórico dos intelectuais do século XX foi
especialmente assombroso. Nesse século, raramente
tivemos o caso de um ditador sanguinário que não
dispusesse de um grupo de intelectuais militantes, e não
estou falando apenas de compatriotas, mas também de
admiradores estrangeiros, muito dos quais viviam em
verdadeiras democracias, nas quais as pessoas são livres e
podem opinar abertamente. Lênin, Stalin, Mao e Hitler,
todos tiveram, nas democracias do Ocidente, seus
admiradores, defensores e apologistas espalhados pela
intelligentsia, apesar de tais ditadores terem, cada um
deles, assassinado seus próprios compatriotas em escala
maciça e sem precedentes, adotando práticas de violência
até então desconhecidas mesmo para os regimes
despóticos anteriores aos seus.
◆ ◆ ◆

DEFININDO OS INTELECTUAIS
Devemos ser claros sobre o que queremos dizer com
intelectuais. Aqui, neste nosso caso, "intelectuais" será
entendido como uma categoria ocupacional, composta por
pessoas cujas ocupações profissionais operam
fundamentalmente em função de ideias - falo de escritores,
acadêmicos e afins.[5] A maioria de nós não atribui o papel
de intelectuais para neurocirurgiões e engenheiros, apesar
do exigente treino mental que são obrigados a trilhar. Na
prática, ninguém considera intelectual mesmo o mais
brilhante e bem-sucedido gênio das finanças.
No âmago do exercício da atividade intelectual
encontramos a noção do operador de ideias como tal - não
falo da aplicação prática das ideias, como fazem os
engenheiros, ao aplicarem princípios científicos complexos
na criação de estruturas físicas e mecanismos. Um bitolado
cientista social cujo trabalho pode ser descrito como
"engenharia social", raramente administrará os esquemas
que ele ou ela criam ou defendem. Tal trabalho é deixado a
cargo de burocratas, políticos, assistentes sociais, a polícia,
dentre outros, ou seja, de pessoas diretamente
responsáveis pela implantação das ideias do cientista social.
Rótulos como "ciência social aplicada" podem ser inseridos
no trabalho desse cientista social, mas o seu trabalho está
essencialmente baseado na manipulação de ideias gerais,
as quais podem ser usadas na produção de ideias mais
específicas e na gestão de políticas sociais que serão
aplicadas, por sua vez, por terceiros.
Nosso cientista social não executará, pessoalmente,
essas ideias específicas, diferentemente de um médico que
aplica os conhecimentos da ciência médica em seres
humanos de carne e osso, ou mesmo de um engenheiro,
calçando suas longas botas e que estará presente no palco
de operações, participando da construção de uma ponte ou
de um prédio. O resultado - o produto final - do trabalho de
um intelectual é constituído de ideias.
O produto final do trabalho de Jonas Salk foi uma
vacina, assim como o resultado do trabalho de Bill Gates foi
um sistema operacional para computadores. Apesar de todo
o poder mental, insights e talentos envolvidos nessas e em
outras grandes realizações, tais indivíduos não são
intelectuais. O trabalho de um intelectual começa e termina
com ideias, sem levar em conta a influência que essas
ideias possam ou não exercer sobre a vida concreta - nas
mãos de terceiros. Adam Smith nunca administrou um
negócio e Karl Marx nunca gerenciou um Gulag (*). Os dois
eram meros intelectuais. As ideias, como tais, não
constituem apenas a matéria-prima da vida intelectual, mas
também funcionam como critério para avaliar as realizações
intelectuais, apresentando-se como fonte de frequentes e
perigosas seduções para os participantes dessa ocupação.
No universo acadêmico, a nata dos intelectuais é
composta, por exemplo, por aqueles indivíduos cujos
campos de estudo estão mais impregnados pelas ideias. As
faculdades de administração, de engenharia, de medicina
ou o departamento de atletismo de uma universidade
qualquer não representam as disciplinas que primeiro vêm à
nossa mente toda vez que pensamos em intelectuais
acadêmicos. Além do mais, as ideologias e atitudes
predominantes entre acadêmicos intelectuais são, nos
departamentos citados, bem menos visíveis. Contudo, os
departamentos de sociologia são, geralmente, notados
como muito mais inclinados politicamente à esquerda, se os
compararmos com a escola de medicina, assim como os
departamentos de psicologia também são notoriamente
mais esquerdistas que os departamentos de engenharia, o
mesmo acontecendo com o departamento de letras, que é
mais esquerdista que o de economia, e assim por diante.[6]
O termo "pseudointelectual" é por vezes usado para
identificar os membros menos inteligentes ou menos
preparados da profissão. Mas da mesma forma que um
péssimo policial continua sendo um policial -
desconsiderando-se todo o problema que a situação gera -,
um intelectual superficial, desonesto e confuso continuará
sendo membro de sua ocupação, tanto quanto o seu modelo
máximo. Uma vez que a realidade da qual estamos tratando
fique clara, toda vez que falamos de intelectuais - a
descrição de uma ocupação profissional, em vez de um
rótulo qualitativo ou um título honorífico -, então podemos
olhar para as características dessa ocupação, observando
os incentivos e as restrições que ela comporta e
identificando como esses elementos afetam aqueles que
seguem esse campo, para, então, podermos constatar como
essas características se relacionam ao comportamento dos
intelectuais. A questão maior é, certamente, como o
comportamento dos intelectuais afeta a sociedade na qual
eles vivem.
Em geral, o impacto gerado pela atividade intelectual
independe do fato de os intelectuais serem reconhecidos
como "intelectuais públicos" - aqueles que se dirigem ao
grande público, comparando-se aos intelectuais cujas ideias
estão confinadas ao ambiente estritamente especializado
de suas áreas ou mesmo ao universo puramente intelectual.
Alguns dos livros que causaram mais impacto no século XX
foram lidos por poucos e compreendidos por um público
ainda mais exíguo. Estou falando dos trabalhos de Karl Marx
e Sigmund Freud escritos no século XIX. Porém, as
conclusões desses escritores - distinguindo-as da
complexidade de suas análises - inspiraram um vastíssimo
contingente de intelectuais por todo o mundo e, por
intermédio dos últimos, alcançaram o grande público. A alta
reputação que esses trabalhos alcançaram inflamou a
confiança de muitos seguidores, os quais não chegaram, em
grande parte, a dominar as obras nem sequer se esforçaram
para tal.
Mesmo intelectuais cujos nomes são praticamente
desconhecidos do público em geral tiveram um impacto de
repercussão mundial. Friedrich Hayek, cujos trabalhos -
notadamente The Road to Serfdom [O Caminho da
Servidão] - deram início a uma contrarrevolução, mais tarde
aderida por Milton Friedman, alcançando seu clímax político
com a ascensão de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha e de
Ronald Reagan nos Estados Unidos. Essa obra era pouco
conhecida e pouco lida até mesmo entre os círculos
intelectuais, no entanto, inspirou muitos formadores de
opinião e ativistas políticos, os quais, por sua vez, tornaram
essas ideias tema para amplos projetos e discussões que
influenciaram políticas e decisões de governo. Hayek foi um
exemplo clássico do tipo de intelectual descrito pelo juiz da
Suprema Corte Oliver Wendell Holmes como um pensador
que "mesmo um século depois de sua morte e seu
esquecimento, homens que nunca ouviram falar dele
estarão, no entanto, se movendo na medida ditada por seu
pensamento".[7]
◆ ◆ ◆

A INTELIGENTSIA
Cercando um núcleo mais ou menos sólido de
criadores de novas ideias existe outra esfera de atuação
composta por aqueles cujo papel se restringe ao uso e à
disseminação dessas ideias. Estes últimos respondem, em
grande parte, pelo corpo de professores, jornalistas,
ativistas sociais, adidos políticos, funcionários do judiciário e
outros que fundamentam suas crenças ou ações a partir das
ideias produzidas pelos intelectuais do primeiro escalão. Os
jornalistas, no papel de editores ou colunistas, são, além de
grandes consumidores das ideias dos intelectuais de grande
porte, produtores de ideias próprias e, dessa forma, podem
ser considerados - em tais circunstâncias - intelectuais. A
originalidade não se apresenta como um atributo essencial
para definir um intelectual desde que as ideias sejam o
produto final. Contudo, no papel de meros repórteres, os
jornalistas estariam encarregados de simplesmente reportar
os fatos. No entanto, à medida que os fatos são filtrados e
modificados para que se alinhem às noções preponderantes
do universo intelectual dominante, esses repórteres acabam
desempenhando um novo papel, formando uma penumbra
ideológica cuja sombra reflete o núcleo intelectual central.
Eles se constituem, então, como membros de uma
intelligentsia, a qual inclui, mas não se limita aos
intelectuais. Finalmente, temos aqueles cuj as profissões
não estão sob grande influência das ideias provenientes dos
intelectuais, mas estão, no entanto, interessados em
participar e se inteirar das ideias, mesmo que seja apenas
para usá-las socialmente, sentindo-se lisonjeados ao ser
considerados membros da intelligentsia.
◆ ◆ ◆

IDEIAS E PRESTAÇÃO DE CONTAS


Tendo-se em vista o enorme impacto social que
intelectuais podem causar, sendo ou não publicamente
conhecidos, é de fundamental importância tentar
compreender os padrões de seu comportamento e os
incentivos e as restrições que afetam esses padrões.
É certo que o universo das ideias não está sob a
propriedade exclusiva dos intelectuais, assim como a
potencial complexidade, a dificuldade ou o nível qualitativo
que certas ideias implicam não determinam,
necessariamente, se os produtores das ideias são ou não
considerados intelectuais. Engenheiros e financistas lidam
com ideias que são, n o mínimo, tão complexas quanto as
que pertencem ao universo dos sociólogos e professores de
letras. Ainda assim, são estes últimos que mais nos ocorrem
lembrar sempre que falamos de intelectuais. Além do mais,
são também os últimos que mais exibem as atitudes, as
crenças e os comportamentos associados aos intelectuais.
◆ ◆ ◆

VERIFICAÇÃO EMPÍRICA
São externos os padrões pelos quais engenheiros e
financistas são julgados, pois a verificação se encontra para
fora do reino das ideias e para além do controle de seus
pares. Um engenheiro cujas pontes ou cujos prédios
desabam estará certamente arruinado, assim como um
financista que pede falência. Pouco importa quão plausíveis
ou admiráveis suas ideias possam, porventura, ter parecido
aos seus colegas engenheiros e financistas, pois a qualidade
do pudim será atestada, fundamentalmente, quando o
comermos. O fracasso, nesse caso, pode ser observado no
declínio de prestígio profissional, o que se dá como efeito e
não como causa. Por outro lado, ideias que num primeiro
momento pareciam desacreditadas por seus colegas
engenheiros e financistas podem vir a ser plenamente
aceitas entre os profissionais caso seu sucesso empírico se
torne patente. O mesmo vale para cientistas e técnicos
esportivos. No entanto, o teste fundamental para as ideias
de um desconstrucionista realiza-se na opinião de outros
desconstrucionistas, os quais irão dizer se acham ou não
acham as ideias interessantes, originais, persuasivas,
elegantes ou engenhosas o suficiente. Não existe um teste
externo.
Em resumo, dentre todos os que exercem ocupações
mentalmente exigentes, a linha demarcatória que separa os
mais propensos a serem vistos como intelectuais de outros
menos propensos a receberem o título divide aqueles cujas
ideias estão fundamentalmente sujeitas a critérios internos
de verificação de outros cuj as ideias estão
fundamentalmente sujeitas ao crivo externo da verificação
empírica. Entre os intelectuais, os próprios termos que
expressam admiração ou repúdio refletem uma total falta
de critério empírico. Ideias que são "complexas",
"excitantes", "inovadoras", "cheias de nuance" ou
"progressistas" são admiradas, ao passo que outras ideias
são prontamente rejeitadas por serem "simplistas",
"ultrapassadas" ou "reacionárias". Todavia, ninguém julgaria
as ideias de Vince Lombardi sobre o futebol americano por
sua plausibilidade a priori, ou pelo fato de serem mais ou
menos complexas do que as ideias de outros treinadores de
futebol, ou se elas representam novas ou antigas
concepções de como o jogo deveria ser jogado. Vince
Lombardi foi julgado pelo que aconteceu quando suas ideias
foram colocadas à prova no campo de futebol.
De maneira semelhante, no campo completamente
distinto da física, a teoria de Einstein sobre a relatividade
não conquistou aceitação em função de sua plausibilidade,
elegância, complexidade ou novidade. Nesse caso, não
obstante o fato de outros físicos terem sido inicialmente
céticos, o próprio Einstein declarou que suas teorias não
deveriam ser aceitas até que pudessem ser verificadas
empiricamente. O teste crucial ocorreu quando cientistas
em todo o mundo observaram um eclipse solar,
confirmando que a luz se comportara de acordo com a
teoria de Einstein, descartando-se o quão implausível a
teoria possa ter parecido quando fora formulada.
O grande problema - e o grande perigo social - de um
critério puramente interno é que ele pode facilmente blindar
as ideias, protegendo-as das verificações e dos feedbacks
do mundo externo, instituindo, assim, a permanência de
métodos de validação meramente circulares. A
plausibilidade ou não que uma nova ideia incita depende do
que cada um já tem incorporado como crença. Quando o
único critério de validação externa se assenta no que outros
indivíduos acreditam ou deixam de acreditar, tudo passa a
depender da posição que esses outros indivíduos ocupam,
ou seja, quem eles são. Caso sejam pessoas simples, as
quais têm, em geral, um pensamento similar, então o
consenso do grupo sobre uma nova ideia em particular
dependerá do que o grupo já acredita em linhas gerais,
porém não teremos nada a dizer sobre a validade empírica
a respeito dessa ideia no mundo externo.
Ideias que se encontram blindadas no mundo externo
e m relação à sua origem ou validação, podem, no entanto,
exercer grande impacto no mundo no qual milhões de seres
humanos vivem. As ideias de Lênin, Hitler e Mao exerceram
um enorme - e geralmente letal - impacto na vida de
milhões de pessoas, mesmo ao saber da diminuta validade
que tais ideias tinham em si mesmas, pelo menos aos olhos
dos que se encontravam fora dos círculos formados por
seguidores ideológicos e subordinados ambiciosos.
O impacto das ideias sobre o mundo real é bastante
evidente. O oposto, todavia, não se faz tão evidente assim,
apesar de dizerem o contrário certas noções da moda, as
quais nos querem fazer crer que grandes mudanças nas
ideias são geradas por grandes eventos. O recém-ganhador
do Prêmio Nobel, o economista George J. Stigler, destacou:
"Uma guerra pode devastar um continente inteiro ou
mesmo destruir toda uma geração sem, contudo,
apresentar quaisquer novas questões teóricas".[8] As
guerras têm feito, com frequência, as duas coisas ao longo
de muitos séculos, portanto essa questão não representa
um novo fenômeno para o qual uma nova explicação seja
necessária.
Alguém pode, por exemplo, considerar a economia
keynesiana um sistema de ideias particularmente relevante
aos eventos da época em que foi publicada -
especificamente, a Grande Depressão da década de 1930 -,
mas o que se faz notável é o quanto isso se torna
insignificante diante de outros sistemas intelectuais
marcantes. Os objetos em queda livre se verificavam em
maior ou em menor abundância quando as leis da gravidade
de Newton foram desenvolvidas? Novas espécies apareciam
e velhas espécies desapareciam mais rápida e
constantemente quando do lançamento de A Origem das
Espécies de Darwin? O que produziu a teoria da relatividade
de Einstein a não ser seu próprio pensamento?
◆ ◆ ◆

PRESTAÇÃO DE CONTAS
Os intelectuais são, no senso estrito que estamos
vendo, fundamentalmente inconsequentes às exigências do
mundo externo. A predominância e a presumida
conveniência dessa situação é confirmada por coisas como
estabilidade de cargos e privilégios acadêmicos, além de
conceitos cada vez mais expandidos de "liberdade
acadêmica" e "autogerência acadêmica". Na mídia, noções
expandidas de liberdade de expressão e de imprensa
desempenham papéis semelhantes. Tal irresponsabilidade
diante do mundo real e concreto não se apresenta como
simples acaso, mas se coloca como princípio. John Stuart
Mill alegava que os intelectuais deveriam estar
desimpedidos até mesmo dos padrões sociais - ao passo
que ele mesmo determinava padrões sociais para os outros
seguirem.[9] Os intelectuais não foram apenas isolados das
consequências materiais, mas têm, com frequência, gozado
de imunidade contra, até mesmo, a perda de reputação,
mesmo quando se comprova que estavam completamente
errados. Como bem coloca Eric Hoffer:

Um dos privilégios surpreendentes dos intelectuais


é o fato de se encontrarem livres para serem
escandalosamente estúpidos sem, contudo,
sofrerem qualquer abalo em suas reputações. Os
intelectuais que idolatravam Stalin, enquanto este
purgava milhões e sufocava o menor sinal de
liberdade não foram, contudo, desacreditados.
Eles ainda gozam de ampla voz pública e avaliam
cada novo tópico que aparece, sendo ouvidos com
grande deferência. Sartre voltou da Alemanha em
1939, onde estudara filosofia, dizendo ao mundo
que havia pouca diferença entre a Alemanha de
Hitler e a França. Ainda assim, Sartre acabou se
tornando um papa intelectual, reverenciado pela
classe culta em todos os lugares.[10]
Todavia, Sartre não estava sozinho. O ambientalista
Paul Ehrlich disse em 1968: "A batalha para alimentar toda
a humanidade está encerrada. Durante a década de 1970 o
mundo passará por grandes surtos de fome - centenas de
milhões de pessoas morrerão de fome e já é muito tarde
para que qualquer programa de contenção tenha efeito".[11]
No entanto, depois que aquela década chegou e se foi,
assim como aconteceu às décadas subsequentes, não
apenas a previsão não ocorreu, mas nos deparamos com o
real problema de uma obesidade disseminada em nossa
sociedade, assim como em um bom número de outros
países, acompanhada pelo problema da superprodução
agrícola. Todavia, o professor Ehrlich não só continuou a
receber aplausos por todos os lados, mas também títulos e
honras de prestigiadas instituições acadêmicas.
Em outro exemplo, Ralph Nader também se tornou
publicamente conhecido após o lançamento de seu livro
Unsafe at Any Speed [Perigoso em Qualquer Velocidade], o
qual tratava dos carros americanos em geral e do modelo
Corvair em particular, como veículos extremamente
inseguros e perigosos. Entretanto, estudos empíricos
mostraram que o Corvair era, no mínimo, tão seguro quanto
os outros carros de seu tempo,[12] e Nader não só continuou
a gozar de credibilidade, mas adquiriu uma reputação de
idealista e homem de insights, tornando-o uma espécie de
guru tecnológico. Inumeráveis outros casos de previsões
equivocadas, abrangendo todos os campos, desde o preço
da gasolina até o resultado das políticas da Guerra Fria,
revelaram incontáveis falsos profetas, os quais acabaram
recebendo, não obstante, a mesma honra que teriam
conquistado caso tivessem sido verdadeiramente proféticos.
Resumindo, as restrições que se aplicam às pessoas
na maioria dos outros campos profissionais não se aplicam
nem de forma aproximada aos intelectuais. Seria, portanto,
surpreendente se tamanho desregramento não levasse a
um comportamento diferente. Dentre essas diferenças,
destaca-se a maneira única que avaliam o mundo e a si
mesmos em relação tanto aos seus irmãos seres humanos
quanto em relação às sociedades nas quais vivem.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 2
CONHECIMENTO E NOÇÕES

Desde cedo, quando ainda são muito jovens, as pessoas


notadamente inteligentes são reconhecidas como tal e
separadas em classes especiais, diferenciando-se de
seus pares. Assim, são presenteadas com
oportunidades indisponíveis para outros. Por esses e por
outros motivos, intelectuais tendem a ter um senso
inflado de sua própria sabedoria.

DANIEL J. FLYNN[13]

Assim como acontece com todo mundo, os


intelectuais comportam uma mistura de conhecimentos
precisos e vagas noções sobre as coisas. Para alguns
intelectuais em determinadas áreas, esse conhecimento
inclui informações sobre procedimentos sistemáticos, cuja
função é testar a veracidade das noções e determinar sua
validade como conhecimento real. Uma vez que as ideias
respondem pela vida profissional dos intelectuais, é
esperado que estes sejam mais minuciosos e sistemáticos
na aferição dessas noções, sujeitando-as aos devidos testes.
Até que ponto eles realmente seguem essas normas é,
também, uma noção que precisa ser testada. Afinal de
contas, existem outras habilidades nas quais os intelectuais
tendem a se esmerar, incluindo habilidades retóricas que
podem ser facilmente usadas para se furtar aos testes que
avaliarão, de fato, a veracidade de suas noções favoritas.
Portanto, as muitas habilidades de que os intelectuais
dispõem podem ser usadas tanto para promoção dos
padrões intelectuais quanto, ao contrário, para contornar
esses mesmos padrões e promover práticas não intelectuais
ou, até mesmo, anti-intelectuais. Em outras palavras,
intelectuais - definidos como categoria ocupacional - podem
ou não adotar os processos e as técnicas de aferição
intelectual. De fato, é possível que pessoas não
identificadas como intelectuais puros, como é o caso de
engenheiros, financistas, médicos, dentre outros, acabem
aderindo aos procedimentos rigorosamente intelectuais com
muito mais frequência do que a maior parte dos
intelectuais. Até que ponto isso é verdade parece, aqui,
mais uma questão empírica. O que é importante, nesse
nosso caso, é o fato de não permitirmos que a mera palavra
"intelectual", aplicada a uma categoria ocupacional, insinue
a aplicação estrita de princípios ou padrões intelectuais os
quais, como estamos vendo, podem estar ou não presentes.
Embora existam importantes e rigorosos princípios
intelectuais, os quais compreendem alguns campos
particulares em que alguns intelectuais se fazem
especialistas, o fato é que ao se apresentarem como
"intelectuais públicos", divulgando ideias e agendas para
um público que ultrapassa o círculo profissional restrito de
seus colegas intelectuais, o rigor pode ser afetado, podendo
acarretar discussões mais genéricas, mais ideologicamente
carregadas e mais politicamente orientadas.
Bertrand Russell, por exemplo, era, ao mesmo tempo,
um intelectual formador de opinião e uma autoridade ímpar
dentro de seu campo. Todavia, o Bertrand Russell que, em
nosso caso, é relevante não é o autor de tratados capitais
em matemática, mas o Bertrand Russell que defendeu o
"desarmamento unilateral" da Grã-Bretanha durante a
década de 1930, enquanto Hitler reerguia o poderio bélico
alemão. A defesa que Russell fez de uma política de
desarmamento para a Grã-Bretanha estendeu-se a um
completo "desmantelamento do exército, da marinha e da
força aérea"[14] - destacando-se, mais uma vez, que, não
muito longe dali, Hitler se rearmava até os dentes. Da
mesma forma, o Noam Chomsky que nos importa não é o
acadêmico especializado em linguística, mas o Noam
Chomsky que faz pronunciamentos de ordem política
similarmente extravagantes. O Edmund Wilson que nos é
relevante não é o crítico literário altamente conceituado,
mas aquele que exortou os americanos para que votassem
nos comunistas nas eleições de 1932. Em tal empreitada ele
foi acompanhado de outros luminares da época, como John
Dos Passos, Sherwood Anderson, Langston Hughes, Lincoln
Steffens e muitos outros escritores conhecidos da época.[15]
Em 1933, durante uma visita aos Estados Unidos,
George Bernard Shaw disse: "Vocês, norte-americanos, têm
tanto medo de ditadores. A ditadura é a única maneira que
o governo tem para realizar as coisas. Vejam a bagunça que
a democracia nos deixou. Por que vocês temem a
ditadura?".[16] Ao sair de Londres para passar as férias na
África do Sul, em 1935, Shaw declarou: "É bom sair de férias
sabendo que Hitler deixou as coisas na Europa tão bem
estabelecidas".[17] Embora, no final, as políticas
antissemitas de Hitler tenham indisposto Shaw com o
nazismo, o famoso dramaturgo permaneceu ao lado da
ditadura soviética.
Em 1939, depois do pacto germano-soviético, Shaw
disse: "Hitler está sob a poderosa influência de Stalin, cuja
predisposição para a paz é impressionante. E a todos,
menos a mim, assusta a sagacidade deles!".[18] Uma
semana depois, começava a Segunda Guerra Mundial, com
Hitler invadindo a Polônia em sua fronteira ocidental,
prontamente seguido por Stalin, que invadiu o mesmo país
em sua porção oriental.
A lista de intelectuais prestigiados que dispararam as
mesmas afirmações absolutamente irresponsáveis e
também defenderam posições desesperadamente
perigosas, irreais e precipitadas poderia se estender quase
indefinidamente. Muitos intelectuais formadores de opinião
são devidamente reconhecidos dentro de seus campos de
estudo, mas a questão, no caso, é que muitos deles não se
limitam aos seus respectivos campos. Como George J.
Stigler disse a respeito de alguns de seus colegas
agraciados com o Nobel, "mensalmente, e muitas vezes
sem qualquer fundamento, eles lançam severos ultimatos
ao público".[19]
O equívoco fatal que tais intelectuais cometem é
supor que uma habilidade intelectual ímpar, dentro de um
segmento em particular, deriva sabedoria e moralidade
universal superiores. Mestres de xadrez, prodígios musicais,
dentre muitos outros talentos que são igualmente
extraordinários dentro de suas especialidades, assim como
certos intelectuais, raramente cometem o mesmo erro. Tal
constatação é suficiente para que façamos uma aguda
distinção entre a ocupação intelectual e os padrões
intelectuais. Esses padrões estão sujeitos aos desvios e às
violações perpetrados pelos membros da ocupação
intelectual, especialmente quando os intelectuais se
dedicam a exercer seu papel de formadores de opinião,
emitindo pronunciamentos sobre a sociedade e exortando
essa ou aquela política governamental. O que foi dito sobre
John Maynard Keynes por seu biógrafo e colega economista
Roy Harrod valeria para muitos outros intelectuais:

Ele falava sobre uma grande variedade de tópicos,


alguns dos quais ele revelava ser um profundo
conhecedor, mas em relação a outros ele apenas
adaptava sua visão a partir de algumas páginas
de livros que ele folheara rapidamente. Em ambos
os casos, porém, o ar de autoridade era o mesmo.
[20]

◆ ◆ ◆
CONCEITOS DE CONHECIMENTO
CONCORRENTES
Frequentemente e de forma arbitrária, a forma como o
conhecimento é usado por muitos intelectuais limita que
tipo de informação verificada e analisada será considerada
conhecimento. Essa limitação arbitrária, em relação ao
significado do termo, foi expressa numa paródia sobre
Benjamin Jowett, mestre da Faculdade Balliol, na
Universidade de Oxford:
Meu nome é Benjamin Jowett.
Se for o caso de conhecimento, eu conheço.
Sou o mestre desta faculdade.
Aquilo que não sei, não é conhecimento.
Uma pessoa considerada "entendida" possui
geralmente um tipo especial de conhecimento. Talvez
possua conhecimento acadêmico ou de outro tipo qualquer,
mas que não é amplamente encontrado entre a população
em geral. Alguém que tenha muito mais conhecimento
sobre coisas mundanas, como encanamento, carpintaria e
beisebol, por exemplo, estará muito menos propenso a ser
reconhecido, pelos intelectuais, como "entendido ou
Versado", pois, para eles, tudo o que desconhecem não
pode ser considerado conhecimento. Embora o tipo especial
de conhecimento associado aos intelectuais seja
geralmente mais valorizado e receba mais prestígio social,
não é certo, de forma alguma, que seja, necessariamente,
mais significativo em seus efeitos no mundo real. O mesmo
vale para o conhecimento associado ao universo dos
especialistas. Sem dúvida, os profissionais encarregados de
conduzir o Titanic tinham muito mais qualificação nos vários
aspectos da navegação em comparação com a maioria das
pessoas comuns, mas o que revelou ser crucial, em suas
consequências, foi o conhecimento mundano sobre onde
estariam localizados os icebergs da região naquela noite. De
forma semelhante, muitas decisões econômicas se
encontram crucialmente dependentes do tipo de
conhecimento mundano que os intelectuais talvez
desdenhem, não o considerando um conhecimento genuíno
no sentido que geralmente atribuem ao termo.
A localização das coisas é apenas um dos tipos de
conhecimento mundano e sua importância não se restringe,
de forma alguma, à localização de icebergs. Por exemplo, o
conhecimento mundano sobre a localização do cruzamento
da Avenida Broadway com a Rua 23, em Manhattan, pode
ser considerado irrelevante para determinar se um sujeito
qualquer deve ser visto como uma pessoa entendida das
coisas. Todavia, para um negociante procurando abrir uma
loja, tal conhecimento pode representar a diferença entre a
falência e a capacidade de fazer milhões de dólares.
As empresas investem grande soma de tempo e
dinheiro para determinar a exata localização de suas
operações, e essas decisões não são, de forma alguma,
aleatórias. Não é mera coincidência que postos de gasolina
sejam sempre encontrados nas esquinas e geralmente
próximos de outros postos, da mesma forma que
concessionárias de veículos estão com frequência
localizadas umas perto das outras, ao passo que papelarias
raramente se encontram próximas umas das outras.
Pessoas bem-informadas sobre o mundo dos negócios
comentam que um dos fatores que respondeu pelo
espetacular crescimento da rede Starbucks foi provocado
pela atenção que seus gestores e executivos deram à
escolha dos pontos para o estabelecimento das lojas, e um
dos fatores que explica o fechamento de centenas de lojas
Starbucks, em 2008, foi justamente abandono de tal prática.
[21] Já se tornou clichê, entre os corretores, que os três
fatores mais determinantes sobre o valor dos imóveis são a
localização, a localização e a localização.
A localização é apenas mais um, dentre muitos outros
fatores mundanos que, não obstante, impõem
consequências significativas e, em geral, decisivas. O
conhecimento mundano de uma enfermeira sobre se
determinado paciente é alérgico à penicilina pode
representar a diferença entre a vida e a morte. Quando um
avião se aproxima do aeroporto em procedimento de
aterrissagem, a observação da torre de controle de que o
piloto se esqueceu de abaixar o trem de pouso é o tipo de
informação cuja transmissão imediata para o piloto se faz
crucial, apesar de tal conhecimento não exigir nenhuma
capacidade intelectual maior que a visão. Um conhecimento
antecipado sobre o local do desembarque das tropas aliadas
no Dia D, o qual previsse que aquele desembarque ocorreria
nas praias da Normandia e não em Calais, como esperava
Hitler, teria levado a uma completa alteração na distribuição
das forças nazistas, o que acarretaria baixas muito mais
altas, ceifando a vida de um número muito maior de
soldados, talvez de uma forma tão aguda que condenasse
toda a operação, mudando, assim, o curso da guerra. Dessa
maneira, boa parte desse conhecimento especial que se
concentra no universo dominado pelos intelectuais pode,
contudo, não ter o mesmo peso e as mesmas
consequências que tem o conhecimento muito mais
mundano e singelo que está espalhado entre a população
em geral. Em seu conjunto, o conhecimento mundano pode
sobrepujar em muito o conhecimento especial das elites
tanto em quantidade quanto em consequências. Se, por um
lado, o conhecimento especial dos intelectuais se estrutura
quase invariavelmente como conhecimento articulado, por
outro lado outros tipos de conhecimento não precisam estar
articulados entre si nem mesmo precisam estar
conscientemente articulados. Friedrich Hayek incluía como
conhecimento "todas as adaptações humanas ao meio
ambiente, nas quais a experiência pretérita foi
incorporada". Ele complementa:

Nesse sentido, nem todo o conhecimento faz parte


de nosso intelecto nem nosso intelecto responde
pelo todo do conhecimento. Nossos hábitos e
habilidades, nossas atitudes emocionais, nossas
ferramentas, e nossas instituições - são todos,
nesse sentido, adaptações à experiência passada
que se desenvolveu por meio de uma seletiva
eliminação de modos menos apropriados. Assim
como nosso conhecimento consciente, eles
formam parte da mesma fundação indispensável
para o sucesso das ações humanas.[22]

◆ ◆ ◆

CONCENTRAÇÃO E DISPERSÃO DE
CONHECIMENTO
Quando tanto o conhecimento especial quanto o
conhecimento mundano são contemplados e tidos como
conhecimento genuíno, torna-se duvidoso se mesmo a
pessoa mais culta do planeta tem sequer uma pequena
fração de todo o conhecimento acumulado do mundo ou
mesmo uma pequena fração do conhecimento mais
significativo de uma sociedade qualquer.
Tal constatação traz sérias implicações, as quais
podem, dentre outras coisas, ajudar-nos a explicar o motivo
pelo qual tantos intelectuais proeminentes têm defendido,
tantas vezes, noções que provam ser absolutamente
desastrosas. Não é apenas com o apoio dado às políticas e
agendas particularmente desastrosas que os intelectuais
revelam os perigos embutidos em suas decisões e seus
favorecimentos. Toda a abordagem sobre a condução da
sociedade - a própria ideologia que comungam - tem em
geral refletido uma concepção fundamentalmente errada
sobre o conhecimento e sua concentração ou dispersão.
Muitos intelectuais e seus seguidores ficam
excessivamente impressionados pelo fato de as elites
altamente educadas - eles próprios - terem muito mais
conhecimento per capita - no sentido de conhecimento
especial - do que a população em geral. A partir dessa
noção é necessário apenas um pequeno passo para que
legitimem as elites educadas como guias superiores,
declarando que têm o direito de impor o que deve e não
deve ser feito na sociedade. Eles geralmente ignoram o fato
crucial de a população em geral ter uma quantidade muito
superior de conhecimento total - no sentido mundano - do
que têm as elites, mesmo quando tal conhecimento se
encontra espalhado em fragmentos, individualmente
insignificantes, dentre um vasto contingente populacional.
Se ninguém tem nem sequer 1% do conhecimento
atualmente disponível, sem contar a vastidão de
conhecimento ainda por vir, a imposição, de cima para
baixo, de noções estimadas pelas elites, por estarem
convencidas da superioridade de seu conhecimento e de
suas virtudes, é uma fórmula certeira para o desastre.
Por vezes o desastre é de ordem econômica, como
aconteceu, por exemplo, com a noção de planificação da
economia, adotada por tantos países mundo afora, durante
o século XX. Porém, até mesmo aqueles países governados
pelos comunistas e socialistas começaram, no final do
mesmo século, a substituir suas economias planificadas, de
cima para baixo, por noções de mercado livre. Sem dúvida,
os planejadores governamentais tinham muito mais
conhecimento e muito mais dados estatísticos à disposição
do que a pessoa comum dispunha negociando no mercado.
No entanto, a vastíssima superioridade numérica acumulada
de conhecimentos mundanos, acionada por milhões de
indivíduos comuns, os quais realizam e acomodam suas
operações em suas atividades diárias, tem produzido, quase
que invariavelmente, índices de crescimento econômico e
de melhora de padrão de vida muito maiores do que os
índices obtidos pelas políticas de planificação da economia,
as quais foram, finalmente, descartadas. Isso se deu de
forma notável na China e na Índia, onde os índices de
pobreza tiveram acentuada queda, ao mesmo tempo em
que o crescimento econômico sofreu grande aceleração.
Economia planificada é apenas um item que compõe
uma classe mais geral de processos de apropriação de
tomada de decisão, na qual se encontra implícita a
suposição de uma superioridade cognitiva das elites. Essa
noção afirma que as pessoas com mais conhecimento per
capita - no sentido especial - devem conduzir suas
sociedades. Outras formas dessa mesma noção geral
incluem ativismo judicial, planejamento urbano e outras
atividades institucionais que endossam a crença na
incapacidade da grande e inculta população para, a partir
de seus valores e suas ações, tomar decisões sociais de
peso. Mas se ninguém detém nem sequer 1% de todo
conhecimento disponível - ao considerarmos o sentido mais
amplo do conhecimento, no qual muitos tipos diferentes de
conhecimento são decisivos -, então se torna imperativo
que os outros 99% de conhecimento, que se encontram
espalhados em pequenas e individualmente insignificantes
quantidades entre as pessoas em geral, possam ter
liberdade de operação nas acomodações mútuas que se
estabelecem entre as pessoas. Essas inúmeras
acomodações e mútuas interações são responsáveis pela
inserção, na sociedade, dos outros 99% do conhecimento
acumulado - o que gera novos conhecimentos no processo
incessante de ida e vinda das transações, refletindo
mudanças na oferta e na demanda.
Esse é o motivo pelo qual os mercados livres, as
normas judiciais consagradas e a confiança nas decisões e
tradições baseados nas experiências de muitos - no lugar
das pressuposições de alguns poucos da elite - são tão
importantes para os que não compartilham da visão social
que prevalece entre as elites intelectuais. Portanto,
verdadeiros abismos ideológicos dividem aqueles que têm,
entre si, distintas concepções sobre o significado do
conhecimento, e que, consequentemente, veem o
conhecimento como algo concentrado ou disperso. "Em
geral, 'o mercado' é mais esperto que o mais esperto de
seus participantes individuais",[23] é a forma que o falecido
editor do Wall Street Journal, Robert L. Bartley, expressava
sua crença na força dos processos sistêmicos, os quais
podem, por meio das interações e mútuas acomodações
operadas por muitos indivíduos, engendrar muito mais
conhecimento para a sociedade e suas tomadas de decisão
do que qualquer um dos indivíduos isoladamente.
Processos sistêmicos são essencialmente processos
de tentativa e erro, os quais se alimentam dos resultados
repetidos e contínuos de suas ações, recebendo constante
feedback de todos os participantes envolvidos nos
processos. Em contrapartida, nos processos políticos e
legais as decisões iniciais são raramente alteradas, pelo alto
custo que representam às carreiras políticas, sempre que é
preciso admitir erros ou, no caso do sistema legal, que os
precedentes estão em jogo. Porque retirar o poder de
tomada de decisões das mãos dos que têm experiência e
interesses concretos sobre determinada questão e transferi-
lo para aqueles sem nenhuma experiência e
responsabilidade diretas pode ser tido como capaz de gerar
melhores decisões, e essa é uma questão raramente
colocada, e muito menos ainda respondida. Devido ao
grande custo de corrigir decisões tomadas por terceiros,
comparando-se com as decisões individuais, além do custo
ainda maior em se insistir no erro toda vez que se toma
decisões por conta própria, comparando-se com o baixo
custo de tomar decisões erradas quando não nos afetam
diretamente, o sucesso econômico das economias de
mercado não chega a ser surpreendente, como também não
nos surpreende a falta de produtividade e os resultados
geralmente desastrosos das várias formas de engenharia
social.
Pessoas dos dois lados da divisão ideológica podem,
contudo, acreditar que aqueles com mais conhecimento
devem receber mais destaque na tomada de decisões que
gerem impacto na sociedade, mas essas pessoas têm
concepções radicalmente diferentes sobre onde se
encontra, de fato, a maior quantidade de conhecimento na
sociedade. Caso o conhecimento seja definido de forma
expansiva, incluindo grande parcela de conhecimento
mundano cuja presença ou ausência é significativa e em
geral crucial, então os sujeitos com ph.D. serão
considerados tão estupidamente ignorantes sobre as coisas
mais significativas quanto os outros indivíduos o são, na
medida em que ninguém poderá ser realmente bem-
informado, no nível exigido para tornada de decisões cujas
consequências afetem a sociedade como um todo, exceto
dentro de uma margem estreita, a partir do vasto espectro
que compreende as preocupações humanas.
A parcela de ignorância, preconceito e pensamento
grupal que habita o universo de uma elite educada não
deixa de ser ignorância, preconceito e pensamento grupal, e
para aqueles que detêm 1% do conhecimento em uma
sociedade, conduzir ou controlar os outros 99% é tão
perigoso quanto absurdo. A diferença entre conhecimento
especial e conhecimento mundano não é apenas incidental
ou semântica. Suas implicações sociais acarretam grandes
consequências. Por exemplo, é muito mais fácil concentrar
poder do que concentrar conhecimento. Esse é o motivo
pelo qual tantos tiros da engenharia social saem pela
culatra e por que tantos déspotas levaram seus países ao
desastre.
Quando o conhecimento é concebido, corno o fez
Hayek, de forma expansiva, incluindo conhecimentos não
articulados, mas expressos em nossos hábitos sociais e
costumes, então a transferência desse conhecimento
compartilhado por milhões de pessoas para se concentrar
nas mãos de alguns poucos tomadores de decisão
terceirizados se torna algo muito problemático, para não
dizer impossível, na medida em que muitos dos que estão
operando com esse conhecimento não o articularam
completamente para eles mesmos, e com isso não podem
transmiti-lo para outros, ainda que queiram fazê-lo.
Muitos ou mesmo a maioria dos intelectuais opera sob
a suposição, implícita, de que o conhecimento se encontra
concentrado em pessoas como eles. Eles se tornam,
portanto, especialmente suscetíveis à ideia de uma
correspondente concentração de poder, legitimando e
apropriando-se, como elite, das decisões mais significativas,
em nome de um alegado espírito público o qual beneficiará
toda a sociedade. Tal suposição tem sido a base fundadora
dos movimentos reformistas, como o movimento
progressista dos Estados Unidos, como também dos
movimentos revolucionários em muitos outros países por
todo o mundo. Além disso, com o conhecimento
considerado significativo já tido como concentrado, aqueles
com essa visão frequentemente começam a conceber a
necessidade de se criar uma vontade e um poder para se
lidar coletivamente com uma ampla gama de problemas
sociais. A ênfase na "vontade", no "comprometimento", no
"cuidado" ou na "compaixão", colocados como ingredientes
cruciais para lidar com questões sociais, descarta,
automaticamente, se os que alegam ter essas qualidades
também têm conhecimento suficiente.
Por vezes a suficiência de conhecimento é
explicitamente afirmada e quaisquer questionamentos
sobre a real suficiência são sumariamente descartados,
como se refletissem ignorância ou obstrução. John Dewey,
por exemplo, declarou: "Em posse do conhecimento
necessário podemos, tomados de esperança, começar a
trabalhar num projeto de invenção social e engenharia
experimental".[24] Mas a pergunta ignorada é a seguinte:
Quem - caso exista alguém - possui esse tipo de
conhecimento?
Dado que os intelectuais têm todo incentivo do
mundo para enfatizar a importância do tipo especial de
conhecimento que possuem, em relação ao conhecimento
mundano que os outros têm, eles geralmente são os
promotores de projetos de ação que ignoram o valor, o
custo e as consequências do conhecimento mundano. É
comum entre os membros da intelligentsia, por exemplo,
deplorarem muitos métodos de separação e categorização
de coisas e pessoas, dizendo geralmente, no caso das
pessoas, que "cada uma deveria ser julgada como um
indivíduo". Todavia, o custo necessário para realizar esse
tipo de aferição quase nunca é considerado. Modelos de
custo mais baixo para a avaliação de indivíduos - abarcando
desde boletins de desempenho até testes de Q.I. - são
usados precisamente porque julgar "a pessoa como um
todo" significa a aquisição e a manipulação de vastíssima
quantidade de conhecimento a um custo altíssimo, o que
pode ocasionar o atraso de decisões em circunstâncias em
que o tempo é crucial. Dependendo de quão expansivo for o
conceito de "avaliação da pessoa como um todo", o tempo
necessário pode exceder a duração da vida humana, o que
tornaria a avaliação impraticável.
As forças armadas separam as pessoas em patentes,
as faculdades separam seus candidatos de acordo com o
resultado de testes de vestibular e quase todo mundo avalia
as pessoas por outros inúmeros critérios. Muitos ou mesmo
a maioria desses métodos de avaliação são criticados pelos
membros da intelligentsia, os quais fracassam em apreciar
a escassez e o alto custo do conhecimento e a necessidade
de se tomar decisões de peso, apesar da escassez e do alto
custo envolvidos, o que necessariamente inclui o custo
adicional de equívocos. Os riscos de se tomar decisões em
posse de conhecimento parcial ou incompleto (não havendo
alternativa) são parte integrante da tragédia da condição
humana. Contudo, isso não fez com que os intelectuais
cessassem de criticar os riscos inerentes a quaisquer
operações humanas, que acabam se complicando, da
indústria farmacêutica às operações militares, muito menos
os impediu de criar uma atmosfera geral de expectativas
irrealizáveis, na qual "os milhares de choques naturais que a
carne humana herda" se tornam milhares de motivos para
processos judiciais. Sem certa apreciação sobre a tragédia
da condição humana, é muito fácil considerar qualquer
coisa que vai mal como sendo culpa de alguém.
É comum, entre os intelectuais, agir como se o tipo
especial de conhecimento sobre generalidades pudesse e
devesse substituir e passar por cima do conhecimento
mundano dos outros. Tal ênfase no conhecimento especial
dos intelectuais leva geralmente a desconsiderar o
mundano, o conhecimento de primeira mão, tido como
"preconceituoso" e "estereotipado", favorecendo-se as
crenças abstratas que são comuns entre os intelectuais, os
quais podem ter pouco ou nenhum conhecimento de
primeira mão sobre os indivíduos, as organizações ou as
circunstâncias concretas envolvidas. Além do mais, tais
atitudes não são somente disseminadas para muito além
das fileiras da intelligentsia, mas se tornam base de
políticas, leis e decisões judiciais.
Um pequeno e relevante exemplo das consequências
sociais dessa atitude nos é dado ao observarmos o quanto
muitas políticas empresariais que estabeleciam os períodos
de aposentadoria para seus empregados se tornaram ilegais
por "discriminarem a idade". Foi dito que tais políticas são
baseadas em estereótipos sobre os mais velhos, os quais
poderiam ainda ser produtivos para além da idade da
"aposentadoria compulsória". Em outras palavras, terceiros,
cuja vida não tem qualquer interesse ou ligação com os
resultados concretos, nenhuma experiência direta com as
empresas e indústrias em particular, como também nenhum
conhecimento sobre empregados e indivíduos
particularmente envolvidos, são tidos, supostamente, como
possuindo uma compreensão superior sobre os efeitos da
idade sobre o trabalho, são considerados mais aptos a
decidir do que aqueles que têm, de fato, experiência em tal
situação, um conhecimento direto tão mundano quanto o
conhecimento pode ser. E ainda, os empregadores têm
incentivos econômicos para segurar trabalhadores
produtivos, especialmente pelo fato de terem que pagar
pelo recrutamento de substitutos e investir na preparação
deles, ao passo que tomadores de decisão terceirizados não
pagam preço nenhum ao se enganarem.
O próprio termo "aposentadoria compulsória" exibe
certo virtuosismo retórico característico da intelligentsia, e a
habilidade perniciosa que dele advém, ao se obscurecer, em
vez de esclarecer, uma análise racional. Raramente, houve
qualquer coisa como aposentadoria compulsória.
Empregadores estabeleciam uma idade, para além da qual
eles automaticamente cessavam de contratar as pessoas.
Essas pessoas ficavam livres para trabalhar em outros
lugares e muitas faziam isso. Mesmo dentro de uma
empresa com uma política automática de aposentadoria,
esses empregados que permaneciam claramente produtivos
e valiosos podiam ter a aposentadoria postergada, seja por
um período determinado ou mesmo indefinidamente. Mas
tais suspensões se baseavam em conhecimento específico
sobre pessoas específicas, não se faziam a partir de
abstrações generalizadas sobre quão produtivos os mais
velhos podem ser.
Da mesma forma, praticamente todas as conclusões
adversas sobre qualquer minoria étnica são sumariamente
desconsideradas pela intelligentsia, alegando-se
"preconceitos", "estereótipos" e assim por diante. Por
exemplo, um biógrafo de Theodore Roosevelt disse:
"Durante seus anos como fazendeiro, Roosevelt adquirira
boa dose de preconceito contra os índios, o que o colocava
numa estranha contradição diante de sua atitude
esclarecida em relação aos negros”.[25] Temos aqui um
escritor distante aproximadamente cem anos, em particular
dos índios com que Theodore Roosevelt teve que lidar
pessoalmente no Oeste, mas que declara a priori que as
conclusões de Roosevelt estavam equivocadas e eram
baseadas em puro preconceito, mesmo ao dizer que o
preconceito racial não era uma característica da
personalidade de Roosevelt.
Provavelmente, jamais ocorreria para esse autor que
era ele quem concluía, baseado num explícito
prejulgamento, um preconceito, mesmo que fosse um
preconceito comum, ao passo que as conclusões de
Theodore Roosevelt eram baseadas em sua própria
experiência pessoal com indivíduos em particular. Muitos
intelectuais parecem indispostos a conceder que o homem
em cena, em determinada época, possa chegar a
conclusões precisas sobre indivíduos em particular que
encontrou ou observou, ao mesmo tempo que negam que,
muito distantes no tempo e no lugar, poderiam, eles,
intelectuais, estar enganados quanto às conclusões
baseadas em seus próprios preconceitos.
Outro escritor, ainda mais distante no tempo e no
espaço, descartou como puro preconceito o conselho de
Cícero aos seus compatriotas romanos, o qual os exortava a
não comprarem escravos britânicos, pois estes não
aprendiam os afazeres com facilidade.[26] Considerando a
enorme diferença entre o primitivo, iletrado e tribal mundo
dos bretões da época e o sofisticado mundo dos romanos, é
difícil imaginar como um bretão, em cativeiro em Roma,
poderia compreender as complexas circunstâncias, os
métodos e as expectativas de uma sociedade tão
radicalmente diferente. Mas a própria possibilidade de
Cícero saber o que estava falando a partir de sua
experiência direta não recebeu nenhuma atenção do autor,
o qual o acusou de preconceito, sem direito à apelação.
Um exemplo muito mais recente de intelectuais que
desprezam a experiência direta e concreta de outros,
favorecendo as suposições predominantes entre seus pares,
envolveu acusações de estupro, nacionalmente divulgadas
pela mídia, movidas contra três alunos da Universidade
Duke em 2006. Esses alunos eram membros do time de
lacrasse e, na onda de condenação que instantaneamente
tomou conta do campus e da mídia, seu único defensor,
desde o começo, foi o time feminino do esporte. Essas
mulheres em particular já conheciam, havia muito tempo,
os rapazes acusados e foram, desde o início, inflexíveis em
sua posição, dizendo que os três jovens em questão não
eram o tipo de pessoa que cometeria esse tipo de crime. O
caso envolvia estupro e questões raciais, mas cabe destacar
que uma garota negra do time de lacrasse havia tomado a
frente na defesa do caráter dos meninos.[27]
Desde o início, na ausência d e qualquer evidência,
em ambos os lados da questão, não havia motivo para que
declarações não corroboradas a favor ou contra os acusados
devessem ser aceitas ou rejeitadas sem uma análise
criteriosa. No entanto, as declarações das garotas do time
de lacrasse não foram apenas descartadas, mas foram,
sobretudo, denunciadas.
Essas garotas foram caracterizadas como "estúpidas e
mimadas garotinhas", em comentários citados no Atlanta
Journal Constitution, como pessoas que "negam o senso
comum", segundo um articulista do New York Times, como
"imbecis", de acordo com outro articulista do Philadelphia
Daily News, e "ignorantes e insensíveis", segundo o
articulista do Philadelphia Inquirer.[28]
Em outras palavras, membros da intelligentsia, a
centenas de milhas de distância, os quais nunca tinham
visto os rapazes em questão, estavam tão convencidos de
sua culpabilidade com base num compartilhado a priori
grupal da intelligentsia, que se viram no direito de atacar e
ofender o grupo de meninas que conhecia direta e
pessoalmente os indivíduos envolvidos, incluindo sua
atitude e seus comportamentos em relação às mulheres em
geral e às negras em particular. Foi um exemplo clássico de
presunção de conhecimento superior exibido por
intelectuais que tinham, contudo, menos conhecimento do
que aqueles cujas conclusões eles prontamente
desqualificaram e denunciaram. Infelizmente, esse não foi o
único exemplo, nem mesmo um exemplo incomum.
◆ ◆ ◆

ESPECIALISTAS
Uma ocupação especial que se sobrepõe à dos
intelectuais, mas que não se faz completamente coincidente
a ela, é a dos especialistas. Alguém pode, afinal de contas,
ser especialista em literatura espanhola ou em filosofia
existencialista - cujo produto final, em ambos os casos,
consiste de ideias -, ou alguém pode ser especialista em
reparar transmissões de automóveis ou em apagar
incêndios em campos petrolíferos, cujo produto final é um
serviço prestado. Obviamente que apenas o primeiro grupo
de especialistas se encaixa em nossa definição de
intelectuais.
Os especialistas de qualquer área intelectual são
exemplos clássicos de pessoas cujo alto conhecimento está
concentrado dentro de uma margem estreita, a partir de um
vasto espectro de preocupações humanas. Além do mais, a
interação inevitável entre inúmeros fatores do mundo real
significa que, mesmo dentro dessa margem estreita, fatores
que chegam de fora da margem podem interferir nos
resultados de uma forma significativa, transformando um
especialista, cuja especialização não abrange esses outros
fatores, num amador. Tal realidade é fundamental quando
se trata de decisões que terão consequências de peso,
mesmo dentro do que é normalmente considerado o campo
de especialidade do especialista. Por exemplo, nos Estados
Unidos do começo do século XX, especialistas em
reflorestamento previram uma "fome de madeira" que
nunca se materializou, uma vez que eles não conheciam o
suficiente sobre economia para que compreendessem como
os preços, com o passar do tempo, alocam recursos, a ssim
como alocam recursos entre usuários em determinado
período.[29]
Uma histeria semelhante sobre uma iminente
exaustão de outros recursos naturais, como o petróleo,
floresceu no último século. Porém as repetidas previsões
catastróficas sobre uma quantidade de petróleo suficiente
para durar apenas uma década e meia foram repetidamente
desmentidas por experiências que mostraram o
aparecimento de novas reservas do recurso, aumentando a
quantidade de petróleo disponível em relação ao que
prevíamos.[30]
Ao seguirmos os especialistas, as organizações não
lucrativas e os movimentos sociais, os quais exibem nomes
com forte apelo idealista, vemos, quase sempre, uma
tentativa de induzir esforços desinteressados, os quais
estariam imaculados de qualquer interesse próprio. Essa é
mais uma das muitas percepções que não sobrevivem,
contudo, ao escrutínio empírico. Descontando-se os
interesses velados dos especialistas no uso de suas
especialidades, no lugar de outros mecanismos econômicos
ou sociais, ainda nos sobra bastante evidência empírica
para revelar sua parcialidade. Os urbanistas são um
exemplo típico:
Geralmente, os urbanistas organizam sessões
imaginárias, nas quais o público é consultado
sobre desejos de moradia que serão aplicados em
suas regiões.

Em uma dessas sessões de imaginação típica, o


público é questionado, em tópicos direcionados,
sobre sua preferência. Você gostaria de mais ou
menos poluição? Você gostaria de gastar mais ou
menos tempo no trânsito para o trabalho? Você
gostaria de morar numa vizinhança feia ou bonita?
Os urbanistas induzem as respostas a fim de
reforçar suas noções preconcebidas, geralmente
calcadas em alguma forma de crescimento
inteligente. Se você quer menos poluição, você
deve querer, portanto, menos carros. Se você quer
gastar menos tempo para chegar ao trabalho,
você deve querer uma cidade mais densa para
que, então, possa viver próximo do trabalho. Se
você quer uma torta de maçã, você deve lutar
contra o alastramento da cidade que pode
seccionar o pomar das macieiras.[31]

Descontando-se o lado tendencioso das questões,


uma tentativa honesta de obter informações significativas a
partir de respostas que não custam nada para responder
seria relevante, apenas, num mundo sem custos, mas o
fator crucial no mundo em que vivemos é justamente o fato
de que todas as ações ou inações implicam custos, os quais
têm que ser levados em conta para que se possa chegar a
uma conclusão racional. "Racional" é usado aqui no seu
sentido mais básico - a habilidade de colocar as coisas em
proporção, como nos "números racionais" em matemática -,
de forma que as decisões racionais sejam decisões que
coloquem na balança uma coisa em relação à outra, que se
estabeleça um processo de negociação distinto de uma
cruzada para se alcançar "uma coisa boa", sem custos
envolvidos.
Os urbanistas, como outros especialistas, sabem
muito bem que seus próprios rendimentos e carreiras
dependem do fornecimento de ideias vendáveis, que sejam
atraentes para aqueles que as empregam, incluindo
especialmente os políticos cujos objetivos e métodos se
tornam os objetivos e métodos dos especialistas. Mesmo no
momento em que os especialistas são obrigados a passar
pela formalidade de avaliar os custos em relação aos
benefícios, isso pode permanecer apenas uma formalidade
em um processo no qual um objetivo já foi escolhido
politicamente. Por exemplo, depois que uma avaliação
promovida por um político e submetida a um especialista
propôs um novo sistema ferroviário para "aprimorar
positivamente o fluxo de passageiros em viagens
ferroviárias com redução de custos", mas que fez os custos
se acumularem e os rendimentos despencarem, disparando
um escândalo público, o político, mesmo assim, foi capaz de
dizer: "Não é minha culpa, pois confiei em previsões feitas
pela nossa equipe e parece que ela cometeu um grande
erro".[32] Em outras palavras, os especialistas geralmente
não são chamados para fornecer informações factuais ou
análises imparciais para tomadas de decisão de homens
públicos responsáveis, mas para dar cobertura política para
decisões já feitas e baseadas em considerações
completamente outras. A mudança do critério de tomada de
decisões baseado em processos sistêmicos, os quais
envolvem milhões de pessoas em suas mútuas
acomodações que agem por sua conta e risco, para um
critério no qual são os especialistas que impõem um plano
mestre sobre todos, já seria bastante problemático mesmo
se estes fossem livres para fornecer sua própria e idônea
avaliação. Em situações nas quais os especialistas são
simplesmente parte da vitrine que mascara decisões
arbitrárias e até mesmo corruptas, a confiança no que
"todos os especialistas "dizem sobre determinada questão
torna-se, então, extremamente arriscada. Mesmo no ponto
em que os especialistas se encontram desimpedidos, aquilo
com que "todos os especialistas" estarão sempre propensos
a concordar é a necessidade de se usar a especialização
para lidar com os problemas públicos.
É claro que os especialistas têm o seu lugar e podem
ser extremamente valiosos nesses lugares. Isso é, sem
dúvida, o sentido da velha expressão "especialistas devem
estar na base, não no topo”. Para decisões sociais mais
amplas, todavia, os especialistas não devem agir como
substitutos dos processos sistêmicos, os quais comportam
inúmeros fatores que lhes escapam e sobre o s quais
nenhum indivíduo, isoladamente, pode se tornar um
especialista, pois esses processos respondem pelos 99% do
conhecimento socialmente decisivo que se encontra
espalhado fragmentariamente entre a população em geral e
que se coordena, sistematicamente, em suas acomodações
mútuas de demanda e oferta.
Na União Soviética, o simples fato de os planejadores
socioeconômicos terem, na época, mais de 24 milhões de
preços para estabelecer, revela a absurdidade da tarefa
exigida pela organização central do partido. O fato de as
políticas de planificação da economia terem fracassado
repetidamente em muitos países por todo o mundo, tanto
nas democracias quanto nas ditaduras, não se deu porque
os planejadores não eram especialistas, ou mesmo
especialistas competentes, nas tarefas que estavam sob seu
controle, mas porque o planejamento central teve que ser
abandonado país atrás de país, no final do século XX,
mesmo em países regidos por governos comunistas ou
socialistas, sugerindo a profundidade e inevitabilidade do
fracasso.
A planificação da economia politicamente centralizada
é apenas um dos aspectos que compõem a engenharia
social, organizada de cima para baixo. Todavia, os péssimos
resultados em outros campos não se fazem tão
estrondosamente óbvios, tão prontamente quantificáveis e
tão visivelmente inegáveis, como no caso da economia,
embora esses outros resultados sociais possam ser tão ou
ainda mais ruinosos.[33] Sabendo-se que advogados e juízes
são especialistas d a área d o direito e que exercem um
valioso papel em suas especialidades, ambos têm se
inclinado, contudo, ao longo dos anos e de forma crescente,
para além de suas funções originais, usando a lei como "um
instrumento de mudança social", o que significa que eles
começaram a tomar decisões amadoras sobre questões
complexas, as quais ultrapassam em muito as estreitas
fronteiras da competência profissional de juízes e
advogados. Além do mais, o consenso que existe entre
esses especialistas em questões que ultrapassam suas
especializações, é que tamanha atribuição acaba reforçando
seu senso de auto-importância, como acontece com
especialistas de outros campos, fazendo-os imaginar que a
diferença entre o grupo da elite ao qual pertencem e o resto
das pessoas é quase que, axiomaticamente, a diferença
entre as pessoas cultas e bem-informadas e as massas
ignorantes.
Entre os muitos exemplos desse tipo de atitude
pernóstica, temos a conferência judicial de 1960, na qual
um comissário de polícia aposentado se esforçava para
explicar, para juízes e professores de direito, como a
extensão dos direitos dos criminosos, adotada por eles, era
prejudicial à eficiência das operações policiais. Entre os
presentes, participavam da sessão o membro da Suprema
Corte, o juiz William J. Brennan, e o presidente do Supremo,
o juiz Earl Warren, que se mostraram "imperturbáveis"
durante toda a apresentação do comissário, segundo relato
do New York Times, mas posteriormente "caíram em
gargalhadas "depois que um professor de direito se
levantou para apontar a imbecilidade jurídica que o
comissário acabara de falar.[34] No entanto, tal
desconsideração desdenhosa não se baseava em qualquer
evidência factual, e a evidência posteriormente acumulada
pelos anos tornou dolorosamente claro que o combate ao
crime estava perdendo terreno, com vertiginoso aumento
nos índices de criminalidade.
Antes da revolução nas interpretações judiciais
criminais que se deu no começo da década de 1960, a taxa
de homicídio nos Estados Unidos estivera em declínio por
décadas e, por volta de 1961, era menor que a metade d o
que fora e m 1933.[35] Porém, essa longa tendência
decrescente nos índices de homicídio foi interrompida
repentinamente durante a década de 1960 e, em 1974, já
era o dobro do que havia sido em 1961.[36]
No entanto, as observações de primeira mão e os
anos de experiência direta e diária, nesse caso o relato do
comissário de polícia aposentado, não foram somente
desprezados, mas também ridicularizados por pessoas que,
por sua vez, apoiavam-se exclusivamente em
pressuposições adotadas pela elite intelectual chique,
embora fossem noções completamente não comprovadas.
Nem a questão nem o episódio são casos isolados, apenas
mais um exemplo da visão dos que, em vez de responder às
questões pertinentes, soberbamente desdenham a
experiência dos outros, protegidos em sua superioridade
alternativa.
◆ ◆ ◆

O PAPEL DA RAZÃO
Existem tantas concepções de razão e de sua função
social quanto existem concepções do conhecimento e de
suas funções. Ambos, porém, merecem uma análise.
◆ ◆ ◆

RAZÃO E JUSTIFICAÇÃO
A suposição implícita de que existe um conhecimento
superior entre as elites intelectuais, o qual fundamenta as
exigências dos próprios intelectuais, existe, pelo menos,
desde o século XVIII, ou seja, a noção de que as ações,
políticas ou instituições "justificam-se diante do crivo da
razão". Contudo, os termos sob os quais essa exigência é
expressa mudaram desde o século XVIII, embora a premissa
básica tenha permanecido inalterada. Hoje, por exemplo,
muitos intelectuais apresentam acentuada indignação
porque alguns executivos corporativos recebem salários
muito polpudos. Como se tivesse que existir uma razão
determinando que terceiros, fora do mundo corporativo,
devessem entender ou legitimar esses valores ou mesmo
que sua compreensão ou seu consentimento devessem ser
necessários, influenciando aqueles que estão diretamente
envolvidos na contratação e no pagamento dos altos
salários desses executivos, os quais procedem com base no
conhecimento e na experiência diretos que têm sobre os
valores, num assunto que diz respeito a eles e não aos
intelectuais.[37]
De forma semelhante, muitos membros da
intelligentsia expressam não apenas surpresa como
também indignação e revolta com o alto número de tiros
disparados pela polícia nos confrontos com os criminosos.
Todavia, esses intelectuais, em sua maioria, nunca usaram
uma arma na vida e muito menos enfrentaram situações de
perigo desse tipo, nas quais a diferença entre morrer e viver
depende de decisões tomadas num átimo de segundo.
Raramente, se muito, a intelligentsia considera necessário
buscar informações sobre a precisão dos tiros, quando
disparados em situações de estresse e perigo, antes de
proferir sua indignação e exigir mudanças. Na realidade, um
estudo feito pelo Departamento de Polícia de Nova York
descobriu que, mesmo dentro de uma distância de apenas
dois metros, mais da metade dos tiros disparados pela
polícia errou o alvo por completo. Em distâncias de 14 a 25
metros, uma distância menor do que aquela da primeira
para a segunda base na demarcação do beisebol, apenas
14% dos tiros acertaram o alvo.[38]
Embora esses fatos possam ser surpreendentes para
os que nunca dispararam uma arma em situação de perigo
real, ou mesmo num alvo imóvel, dentro da segurança e
tranquilidade de um campo de tiros, o que é crucial para o
nosso caso é o fato de os membros da intelligentsia, e
aqueles que são influenciados por eles, não terem percebido
a necessidade de buscar informações factuais antes de
expressar sua indignação, mantendo-se em completa
ignorância em relação aos fatos. Além disso, mesmo quando
um criminoso é atingido por um disparo, isso não o torna,
necessariamente, incapacitado de reagir, o que pode
prolongar a troca de tiros sempre que o criminoso continue
a representar perigo real. Mas tal conhecimento mundano
não parece despertar o menor interesse para aqueles que,
dentro da elite, compõem os quadros que se exasperam em
indignação sobre coisas que estão muito além de sua
experiência e competência.[39]
Sob o alegado amparo da razão e a fim de exigir que
as coisas se justifiquem sob seu crivo, num universo onde
ninguém detém nem sequer 1% de todo o conhecimento
significativo, os intelectuais acabam, na realidade,
celebrando a ignorância que pode, então, agir livremente.
Como um neurocirurgião pode justificar seus procedimentos
para alguém que nada sabe sobre anatomia e
funcionamento do cérebro ou sobre cirurgias médicas?
Como um carpinteiro pode justificar sua escolha sobre os
pregos e a madeira usados para pessoas que desconhecem,
em absoluto, a prática da carpintaria, especialmente se o
carpinteiro em questão estiver sendo acusado de delito por
advogados e políticos cujas habilidades retóricas podem
exceder, grandemente, as do carpinteiro, muito embora o
conhecimento deles sobre carpintaria seja muito inferior? A
confiança gerada por um conhecimento acadêmico superior
pode ocultar, dos próprios membros da elite, a extensão de
sua ignorância e de seus equívocos. Além disso, os
argumentos contra o carpinteiro são articulados por uma
elite ignorante que se exibe para um público que é
igualmente ignorante sobre a questão, e tanto faz se esse
público se encontra nos júris ou nas sessões e cabines de
votação, pois os argumentos poderão facilmente mostrar-se
convincentes, mesmo quando eles são absurdos para os
carpinteiros.
Uma coisa é a população, em geral, realizar suas
próprias transações e acomodações em questões que lhes
são, individualmente, próprias, o que se faz, no entanto,
completamente diferente de impor decisões, coletivamente,
para a sociedade em geral. Tomadas de decisão cuja
aplicação é coletiva, seja por meio de processos
democráticos, seja por intermédio de ordens verticais de
comando, envolve pessoas que tomam decisões para
muitas outras, as quais são privadas de tomar as suas
próprias. O mesmo problema de conhecimento inadequado
e insuficiente aflige ambos os processos. Voltemos mais
uma vez, e por um momento, para a questão da
planificação total da economia, como o exemplo máximo de
tomada de decisão feita por terceiros, quando burocratas,
nos dias da União Soviética, tinham que determinar mais de
24 milhões de preços. A consecução dessa tarefa mostrou
ser impossível para qualquer grupo administrável de
burocratas, mas seria, no entanto, um problema muito mais
fácil de resolver num país composto por centenas de
milhões de pessoas, caso cada uma tomasse decisões
sobre, relativamente, o pequeno número de preços
relevantes às suas próprias transações econômicas.
Nesse caso, os níveis de incentivos, assim como de
conhecimento, são diferentes. Os incentivos para se investir
tempo e energia são muito maiores toda vez que as
consequências são diretas para a pessoa envolvida, em
comparação com o incentivo em investir um montante
similar de tempo e energia em decisões que afetarão, na
maior parte das vezes, a vida de outras pessoas e cujos
efeitos sobre o sujeito serão dificilmente alterados, num
processo em que se é só mais um dentre milhões de votos.
A noção de que as coisas precisam se justificar diante
do crivo da razão abre as comportas para condenações
arrasadoras, proferidas por pessoas que nada entendem do
assunto, embora possuam certa ignorância credenciada.
Diferenças de rendimentos e ocupações não são
compreendidas pelas elites intelectuais, pois geralmente
elas estão desprovidas de boa parte do conhecimento
necessário para entender essas realidades, tanto no que diz
respeito às especificidades mundanas quanto sobre a
economia em geral, que prontamente se transformam em
"disparidades" e "desigualdades", sem explicações
adicionais. Do mesmo modo fazem os intelectuais que
nunca dispararam uma arma na vida, mas que não pensam
duas vezes antes de manifestar sua indignação em relação
ao número de tiros disparados pela polícia em confronto
com criminosos. Dessa e de outras formas, meras noções
passam por cima do conhecimento toda vez que lidamos
com as noções predominantes entre os intelectuais.
Essa falácia central e as péssimas consequências
sociais que podem aparecer não se limitam às elites
intelectuais. O esmagamento do poder de decisão
individual, o qual é sobreposto pela imposição de decisões
tomadas em nome do coletivo, que nos chegam pelas mãos
de terceiros, sejam esses terceiros membros da elite ou das
massas, significa, geralmente, permitir que a ignorância se
sobreponha ao conhecimento. Uma pesquisa de opinião
pública ou o voto popular sobre questões envolvendo
procedimentos de carpintaria seria tão irrelevante quanto
são as noções agraciadas pela elite. O aspecto
reconfortante é que, em comparação com as elites, as
massas estão, em geral, muito menos propensas a pensar
que deveriam sobrepor seu veredicto sobre pessoas cuja
relação e cujo conhecimento sobre determinado assunto em
questão são muito maiores que os delas. Além do mais, as
massas não têm as mesmas habilidades retóricas para
ocultar dos outros, ou de si mesmas, a verdadeira
motivação de seus empreendimentos.
A exaltação que os intelectuais fazem da "razão" dá-
se, frequentemente, em detrimento da experiência,
permitindo que tenham uma impetuosa confiança em
assuntos sobre os quais têm pouco ou mesmo nenhum
conhecimento ou experiência. A ideia que fazem sobre o
que desconhecem, descartando tudo o que lhes escapa
como conhecimento não genuíno, pode ser traduzida em
chavões como "os tempos mais simples de outrora".
Chavões estes disparados por pessoas que, ao se
esquivarem de fazer um estudo detalhado de determinada
época, ficam pouco propensas a aceitarem a insuficiência
de seus próprios conhecimentos sobre as complexidades da
época em questão para, então, atribuir-lhe uma ausência de
complexidade. Oliver Wendell Holmes observou que a lei
romana continha "um conjunto de tecnicalidades mais difícil
e menos compreendido que o nosso".[40]
Burocratas planejadores não fazem parte da única
elite cujo conhecimento especial provou ser, na prática,
menos efetivo que o montante muito mais vasto de
conhecimento mundano, difundido entre a população em
geral, nem a economia de mercado é o único cenário onde o
desequilíbrio de conhecimento entre as elites e a massa, em
favor da última, é escancaradamente o oposto do que é
percebido pelas próprias elites. Se, corno disse Oliver
Wendell Holmes, a vida das leis está alicerçada na
experiência e não na lógica,[41] então, nesse caso, também
temos milhões de pessoas, especialmente as sucessivas
gerações, as quais, juntas, detêm conhecimentos muito
mais vastos, na forma de experiência pessoal, do que os
círculos relativamente menores dos especialistas em lei.
Isso não quer dizer que os especialistas não têm função a
cumprir, seja no caso do direito ou em outros aspectos da
vida. Mas a natureza dessa função apresenta-se de forma
muito diferente toda vez que o conhecimento especializado
das elites e a experiência das massas precisam ser
combinados.
Dentro de uma área suficientemente circunscrita de
poder decisório, os especialistas, respeitando seus limites,
têm um papel vital a cumprir. Aqueles que detêm um
conhecimento especializado em direito podem e devem
tomar decisões nos tribunais, aplicando leis que foram
desenvolvidas a partir da experiência de muitos. Isso é,
contudo, algo fundamentalmente distinto de criar ou alterar
leis para encaixá-las nos modismos ideológicos de juízes e
professores das faculdades de direito. Da mesma maneira,
alguém que tenha talentos e habilidades especiais para
coletar informações e transmiti-las ao público, usando os
canais de mídia, pode se tornar uma parte indispensável no
funcionamento de uma sociedade democrática, mas tal
função é completamente diferente daquela em que
jornalistas se apropriam das informações, filtrando e
alterando as notícias a fim de sustentar conclusões que
refletem as noções favorecidas dentro dos círculos
jornalísticos, como será mostrado no capítulo 5.
A diferença entre realizar o s papéis tradicionalmente
determinados e usar esses mesmos papéis para ampliar o
poder e expandir a influência, a fim de interferir em
questões sociais mais amplas, também se aplica àqueles
professores que atuam como doutrinadores nas salas de
aula ou àqueles líderes religiosos que promovem uma
teologia da libertação, assim como vale para os generais
que desalojam governos civis com golpes militares. O que
as várias e ambiciosas elites civis estão fazendo é criar
menores e mais numerosos golpes, apropriando-se das
decisões sociais que outros foram autorizados a fazer, a fim
de adquirir poder ou influência em muitos assuntos para os
quais elas não têm nem o conhecimento especializado nem,
em muitos casos, a mais simples competência.
A permanência de um sujeito dentro dos limites
ditados pela competência de sua especialidade, ou sua
aventura para além desse papel em áreas que ultrapassam
seu campo de especialização, depende, em parte, de se
esse sujeito presume possuir mais conhecimento do que as
pessoas cujas decisões estão sendo apropriadas. A forma
como o conhecimento é visto afeta a maneira como a
sociedade é vista, assim como afeta como o papel de um
sujeito, dentro dessa sociedade, é avaliado.
◆ ◆ ◆

O RACIONALISMO IMEDIATISTA
A fé dos intelectuais na "razão" assume, por vezes, a
forma de uma crença na capacidade de decidir todos os
assuntos usando recursos ad hoc, à medida que os
problemas surgem. Em princípio, a razão pode ser aplicada
a um período de tempo limitado ou expandido, como cada
um desejar, um dia, um ano, uma geração ou mesmo um
século, ao se analisar as implicações das decisões em
relação às quais a duração de tempo pode ser escolhida.
Um racionalismo essencialmente imediatista corre o risco
de restringir suas análises às implicações imediatas de cada
assunto à medida que vão surgindo, perdendo o foco das
implicações mais profundas sobre certas decisões. As
abordagens imediatistas podem apresentar méritos em
relação ao assunto imediatamente à disposição,
considerado de forma isolada, mas que pode se revelar
desastroso nos termos de suas repercussões no longo prazo,
que são ignoradas. Um exemplo clássico foi dado na
resposta de um intelectual francês à crise da
Tchecoslováquia, que levou à realização da conferência de
Munique de 1938:

Um eminente cientista político francês, Joseph


Barthélemy, professor de direito constitucional na
Universidade de Paris e representante francês na
Liga das Nações, levantou, no Le Temps, a
questão que os líderes franceses tinham que
responder: "Vale a pena botar fogo no mundo a
fim de salvar o Estado da Tchecoslováquia, o qual
compreende um amontoado de nacionalidades? É
necessário que três milhões de franceses, toda
nossa juventude universitária, de nossas escolas,
de nosso interior e de nossas fábricas, sejam
sacrificados para que três milhões de alemães se
submetam à soberania tcheca?".[42]

Tendo-se em vista que não era a França que


ameaçava colocar fogo no mundo, mas Hitler, a questão
mais ampla seria aquela que perguntasse se, ao ameaçar
botar fogo no mundo, caso as coisas não fossem feitas do
seu jeito, Hitler seria o tipo de pessoa que deveria ser
apaziguada com essa abordagem imediatista, perguntando
até que ponto tal política de apaziguamento poderia, afinal
de contas, encorajá-lo ainda mais, deixando suas exigências
cada vez mais ousadas. De forma contrária, Winston
Churchill destacara, seis anos antes, que "cada concessão
que havia sido feita "à Alemanha" fora seguida,
imediatamente, por uma nova exigência".[43] Churchill
certamente rejeitava o racionalismo imediatista.
Na época em que Barthélemy ainda debatia a crise da
Tchecoslováquia, Hitler já tomara o passo crucial em direção
aos preparativos para a guerra na Europa ao remilitarizar a
região da Renânia, em franco desafio aos tratados
assinados, e ao dar início ao recrutamento obrigatório de
tropas num momento em que não havia nenhuma ameaça
militar contra a Alemanha, além de anexar a Áustria pela
força. Como bem disse Winston Churchill na época: "A
Europa é confrontada com um esquema de agressão
devidamente calculado e cronometrado, o qual se desdobra,
diante de nossos olhos, a cada novo estágio". Esse
raciocínio levantou a questão de longo prazo, lançada por
Churchill: "Quantos amigos ficariam alienados, quantos
aliados em potencial se perderiam, um atrás do outro,
sugados pelo pavoroso rodamoinho, quantas vezes o blefe
sairia, mais uma vez, vitorioso, até que, por trás de cada
blefe, as forças em operação tivessem se consolidado?"[44]
A realidade estava estampada para que todos
pudessem vêla, mas apresentar a imediata crise da
Tchecoslováquia de forma isolada revelou ser a maneira
mais eficiente de se esquivar às profundas implicações que
refletiam uma série de ações calculadas no longo prazo, o
que gerou um recrudescimento ainda mais intenso da
ameaça, na medida em que mais e mais recursos caíam sob
o controle da Alemanha nazista, aumentando o seu poderio
militar. Essa ameaça se tornaria ainda maior com a
incorporação dos significativos recursos da Tchecoslováquia,
os quais caíram sob o controle de Hitler, um desastre que a
França acabaria experimentando dois anos mais tarde
quando as forças invasoras alemãs submeteram a França
rapidamente, usando, dentre outras coisas, tanques
fabricados na Tchecoslováquia.
Esse tipo de raciocínio imediatista foi aplicado
inúmeras vezes tanto em questões estrangeiras quanto
domésticas. No coração dessa abordagem encontra-se a
alegação de que os intelectuais podem definir uma questão
da forma que lhes convém, e o que acontece no mundo real
permanecerá dentro das determinações por eles definidas.
Mas o tempo é apenas uma das muitas coisas que podem
ultrapassar as fronteiras das definições e concepções feitas
pelos homens. Por exemplo, embora pareça muito humano
"perdoar" os empréstimos contraídos por países do Terceiro
Mundo, ao menos dentro da perspectiva imediatista, o que
acontece hoje afeta a maneira como as pessoas vão se
comportar amanhã. Nesse caso, países do Terceiro Mundo
tomam, repetidamente, dinheiro emprestado, mas que eles,
não menos repetidamente, não conseguem saldar em
função de um explícito "perdão" ou porque as agências
internacionais de crédito permitem que eles financiem
montantes cada vez maiores, usando os recentes
empréstimos que são direcionados para saldar empréstimos
mais antigos,mas sem qualquer solução real que salde as
dívidas usando os próprios recursos. Irresponsabilidade
fiscal raramente oferece uma saída para a pobreza, seja
para indivíduos, seja para nações.
Os furacões na Flórida e os incêndios no sul da
Califórnia são fenômenos recorrentes, mas cada nova
catástrofe natural é tratada como uma distinta e imediata
crise, absorvendo não apenas os recursos e esforços de
salvamento do governo, mas também vastos montantes de
dinheiro do contribuinte para permitir que as pessoas que
moram nessas regiões possam reconstruir nas mesmas
áreas de risco.[45] Qualquer administração que recusasse
impor aos contribuintes os gigantescos custos de subsídios
para reconstrução nessas áreas de risco seria, sem dúvida,
condenada de todos os lados, não apenas por seus rivais
políticos, mas por uma larga parcela da mídia e membros da
intelligentsia, os quais observam cada furacão ou incêndio,
em particular, tomados da velha perspectiva imediatista,
em vez de enxergar a atuação de um padrão que se move
de segundo em segundo com um histórico definido e cujo
futuro pode ser previsto.
CAPÍTULO 3
OS INTELECTUAIS E A CIÊNCIA
ECONÔMICA

Tanto faz ser conservador ou radical, protecionista ou


em prol do livre comércio, cosmopolita ou nacionalista,
cristão ou pagão, pois é útil, a todos, conhecer as
causas e as consequências dos fenômenos econômicos.

GEORGE J. STIGLER[46]

Aqueles intelectuais que não atuam no campo dos


estudos em economia mostram, em grande parte, uma
notável falta de interesse em aprender até mesmo os
fundamentos mais básicos da ciência econômica. No
entanto, sempre que podem não hesitam em proferir
pronunciamentos bombásticos sobre a situação econômica,
o mundo dos negócios e questões em torno do que é
chamado de "distribuição de renda". O famoso romancista
John Steinbeck, por exemplo, ao comentar sobre a grande
quantidade de fortunas doadas por filantropos norte-
americanos disse:

Tem-se apenas que se lembrar desses financistas


como predadores, os quais passam dois terços da
vida retirando, das entranhas da sociedade, suas
fortunas, passando o último terço devolvendo
alguma coisa.[47]
Apesar do virtuosismo retórico do cenário criado, uma
imagem chocante de lucros arrancados das entranhas da
sociedade, Steinbeck, assim como a maioria dos
intelectuais, não se preocupa em demonstrar se, realmente,
a sociedade se tornou mais pobre em função das atividades
comerciais de pessoas como Carnegie, Ford ou Rockefeller,
os quais, assim como muitos outros, fizeram fortuna ao
reduzir os preços de seus produtos, ganhando terreno
diante de seus concorrentes. Esses preços mais baixos
tornaram os produtos mais acessíveis a um número maior
de pessoas, o que gerou, simultaneamente, aumento no
padrão de vida da população e no número de fortunas com
a enorme expansão do mercado. Em outras palavras, foi um
processo de criação geral de riqueza, não um processo por
meio do qual alguns se tornam ricos por intermédio do
empobrecimento de outros.
No entanto, imagens explicitamente negativas sobre o
livre mercado são constantemente criadas com frases do
tipo "barões do lucro" e "donos do capital", mas não
respondem, contudo, às perguntas mais óbvias, como
"Quem os barões do lucro lesavam quando reduziam seus
preços?" ou "Como se pode alegar que o sucesso econômico
dessas pessoas, as quais geralmente começam suas
atividades com poucos recursos (ou mesmo dentro de
circunstâncias afetadas pela pobreza, como no caso de J. C.
Penney e F. W. Woolworth), seja entendido como uma
estrutura hierarquicamente herdada, na qual os donos do
capital seriam vistos como reis?" A questão não é sobre a
adequação ou a inadequação das respostas a tais
questionamentos, pois na maioria dos casos tais questões
não são sequer levantadas e muito menos respondidas.
Para todos os efeitos, é a visão dos intelectuais que
substitui e se impõe tanto aos fatos quanto às questões.
Isso não quer dizer que ninguém, no mundo dos
negócios, nunca fez nada de errado. Os homens santos têm
sido igualmente incomuns em quase todas as áreas, tanto
nas salas do mundo corporativo quanto nos gabinetes
governamentais ou mesmo nos ambientes universitários.
Todavia, a questão aqui não é de culpabilidade individual ou
de delitos particulares. A questão levantada tanto pelos
críticos do mundo corporativo como por seus defensores
trata dos méritos ou eventuais deméritos de processos
institucionais alternativos que sirvam aos interesses
econômicos da sociedade. Implícita, em muitas das críticas
feitas aos processos de mercado, encontra-se a suposição
de que são processos de soma zero, nos quais o que é
ganho para alguns é, necessariamente, perda para outros.
Contudo, raramente tal suposição é expressa de forma
aberta, mas, sem a sua insinuação, muito do que se diz não
teria como se sustentar.
Talvez a questão socioeconômica mais importante ou
aquela mais frequentemente debatida seja a que recebe o
nome de "distribuição de renda", embora o termo seja um
tanto quanto ilusório, e as conclusões tiradas pela maior
parte dos membros da intelligentsia sejam ainda mais
ilusórias.
◆ ◆ ◆

"DISTRIBUIÇÃO DE RENDA"
Por um lado, as variações de renda podem ser
observadas empiricamente e, por outro, podem receber
julgamentos morais. Os membros da intelligentsia
contemporânea, em sua grande parte, praticam ambos. Mas
a fim de aferir a validade das conclusões que tiram, é
aconselhável, em primeiro lugar, avaliar as questões
empíricas em separado das questões morais, em vez de
tentar destrinchar as duas ao mesmo tempo, sem nenhuma
expectativa de encontrar coerência racional.
◆ ◆ ◆
EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS
Considerando-se a renda da população dos Estados
Unidos, temos uma enorme quantidade de dados
estatísticos, os quais se encontram disponíveis no Censo, na
Receita Federal e em outros inumeráveis institutos de
pesquisa. Portanto, seria possível imaginar que os fatos
fundamentais sobre as variações de renda seriam
amplamente conhecidos pelas pessoas informadas, mesmo
que estas viessem a ter opiniões divergentes em relação
aos termos ideais na composição dessas variações. Na
realidade, todavia, são justamente os fatos mais
fundamentais que estão em litígio, e as variações no que se
considera ou não fatos relevantes parecem ser tão grandes
quanto às variações na própria renda. Em relação à renda,
tanto a magnitude das variações como suas tendências, ao
longo do tempo, são percebidas de forma radicalmente
diferentes, de acordo com distintas visões sobre a realidade,
mesmo sem levar em conta as diferentes expectativas das
pessoas.
Talvez o terreno mais fértil para geração de equívocos
sobre a questão da renda seja dado pela prática,
amplamente adotada, de confundir categorias estatísticas
com seres humanos de carne e osso. Tanto na mídia quanto
no mundo acadêmico, são muitas as afirmações que alegam
que os ricos não estão, apenas, aumentando sua renda,
mas, sobretudo, apropriando-se de uma fatia maior da
renda total, aprofundando a defasagem entre o topo e a
base da escala. Quase sempre tais alegações são baseadas
numa confusão sobre o que esteve acontecendo, ao longo
do tempo, nas categorias estatísticas e o que esteve
acontecendo, durante o mesmo período, com as pessoas
reais, as pessoas de carne e osso.
Por exemplo, um editorial do New York Times
denunciou que "A defasagem entre ricos e pobres nos EUA
aumentou".[48] Em 2007, conclusões semelhantes
apareceram num artigo publicado na revista Newsweek, o
qual anunciava "uma época em que a diferença entre
pobres e ricos está crescendo, como também aumenta a
diferença entre os meramente ricos e os super-ricos".[49]
Este se tornou um tema bastante comum em toda mídia e
em inúmeros programas de televisão. "Os ricos acumularam
ganhos muito maiores que os pobres", declarou Eugene
Robinson, colunista do Washington Post.[50] No Los Angeles
Times, um escritor disse: "A diferença entre ricos e pobres
está crescendo".[51] Segundo o professor Andrew Hacker,
em seu livro Money: “Embora todos os segmentos da
população usufruam de um aumento geral da renda, a
quinta parte mais rica da população teve um desempenho
24 vezes superior ao da quinta parte mais pobre.
Considerando-se as outras três partes intermediárias, todas
elas tiveram um crescimento inferior, comparando-se com o
topo da escala".[52]
Embora essas discussões sejam concebidas em
função das pessoas, a real evidência empírica assenta-se
sobre o que aconteceu com as categorias estatísticas. Isso,
porém, revela o oposto do que aconteceu com seres
humanos de carne e osso, a maioria dos quais passou de
uma categoria para outra ao longo da vida. Tendo-se em
vista as categorias estatísticas como tais, é de fato verdade
que tanto o montante de renda quanto a proporção de toda
a renda recebida pelos 20% mais ricos, no topo da escala,
aumentaram, alargando a defasagem com os 20% mais
pobres, na base da escala.[53] No entanto, os dados
fornecidos pelo Departamento do Tesouro dos EUA, o qual
acompanhou a evolução econômica de indivíduos
específicos a partir de suas declarações para a Receita
Federal, provam que, em termos pessoais, a renda desses
contribuintes, os quais compreendiam os 20% da base mais
pobre, em 1996, crescera 91% até 2005, ao passo que a
renda dos contribuintes que compunham os 20% do topo,
em 1996, crescera apenas 10% até 2005, e que a renda dos
5% mais ricos teve, de fato, decréscimo.[54]
Pode parecer que ambos os modos de avaliação
estatística sejam incompatíveis a ponto de não poderem ser
verdadeiros ao mesmo tempo, mas o que os torna
mutuamente compatíveis é o fato de os seres humanos de
carne e osso se moverem de uma categoria estatística para
outra ao longo da vida. Quando aqueles contribuintes, os
quais inicialmente se encontravam na faixa mais baixa de
renda, tiveram suas rendas praticamente dobradas em uma
década, isso os moveu para além da quinta parte mais
pobre da escala, e quando o grupo dos 1% mais ricos teve
sua renda decrescida em torno de um quarto, isso também
pode tê-los feito ir para baixo e fora da categoria máxima.
Os dados oferecidos pela Receita Federal seguem indivíduos
particulares ao longo de sua vida econômica a partir de
suas declarações de renda, as quais estão vinculadas aos
dados da Previdência Social, ao passo que os dados do
Censo e de muitas outras fontes fixam-se, apenas, no que
acontece com a composição das categorias estatísticas,
mesmo que não sejam mais os mesmos indivíduos a
compor as mesmas categorias ao longo dos anos.
Muitos dos dados que são usados para se alegar um
alargamento na diferença de renda entre "os ricos" e "os
pobres" - nomes geralmente atribuídos a pessoas com
diferentes níveis de renda e não diferentes níveis de
riqueza, como os termos rico e pobre deveriam implicar -
levaram muitos, na mídia, a alegarem um aumento na
diferença entre os "super-ricos" e os "meramente ricos". Sob
o título "Os Mais Ricos Estão Deixando até Mesmo os Ricos
Muito Atrás", um artigo de primeira página do New York
Times rotulou "a milésima parte mais rica" como os "hiper-
ricos" e declarou que eles "deixam para trás até mesmo
aqueles que ganham centenas de milhares de dólares por
ano".[55] Novamente, a confusão se dá entre o que está
acontecendo com as categorias estatísticas e o que está
ocorrendo com indivíduos de carne e osso na medida em
que avançam ou recuam de uma categoria para outra.
Apesar do aumento de renda de 0,1% dos
contribuintes mais ricos como categoria estatística, tanto
absoluta quanto relativa mente, em relação à renda
verificada em outras categorias, como seres humanos de
carne e osso esses indivíduos que compunham inicialmente
a categoria tiveram, na realidade, uma queda em suas
rendas em vertiginosos 50% entre 1996 e 2005.[56] Não
causa surpresa nenhuma se pessoas cuja renda é cortada
pela metade caírem fora do grupo dos 0,1% mais ricos. O
que acontece com a renda da categoria ao longo do tempo
não é o mesmo que acontece com as pessoas que
pertenciam a essa categoria num momento qualquer. Mas
são muitos os que, na intelligentsia, estão prontos para
adotar quaisquer números que pareçam corroborar sua
visão.
Por trás dos números, acompanhados de retórica
alarmista, encontramos uma realidade um tanto quanto
mundana: o fato de as pessoas, em sua maioria,
começarem a vida profissional na base da escala, com
salários de estagiários. No decorrer do tempo, à medida que
adquirem mais habilidade e experiência, a sua
produtividade crescente acarreta um crescimento da renda,
colocando-as, sucessivamente, em patamares mais altos da
escala. Essas não são as raras narrativas de Horatio Alger,
mas são padrões comuns recorrentes na vida de milhões de
pessoas cujas rendas, em 1975, compunham a base dos
20% de menor renda, mas que alcançaram o topo dos 40%
por volta de 1991. Apenas 5% das pessoas que estavam
inicialmente na base da escala, dividida em cinco
patamares, ainda se mantinham na base em 1991, ao passo
que 29% dos que inicialmente estavam na base tinham
alcançado a quinta parte superior da escala.[57] Ainda
assim, o virtuosismo retórico da intelligentsia transformou
uma faixa transitória, dentro de dada categoria estatística,
em uma classe permanente
chamada de "os pobres".
Assim como a maioria dos norte-americanos inseridos
na categoria estatística identificada como a dos "pobres"
não compreende, de fato, uma classe permanente, estudos
realizados na Grã-Bretanha, no Canadá, na Nova Zelândia e
na Grécia mostram padrões similares de transitoriedade
entre aqueles que participam das camadas de mais baixa
renda em determinado momento.[58] Mais da metade dos
norte-americanos que ganha salário mínimo ou um salário
próximo ao mínimo tem entre 16 e 24 anos de idade.[59] É
claro que esses indivíduos não podem permanecer entre 16
e 24 anos de idade indefinidamente, embora a categoria
etária permaneça, certamente, indefinidamente, fornecendo
a muitos intelectuais os dados que necessitam para
corroborar seus preconceitos.
Ao focar a atenção somente nas categorias de renda,
em vez de perceber o movimento real das pessoas que
transitam entre essas categorias, a intelligentsia foi capaz
de criar, retoricamente, um "problema", para o qual uma
"solução" se faz necessária. Eles criaram uma poderosa
visão de "classes", compreendendo "disparidade" e
"desigualdades" de renda, as quais são causadas por
"barreiras" criadas pela "sociedade". Mas a real e eficiente
rotina de milhões de pessoas, as quais escapam da quinta
parte de mais baixa renda da escala, dá pouca atenção às
supostas "barreiras" sociais tão alardeadas pelos
integrantes da intelligentsia.
Longe de usar suas habilidades intelectuais a fim de
esclarecer a distinção entre categorias estatísticas e seres
humanos de carne e osso, a intelligentsia, pelo contrário,
usa seu virtuosismo retórico com intuito de igualar a relação
numérica variável entre categorias estatísticas com o
crescimento econômico de seres humanos de carne e osso
ao longo da vida, embora esses dados digam uma história
diametralmente oposta à história sugerida pelas meras
categorias estatísticas.
A confusão entre categorias estatísticas e seres
humanos de carne e osso é mantida sempre quando há
confusão entre renda e riqueza. As pessoas chamadas de
"ricas" ou "super-ricas" receberam esses nomes pela mídia
com base em suas rendas, não em sua riqueza. Segundo o
Departamento do Tesouro: "Entre aqueles com as rendas
mais altas em 1996, o 1/100 do topo do 1% mais rico,
apenas 25% permaneceram nesse grupo até 2005".[60] Se
essas fossem pessoas genuinamente super-ricas, fica difícil
explicar por que três quartos delas não mais participam da
categoria uma década mais tarde.
Uma confusão relacionada, embora um tanto
diferente, entre categorias estatísticas e seres humanos
gerou muitas afirmações disparadas
pela mídia e pela academia, as quais diziam que a
renda dos norte-americanos estava estagnada ou que
crescera muito vagarosamente ao longo dos anos. Por
exemplo, durante todo o período entre 1967 até 2005, a
renda familiar média - ou seja, o ajuste de renda conforme a
inflação - cresceu em 31%.[61] Em períodos selecionados no
transcorrer desse longo tempo, a renda real familiar cresceu
ainda menos e esses períodos selecionados são
frequentemente citados pela intelligentsia para se alegar
que tanto a renda quanto o padrão de vida entraram em
"estagnação"[62]. Enquanto isso, a renda real per capita -
individual - cresceu em 122% no transcorrer do mesmo
período, de 1967 até 2005.[63] Quando um aumento de mais
que o dobro da renda é chamado de "estagnação", podemos
observar um dos muitos feitos do virtuosismo retórico.
A razão para tamanha discrepância entre a tendência
das taxas de crescimento no rendimento familiar e a
tendência das taxas de crescimento na renda individual é
muito simples e direta: o número de pessoas por família
tem declinado ao longo dos anos. Em 1996, o Censo
americano relatou que o número de famílias estava
crescendo mais rápido que o número de pessoas e concluiu
que: "O maior motivo para uma taxa de crescimento mais
rápida na formação de famílias é a tendência crescente,
particularmente entre indivíduos não ligados por laços
familiares, em manter a própria residência fixa, em vez de ir
morar com parentes ou mudarem para famílias já
constituídas como hóspedes, inquilinos, e assim por diante".
[64] O crescimento de renda individual tornou isso possível.

Apesar de fatos óbvios e mundanos como esse, as


estatísticas de renda familiar continuam a ser amplamente
citadas pela mídia e pela academia, ao mesmo tempo que
as estatísticas de renda per capita são amplamente
ignoradas, apesar do fato de as famílias serem variáveis em
tamanho, ao passo que a renda per capita sempre se refere
à renda de uma pessoa. Todavia, as estatísticas que a
intelligentsia continua a citar estão a serviço da visão que
ela tem dos EUA, em detrimento das estatísticas que ela
continuamente ignora.
Assim, da mesma forma que as estatísticas de renda
familiar minimizam o real crescimento do padrão de vida
norte-americano, elas enfatizam o grau de desigualdade de
renda na medida em que as rendas familiares mais baixas
tendem a comportar menos pessoas do que as rendas
familiares mais altas. Uma vez que temos 39 milhões de
pessoas vivendo em famílias cujas rendas fazem parte dos
20% da base, existem 64 milhões de pessoas vivendo em
famílias cujas rendas compõem os 20% do topo.[65] Não há,
aqui, também mistério, considerando o número de mães
solteiras com baixa renda e inquilinos de baixa renda
vivendo em pensões ou pagando aluguéis baratos.
Mesmo se cada pessoa, em todo o país, recebesse
exatamente a mesma renda, ainda haveria significativa
"disparidade" entre a renda média familiar do grupo de 64
milhões de pessoas comparada à renda média
compreendendo o grupo de 39 milhões de pessoas. Essa
disparidade seria ainda maior caso apenas a renda dos
trabalhadores adultos fosse computada, mesmo se todos
eles tivessem renda idêntica. Há mais adultos trabalhando
em tempo integral e durante o ano todo nos 5% do topo da
escala do que nos 20% da base.[66]
Muitas estatísticas de renda são igualmente
enganadoras em outro sentido, pois descartam a renda
recebida em gênero, tais como vale-refeição e subsídios de
moradia, cujos valores totais frequentemente excedem o
valor da renda em dinheiro recebida pelas pessoas nas
camadas de renda mais baixa. Em 2001, por exemplo,
transferências em gênero ou dinheiro vivo somaram mais de
três quartos do total dos recursos econômicos à disposição
das pessoas dos 20% da base.[67]
◆ ◆ ◆

CONSIDERAÇÕES MORAIS
Essa diferença entre categorias estatísticas e pessoas
reais afeta as considerações morais, assim como afeta as
questões empíricas. Por mais que se esteja preocupado com
a situação econômica de seres humanos de carne e osso,
isso difere, em muito, de uma indignação com a mera
situação das categorias estatísticas como tais. Por exemplo,
o livro de grande sucesso de Michael Harrington, The Other
America [A Outra América], dramatiza a situação das
estatísticas, lamentando "a angústia "em que vivem os
pobres nos Estados Unidos, dezenas de milhões de
"desfigurados em corpo e espírito" constituindo "a vergonha
da outra América", pessoas "presas num círculo vicioso" que
sofrem uma "deformação da vontade e do espírito, que é
consequência de ser pobre".[68] Mas imantar os dados
estatísticos de revolta moral nada faz para realmente tornar
um participante transitório de uma categoria estatística em
prisioneiro de uma classe permanente, consagrada por meio
do virtuosismo retórico da intelligentsia.
Houve uma época em que tal retórica poderia até
fazer algum sentido nos Estados Unidos, e existem outros
países onde ainda hoje ela pode fazer certo sentido.
Contudo, os norte-americanos que vivem, hoje, abaixo da
linha oficial de pobreza desfrutam, em sua maior parte, de
bens considerados, em outras épocas, exclusivos ao padrão
de vida da classe média, e isso apenas uma geração atrás.
Assim, em 2001, três quartos dos norte-americanos com
renda abaixo da linha oficial de pobreza tinham ar-
condicionado - um bem que apenas um terço dos norte-
americanos tinham em 1971 -, 97% tinham televisor em
cores - um bem que menos da metade dos norte-
americanos tinha em 1971 - e 98% dos "pobres" tinham
videocassete ou tocador de DVD - bens que ninguém tinha
em 1971. Somando-se a isso, 72% dos "pobres" que viviam
nos EUA tinham um veículo a motor.[69] Todavia, nada disso
foi suficiente para alterar a retórica da intelligentsia, apesar
do impacto das mudanças no padrão de vida dos norte-
americanos, especialmente entre segmentos mais baixos de
renda.
A mentalidade típica de muitos intelectuais é
encontrada no livro de Andrew Hacker, o qual se referia aos
trilhões de dólares que se tornam "renda pessoal de alguns
norte-americanos ", dizendo que: "A forma como esse
dinheiro é apropriado será o tema deste livro"[70] Mas esse
dinheiro não é, de forma alguma, apropriado. Ele se torna
renda por meio de um processo completamente diferente.
A própria frase "distribuição de renda" é tendenciosa,
pois ela começa a contar a história do processo econômico
quando ele já se encontra em pleno funcionamento,
contabilizando somente o montante de renda ou riqueza
que já existe. Isso é feito a fim de priorizar a questão de
como essa renda ou riqueza será distribuída ou
"apropriada", como o professor Hacker coloca. No mundo
real, todavia, a situação é bem diferente. Numa economia
de mercado, a maior parte das pessoas recebe renda a
partir do que produz, fornecendo a outras pessoas bens ou
serviços de que necessitam ou desejam, mesmo que esse
serviço seja só trabalho. Cada beneficiário desses bens e
serviços paga segundo um valor determinado em relação ao
que é recebido, escolhendo entre fornecedores alternativos,
a fim de encontrar a melhor combinação custo-benefício.
Esse processo mundano e utilitarista é um tanto
quanto diferente da visão de "distribuição de renda"
enfatizada pelos membros da intelligentsia, os quais
imantam a visão de angústia moral. Caso realmente
existisse um campo preexistente de renda e riqueza, no
caso uma espécie de maná dos céus, então realmente
haveria uma consideração moral em relação ao tamanho da
fatia que cada membro da sociedade receberia. Mas o fato é
que a riqueza é produzida. Ela não é um simples fator
natural já dado. Milhões de sujeitos são pagos segundo o
valor atribuído ao que produzem e isso é feito
subjetivamente, por milhões de outros indivíduos. Não fica
claro, de forma alguma, em que base se poderia dizer que
certos bens e serviços são sobre ou subvalorizados. Em que
base terceiros poderiam determinar que o trabalho em
cozinha deva valer mais, ou que o trabalho em carpintaria
deve valer menos, ou mesmo dizer que a vagabundagem
não é recompensada o suficiente?
Não há mistério algum no fato de milhares de pessoas
a mais escolherem pagar para ouvir Pavarotti cantar do que
pagariam para ouvir um cantor mediano.
Sempre que as pessoas são pagas pelo que
produzem, a produção de uma pessoa pode facilmente valer
mil vezes mais que a produção de outra para aqueles que
são beneficiários dessa produção. Isso acontece porque
milhares de pessoas a mais estão interessadas em receber
alguns produtos e serviços do que o estão em receber
outros produtos e serviços. Por exemplo, quando, devido a
uma lesão, Tiger Woods deixou de participar dos torneios de
golfe por muitos meses, os níveis de audiência nas rodadas
finais dos grandes torneios despencaram, chegando a uma
queda máxima de 61%.[71] Isso pode ser traduzido em
perdas de milhões de dólares em receitas com propaganda,
baseadas em números de telespectadores.
O fato de a produtividade de uma pessoa poder valer
mil vezes mais do que a de outra não significa que o mérito
da primeira é mil vezes maior que o da segunda.
Produtividade e mérito são coisas um tanto quanto distintas.
A produtividade de um indivíduo é afetada por inúmeros
fatores além de seus esforços. Nascer com excelente timbre
de voz é um exemplo óbvio, assim como ser criado num lar
em particular, recebendo um conjunto particular de valores
e de padrões de comportamento, viver num ambiente social
ou geográfico particular, meramente nascer com um
cérebro normal em vez de um cérebro danificado durante o
trabalho de parto, podem trazer diferenças enormes sobre o
que uma pessoa é capaz ou não de produzir.
Além do mais, terceiros não têm condição de avaliar,
de segunda mão, o valor da produtividade de alguém para
outros, e é difícil até mesmo conceber como o mérito de
alguém poderia ser julgado, com acuidade, por outro ser
humano que "nunca esteve em seu lugar". Um indivíduo
criado em condições familiares terríveis ou sob terríveis
condições sociais pode ter grande mérito por ter se tornado
um cidadão decente e mediano, possuidor de habilidades
medianas em seu trabalho de sapateiro, ao passo que outro
indivíduo nascido e criado em condições muito mais
vantajosas que dinheiro e posicionamento social podem, por
exemplo, conferir, pode não ter o mesmo mérito, mesmo ao
se tornar um eminente neurocirurgião. Mas isso é
totalmente diferente de dizer que reparar sapatos é tão
valioso para os outros quanto ser capaz de reparar
problemas cerebrais.
Dizer que o mérito pode ser o mesmo não é a mesma
coisa que dizer que a produtividade é a mesma. Nem
podemos lógica ou moralmente ignorar a discrepância
existente na relativa urgência dos que anseiam por seus
sapatos consertados diante dos que precisam passar por
uma cirurgia cerebral. Em outras palavras, não é
simplesmente uma questão de pesar os interesses entre
beneficiários diretos em suas relações de compra e venda,
mas levar em conta o bem-estar de muitas outras pessoas
que dependem do que esses indivíduos produzem.
Se alguém preferir uma economia na qual a renda
esteja divorciada da produtividade, então o caso para esse
tipo de economia tem que ser tornado explícito. Mas isso é
completamente diferente de uma mera manipulação
retórica, a qual ilustra dois conjuntos estanques, fixando
uma realidade de "distribuição de renda" de hoje versus
uma realidade alternativa de "distribuição de renda" de
amanhã.
Em relação à questão moral, para que certos grupos
de seres humanos sejam responsabilizados, em relação às
disparidades na produtividade entre as pessoas e seus
consequentes ganhos distintos, isso dependeria da
quantidade de controle que um dado conjunto de seres
humanos mantém, ou poderia possivelmente manter, em
relação aos inumeráveis fatores que levaram às diferenças
existentes na produtividade. Uma vez que nenhum ser
humano tem qualquer controle sobre o passado e muitas
das diferenças culturais mais determinantes vêm
justamente na forma de legados culturais, as limitações
sobre o que pode ser feito no presente são limitações reais
sobre até que ponto podemos atribuir fracassos morais para
a sociedade atual. Menos ainda podem as diferenças
estatísticas, entre grupos, ser automaticamente tidas como
"barreiras" criadas pela sociedade. Barreiras existem no
mundo real, assim como existe o câncer. Mas reconhecer
isso não significa que todas as mortes, ou mesmo a maioria
delas, tenham que ser automaticamente atribuídas ao
câncer, ou que a maior parte das diferenças econômicas
possa ser automaticamente atribuída às "barreiras".
Considerando-se as restrições dadas pelas
circunstâncias, existem coisas que podem ser feitas para
tornar as oportunidades mais amplamente disponíveis, ou
ajudar aqueles cujas deficiências são muito severas para
que possam utilizar quaisquer oportunidades que já se
encontram disponíveis. De fato, muito já foi e continua a ser
feito nos Estados Unidos, que é, no mundo, a nação número
1 em atividade filantrópica não apenas em função das
doações financeiras, como em função dos trabalhos
assistenciais, os quais exigem tempo e energia de pessoas
que se dedicam a essas ações. Mas ao se supor que tudo
aquilo que não foi feito poderia ter sido feito,
desconsiderando-se os custos e os riscos, podem-se culpar
os indivíduos e a sociedade, pois o mundo real nunca estará
à altura de algumas visões de sociedade ideal e a
discrepância entre o real e o ideal sempre será julgada,
pelos infalíveis visionários intelectuais, como fracasso moral
da sociedade.
◆ ◆ ◆

OS POBRES EM SEU PAPEL DE CONSUMIDORES


Embora a grande maioria das pessoas que, em
determinado momento, integra a faixa mais baixa de renda
não continue lá permanentemente, algumas o fazem. Além
do mais, alguns bairros em particular podem permanecer,
por gerações, como os locais de moradia de pessoas
pobres, embora muitas delas saiam desses bairros,
mudando para uma vida melhor à medida que sobem de
padrão de vida. Mudanças completas de perfil racial em
determinados bairros são sinais dessa enorme mobilidade
econômica, como, por exemplo, o distrito do Harlem que foi
um dia tomado por uma comunidade judaica de classe
média.[72]
Bairros de baixa renda tendem a apresentar suas
próprias características econômicas e uma das mais
marcantes é que, nesses lugares, os preços tendem a ser
mais altos. As discussões dos intelectuais em torno do tema
"os pobres pagam mais" tomam frequentemente a forma de
acusações e condenações indignadas, dirigidas contra
aqueles que cobram preços exorbitantes justamente às
pessoas que menos podem pagar por eles. As causas e
origens desses preços exorbitantes são imputadas,
implicitamente, àqueles que os cobram, particularmente
associadas às disposições malignas de pessoas
"gananciosas", "racistas", entre outros adjetivos. Raramente
é levantada e muito menos investigada a possibilidade de
que, seja lá quem for o agente que transmite esses altos
preços, ele não é o agente causador dos altos preços em
particular. Aliás, a confusão que se faz entre transmissão e
causa está no coração de boa parte dos debates intelectuais
sobre os "problemas sociais". Em muitos contextos distintos,
os preços geralmente transmitem uma realidade subjacente
sem, contudo, ser a causa daquela realidade.
Dentre essas realidades subjacentes, em muitos
bairros de baixa renda encontramos altos índices de
criminalidade, vandalismo e violência endêmica, assim
como carência de pré-requisitos econômicos para ativar
uma economia de escala, os quais permitem que grandes
cadeias e redes varej istas cobrem preços mais baixos e
lucrem com o volume, como acontece nos casos de bairros
mais prósperos. Mas tais considerações mundanas não dão
aos intelectuais a oportunidade de exibirem o seu tipo
especial de conhecimento, tampouco a oportunidade para
que externem sua presunçosa moralidade, que se revela na
condenação dos outros. Se os estabelecimentos comerciais
em bairros de baixa renda estivessem de fato fixando taxas
mais altas de lucro em seus investimentos, ficaria muito
difícil explicar o motivo pelo qual as grandes cadeias de
lojas e muitos outros tipos de comércio evitam estabelecer
negócios nessas localidades. Esses bairros sofrem com a
carência de muitos serviços comerciais, os quais são
comumente encontrados em bairros mais prósperos.
O mesmo acontece com os custos subjacentes ao se
fornecerem serviços financeiros para pessoas que vivem em
bairros de baixa renda, realidade que também é ignorada
por boa parte da intelligentsia. As altas taxas de juros
cobradas nos empréstimos pessoais para os pobres são
suficientes para disparar inúmeras denúncias que exigem
intervenção governamental para que se coloque um fim aos
juros "abusivos" e "imorais". Nesse caso, o virtuosismo
retórico é frequentemente usado para falar dos juros em
termos de sua porcentagem anual, quando na verdade os
empréstimos contraídos em bairros de baixa renda são
frequentemente feitos para ser saldados em questão de
semanas ou dias, a fim de resolver problemas e imprevistos
financeiros momentâneos. Os valores cedidos em
empréstimo ficam geralmente na casa de algumas centenas
de dólares, em contratos de algumas semanas, com juros
variando em torno de US$ 15,00 a US$ 100,00 por
empréstimo. Isso geraria, em juros acumulados no ano,
valores na casa das centenas, o tipo de estatística que
provoca sensação na mídia e na política.
Os custos reais por trás de tais cobranças são
raramente ou nunca investigados pela intelligentsia, pelos
chamados "defensores dos consumidores" ou por outros que
se encontram igualmente envolvidos no negócio de criar
sensacionalismos e denunciar negócios cuja operação eles
pouco ou nada conhecem. As consequências econômicas de
uma intervenção governamental para limitar as taxas
anuais de juros podem ser observadas, pois foram adotadas
em alguns estados onde tais limites foram impostos. Depois
que o estado do Oregon impôs um limite de 36% sobre os
juros anuais, três quartos dos negócios envolvendo
concessão de "crédito rápido" fecharam as portas.[73] Não é
difícil entender as causas de tal resultado, caso se tenha
paciência para checar os fatos. Com um limite de 36%
fixado sobre os juros anuais, os US$ 15,00 de juros cobrados
para cada US$ 100,00 emprestados ficariam reduzidos para
menos de US$ 1,50 no caso de um empréstimo a ser pago
em duas semanas, o que significa um montante insuficiente
até mesmo para cobrir os custos envolvendo o mero
processamento do empréstimo, sem contar os riscos
implícitos nele.[74]
Os mutuários de baixa renda, a suposta razão para a
preocupação moral das elites, são, portanto, impedidos de
contrair empréstimos baixos, muitas vezes necessários para
resolver exigências ou imprevistos, empréstimos que seriam
ou não contraídos segundo as avaliações de custo-benefício
dos próprios mutuários. Por que tal decisão de custo-
benefício deveria ser, forçosamente, suprimida pela lei,
retirando o poder de decisão da pessoa mais indicada para
avaliar a situação, assim como a mais afetada por ela? Mas
essa é uma questão raramente levantada e quase nunca
respondida. Tratando-se de intelectuais que se consideram
bem informados e moralmente superiores, raramente lhes
ocorreria que estão interferindo em fatores em relação aos
quais são completamente ignorantes, em detrimento de
pessoas que são muito menos afortunadas do que eles.
Por exemplo, num editorial do New York Times que
denunciava as agências de crédito rápido, encontramos o
mesmo mantra de indignação, fundado em ignorância
econômica: "Juros anuais de três dígitos que exploram o
desespero das pessoas (...) sob o manto protetor do
capitalismo". O editorial defendia um teto de juro anual a
36% no intuito de interromper a "exploração flagrante feita
pelas agências de crédito rápido".[75] Quão benéfico esse
discurso foi ao New York Times, ao dizer tais coisas, não nos
diz absolutamente nada se ele de fato fez algum bem para
os pobres, os quais tiveram que enfrentar a subtração de
uma opção dentro de um repertório já bastante limitado de
opções.
◆ ◆ ◆

SISTEMAS ECONÔMICOS
O fato mais fundamental em economia, sem o qual
não haveria economia alguma, é o de a necessidade de
todos sempre superar a disponibilidade das coisas. Se isso
não fosse verdadeiro, então estaríamos vivendo numa
espécie de Jardim do Éden, onde tudo se encontraria
disponível em ilimitada abundância em vez de vivermos
numa economia com recursos limitados e desejos ilimitados.
Por causa dessa escassez herdada, desconsiderando-se
qualquer que seja o sistema econômico em particular,
capitalista, socialista, feudal ou outro qualquer, uma
economia não apenas organiza a produção e a distribuição
da produção resultante, mas, por sua própria natureza,
também tem que ter meios de prevenir que as pessoas
satisfaçam completamente seus desejos. Ou seja, ela
transmite a escassez inerente, sem a qual não haveria
objetivo algum na atividade econômica, apesar de ela não
ser a causadora da escassez.
Numa economia de mercado, os preços transmitem a
escassez inerente por meio de ofertas concorrentes que
buscam recursos e produtividade que não podem ser
desfrutados, ilimitadamente, por todos os licitantes. Isso
pode parecer uma pequena e simples observação, mas até
mesmo intelectuais renomados, como o filósofo John Dewey,
parecem desconhecer essa realidade básica, culpando um
sistema econômico em particular que, ao transmitir
escassez, é tido como seu causador. Dewey considerava a
existente economia de mercado algo "que mantém uma
escassez artificial" em benefício do "lucro pessoal".[76] De
forma semelhante, George Bernard Shaw via na "restrição
da produtividade" o princípio no qual o capitalismo se
fundava.[77] Bertrand Russell desprezava a economia de
mercado por ser um sistema econômico no qual "os ricos
salteadores estão livres para cobrar do mundo o uso de
minerais indispensáveis".[78]
Segundo Dewey, para tornar "a abundância potencial
em realidade" seria preciso "modificar as instituições".[79]
Contudo, ele aparentemente achou desnecessário
especificar quais teriam sido os conjuntos alternativos de
instituições econômicas, no mundo real, que tivessem de
fato produzido uma abundância maior, superando as
instituições que ele criticava, culpando-as de "manter uma
escassez artificial". Como em muitos outros casos, a falta
fundamental de evidência factual, ou mesmo de uma única
afirmação que respeite a lógica, passa frequentemente
despercebida pela intelligentsia sempre que alguém está
dando voz à visão consagrada por seus pares, uma visão
consistente com o projeto da intelligentsia para o mundo.
Da mesma forma, um historiador do século XXI disse
de passagem, como algo muito óbvio para exigir maiores
elaborações, que "o capitalismo criou massas de
trabalhadores afetados pela pobreza".[80] Havia,
certamente, muitos trabalhadores nessa condição nos
primeiros anos do capitalismo, mas não ocorreu ao
historiador em questão, assim como não ocorre à maioria
dos intelectuais, mostrar que foi o capitalismo que
criou tal pobreza. Se, de fato, esses trabalhadores eram
mais prósperos antes do capitalismo, então não apenas
esse fato necessitaria ser demonstrado, mas, sobretudo,
teria que ser explicado o motivo pelo qual esses
trabalhadores renunciaram a esse padrão de vida anterior,
supostamente mais próspero, para trabalhar por menos
para o capitalismo. Raramente, qualquer uma das duas
tarefas são realizadas pelos intelectuais de tamanhas
afirmações e também raramente seus parceiros intelectuais
os desafiam a fazê-las sempre que dizem coisas que se
encaixam na visão dominante da intelligentsia.
◆ ◆ ◆

CAOS VERSUS COMPETIÇÃO


Em economia, dentre outras noções sem
comprovação proferidas pela intelligentsia, estão aquelas
que anunciam o irremediável caos na economia, sem
planejamento ou controle governamental. A ordem criada
por um processo deliberadamente controlado pode ser
muito mais fácil de conceber ou entender, em comparação
à ordem que emerge de um conjunto incontrolável de
inumeráveis interações. Mas isso não significa que a
primeira seja, necessariamente, mais comum, mais
significativa ou mais desejável em suas consequências.
Nem o caos nem o fator aleatório estão,
necessariamente, implícitos em circunstâncias não
controladas. Numa floresta virgem, a flora e a fauna não
estão distribuídas de forma aleatória ou mesmo caótica. A
vegetação que cresce em torno das montanhas muda,
sistematicamente, de acordo com a altitude. Algumas
espécies de árvores aparecem de forma mais abundante em
elevações menores e outros tipos se fazem mais
abundantes em lugares mais elevados. Acima de
determinada altitude não cresce nenhum tipo de árvore e
no cume do Everest, não temos qualquer tipo de vegetação.
Obviamente, nada disso é resultado de qualquer decisão
feita pela própria vegetação, mas depende das
circunstâncias adjacentes, como temperatura e solo. Temos
um resultado sistematicamente determinado revelando um
padrão, não o caos.
A vida animal também varia em função de diferenças
no meio ambiente, e embora os animais, como os seres
humanos (e diferentemente do mundo vegetal), possuam
pensamento e volição, estes nem sempre são os fatores
mais decisivos nos resultados. Que peixes vivam na água e
pássaros voem, em vez do contrário, não se apresenta
como uma questão relacionada às escolhas das espécies,
apesar de haver escolha entre comportamentos em seus
respectivos meios. Além do mais, quais tipos de escolhas de
comportamento sobreviverão à competição, cuja realidade
elimina alguns tipos de resposta ao meio ambiente e
permite que outras permaneçam, não é, de forma
semelhante, uma questão de volição. Portanto, entre a
volição individual e os resultados gerais temos fatores
sistemáticos os quais limitam ou determinam o que
sobreviverá, criando um padrão, em vez do caos.
Nada disso é difícil de entender no mundo natural.
Mas a diferença entre fatores individuais, volitivos e
sistêmicos é raramente considerada pelos intelectuais
quando discutem as economias, a não ser que sejam
economistas. Ainda assim, essa distinção tem sido um lugar
comum entre economistas por mais de dois séculos e não
se trata de, simplesmente, uma questão de opinião ou de
ideologia. A análise sistêmica foi tão comum em Karl Marx
quanto o foi em Adam Smith, já existindo na escola de
economia francesa do século XVIII, chamada de escola
fisiocrata, antes que Marx ou Smith escrevessem sobre
economia.
A analogia entre a ordem sistêmica da natureza e da
economia foi sugerida no título de um dos escritos
fisiocratas do século XVIII, L'Ordre Naturel, obra escrita por
Mercier de la Riviere. Foram os fisiocratas que cunharam a
frase laissez-faire, posteriormente associada a Adam Smith,
baseados na convicção de uma ordem econômica não
controlada que emergia de interações sistêmicas entre
pessoas competindo e se acomodando umas com as outras.
Certamente que, em comparação aos fisiocratas e a
Adam Smith, Karl Marx tinha uma visão bem menos positiva
sobre os resultados da competição de mercado, mas o
crucial, aqui, é saber que ele também analisou a economia
de mercado a partir da realidade das interações sistêmicas,
mesmo quando se tratava da elite econômica, assim como
os capitalistas. Marx disse que a "competição" cria
resultados econômicos que são "completamente
independentes da vontade do capitalista".[81] Portanto,
segundo Marx, na medida em que uma nova tecnologia,
com baixos custos de produção, permite que o capitalista
baixe seus preços, a difusão dessa tecnologia, entre
capitalistas competidores, força que ele os abaixe.[82]
Em sua análise sobre as retrações, depressões ou
"crises" econômicas, dentro da terminologia marxista, Marx
fez uma aguda distinção entre causa sistêmica e volitiva:

Um homem que produziu algo não escolhe se


venderá ou não o seu produto, pois é obrigado a
vendê-lo. Durante as crises temos precisamente a
situação onde ele não pode vender, a não ser
abaixo do preço de produção ou mesmo
assumindo grandes perdas. Portanto, que proveito
tiramos do fato de que ele produziu a fim de
vender? O que nos preocupa é precisamente
descobrir o que se sobrepôs à sua boa intenção.
[83]

Nem em sua teoria econômica nem em sua teoria da


história Marx interpretou os resultados decisivos como
simples realizações de atos de volição individual, mesmo no
caso das elites. Seu colaborador, Friedrich Engels, diz: "O
que cada indivíduo deseja é obstruído por todos os outros e
o que emerge é algo que ninguém desejou".[84] A economia
é exatamente esse padrão que emerge. O historiador
Charles A. Beard buscou explicar a Constituição dos Estados
Unidos por meio dos interesses econômicos dos homens
que a escreveram, mas essa abordagem volitiva nunca foi
usada por Marx e Engels, apesar de a teoria da história de
Beard ser geralmente confundida como exemplo de teoria
marxista da história. Em sua época, Marx desconsiderava
uma teoria semelhante como "pura anedota idiota que
atribui a todos os grandes eventos causas mesquinhas e
pequenas".[85]
A questão não é se a maioria dos intelectuais
concorda ou não com as análises sistêmicas em economia
ou em outras disciplinas. Muitos nunca consideraram e
muito menos confrontaram esse tipo de análise. Aqueles
que raciocinam simplesmente em termos de volição
causativa preveem o caos a partir de decisões individuais
conflitantes, como desvio do controle central dos processos
econômicos. John Dewey dizia que "planos bem
estruturados" seriam necessários "caso o problema da
organização social venha a ser estudado".[86] Caso
contrário, haverá "a continuação de um regime baseado no
acidente, no desperdício e na aflição".[87] Para Dewey, a
"dependência na inteligência" seria a alternativa para o
"acaso e a improvisação"[88] ou seja, para o caos, e aqueles
"hostis ao planejamento social intencional" seriam
considerados a favor de um "individualismo atomístico".[89]
Aqui, como em muitos outros casos, o virtuosismo retórico
transforma os argumentos de pessoas que têm visões
opostas às do intelectual em meras emoções. Nesse caso, a
emoção é revelada na hostilidade ao planejamento social.
Essa hostilidade é presumidamente devida a noções
residuais de uma época que já passou e que via a sociedade
como "a mera coincidência de resultados decorrentes de
uma vasta quantidade de esforços individuais, sem
referência a qualquer fim social comum",[90] segundo o
próprio Dewey. Na época em que John Dewey disse tudo
isso, em 1935, fazia mais de um século e meio que os
fisiocratas franceses tinham publicado seus primeiros
trabalhos, explicando como os mercados competitivos
coordenam, sistematicamente, as atividades econômicas e
alocam recursos por meio de ajustes nos preços, em função
das variações de oferta e demanda.
Concorde-se ou não com as explicações dos
fisiocratas ou as semelhantes e mais sofisticadas
explicações dos economistas posteriores, são esses os
argumentos que teriam que ser discutidos e não
simplesmente evitados, esvaziados e transformados em
meras emoções, argumentando-se sem argumentos. Por
exemplo, o professor Ronald Dworkin, da Universidade de
Oxford, simplesmente ignora os processos sistêmicos em
geral, tanto no campo da economia quanto em outras áreas,
considerando-os "a fé tola a crer que a ética, assim como a
economia, se move a partir de uma mão invisível,
determinando a melhoria dos direitos individuais e do bem
geral, e essa lei moverá a nação à utopia sem atritos, na
qual todos estarão em melhores condições do que
anteriormente".[91]
Mais uma vez, o virtuosismo retórico deturpa, em vez
de responder com base em evidências e lógica, os
argumentos contrários. Na época em que o professor
Dworkin afirmava essas coisas, havia numerosos exemplos
de países cujas economias eram fundamentalmente
economias de mercado, e outros tantos países cujas
economias certamente não eram de mercado. Tal
configuração dava ampla oportunidade para comparações
empíricas, as quais se encontravam prontamente
disponíveis, incluindo comparações entre países
comportando um mesmo povo, como, por exemplo,
Alemanha oriental versus Alemanha ocidental ou Coreia do
Norte versus Coreia do Sul. Mas o virtuosismo retórico torna
desnecessários tanto os argumentos analíticos quanto os
empíricos.
A competição econômica é o que força inúmeras
decisões individuais, em separado, a se reconciliarem, na
medida em que os termos de transação vão se alterando
em resposta às mudanças na oferta e na demanda, as
quais, por sua vez, transformam as atividades econômicas.
Isso não é uma questão de "fé", como diria Dworkin, ou de
ideologia, como diria Dewey, mas de entendimento básico
de economia. John Dewey via os negócios como os agentes
controladores do mercado, mas tal compreensão não se
encontra em perfeita harmonia com o posicionamento da
esquerda. Karl Marx pertencia certamente à esquerda, mas
a diferença é que ele havia estudado economia tão
profundamente como qualquer outro de sua época.
Da mesma forma que Karl Marx não atribuía aos
indivíduos capitalistas o que via como efeitos prejudiciais de
uma economia de mercado, também Adam Smith não
atribuía aos indivíduos capitalistas o que considerava os
efeitos benéficos de uma economia de mercado. As
ilustrações que Smith fez sobre os homens de negócio eram
tão negativas quanto as de Marx,[92] apesar de Smith ser
considerado o santo patrono da economia de mercado.
Segundo Smith, os efeitos sociais benéficos dos
empreendimentos dos homens de negócio "não fazem parte
de suas intenções”.[93] Tanto nos dias de Adam Smith
quanto hoje em dia, mais de dois séculos depois, os
argumentos em favor de uma economia de mercado se
baseiam nas vantagens dos efeitos sistêmicos do modelo ao
alocar eficientemente os recursos escassos, os quais
assumem usos variados, por meio da competição no
mercado. Caso alguém concorde com as conclusões ou
discorde delas, esse é o argumento que precisa ser
confrontado ou evadido.
Contrário ao que pensava Dewey e muitos outros, os
argumentos sistêmicos são independentes de quaisquer
noções de "individualismo atomístico". Não são argumentos
que dizem que o bem-estar de cada indivíduo contribui para
o bem-estar da sociedade. Um argumento desse tipo
ignoraria os processos sistêmicos, os quais se encontram no
coração das análises em economia, seja em Adam Smith,
Karl Marx ou outros economistas. Esses argumentos
econômicos não precisam ser elaborados aqui, uma vez que
são discutidos em detalhes em livros de economia.[94] O
relevante, em nosso caso, é mostrar o quanto esses
intelectuais, os quais veem o caos como único resultado
sempre que o planejamento e o controle governamentais
estão ausentes, raramente se incomodam em confrontar
empírica e analiticamente seus argumentos, mal
interpretando o assunto e distorcendo os argumentos dos
que têm uma visão diferente.
Apesar da dicotomia frequentemente expressa entre o
caos e o planejamento, o que é chamado de "planejamento"
é a supressão forçada dos planos de milhões de pessoas por
meio de um plano imposto pelo governo. O que é
considerado caos são as interações sistêmicas cuja
natureza, lógica e as consequências são raramente
examinadas por aqueles que simplesmente supõem que os
"planejamentos" forçados por terceiros autodesignados são
necessariamente melhores. Herbert Croly, o primeiro editor
da revista New Republic foi uma figura expressiva da era
progressista. Ele caracterizava a concepção de governo
limitado de Thomas Jefferson como "a antiga e letal política
da tendência natural", em contraste com a política de
Alexander Hamilton, tida como "asserção energética e
inteligente para o bem nacional". De acordo com Croly, era
preciso formar "um governo central energético e de visão
clara".[95] Nessa concepção, o progresso depende de
tomadores de decisão terceirizados, decidindo no lugar de
milhões de outros.
Apesar de ser passada a noção de que a escassez é
maquinada para o bem do lucro, numa economia de
mercado essa escassez se encontra, todavia, no coração de
qualquer economia, seja ela capitalista, socialista, feudal ou
outra qualquer. Considerando-se que essa escassez é
inerente ao sistema como um todo - qualquer sistema -, ela
tem que ser transmitida para cada indivíduo de alguma
forma. Em outras palavras, não faz sentido algum, dentro de
qualquer sistema econômico, produzir a maior quantidade
fisicamente possível de qualquer produto, pois isso teria que
ser feito com recursos escassos, os quais poderiam ser
usados na produção de outros produtos, cuja oferta também
se encontra inerentemente limitada, em menor abundância
do que as pessoas querem.
Nas economias capitalistas, os mercados reconciliam
essas demandas em competição pelos mesmos recursos por
meio da variação dos preços, em ambos os mercados, para
os bens de consumo e para os recursos que são alocados
para a produção desses bens. Esses preços tornam
economicamente inviável para um produtor usar um recurso
para além do ponto em que esse recurso tenha um valor
maior para outro produtor, que também está competindo
por ele.
Para o fabricante individual, o ponto no qual não seria
mais lucrativo fazer uso dos fatores de produção - terra,
trabalho e maquinário - é o ponto que determina o limite de
produtividade do fabricante, mesmo se fosse fisicamente
possível produzir mais. Mas embora a lucratividade e a não
lucratividade transmitam esse limite, elas não são sua
causadora, o qual se deve à escassez inerente de recursos
em qualquer sistema econômico, seja ele um sistema
baseado ou não no lucro. Produzir mais, desconsiderando
tais limites, não torna uma economia mais próspera. Pelo
contrário, significa produzir em excesso um bem em
detrimento do aumento da carência de outro, que poderia
ter sido produzido com os mesmos recursos. Essa foi uma
situação dolorosamente comum na economia estatizada da
União Soviética, onde bens encalhados se empilhavam nos
depósitos, ao mesmo tempo que terríveis carências faziam
as pessoas esperarem em longas filas por outros bens.[96]
Ironicamente, Marx e Engels tinham antevisto as
consequências econômicas de preços sancionados e criados
pelos governos, em vez de resultados dos processos de
oferta e demanda. Isso aconteceu muito antes da fundação
da União Soviética, muito embora os soviéticos alegassem
estar seguindo os princípios marxistas. Na publicação de
uma edição póstuma do livro de 1847 de Marx, The Poverty
of Philosophy [A Pobreza da Filosofia], no qual Marx rejeitava
a regulamentação de preços, Engels expôs o problema em
sua introdução editorial. Ele destacou que as flutuações de
preço "trazem, necessariamente, a produção de bens em
qualidade e quantidade requeridos pela sociedade". Sem tal
mecanismo, Engels pergunta "que garantia temos de que
será produzida a quantidade necessária de cada produto,
nem mais nem menos, de forma a não ficarmos privados de
milho e de carne, enquanto ficamos entupidos de açúcar e
afogados em batatas, para que não nos faltem calças para
cobrir nossa nudez, enquanto os botões inundam aos
milhões".[97] Nesse ponto, a diferença entre Marx e Engels,
de um lado, e a maioria de outros intelectuais da esquerda
do outro, era simplesmente que Marx e Engels tinham
estudado economia, e os outros, geralmente, não.
Uma visão volitiva sobre a economia permite que a
intelligentsia, além de políticos e outros, dramatize o
funcionamento econômico, explicando os preços altos em
função da "ambição" e os baixos salários devido à "falta de
compaixão". Embora isso seja parte de uma ideologia, a
ideologia esquerdista não é suficiente para explicar tal
abordagem. "Eu retrato, cruamente, o capitalista e o senhor
de terras", Karl Marx disse na introdução ao primeiro volume
de O Capital. "Meu ponto de referência", todavia, ele
adicionou, "torna menos responsável que qualquer outro o
indivíduo, por relações em cuja realidade ele socialmente
permanece como criatura, não importando o quanto ele
possa se elevar, subjetivamente, acima delas".[98] Portanto,
em Marx os preços e os salários não eram determinados
volitivamente, mas sistematicamente, compreendendo que
não se tratava de uma questão de pertencer ou não à
esquerda, mas de ter ou não um mínimo de noção dos
rudimentos de ciência econômica.
A noção subjacente da fixação volitiva de preço levou,
em nossa própria época, a no mínimo uma dúzia de
investigações federais contra as companhias de petróleo
norte-americanas em resposta ou a uma escassez de
gasolina ou a um aumento nos preços, embora nenhuma
dessas investigações, quando foram lançadas, tenha
conseguido se amparar em fatos que pudessem apoiar as
sinistras explicações que abundam na mídia e na política.
Muitas pessoas acham difícil acreditar que eventos
econômicos negativos não respondam por alguma espécie
de impostura, mesmo que elas aceitem naturalmente
eventos econômicos positivos, como o preço decrescente
dos computadores, os quais, ainda por cima, são muito
melhores que os computadores mais antigos. Nesse caso, a
coisa é vista como o resultado do "progresso" que de
alguma maneira acontece.
Numa economia de mercado, os preços transmitem
uma realidade subjacente sobre a relação entre oferta e
demanda e sobre os custos de produção por trás da oferta,
assim como inúmeras preferências individuais e
negociações por trás da demanda. Ao se olhar os preços
como construções sociais meramente arbitrárias, alguns
podem imaginar que os preços existentes podem ser
substituídos por preços fixados pelo governo, os quais
refletiriam uma noção mais sábia e nobre, tais como
"moradia a preço acessível", ou custos "razoáveis" de
planos de saúde. Contudo, encontramos uma história de
controle de preços que recua por séculos, por todo o
mundo, com consequências negativas e até mesmo
desastrosas, sempre que se resolve tratar os preços como
construções meramente arbitrárias, em vez de sintomas e
transmissões de uma realidade subjacente, a qual não se
dobra tão facilmente ao controle, como os preços.[99]
Muitos ou mesmo a maioria dos intelectuais devia
saber disso, pois abundam os exemplos históricos, mas isso
não se verifica porque, com frequência, eles não veem
necessidade alguma em consultar a história ou outro
processo qualquer de validação além do que é determinado
pelo consenso entre os pares ideologicamente alinhados,
sempre que estão discutindo questões econômicas.
A distinção crucial entre transações de mercado e
tomadas de decisão coletivistas é que no mercado as
pessoas são recompensadas segundo o valor de seus bens e
serviços por aqueles indivíduos em particular que recebem
esses bens e serviços e que têm todo incentivo em buscar
fontes alternativas, de modo a minimizar seus custos, da
mesma forma que vendedores de bens e serviços têm todo
incentivo em buscar as ofertas mais altas para aquilo que
têm a oferecer. Contudo, as tomadas de decisão
coletivistas, efetuadas por terceiros, permitem que eles se
sobreponham às preferências de outros sem quaisquer
custos para si mesmos, tornando-se árbitros do destino
econômico de outras pessoas sem responderem pelas
consequências.
◆ ◆ ◆

INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL
Entre as consequências mais comuns em função da
completa ignorância em economia, por parte dos
intelectuais, encontramos a visão da soma-zero já
mencionada, na qual os ganhos de um indivíduo ou de um
grupo representam, necessariamente, uma perda
correspondente para outro indivíduo ou grupo. Segundo
Harold Laski, "os interesses entre capital e trabalho são
irreconciliáveis em seus fundamentos, pois existe uma soma
a ser dividida e cada parte quer mais do que o outro dará”.
[100] Tal suposição é raramente afirmada tão cruamente,

nem mesmo na mente da maioria dos intelectuais cujas


conclusões exigem uma implícita suposição de soma-zero
como fundamento. Contudo, essa visão que se aglutina em
doutrina e que diz que alguém precisa "tomar posição", ao
fazer gestão pública ou mesmo ao executar decisões
judiciais, ignora a verdade sobre as transações econômicas,
pois elas não continuariam a existir, a menos que ambos os
lados as vejam como algo preferível à sua não realização.
Certamente, cada lado procurará favorecer o seu, mas
ambos têm que estar dispostos a aceitar termos
mutuamente acordados, caso contrário a transação não
ocorrerá de forma alguma, muito menos terá
prosseguimento. Longe de se caracterizar como
"irreconciliável", como Laski alega, é uma situação cuja
reconciliação se dá milhões de vezes todos os dias. De outra
forma, a economia não teria como operar. Na verdade, toda
uma sociedade não poderia funcionar sem dispor de
vastíssimas quantidades de decisões econômicas e não
econômicas que cooperam entre si, apesar do fato de
sempre haver diferenças entre dois interesses, mesmo entre
membros de uma mesma família.
Contrário ao que Laski e seus pares intelectuais
pensam, não existe tal coisa como uma "soma a ser
dividida", como seria o caso se tivéssemos que distribuir o
maná vindo dos céus. É precisamente a cooperação entre
capital e trabalho que cria uma riqueza que não existiria de
outra forma, e ambos os lados se privariam caso não
reconciliassem seus desejos conflitantes desde o início da
operação. É literalmente absurdo colocar na frente o que
vem atrás, começando a análise com a "soma que precisa
ser dividida", ou seja, começando pela riqueza. A riqueza
pode ser criada apenas depois que o capital e o trabalho
conciliaram suas exigências conflitantes e concordaram em
relação aos termos em que podem operar conjuntamente
para a produção de mais riqueza. O hábito descabido de
muitos intelectuais em ignorar os pré-requisitos, incentivos
e restrições envolvidos na produção de riquezas gera
ramificações que podem desembocar em muitas conclusões
falsas, mesmo quando o virtuosismo retórico esconde essas
falsificações de outros e deles mesmos.
Intervenções de políticos, juízes e outros, a fim de
impor termos mais favoráveis para um dos lados, como, por
exemplo, leis de salário mínimo ou regulamentação de
preços de aluguéis, reduzem a quantidade de termos
mutuamente acordados, o que, quase invariavelmente,
reduz o número de transações mutuamente aceitáveis na
medida em que a parte desfavorecida pelas intervenções
fará, subsequentemente, menos transações. Por exemplo,
países com salários mínimos generosos têm,
frequentemente, índices mais altos de desemprego e
sofrem períodos maiores de desemprego generalizado, uma
vez que os empregadores oferecem menos vagas para
trabalhadores com pouca experiência e baixa qualificação,
os quais são, tipicamente, os menos valorizados e que
ganham os menores salários. Esses grupos de baixa
qualificação são facilmente descartados, em sua maioria,
com a implantação de leis de salário mínimo.
Não é incomum, em países europeus com generosas
leis de salário mínimo, além de outros benefícios que os
empregadores são determinados por lei a pagar, a
existência de grupos de jovens sem experiência que
enfrentam índices de desemprego de 20% ou mais.[101] Os
empregadores ficam numa situação ainda um pouco pior ao
terem que reorganizar seus negócios e talvez elevar o custo
com maquinário a fim de substituir trabalhadores com baixa
qualificação, os quais se tornam economicamente sem
valor. Mas essa mão de obra jovem e geralmente
desqualificada pode ficar numa situação ainda muito pior ao
não ser capaz de encontrar empregos alternativos, pois,
além de perder a oportunidade de receber salários, ela fica
impedida de ganhar experiência e de crescer
profissionalmente, o que a levaria com o tempo, caso
tivesse emprego, melhores trabalhos e remunerações.
Portanto, "favorecer um lado" provoca geralmente, a
ambos os lados, uma situação futura pior, mesmo que de
maneiras distintas e em graus diversos. Mas a ideia mesma
de favorecer um lado baseia-se na visão sobre as
transações econômicas como se fossem eventos soma-zero.
Essa visão soma-zero é um tanto quanto consistente com o
desinteresse que muitos intelectuais têm por fatores que
promovem ou impedem a criação de riqueza, a base em
que se sustenta todo o padrão de vida de toda uma
sociedade, e esse desinteresse permanece mesmo que a
criação de riquezas tenha levantado "o pobre", nos Estados
Unidos atualmente, a patamares econômicos não
alcançados pela maioria da população norte-americana em
época as passadas ou em muitos outros países mesmo hoje.
Da mesma forma que as leis de salário mínimo
tendem a reduzir as contratações nos setores mais
desqualificados, aumentando o desemprego entre os
jovens, assim também as leis de fixação de preço de
aluguéis provocam maior escassez na oferta d e moradia,
como se verificou no Cairo, Melbourne, Hanói, Paris, Nova
York e numerosos outros lugares do mundo. Nesse caso,
mais uma vez, tentativas de tornar os termos mais
favoráveis apenas para um dos lados levaram a outra parte,
em geral, a disponibilizar menos transações. Os
construtores reagem sensivelmente à fixação de preços de
aluguel e constroem menos prédios de apartamento e, em
alguns lugares, ficam sem construir por anos a fio.
Proprietários podem continuar a alugar apartamentos
existentes, mas em geral eles recompensam as perdas
repassando-as na manutenção de serviços auxiliares, como
pintura, reparos, calefação e água quente, coisas que
custam dinheiro e são menos necessárias de se manter em
níveis prévios a fim de atrair e manter inquilinos, uma vez
que exista escassez de moradia. O resultado líquido é que
os prédios de apartamento que recebem menos
manutenção acabam se deteriorando mais rapidamente,
sem número adequado de reposições em construção. No
Cairo, por exemplo, esse processo levou muitas famílias a
viverem em localidades planejadas para abrigar apenas
uma família. A ironia final é que tais leis podem também
levar a aumento nos preços dos aluguéis. Nova York e San
Francisco são exemplos clássicos, pois as moradias de luxo
ficam fora do controle de fixação de preço, ocasionando
uma relocação dos recursos para a construção desse tipo de
moradia.
O resultado é que locatários, proprietários e
construtores podem ficar numa situação pior, embora em
graus e em formas distintas. Proprietários raramente
terminam por morar em quarteirões lotados ou nas ruas, e
construtores podem simplesmente reorientar seu tempo e
seus recursos na construção de outras estruturas, como
galpões, shoppings e prédios de escritório, assim como
moradias luxuosas, os quais não se encontram, em geral,
sujeitos às leis de regulamentação de preço de locação.
Mas, novamente, o ponto crucial é que ambos os lados
podem terminar numa situação pior como resultado de leis
e políticas baseadas em "favorecimentos unilaterais", as
quais concebem as transações econômicas corno processos
de soma-zero.
Um dos poucos escritores que afirmou explicitamente
a visão do soma-zero na economia foi o professor Lester C.
Thurow do MIT, autor de The Zero-Sum Society [Sociedade
Soma-zero]. Ele também afirmou que os Estados Unidos são
"de forma consistente, a economia industrial com o pior
histórico" em índice de desemprego. Ele disse o seguinte:

Durante os últimos cinquenta anos da história


americana, a falta de empregos tornou-se
endêmica mesmo em tempos de paz. Revisemos
as evidências: depressão de 1929 a 1940, guerra
entre 1941 e 1945, recessão em 1949, guerra
entre 1950 e 1953, recessões em 1954, 1957-58 e
1960-61, guerra entre 1965 e 1973, recessão em
1969-70, recessão severa em 1974-75 e outra
recessão provavelmente em 1980. Isso está longe
de ser um desempenho econômico invejável.[102]

Muitas coisas são notáveis nas afirmações do professor


Thurow. Ele chega a conclusões um tanto quanto genéricas
sobre o histórico dos Estados Unidos vis-à-vis o histórico de
outras nações, baseando-se, exclusivamente, em eventos
ocorridos nos Estados Unidos, ou seja, ele faz uma
comparação internacional usando apenas uma nação
quando se trata de fatos em vez de retórica. Estudos que de
fato comparam o índice de desemprego nos Estados Unidos
em contraste com as nações da Europa ocidental, por
exemplo, mostram quase invariavelmente os países
europeus ocidentais com índices de desemprego mais altos
do que os encontrados nos EUA, além de períodos mais
longos de desemprego crônico.[103] As guerras que o
professor Thurow destaca dentro de um quadro em que ele
alega discutir a questão do desemprego podem deixar a
impressão de que elas contribuem para gerar desemprego,
quando de fato o desemprego virtualmente desapareceu
nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e
esteve em níveis abaixo do padrão médio durante as outras
guerras mencionadas.[104]
A previsão do professor Thurow de uma recessão, na
década de 1980, acabou acontecendo, mas estava longe de
ser uma previsão aterrorizante com o suposto despertar da
"estagflação" do final da década de 1970. O que acabou se
revelando falso foi a ideia de que uma intervenção
governamental de larga escala se fazia necessária para
evitar mais desemprego. Nas palavras de Thurow, o governo
precisava "reestruturar a economia para que, de fato,
criasse empregos para todos".[105] O que realmente
aconteceu foi o oposto. Quando a administração Reagan
tomou posse em 1981, fazendo exatamente contrário do
que o professor Thurow defendia, a recessão acabou e
tivemos vinte anos de crescimento econômico ininterrupto,
baixo índice de desemprego e inflação mínima.[106]
O professor Thurow não era, e não é, um "rebelde"
engajado. De acordo com o material que aparece na capa
da reedição de seu livro de 1980, The Zero-Sum Society,
temos a seguinte informação: "Lester Thurow é professor de
gestão de negócios e de economia no MIT há mais de trinta
anos". Ele é também "autor de muitos livros, incluindo três
entre os mais vendidos na lista do New York Times. O
professor Thurow serviu como conselheiro editorial deste
jornal, assim como editor colaborador da revista Newsweek
e como membro do conselho de economia da revista Time".
Não daria para ser mais influente e estar mais enganado.
Porém, o que ele disse encontrou, aparentemente,
ressonância entre a elite e a intelligentsia, tornando-o um
nome de peso em expressivos canais de mídia.
Prescrições semelhantes que defendem a livre ação
do intervencionismo governamental na economia são
abundantes entre os intelectuais tanto no passado quanto
no presente. John Dewey, por exemplo, fez uso de frases de
efeito como "inteligência socialmente organizada na
condução das questões públicas"[107] e "reconstrução social
organizada"[108] como eufemismos para a terceirização das
tomadas de decisão, feitas por terceiros que buscam impor
suas preferências sobre milhões de outras pessoas por
intermédio do poder governamental. Embora o governo seja
geralmente chamado de "sociedade" por aqueles que
defendem essa abordagem, não existe qualquer instituição
concreta chamada "sociedade", e aquilo que é designado
planejamento "social" é, de fato, uma série de ordens
governamentais, que passam por cima dos planos e das
mútuas acomodações de milhões de outras pessoas.
Apesar da visão que é promovida usando-se os mais
variados eufemismos, o governo não se manifesta como
uma instituição abstrata da opinião pública ou da "vontade
geral" de Rousseau. O governo é uma entidade real que
comporta políticos, burocratas e juízes, todos com seus
próprios incentivos e limites, e sobre nenhum deles pode se
presumir que estejam menos interessados na promoção de
seus próprios interesses ou noções do que estão as pessoas
que compram e vendem na economia de mercado. Nem
santidade nem infalibilidade são realidades comuns em
qualquer um dos lugares. A diferença fundamental que
existe entre tomadores de decisão no mercado e tomadores
de decisão no governo é que os primeiros estão sujeitos a
um contínuo e inescapável feedback que os força a um
constante ajuste ao que os outros preferem e estão
dispostos a pagar, ao passo que aqueles que tomam
decisões na arena política não são obrigados a enfrentar um
feedback inescapável, cujas consequências os forcem a
ajustar seus procedimentos à realidade dos desejos e das
preferências de outras pessoas.
Um negócio que tenha que prestar contas de seus
prejuízos sabe que tal situação não pode continuar
indefinidamente, e que não tem outra escolha senão mudar
o curso e sair do prejuízo, com o qual se tem pouca
tolerância no curto prazo e que se torna letal para qualquer
empreendimento no longo prazo. Dessa forma, perdas
financeiras não são apenas feedbacks como simples dados,
mas, sobretudo, como consequências inescapáveis cuja
realidade não pode ser ignorada, descartada ou protelada
por meio de qualquer artifício de retórica.
Na arena política, todavia, apenas os desastres mais
imediatos e urgentes, tão óbvios e inconfundíveis para os
eleitores que não há qualquer dificuldade em se "juntar as
peças", são comparativamente inescapáveis para os
políticos. Mas leis e políticas cujas consequências tomam
tempo para ser sentidas em seus desdobramentos não se
apresentam, de modo algum, como inescapáveis para
aqueles que criaram essas leis e políticas, especialmente se
as consequências emergirem depois da próxima eleição.
Além do mais, há poucas coisas, no universo da política, tão
incontornáveis em suas implicações como o prejuízo o é
para o mundo dos negócios. Na política, pouco importa
quão desastrosa uma política possa se tornar, desde que as
causas do desastre não sejam compreendidas pelo público
eleitor. Dessa forma, aqueles agentes ou funcionários
responsáveis pelo desastre podem escapar de qualquer
prestação de contas, e certamente eles possuem todos os
incentivos para negar seus equívocos, uma vez que sua
admissão pode condenar toda uma carreira.
Por que esperar que a transferência de decisões
econômicas para terceiros produza melhores resultados
para a sociedade, os quais não prestam contas de quaisquer
erros efetuados, pois agem no lugar de indivíduos e
organizações diretamente envolvidos, frequentemente
designados coletiva e impessoalmente como "o mercado", é
uma pergunta raramente levantada e muito menos
respondida. Em parte, isso se dá por causa de um pacote
retórico lançado por aqueles que usam e abusam de
artifícios retóricos. Dizer, como fez John Dewey, que deve
haver "um controle social das forças econômicas",[109] soa
bacana e abstrato até que seja traduzido: o poder político
proibindo transações voluntárias entre os cidadãos.
◆ ◆ ◆

NEGÓCIO
As organizações, grandes e pequenas, as quais
produzem e distribuem a maior parte dos bens e serviços
que formam o moderno padrão de vida das pessoas, o
mundo dos negócios, são alvos, faz muito tempo, da
intelligentsia. Acusações contra os negócios têm sido tão
específicas quanto taxar excessivamente e tão nebulosas
quanto fracassar em conviver com suas responsabilidades
sociais.
◆ ◆ ◆

GERENCIAMENTO
Intelectuais que nunca administraram um negócio se
mostram notavelmente confiantes em apontar quando os
negócios são mal administrados ou quando seus
proprietários ou gerentes ganham mais do que deveriam.
John Dewey, por exemplo, declarou: "Empreendedores
industriais colheram muito mais, e fora de qualquer
proporção, do que plantaram".[110] Evidências? Nenhuma.
Essa é mais uma de muitas declarações que passam
incólumes entre os interlocutores da intelligentsia. Sua
familiaridade e sua consonância com a visão prevalecente
funcionam como substitutos de evidência e análise.
A facilidade em se administrar negócios é uma crença
comum entre os intelectuais, ela já aparece no livro Looking
Backward [Em Retrospectiva], de Edward Bellamy, escrito
no século XIX.[111] Lênin dizia que administrar um negócio
envolvia "operações extraordinariamente simples", as quais
"qualquer pessoa minimamente educada pode
desempenhar", de forma que aqueles que estão
encarregados de tais empreendimentos não precisam
receber mais que qualquer trabalhador comum[112] Todavia,
três anos depois de tomar o poder, preso à sua economia
pós-capitalista à qual posteriormente chamou de "ruína,
fome e devastação",[113] ele reverteu seu posicionamento e
declarou ao Congresso do Partido Comunista de 1920:
"Nossas opiniões sobre gerenciamento de empresas são
excessiva e levianamente tomadas com espírito de total
ignorância, um espírito de ignorância sobre a atividade em
si".[114] Lênin reverteu tanto suas palavras quanto suas
ações, implantando sua Nova Economia, que concedia uma
margem maior de operação aos mercados, e a economia
Soviética começou a se recuperar.
Portanto, a primeira vez que a teoria sobre a alegada
simplicidade em se administrar um negócio foi colocada sob
teste, ela falhou fragorosamente. À medida que o século XX
foi passando, essa teoria fracassou, repetidamente, em
outros países do mundo, chegando a um ponto em que
mesmo os governos mais comunistas e socialistas
começaram a liberar os mercados. Isso ocorreu no final do
século XX, disparando índices de crescimento nunca vistos
nesses lugares, como aconteceu notoriamente na China e
na Índia.
Ao julgar aqueles que administram negócios, o critério
aplicado implícita ou explicitamente por muitos intelectuais
é frequentemente destituído de qualquer relevância em
relação à operação de um empreendimento econômico. Por
exemplo, certa vez Theodore Roosevelt disse: "Cansa-me
conversar com homens ricos. Você anseia conversar com
um homem de milhões, o líder de uma grande corporação,
esperando que seja um homem que valha a pena ser
ouvido, mas, como de regra, eles nada sabem do que está
fora de seus negócios".[115]
Isso, certamente, não poderia ser dito do próprio
Theodore Roosevelt. Somando-se à sua experiência como
político nos níveis municipal, estadual, nacional e
internacional, Theodore não era apenas um homem culto e
de alta educação, mas também um erudito em sua própria
maneira, cuja obra sobre a história naval retratando a
guerra de 1812 foi, por décadas, leitura obrigatória nas
academias navais nos dois lados do Atlântico. Autor de
quinze livros,[116] ele foi durante muitos anos um intelectual
em nossa visão, alguém que ganhava a vida com seus
escritos, especialmente durante os anos em que seu salário
como funcionário municipal ou estadual era insuficiente
para manter sua família, e durante os anos em que seus
empreendimentos na fronteira oeste deram prejuízo.
"Poucos seriam os norte-americanos que poderiam se
equiparar à grandeza de seu intelecto", segundo um
biógrafo de Theodore Roosevelt.[117] Certamente, poucos
foram os líderes econômicos comparáveis a Theodore em
abrangência e profundidade intelectual. Nem mesmo havia
qualquer motivo para que o fossem. Em muitos campos, é
com frequência o especialista, por vezes o maníaco-
obsessivo, pela questão que tende a produzir as realizações
mais altas. Ninguém esperava que Babe Ruth ou Bobby
Fischer fossem homens ecléticos e quem pensasse assim
teria ficado muito desapontado. O julgamento das pessoas
em áreas não intelectuais, pelos critérios intelectuais, fará
com que pareçam, quase que invariavelmente, não
merecedoras das recompensas que recebem, o que seria
uma conclusão legítima se as realizações não intelectuais
valessem automaticamente menos que as intelectuais.
Poucos seriam aqueles que defenderiam explicitamente tal
premissa, mas, como destacou John Maynard Keynes, as
conclusões geralmente prosseguem seu desenrolar sem as
premissas sobre as quais se baseiam.[118]
Outra concepção errônea e comum da intelligentsia é
aquela que afirma que os empreendedores individuais
deveriam, ou poderiam, ser "socialmente responsáveis",
levando em consideração consequências mais amplas das
decisões de negócio. Essa ideia nos remete a Woodrow
Wilson, outro intelectual em nosso sentido, por causa de sua
carreira acadêmica anterior ao seu ingresso na política. Ele
disse:

Não tememos os que perseguem propósitos


legítimos desde que liguem esses propósitos, em
todos os seus aspectos, aos interesses da
comunidade como um todo. Nenhum homem pode
conduzir um negócio legítimo se o faz no interesse
de uma única classe.[119]

Em outras palavras, não é considerado suficiente se


um fabricante de utensílios hidráulicos produz torneiras,
canos e banheiras de alta qualidade, vendendo-os a preços
acessíveis, caso esse empreendedor também não assuma o
papel de rei-filósofo, passando a imaginar como seu negócio
afeta "o interesse da comunidade". É uma exigência
assustadora, cujas implicações muito poucos, no campo dos
negócios, da política e da academia ou outras áreas,
poderiam enfrentar. John Dewey, de maneira semelhante,
lamentava que os trabalhadores e seus empregadores não
"tivessem uma visão social das consequências e dos
significados sobre o que estão fazendo".[120] Intelectuais
podem imaginar quais são as consequências sociais mais
amplas de suas próprias ações dentro e fora dos campos de
sua competência profissional, mas, quando estão errados,
há pouco ou mesmo nenhum feedback incontornável a
enfrentar diante das consequências, pouco importando a
profundidade e duração dos equívocos. O fato de tanto os
proprietários de negócio quanto os trabalhadores
geralmente evitarem tomar tamanha tarefa cósmica, sugere
que eles podem ter uma avaliação mais realista sobre as
limitações humanas.
◆ ◆ ◆

O "PODER" E O "CONTROLE" DO MUNDO DOS


NEGÓCIOS
Um dos muitos sinais de virtuosismo retórico dos
intelectuais está no reempacotamento das palavras, o qual
visa atribuir significados que não são apenas distintos, mas
algumas vezes diretamente opostos aos significados
originais. "Liberdade" e "poder" estão entre os termos mais
comuns que sofrem esse tipo de reempacotamento. O
conceito básico de liberdade, como não sujeita às restrições
impostas por outras pessoas, e o conceito de poder, como
habilidade de restringir as opções mantidas por outros,
ficaram, ambos, de cabeça para baixo em alguns dos
reempacotamentos que sofreram nas mãos dos intelectuais
que discutem assuntos econômicos. Dessa forma,
empreendimentos corporativos que expandem as opções
para o público, seja quantitativamente, oferecendo preços
mais baixos, ou qualitativamente, oferecendo produtos
melhores, são geralmente vistos como "controlando" o
mercado sempre que isso resulta numa alta porcentagem
de consumidores escolhendo comprar seus produtos em
particular, em vez dos produtos dos concorrentes em outras
empresas.
Em outras palavras, toda vez que os consumidores
decidem que marcas específicas de produtos são mais
baratas ou melhores que as marcas concorrentes dos
mesmos produtos, terceiros tomam a frente para dizer que
aqueles que produziram essas marcas, em particular, estão
exercendo "poder" ou "controle". Se, em dado momento,
três quartos dos consumidores preferem comprar a marca A
de um produto qualquer, então a empresa fabricante de A
será acusada de "controlar" três quartos do mercado,
mesmo que, na realidade, os consumidores controlem 100%
do mercado. Isso ocorre, uma vez que são eles que decidem
e podem mudar para outra marca de produtos amanhã caso
alguém apareça com um produto melhor, ou mesmo parar
de comprar aquele tipo de produto caso surja urna nova
tecnologia tornando o antigo modelo obsoleto.
Um bom número de empresas que foram acusadas de
"controlar" a maior parte de seus mercados não apenas
perderam aquela fatia do mercado, mas também entraram
em falência poucos anos após sua alegada dominação sobre
o mercado. Smith Corona, por exemplo, vendeu mais da
metade das máquinas de escrever e dos processadores de
texto nos Estados Unidos em 1989, mas apenas seis anos
mais tarde ele abriu falência, assim que a difusão de
computadores pessoais desbancou tanto as máquinas de
escrever quanto os processadores de texto. No entanto, o
empacotamento verbal pega o ex post das estatísticas de
venda para acusar o ex ante do mercado de "controle". Isso
é uma prática bem comum, não apenas nos escritos da
intelligentsia, mas também nos tribunais e nos casos
antitruste. Mesmo durante seu pico, Smith Corona não
controlava coisa alguma. Cada consumidor estava livre para
comprar ou não comprar qualquer outra marca de máquina
de escrever ou de processador de texto.
O empacotamento verbal que deturpa a escolha do
consumidor em "controle do mercado" tornou-se tão
amplamente difundido, que poucas são as pessoas que
sentem a necessidade de fazer algo tão básico como pensar
sobre o significado das palavras que usam, que, nesse caso,
transformam uma estatística ex post numa condição ex
ante. Ao dizer que as empresas têm "poder" porque detêm
o "controle" de seus mercados, abre-se caminho para se
dizer que o governo precisa exercer seu "poder
compensatório" (frase de John Kenneth Galbraith), a fim de
proteger o público consumidor. Apesar dos paralelos
verbais, o poder governamental é poder de fato, uma vez
que os indivíduos não têm livre escolha para decidir se vão
ou não obedecer às leis e regulamentações impostas, ao
passo que, como consumidores, estão livres para rejeitar os
produtos das maiores e supostamente mais "poderosas"
corporações do mundo. Existem pessoas que nunca pisaram
num estabelecimento do Walmart e não há nada que o Wal-
Mart possa fazer a respeito, apesar de ser o maior varejista
do mudo.
Um dos primeiros e mais influentes livros de John
Kenneth Galbraith, American Capitalism: The Concept of
Countervailing Power [Capitalismo Americano: O Conceito
do Poder Compensatório], diz que "o poder em um dos lados
do mercado cria, do outro lado, tanto a necessidade para
quanto a perspectiva de recompensa do exercício do poder
compensatório".[121] Portanto, segundo o professor
Galbraith, o surgimento de grandes corporações deu a elas
um poder opressivo sobre seus empregados, o que acabou
levando à criação de sindicatos cujo propósito é a
autodefesa.[122] Todavia, ao levantarmos os fatos históricos,
ficamos sabendo que não foi a partir das grandes indústrias
de produção em larga escala que os sindicatos norte-
americanos começaram a atuar, mas em indústrias
menores, tais como de construção, transporte e mineração,
todas as quais se sindicalizaram muitos anos antes das
indústrias metalúrgicas e de automóveis.
Mas desconsiderando a origem do poder dos
sindicatos, o poder compensatório crucial para Galbraith
era, de fato, o governo, tanto no apoio privado do poder
compensatório, como na criação das Leis de Relações
Nacionais de Trabalho, de 1935, quanto na forma de
legislação para ajudar os trabalhadores das minas de carvão
e outros supostamente oprimidos pelo "poder" dos grandes
negócios.[123] Segundo Galbraith, a ação governamental do
"poder compensatório desempenha uma valiosa e de fato
indispensável função reguladora na economia moderna".
[124] Contudo, essa formulação depende, de forma crucial,

da redefinição do conceito de "poder" para incluir o seu


oposto, a expansão das opções dos consumidores pelas
empresas, a fim de aumentar as vendas.
John Kenneth Galbraith foi, talvez, o mais proeminente
e certamente um dos retóricos mais habilidosos na defesa
de uma teoria volitiva de fixação de preços. Segundo ele, a
produção de determinado segmento industrial tende a se
concentrar, com o passar do tempo, nas mãos de poucos
produtores, os quais adquirem vantagens decisivas,
tornando difícil para uma nova empresa, sem a mesma
experiência, entrar no segmento e competir de forma
eficiente contra os líderes do mercado. Portanto, segundo
Galbraith, "os vendedores ganharam autoridade sobre os
preços", os quais são "tacitamente administrados por
algumas e poucas grandes empresas".[125] Na realidade, um
dos principais motivos para os consumidores comprarem
desproporcionalmente de um vendedor em particular é o
fato de este último oferecer preços mais baixos. Depois que
Galbraith redefiniu poder como concentração de vendas e
de lucros resultantes, ele se tornou capaz de apresentar
esse "poder" do vendedor como uma razão que explica por
que esse vendedor pode agora determinar preços
diferentes, implicitamente maiores que os de um mercado
competitivo.
Nessa formulação temos a consagração do "tamanho
da corporação, cujos líderes ilustram, grosso modo, o poder
que o indivíduo exerce".[126] Embora tudo isso possa
parecer plausível, Galbraith não se aventurou à verificação
empírica de seus argumentos. A insinuação de Galbraith, e
de muitos outros, sobre o "poder" das grandes corporações
alega que a acumulação de negócios cada vez maiores
implica o crescimento do "poder" para aumentar preços. Tal
insinuação, distinta tanto de fatos demonstráveis como de
uma hipótese testável, tornou-se dogma da intelligentsia
muito antes da época de Galbraith, fornecendo o ímpeto
para a promulgação da lei antitruste de Sherman, em 1890,
dentre outras tentativas que foram feitas para conter
"poder" das grandes empresas.
Na realidade, a era que levou à lei de Sherman não foi
uma época de alta de preços, forçada por monopólios,
apesar de ser uma época em que se verificou o crescimento
do tamanho das empresas em muitos segmentos
industriais) frequentemente por meio da consolidação de
negócios menores que se transformaram em corporações
gigantescas. Longe de termos preços mais altos, esse foi
um período de queda dos preços cobrados por essas
corporações maiores, cujo tamanho possibilitou o
aparecimento de uma produção em larga escala, o que
significava menores custos de produção, tornando-as
capazes de lucrar a partir de preços mais baixos,
expandindo desse modo suas vendas. Por exemplo, o
petróleo cru, que era vendido entre US $12,00 e US $16,00
o barril em 1860, passou a ser vendido por menos de US
$1,00 o barril durante todos os anos entre 1879 e 1900. Os
custos com transporte ferroviário caíram, em 1887, em 54%
em relação aos níveis de 1873. O preço dos lingotes de aço
caiu de US $68,00, em 1880, para US $32,00 em 1890. Os
preços do açúcar, do cobre e do zinco caíram, todos,
durante esse período.[127]
Henry Ford foi um pioneiro em métodos de produção
em massa e oferecia aos seus empregados um dos salários
mais altos da época, décadas antes de esse segmento ser
sindicalizado, além de oferecer os preços mais baixos de
carros, notavelmente do lendário Modelo T, o que fez com
que o automóvel não fosse mais um artigo de luxo
confinado apenas aos ricos. Mas nenhum desses simples
fatos prevaleceu contra a visão da intelligentsia da era
progressista, que nesse caso incluía o presidente Theodore
Roosevelt. Sua administração lançou perseguições e
cruzadas antitruste contra alguns dos maiores cortadores de
preços, incluindo a Standard Oil e a Great Northern Railroad.
Em suas palavras, Theodore Roosevelt buscava poder
"controlar e regulamentar todas as grandes combinações".
[128] Ele declarou que "de todas as formas de tirania, a

menos atraente e a mais vulgar é a tirania da mera riqueza,


a tirania da plutocracia".[129]
Sem dúvida, era verdade que, como Theodore dissera,
a Standard Oil criara "enormes fortunas" para seus
proprietários "à custa de seus concorrentes",[130] mas é
questionável se os consumidores, os quais começaram a
pagar menos pela gasolina, sentiram-se vítimas de uma
tirania econômica. Um dos livros sensacionalistas mais
populares da era progressista foi o The History of the
Standard Oil Company [A História da Standard Oil], escrito
por Ida Tarbell, que disse, entre outras coisas, que
Rockefeller "deveria ter ficado satisfeito"[131] com que ele
alcançara, financeiramente, por volta da década de 1870,
insinuando sua ganância em continuados esforços para
aumentar o tamanho e a lucratividade da Standard Oil.
Um estudo realizado um século depois, todavia,
destacou o seguinte: "Alguém que leia The History of
Standard Oil nunca ficará sabendo que os preços da
gasolina estavam, na verdade, caindo".[132] Esse fato foi
filtrado, retirado da narrativa. Se, de fato, a busca de
Rockefeller por conquistar uma fortuna ainda maior
realmente tornou pior a realidade dos consumidores é uma
pergunta raramente levantada. Como os consumidores
poderiam ter melhores condições se esse homem, que
implantou eficiências extraordinárias na produção e na
distribuição de petróleo, tivesse encerrado sua carreira
prematuramente, deixando tanto o custo de produção
quanto o preço final em patamares muito mais altos? Essa é
uma questão que não é levantada, e muito menos
respondida.
Uma das queixas mais comuns contra a Standard Oil
era de que a empresa conseguira adquirir estradas de ferro
para que pagasse menos com o transporte de seu petróleo,
tendo um custo menor do que era cobrado no transporte
dos concorrentes. Tal desigualdade era, certamente, um
anátema para aqueles que pensavam em termos de
pessoas abstratas num mundo abstrato, ignorando o que
havia de específico sobre a Standard Oil, tornando-a
diferente, e que se apresentava como a razão pela qual John
D. Rockefeller angariou fortuna num segmento industrial no
qual muitos outros acabaram falindo. Os vagões-tanque da
Standard Oil eram mais fáceis de transportar do que o
petróleo transportado em barris pelas outras empresas.[133]
No entanto, Theodore Roosevelt, que pouco ou nada
conhecia de economia e tinha perdido uma grande porção
de sua herança em seu único empreendimento de negócios,
disse que os índices de desconto no transporte eram
discriminatórios e deveriam ser proibidos "de todos os
modos e formas".[134] O senador John Sherman, autor da lei
antitruste, também promulgou uma legislação para banir os
índices diferenciais de transporte, aparentemente
beneficiando a refinaria que transportava seu petróleo em
barris.[135]
Empresas com política de baixo preço com frequência
geram grandes perdas para seus concorrentes, os quais
cobram preços mais altos. Mas tão óbvio quanto parece,
isso não interrompeu os protestos movidos pela
intelligentsia e alcançou a legislação, os políticos e as
decisões tomadas nos tribunais, que visavam não apenas
punir a Standard Oil no início do século XX, mas,
posteriormente, outros negócios que haviam reduzido
drasticamente os preços em outros segmentos, abarcando
desde a cadeia de supermercado A&P, no passado, até a
Microsoft de nossos dias.
Resumindo, a transformação retórica de preços mais
baixos e maiores vendas em exercício de "poder" por
empresas que passam a ser tidas como perigosas e que
precisam ser contidas por políticas mais vigorosas de poder
governamental, faz surgir mais do que meras implicações
intelectuais. Isso gera leis, políticas e decisões legais que
punem os preços baixos, tudo em nome da proteção ao
consumidor.
Como resultado da difusão da globalização, mesmo se
uma empresa em particular se apresenta como a única
produtora de determinado produto em determinado país,
esse monopólio pouco significa, caso produtores
estrangeiros do mesmo produto concorram pelo seu
fornecimento para os consumidores. A Eastman Kodak é, faz
muito tempo, o único grande produtor de filme fotográfico
norte-americano, mas as lojas de material fotográfico, por
todo os Estados Unidos, vendem também filmes produzidos
no Japão (Fuji) e por vezes na Inglaterra (Ilford) e em outros
países, para não falar da competição entre as câmeras
digitais produzidas principalmente no estrangeiro. A
habilidade da Kodak em aumentar os preços dos filmes
fotográficos sem sofrer perdas nas vendas é freada pela
concorrência. O fato de a Eastman Kodak ser uma empresa
gigantesca não muda em nada a realidade, exceto na visão
e na retórica da intelligentsia.
A deformação no uso dos termos com o intuito de
exibir as empresas exercendo "poder" em situações em que
os consumidores simplesmente compram mais de seus
produtos, tem sido usada para justificar a anulação de
direitos de pessoas que administram negócios. Como
veremos no capítulo 6, tal atitude pode ser estendida a
ponto de colocar o ônus da prova sobre os ombros das
empresas, que se veem obrigadas a refutar acusações em
casos antitruste e de direitos civis. Uma mentalidade um
tanto quanto semelhante foi expressa numa questão
publicada na revista The Economist: "Por que é permitido
que as empresas se esquivem dos impostos e demitam
funcionários ao mudar suas operações para outros países?".
[136] Em países livres, o direito de se mudar para benefício

próprio não é tratado como algo que precise de justificativas


especiais. De fato, trabalhadores que vão trabalhar em
outros países, violando as leis de imigração, são
frequentemente defendidos pelas mesmas pessoas que
consideram errado que as empresas sejam transferidas,
mesmo respeitando as leis.
◆ ◆ ◆

RECESSÕES E DEPRESSÕES
Nada foi mais decisivo para sedimentar a ideia de que
a intervenção governamental na economia é necessária do
que a Grande Depressão da década de 1930. Os fatos puros
narram os desdobramentos daquela tragédia histórica: a
produção nacional caiu a um terço, entre 1929 e 1933,
milhares de bancos faliram, e o desemprego atingiu um pico
de 25%. As empresas, em geral, perderam dinheiro por dois
anos seguidos. Antes desse momento, nenhum presidente
tentara uma intervenção do governo federal a fim de
colocar fim em qualquer depressão econômica.
Muitos viram na Grande Depressão o fracasso do
mercado livre e do capitalismo como sistema econômico,
viram uma razão para se buscar um tipo radicalmente
diferente de economia. Para alguns a resposta estaria no
comunismo, para outros no fascismo e para ainda outros
nas políticas do New Deal da administração de Franklin O.
Roosevelt. Descontando-se a alternativa favorecida em cada
caso, o que foi amplamente tido como verdade dali em
diante foi que a quebra da Bolsa, em 1929, representava o
fracasso do mercado livre e a causa de um desemprego
maciço, o qual persistiu por anos durante a década de 1930.
Considerando-se as duas características mais marcantes da
época: a quebra da Bolsa de Valores e a disseminação do
controle estatal na economia, não é imediatamente óbvio
qual delas teve maior parcela de responsabilidade pelas
terríveis condições econômicas. Contudo, uma falta de
esforço notável foi verificada entre os membros da
intelligentsia a fim de identificar a causa ou as causas do
colapso. Segundo eles, essa é uma conclusão há muito
tempo resolvida: foi o mercado a causa do colapso e a
intervenção governamental, a graça salvadora.
Embora o desemprego tenha subido no despontar da
quebra da Bolsa, ele nunca alcançou patamares maiores do
que 10% em nenhum mês durante os doze meses que se
seguiram à quebra em outubro de 1929. Contudo, o índice
de desemprego, no despontar das subsequentes
intervenções governamentais na economia, nunca ficou
abaixo dos 20% em nenhum mês por um período de 35
meses consecutivos.[137] Portanto, embora a quebra da
Bolsa tenha sido vista como o "problema" e a intervenção
governamental como a "solução ", na realidade o índice de
desemprego que se seguiu ao problema econômico foi
menor que a metade do índice de desemprego que se
seguiu à solução política.
Uma das poucas coisas com que as pessoas, dentro
do espectro ideológico atual, concordam é que o Banco
Central foi incompetente durante a Grande Depressão.
Avaliando o que foi feito na época, Milton Friedman chamou
as pessoas que administravam o Banco Central de "ineptas"
e john Kenneth Galbraith disse que os funcionários do Banco
Central demonstraram "impressionante incompetência”.[138]
Por exemplo, à medida que a oferta de dinheiro no país
declinava em um terço no começo das maciças quebras dos
bancos, o Banco Central aumentou os juros, criando
pressões deflacionárias ainda maiores.
No intuito de salvaguardar os empregos dos
americanos, limitando as importações que competiam com
os produtos nacionais, o Congresso permitiu, em 1930, as
tarifas Smoot-Hawley, as mais altas em mais de um século,
apesar de um apelo público assinado por mais de mil
economistas com um aviso a respeito das consequências.
As outras nações, obviamente, retaliaram, procedendo
exatamente como os economistas previram. Isso reduziu
drasticamente as exportações norte-americanas, e os
empregos que dependiam do setor despencaram, de forma
que o índice de desemprego subiu ainda mais em vez de
cair. No início da implantação das tarifas, o nível de
desemprego subiu mais drasticamente do que ocorrera na
sequência da quebra da Bolsa. O nível de desemprego
estava em 6,3% em junho de 1930, oito meses após a
quebra da Bolsa, quando as tarifas Smoot-Hawley foram
adotadas. Porém, um ano mais tarde, o índice de
desemprego alcançava 15%, e no ano seguinte saltou para
25,8%.[139]
Todo esse nível de desemprego não precisa ser
atribuído às tarifas, mas a questão é que as tarifas foram
criadas, supostamente, para reduzir o desemprego. O índice
de desemprego já entrara em sua curva descendente por
meses seguidos quando a lei Smoot-Hawley foi aprovada,
uma tendência que, todavia, foi revertida apenas cinco
meses depois que as tarifas entraram em vigor. Quando o
índice de desemprego atingiu a casa dos dois dígitos, em
novembro de 1930, um índice de desemprego tão baixo
quanto 6,3% não foi visto novamente por toda década.[140]
As tarifas Smoot-Hawley, aprovadas no governo de Herbert
Hoover, foram simplesmente as primeiras de muitas e
maciças intervenções governamentais na década de 1930,
incluindo muitas outras sob o governo de Franklin D.
Roosevelt.[141] Há poucas evidências empíricas apontando
que essas intervenções ajudaram a economia, e muitas
evidências apontando o contrário, sugerindo que elas
deixaram a economia em pior estado.
O Congresso também aprovou leis que duplicaram ou
mais os impostos nos rendimentos dos mais ricos, no
governo de Hoover, e subiram para níveis ainda mais altos
com Franklin Roosevelt. O presidente Hoover exortou os
grandes empresários para que não reduzissem os índices de
salários dos trabalhadores durante a depressão, apesar de
uma acentuada queda na oferta de moeda ter transformado
os antigos níveis salariais em impagáveis com jornada
integral. Tanto Hoover quanto seu sucessor, o presidente
Franklin Roosevelt, buscaram segurar a queda dos preços,
fosse o preço dos salários ou dos produtos agropecuários,
supondo que isso pudesse evitar a queda do poder de
compra. Todavia, o poder de compra não depende apenas
do nível dos preços, mas do número de transações que
serão feitas em determinados níveis de preços. Com uma
oferta de moeda reduzida, nem a quantidade anterior de
emprego nem os índices prévios de venda dos produtos
agropecuários e industriais poderiam continuar com os
antigos preços.
Nem Hoover nem Roosevelt pareciam entender esse
ponto, nem mesmo chegaram a pensar tão longe. Todavia, o
colunista Walter Lippmann apontou o óbvio em 1934
quando disse: "Numa depressão os homens não podem
vender seus bens ou seus serviços nos patamares antigos
de pré-depressão. Se eles insistirem com os preços da pré-
depressão, não vão vender. Se eles insistirem nos salários
da pré-depressão, ficarão sem emprego".[142]
Resumindo, muitas das coisas que o Banco Central, o
Congresso e os dois presidentes fizeram foram medidas
contraproducentes. Considerando-se esses múltiplos
fracassos de política governamental, não fica claro, de
forma alguma, que foi a economia de mercado que falhou.
Não há certamente nenhuma forma de reviver a quebra de
1929 e deixar que o governo federal aj uste a crise, por
conta própria, para avaliarmos os resultados de tal
experimento. A situação mais próxima de um evento corno
esse foi a crise da Bolsa, de 1987, semelhante em
dimensão, mas não em duração, ao colapso de 1929. A
administração Reagan nada fez, apesar dos protestos na
mídia, com a ausência de intervenção do governo.
"O que será preciso acontecer para acordar a Casa
Branca?", perguntava o New York Times, declarando que "o
presidente abdica de sua liderança e corteja o desastre".
[143] A colunista do Washington Post Mary McGrory disse que

Reagan "tem se mostrado singularmente indiferente" diante


da "atual dor e confusão" que se passa pelo país.[144] O
Financial Times de Londres disse que o presidente Reagan
"aparenta não ter a capacidade de lidar com adversidades"
e "parece que não há ninguém no comando".[145] Um ex-
funcionário do governo Carter criticou o "silêncio e a inação"
do presidente Reagan, seguindo a crise da Bolsa de 1987, e
o comparou desfavoravelmente em relação ao presidente
Franklin Roosevelt, cujas "personalidade e ousadia de
comando eram sua marca "durante as crises.[146]
A ironia de tudo isso é que o presidente Franklin
Roosevelt presidiu uma economia com sete anos
consecutivos de desemprego na casa dos dois dígitos, ao
passo que a política não intervencionista de Reagan em
deixar que o mercado se recuperasse por si próprio, longe
de desembocar numa outra Grande Depressão, levou o país,
pelo contrário, a um dos seus períodos mais longos de
crescimento econômico sustentado, baixo desemprego e
baixa inflação, que durou vinte anos.[147]
Assim como acontece com muitos outros fatos em
discrepância com a visão dominante da intelligentsia, esse
recebeu uma atenção mínima na época ou desde então.
Sabendo-se que é possível debater a real eficiência de
muitas respostas governamentais, ou não respostas, às
crises econômicas, existe, no entanto, entre os intelectuais
fora do âmbito da ciência econômica, uma vontade mínima
para esse debate. Histórias da Grande Depressão escritas
por historiadores notórios, como Arthur M. Schlesinger Jr. e
Henry Steele Commager, fizeram de Franklin Roosevelt o
herói que veio resgatar o país, apesar de Schlesinger ter
admitido que ele - Schlesinger - "não se interessava muito
por economia”.[148] Mas isso não freou sua disposição para
fazer avaliações históricas sobre como as políticas de
Franklin Roosevelt afetaram a economia. Todavia, o
professor Schlesinger não é, de forma alguma, uma exceção
entre intelectuais que alcançam conclusões bombásticas
sobre assuntos econômicos sem, todavia, preocuparemse
em estudar a ciência econômica.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 4
OS INTELECTUAIS E AS VISÕES DE
SOCIEDADE

No âmago de todo código moral encontra-se uma


imagem da natureza humana, um mapa do universo e
uma versão da história. Nessa natureza humana
(concebida), nesse universo (imaginado) e nessa
história (compreendida), aplicam-se as regras do
código.

WALTER LIPPMANN[149]

Os intelectuais não dispõem apenas de opiniões


isoladas sobre uma variedade de assuntos. Por trás de suas
opiniões, geralmente se encontra alguma forma de
concepção articulada sobre o mundo, uma visão social.
Assim como as outras pessoas, quando se trata de visões
gerais sobre o funcionamento do mundo, os intelectuais têm
um senso intuitivo sobre o que está em relação causal com
o quê. A visão à qual a maioria dos intelectuais de nossos
dias tende a aderir tem características muito próprias, que a
distingue de outras visões predominantes em outros
segmentos da sociedade contemporânea e pretérita, tanto
em relação às elites quanto em relação às massas.
Essas visões distintas, cada uma ao seu modo,
fundamentam os esforços explicativos tanto dos fenômenos
físicos quanto dos sociais, anunciados por intelectuais ou
por outros. Algumas visões são mais arrebatadoras e
dramáticas que outras, assim como diferem em suas
hipóteses fundadoras. Contudo, todos os tipos de
pensamentos dessa natureza, formais ou informais, têm
como ponto de partida alguma espécie de pressentimento,
uma suspeita ou algum tipo de intuição estruturante cuja
aplicação gera uma visão e estabelece conexões causais. A
análise sistemática de uma visão, em suas implicações,
pode produzir uma teoria que poderá, por sua vez, ser
refinada em hipóteses específicas, as quais serão testadas
empiricamente. Todavia, "a ideia preconcebida e
supostamente 'não científica' estará quase sempre lá ",
como afirma o historiador britânico Paul Johnson.[150] O
economista J. A. Schumpeter definiu essa visão primeira
como "ato cognitivo pré-analítico".[151]
Assim, qual seria então a visão predominante que
estrutura pensamento da intelligentsia, compreendendo não
só o núcleo mais central dos intelectuais do primeiro
escalão, mas também uma periferia formada por uma
sombra de seguidores que gravitam em torno dos grandes
intelectuais? E qual seria a visão alternativa a se opor a
eles?
◆ ◆ ◆

CONFLITO DE VISÕES
No coração da visão social dos intelectuais
contemporâneos se assenta a crença na existência de
"problemas", criados pelas instituições existentes.
"Soluções" para esses problemas podem, todavia, ser
excogitadas pelos intelectuais. Essa é uma visão que abarca
tanto a sociedade quanto o papel dos intelectuais dentro
dela. Portanto, os intelectuais não se vêem simplesmente
como uma espécie particular de elite, em seu sentido
passivo, como grandes proprietários ou donos de diversas
sinecuras que se qualificam como membros de uma elite,
mas como elite ungida, como portadores da missão de guiar
os outros para a realização de uma vida melhor.
John Stuart Mill, que encarnou o intelectual típico,
expressava explicitamente essa visão ao dizer que o
"estado miserável da educação" e "o estado miserável dos
arranjos sociais" representavam "o único impedimento real"
para obtenção da felicidade geral entre os seres humanos.
[152] Além do mais, Mill via na intelligentsia "os intelectos

mais cultivados do país", "as mentes pensantes", "os


melhores e mais sábios" como genuínos guias para um
mundo melhor, pois constituíam "a vanguarda do
pensamento e do sentimento na sociedade".[153] O papel da
intellige1ttsia tem sido exatamente esse, tanto antes
quanto depois da época de Mill. São considerados líderes
intelectuais por excelência, cujos profundos insights podem
libertar as pessoas das restrições desnecessárias da
sociedade.
A famosa declaração de Jean-Jacques Rousseau: "O
homem nasceu livre e por toda parte se encontra
acorrentado",[154] é a síntese magistral da visão do
intelectual ungido. Segunda ela, as restrições sociais são
causa fundadora de toda infelicidade humana e explicam
por que mundo que nos rodeia difere, grandemente, do
mundo em que gostaríamos de viver. Nessa visão, opressão,
pobreza, injustiça e guerra são resultados das instituições
existentes, problemas cujas soluções exigem a mudança
das instituições, o que, por sua vez, implica a mudança das
ideias que amparam, na base, essas instituições. Portanto,
os males da sociedade são vistos fundamentalmente como
um problema de ordem moral e intelectual, para a extinção
dos quais os intelectuais estão especialmente equipados
devido ao maior conhecimento e insight que possuem. Uma
alegada não participação em quaisquer operações
envolvendo interesses econômicos particulares, que os
colocaria a favor da ordem existente e abafaria a voz de
suas consciências, é também tida como qualidade intrínseca
aos intelectuais.
Em geral, são as diferenças socioeconômicas entre
pessoas nascidas em circunstâncias sociais distintas que, há
muito tempo, emergem como tema central para o
pensamento social dos intelectuais ungidos. Os contrastes
gerados entre a extrema pobreza de uns e o luxo
extravagante de outros, somando-se aos contrastes
igualmente chocantes de status social entre as pessoas,
compreendem as questões que dominam a agenda e os
interesses dos que compartilham a visão do intelectual
ungido. Dentro do espectro social, fontes mais gerais de
infelicidade entre as pessoas, como, por exemplo,
problemas psicológicos advindos de estigmas sociais e os
horrores e traumas de guerra, também se encontram entre
os problemas de cujas soluções os intelectuais são
portadores.
Tal visão sobre a sociedade, na qual temos muitos
"problemas" que devem ser "resolvidos" na adoção das
ideias das elites intelectuais moralmente ungidas não é, de
forma alguma, a única visão possível, embora seja, hoje, a
visão largamente predominante. Outra visão coexiste, há
séculos, com a visão dos intelectuais ungidos. É uma visão
contrária, na qual são os defeitos inerentes aos seres
humanos que são vistos como os problemas fundamentais.
Portanto, as restrições sociais são tidas, por sua vez,
simplesmente como meios imperfeitos para se lidar com
esse problema fundamental: os defeitos e as restrições dos
seres humanos. Um acadêmico especializado em estudos
clássicos contrastou as visões modernas adotadas pelo
intelectual ungido com "o quadro sombrio", apresentado por
Tucídides, sobre "uma raça humana que escapou do caos e
da barbárie ao preservar, com grande dificuldade, uma fina
camada de civilização", baseando-se na "moderação e
prudência", as quais nascem da experiência.[155]
Essa é a visão trágica sobre a condição humana,
muito distinta da visão adotada pelo intelectual ungido.
"Soluções" não são esperadas pelos que consideram
muitas das frustrações, doenças e anomalias da vida - o
aspecto trágico da condição humana - algo que está
diretamente relacionado às inerentes restrições dos seres
humanos, tanto individual quanto coletivamente, espiritual
ou fisicamente. É uma visão contrastante à visão do
intelectual ungido de nossos dias, nos quais a sociedade
existente é amplamente discutida a partir de suas
insuficiências, as quais precisam ser corrigidas pelas
melhorias oferecidas pelos intelectuais. Em contrapartida, a
visão trágica considera a própria civilização algo que
necessita de grandes e constantes esforços para que possa
ser meramente preservado. Esses esforços são tratados
como experiências reais e não como novas teorias
"entusiasmantes".
Na visão trágica, o barbarismo está sempre à espreita.
A civilização é vista como "delicada camada a recobrir um
vulcão". Essa visão tem poucas soluções a oferecer, mas
sobram-lhe muitas e muitas negociações dolorosas.
Comentando as referências de Felix Frankfurter sobre o
sucesso das reformas, Oliver Wendell Holmes queria saber o
quanto elas custaram, qual fora o preço das negociações
envolvidas. Ele perguntava, ao se promover a sociedade em
certo aspecto, "como saberei se não estou afundando, ainda
mais agudamente, a mesma sociedade, em outro aspecto".
[156] Essa visão cautelosa é, portanto, tipicamente uma

visão trágica, não no sentido de acreditar que a vida deva


ser sempre triste e sombria, pois há muita felicidade e
realização a serem alcançadas dentro de um mundo com
limites. Ela é trágica na forma em que enxerga as restrições
humanas, as quais não podem ser superadas meramente
pela compaixão, pelo comprometimento ou por outras
virtudes que os intelectuais ungidos alegam defender ou
atribuem a si próprios.
Na visão trágica, os impedimentos sociais buscam
frear comportamentos que geram infelicidade, muito
embora os próprios impedimentos tenham seu custo e
causem certa quantidade de infelicidade. É uma visão que
comporta negociações, em vez de soluções, baseando-se na
sabedoria que é destilada da experiência de muitos, em vez
de se apoiar no brilhantismo de alguns. O conflito gerado
entre essas duas visões contrastantes tem séculos de
existência.[157] Os participantes da visão trágica e os da
visão do intelectual ungido não se diferenciam apenas em
suas práticas e agendas políticas, mas diferem de forma
radical, pois adotam concepções de mundo completamente
distintas. Além do mais, ao falarem das criaturas que
residem neste mundo, tratam de realidades radicalmente
diferentes, mesmo que ambos se refiram a elas como seres
humanos, pois o entendimento que os participantes das
duas visões têm sobre a natureza deles é também
fundamentalmente distinto.[158]
Na concepção cautelosa da visão trágica,
encontramos limites especialmente severos sobre o quanto
um indivíduo qualquer pode saber e verdadeiramente
compreender as coisas, o que explica por que se coloca
tamanha ênfase nos processos sistêmicos, cujas transações
se apoiam no conhecimento e na experiência acumulada de
milhões, tanto do passado quanto do presente. Todavia, na
visão do intelectual ungido, quantidades muito maiores de
conhecimento e de inteligência estão disponíveis para uma
minoria especial, e a diferença entre esta e as massas é tida
como muito maior do que a que encontramos na visão
trágica.[159]
Essas visões contrastantes não diferem somente no
que acreditam existir e no que pensam a respeito do
possível, mas também no que pensam sobre o que precisa
ser explicado. Para os integrantes da visão do intelectual
ungido, são males como pobreza, crime, guerra e injustiça
social que precisam ser explicados, mas para os integrantes
da visão trágica são coisas como prosperidade, lei, paz e
justiça alcançadas que requerem não apenas explicação,
mas esforços constantes, negociações e sacrifícios para
serem preservadas. Isso é visto como mais vital do que seus
aperfeiçoamentos ao longo do tempo. Por exemplo,
enquanto os integrantes da visão do intelectual ungido
buscam as causas da guerra,[160] os da visão trágica dizem
coisas do tipo "Nenhuma situação de paz se sustenta por si
própria",[161] pois sabem que a paz "se realiza mediante
equilíbrio instável, o qual pode ser preservado apenas por
meio de uma supremacia reconhecida ou pela igualdade de
poderes",[162] e que uma nação "desprezível pela sua
fraqueza perde até mesmo o privilégio de ser neutra",[163]
sabem que "em geral as nações farão guerra sempre que
tiverem uma perspectiva real de ganhos".[164]
A visão trágica é um tipo de visão sobre o mundo e
sobre os seres humanos um tanto quanto crua. Ela não
toma nenhum dos benefícios da civilização como garantia e
não supõe que podemos dar como líquida e certa a
permanência daquilo que já temos, lançando-nos
despreocupadamente às melhorias sem antes estudar, a
cada passo, quais os riscos envolvidos, pesando o quanto
essas inovações podem danificar os próprios processos e
princípios sobre os quais nossa existência atual e nosso
bem-estar se apoiam. Não supõe que os irritantes
impedimentos e limites impostos sobre nós pelas regras
sociais, desde os preços até os estigmas, sejam culpa dos
próprios limites. Acima de tudo, não considera que teorias
nunca antes tentadas detêm a mesma credibilidade que
instituições e práticas cuja própria existência demonstra a
habilidade que têm para sobreviver no duro mundo da
realidade, embora boa parte da realidade fique abaixo
daquilo que pode ser imaginado como um mundo melhor.
Como afirma o professor Richard A. Epstein da Universidade
de Chicago: "O estudo sobre as instituições humanas é
sempre uma pesquisa sobre as imperfeições que se revelam
mais toleráveis".[165]
Além da forma distinta como veem o mundo, as duas
visões diferem, fundamentalmente, na maneira como seus
integrantes, em cada uma delas, veem a si mesmos. Se
você acreditar em coisas como livre mercado, autoridade da
lei, valores tradicionais, dentre outras características que
compreendem a visão trágica, então você será
simplesmente alguém que acredita nessas coisas. Não
existe qualquer senso de exaltação pessoal resultante de
crenças como essas. Mas, por outro lado, ao lutar pela
"justiça social", "preservação do meio ambiente" e "abolição
das guerras ", um sujeito se identifica como participante de
algo muito maior, o qual transcende um simples conjunto de
crenças sobre fatos empíricos. Essa visão o coloca num
patamar moral superior, como alguém preocupado e
misericordioso, promotor da paz no mundo, defensor dos
oprimidos, alguém que luta por preservar a beleza da
natureza e salvar o planeta da poluição perpetrada por
outros que não comungam a mesma consciência. Portanto,
diferentemente da primeira, essa é uma visão que torna o
sujeito alguém marcadamente especial, e essas visões não
são simétricas.
Embora os conflitos gerados entre a visão trágica e a
visão do intelectual ungido desemboquem em inúmeras
discussões sobre as mais variadas questões, artifícios
retóricos sem qualquer base factual ou analítica são criados
ou, em outras palavras, temos a instauração de argumentos
sem prova.
◆ ◆ ◆

ARGUMENTOS SEM PROVA


Embora alguns intelectuais estejam especialmente
bem equipados para se engajarem em debates logicamente
estruturados, recorrendo à evidência empírica na análise
das ideias em disputa, muitas de suas visões políticas ou
ideológicas são, no entanto, embasadas em mero
virtuosismo retórico, o qual procura evitar, justamente,
argumentos estruturados em evidências empíricas. Dentre
os muitos argumentos desprovidos de prova, encontramos
afirmações dizendo que as visões contrárias são
"simplistas" e que seus defensores não merecem crédito por
serem ingênuos, ignorantes, reacionários, dentre outros.
◆ ◆ ◆

ARGUMENTOS "SIMPLISTAS”
Relacionando-se à suposta falta de valor dos
oponentes, encontramos a alegação de que certos
argumentos não têm valor porque são "simplistas", porém
isso não é apresentado como conclusão advinda de
contraevidências ou contra-argumentos, mas os
desconsidera abertamente. Apesar de questionável do
ponto de vista lógico, essa é uma tática de debate muito
eficiente. Ao lançar mão de um termo depreciativo sobre
seu adversário, o sujeito coloca-se num patamar intelectual
superior sem oferecer, contudo, nada de substantivo.
Porém, é demonstrando, em vez de insinuando, que uma
explicação mais complexa é mais consistente logicamente
ou mais empiricamente válida.
O fato de determinado argumento ser mais simples
que outro não diz nada a respeito da validade empírica ou
analítica de ambos. Certamente, a explicação sobre muitos
fenômenos físicos, como, por exemplo, o sol se pondo no
horizonte, faz-se mais simples ao se usar o argumento de
que a Terra é redonda, diferentemente das explicações mais
complexas, sobre o mesmo fenômeno, feitas pelos membros
da Sociedade da Terra Plana. Evasões do óbvio podem se
tornar muito complexas.
Antes de a explicação ser descartada por ser
demasiadamente simples, ela tem, em primeiro lugar, que
estar errada. Mas, com muita frequência, temos o caso de
explicações que, por se parecerem muito simples, tornam-
se especialmente vulneráveis às investidas para se mostrar
que está errada. Por exemplo, quando o professor Orley
Ashenfelter, economista da Universidade Princeton,
começou a antecipar os preços de marcas particulares de
vinho, baseando-se única e exclusivamente nas estatísticas
climáticas, durante a época de crescimento das vinhas, sem
se preocupar em degustar vinhos ou em consultar
especialistas em vinhos, seu método foi sumariamente
descartado, por ser muito simplista, pelos conhecedores de
vinho, um dos quais se referiu à "bobagem implícita”[166] do
método. No entanto, as previsões do professor Ashenfelter
têm se mostrado mais certeiras do que as feitas pelos
especialistas em vinho.[167]
Somente depois que determinado método se mostra
equivocado é que podemos chamá-lo de "simplista". Por
outro lado, o uso que se faz de quantidades menores de
informações, a fim de produzir conclusões válidas, mostra a
maior eficiência da análise. Contudo, o uso indiscriminado
do termo "simplista" acabou se tornando uma
argumentação amplamente usada toda vez que não se
dispõe de provas concretas, uma forma de desqualificar
visões opostas sem a necessidade de confrontá-las com
evidências ou análises.
No intuito de caracterizá-la de simplista, praticamente
qualquer resposta pode ser manipulada. Isso é feito ao se
expandir indefinidamente a questão, englobando dimensões
que fogem ao controle explicativo em questão para, então,
insinuar-se inadequação, acusando argumento de simplista.
Por exemplo, na década de 1840, um médico austríaco
apresentou estatísticas que mostravam uma diferença
substancial, verificada nos índices de mortalidade entre
mulheres nas clínicas de maternidade em Viena, quando
eram examinadas por médicos que haviam lavado suas
mãos antes de examiná-las e por médicos que não o tinham
feito. Esse médico procurava impor a todos os outros a
obrigatoriedade de lavar as mãos antes de examinarem as
pacientes. Porém, sua sugestão foi rejeitada essencialmente
por ser simplista, fazendo uso de um tipo de argumento que
está conosco ainda hoje. Ele foi desafiado a explicar por que
lavar a mão de alguém afetaria a mortalidade das mulheres
em trabalho de parto e, uma vez que isso aconteceu antes
de a teoria bacteriana ser desenvolvida e aceita, ele não
tinha como provar.[168] Em poucas palavras, a questão fora
expandida a ponto de não poder ser respondida naquele
estágio do conhecimento, o que fazia qualquer resposta
parecer "simplista ". Todavia, a questão real não era se
aquele médico, o qual se baseava em dados estatísticos,
podia responder à questão mais ampla, mas se a evidência
mais pontual que ele indicava sobre a questão era válida e
se poderia, portanto, salvar vidas baseando-se apenas em
fatos empíricos. O perigo em se cometer a falácia post hoc
poderia ter sido facilmente evitado ao se continuar a colher
dados a fim de verificar se o procedimento de lavagem das
mãos, feito por outros médicos, reduzia os índices de
mortalidade das gestantes.
Hoje, aqueles que rej eitam uma ação policial mais
contundente, assim como a manutenção de punições mais
severas como formas eficientes de combate à
criminalidade, preferindo programas e esforços de
reabilitação social, frequentemente estigmatizam a
abordagem tradicional da "lei e da ordem". Isso é feito,
normalmente, ao se expandir a questão para que ela
abarque "as raízes do problema", ou seja, uma questão a
que a ação policial e o sistema penal não podem responder.
Tampouco, podem as teorias alternativas oferecer uma
resposta que seja convincente para os que exigem algo
mais que uma resposta e cuja única base está em
consonância com a visão da intelligentsia. A substituição de
teorias sedutoras pela questão mais pragmática e empírica
sobre qual abordagem, no controle da criminalidade,
apresenta um histórico mais eficiente é interpretada pela
intelligentsia como uma maneira muito simplista de ver as
coisas.
Ironicamente, boa parte dos que enfatizam as
complexidades dos problemas e das questões do mundo
real considera, no entanto, e com frequência, as pessoas
com visões opostas às suas como sujeitos intelectual ou
moralmente desprezíveis. Em outras palavras, apesar de
toda ênfase colocada nas complexidades envolvidas, essas
questões, quando anunciadas por outros, não são
consideradas complexas a ponto de exigirem diferentes
posições. São descartadas as muitas e diferentes nuanças
de avaliações, probabilidades e valores, as quais poderiam,
de forma legítima, gerar uma conclusão diferente.
Uma variação do tema sobre argumentos "simplistas",
imputados aos adversários, é dizer que é preciso evitar as
"panaceias", quando, na realidade, nada é panaceia, caso
contrário, por definição, todos os problemas do mundo já
teriam sido resolvidos. Quando, durante o colapso do bloco
comunista na Europa oriental, a imprensa mostrou a
Tchecoslováquia celebrando sua liberdade, o colunista do
New York Times, Tom Wicker, alertou seus leitores dizendo
que a liberdade "não é uma panaceia e que se o comunismo
falhou, não significa que a alternativa ocidental seja perfeita
ou mesmo satisfatória para milhões que vivem sob seu
peso".[169] O fato histórico concreto de milhões de pessoas
que viviam sob as diretrizes do bloco comunista e fugiram
para o Ocidente, comparado ao fato de uma fração ínfima
de pessoas que fugiram no sentido inverso, pode nos
sugerir onde realmente havia maior nível de satisfação. Mas
é claro que nada que compreendeu estritamente o humano
jamais alcançou a perfeição e, assim, o fato de os
intelectuais sempre poderem imaginar algo melhor do que
aquilo que existe de melhor não nos surpreende.
Certamente, todavia, a visão de Tom Wicker não é a mesma
que a de Richard Epstein, para o qual o máximo que
podemos esperar é "a mais tolerável das imperfeições".[170]
Outro posicionamento parecido é o que afirma que
nunca houve uma "era de ouro". Isso é frequentemente
colocado na boca de pessoas que nunca alegaram que já
houve tal coisa, mas que tendem a pensar que algumas
práticas do passado produziram resultados melhores do que
algumas práticas do presente. Em vez de oferecer
evidências que mostrem que as práticas atuais sempre
produzem resultados mais satisfatórios, "panaceias" e "eras
de ouro" são usadas para desqualificar argumentos
contrários. Por vezes, a mesma noção é expressa ao se
dizer que não podemos ou não deveríamos "voltar relógio
da história". Mas, a menos que alguém aceite, como dogma,
que todas as medidas subsequentes em relação a uma data
qualquer sejam automaticamente melhores do que o eram
anteriormente à data determinada, esse tipo de artifício
revela ser uma evasão que foge às especificidades das
questões, ou seja, mais um exemplo de argumentação sem
prova.
◆ ◆ ◆

ADVERSÁRIOS SEM MÉRITO


Na medida em que a visão do intelectual ungido é,
ao mesmo tempo, autocentrada e uma visão de mundo,
quando os intelectuais a defendem eles não estão
simplesmente defendendo um conjunto de hipóteses sobre
eventos externos, mas estão, em certo sentido, defendendo
suas próprias almas e, em tais circunstâncias, o zelo e até
mesmo a violência com a qual defendem sua visão não é
algo que deveria nos surpreender. Mas para pessoas com
visões opostas, as quais podem, por exemplo, acreditar que
a maioria das coisas caminha melhor quando deixada sob a
ação do livre mercado, da tradição, das famílias, etc., isso
representa apenas um conjunto de hipóteses sobre eventos
externos e não há envolvimento gigantesco do ego em jogo,
caso essas hipóteses sejam ou não confirmadas por
evidências empíricas. Obviamente, todos preferem ver suas
hipóteses comprovadas, em vez de desmentidas, mas o
ponto aqui é que não há o mesmo nível de envolvimento
emocional no caso dos que endossam a visão trágica.
Essa diferença pode ajudar a explicar um padrão
notável que remete, pelo menos, aos meados do século
XVIII. Falo da maior tendência, entre os integrantes da visão
do intelectual ungido, em avaliar todos os que discordam de
suas posições como inimigos moralmente deficientes. Uma
vez que existem variações individuais nesse padrão, como
existe variação de grau na maioria das coisas, temos, não
obstante, padrões gerais que já foram notados por muitos
tanto em nossa época quanto em períodos anteriores. Por
exemplo, num relato contemporâneo lemos:

Discorde de um integrante da direita e o sujeito


estará propenso a considerá-lo obtuso,
equivocado, tolo, ou seja, um asno. Discorde de
um integrante da esquerda e o sujeito estará
ainda mais propenso a considerá-lo egoísta,
vendido, insensível, ou seja, possivelmente
maligno.[171]

Defensores de ambas as visões, por definição,


acreditam que aqueles que defendem a visão contrária
estão enganados. Mas isso não é suficiente para os
membros da visão do intelectual ungido. É aceito como
certo, há muito tempo, pelos que participam dessa visão,
que seus opositores são desprovidos de compaixão. No
entanto, nunca houve uma vontade real em testar tal
impressão empiricamente. Nesse sentido, desde o século
XVIII a diferença entre os defensores das duas visões se
tornou explícita por ocasião da controvérsia entre Thomas
Malthus e William Godwin. Malthus dizia de seus adversários
intelectuais o seguinte: "Não posso duvidar dos talentos
individuais de homens como Godwin e Condorcet. Não estou
inclinado a duvidar da honestidade deles".[172] Contudo,
quando Godwin se referiu a Malthus, ele o chamou de
"maléfico", questionando a "humanidade do homem". Ele
disse: "Confesso que desconheço a substância que
preenche um homem como esse".[173]
Edmund Burke foi figura emblemática entre os que
tinham uma visão trágica, mas, apesar de seus ataques
incessantes sobre as ideias e os feitos da Revolução
Francesa, referia-se àqueles que adotavam uma visão
oposta à sua como pessoas que "podem vir a fazer as piores
coisas sem, contudo, serem os piores homens".[174] Seria
difícil, para não dizer impossível, encontrar afirmações
semelhantes a respeito de adversários ideológicos entre os
integrantes da visão do intelectual ungido, seja no século
XVIII ou hoje. Ainda assim, um julgamento respeitoso para
com adversários intelectuais, tratando-os como equivocados
ou mesmo perigosamente enganados, mas não
necessariamente malignos, continuou a ser prática comum
entre os integrantes da visão trágica. Quando Friedrich
Hayek publicou, em 1944, The Road to Serfdom, seu
emblemático desafio à preponderante visão social da
intelligentsia, disparando uma contrarrevolução intelectual
e política, posteriormente integrada por Milton Friedman,
William F. Buckley e outros intelectuais, além de políticos
como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, ele caracterizava
seus adversários como "idealistas meramente tacanhos" e
"autores cuja sinceridade e cujo desinteresse eram
fortemente suspeitos".[175]
Todavia, a sinceridade de Hayek era suficiente para
que os adversários fossem considerados não apenas
equivocados, mas perigosamente equivocados, como foi
ilustrado em sua visão ao dizer que eles conduziam a
sociedade ao "caminho da servidão". De forma parecida, em
1945, mesmo em meio à campanha política, quando
Winston Churchill alertava sobre o risco de um governo
autoritário caso seu adversário, o partido trabalhador,
vencesse as eleições, ele completava que isso não ocorreria
porque seus adversários queriam reduzir a liberdade das
pessoas, mas porque "não enxergam para onde suas teorias
os estavam levando".[176] Concessões semelhantes à
sinceridade e às boas intenções dos adversários podem ser
encontradas em Milton Friedman e em outros expoentes da
visão trágica ou cautelosa. Mas tal postura, em meio a seus
adversários ideológicos, tem sido muito mais rara de se
encontrar onde as supostas falhas morais e intelectuais do
adversário são cultuadas, caracterizando o modus operandi
do intelectual ungido desde o século XVIII até o presente.
[177]
A sinceridade e os sentimentos humanos são
frequentemente negados aos adversários ideológicos por
aqueles que têm a visão do intelectual ungido, em nome de
várias justificativas, como, por exemplo, por ser contrário ao
estabelecimento de leis de salário mínimo ou de controle
sobre os preços dos aluguéis, posturas que são
interpretadas como reveladoras de uma absoluta falta de
compaixão para com os pobres. Todavia, as questões sobre
a validade empírica ou analítica de tais argumentos é
deixada de lado. Mesmo que pudesse ser provado como
certo que os adversários dessas e de outras agendas
"progressistas" são verdadeiros canalhas, ou mesmo
pessoas venais, isso ainda não constituiria resposta aos
argumentos levantados por eles. Ainda assim, alegações
que acusam oponentes ideológicos de racistas, machistas,
homofóbicos ou "incapazes de entender a questão" são
geralmente empurradas pela intelligentsia, substituindo
refutações específicas sobre os argumentos discutidos.
"O que geralmente distingue os liberais", segundo
Andrew Hacker, autor de grande sucesso, é que eles "já
estão prontos a compartilhar uma parte do que têm com
outros menos afortunados do que eles".[178] Essa não é uma
visão particular do professor Hacker. Muito antes de seu
nascimento já se refletia sobre uma opinião que se
disseminara por entre os membros da intelligentsia. Mas
aqui, como em outros lugares, o poder de uma visão é
mostrado não pela evidência oferecida a favor, mas
precisamente pela falta de qualquer esforço em se procurar
evidências, nesse caso a evidência de menor senso
humanitário por parte dos conservadores, os quais se
opõem às agendas "progressistas". Todavia, um estudo
realizado pelo professor Arthur C. Brooks, da Universidade
Syracuse, cujo intuito era aferir a extensão em que liberais
e conservadores doavam dinheiro, sangue e horas de
serviço assistencial nos Estados Unidos para projetos
filantrópicos, mostrou que os conservadores doavam, em
média, tanto um volume maior de dinheiro quanto uma
porcentagem também maior de suas rendas para causas
filantrópicas, e que suas rendas eram um pouco menores
que a renda dos liberais. Os conservadores também cediam
mais horas de seu tempo em trabalhos voluntários e
doavam muito mais sangue.[179]
Isso certamente não prova que os argumentos dos
conservadores em questões sociais ou políticas sejam mais
válidos. Contudo, a pesquisa nos mostra os enormes
equívocos aos quais as pessoas estão sujeitas toda vez que
acreditam apenas no que se apresenta como conveniente
para sua visão, e não veem necessidade alguma em passar
suas suposições pelo crivo das evidências empíricas. Antes
que se fizesse qualquer aferição empírica, a suposição de
que os conservadores seriam menos preocupados com o
bem-estar das pessoas se mostrou tão hegemônica e tão
inquestionável por tanto tempo, literalmente por séculos,
que fica difícil não admitir a força insidiosa da manipulação
ideológica.
De forma parecida, quando os integrantes da
intelligentsia defendem o desarmamento e os acordos
internacionais, entre nações potencialmente adversárias,
como a única forma de garantir a paz entre elas e são
contestados pelos que adotam a visão trágica, os quais, por
sua vez, defendem o poder dissuasivo da força militar e as
alianças militares, como forma eficiente de garantir a paz,
essas posições distintas são raramente vistas como simples
diferenças hipotéticas sobre a política internacional. Com
frequência muito maior, os adoradores da visão do
intelectual ungido veem essas diferenças como claros sinais
a revelar os defeitos pessoais de seus adversários teóricos.
Portanto, os que acreditam no uso da força militar como
eficiente instrumento dissuasório, negando-se a endossar as
políticas de desarmamento ou os acordos internacionais,
são descritos como pessoas que anseiam e cultuam as
guerras. Bertrand Russell, por exemplo, disse o seguinte:

Ao se dirigir a uma plateia de homens para falar


sobre os meios de se impedir a deflagração
armada, pode ter certeza de que aparecerá um
homem de meia-idade que dirá, em tom de
desprezo: "As guerras nunca cessarão, pois seria
contrário à natureza humana". É um tanto óbvio
que um homem desse tipo se delicia com a guerra
e odiaria viver num mundo no qual a guerra
tivesse sido erradicada.[180]
Bertrand Russell não foi o único filósofo
internacionalmente conhecido a fazer esse tipo de
comentário. O comentário anteriormente transcrito foi feito
em 1936, dirigido contra os que queriam que a Grã-
Bretanha se rearmasse em resposta à massiva reconstrução
do poderio militar alemão promovida por Hitler. Três anos
mais tarde, rearmamento nazista seria mobilizado contra os
países europeus, dando início à Segunda Guerra Mundial.
Antes disso, na década de 1920, quando muitos intelectuais
favoreciam a realização de acordos internacionais de paz,
como o pacto Kellogg-Briand, de 1928, os que se opunham
a essa abordagem de renúncia à guerra eram retratados por
John Dewey como pessoas que exibiam "a estupidez de uma
mente amarrada aos velhos hábitos",[181] pessoas que
sofriam de "inércia mental",[182] cujas motivações tinham
uma "natureza psicológica, em vez de prática ou lógica”[183]
ou mesmo como pessoas que "acreditavam no sistema da
guerra".[184]
O escritor britânico J. B. Priestley tentou explicar o
fracasso do pacifismo teórico, pois embora fosse um
pensamento hegemônico entre seus colegas intelectuais da
década de 1930, tinha dificuldade de convencer o público
em geral. Para ele o público era a favor da guerra devido a
certo "tédio", o qual gerava um "desejo disseminado de
participar de uma grande e emocionante encenação repleta
de discursos inflamados, desfraldar de bandeiras, tropas se
amotinando e listas de mortos em combate".[185] Embora
reconhecesse "a enorme vendagem" do romance pacifista
Nada de Novo no Front, Priestley dizia: "São os horrores da
história que fascinam os leitores", uma vez que o livro "é
um grande espetáculo da tragédia humana ".[186]
Na visão de Priestley, não importa o que os fatos
empíricos revelam. Eles são sistematicamente empacotados
e encaixados no modelo. Os desejos do público,
arbitrariamente atribuídos por Priestley, tornaram
desnecessária a tarefa de confrontar seus argumentos com
argumentos contrários ou de confrontar a possibilidade de
haver lacunas ou defeitos nos argumentos defendidos pelos
pacifistas, os quais, todavia, não conseguiam convencer o
público sobre a eficiência de seu modelo. Estes diziam que o
desarmamento e os tratados seriam as formas mais
apropriadas para se reduzir a ocorrência de guerras. Existe,
entre os intelectuais, uma longa e semelhante história sobre
questões envolvendo assuntos de guerras e de paz, cuja
dinâmica recua, no mínimo, até Godwin e Condorcet no
século XVITI. Nesse debate, os que discordam do modelo
pacifista são retratados como belicosos fanáticos, os quais,
por motivos malignos ou irracionais, anseiam a deflagração
de guerras.[187] Entre as duas visões, trágica e a do
intelectual ungido, o profundo contraste de tratamento
entre os adversários teóricos é vasto e duradouro em
demasia para que possa ser atribuído a meras diferenças de
personalidade em particular, mesmo quando há variações
individuais em ambos os lados. A própria natureza das
visões, em si mesmas, envolve grandes distinções do
comprometimento com o ego. Acreditar na visão do ungido
é se considerar como tal, algo que é muito precioso para se
perder. Como T. S. Eliot coloca:

Neste mundo, metade do mal é fruto dos que


insistem em se sentir importantes. Eles não
querem fazer o mal, mas tampouco se importam
com o perigo do mal. Talvez eles nem o vejam ou,
se o justificam, é porque estão absortos na
infindável luta que travam para pensar bem de si
mesmos.[188]

◆ ◆ ◆

A RETÓRICA DOS "DIREITOS"


Uma grande parte do discurso dos intelectuais se
associa à luta por "direitos", mas cujas bases fundadoras
não são questionadas e muito menos avaliadas. Parágrafos
constitucionais, legislação, obrigações contratuais e
tratados internacionais não são citados a fundamentar tais
"direitos". Temos "direitos" e exigimos "salário digno",
"moradia decente", "assistência médica acessível", dentre
inúmeros outros benefícios tanto de ordem material quanto
psicológica. Que tais coisas possam ser desejáveis não está
em questão. A verdadeira questão é saber o motivo pelo
qual são consideradas obrigatórias- o corolário lógico que
envolve qualquer questão sobre direitos -, tendo-se em vista
as pessoas que não concordam com tais obrigatoriedades.
Se alguém goza de um direito é porque outro alguém sofre
uma obrigação. Mas o direito proposto de "salário digno ",
por exemplo, não se baseia em nenhuma obrigação anuída
por um empregador qualquer. Pelo contrário, esse "direito" é
citado como forte razão para justificar o envolvimento do
governo, o qual deve, então, obrigar o empregador a pagar
o que terceiros gostariam que fosse pago.
"Direitos", na forma em que o termo é usado
ideologicamente, não determinam acordos mútuos entre
indivíduos, empresas ou nações. Por exemplo, terroristas
capturados são tratados, por alguns, como portadores dos
direitos estabelecidos para prisioneiros de guerra pela
Convenção de Genebra. Contudo, isso é levantado mesmo
diante do fato de os terroristas não concordarem, de forma
alguma, com os termos da Convenção de Genebra, além de
não integrarem o que os relatores daquela convenção
designaram como membros sob sua proteção. Novamente,
os "direitos", da maneira como o termo é usado
ideologicamente, constituem-se fundamentalmente de
afirmativas arbitrárias e autoritárias feitas por terceiros que
buscam fixar o que outros nunca concordaram em fazer.
O mesmo princípio está em operação sempre que
termos como "responsabilidade social" ou "contrato social"
são usados para descrever o que terceiros querem que seja
feito, desconsiderando se outros concordaram ou não em
fazê-lo. Dessa forma, sobre o mundo dos negócios é fixada
uma "responsabilidade social ", no intuito de oferecer
benefícios a muitos indivíduos ou para a sociedade em geral
sem considerar, no entanto, se as empresas realmente
escolheram assumir tamanhas responsabilidades. Nem
mesmo essas responsabilidades se encontram
necessariamente baseadas em leis que foram promulgadas.
Pelo contrário, pois são as alegadas "responsabilidades" que
formam a base para a promoção de projetos de lei, mesmo
que elas não tenham, em si, fundamento algum, exceto o
fato de terceiros advogarem sua imposição. O mesmo
princípio é usado na imaginação fantasiosa de "promessas",
como em The Promise of American Life, de Herbert Croly, o
primeiro editor da progressista New Republic, no qual essas
"promessas" não são encontradas em lugar algum, a não
ser nos desejos de Herbert Croly e na mentalidade de seus
companheiros progressistas. De forma parecida,
encontramos a mesma situação nos "contratos" que
ninguém assinou ou jamais viu. Assim, a Previdência Social
é frequentemente descrita como um "contrato" entre as
gerações, quando, por definição, gerações ainda não
geradas não podem concordar com nenhum contrato desse
tipo. Obrigações legais podem certamente ser impostas às
gerações vindouras por meio da Previdência ou de dívidas
nacionais, mas o assunto não diz respeito ao que é
fisicamente possível, mas questiona a lógica e as fundações
empíricas das imposições. Dizer que elas têm fundamento
moral, sem, contudo, fornecer nada de específico, é apenas
dizer que algumas pessoas sentem que é melhor desse
jeito. Mas, em primeiro lugar, não haveria questão alguma,
a não ser que outras pessoas pensassem de outro jeito.
Muitas vezes, os alegados "direitos", "responsabilidades
sociais" ou outros "contratos" dessa natureza não estão
necessariamente baseados em reivindicações das maiorias.
Pelo contrário, são apresentados como motivos que dizem
por que a maioria, líderes políticos ou tribunais devem
impor o que terceiros buscam impor. São argumentos sem
prova.
Por vezes, o termo "justiça social" é usado para
maquiar justificativas que, de fato, são arbitrárias. Mas
"justificar" significa alinhar uma coisa com outra. Com o que
essas alegações se alinham, além dos sentimentos, das
visões e do pensamento grupal que prevalecem atualmente
entre os participantes da intelligentsia? O pensamento
grupal da intelligentsia não deixa de ser um pensamento
grupal e seus preconceitos também não deixam de ser
preconceitos.
O juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes disse:
"A palavra 'direito' é uma das armadilhas mais traiçoeiras" e
"uma constante solicitação à falácia".[189] Da mesma forma
que ele rejeitava direitos abstratos, ele considerava os
direitos verdadeiramente "estabelecidos em qualquer
sociedade" como detentores de uma base diferente.[190]
Holmes estava particularmente preocupado com a noção de
que juízes deveriam fazer cumprir direitos abstratos para os
quais não havia base alguma:

Há uma tendência em pensar os juízes como se


fossem elementos isolados, forças independentes
vagando no infinito e não simples diretores de
uma força cuja fonte lhes confere autoridade. Eu
creio que nossos tribunais cometeram erros e é
isso que tenho procurado dizer quando afirmo que
a Lei Comum não se apresenta como solene
onipresença celeste, e que os Estados Unidos não
estão sujeitos a um tipo de lei sobrenatural diante
da qual se curvam em obediência.[191]
A declaração original de Holmes, dizendo que a Lei
Comum "não se apresenta como solene onipresença
celeste", foi expressa no caso Southern Pacific Co. versus
Jensen, julgado na Suprema Corte em 1917. Holmes
explicava que a lei é "a voz articulada de uma soberania ou
quase-soberania que pode ser identificada".[192] Porém, as
exigências por "direitos" abstratos dos intelectuais os
transformam em soberanos sem identificação ou
autorização.
◆ ◆ ◆

A DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA
No âmbito da política, uma das fontes mais férteis de
confusão, em discussões sobre questões ideológicas, é a
dicotomia entre esquerda e direita. Talvez a diferença mais
fundamental entre esquerda e direita é que apenas a
primeira tem alguma espécie de definição. O que é
chamado de "direita" resume-se aos múltiplos e díspares
adversários da esquerda. Por sua vez, esses adversários da
esquerda podem não ter qualquer vínculo entre si, seja na
composição de princípios comuns, seja na composição de
uma agenda política comum, e podem variar, em suas
preferências, de libertários do livre mercado a defensores da
monarquia, da teocracia, da ditadura militar ou de
inumeráveis outros princípios, sistemas e agendas.
Para pessoas que tomam as palavras literalmente,
falar da "esquerda" é assumir que existe implicitamente
outro grupo adversário igualmente coerente que se constitui
como "direita ". Talvez causasse menos confusão se o que
chamamos de "esquerda" fosse designado por algum outro
termo, um movimento X. Mas a designação em se pertencer
à esquerda tem, ao menos, alguma base histórica nos
representantes que se sentavam à esquerda da cadeira do
presidente da Assembleia durante a reunião dos Estados
Gerais da França no século XVIII. Hoje, um resumo
aproximado sobre a esquerda política seria a visão que
promove a tomada de decisões coletivistas, por meio da
ação direta do governo e de suas agências, os quais visam
ao objetivo de reduzir as desigualdades socioeconômicas.
Podemos adotar posições moderadas ou extremas sobre
essa visão ou agenda da esquerda, mas entre aqueles
designados "de direita", a diferenÇa entre libertários do livre
mercado e juntas militares não é apenas de grau, na
perseguição de uma visão em comum, mas de fato não
existe qualquer visão em comum entre eles. O que significa
dizer que não existe um bloco que possa ser definido como
"direita", embora existam múltiplos segmentos designados
nessa categoria genérica, como os defensores do livre
mercado, os quais podem ser definidos.
A heterogeneidade que encontramos na "direita" não
é o único problema da dicotomia esquerda-direita. Dentro
do espectro político concebido pelos participantes da
intelligentsia, reina a imagem comum que se estende desde
comunistas que se posicionam no extremo à esquerda até
esquerdistas menos extremistas, passando por
progressistas mais moderados, centristas, conservadores,
direitistas mais radicais e finalmente os fascistas. Esse
quadro é tido como certo pela intelligentsia, mas é mais um
exemplo de conclusão sem prova, a menos que uma
interminável repetição possa ser considerada prova. Ao nos
desviarmos das imagens consagradas, buscando as
especificidades, observamos que, exceto pela retórica,
existe notável e mínima diferença entre fascistas e
comunistas. Observamos também que há muito mais em
comum entre fascistas e até mesmo a esquerda moderada
do que entre ambos e os tradicionais conservadores no
sentido norte-americano do termo. Uma análise mais atenta
esclarecerá o ponto.
Comunismo é socialismo com vocação internacional e
métodos totalitários. Benito Mussolini, o fundador do
fascismo, definia-o como nacional socialismo num estado
totalitário, termo também por ele cunhado. A mesma ideia
foi usada na Alemanha. Tivemos o Partido Nacional
Socialista Alemão dos Trabalhadores, o partido de Hitler,
agora quase sempre abreviado como partido dos nazistas,
enterrando-se e ocultando o termo socialista. Visto em
retrospecto, embora a característica predominante entre os
nazistas fosse o racismo em geral e o racismo antissemita
em particular, esse elemento de ódio racial não era inerente
à visão fascista, uma vez que não era compartilhado pelo
governo fascista de Mussolini, na Itália, ou de Franco, na
Espanha.
Numa ocasião, os judeus foram de fato amplamente
representados entre os líderes fascistas na Itália. Somente
depois que Mussolini se tornou o parceiro caçula de Hitler
na composição das forças do Eixo, no final da década de
1930, que os judeus foram expulsos do partido fascista
italiano. E só depois que a autoridade de Mussolini foi
neutralizada, em 1943, e seu governo substituído por um
governo fantoche implantado pelos nazistas, no norte da
Itália, que os judeus residentes naquela parte da Itália
foram cercados e enviados para os campos de
concentração.[193] Portanto, um governo explícita e
oficialmente dominado por ideologia e prática racistas
diferenciava os nazistas de outros movimentos fascistas.
O que distinguia os movimentos fascistas, em geral,
dos movimentos comunistas era o fato de os comunistas
estarem oficialmente comprometidos com a apropriação
governamental dos meios de produção, enquanto os
fascistas permitiam a manutenção da propriedade privada
dos meios de produção desde que o governo direcionasse
as decisões dos proprietários e limitasse os índices de lucro
que esses proprietários poderiam receber. Eram ambos os
sistemas totalitários, embora os comunistas fossem
oficialmente internacionalistas, ao passo que os fascistas se
diziam nacionalistas. No entanto, a proclamada política de
Stalin de "socialismo em uma nação" não era muito
diferente da proclamada política do nacional socialismo dos
fascistas.
Quando chegamos aos aspectos práticos,
encontramos diferenças ainda menores, pois é certo que a
Internacional Comunista servia aos interesses nacionais da
União Soviética, apesar de toda a retórica internacionalista
usada. A maneira como os comunistas do mundo todo,
inclusive nos Estados Unidos, retiraram a oposição que
faziam aos esforços conjuntos de ajuda militar entre as
nações ocidentais na Segunda Guerra Mundial, num período
de 24 horas após a invasão da União Soviética pelas forças
de Hitler, é apenas o mais dramático de muitos exemplos
que poderiam ser citados.
Em relação ao suposto comedimento do interesses
fascistas, limitados às políticas de seus próprios países, ele
foi desmentido pelas invasões efetuadas tanto por Hitler
quanto por Mussolini, assim como pela rede de operações
internacionais dos nazistas, que operava por meio de
alemães vivendo em outros países, abarcando do Brasil à
Austrália.[194] Todas essas agências estavam submetidas
aos interesses nacionais alemães, passando por cima de
inclinações ideológicas ou de interesses privados de seus
integrantes. Dessa forma, as queixas dos alemães que
viviam como sudetos, na Tchecoslováquia, foram inflamadas
durante a crise de Munique de 1938 como parte do plano de
expansão territorial da Alemanha, ao passo que os alemães
que viviam na Itália foram obrigados a abafar suas
reclamações, já que Mussolini era aliado de Hitler.[195]
À medida que a União Soviética proclamava seu
internacionalismo e anexava várias nações, que
continuavam a ser "oficialmente independentes", as
pessoas que detinham o poder real nessas nações,
geralmente sob o título de "segundo-secretário" do partido
comunista, eram quase sempre russos,[196] repetindo o
padrão dos tempos dos czares, os quais governavam o que
era mais honestamente chamado de Império Russo.
Portanto, a noção de que comunistas e fascistas se
configuram em polos ideológicos não é verdadeira nem em
teoria e muito menos na prática. Comparando-se, de um
lado, as semelhanças e as diferenças entre esses dois
movimentos totalitários e, do outro, o conservadorismo, há
muito mais semelhança entre esses dois sistemas
totalitários e suas respectivas agendas, incluindo a agenda
da própria esquerda, do que com as agendas da grande
maioria dos grupos conservadores. Por exemplo, entre os
itens que compunham a agenda dos fascistas na Itália,
assim como dos nazistas na Alemanha, temos (1) controle
governamental sobre os salários e as horas de trabalho, (2)
impostos mais altos sobre os ricos, (3) limites
governamentais sobre os lucros, (4) controle governamental
sobre os cuidados com a população de idosos, (5)
esvaziamento do papel da religião e da família nas decisões
pessoais e sociais e (6) estabelecimento de métodos de
engenharia social para alterar a natureza das pessoas,
geralmente desde a primeira infância.[197] Esse último e
mais audacioso projeto faz parte da ideologia da esquerda,
tanto a esquerda democrática quanto a totalitária, uma vez
que existe desde o século XVIII, quando Condorcet e Godwin
defenderam tal tipo de intervenção, e que ainda é
defendido por inúmeros outros intelectuais.[198] Esse projeto
já foi colocado em prática em vários países, recebendo
nomes como "reeducação" e "retificação de valores"[199]
Certamente, essas diretrizes são, para a maioria dos
conservadores nos Estados Unidos, inaceitáveis. Por outro
lado, são visões congênitas às abordagens defendidas pelos
liberais - os progressistas norte-americanos - dentro do
contexto político norte-americano. Deve-se notar que os
termos liberal e conservative, como são usados no contexto
norte-americano, não guardam muita semelhança com os
significados originais. Milton Friedman, um dos líderes do
movimento intelectual "conservador" de sua época,
defendia mudanças radicais nos sistema escolar dos
Estados Unidos, assim como queria alterar o papel do Banco
Central na economia. Um de seus livros foi intitulado The
Tyranny of the Status Quo [A Tirania do Status Quo]. Da
mesma forma que Friedrich Hayek, Friedman se via como
liberal, respeitando o sentido original do termo, mas esse
sentido foi completamente alterado nos Estados Unidos,
embora visões semelhantes às suas ainda sejam conhecidas
como visões liberais em alguns outros países.
Apesar disso, os estudos acadêmicos designam Hayek
como defensor do status quo, como um daqueles
intelectuais cuja "defesa do estado existente de coisas
fornece justificativas para os poderes consagrados".[200]
Quaisquer que fossem os méritos ou os deméritos das
ideias de Hayek, elas se distanciavam muito mais do status
quo do que as ideias dos intelectuais que o criticavam.
Pessoas como Hayek, que em geral são designadas como
"conservadoras", articulam ideias que diferem em grau e
em gênero de seus alegados pares ideológicos,
distanciando-se das ideias de outros participantes da
chamada direita política. Talvez se os liberais fossem
chamados simplesmente de X e os conservadores de Y
haveria menos confusão.
Conservadorismo, em seu sentido original, não tem
qualquer conteúdo ideológico específico já que depende do
que se está tentando, em cada caso, conservar. Nos últimos
dias da União Soviética, os indivíduos que lutavam pela
preservação do regime comunista existente eram
designados, acertadamente, de "conservadores", embora
aquilo que buscavam conservar nada tivesse em comum
com o que era defendido por Milton Friedman, Friedrich
Hayek ou William F. Buckley, nos Estados Unidos. Muito
menos esse "conservadorismo comunista" poderia ser
confundido com as posições do cardeal Joseph Ratzinger,
uma liderança conservadora no Vaticano e que,
posteriormente, foi sagrado papa. Indivíduos que recebem o
rótulo de "conservadores" têm posições ideológicas
específicas, mas isso não confere associação direta entre
suas especificidades, distintas em cada um dos diferentes
contextos e locais.
Caso nos esforcemos por definir a esquerda, segundo
seus objetivos proclamados, torna-se evidente que objetivos
muito semelhantes foram proclamados por pessoas que a
esquerda repudiou e anatematizou, chamando-as de
fascistas e de nazistas. Portanto, em vez de definir esses
grupos por seus objetivos proclamados, podemos defini-los
pelos seus mecanismos institucionais específicos e pelas
políticas que executam ou defendem a fim de alcançar
esses objetivos. Mais especificamente, esses grupos podem
ser definidos a partir dos mecanismos institucionais que
buscam impor, no intuito de controlar as decisões mais
significativas sobre a sociedade em geral. Para fins
explicativos de nossa análise é preciso separar, de um lado,
os processos que respeitam e defendem as decisões
tornadas individualmente dos processos que defendem
decisões de cunho coletivista executadas por terceiros. Essa
dicotomia esquemática é necessária diante da vastíssima
gama de possíveis mecanismos de decisão e controle.
Por exemplo, nas economias de mercado,
consumidores e produtores tomam individualmente suas
decisões. As consequências sociais são determinadas pelos
efeitos acumulados das decisões individuais na forma corno
os recursos são alocados na economia como um todo e na
resposta que dão à variação de preços, de renda e de
emprego, os quais, por sua vez, afetam a relação de oferta
e de demanda.
Embora esse tipo de visão sobre a economia seja
geralmente considerado "conservador" (no sentido original
do termo), uma vez colocado sob a longa perspectiva da
história das ideias torna-se uma visão revolucionária. Desde
os tempos antigos até o presente, abarcando sociedades
completamente distintas por todo o mundo, encontramos os
mais variados sistemas de pensamento tanto secular
quanto religioso, os quais buscam determinar como os
melhores, mais sábios e virtuosos podem influenciar ou
dirigir as massas a fim de criar ou de manter uma sociedade
mais feliz, viável e valorosa. Diante de tal quadro histórico,
foi um ponto de partida revolucionário quando, na França do
século XVIII, os fisiocratas se levantaram para proclamar
que, ao menos para a economia, o melhor que as
autoridades reinantes poderiam fazer seria deixar o
processo caminhar por si mesmo. Laissez-faire foi o termo
que cunharam. Os que adotavam a nova visão diziam que a
imposição de políticas econômicas pelas autoridades seria
uma preocupação "altamente desnecessária", usando as
palavras de Adam Smith.[201] Favorecia-se um sistema
espontâneo de interação, o qual funcionaria muito melhor
sem intervenções governamentais, embora não fosse
perfeito, apenas melhor.
Variações nessa visão de ordem espontânea podem
também ser encontradas em outras áreas, passando da
linguagem às leis. Nenhuma elite jamais se reuniu para
determinar as línguas dos povos, de qualquer sociedade
que seja. Esses idiomas evoluíram a partir de interações
sistêmicas entre milhões de indivíduos ao longo de muitas
gerações, nas mais variadas sociedades mundo afora. Os
acadêmicos em línguas estudam e codificam as regras da
linguagem, mas depois do fato. As crianças aprendem as
palavras e o uso, intuindo as regras do uso antes que elas
sejam ensinadas formalmente nas escolas. Apesar de ter
sido possível às elites criar línguas como o esperanto, tais
sistemas artificiais nunca se sobrepuseram às línguas
historicamente desenvolvidas.
Na esfera das leis, uma visão semelhante foi expressa
pelo juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, quando
afirmou que: "A vida da lei não é dirigida pela lógica, mas
pela experiência".[202] Portanto, seja no universo da
economia, da linguagem ou das leis, essa visão concebe a
viabilidade social e o progresso em função direta com as
evoluções e os processos sistêmicos, não se subordinando
às prescrições das elites. A confiança em processos
sistêmicos, seja na área da economia e do direito, seja em
outras áreas, baseia-se na visão cautelosa e dos limites, a
visão trágica, a qual percebe as severas limitações de
conhecimento e de insight em qualquer indivíduo, mesmo
considerando todo o brilhantismo e a erudição que esse ser
humano possa porventura possuir. Os processos sistêmicos,
em cuja dinâmica integram-se conhecimentos e
experiências muito mais vastos, pois há uma quantidade
gigantesca de pessoas envolvidas, geralmente tradições
inteiras que evoluíram a partir das experiências de
sucessivas gerações, são processos muito mais confiáveis
do que os intelectos dos intelectuais.
Diferentemente, a visão da esquerda é a que favorece
os tomadores de decisão terceirizados e isso se realiza por
meio dos que supõem deter não apenas conhecimento
superior, mas o suficiente em suas ações como líderes
políticos, especialistas, juízes, dentre outros. Essa é uma
visão comum aos variados matizes da esquerda política,
abarcando tanto a ala radical quanto a moderada e que
também se faz presente nos setores totalitários, sejam eles
comunistas ou fascistas. Uma noção de propósito comum,
na sociedade, é central para a constituição de processos
coletivistas, expressa tanto em instituições democráticas
quanto totalitárias ou nas variações entre ambas. Uma das
diferenças existentes entre os sistemas democráticos e os
sistemas totalitários, dentro da mesma lógica coletivista, é
a de grau, a qual se traduz na amplitude e na penetração
das decisões terceirizadas pelo governo, assim como na
amplitude deixada para os indivíduos fora do controle do
governo.
O livre mercado, por exemplo, é uma gigantesca
esfera de ação que se furta ao poder governamental. Em tal
tipo de mecanismo não existe uma associação comum de
propósitos, exceto entre indivíduos e associações
específicos, os quais decidam voluntariamente agregar-se
em grupos, que podem variar de ligas de boliche a
corporações multinacionais. Mas mesmo essas agremiações
buscam, tipicamente, os interesses de seus respectivos
membros constituintes, e competem contra os interesses de
outras agremiações. Os que defendem esse mecanismo
social de controle disperso o fazem porque acreditam que
os resultados sistêmicos de tais competições e interações
são geralmente mais satisfatórios do que a formação de
uma monstruosa agremiação para imposição de propósitos
comuns, forçada, goela abaixo, por tomadores de decisão
terceirizados, os quais supervisionam todo o processo em
nome do "interesse nacional".
A versão totalitário-coletivista de um exército de
burocratas terceirizados, comandados por um governo
totalitário, foi resumida no lema de Mussolini: "Tudo no
Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado".[203]
Além do mais, o Estado significava fundamentalmente o
líder político que o conduzia absolutamente, o ditador.
Mussolini era conhecido como Il Duce, o líder, antes que
Hitler recebesse o mesmo título na Alemanha, o - Führer. As
versões democráticas do mesmo mecanismo coletivista de
tomada de decisão, observadas em sociedades que
escolhem seus líderes em eleições, tendem a deixar
parcelas maiores de atividade socioeconômica fora do
controle do governo. Todavia, a esquerda raramente adota
princípios explícitos por meio dos quais as fronteiras entre a
ação do governo e as decisões individuais possam ser
facilmente determinadas. Isso acaba levando à tendência,
ao longo do tempo, de ampliar as zonas de interferência do
governo à medida que quantidades cada vez maiores de
decisões são retiradas das mãos dos indivíduos.
Preferências por tomadas de decisão de cunho
coletivista, feitas de cima para baixo, não esgotam todo o
repertório que a esquerda democrática compartilha com os
primeiros fascistas italianos e com os nacionais socialistas,
os nazistas, da Alemanha. Somando-se à política altamente
intervencionista sobre os mercados econômicos, a esquerda
democrática também compartilhou, com os fascistas e os
nazistas, a suposição de um abismo de compreensão e de
inteligência entre as pessoas comuns e as elites, como eles.
Embora tanto a esquerda totalitária - fascistas, comunistas
e nazistas - quanto a democrática tenham feito uso de
termos como "povo", "trabalhadores" e "massas",
colocando-os como beneficiários ostensivos de suas
políticas, essas categorias não ostentam, no entanto,
qualquer autonomia em suas decisões. Muito da retórica
orquestrada tanto pela esquerda democrática quanto pela
totalitária já esvaziou, há muito tempo, a importante
distinção entre as pessoas enquanto beneficiárias e
autônomas para tomarem suas próprias decisões. Nesse
universo ideológico, o privilégio das decisões é propriedade
exclusiva dos intelectuais ungidos, e isso é tido como certo.
Rousseau, apesar de toda ênfase que deu à "vontade
geral", deixou às elites o papel exclusivo de interpretar essa
"vontade geral". Ele via as massas como algo parecido a um
"estúpido e pusilânime inválido".[204] Godwin e Condorcet
também expressaram, no século XVIII, um desprezo
semelhante às massas[205] Karl Marx disse: "Ou a classe
trabalhadora se faz revolucionária ou não é nada".[206] Em
outras palavras, para esses intelectuais, milhões de seres
humanos só tinham qualquer importância se adotassem a
visão deles. O socialista fabiano George Bernard Shaw
incluía a classe trabalhadora entre os tipos "detestáveis",
pessoas que não têm "direito de viver". Ele completava:
"Ficaria desesperado caso não soubesse que todos
fatalmente morrerão e não há necessidade alguma que
justifique a permanência deles neste mundo".[207] Como
integrante do exército norte-americano durante a Primeira
Guerra Mundial, Edmund Wilson escreveu a um amigo: "Não
seria sincero se dissesse que as mortes desses homens,
esse 'lixo branco miserável do sul' e de outros me causam a
metade da dor que sinto com a mera convocação e o
alistamento de qualquer um de meus amigos".[208]
A esquerda totalitária tem sido igualmente clara em
seu entendimento sobre controle absoluto por parte de uma
elite política a controlar absolutamente os poderes
decisórios: a "vanguarda do proletariado", os líderes de uma
"raça superior" ou qualquer outro slogan em particular. Nas
palavras do próprio Mussolini: "As massas simplesmente
seguirão e se submeterão".[209]
Em relação às suposições fundamentais, a
semelhança entre os múltiplos movimentos totalitários e a
esquerda democrática foi abertamente reconhecida pelos
próprios líderes da esquerda dos países democráticos,
durante a década de 1920, num momento em que Mussolini
era totalmente idolatrado por muitos intelectuais das
democracias ocidentais, e numa época em que mesmo
Hitler angariava admiradores entre proeminentes
intelectuais de esquerda. Foi somente após o desenrolar dos
acontecimentos, durante a década de 1930, com a invasão
da Etiópia por Mussolini e o violento antissemitismo de
Hitler na Alemanha, além de suas agressões militares contra
países vizinhos, que eles se tornaram párias internacionais.
A partir daí seus sistemas totalitários foram repudiados pela
esquerda e retratados como sendo "de direita".[210]
Durante a década de 1920, todavia, o escritor radical
Lincoln Steffens escrevia positivamente sobre o fascismo de
Mussolini, assim como escrevera, mais notoriamente, sobre
as vantagens do comunismo soviético.[211] Ele não era,
contudo, o único radical ou progressista norte-americano a
fazer tal coisa.[212] Em 1932, o famoso romancista e
socialista fabiano H. G. Wells conclamou os alunos de Oxford
para que se tornassem "fascistas liberais" e "nazistas
esclarecidos".[213] O historiador Charles Beard estava entre
os apologistas de Mussolini que viviam nas democracias
ocidentais, o mesmo acontecia com a revista New Republic.
[214] O poeta Wallace Stevens chegou a justificar a invasão

da Etiópia por Mussolini.[215]


W. E. B. Du Bois ficou, durante a década de 1920, tão
intrigado pelo movimento nazista que decorou com
suásticas as capas de uma revista que editou, apesar dos
protestos da comunidade judaica.[216] Embora Du Bois
tivesse que lidar com o problema do antissemitismo, que o
nazismo implicava, ele dizia, na década de 1930, que a
criação da ditadura nazista "foi absolutamente necessária
para a reorganização do Estado" na Alemanha, e durante
um discurso no Harlem, em 1937, declarou: "De certa
forma, hoje existe mais democracia na Alemanha do que
existia nos anos anteriores".[217] O fato mais revelador é
que ele via os nazistas como integrantes da esquerda. Em
1936, ele disse: "A Alemanha é hoje, ao lado da Rússia, o
maior exemplo de sociedade marxista".[218]
No entanto, a heterogeneidade das posições foi
perdida, as quais foram encerradas num só saco, atirado
para longe da esquerda. A direita permitiu que a esquerda
expulsasse de si e aglutinasse, numa mesma categoria
caótica, os vários segmentos ideológicos que, embora
participassem da visão da esquerda, tornaram-se
constrangedores e, com isso, foram repudiados. Portanto, a
grande celebridade do rádio, nos Estados Unidos da década
de 1930, o padre Coughlin, que era, dentre outras coisas,
antissemita, foi verbalmente banido para a "direita", muito
embora ele defendesse boa parte das propostas políticas
que acabaram se transformando no New Deal. Muitos
congressistas democratas, em determinado momento,
elogiaram o padre publicamente e alguns progressistas
instaram o presidente Franklin D. Roosevelt para que o
tornasse membro do gabinete da presidência.[219]
Durante esse período inicial, era comum na esquerda,
como em outros lugares, comparar, considerando
experimentos aparentados, fascismo na Itália, o comunismo
na União Soviética e o New Deal nos Estados Unidos.[220]
Posteriormente, tais comparações foram completamente
rejeitadas, assim como fora a figura do padre Coughlin, um
genuíno representante da esquerda. Essas mudanças
arbitrárias nas classificações não apenas permitiram que a
esquerda se distanciasse de grupos e de indivíduos
constrangedores, cujas suposições e conclusões
subjacentes detinham muitas semelhanças entre si, mas
também deu à esquerda a condição de transferir
retoricamente o ônus dos constrangimentos para seus
adversários políticos. Além do mais, tais mudanças de
nomenclatura reduziram grandemente a probabilidade de
observadores verem todo potencial negativo das ideias e
das agendas promovidas pela esquerda em seu perpétuo
jogo para adquirir influência ou poder.
A concentração do poder do Estado almejada pela
esquerda está retoricamente a serviço de múltiplos e
sublimes objetivos, porém tamanhas concentrações de
poder oferecem, na realidade, grandes oportunidades para
que se cometa toda sorte de abusos, desembocando em
genocídios e assassinatos em massa perpetrados por
homens como Hitler, Stalin, Mao e Pol Pot. Nenhum desses
líderes tinha uma visão trágica do homem, que
subentendesse o pensamento "conservador" dos Estados
Unidos de hoje. Foram precisamente as presunções de
ditadores como esses, iludidos pelas supostas vastidão e
superioridade de seus conhecimentos e de sua sabedoria,
considerados muito acima dos parcos conhecimentos das
pessoas comuns, que ocasionaram essas assombrosas
tragédias que se abateram sobre populações inteiras.
◆ ◆ ◆

"MUDANÇA" VERSUS STATUS QUO


A intelligentsia geralmente divide as pessoas entre os
que são a favor das "mudanças" e os que favorecem a
manutenção do status quo. O livro Liberalism and Social
Action [Liberalismo e Ação Social], de John Dewey, por
exemplo, começa com as seguintes palavras:

O liberalismo já se acostumou com os massacres


perpetrados pelos que se opõem à mudança
social. Ele tem sido tratado, há muito tempo,
como um inimigo por aqueles que desejam manter
o status quo.[221]

Já foi observado que mesmo figuras "conservadoras"


notáveis, como Milton Friedman e Friedrich Hayek,
defendiam políticas radicalmente diferentes das que
vigoravam nas instituições e nas sociedades. Nenhum livro
estava mais completamente calcado na visão trágica do que
The Federalist [O Federalista], mas ainda assim seus
autores não apenas se rebelavam contra o colonialismo
britânico, mas também propunham uma nova forma de
governo radicalmente contrária às autocracias que
prevaleciam por todo o mundo na época. Chamá-los de
defensores do status quo é divorciar completamente as
palavras das realidades.
A mesma coisa aconteceu com Edmund Burke e Adam
Smith, em relação a seus contemporâneos na Inglaterra do
século XVIII, onde Burke e Smith se destacaram como
integrantes da visão trágica. Ambos defendiam mudanças
drásticas, a ponto de favorecerem a libertação das colônias
da América do Norte, em vez de apoiar a guerra pela
retenção das colônias, contrariando a posição do governo
britânico, e ambos também se opuseram à escravidão numa
época em que poucos faziam isso no mundo ocidental e
praticamente ninguém o fazia fora dele. Burke elaborou um
plano que preparava os escravos para viver em liberdade,
fornecendo-lhes propriedade para que começassem a viver
a vida como pessoas livres[222] Adam Smith não apenas se
opunha à escravidão como descartava, com grande
desprezo, a teoria que afirmava que os escravos negros
eram inferiores aos brancos que os haviam escravizado.[223]
Chamar esses dois homens de defensores do status
quo é o mais completo descaramento no uso de pura
malícia retórica com intuito de encobrir a verdade dos fatos.
Que uma forma tão descabida de evasão aos fatos tenha
permanecido intocada desde o século XVIII até nossos dias,
justamente entre os que se consideram "pessoas pensantes
", constitui um grave indício sobre o poder de uma visão
cuja retórica desmantela o próprio pensamento.
É duvidosa a existência de indivíduos, se de fato
existe algum, numa sociedade livre qualquer, que se
encontrem completamente satisfeitos com todas as políticas
e as instituições sob as quais vivem. Praticamente todas as
pessoas são, em graus e tipos variados, favoráveis às
mudanças. Qualquer discussão racional sobre os tipos e os
graus de mudança a serem considerados tomaria, como
ponto de partida, quais mudanças em particular são
favorecidas por quais pessoas e baseadas em quais razões.
Na sequência, teríamos as análises e as evidências
contrárias ou a favor dessas razões particulares. Todavia,
esse processo é negligenciado. Basta simplesmente
proclamar-se favorável à "mudança ", rotulando os que
discordam dos defensores do status quo. Temos mais um
exemplo de argumentos sem prova.
As pessoas que se reconhecem como "progressistas"
não afirmam apenas que são favoráveis às mudanças, mas
que essas mudanças são sobretudo benéficas, ou seja,
promovem o progresso. Contudo, outras pessoas que
também defendam mudanças, mas de naturezas um tanto
quanto diferentes, podem, da mesma forma, dizer que suas
mudanças são para melhor. Em outras palavras, todo
mundo é progressista, segundo sua própria ótica. O fato de
algumas pessoas se imaginarem peculiarmente inclinadas
ao progresso não constitui apenas mais um exemplo de
autoglorificação, mas também representa uma fuga. Tenta-
se escapar da prova ao não mostrar, com base em
evidência e análise, onde e por que suas propostas
particulares de mudança produziriam, melhores resultados
do que as mudanças propostas por outras pessoas. Em vez
de percorrer todo esse processo investigativo,
desqualificam-se os adversários, sem maiores critérios de
análise e de prova, dizendo, como fez John Dewey, que são
"apologistas do status quo".[224]
Embora façam uso de tais desqualificações no lugar
de apresentar argumentos sólidos, qualquer um que tenha
cerra familiaridade com a história do pensamento britânico
do século XVIII sabe que o livro A Riqueza das Nações, de
Adam Smith, não se apresentou em defesa do status quo,
mas de fato apontou para uma direção absolutamente
contrária aos interesses instituídos pela elite da época tanto
na ordem socioeconômica como na ordem política. Seria um
tanto quanto difícil compreender o motivo pelo qual Adam
Smith, ou qualquer outra pessoa, dedicaria toda uma
década de sua vida escrevendo um livro de novecentas
páginas para dizer o quão feliz e satisfeito estava com o
mundo que o cercava. O mesmo poderia ser dito sobre os
escritos volumosos de Milton Friedman, Friedrich Hayek,
William F. Buckley e muitos outros escritores rotulados de
"conservadores".
O próprio conceito de mudança, como é usado pelos
intelectuais de esquerda, o que significa dizer, a quase
absoluta maioria da intelligentsia, é um que se faz
arbitrariamente restritivo e tendencioso. Esse conceito se
limita apenas aos tipos particulares de mudança
consagrados pela esquerda, efetuados por meio dos
mecanismos sociais particulares que eles pretendem
implantar. Outras mudanças, não importando quão amplas e
impactantes possam ser para a vida de milhões de pessoas,
tendem a ser ignoradas caso operem por meio de outros e
distintos mecanismos não contemplados pela intelligentsia.
No mínimo, tais desenvolvimentos não incluídos fora do
escopo da visão do intelectual ungido são reprovados e não
são agraciados com o título honorífico de "mudança ".
Por exemplo, a década de 1920 foi uma década de
enormes mudanças para a população dos Estados Unidos: a
mudança de uma sociedade predominantemente rural para
uma sociedade predominantemente urbana e a
disseminação do uso da eletricidade, dos automóveis e dos
aparelhos de rádio, os quais entraram na vida de muitos
milhões de norte-americanos. Foi também o início do
transporte aéreo comercial e a revolução do mercado
varejista, com a expansão das redes comerciais que
resultou numa acentuada queda de preços. No entanto,
quando os intelectuais se referem às épocas de "mudança"
quase nunca mencionam a década de 1920, porque essas
rápidas mudanças, na forma como milhões de americanos
viviam a vida, não representam, contudo, os tipos
particulares de mudança que a intelligentsia idealiza, pois
não participam dos mecanismos sociais sonhados. Aos olhos
da maioria da intelligentsia, a década de 1920, nas raras
vezes em que se pensa nela, é vista como um período de
estagnação, de manutenção do status quo, presidido por
administradores conservadores que se opunham às
"mudanças".
◆ ◆ ◆

RETÓRICA VERSUS PREFERÊNCIAS


Para compreender o papel dos intelectuais na
sociedade, devemos olhar para além de sua retórica ou
mesmo da retórica de seus críticos, observando a realidade
de suas preferências ao serem reveladas.
Como podemos saber quais são os objetivos e as
prioridades de alguém? Uma forma possível pode ser obtida
prestando-se atenção no que dizem, mas é claro que meras
palavras nem sempre refletem, com precisão, os
pensamentos mais recônditos. Além do mais, mesmo os
pensamentos articulados não refletem necessariamente os
reais padrões de comportamento das pessoas. Objetivos,
preferências e prioridades retoricamente articulados tanto
interna quanto externamente, não precisam ser
consistentes com as escolhas realmente feitas quando
confrontados com opções oferecidas no mundo real. Um
homem pode alegar que manter o gramado aparado é mais
importante do que assistir à televisão, mas se o
encontramos em frente da televisão por horas a fio, durante
semanas, enquanto o mato e a grama alta tomam conta de
seu jardim, então as preferências reveladas, em seu
comportamento, apresentam-se como indicador muito mais
acurado de suas verdadeiras prioridades do que o fazem
tanto sua retórica como as possíveis crenças que o sujeito
tem a respeito de si.
Quais tipos de preferências são revelados no
comportamento real dos intelectuais e como essas
preferências reveladas se relacionam com a retórica usada?
Os intelectuais declaram que o centro de suas
preocupações funda-se na preocupação pelo bem-estar dos
outros, especialmente os pobres, as minorias, a promoção
de "justiça social", a proteção das espécies ameaçadas e do
meio ambiente. A retórica que usam é muito familiar e está
completamente difundida em nossa cultura para que seja
necessária uma elaboração mais sofisticada. Todavia, a
verdadeira questão é a seguinte: Quais são as preferências
realmente reveladas por seus comportamentos?
A frase "resultados indesejáveis" tornou-se clichê
precisamente pelo fato de tantas políticas e de tantos
programas desejados para, por exemplo, melhorar a
situação dos menos afortunados, acabarem na verdade
deixando a situação deles pior, de forma que não é mais
possível acreditar que boas intenções, por si só, possam
automaticamente anunciar bons resultados. Qualquer
pessoa cuja preocupação fundamental seja a melhoria das
condições socioeconômicas dos menos afortunados já
deveria ter percebido, depois de décadas de "resultados
indesejáveis", a necessidade incontornável de se investir
tempo e esforços em tornar boas intenções em políticas e
em programas realmente eficientes, além de investir tempo
e esforços adicionais para se tentar descobrir como aferir os
impactos reais dessas políticas e desses programas.
Qualquer um, cuja preocupação fundamental seja a
melhoria das condições dos menos afortunados, deve
também estar alerta para outros fatores, mas cuja origem
ultrapassa a visão dos intelectuais, sempre que esses outros
fatores se mostram empiricamente como elementos que
ajudam na promoção do bem-estar dos menos afortunados,
mesmo que por meios que não sejam contemplados pela
inteligência e de forma contrária às visões e às crenças
adotadas pela intelligentsia. Resumindo, uma das maneiras
de testar se as alegadas preocupações com o bem-estar dos
menos afortunados são verdadeiras e se representam, de
fato, uma preocupação genuína pelo bem-estar dessas
pessoas ou se, pelo contrário, é apenas uma forma de
sequestrar a posição de "vítima" dos menos afortunados,
usando-a como forma de condenar a sociedade a fim de
alçar autoridade moral e política, seria na observação das
preferências reais, reveladas no comportamento dos
intelectuais. É preciso avaliar quanto tempo e quanta
energia os intelectuais investem na promoção de sua visão,
comparando com o tempo e a energia dedicados à aferição
(1) das consequências reais sobre as coisas feitas em nome
da visão e (2) na própria aferição dos benefícios reais e
concretos criados aos menos afortunados, mesmo quando
escapam aos ditames da visão consagrada, e que podem
ser até mesmo ser contrários a ela.
Por exemplo, cruzadas em nome de um "salário
digno" ou para por fim às "duras" condições de trabalho no
Terceiro Mundo absorvem enormes quantidades de tempo e
de energia na promoção de seus objetivos, mas não
dedicam tempo nenhum para analisar os vários estudos
feitos em países, por todo o mundo, a fim de verificar as
consequências reais de tais leis de salário mínimo em geral
ou de leis de "salário digno" em particular. As
consequências reais incluem índices mais altos e períodos
mais longos de desemprego generalizado, afetando
especialmente os segmentos menos qualificados e
especializados da população. Pode se concordar ou se
discordar dos resultados, mas a questão crucial aqui é se
alguém se preocupa em lê-los.
Caso o real propósito das cruzadas sociais seja a
melhoria da condição social dos menos afortunados, as
consequências reais de tais políticas, como controle de
salários, tornam-se aspectos centrais e precisam ser
investigadas a fim de evitar a eterna recorrência de
"resultados indesejáveis", os quais já se tornaram
universalmente reconhecidos no contexto das reformas
sociais. Mas se o real propósito das cruzadas sociais for de
fato proclamar um grupo ou alguém, como anjos
reformadores, então essas investigações empíricas passam
a ter uma prioridade reduzida, caso ainda exista alguma,
uma vez que o objetivo em se colocar do lado dos anjos é
realizado quando as políticas são defendidas e instituídas,
após as quais as cruzadas sociais podem seguir em frente,
para atacar outras questões. A preferência revelada, em
muitos casos, senão na maioria deles, é a que procura ficar
do lado dos anjos.
É difícil escapar à mesma conclusão, sempre que
olhamos para os mesmos intelectuais quando colocados
diante de potenciais melhorias na condição dos pobres, mas
que se baseiam em políticas ou em circunstâncias que não
oferecem quaisquer oportunidades de estar ao lado dos
anjos contra as forças do mal. Por exemplo, sob a direção de
novas políticas econômicas, começando na década de 1990,
dezenas de milhões de pessoas na Índia saíram do nível
máximo de pobreza naquele país. Na China, adotando,
ainda mais cedo, uma política semelhante, um milhão de
pessoas ao mês conseguem sair do nível de pobreza.[225]
Certamente que qualquer pessoa interessada no destino
dos menos afortunados gostaria de saber como tamanho
desenvolvimento foi possível, diante de vastíssimos
contingentes de população miserável, perguntando como
melhorias semelhantes podem ser adotadas em outros
lugares do mundo. Contudo, esses e outros aumentos
formidáveis de padrão de vida das populações, baseados
fundamentalmente numa maior produção de riquezas,
despertaram pouco ou nenhum interesse entre os
intelectuais.
Apesar de toda a importância que tiveram para as
populações pobres, esses desenvolvimentos não oferecem
oportunidade alguma para a intelligentsia se colocar ao lado
dos anjos contra as forças do mal, e é aí que suas
preferências reais são reveladas, mostrando sua verdadeira
face. Questões sobre quais políticas ou condições mais
favorecem ou obstruem as taxas de crescimento e de
produtividade raramente despertam o interesse da maioria
dos intelectuais, mesmo ao se saber que tais mudanças
fizeram mais para reduzir a pobreza, tanto nos países ricos
como nos pobres, do que o fizeram todas as mudanças na
distribuição de renda já implantadas. O escritor francês
Raymond Aron sugeriu que, ao se alcançar os ostensivos
objetivos da esquerda sem, contudo, fazer uso dos métodos
favorecidos por ela, acaba-se, na verdade, provocando
ressentimentos:

De fato, a esquerda europeia tem um rancor


contra os Estados Unidos, principalmente porque
esses últimos obtiveram sucesso através de meios
que não estavam escritos no código
revolucionário. Prosperidade, poder e tendência à
uniformidade das condições econômicas, todos
esses resultados foram alcançados pela iniciativa
privada, pela competição, em vez de
intervencionismo estatal, ou seja, foram
alcançados no pleno exercício do capitalismo, o
qual todo intelectual bem-educado aprendeu a
desprezar.[226]

De forma semelhante, apesar de décadas de lamentos


e de queixas, nos Estados Unidos, a respeito da baixa
qualidade da educação na maior parte das escolas de
negros, estudos realizados em escolas específicas, onde
estudantes negros obtinham ou superavam as médias
nacionais[227] despertaram pouco ou nenhum interesse
entre a maioria dos intelectuais, mesmo entre aqueles que
são ativos participantes das questões raciais. Assim como
aconteceu no caso de milhões de pessoas que saíram da
pobreza em países do Terceiro Mundo, essa falta de
interesse com o sucesso de algumas escolas de negros por
pessoas que, em outras circunstâncias, mostram-se
altamente engajadas com as questões raciais, revela a real
preferência: a condenação, como um todo, das escolas mal
sucedidas e da sociedade que mantém essas escolas. Uma
investigação sobre os motivos que levaram algumas escolas
de negros a terem ótimo desempenho poderia fornecer boas
esperanças para a descoberta de possíveis fontes de
conhecimento e de insight, as quais indicariam como
melhorar a educação para um grupo que geralmente é
muito deficiente na área de resultados acadêmicos, o que
reflete, ao mesmo tempo, baixa renda e pouca inserção em
atividades profissionais que dependem de excelência
acadêmica. Contudo, a história de sucesso de algumas
escolas não ofereceria uma oportunidade real para os
intelectuais ungidos se colocarem ao lado dos anjos contra
as forças do mal. O fato de muitas, ou mesmo da maioria,
das escolas de negros com alto desempenho escolar não
seguirem as diretrizes educacionais em voga, promovidas
pela intelligentsia, pode explicar parte do motivo pelo qual
há tanta falta de interesse nelas, da mesma forma que um
completo desinteresse em verificar como a Índia e a China
conseguiram aumentar o padrão de vida de milhões de
pessoas pode estar ligado ao fato de tal sucesso ter sido
causado justamente pelo afastamento dos modelos
econômicos há muito favorecidos pela esquerda.
Geralmente se diz que os intelectuais da esquerda são
notoriamente "suaves com os criminosos", mas mesmo
nesse caso a questão real é se essas pessoas acusadas de
cometer crimes ou condenadas são objetos genuínos de
benevolência por parte dos intelectuais ou se estão, num
quadro mais amplo, sendo usadas por eles, servindo como
anteparos acidentais e, por isso mesmo, descartáveis. Por
exemplo, uma das experiências mais horrendas, sofridas por
muitos homens na prisão, é ser vítima de estupro, coletivo
perpetrado por gangues de outros prisioneiros. No entanto,
qualquer tentativa de reduzir a incidência de terríveis e
duradouras experiências como essas, construindo-se mais
presídios para que cada detento possa ser alojado em celas
individuais, é duramente combatida pelas mesmas pessoas
que costumam se colocar veementemente em defesa dos
"direitos" dos presidiários. Esses direitos importam somente
na medida em que se tornam instrumento para condenar a
"sociedade", explicando a oposição para construção de mais
presídios. Quando o bem-estar real dos detentos entra em
conflito direto com a questão simbólica de se evitar que
mais presídios sejam construídos, os detentos tornam-se
apenas mais um sacrifício no altar da intelligentsia.
De muitas maneiras, abarcando toda uma gama de
assuntos, a revelada preferência real dos intelectuais é
obter autoridade moral e poder político em detrimento do
resto da sociedade. Não é permitido que os desejos ou os
interesses de nenhum dos alegados beneficiários dessa
autoridade ou desse poder, sejam eles os pobres, as
minorias ou os presidiários, se sobreponham à questão mais
fundamental, que é obter e manter a hegemonia moral do
intelectual ungido.
◆ ◆ ◆

JUVENTUDE E VELHICE
Considerando-se as concepções altamente
divergentes de conhecimento entre os que partilham da
visão trágica e os que se consagram na visão do intelectual
ungido, é certamente inevitável que os dois
posicionamentos tenham diferentes entendimentos sobre o
papel e a competência dos jovens. Onde, grosso modo, o
conhecimento é concebido como aquilo que é ensinado nas
escolas e nas universidades, e a inteligência é concebida
como puro poder mental para se manipular conceitos e
articular conclusões, não há motivos para crer que os jovens
não seriam, no mínimo, tão capazes para essas coisas
quanto os mais velhos, uma vez que o desenvolvimento
cerebral atinge seu pico no início da idade adulta. Mas, para
os integrantes da visão trágica, para os quais o
conhecimento mais decisivo e repleto de consequências é
geralmente o conhecimento mundano, acumulado pela
experiência, em que a sabedoria é fundamentalmente
retirada ao longo desse processo, então, quase por
definição, a geração mais nova geralmente não se encontra
numa posição tão favorável para tomar decisões sábias,
tanto para si como, sobretudo, para a sociedade,
comparando-se com os que já acumularam muita
experiência.
Seguindo essa linha de raciocínio, os que comungam
a visão do intelectual ungido há séculos depositam grandes
esperanças nos jovens, ao passo que os que partilham da
visão trágica confiam muito mais nos mais amadurecidos
pela experiência.
A noção, veiculada na década de 1960, sugerindo que
"deveríamos aprender com nossos jovens" tinha
antecedentes que remontavam ao século XVIII. Fenômenos
sociais subsidiários, como a redução da idade para votar e o
esvaziamento do tratamento respeitoso para com os mais
velhos em geral e com os pais em particular, constituem, da
mesma forma, partes integrantes de toda a concepção de
conhecimento predominante na intelligentsia. Sempre que
os problemas sociais são vistos exclusivamente como
consequência das instituições e dos preconceitos existentes,
os jovens são, em geral, considerados menos aprisionados
ao status quo, o que os torna grandes esperanças.
De volta para o século XVIII, William Godwin
expressou tal entendimento quando disse: "A próxima
geração não terá de vencer tantos preconceitos”.[228] As
crianças, segundo Godwin, "são como matérias-primas
colocadas em nossas mãos"[229] e a mente delas "é como
folhas de papel em branco".[230] Ao mesmo tempo, elas são
oprimidas pelos pais e precisam passar por "vinte anos de
cativeiro" antes que recebam "a minguada porção de
liberdade que o governo de meu país oferece para seus
súditos adultos!". [231] Certamente que, nessa visão, os
jovens são vistos como candidatos para "liberação" tanto de
si mesmos quanto da sociedade, uma visão ainda em plena
vigência entre os intelectuais mais de dois séculos depois.
Todavia, essas conclusões caem por completo toda
vez que o conhecimento e a sabedoria são concebidos
dentro dos parâmetros da visão trágica. Por exemplo, Adam
Smith disse: "Geralmente, os mais sábios e experientes são
os menos crédulos". Portanto, em geral os mais velhos são
menos suscetíveis a noções mirabolantes. Ainda Smith: "É
apenas a sabedoria e a experiência acumulada que nos
ensinam a sermos incrédulos e elas raramente nos ensinam
o suficiente".[232] O zelo e o entusiasmo dos jovens,
tremendamente aclamados por muitos na intelligentsia, são
avaliados de forma muito diferente pelos que partilham da
visão trágica. Burke, por exemplo, disse o seguinte: "Não se
deve fomentar a ignorância presunçosa, que é acionada
pela paixão insolente".[233] Dentro da visão trágica, alguns
chegaram ao ponto de apontar uma invasão perene da
civilização por bárbaros, ou seja, os recém-nascidos, os
quais as famílias e as instituições sociais têm o dever de
civilizar, uma vez que, ao ingressarem no mundo, não o
fazem de forma distinta do que o faziam os bebês na época
das cavernas.
Pessoas com visões de mundo opostas não têm
apenas conclusões conflitantes em relação aos jovens e aos
velhos. Nesses, assim como em outros inumeráveis
assuntos, as conclusões a que cada um chega estão
envolvidas em corolários subjacentes sobre o conhecimento
e a sabedoria. Há algum tempo, questões sobre a condução
da educação dos jovens se constituem em campo de
batalha entre os aderentes das duas visões. O
entendimento de William Godwin, o qual afirmara que os
jovens "são uma espécie de matéria-prima colocada em
nossas mãos", permanece, passados dois séculos, uma
poderosa tentação para doutrinação em sala de aula tanto
nas escolas quanto nas universidades. No século XX,
Woodrow Wilson, ao escrever sobre os anos em que
trabalhou como administrador acadêmico, comentou:
"Sonhava em tornar aqueles jovens da nova geração em
pessoas muito diferentes de seus pais".[234]
Esse tipo de doutrinação pode começar muito cedo,
desde o primário, quando os alunos são encorajados ou
solicitados para escreverem sobre assuntos controversos,
por vezes em cartas destinadas a homens públicos. De
forma mais fundamental, o processo de doutrinação habitua
as crianças a tomarem posições sobre assuntos
excessivamente complexos e pesados, depois de ouvirem
apenas um lado das questões. Além disso, elas se habituam
a extravasar suas emoções, em vez de se habituarem a
analisar as evidências conflitantes e a dissecar argumentos.
Em poucas palavras, elas são condicionadas a tirar
conclusões pré-fabricadas, em vez de ser equipadas com as
ferramentas intelectuais apropriadas para que possam se
tornar capazes de elaborar suas próprias conclusões,
incluindo conclusões diferentes das de seus professores.
Nas faculdades e universidades, departamentos acadêmicos
inteiros funcionam e trabalham para a elaboração de
conclusões préfabricadas, seja em relação às questões
sobre raça, meio ambiente ou outros assuntos, que recebem
o nome de "estudos" sobre a questão dos negros, do meio
ambiente e das mulheres. Poucos ou mesmo nenhum
desses "estudos" analisam visões conflitantes ou mesmo
comparam evidências conflitantes, como seria exigido
dentro dos moldes e critérios de um estudo acadêmico, em
vez de meramente ideológico.
Os que criticam a doutrinação ideológica feita nas
escolas e faculdades geralmente fixam seus ataques nos
conteúdos ideológicos particulares, mas, do ponto de vista
educacional, isso foge à questão central. Mesmo que, para
uma questão de mera argumentação, todas as conclusões
alcançadas pelos diversos "estudos" sejam tanto lógica
como factualmente válidas, isso não alcança o cerne da
questão educacional. Mesmo se os alunos deixassem esses
"estudos" com aproveitamento de 100% em conclusões
corretas em relação às questões A, B e C, isso não os
equiparia, de forma alguma, com as ferramentas
necessárias para lidar com outras questões X, Y e Z que
tendem a aparecer ao longo dos anos futuros.
◆ ◆ ◆

NOÇÕES VERSUS PRINCÍPIOS


Idealmente, o trabalho de intelectuais baseia-se em
certos princípios lógicos, empíricos e talvez de valores
morais e de preocupação social. Todavia, tendo-se em vista
os incentivos e as restrições da profissão, o trabalho dos
intelectuais não precisa seguir esse padrão. Em vez de
termos o rígido estabelecimento de princípios, há, por outro
lado, uma ampla margem para o desenvolvimento de meras
atitudes, as quais acabam guiando o trabalho dos
intelectuais, especialmente quando são atitudes
predominantes entre seus pares e se encontram isoladas do
mundo externo, protegidas do mundo real.
Embora a lógica e a evidência constituam os critérios
ideais para trabalho de qualquer intelectual, existem muitas
provas que nos mostram algo diferente, pois muito do que é
dito e feito pelos intelectuais tem um compromisso diminuto
com princípios formais e, por outro lado, um compromisso
muito maior com meras atitudes. Por exemplo, os mesmos
intelectuais que são tão receptivos à ideia de redução das
penas de mulheres condenadas por homicídio e que,
segundo é alegado, sofreram espancamentos domésticos ou
outros casos semelhantes de maus-tratos domésticos na
infância, mostram-se, contudo, inflexíveis às alegações para
se atenuar as acusações contra policiais que tiveram um
átimo de segundo para tomar uma decisão de vida ou
morte, correndo o risco de morrer, recusando-se a tratá-los
com menos severidade.
Alguns intelectuais que notoriamente se opõem aos
princípios de conduta racista permaneceram, no entanto,
em silêncio ou mesmo defenderam líderes de comunidades
negras que perpetraram ataques racistas contra donos de
lojas asiáticos que residiam em guetos negros ou atacaram
brancos em geral e judeus em particular. Alguns intelectuais
chegaram ao ponto de redefinir o racismo de forma a tornar
os negros imunes ao rótulo,[235] ou seja, mais um exercício
de manipulação retórica. Muitos na intelligentsia denunciam
a "ganância" que reina entre os executivos, mas cuja renda
é uma fração das rendas de atletas profissionais e de
celebridades midiáticas, os quais são raramente ou mesmo
nunca acusados de gananciosos.
A intelligentsia mobilizou protestos de indignação
quando os lucros aferidos pelas companhias petrolíferas
subiram, muito embora o peso que o lucro corporativo
exerce sobre o preço do galão de gasolina seja muito menor
do que o peso dos impostos sobre o preço do mesmo galão.
Mas o conceito de "ganância" quase nunca é aplicado ao
governo, seja em relação à quantidade de impostos que ele
recolhe ou mesmo quando as casas da população
trabalhadora são confiscadas a roldão para o
replanejamento de imensas áreas, de forma a trazer mais e
pesados impostos, permitindo que políticos gastem mais e
aumentem suas chances de se reelegerem.
Tais respostas e falta de respostas dos intelectuais
não representam apenas atitudes que simplesmente se
colocam no lugar dos princípios, mas representam atitudes
que, por vezes, anulam esses princípios. Esse
comportamento tendencioso também não se restringe a
atacar grupos particulares de seres humanos, mas é
aplicado aos próprios conceitos, como, por exemplo, o
conceito de risco.
Intelectuais que se dizem altamente críticos a
quaisquer riscos associados a certos medicamentos
farmacêuticos, considerando obrigação banir a
comercialização de alguns desses remédios por causa do
alto risco que representam, não consideram, contudo, que
exista qualquer necessidade de o governo banir esportes
como paraquedismo ou rafting, mesmo quando se sabe que
apresentam índices muito mais altos de risco de morte, os
quais, ainda por cima, são praticados por motivos
meramente recreativos, ao passo que os riscos de alguns
medicamentos são contraídos no combate a dor e a
deficiências e podem salvar mais vidas do que as tiram. De
forma parecida, quando um atleta do boxe morre devido aos
golpes que sofreu no ringue, isso certamente dispara uma
enxurrada de exigências, que partem da mídia e da
intelligentsia, para que o boxe seja banido, mas tais
exigências não são apresentadas quando temos mortes de
atletas esquiando, mesmo que essas últimas sejam muito
mais frequentes do que as mortes com o boxe. Mais uma
vez, não se trata de princípios, mas de atitude.
Embora as atitudes variem de indivíduo para
indivíduo, as atitudes dos intelectuais são, em sua grande
parte, atitudes de grupo. Além do mais, essas atitudes
mudam coletivamente ao longo do tempo, tornando-se
estilos transitórios de determinada época, em vez de se
fixarem como atitudes permanentes, e muito menos
princípios permanentes. Assim, na era progressista no
começo do século XX, as minorias raciais e étnicas eram
vistas sob uma ótica amplamente negativa, e o apoio dos
progressistas à causa do movimento de eugenia não estava
desligado de um anseio presumível em prevenir que essas
minorias propagassem suas populações. Tal atitude foi
muito comum na década de 1930, só depois as minorias
étnicas e raciais se tornaram objetos de especial zelo.
Depois da década de 1960, esse zelo se transformou numa
verdadeira obsessão, apesar de toda a inconsistência em
comparação às obsessões diametralmente opostas
anteriores, adotadas pelos intelectuais, na época os
"progressistas", no início do século XX.
Durante essa primeira fase do século XX, quando
fazendeiros e trabalhadores eram o foco especial do zelo
intelectual, ninguém prestava muita atenção sobre como os
benefícios concedidos a esses grupos poderiam afetar
adversamente as minorias e os outros grupos. Da mesma
forma, numa época posterior, pouca atenção foi dada pelos
intelectuais "progressistas" a como a ação afirmativa para
as minorias ou para as mulheres afetava negativamente
outros grupos. Não existe princípio algum que equilibre
essas mudanças de atitude coletiva. Temos simplesmente a
bola da vez, da mesma forma que acontece com as manias,
entre os adolescentes, os quais, por um tempo, assumem
formas de comportamento compulsivo e depois as
consideram fora de moda, mas que nunca são tratadas
como sujeitas ao escrutínio lógico ou à evidência durante o
período em que se vive a obsessão ou o caso Sacco-Vanzetti
ganhou notoriedade internacional devido à presumível
injustiça do julgamento, o juiz da Suprema Corte Oliver
Wendell Holmes escreveu, numa carta a Harold Laski, sobre
o foco arbitrário da época:

Eu não posso deixar de me perguntar sobre os


motivos de um interesse tão maior pelo vermelho
- anarquista - do que pelo negro. Casos mil vezes
mais graves, envolvendo inj ustiças contra os
negros aparecem de tempos em tempos, mas
ninguém lhes presta a mínima atenção. Não
acredito que seja um mero amor abstrato pela
justiça que tenha causado tanta comoção nas
pessoas.[236]

◆ ◆ ◆

PESSOAS ABSTRATAS VIVENDO NUM MUNDO


ABSTRATO
As falsas crenças dos intelectuais a respeito da
sociedade não se constituem aleatoriamente. Na prática,
suas confusões e suas falsas caracterizações promovem a
visão universal de uma sociedade profundamente
defeituosa, a qual necessita urgentemente de intervenções
políticas que, por sua vez, irão estabelecer e consagrar a
visão predominante da intelligentsia. Uma das bases para
ambiciosos pronunciamentos sobre a totalidade da
sociedade é calcada na concepção de pessoas no abstrato,
retirando-se as especificidades e as características
concretas, encontradas em seres humanos de carne e osso,
da forma como eles existem no mundo real. Por exemplo, a
preocupação que os intelectuais têm com os níveis de
consumo, ligados às desigualdades econômicas, torna -se
compreensível para eles somente se esses indivíduos ou
grupos, que se diferenciam em suas condições econômicas,
não se distinguirem em fatores de produtividade que
determinam esses resultados, como seria o caso com
pessoas tidas no abstrato. Pessoas abstratas podem ser
agregadas em categorias estatísticas, como vida familiar e
índices de renda, sem, contudo, precisar haver a menor
preocupação se essas categorias estatísticas estão falando
de pessoas semelhantes ou se falam do mesmo número de
pessoas, ou de pessoas que se diferem expressivamente em
relação à idade ou em distinções mais finas.
As pessoas abstratas detêm uma imortalidade que as
pessoas de carne e osso ainda têm que conquistar. Assim,
um historiador escrevendo sobre o recém-criado Estado da
Tchecoslováquia, depois da Primeira Guerra Mundial, disse
que a política referente aos grupos étnicos, os quais viviam
dentro de suas fronteiras, foi concebida a fim de "corrigir a
injustiça social" e "consertar os erros históricos do século
XVII",[237] desconsiderando o fato de que as pessoas reais
de carne e osso daquele século já tinham morrido havia
muito, colocando a reparação de seus erros para além do
alcance humano. Boa parte do mesmo tipo de raciocínio
continua a ser ideologicamente poderoso entre os membros
da intelligentsia nos Estados Unidos do século XXI, em que
"brancos" e "negros" são vistos como abstrações
intertemporais a carregar questões centenárias que
precisam ser reparadas, em vez de tratá-los como pessoas
de carne e osso que levam seus pecados e seus sofrimentos
consigo para o túmulo.
Diferentemente das pessoas reais, pessoas abstratas
podem ser enviadas "de volta" para lugares onde nunca
estiveram. Dessa forma, famílias alemãs que viveram por
séculos em regiões da Europa oriental e nos Bálcãs foram
mandadas "de volta" para a Alemanha, depois da Segunda
Guerra Mundial, pois a maior parte das populações que
viviam nessas regiões reagiu ressentidamente ao fato de
terem sido maltratadas durante a ocupação nazista,
impondo, então, uma massiva limpeza étnica de alemães
em seus países depois da guerra. Muitas dessas pessoas de
carne e osso e de ancestralidade alemã nunca tinham
pisado na Alemanha, para onde estavam sendo mandadas
"de volta". Apenas como abstrações intertemporais elas
tinham vindo de lá.
Foi a mesma história com os chamados indianos
tâmeis no Sri Lanka, os quais, durante a década de 1960,
foram mandados "de volta" para a Índia, de onde seus
ancestrais haviam emigrado no século XIX. De forma
parecida, quando populações de heranças paquistanesa e
indiana foram expulsas de Uganda, durante a década de
1970: a maior parte dessas pessoas nascera em Uganda e
uma boa parte delas foi se estabelecer na Grã-Bretanha e
não na Índia ou no Paquistão. Talvez um dos esforços mais
persistentes em se repatriar abstrações atemporais tenha
sido feito com as propostas, nos Estados Unidos do século
XIX, de se libertar os escravos e mandá-los "de volta para a
África", um continente em que a grande maioria deles ou
mesmo seus avós nunca tinha pisado.
Quando diferenças reais entre pessoas reais são
mencionadas ou levadas em consideração por outros, os
intelectuais são os primeiros a declarar que são meras
"percepções" e meros "estereótipos". Evidência para
conclusões tão apressadas são raramente perguntadas ou
fornecidas. Igualdade abstrata é o ponto de partida a priori
de suas suposições. Não há motivo algum para que pessoas
abstratas tenham resultados diferentes quando suas
diferenças reais em capacidade foram, abstratamente,
descartadas.
Pessoas abstratas são, acima de tudo, iguais, embora
pessoas de carne e osso estejam distantes de tal condição
ou de tal ideal. Desigualdades de renda, poder, prestígio,
saúde e outras coisas têm sido motivo de grande
preocupação entre os intelectuais tanto como coisas que
exigem explicação como coisas que precisam ser corrigidas.
O tempo e o esforço dedicados às questões de desigualdade
poderiam nos sugerir que a igualdade é algo tão comum e
automático que sua ausência requer uma explicação. Muitos
intelectuais abordam a questão sobre a igualdade com
espírito muito parecido àquele com que Rousseau abordou a
questão da liberdade: "O homem nasce livre, mas ele se
encontra acorrentado em todos os lugares". Para a grande
maioria dos integrantes da intelligentsia moderna, o homem
é considerado como nascido igual, mas que
misteriosamente tornou-se desigual em todos os lugares.
Muitas causas para essa inexplicável desigualdade já
foram sugeridas: exploração, desvantagens socialmente
construídas, racismo, machismo, preconceitos de classe,
para citar só alguns exemplos. Contudo, raramente é
considerado necessário demonstrar a existência de uma
igualdade automática, a qual tornaria necessária a
explicação de sua ausência. Qualquer um que admita que
indivíduos ou, pior ainda, que grupos sejam desiguais, é
intelectualmente destituído e denunciado moralmente como
preconceituoso e intolerante em relação àqueles que sofrem
com a desigualdade. No entanto, o caso empírico pela
igualdade universal varia de uma posição débil à completa
inexistência.
Alguém acredita seriamente que os brancos, em
geral, jogam basquete profissional tão bem quanto os
negros? Como, então, é possível explicar a predominância
de negros nessa lucrativa atividade que oferece fama e
fortuna? Durante o período de predominância dos negros no
basquete profissional, os donos dos times são todos
brancos, assim como a maior parte dos técnicos. Por meio
de quais mecanismos os negros poderiam ter maquinado
restrições ao acesso ao basquete profissional, sabotando os
brancos com igual habilidade para esse esporte? Mesmo
aqueles que admitem que os negros, no momento atual e
sob as circunstâncias sociais e culturais existentes, tornam-
se jogadores de basquete mais habilidosos por uma questão
empírica insistem, no entanto, que os brancos poderiam
jogar igualmente bem se as circunstâncias, incluindo
carreiras alternativas disponíveis, fossem as mesmas para
ambas as raças.
Assumir que isso é verdadeiro apenas revela qual tipo
de concepção de igualdade está implícito em muito do que
os intelectuais dizem. Eles não estão falando de uma
igualdade empírica, mas de uma igualdade potencial, ou
seja, igualdade no abstrato. Essa não é uma diferença
insignificante, mesmo que seja uma diferença
frequentemente ignorada ou desconversada no curso das
discussões. Ainda que na média o potencial abstrato seja
igual, entre essas imensas agregações de pessoas que
formam as raças e as classes sociais ele existe apenas no
momento da concepção. Mas ninguém escolhe uma carreira
ou concorre a um curso universitário no momento da
concepção. No momento em que pessoas reais vivendo no
mundo real alcançam tais pontos de tomada de decisão,
muita coisa já aconteceu desde a concepção e raramente
aconteceu a mesma coisa para todo mundo. Mesmo entre a
concepção e o nascimento muitas coisas diferentes já
aconteceram, pois verificamos a produção de diferentes
taxas de mortalidade infantil, diferentes doenças e
condições médicas, incluindo-se problemas com drogas,
afetando os bebês nascidos de mulheres com diferentes
padrões de comportamento, como consumo ou não de
tabaco, drogas, alimentação insalubre e álcool.
A distinção entre potencial abstrato e capacidades
desenvolvidas não é trivial, mesmo que seja geralmente
perdida ou minimizada por intelectuais que falam em
termos absolutamente genéricos sobre a "igualdade". O
potencial abstrato carrega um peso muito pequeno, em
qualquer lugar do mundo, sempre que as pessoas tomam
decisões para si. Desempenho é o que interessa. O que a
maior parte das pessoas quer saber é o seguinte: O que
você é realmente capaz de realizar? Não o que você poderia
ter realizado em outras circunstâncias ou que seja capaz de
realizar depois que outras instituições e outras políticas
forem criadas, mas o que você pode fazer aqui e agora no
mundo real. O que queremos saber é o que pessoas reais
podem realmente fazer e não que tipo de potencial abstrato
existe em pessoas abstratas.
A excepcional facilidade que os intelectuais têm para
lidar com abstrações não elimina a diferença entre essas
abstrações e o mundo real. Nem mesmo garante que aquilo
que é válido e verdadeiro para essas abstrações seja
igualmente verdadeiro na realidade, muito menos garante
que as sofisticadas visões abstratas dos intelectuais
deveriam passar por cima das experiências diretas das
pessoas vivendo no mundo real. Os intelectuais podem, de
fato, desconsiderar as "percepções" dos outros, rotulando-
as como "estereótipos" ou "mitos ", mas isso não é o
mesmo que provar que elas estão empiricamente erradas,
mesmo quando um número notável de intelectuais age
como se elas estivessem. Por trás da prática disseminada
de considerar diferenças de grupo em "representações"
demográficas, em várias profissões e instituições ou níveis
de renda como evidência de discriminação, existe a noção
implícita de que os grupos não podem ser diferentes ou que
quaisquer diferenças são culpa da "sociedade", a qual deve
corrigir seus erros e seus pecados.
Sabendo-se que não existe sujeito algum chamado
"sociedade", o que tais intelectuais geralmente se dedicam
a reformar é o governo. O que está implícito nisso tudo é a
suposição de que existe algo de errado com o fato de
indivíduos e grupos serem diferentes em suas habilidades
empíricas, uma vez que foi presumido que seus potenciais
abstratos são os mesmos.
Uma vez que o foco mude de potencial abstrato para
realidades empíricas, a noção de igualdade não se torna
meramente uma abstração sem provas, mas concretamente
improvável, ao ponto de se tornar absurda. Como as
pessoas que vivem nas montanhas do Himalaia poderiam
desenvolver as mesmas habilidades marítimas de pessoas
vivendo nos portos do Mediterrâneo ou do Atlântico? Como
os polinésios poderiam saber lidar com camelos tão bem
como os beduínos do Saara ou, inversamente, como os
beduínos poderiam ser pescadores tão habilidosos quanto
os polinésios?
Habilidades empiricamente observáveis sempre foram
acentuadamente desiguais, o que significa dizer que as
pessoas reais nunca chegaram perto da igualdade das
pessoas no abstrato. Por séculos, os ingleses tosquiaram
suas ovelhas e mandaram a lã para Flandres para que fosse
beneficiada e transformada em tecido. Teriam os ingleses se
submetido a tamanha operação caso fossem igualmente
bons em beneficiar a lã bruta, transformando-a em tecido?
No final das contas, os ingleses, depois de longo processo
de desenvolvimento, dominaram a indústria da lã, o que
muito contribuiu para o declínio econômico de Flandres,
mas isso levou séculos. Da mesma forma, levou séculos até
que os ingleses se transformassem nos senhores das
instituições financeiras modernas. Antes que isso
acontecesse, grande parte do controle de suas finanças
estava nas mãos dos lombardos e dos judeus. Há uma razão
pela qual existe a Lombard Street no distrito financeiro da
Londres de hoje, assim como outra rua, na mesma região,
chamada Old Jewry. Por séculos, segmentos industriais
inteiros foram dominados por minorias em países de todo o
mundo; por exemplo, alemães fazendo cerveja na China, no
Brasil, na Austrália e nos Estados Unidos; o comércio de
exportação dominado por chineses na Malásia, na
Indonésia, nas Filipinas, na Jamaica e no Panamá; os
indianos jainistas na lapidação de diamantes para o
mercado mundial, na Índia ou em Amsterdã; os italianos
tanto na música clássica quanto popular, por todo o mundo,
e assim por diante. Mas os fatos empíricos não afetam a
visão imposta de igualdade abstrata que domina o
pensamento da intelligentsia.
Habilidades em função de atividade e de experiência
estão entre as coisas que diferenciam radicalmente os
grupos, os países e as civilizações. Índices de alcoolismo
variam enormemente entre grupos de países por todo o
mundo e o mesmo acontece com os índices de
criminalidade e de mortalidade infantil, dentre muitas
outras coisas. Mas nenhum desses fatores empíricos parece
perturbar a visão da igualdade abstrata. O tom de
indignação que ecoa da mídia e da intelligentsia quando é
divulgado que os negros são preteridos muito mais
frequentemente que os brancos, na obtenção de
empréstimos hipotecários, desconsidera absolutamente
muitos dos fatores usados para determinar as condições de
empréstimo. Eles não se dão sequer ao trabalho de
averiguar os fatos que indicam em que proporção tais
fatores diferem entre os diversos grupos.
Muito barulho foi feito pelo fato de negros e brancos
com o mesmo nível de renda ainda apresentarem diferentes
patamares de rejeição na candidatura a empréstimos
hipotecários, como se a renda fosse o único fator que
entrasse na análise ou como se outros fatores não
estudados pudessem ser tidos como iguais ou comparáveis.
[238] Toda vez que há falta de informações concretas ou

quando elas são ignoradas, a igualdade surge como o


padrão predeterminado, não importando a quantidade de
desigualdades que foram encontradas nos diversos casos
estudados. O equívoco fundamental nesse tipo de
procedimento pode ser demonstrado numa área pouco
controversa como, por exemplo, o beisebol. Havia dois
jogadores no time do New York Yankees, em 1927, com
idênticas médias de acerto em rebatidas, mas um deles
permanece famoso até os dias de hoje, enquanto o outro
caiu quase que completamente no esquecimento. A
igualdade entre eles numa dimensão não implicava, de
forma alguma, igualdade em outras dimensões. No caso,
um dos rebatedores alcançou a marca de seis corridas até a
base (home runs) naquele ano, seu nome era Earle Combs,
ao passo que o outro chegou à marca de sessenta e seu
nome era Babe Ruth.
De forma parecida, quando os famosos estudos de
Lewis Terman sobre crianças portadoras de Q.I.
excepcionalmente elevado, que duraram décadas,
avaliaram as realizações dessas mesmas crianças em idade
adulta, notou-se que muitas tiveram uma vida adulta de
grandes realizações, mas, como observou outro escritor,
"quase nenhuma das crianças geniais pertencentes às
classes sociais e econômicas mais baixas se notabilizou em
algum campo". Quase um terço dessas crianças com alto
Q.l. "do outro lado da faixa social" tinha "algum parente que
havia abandonado a escola antes de terminar o ginásio".
[239] Portanto, elas eram como as outras crianças
superdotadas somente porque tinham Q.l. de 140 ou mais,
mas não se equiparavam em relação a outros fatores
culturais, os quais determinam grandes realizações
profissionais.
O mesmo princípio se aplica em outros e inumeráveis
contextos não apenas na sociedade dos Estados Unidos,
mas nos países mundo afora. Na Índia, alunos universitários
provenientes de famílias com níveis de renda semelhantes
diferem, contudo, em seus níveis de aprendizado quando se
comparam os alunos que foram dalits,[240] os antigos
"intocáveis", com os alunos da casta hindu. Encontramos,
historicamente, níveis educacionais muito mais baixos entre
os dalits. Igualdade de renda não implicou igualdade de
outras características importantes. Em outros países,
pessoas que recebem a "mesma" educação, mensurada em
quantidade, revelaram possuir grandes diferenças de
qualidade, fosse ela mensurada em relação às próprias
especializações escolhidas, nos desempenhos dos alunos ou
na qualidade das instituições nas quais foram educadas.
Apenas as pessoas abstratas, vivendo num mundo abstrato,
são iguais.
O ponto aqui não é dizer que a intelligentsia estava
enganada ou mal informada sobre determinadas questões.
O ponto mais fundamental é dizer que, ao pensar em
termos de pessoas abstratas num mundo abstrato, os
intelectuais se furtam à responsabilidade e ao trabalho
árduo de apreender os fatos reais sobre pessoas reais
vivendo num mundo real, fatos que geralmente explicam as
discrepâncias entre o que os intelectuais veem e o que eles
gostariam de ver. Muitos dos que são tidos como problemas
sociais são, na realidade, as diferenças entre teoria e
realidade que muitos intelectuais interpretam como erros do
mundo, que necessita ser reformado. Além do mais, essas
mudanças serão implantadas de cima para baixo nas
instituições e não nas culturas, as quais são tidas como
iguais perante a doutrina reinante do multiculturalismo.
A existência de uma igualdade empírica nunca
precisou ser demonstrada e provada no mundo dos
intelectuais contemporâneos, pois ela é, por definição, o
ponto de partida matricial. O ônus da prova é imposto
somente aos que discordam disso.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 5
REALIDADE PARALELA NA MÍDIA E
NO MUNDO ACADÊMICO

Fabricaram uma tela através da qual nossa época


contemporânea absorve informações manipuladas.

JEAN-FRANÇOIS REVEL[241]

A fim de preservar a visão imaculada do intelectual


ungido, os membros da intelligentsia e seus agentes lançam
mão de expedientes ousados e até mesmo desesperados,
incluindo manipulação e filtragem dos fatos, redefinição dos
termos e, no caso de alguns intelectuais, desafio à própria
noção de verdade.
◆ ◆ ◆

FILTRANDO A REALIDADE
Deliberadamente ou não, muitos na intelligentsia
criam sua própria realidade paralela ao filtrarem toda
informação contrária à concepção que têm de como o
mundo funciona ou deveria funcionar.
Alguns foram ainda mais além. J. A. Schumpeter disse
que a primeira coisa que um homem fará por seus ideais é
mentir.[242] Todavia, não é necessário mais mentir a fim de
enganar, uma vez que a manipulação realizará com
eficiência o mesmo propósito do engodo. Isso é feito, por
exemplo, ao se registrar apenas e seletivamente os fatos e
as amostras atípicos, suprimindo todos os outros fatos
inconvenientes ou filtrando significados e termos.
◆ ◆ ◆

AMOSTRAS SELETIVAS
Filtrar as informações e repassá-las ao público pode
ser feito de várias formas. Por exemplo, Bennett Cerf,
fundador da editora Random House, sugeriu, durante a
Segunda Guerra Mundial, que os livros críticos à União
Soviética fossem retirados de circulação.[243]
Quando a economia americana estava se recuperando
da recessão, em 1983, e os índices de desemprego caíam
em 45 dos 50 estados norte-americanos, o programa de
notícias ABC News simplesmente escolheu fazer uma
reportagem em um dos cinco estados onde o desemprego
ainda não caíra ou, da forma como eles colocaram, "onde o
problema do desemprego era mais grave",[244] como se
esses estados fossem apenas exemplos mais graves de uma
condição geral quando, de fato, eles representavam uma
situação muito atípica.
Por exemplo, a manipulação também pode tomar a
forma de um incessante fluxo de dados que exibe os grupos
de negros ou de outras etnias não brancas com padrão de
vida bem mais baixo em relação aos brancos, além da
rejeição de empréstimos e das demissões durante as crises
econômicas, ao mesmo tempo que se censura a exibição de
brancos numa situação pior em todos esses mesmos
fatores, em comparação a outro grupo étnico: os norte-
americanos asiáticos.[245] Mesmo quando os dados são
mostrados contemplando todos esses grupos, os asiáticos
tendem a ser censurados das "notícias", as quais são, na
verdade, editoriais cujo compromisso é mostrar o quanto o
racismo branco é a razão principal para os baixos salários
ou a baixa mão de obra, além de outros infortúnios que os
grupos de não brancos sofrem.
Incluir os norte-americanos asiáticos nessas
comparações não introduziria apenas uma nota discordante,
mas levantaria sobretudo a possibilidade de se questionar,
afinal de contas, o quanto esses grupos respondem pelos
seus comportamentos e seus desempenhos, contrariamente
às suposições implícitas, e que essas diferenças de
comportamento refletem na renda das pessoas. Portanto, o
desempenho dos norte-americanos asiáticos tem
implicações que ultrapassam seus próprios grupos, na
medida em que a condição deles se torna uma ameaça para
toda uma visão preconcebida sobre a sociedade norte-
americana, visão essa que ampara o interesse de muitos
que farão de tudo para defendê-la tanto ideológica como
política e até economicamente.[246]
A mendicância é outra área através da qual boa parte
da mídia filtra a realidade antes de repassá-la a seu público.
Durante o período em que trabalhou na CBS News, Bernard
Goldberg noticiou a diferença entre o que ele via nas ruas e
o que era transmitido na televisão:

Na década de 1980, comecei a notar que os


mendigos que eram mostrados nos noticiários não
se pareciam muito com os mendigos e sem-teto
que eu conhecia em minhas andanças pelas ruas
e pelos becos. Os que estavam nas ruas eram, em
sua grande maioria, bêbados, drogados e
esquizofrênicos. Eles balbuciavam como loucos ou
o encaravam com olhar medonho ao estenderem
a mão ou seus copinhos de plástico para "pedir"
dinheiro (...). Mas o tipo de mendigo que
gostávamos de mostrar na TV era diferente. Era
como se tivessem saído de nossas vizinhanças.
Pareciam conosco. A mensagem transmitida nos
noticiários era de que não apenas se pareciam
conosco, mas que eram como nós! Na NBC, Tom
Brokaw disse que os mendigos são "pessoas que
você conhece".[247]

Se mendigos tendem a ser desinfetados pelo


noticiário da TV, da mesma forma e no sentido contrário
homens de negócio tendem a ser endemoniados nos filmes
e nas séries de televisão, como outro estudo descobriu:

Apenas 37% dos empreendedores no mundo da


ficção dos filmes e da TV desempenhavam papéis
positivos, e a proporção do "homem de negócios
maligno" representava quase o dobro em
comparação às outras atividades juntas. O que é
ainda mais revelador: eles - os homens de
negócios - eram geralmente caras realmente
muito maus, respondendo por 40% dos
assassinatos e 44% dos crimes hediondos (...).
Apenas 8% dos criminosos do horário nobre eram
negros (...).[248]

Na vida dos noticiários, assim como na ficção, o que é


apresentado para os telespectadores representa situações
altamente atípicas, contrariando o que existe no mundo
real:

• Durante o período estudado, 6% das pessoas


portadoras do vírus da Aids, mostradas nos
noticiários noturnos, eram homens gays. Contudo,
na vida real 58% eram homens gays.

• Na TV, 16% eram negros ou hispânicos.


Contudo, na vida real, 46% eram negros ou
hispânicos.

• Na TV, 2% dos infectados com Aids eram


usuários de drogas pesadas. No mundo real, eles
respondiam por 23%.[249]

A criação de um quadro que reflete a visão do


intelectual ungido, em vez de refletir as realidades do
mundo, também abarca os textos encontrados nos livros
escolares. Editoras como a McGraw-Hill, por exemplo,
trabalham com percentuais que orientam quantas pessoas
mostradas nas fotografias de seus livros escolares serão
negras, brancas, hispânicas e portadoras de deficiência.
Além do mais, a forma como esses indivíduos são retratados
deve também se alinhar com a visão do intelectual ungido.
Segundo o Wall Street Journal, "uma grande editora vetou a
foto de uma criança descalça num vilarejo africano, sob a
alegação de que a falta de calçados reforçava o estereótipo
de pobreza naquele continente".[250] Ou seja, a realidade
dolorosamente flagrante sobre a terrível pobreza que assola
grande parte do continente africano é tirada de cena,
alegando-se o crime de "estereótipo", pois não se encaixa
na visão favorecida pela intelligentsia mesmo quando é
absolutamente fiel aos fatos.
◆ ◆ ◆

SUPRIMINDO FATOS
Um dos exemplos históricos de desinformação da imprensa
ocorreu durante as crises agudas de fome impostas pelo
governo da União Soviética à Ucrânia e ao norte do
Cáucaso, o que matou milhões de pessoas na década de
1930. O correspondente do New York Times em Moscou,
Walter Duranty, escreveu: "Não existe fome alguma ou
mesmo escassez real de alimentos nem é provável que tal
coisa venha a ocorrer".[251] Ele recebeu o prêmio Pulitzer e
foi condecorado por suas reportagens, "marcadas pela
erudição, profundidade, imparcialidade, acuidade de
julgamento e excepcional clareza".[252] Enquanto isso, o
escritor britânico Malcolm Muggeridge, na mesma época,
relatava da Ucrânia que a população camponesa de fato
morria de fome: "Digo que eles passam fome em sentido
absoluto. Não é um mero estado de subnutrição como
acontece, por exemplo, com os camponeses asiáticos (...)
ou como vemos em casos de populações de desempregados
na Europa, mas de fato eles não têm, por semanas a fio,
quase nada para comer".[253] Muggeridge escreveu, num
artigo posterior, que a fome orquestrada pelo homem era
"um dos crimes mais monstruosos da história, tão terrível
que as pessoas no futuro terão dificuldade em acreditar que
tal coisa tenha de fato acontecido".[254] Décadas mais tarde,
um estudo sério realizado por Robert Conquest, The Harvest
of Sorrow [A Colheita do Pesar], estimou que cerca de seis
milhões de pessoas morreram de fome durante um período
de três anos.[255] Mais tarde ainda, quando os arquivos
oficiais foram finalmente abertos nos últimos dias da União
Soviética sob o governo de Mikhail Gorbachev, novas
estimativas sobre o número de mortes provocadas pela
fome na Ucrânia e no Cáucaso foram levantadas por vários
especialistas, os quais tiveram acesso aos documentos dos
arquivos oficiais. Muitas dessas estimativas igualavam ou
excediam as primeiras estimativas do dr. Conquest.[256]
Todavia, durante o período da fome essa foi uma das
operações de censura e desinformação mais bem-sucedidas
que se pode imaginar. O que Muggeridge disse foi
desconsiderado como "uma tirada histérica" por Beatrice
Webb, coautora com seu marido, Sidney Webb, de um
estudo internacionalmente conhecido sobre a União
Soviética.[257] Depois de suas observações sobre a União
Soviética, Muggeridge foi insultado e não conseguiu mais
trabalho como escritor. Ele ficou tão arruinado
financeiramente que sua esposa e suas duas crianças
pequenas tiveram que ir morar na casa de amigos. Não há
nenhum motivo para crer que havia qualquer conspiração
entre editores ou jornalistas para silenciar e levar Malcolm
Muggeridge ao ostracismo. Mas não é necessária nenhuma
conspiração para se filtrar e desinformar, com sucesso,
coisas que não se alinham à visão predominante naquela
época ou hoje.
Se não fosse pelo trabalho de Muggeridge e de
pouquíssimos outros, a orquestração de uma campanha
para impor deliberadamente a fome a populações inteiras
no intuito de dobrar a resistência aos opositores de Stalin,
matando um número comparável ou superior de pessoas
como aquelas que morreram no Holocausto nazista, seria
um evento histórico cuja realidade brutal teria sido
completamente censurada, varrida do conhecimento
histórico. Graças a Muggeridge, em vez disso, essa
campanha é, hoje, meramente ignorada. Os equívocos
cometidos por Duranty e outros não foram simples erros de
avaliação. O que Duranty disse em particular para outros
jornalistas e diplomatas, na época, era completamente
diferente do que ele relatava em suas correspondências ao
New York Times. Por exemplo, em 1933 um diplomata
britânico relatou: "Duranty acredita ser perfeitamente
possível que dez milhões de pessoas tenham morrido direta
ou indiretamente por falta de alimentos na União Soviética
no ano passado".[258]
Dados estatísticos também podem ser filtrados e
manipulados, seja omitindo dados desfavoráveis às
conclusões almejadas, como os dados sobre os norte-
americanos asiáticos, ou restringindo a liberação deles, os
quais ficam disponíveis somente àqueles pesquisadores cuja
posição sobre o assunto em questão se alinha com a
posição dos que detêm o controle sobre os dados. Por
exemplo, um estudo baseado em dados estatísticos
realizado pelos ex-reitores universitários William Bowen e
Derek Bok foi amplamente saudado. Suas conclusões
endossavam a implantação das diretrizes do movimento de
ação afirmativa em relação à admissão para as faculdades.
[259] Mas quando o professor Stephan Thernstrom, de

Harvard, cujas visões sobre o movimento de ação afirmativa


não coincidia com as deles, buscou obter acesso aos dados
primários sobre os quais as conclusões do estudo se
baseavam, ele teve o acesso negado.[260] De forma
semelhante, quando o professor de direito da UCLA, Richard
Sander, procurava testar teorias concorrentes sobre os
efeitos da ação afirmativa nas escolas de direito, obtendo
dados a partir dos resultados que mostravam os índices de
aprovação nos exames por raça no estado da Califórnia,
defensores da ação afirmativa ameaçaram processar o foro
responsável caso o estado liberasse tais informações e o
foro estadual se recusou a liberar os dados.[261]
Nesses, como em outros casos, as estatísticas são
manipuladas na fonte, mesmo que sejam estatísticas
financiadas com o dinheiro dos contribuintes e colhidas com
o propósito explícito de fornecer fatos a partir dos quais
serão decididas as políticas de ação pública. Na prática,
contudo, esses estudos são tratados como se o propósito
fosse exclusivamente proteger a visão predominante.
A manipulação dos números pode tornar quaisquer
dados estatísticos consistentes com determinada visão, e a
manipulação de outros números ou até mesmo dos mesmos
números, vistos ou selecionados de forma diferente, pode
produzir dados consistentes com a visão oposta. Mas
somente quando os números estão a serviço de uma visão
dominante é que ficam propensos a ser aceitos cegamente,
sem passar pelo crivo da crítica e sem considerar outras
estatísticas, as quais podem contar uma história um tanto
quanto diferente. Por exemplo, muito do que é dito a
respeito do controle sobre o porte de armas e sua relação
com os índices de criminalidade em geral, ou os índices de
homicídio em particular, baseia-se em certos tipos de
estatística que são repetidas interminavelmente, assim
como na supressão de dados aos quais o público em geral
jamais tem acesso.
Por exemplo, é incessantemente repetido na mídia e
no mundo acadêmico que a Grã-Bretanha e vários outros
países defensores de políticas e leis mais severas para o
controle de armas possuem índices de homicídio que são
apenas uma fração dos índices que encontramos nos
Estados Unidos, indicando claramente que é o controle do
porte de armas o grande responsável pela diferença nos
índices de homicídio. Tendo alcançado essa conclusão, a
maior parte da intelligentsia não vê razão alguma para
seguir em frente em suas análises. No entanto, uma séria
tentativa em se testar a hipótese de uma relação inversa
entre a posse restrita de armas e os índices de homicídio,
tornaria outras comparações e outras análises sobre os
dados estatísticos necessárias. Por exemplo:

1. Uma vez que sabemos que existem índices de


homicídio mais baixos em alguns países que
adotam um controle mais rigoroso sobre a posse
de armas, em relação ao que temos nos Estados
Unidos, há outros países onde existam leis mais
rigorosas de controle de porte de armas, mas que
tenham, todavia, índices de homicídio mais altos
do que nos Estados Unidos?

2. Existem, porventura, países cuja posse de arma


é amplamente aceita, mas que tenham índices de
homicídio mais baixos do que outros países onde a
posse de armas é menor e mais controlada?
3. O diferencial no índice de homicídio entre os
Estados Unidos e a Grã-Bretanha teve origem a
partir da implantação de leis para o controle do
porte de armas?

Os que se deram por satisfeitos quando descobriram


as estatísticas que procuravam foram naturalmente
incapazes de fazer essas três perguntas. As respostas para
elas são: sim, sim e não.
A Rússia e o Brasil têm controles muito mais rigorosos
sobre o porte de armas do que os Estados Unidos, mas, no
entanto, têm índices de homicídio muito mais altos.[262] O
porte de armas no México representa apenas uma fração do
que temos nos Estados Unidos, porém o índice de
homicídios do México é mais do que o dobro do índice dos
Estados Unidos. O porte pessoal de armas de fogo está
banido em Luxemburgo, mas não na Bélgica, França ou
Alemanha; no entanto, o índice de homicídios em
Luxemburgo é muitas vezes mais alto do que os índices da
Bélgica, França ou Alemanha.[263] Um estudo estatístico
internacional descobriu que a Suíça, Israel e a Nova
Zelândia "têm, relativamente, frouxo controle legal sobre o
porte de armas e alta disponibilidade para comercialização
de armas de fogo, mas mesmo assim apresentam índices de
homicídio diferentes daqueles encontrados na Inglaterra e
no Japão "[264] - os quais são uma fração dos índices dos
Estados Unidos.
A cidade de Nova York tem um índice de homicídio
muitas vezes mais alto do que o índice da cidade de
Londres, isso há mais de dois séculos, e durante boa parte
desse período nenhuma delas adotou qualquer política mais
séria para controle e posse de armas.[265] Homicídios
cometidos sem o uso de armas de fogo são também
diversas vezes mais frequentes em Nova York do que em
Londres.[266] No entanto, fato de o índice de homicídio em
Londres ser menor do que o dos Estados Unidos continua a
ser citado como prova de que as leis de controle da posse
de armas reduzem os índices de homicídio.
Considerando o elevado número de intelectuais que
não apenas apoiam as leis de controle de armas existentes,
mas que ativamente promoveram a promulgação de leis
ainda mais rigorosas, não é possível acreditar que todas
essas pessoas altamente educadas e intelectualmente
capazes não consigam realizar testes muito simples e
diretos, como, por exemplo, uma hipótese que indicasse
uma correlação inversa entre o controle de armas e os
índices de homicídio. Não é o caso de supor que eles sabiam
de tudo e estavam mentindo deliberadamente. O que
parece muito mais provável é que, no momento em que
encontraram as estatísticas favoráveis aos seus conceitos
prévios, eles simplesmente não sentiram qualquer incentivo
para prosseguir nas investigações.
Da mesma forma que é difícil encontrar, no âmbito
internacional, qualquer correlação consistente entre o porte
de armas e os índices de criminalidade homicida, é também
difícil encontrar essas correlações usando dados estatísticos
e históricos dentro dos Estados Unidos. Como um estudo
notou:

Os Estados Unidos experimentaram extraordinário


aumento dos crimes violentos durante as décadas
de 1960 e 1970, acompanhado de notável queda
dos mesmos tipos de crime durante a década de
1990. O número de armas de fogo, especialmente
pistolas e revólveres, em posse de particulares,
cresceu aos milhões, todos os anos, durante esse
período. O irrefreável crescimento do estoque de
armas de fogo privadas não explica nem a onda
de crimes violentos do primeiro período nem a
queda desses crimes no segundo período.[267]
Uma manipulação prévia e meramente individual,
falseando o que deve ser passado ao público, pode gerar
uma completa distorção da realidade como se, de fato,
houvesse uma coordenação consciente, ditada por zelosos
agentes de censura ou por intermédio de uma agência de
propaganda. Isso pode acontecer sempre que jornalistas e
editores responsáveis, os quais manipulam os dados,
compartilham da mesma visão geral sobre como as coisas
são e como devem ser. O que parece plausível para os que
compartilham dessa visão acaba se transformando no
critério de credibilidade e validade da notícia. Plausibilidade
é, todavia, de todos os critérios, o mais perigoso, pois o que
pode parecer plausível em cada caso depende do que já é
aceito em geral.
Não é necessário que indivíduos particulares ou quadrilhas
inteiras concebam planos de falsificação deliberada a fim de
produzir um retrato distorcido da realidade que se encaixe
na visão do intelectual ungido e descarte a realidade do
mundo. É necessário somente que aqueles que têm o poder
de filtrar as informações, seja no papel de jornalistas,
editores, professores, acadêmicos ou produtores e diretores
de filmes, decidam que há certos aspectos da realidade que
as massas "não compreenderiam corretamente" e que um
senso de responsabilidade social clama, por parte dos que
detêm o poder de filtragem, pela supressão de alguns
dados.
Dados mostrando baixo índice de pobreza entre casais
negros nos Estados Unidos, na casa de apenas um dígito
desde 1994, estão fadados ao esquecimento e são
ignorados por boa parte da mídia. Muito menos provável é
que esses dados levem a qualquer tipo de reconsideração
da visão que propõe que o alto índice de pobreza, entre as
populações negras, reflete um racismo disseminado em
toda a sociedade. Isso acontece mesmo quando se sabe que
os casais negros são, majoritariamente, da mesma raça que
as mães solteiras, as quais vivem das pensões do governo,
mas que, no entanto, são consideradas vítimas do racismo,
como se isso fosse a causa principal para sua pobreza.
Ainda muito menos provável é que esses dados sejam
examinados em suas implicações sobre a noção de que o
casamento é apenas mais um "estilo de vida", que pode ser
escolhido entre muitos, sem quaisquer implicações mais
sérias para os indivíduos e sem consequências sociais.
Nenhuma informação factual a gerar um possível
reflexo negativo sobre os homossexuais tende a passar
pelos filtros da mídia e do mundo acadêmico, mas qualquer
evento que mostre os gays como vítimas obtém cobertura
massiva e instantânea. Uma pesquisa efetuada pelo
jornalista William McGowan descobriu, na mídia, mais de
três mil reportagens sobre um homem gay do estado do
Wyoming que foi espancado por criminosos até ficar
inconsciente e morrer sem assistência, mas, por outro lado,
McGowan encontrou menos de cinquenta reportagens sobre
um garoto adolescente que foi capturado e estuprado
repetitiva mente, por horas, por dois homens homossexuais,
os quais, da mesma forma, o abandonaram para morrer. A
pesquisa de McGowan indicava que a segunda história não
fora mencionada de forma alguma no New York Times ou no
Los Angeles Times nem foi noticiada pela CBS, NBC, ABC ou
CNN.[268]
Apesar da abundância de dados estatísticos
publicados mostrando todas as comparações possíveis entre
grupos, nenhum dado sobre a duração média de vida dos
homossexuais, em comparação cop1 a média nacional, foi
divulgado, assim como não foi divulgado o custo da Aids
para os contribuintes, comparando-o com o custo de outras
doenças, muito menos foi feita uma comparação sobre a
incidência de crimes sexuais contra crianças entre homens
heterossexuais e homossexuais. Esses dados são, em geral,
filtrados pela intelligentsia antes de chegar ao público,
embora exista uma organização nacional muito conhecida
que promove abertamente as relações homossexuais entre
homens e meninos. Possivelmente, dados sobre tais
assuntos podem enterrar algumas preocupações infundadas
sobre o homossexualismo, as quais se originam de alguns
segmentos,[269] mas são poucos os que, na intelligentsia,
estão preparados para arriscar o que os dados podem
mostrar caso não sejam filtrados. Nesse, como em muitos
outros casos, muita coisa está em jogo para que se arrisque
todo o destino de uma visão ao capricho dos números, e é
dessa forma que as verificações empíricas são tratadas por
aqueles que trabalham na defesa de uma visão.
Isso é especialmente verdadeiro para repórteres que
são - eles mesmos - homossexuais. Muitos deles são
membros de associações nacionais de jornalistas lésbicas e
gays. Um repórter homossexual que trabalhou para o jornal
Detroit News e para o New York Times sabia qual tinha sido
o papel e o peso das saunas públicas frequentadas por
homens gays durante a disseminação da Aids, mas decidiu
não escrever sobre o assunto porque "fiquei indeciso em
escrever uma história que daria munição para nossos
inimigos".[270] Essa atitude não se restringe a repórteres
homossexuais. Jornalistas tidos como representantes da
causa da "diversidade", defensores dos negros, hispânicos e
das mulheres sofrem o mesmo conflito entre divulgar as
notícias e filtrá-las em benefício do grupo para o qual foram
contratados.
Por exemplo, uma repórter negra do Washington Post
escreveu em suas memórias que via a si mesma como
"porta-voz de sua raça". Ela criticou acidamente um colega
negro, também do Washington Post, por escrever uma
matéria sobre corrupção no governo municipal da capital
federal, onde há predominância de funcionários públicos
negros.[271] Segundo o Washington Times, "a Associação
Nacional dos Jornalistas Hispânicos há muito emite avisos
aos jornalistas para que evitem usar a palavra 'ilegal' nas
chamadas e nas manchetes" sempre que se fala de pessoas
que cruzam as fronteiras dos Estados Unidos sem
autorização. Segundo Joseph Torres, presidente do grupo, "a
prática é 'desumana', criando estereótipos sobre as pessoas
sem documentação e sem autorização para entrar nos
Estados Unidos, apresentando-as como infratoras da lei".
[272]
Portanto, a primeira lealdade de muitos jornalistas
não é para com seus leitores ou seus telespectadores, os
quais buscam as informações por eles transmitidas, mas é
proteger os interesses e a imagem dos grupos que eles
representam sob a justificativa de "diversidade". Além dos
grupos, os jornalistas também sofrem a pressão de seus
colegas para que filtrem as notícias, em vez de relatar os
fatos diretamente.
Por outro lado, informações ou alegações que
apresentam negativamente a imagem de indivíduos ou
grupos vistos de forma menos amigável pela intelligentsia
são transferidas rapidamente para o domínio público, sem
muita preocupação com a verificação dos fatos e em tom
bombástico. Dois dos maiores embustes desmascarados, de
nossa época, envolveram alegações de homens brancos
estuprando coletivamente uma mulher negra. O primeiro
embuste foi o caso de Tawana Brawley, de 1987, e o
segundo foi a posterior alegação falsa de estupro contra
três alunos da Universidade Duke, em 2006. Em ambos os
casos, um clamor de indignação editorial soou por todo o
país, sem ainda haver o menor traço de evidência que
substanciasse qualquer uma das acusações. Além do mais,
as denúncias não se limitaram aos homens acusados, mas
foram sintomaticamente estendidas para a sociedade em
geral, em relação à qual esses homens eram tidos como
sintomas ou a "ponta do iceberg". Em ambos os casos as
acusações se encaixavam perfeitamente na visão
preexistente, tornando desnecessária a apresentação de
fatos concretos.
Outro embuste amplamente divulgado, ao qual o
próprio presidente dos Estados Unidos deu sua contribuição,
encenando outra farsa, foi a história ocorrida em 1996 que
virou matéria de capa do USA Today: "Incêndios Criminosos
em Igrejas Negras Ecoam Intolerâncias do Passado". Havia,
segundo o jornal, "uma epidemia incendiária, pela qual
igrejas negras eram criminosamente atacadas". Assim como
acontecera nas fraudes dos supostos estupros coletivos,
essa história se espalhou como fogo pela mídia. O Chicago
Tribune referiu-se a ela como "epidemia criminosa e covarde
de incêndios",[273] deixando as igrejas dos negros em
ruínas.
Da mesma forma que os alegados "estupros", os
comentários sobre os incêndios nas igrejas ultrapassaram o
caso em si e foram usados para culpar e atacar a sociedade
em geral. Jesse Jackson foi citado no New York Times e disse
que os incendiários eram parte de uma "conspiração
cultural" contra os negros, a qual "reflete as elevadas
tensões raciais no sul, exacerbadas com os ataques contra
a ação afirmativa e inflamadas pela oratória populista de
políticos republicanos como Pat Buchanan". O escritor da
revista Time Jack White acusou da mesma forma "as frases
em código" dos líderes republicanos de "encorajamento aos
incendiários". A colunista Barbara Reynolds do USA Today
disse que os incêndios eram "uma tentativa de assassinar o
espírito da América negra". O colunista do New York Times
Bob Herbert disse: "O combustível usado nesses incêndios
pode ser encontrado no ambiente de intolerância
cuidadosamente esculpido e que foi desenvolvido durante o
último quarto de século".[274]
Assim como acontecera com a farsa envolvendo os
estupros coletivos, as acusações foram repassadas para
outro patamar, precipitando-se sobre toda a sociedade, pois
não se restringiram aos supostos envolvidos e o fato foi
amplamente tido como incêndio criminoso, em vez de um
simples caso de incêndio, o qual ocorre devido a uma série
de motivos. A colunista do Washington Post Dorothy Gilliam
disse que a sociedade estava de fato "dando a esses
incendiários permissão para que cometessem esses crimes
horríveis".[275] A onda de comentários teve seu clímax
quando o presidente Bill Clinton, em seu pronunciamento
semanal no rádio, disse que esses incêndios lembravam-lhe
incêndios semelhantes ateados contra igrejas das
comunidades negras do estado do Arcansas quando ele era
um menino. Houve mais de duas mil histórias vinculadas na
mídia sobre o assunto depois do pronunciamento do
presidente.
Toda essa história começou a se descortinar quando
pesquisas factuais mostraram que (1) nenhuma igreja de
comunidades negras foi incendiada no Arcansas enquanto
Bill Clinton lá crescia em sua infância e adolescência; (2)
não houvera aumento algum de incêndios em igrejas de
negros, mas um real decréscimo de casos durante os
últimos quinze anos; (3) a incidência de incêndios nas
igrejas de brancos era semelhante à incidência ocorrida nas
igrejas de negros e (4) no caso dos incêndios criminosos,
um terço dos suspeitos era de negros. Todavia, retratações
sobre a história original, quando houve algum tipo de
retratação, receberam tipicamente muito menos publicidade
do que as manchetes originais e os inflamados comentários
dos editores.[276]
Da mesma forma, histórias que denigram a imagem
dos Estados Unidos se espalham rapidamente por toda
mídia, sem muita necessidade de evidências e com rápida
aceitação, tenham as histórias cunho racial ou não. Por
exemplo, Dan Rather começou a transmissão do programa
de notícia CBS News, de 26 de março de 1991, proclamando
que "existe um número impressionante de crianças norte-
americanas que corre o risco de passar fome". Ele
completava: "Uma em cada oito crianças americanas com
menos de doze anos de idade vai passar fome esta noite,
segundo o resultado de um estudo realizado durante dois
anos”[277] Embora houvesse a portentosa qualificação de
"estudo", tudo isso se baseava em cinco perguntas
levantadas por um grupo radical de agitadores, o qual
classificava como "passando fome" as crianças cujos pais
respondiam "sim" para cinco dentre oito perguntas. Duas
das perguntas não tratavam sequer das crianças, mas eram
direcionadas aos hábitos alimentares dos adultos. Uma das
questões sobre as crianças era a seguinte: "Você costuma
limitar a variedade de alimentos comprados para suas
crianças porque você está com pouco dinheiro para comprar
comida?".[278] Em outras palavras, você costuma enchê-las
de cachorro-quente quando teria preferido lhes dar uma
dieta mais variada?
Além do mais, existe uma grande distância entre
"costuma" e "toda noite" e uma distância ainda muito maior
entre uma dieta limitada e passar fome, para não falar da
fome crônica. Mas a manipulação retórica desfaz tais
distinções. O caso de Dan Rather não foi único. "Fome na
América" tornou-se tema de noticiário, fomentando
comentários por toda a mídia. A revista Newsweek, a
Associated Press e o Boston Globe estavam entre aqueles
que repetiram as estatísticas realizadas pelo "estudo".[279]
Enquanto isso, quando pessoas reais de carne e osso
foram examinadas pelo Centro de Controle de Doenças e
pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos,
nenhuma evidência de má nutrição entre os norte-
americanos mais pobres foi identificada, nem mesmo se
encontraram diferenças significativas de vitaminas e
minerais em suas dietas, comparando-se com as
populações de maior renda. A única diferença real
encontrada entre pessoas de diferentes níveis de renda foi
de que os casos de obesidade eram muito mais frequentes
entre a população de mais baixa renda, ou seja, os mais
pobres eram em geral mais gordos que as classes com mais
renda.[280] Mas como em outros contextos, quando uma
história se encaixa numa visão as pessoas na mídia nem
sempre acham necessário checar se a história se encaixa
também nos fatos.
◆ ◆ ◆

PESSOAS FICTÍCIAS
Manipulação e uso tendencioso das informações não
produzem apenas fatos fictícios, mas também pessoas
fictícias. Isso se torna claro no caso das ditaduras
totalitárias, nas quais tiranos genocidas são retratados pela
propaganda oficial como gentis, sábios e misericordiosos
líderes de seus povos, ao mesmo tempo que todos os que
porventura se oponham ao ditador, local ou
internacionalmente, são retratados como os tipos mais vis
de criminosos. Mas algo bastante semelhante pode ocorrer
em nações livres e democráticas, sem a intervenção de
qualquer agência oficial de propaganda, sempre que exista
uma intelligentsia inclinada a ver o mundo de uma forma
particular.
Talvez o exemplo mais notável de criação de uma
personalidade fictícia, a partir de uma figura pública, nos
Estados Unidos do século XX, sem qualquer coordenação
consciente entre os membros da intelligentsia, tenha-se
dado na pessoa de Herbert Hoover. O azar de Hoover foi ter
sido presidente dos Estados Unidos durante a quebra da
Bolsa de 1929, o que foi seguido pelo início da Grande
Depressão da década de 1930. Se nunca tivesse se tornado
presidente, Herbert Hoover poderia ter sido lembrado pela
história como um dos homens mais humanitários do século.
Não foi somente a incrível quantidade de dinheiro que ele
doou para causas filantrópicas antes de se tornar
presidente, mas a maneira como ele arriscou sua própria
fortuna pessoal para resgatar pessoas que passavam fome
na Europa, durante a Primeira Grande Guerra, que o tornou
um homem único.
Por causa das barreiras, da destruição e dos
distúrbios, a Grande Guerra deixara milhões de famintos
espalhados por toda Europa. Hoover decidiu então formar
uma organização filantrópica a fim de distribuir, em larga
escala, alimentos para os famintos da Europa. Todavia,
percebeu que se limitasse a operação às vias comuns, ou
seja, primeiro captando dinheiro com doações para então
comprar os alimentos, não haveria tempo e as pessoas
morreriam, enquanto ele ainda recebia as doações. Hoover
decidiu comprar os alimentos antes de recebê-las,
colocando sua própria fortuna pessoal em risco caso não
conseguisse, posteriormente, arrecadar o dinheiro para
saldar sua operação. Finalmente, vieram doações
suficientes para cobrir o custo com alimentação, mas não
havia, num primeiro momento, garantia alguma de que isso
aconteceria quando resolveu arriscar a operação.
Hoover também serviu como superintendente da
Seção de Alimentos, na administração do presidente
Woodrow Wilson, durante a guerra, quando ele
aparentemente impressionou os apoiadores de outro
membro daquela administração, um jovem que despontava
e se chamava Franklin D. Roosevelt. Esses apoiadores de
Roosevelt buscaram convencer Hoover para que ele se
lançasse como candidato democrata para presidência, em
1920, tendo Franklin Roosevelt como seu vice-presidente.
[281] Todavia, apenas a última situação aconteceu, com

Roosevelt como vice do candidato democrata à presidência


James M. Cox, que perdeu em 1920. Hoover foi servir como
secretário de Comércio sob o governo dos presidentes
republicanos Warren Harding e Calvin Coolidge.
Esse foi o real Herbert Hoover. Porém, o que gerações
inteiras ouviram e leram foi embasado no Herbert Hoover
fictício, um homem frio e sem sentimentos que deixou
milhões de norte-americanos sofrerem sem necessidade,
durante a Grande Depressão de 1930, por causa de sua
suposta crença doutrinária de que o governo deveria deixar
a economia andar por conta própria. Resumindo, a imagem
de Hoover retratada pela intelligentsia foi a de um
presidente sem ação.[282]
Segundo essa visão, amplamente disseminada tanto
na mídia popular quanto no mundo acadêmico, além de ter
sido repetida durante as campanhas eleitorais por décadas,
foi apenas com a substituição do governo de Hoover pelo de
Franklin Roosevelt que tivemos um governo federal
envolvido com o esforço em reverter os efeitos da Grande
Depressão. A falsidade desse quadro foi exposta na própria
época, durante a Grande Depressão, pelo reconhecido
colunista Walter Lippmann e confirmada anos mais tarde
por ex-membros da administração Roosevelt, os quais
reconheceram que muito, e talvez a maior parte, do New
Deal era simplesmente uma extensão das iniciativas já
tomadas pelo presidente Hoover.[283] Lippmann, escrevendo
em 1935, disse:

A política iniciada pelo presidente Hoover no


outono de 1929 foi algo completamente sem
precedentes na história dos Estados Unidos. O
governo nacional se empenhou num esforço para
tornar próspera toda esfera econômica (...) as
medidas de Roosevelt são uma continuação e uma
evolução das medidas de Hoover.[284]

Herbert Hoover tinha plena consciência, e era


orgulhoso, de ter sido o primeiro presidente dos Estados
Unidos a assumir a responsabilidade em tirar o país de uma
depressão, tornando-a um assunto de responsabilidade
federal. "Antes, nenhum presidente jamais acreditara que
houvesse responsabilidade do governo em tais casos", ele
disse em suas memórias.[285] Um intervencionismo desse
tipo não é novidade para Hoover, que anteriormente, como
secretário de Comércio, tinha defendido uma redução nas
horas de trabalho e também uma emenda constitucional
que proibisse o trabalho infantil, dentre outras iniciativas
intervencionistas.[286] Ao deparar com um crescente déficit
federal, durante a depressão, o presidente Hoover propôs, e
depois promulgou como lei, um grande aumento no índice
de impostos, ultrapassando os índices existentes entre 20%
e 30% para as pessoas de mais alta renda ao fixar novos
patamares de 60%.[287]
Certamente, nada disso significa que tanto as
intervenções de Hoover quanto as de Franklin Roosevelt
foram, numa avaliação geral, proveitosas, nem essa é a
questão. O ponto aqui é analisar a criação de um Herbert
Hoover completamente fictício não somente no mundo da
política, mas nos escritos da intelligentsia. Por exemplo, o
Hoover fictício só se importava com os ricos, cujos impostos
o Hoover real mais que dobrou, subtraindo mais da metade
de suas rendas. O Hoover fictício era insensível aos destinos
do trabalhador comum, mas o Hoover real foi elogiado pelo
líder da Federação Americana do Trabalho por seus esforços
em evitar que o setor industrial reduzisse os salários dos
empregados durante a depressão.[288]
A intelligentsia da época criou o Hoover fictício e a
intelligentsia de períodos posteriores reforçou a imagem
criada. Em 1932, Oswald Garrison Villard, editor da revista
The Nation, disse que o presidente Hoover "falhara por falta
de compaixão".[289] Um editorial da New Republic disse: "Ele
é a testemunha viva da tese que diz que é função do
governo não governar".[290] O conhecido crítico literário
Edmund Wilson disse que Hoover "não fez esforço algum
para sanar a crise,[291] chamando-o de "desumano".[292] Os
colunistas Robert S. Allen e Drew Pearson chegaram a
denunciar a "completa omissão" de Hoover.[293] Na distante
Inglaterra, Harold Laski disse: "Hoover nada tem feito para
lidar com o problema".[294]
Na esfera política o Hoover fictício herdou a mesma
imagem, e ela perdurou. Em 1936, quando Herbert Hoover
não era mais candidato, o secretário do Interior de Franklin
Roosevelt, Harold Ickes, no entanto, atacou Hoover de ter
sido um presidente "omisso",[295] uma tendência que
perdurou por muitas eleições posteriores, à medida que os
democratas retratavam repetitivamente o voto para os
candidatos republicanos à presidência como um voto que
remetia aos dias de Herbert Hoover. Somente vinte anos
após a saída de Hoover da Casa Branca que outro
presidente republicano assumiu o cargo.
Mesmo em plena década de 1980, o presidente
Ronald Reagan foi caracterizado pelo porta-voz do partido
democrata, Tip O'Neill, como um "Hoover que sorri", e
quando o secretário do Tesouro de Reagan defendeu as
políticas econômicas do governo numa declaração ao
Congresso, o senador democrata Ernest Hollings disse:
"Cara, isso é conversa do Hoover!",[296] muito embora a
política de corte de impostos, proposta por Reagan, fosse o
oposto da política de aumento tributário de Hoover. Mesmo
já em pleno século XXI, a crise financeira de 2008 fez com
que um colunista do New York Times temesse que os
cinquenta governadores de estado se transformassem em
"50 Herbert Hoovers".[297] Ou seja, a imagem de Hoover
como um "zumbi" ainda era politicamente útil décadas
depois de sua presidência e mesmo depois de sua morte.
Um dos sinais de grande decência de Harry Truman foi
que, um mês depois de se tornar presidente em 1945, ele
enviou uma carta de próprio punho para Herbert Hoover,
convidando-o para comparecer à Casa Branca[298] pela
primeira vez desde que havia saído em 1933, a fim de pedir
seu conselho para organizar o envio de alimentos para uma
Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial.[299] Hoover
ficou muito surpreso com o convite e desabou em lágrimas
quando encontrou Truman na Casa Branca.[300]
Posteriormente, a designação de Truman para que Hoover
chefiasse uma comissão para investigar a eficiência das
agências do governo permitiu que esse homem, tão odiado,
readquirisse algum respeito público nos seus últimos anos,
livrando-se de parte do opróbrio que havia sido criado pela
intelligentsia.
É claro que imagens fictícias positivas também podem
ser criadas não apenas pelas agências de propaganda em
países totalitários, mas também pela intelligentsia nos
países democráticos. Nenhum político das duas últimas
gerações recebeu mais elogios e foi considerado o político
mais intelectualizado, pelos próprios intelectuais, do que
Adiai Stevenson, o gentil e encantador ex-governador de
Illinois, que por duas vezes concorreu pela presidência dos
Estados Unidos, contra Dwight Eisenhower, na década de
1950. O New York Times o chamava de "o melhor tipo de
intelectual".[301] O estudo de Russell Jacoby, The Last
Intellectuals [Os Últimos Intelectuais], ilustrava a
"estrondosa derrota de Adiai Stevenson para Eisenhower"
como retrato cabal do "anti-intelectualismo endêmico da
sociedade americana".[302] Todavia, segundo o historiador
Michael Beschloss, Stevenson "podia viver feliz da vida por
anos ou meses a fio sem se incomodar em pegar um livro
para ler".[303] Outros também relataram o desinteresse de
Stevenson pelos livros.
Enquanto isso, ninguém tinha Harry Truman como
intelectual, embora ele fosse um leitor voraz, cuja carga de
leitura incluía pesos-pesados, como os trabalhos de
Tucídides e de Shakespeare. Era "um presidente que
apreciava ler Cícero em latim",[304] alguém que era capaz
de corrigir secretário da Justiça Fred M. Vinson quando ele
citava em latim.[305] No entanto, Adiai Stevenson tinha a
retórica e a pose de intelectual e Harry Truman não.[306]
Para muitos na intelligentsia, o despretensioso, curto e
grosso Truman parecia-se pouco melhor que um caipira.[307]
Outra figura pública contemporânea que recebeu da
mídia uma imagem fictícia é membro da Suprema Corte, o
juiz Clarence Thomas. O Clarence Thomas fictício é descrito
como um homem solitário, permanentemente angustiado e
envolvido com suas controversas audiências públicas no
Senado, "um homem recluso em sua privacidade".[308] Um
repórter do Wall Street Journal o chamou de "o recluso mais
famoso de Washington".[309] O juiz Thomas foi retratado
num artigo do New York Times como alguém que consegue
falar somente com sua esposa e que "a vida do casal parece
ser uma vida de isolamento taciturno e compartilhado".[310]
Tendo-se em vista que o juiz Thomas e o juiz Antonio Scalia
votavam juntos, com grande frequência, nos casos da
Suprema Corte, ele é por isso comumente descrito como o
"clone" de Scalia pelo colunista sindicalizado Carl Rowan[311]
e foi retratado como "marionete" de Scalia por um
advogado do Sindicato das Liberdades Civis Americanas.
[312] Afirmações semelhantes sobre o papel do juiz Thomas

na Suprema Corte são comuns pela mídia.


Todavia, aqueles que se importam em checar os fatos
descobrem um Clarence Thomas de carne e osso, mas que
é exatamente o oposto do Clarence Thomas fictício
retratado na mídia. Repórteres do Washington Post, críticos
costumeiros do juiz Thomas, ao entrevistarem colegas e ex-
funcionários, assim como ao consultarem anotações feitas
pelo falecido juiz da Suprema Corte, Harry Blackmun, a
respeito das audiências privadas entre os juízes,
descobriram um retrato radicalmente diferente sobre o
homem Clarence Thomas.

Thomas é talvez o membro mais acessível da


Corte, exceto para os jornalistas (...), ele é
conhecido por ser um homem que, ao ver um
grupo de estudantes mirins visitando a Suprema
Corte, convida-os ao seu gabinete. Alunos de sua
universidade, familiares e ex-funcionários, pessoas
que ele encontra em suas viagens pelo país, em
seu trailer imenso, são todos bem-vindos (...)

Thomas parece ter uma sede insaciável para


conversas. Uma pequena reunião planejada para
durar quinze minutos se transforma
invariavelmente em uma hora, duas, estendendo-
se, por vezes, a três ou quatro horas, segundo
entrevistas com pessoas que visitaram seu
gabinete (...) O advogado de Washington Tom
Goldstein, cujo escritório se dedica
fundamentalmente aos litígios da Suprema Corte,
já se encontrou com todos os e declarou que
Thomas "é a pessoa mais real" entre todos eles.
[313]

Longe de ser um recluso permanentemente assustado


com as audiências no Senado, o juiz Thomas, retoma
frequentemente ao Senado durante suas refeições, segundo
o Washington Post:

Não se pode dizer que Thomas seja um estranho


no Senado. Ele pode ser visto no refeitório do
edifício do Senado almoçando com seus
funcionários. Ele tem intimidade com as
cozinheiras e as garçonetes. Ele toma café da
manhã na sala reservada aos senadores, ficando
apenas a um passo de alguns congressistas que
se opuseram virulentamente à sua nomeação.
Quem imaginaria que o Senado dos Estados
Unidos, o palco do "linchamento high-tech" de
Thomas, como ele nervosamente o chamou
durante as audições a que foi submetido para sua
nomeação em 1991, é o lugar onde hoje ele
saboreia suas refeições?[314]

As pessoas que realmente estudaram o juiz Thomas,


entrevistando seus colegas, funcionários ou quem o
conheceu socialmente, também ficaram chocadas com a
diferença entre a imagem pública e o homem real:

Ele fazia questão de se apresentar pessoalmente a


todos os funcionários da Corte, dos cozinheiros
aos zeladores noturnos. Ele jogava basquete com
os delegados e os seguranças e parava para
conversar com as pessoas nos corredores. Os
funcionários da Corte diziam que Thomas tinha
uma habilidade incomum para se lembrar dos
detalhes da vida pessoal dos que trabalhavam
para ele. Ele sabia o nome dos filhos dos
funcionários e onde estudavam e dava atenção
para pessoas que em geral passariam
despercebidas. Stephen Smith, um ex-funcionário,
lembra-se de um caso em que Thomas, enquanto
acompanhava uma delegação durante o fato
envolvendo jurisdições marítimas de 1993 ou
1994, conversava com um grupo de juízes. "Havia
uma mulher idosa ali, aguardando em pé, vestindo
um daqueles uniformes azuis de limpeza e
segurando um balde. Era uma mulher negra",
lembra Smith. "Ela estava olhando para ele, mas
não ousaria interrompê-lo, mas o juiz Thomas
deixou seus colegas, desculpando-se, e foi ter com
aquela mulher. Ele ofereceu sua mão para
cumprimentá-la e ela então se lançou em direção
a ele e lhe deu um tremendo abraço."
Entre seus oito colegas, Thomas também era
acessível e amigável. A juíza Ginsburg disse que,
por vezes, Thomas passava em seu gabinete
carregando uma sacola repleta de cebolas
especiais da Geórgia, pois sabia que seu marido
era um chef dedicado. "Um colega absolutamente
simpático", disse a juíza a respeito de Thomas (...).

Thomas tinha um interesse todo especial pelos


funcionários e com frequência estabelecia uma
relação quase paternal com eles (...). Certa vez ele
notou que os pneus do carro da sra. Walker
estavam desgastados e lhe mostrou como medir o
nível de desgaste. "Na manhã seguinte", como se
lembra a sra. Walker, "ele se aproximou e disse:
'Eu acabei de ver ótimos pneus no Price Club, o
preço está excelente. Você deveria aproveitar e
trocar seus pneus'. E eu fiquei pasma e pensando
comigo mesma que ali estava um juiz da Suprema
Corte que se preocupa com a segurança dos meus
pneus". Muitos outros funcionários do tribunal têm
histórias semelhantes para contar.[315]

Outro estudo relatou a vida de Clarence Thomas, mas longe


de Washington:

Atrás do volante de seu motorhome de quarenta


pés, Clarence Thomas não poderia estar mais
feliz. O veículo é um modelo Prevost 92, com um
quarto na traseira, estofados de couro cinza, uma
cozinha, uma televisão via satélite e um sistema
de navegação computadorizado. "É um verdadeiro
condomínio sobre rodas", ele disse. Um
condomínio do qual ele observa a nação e entra
em contato com seus queridos cidadãos. Ele é
atraído, na maior parte das vezes, para pequenas
cidades, campos para trailers, parques nacionais e
centros históricos. Thomas diz para seus amigos
que nunca passou por uma experiência ruim
viajando em seu motorhome. Longe dos centros
urbanos ele geralmente encontra pessoas que não
o reconhecem ou não se importam que ele seja
juiz da Suprema Corte. Ele adora entrar num
estacionamento do Wal-Mart vestindo suas calças
jeans, sapatos dockside e um boné na cabeça.
Refestelado em sua cadeira de praia, do lado de
fora de seu trailer, ele fica sentado por horas
conversando com estranhos sobre ceras e
polimentos para veículos, enquanto saboreia sua
limonada.[316]

O juiz Thomas também dá palestras para "milhares


de ouvintes nas melhores universidades do país", segundo o
Washington Times.[317] Porém, uma vez que ele não é
considerado favoravelmente nos encontros sociais da elite
política e da mídia chique de Washington, isso é o suficiente
para fazer dele um "recluso", segundo o entendimento da
intelligentsia.
E o que dizer do trabalho de Clarence Thomas como
juiz da Suprema Corte? O fato de seus votos e os do juiz
Scalia frequentemente coincidirem não diz nada sobre quem
influencia quem, mas a mídia supôs automaticamente que
era Scalia quem liderava e Thomas quem seguia. Conhecer
os fatos requer o conhecimento do que acontece nas
conferências privadas entre os nove juízes do Supremo, ao
qual nem seus funcionários têm acesso. Apesar de toda
sorte de suposições apressadas que reinaram por anos na
mídia, um quadro radicalmente diferente veio à tona
quando as anotações do falecido juiz Harry Blackmun, sobre
as conferências, tornaram-se disponíveis. A autora Jan
Crawford Greenburg teve acesso às notas do juiz Blackmun
quando escrevia um livro sobre a Suprema Corte intitulado
Supreme Conflict, e encontrou um padrão completamente
diferente daquele sedimentado na visão da mídia em geral.
Além disso, ela descobriu que esse padrão real se
estabeleceu bem cedo, logo durante o primeiro ano de
Clarence Thomas como membro da Suprema Corte.
No terceiro caso em que participava o juiz Thomas,
inicialmente ele concordou com o resto de seus colegas e o
caso se encaminhava para uma contagem de nove a zero.
Porém, durante a madrugada, Thomas repensou o caso e
resolveu discordar da visão de seus oito colegas mais
antigos:

Aconteceu uma reviravolta e Thomas não ficou


por muito tempo sozinho. Logo depois que enviou
seu desacordo para os outros colegas, os juízes
Rehnquist e Scalia o seguiram e também
mandaram notificações para seus pares
informando-os de que eles também alteravam
seus votos, juntando-se à opinião de Thomas.
Kennedy recusou participar da dissensão de
Thomas, mas ele também mudou seu voto e
escreveu seus próprios termos de desacordo (...).
[318]

Isso aconteceu muitas vezes durante aquele primeiro


ano. Algumas anotações do juiz Blackmun indicavam sua
surpresa com a postura independente daquele novo
membro da Corte.
Não apenas indivíduos, mas nações inteiras podem
receber caracterizações fictícias a fim de reforçar os rótulos
que a visão predominante favorece. Da mesma forma que
acontece com meros indivíduos, análises elogiosas ou
desfavoráveis que nações particulares recebem dependem
muito mais de sua capacidade - das nações - em se
encaixar na visão do que dos fatos. A admiração dos
intelectuais sobre supostas virtudes de certas nações
estrangeiras funciona geralmente como instrumento para
criticar seus próprios países. Esse padrão já existia em Jean-
Jacques Rousseau, no século XVIII, cujo retrato do "bom
selvagem" servia como reprimenda à civilização europeia.
Embora seja legítimo comparar algumas nações com
outras, ou talvez com uma visão ideal de como, as nações
deveriam ser, muito frequentemente os intelectuais
ocidentais em geral ou os intelectuais norte-americanos em
particular fazem comparações com imagens fantasiosas de
outras nações. Tal procedimento ganha peso em
determinadas épocas, como foi o caso, especialmente
durante a década de 1930, com a imagem construída da
União Soviética, concebida pela intelligentsia daquele
período com a devida colaboração de escritores pró-
soviéticos como Walter Duranty ou Sidney e Beatrice Webb.
O famoso crítico literário Edmund Wilson, por exemplo,
chamou a União Soviética de "o cume moral do mundo",[319]
exatamente numa época em que grassavam, naquele país,
a fome e os campos de trabalhos forçados sob o regime de
Stalin. Quando uma profusão de fatos reveladores sobre a
realidade assustadora da União Soviética finalmente se
tornou bem conhecida, impossibilitando que a imagem
fictícia continuasse sua imperturbada carreira, teve início a
busca por outras nações estrangeiras e foram criados então
novos objetos de admiração em oposição ao mundo
ocidental. O foco mudou para a China comunista ou outras
muitas nações do Terceiro Mundo, como a Índia ou as novas
nações independentes da África subsaariana.
Talvez a Índia tenha sobrevivido nesse papel durante
mais tempo que qualquer outro país, em parte por ser "a
maior democracia do mundo" e em parte porque sua
democracia socialista, sob o governo de Nehru e seus
sucessores, alinhava-se com a visão dos intelectuais
ocidentais. A Índia fictícia foi retratada como algo
completamente distinto do materialismo, da intolerância e
da violência dos Estados Unidos. É como se a Índia fosse um
país feito de Mahatma Gandhis, quando, de fato, Gandhi foi
assassinado justamente por causa de suas tentativas de
desencorajar os surtos incessantes de intolerância violenta
que varriam a população indiana. As centenas de milhares
de hindus e muçulmanos chacinados nos distúrbios entre
esses dois grupos foram esquecidos, assim como uma
escalada de violência que se seguiu à independência da
Índia em 1947, num momento em que o subcontinente
indiano era dividido em Índia e Paquistão. Tudo isso foi, de
alguma forma, lançado no limbo da memória. Mesmo a
extrema violência que grassa entre populações hindus e
muçulmanas na Índia de hoje, em pleno século XXI, com
centenas de mortos durante um protesto em 2002, por
exemplo[320] pouco fez para modificar a imagem da Índia
fictícia. Tampouco fez o tratamento que recebem os
intocáveis.
O governo indiano finalmente baniu a casta dos
intocáveis em 1949, e o termo "intocável" foi substituído,
nas conversas educadas, por "harijan" - crianças de Deus -,
como Mahatma Gandhi os chamava, e depois por "dalits"-
os degenerados - e em relatórios oficiais por "castas
programadas". Contudo, foram muitas as antigas práticas
discriminatórias que sobreviveram, especialmente no
interior. Embora para o público dos Estados Unidos os
linchamentos raciais sejam coisa do passado, a publicação
indiana The Hindu, de 2001, relatava que ataques "e até
mesmo massacres de homens, mulheres e crianças
pertencentes às castas inferiores da ordem social" ainda
eram "regulares na maior parte do país".[321]
Todavia, tais práticas não são mais universais na Índia
de hoje. Um relatório oficial de 2001 publicou que são três
os estados da Índia que respondem por quase dois terços
das atrocidades cometidas anualmente contra os intocáveis,
ao passo que há estados onde nenhuma atrocidade fora
cometida.[322] Mas onde ainda impera a violência brutal
contra os intocáveis, isso é um fato muito real. Um artigo de
junho de 2003, publicado na revista National Geographic,
repleto de fotografias de homens intocáveis mutilados com
ácido por terem ousado pescar numa lagoa usada por
indianos das castas superiores, expõe cruamente um
quadro aterrador sobre as contínuas opressões e violências
cometidas contra os intocáveis.[323]
O objetivo aqui não é fazer uma avaliação geral sobre
a Índia, a qual teria que incluir suas características positivas
e negativas, mas denunciar, assim como acontece com as
pessoas fictícias criadas pela intelligentsia, toda uma
construção irreal e incongruente com o país real. Na
verdade, muitos desses lugares fictícios foram criados, ao
longo de muitas gerações, por intelectuais que desdenham
seus próprios países.[324]
O livro de Paul Hollander Polítical Pilgrims [Peregrinos
Políticos] é um estudo sobre os intelectuais cuja visita a
países comunistas, como a União Soviética, a China e Cuba,
produziu relatos exuberantes sobre essas sociedades
totalitárias. O autor atribui parte dessa desinformação a
uma total assimetria de informação. A "não disponibilização
de informação visual comprometedora, nos estados policiais
mais repressivos" visitados pelos intelectuais, contrasta com
"as imagens vívidas dos piores aspectos de suas próprias
sociedades".[325] A falsa interpretação dos fatos é, em
determinada escala, inevitável, considerando-se as
limitações de informação e dos seres humanos. Porém, a
criação de pessoas e nações fictícias ultrapassa tais
empecilhos, especialmente quando a intelligentsia, cuja
função é juntar e disseminar informações, elabora
conclusões bombásticas, aproveitando a ausência de
informação, ou opera em franca oposição àquelas que estão
disponíveis.
Fatos sobre a Índia, incluindo o tratamento que os
intocáveis recebem, são livremente divulgados pela mídia
do próprio país, e temos inclusive relatórios oficiais do
governo indiano que divulgam as atrocidades cometidas
contra eles. Nesse mesmo sentido, havia fatos indigestos
prontamente disponíveis sobre a vida na Rússia do século
XVIII, sob o despotismo dos czares, quando Voltaire e outros
escreveram favoravelmente sobre o regime czarista. O fator
crucial parece não depender de qual informação está
disponível, mas das predisposições - as visões - com as
quais os intelectuais abordam as informações disponíveis,
sej am elas sobre nações, sejam sobre indivíduos.
Geralmente, pessoas e nações fictícias recebem
características que não são meramente diferentes das suas
próprias, mas que se apresentam como o seu oposto,
diametralmente contrárias às verdadeiras características
das pessoas de carne e osso. Considerando as várias
identidades fictícias que foram criadas para pessoas
públicas e países estrangeiros pela intelligentsia, o
denominador comum é a visão que ela tem do mundo e de
si mesma, levando-a a exaltar ou a denegrir indivíduos,
países e assuntos, geralmente em detrimento dos fatos e
das análises seriamente realizados.
◆ ◆ ◆

EUGENIA VERBAL
Os numerosos filtros em operação tanto na mídia
quanto no universo acadêmico não são aleatórios. Eles
refletem um procedimento comum, filtrando inumeráveis
elementos indesejáveis, os quais poderiam ameaçar essa
visão consagrada. A manipulação retórica dos intelectuais
filtra tanto as palavras quanto os fatos, fazendo uso daquilo
que poderíamos chamar de eugenia verbal, análoga à
limpeza étnica. Palavras que adquiriram conotações
particulares ao longo dos anos a partir das experiências
acumuladas de milhões de pessoas, atravessando
sucessivas gerações, passam a ter seu significado
corrompido por um número relativamente pequeno de
intelectuais contemporâneos, os quais simplesmente
suprimem o antigo termo, substituindo-o por outro para
designar coisas iguais, até que as novas palavras
substituam as antigas. Portanto, "mendigo" foi substituído
por "sem-teto", "pântano" por "paraíso das águas" e
"prostitutas" por "profissionais do sexo".
Todas as coisas que gerações de pessoas haviam
aprendido, pela experiência, a respeito de mendigos,
pântanos e prostitutas são apagadas com a substituição de
novas palavras, limpando-se as antigas conotações. Os
pântanos são, por exemplo, lugares geralmente escuros,
lodosos e fedorentos onde os insetos reinam e os mosquitos
criam e espalham doenças. Por vezes, são também lugares
que criaturas perigosas como cobras e jacarés habitam.
Contudo, "paraíso das águas" apresenta um tom
reverencial, como se estivéssemos falando de santuários.
Novos termos cunhados para substituir palavras
antigas aparecem em muitos contextos, geralmente
apagando o que a experiência nos ensinou a respeito das
coisas. Portanto, o "aerotrem" foi transformado em termo da
moda, pelos defensores do transporte de massas, para
designar coisas que são muito parecidas com o que um dia
chamamos de bondes e que já foram muito comuns em
centenas de cidades norte-americanas. Os bondes foram
substituídos pelos ônibus, em quase todas essas cidades,
por razões concretas. Mas subitamente as conhecidas
inconveniências e ineficiências históricas dos bondes
desaparecem no ar, na medida em que são apresentados
como grande novidade chamada de "aerotrem", cujas
futuras maravilhas são descritas em termos exuberantes
pelos planejadores urbanos e por outros defensores,
seguros contra qualquer lembrança indigesta que possa
reavivar a história sobre o declínio e a queda do bonde.
Outro desenvolvimento significativo na arte da
eugenia verbal é o de modificar nomes usados para
descrever pessoas que abraçam a intervenção
governamental na economia e na sociedade, como a
maioria dos intelectuais tende a fazer. Nos Estados Unidos,
essas pessoas alteraram a designação de suas ideologias
por mais de uma vez, ao longo do século XX. No começo
desse século, elas se intitulavam "progressistas". Todavia,
durante a década de 1920, a experiência levou os eleitores
norte-americanos a repudiarem, por toda a década, o
movimento progressista, elegendo governos nacionais que
tinham uma filosofia muito diferente. Quando a Grande
Depressão de 1930 trouxe uma vez mais ao poder pessoas
alinhadas com políticas intervencionistas, muitas das quais
serviram no governo progressista de Woodrow Wilson, elas
mudaram o nome para "liberal", eximindo-se das
conotações negativas do antigo termo, da mesma forma
que muitas pessoas escapam de suas dívidas financeiras ao
declararem falência.
O longo reinado do "liberalismo" nos Estados Unidos,
o qual durou, com poucas interrupções, do presidente
Franklin D. Roosevelt e seu New Deal, na década de 1930,
até o presidente Lyndon B. Johnson e sua Great Society, da
década de 1960, finalmente terminou com o completo
descrédito do liberalismo diante da opinião pública. Daí em
diante, futuros presidentes e candidatos com longas
trajetórias de liberalismo rejeitaram esse rótulo, ou
rejeitaram qualquer rótulo, alegando ser falso ou sem valor.
No final do século XX, muitos liberais começaram a se
chamar novamente de "progressistas" para escaparem das
conotações negativas que o liberalismo tinha adquirido ao
longo dos anos, mas que não mais se aplicavam à palavra
"progressista", pois esse termo remontava uma época que
havia ficado muito no passado para que se pudessem fazer
associações entre o termo e a experiência.
Em 26 de outubro de 1988, uma longa lista de
influentes intelectuais, incluindo John Kenneth Galbraith,
Arthur Schlesinger Jr., Daniel Bell e Robert Merton, entre
outros, assinaram um anúncio, no New York Times,
protestando contra o que eles chamaram de "vilipêndio" do
presidente Ronald Reagan "contra uma de nossas tradições
mais nobres e antigas" tornando "liberal e liberalismo
termos de opróbrio". 85 Recuando ao significado original de
liberalismo como "a liberdade de os indivíduos atingirem
seu desenvolvimento mais completo", o anúncio nem
sequer reconhecia, e muito menos defendia, aquilo em que
na prática o liberalismo tinha se tornado, ou seja,
intervencionismo governamental sobre a economia e
engenharia social.
Sejam lá quais forem os méritos ou os deméritos
dessas intervenções, foram essas as reais políticas
adotadas, defendidas e levadas à consecução pelos liberais
contemporâneos, desconsiderando-se o que a definição
original da palavra "liberal" significou em outros tempos.
Porém, o anúncio apaixonado nem sequer considerava a
possibilidade de haver, no histórico dos liberais enquanto
movimento e governo, falhas que tivessem motivado o
descrédito total do termo, em vez de ser uma crítica
gratuita disparada por pessoas com uma filosofia diferente.
Além do mais, o anúncio sugeria, como algo estranho e sem
valor, o fato de conservadores como Ronald Reagan
criticarem os liberais, da mesma forma que os liberais
costumam criticar os conservadores, como o presidente
Reagan.
Da mesma forma que as pessoas, ao criticarem o
liberalismo com base no comportamento real dos liberais,
são acusadas de se opor ao liberalismo em sua definição
dicionarizada, também os que criticam o comportamento
real dos intelectuais são frequentemente acusados de "anti-
intelectualismo", no sentido de uma explícita oposição à
atividade intelectual em si mesma. O conhecido livro de
Richard Hofstadter Anti-Intellectualism in American Life
[Anti-intelectualismo na Vida Americana] equaliza as duas
coisas tanto no título quanto no texto, no qual ele faz
referência ao "desrespeito nacional pela atividade mental" e
às "qualidades em nossa sociedade que tornam a atividade
intelectual impopular".[326] O colunista do New York Times
Nicholas D. Kristof foi um dos muitos que escreveu sobre o
anti-intelectualismo como uma realidade histórica da vida
norte-americana.[327] Mesmo o prestigiado acadêmico
Jacques Barzun disse que "a atividade intelectual é
desprezada",[328] embora ele seja um crítico dos intelectuais
sem, contudo, ser alguém que desprezou a atividade
intelectual. No entanto, ele não mostrou que cientistas e
engenheiros eram desprezados pelos norte-americanos ou
mesmo por aqueles que se faziam críticos ferozes do
histórico dos intelectuais, no sentido de pessoas cuja
atividade começa e termina com as ideias.
◆ ◆ ◆

OBJETIVIDADE VERSUS IMPARCIALIDADE


Os artifícios retóricos permitem a muitos intelectuais
escaparem à responsabilidade por manipularem as
informações, cujo intuito é criar realidades virtuais a fim de
corroborar sua visão. Alguns membros da intelligentsia
inflam a níveis absurdos a questão sobre as escolhas,
filtragem ou não filtragem dos dados, para então
desconsiderarem os críticos, dizendo que estes esperam o
impossível, ou seja, uma objetividade perfeita ou uma
completa imparcialidade. "Nenhum de nós é realmente
objetivo", segundo o editor-chefe do New York Times.[329]
É claro que ninguém é objetivo ou imparcial. Métodos
científicos podem ser objetivos, mas os cientistas, como
indivíduos, não o são, e não precisam ser. Os matemáticos
não são objetivos, mas isso não significa que equações do
segundo grau ou o Teorema de Pitágoras sejam apenas
questões de opinião. De fato, toda questão que envolve
desenvolvimento e a constituição de métodos científicos
objetivos baseia-se no esforço em se ter acesso a
informações confiáveis sem, contudo, ficar sujeito às
crenças subjetivas e às predileções particulares dos
cientistas como indivíduos; ou se ter que ansiar por uma
objetividade pessoal, praticamente impossível entre a
maioria dos cientistas. Se os cientistas fossem naturalmente
objetivos não haveria necessidade de se dedicar tanto
tempo e esforço na elaboração e na formatação de métodos
científicos objetivos.
Mesmo o cientista mais rigoroso não é objetivo
corno pessoa ou mesmo imparcial em suas atividades
científicas. Cientistas estudando o desenvolvimento de
células cancerosas em seres humanos não são, certamente,
imparciais em relação à vida das células do câncer diante
da vida dos seres humanos. O câncer não é estudado
apenas por uma mera questão de curiosidade acadêmica,
mas precisamente para que se aprenda qual a melhor forma
de destruir as células cancerosas e, se possível, evitar o
reaparecimento da doença, no intuito de reduzir o
sofrimento e prolongar a vida humana. É difícil haver uma
atividade mais parcial. O que a torna científica é a utilização
de métodos especialmente concebidos para se chegar à
verdade, não para defender essa ou aquela crença. Pelo
contrário, pois os métodos científicos evoluíram
precisamente para colocar crenças concorrentes sob o
escrutínio dos fatos e, portanto, reconhecem implicitamente
o quão temeroso seria confiar na objetividade ou na
imparcialidade pessoal dos cientistas.
Embora J. A. Schumpeter tenha dito que "a primeira
coisa que um homem fará por seus ideais é mentir",
também disse que uma área científica só se configura como
tal com a constituição de "regras de procedimento" as quais
podem "eliminar erros ideologicamente condicionados" em
uma análise qualquer.[330] Tais regras de procedimento são
o reconhecimento implícito da falibilidade que se impõe
sobre nossa objetividade e nossa imparcialidade
Um cientista que manipulasse os fatos a fim de
favorecer uma teoria de sua preferência sobre o câncer
seria considerado uma aberração e ficaria completamente
desacreditado, assim como um engenheiro que fizesse o
mesmo ao construir uma ponte. Este poderia ser até
processado por negligência criminosa caso a ponte viesse a
desabar, matando pessoas. Contudo, aqueles intelectuais
cujo trabalho é tido como "engenharia social" não precisam
enfrentar essas responsabilidades, mas, pelo contrário, a
maioria dos casos está isenta de quaisquer
responsabilidades, mesmo quando a manipulação dos fatos
desemboca em verdadeiros desastres sociais.
O fato de tantos intelectuais fazerem uso do discurso
sobre uma inalcançável objetividade e imparcialidade
pessoal como motivo para justificar a manipulação
fraudulenta que fazem dos fatos, tornando seus argumentos
plausíveis, mostra, uma vez mais, o quanto a capacidade
intelectual deles está a serviço da manipulação retórica e o
quanto lhes falta de sabedoria. Em última instância, a
questão não é sobre ser ou não "justo", contemplando
"ambos os lados", mas o que é muito mais importante é ser
honesto com o leitor, o qual, afinal de contas, não pagou
para aprender sobre o psiquismo ou a ideologia do escritor,
mas para adquirir algum conhecimento real sobre o mundo.
Como Jean-François Revel coloca: "Eu não gastei sessenta
centavos para ser informado sobre as vibrações emanadas
pela alma desse correspondente espanhol”[331]
Aqueles intelectuais que resolvem manipular os fatos,
favorecendo os interesses de sua visão pessoal, negam aos
outros o direito que têm de acessar o mundo tal como se
apresenta e assim prejudicam que outros tirem suas
próprias conclusões. Ter ou expressar uma opinião é algo
que difere completamente da prática de bloqueio
sistemático da informação, a qual impede que terceiros
possam formar suas próprias opiniões.
◆ ◆ ◆

VERDADE SUBJETIVA
A verdade dos fatos empíricos ou uma lógica
convincente se revela inimiga dos dogmas, e isso é hoje tido
como inimigo por um pequeno, porém crescente, número de
intelectuais modernos, demonstrando, uma vez mais, a
divergência entre padrões intelectuais e interesses
pessoais. Não se trata apenas de termos ou verdades
particulares sendo atacadas ou abafadas, mas em muitos
casos o próprio conceito de verdade é solapado.
O descrédito da verdade, como critério decisivo, vem
sendo atacado sistematicamente, por um lado pelo
desconstrutivismo e, pelo outro, com o uso de artifícios ad
hoc. Dessa forma, temos a consagração de afirmações do
tipo "verdade para mim" versus "o que é verdade para
você", como se a verdade pudesse ser transformada em
propriedade privada, quando seu significado está, na
realidade, todo alicerçado na comunicação interpessoal. Por
exemplo, quando Robert Reich foi desafiado sobre a
acuidade factual de seus relatos, os quais haviam sido
filmados por terceiros mostrando situações radicalmente
diferentes do que ele havia descrito em seu livro, sua
resposta foi: "Eu não posso afirmar uma verdade maior do
que minhas próprias impressões".[332] Se a verdade é
subjetiva, então todo seu propósito perde sentido. Todavia,
isso pode parecer, para alguns, um pequeno preço a pagar
a fim de se preservar uma visão da qual muitos intelectuais
dependem para sobreviver, dando sentido à vida e ao papel
que desempenham na sociedade.
A aparente sofisticação da noção de que toda a
realidade "é socialmente construída "tem uma
plausibilidade superficial e ignora os muitos processos de
validação que testam essas construções. Muito do que é
dito ser socialmente "construído" é, de fato, socialmente
evoluído ao longo de gerações e socialmente validado pela
experiência. Mas boa parte do que muitos na intelligentsia
propõem é, de fato, construído, ou seja, deliberadamente
criado em determinado tempo e espaço, mas sem nenhuma
validação da experiência além do consenso de que é criado
entre os participantes da visão favorecida. Se os fatos, a
lógica e os procedimentos científicos são apenas categorias
arbitrárias, noções "socialmente construídas", então tudo o
que resta é o consenso, mais especificamente o consenso
grupal, o tipo de consenso que é importante entre
adolescentes, assim como entre muitos na intelligentsia.
Num sentido muito limitado, a realidade é de fato
construída pelos seres humanos. Mesmo o mundo que
vemos ao nosso redor é fundamentalmente construído
dentro de nosso cérebro a partir de dois pequeninos
remendos de luz que caem sobre nossas retinas. Como
imagens vistas do lado de trás das câmeras, a imagem do
mundo refletida no fundo de nossos olhos está de ponta-
cabeça. Nosso cérebro a recoloca para cima, reconciliando
as diferenças entre a imagem em um olho com a imagem
no outro olho, ao perceber o mundo em sua
tridimensionalidade.
Os morcegos não percebem o mundo do mesmo modo
que os seres humanos, uma vez que eles dependem de
sinais que são lançados e captados como se fosse um sonar
em operação. Algumas criaturas do mar percebem por meio
de campos elétricos que seus corpos geram e recebem.
Embora os mundos percebidos por diferentes criaturas, por
meio de mecanismos distintos, obviamente difiram uns dos
outros, essas percepções não são noções soltas, mas estão
sujeitas aos processos de validação dos quais questões tão
sérias como a vida e a morte dependem.
A imagem específica de um leão que você vê numa
jaula pode ser uma construção dentro de seu cérebro, mas
entrar na jaula demonstrará rápida e catastroficamente que
existe uma realidade para além do controle de seu cérebro.
Os morcegos não colidem contra paredes em seus voos
noturnos porque a realidade muito distinta construída no
cérebro desses animais está, da mesma forma, sujeita à
validação da experiência dada por um mundo que existe
fora dele. De fato, os morcegos não colidem contra janelas
de vidro, como por vezes acontece com os pássaros,
quando dependem da visão, indicando tanto diferenças nos
sistemas de visão quanto a existência de uma realidade que
independe desses sistemas de percepção.
Até mesmo as visões mais abstratas de mundo podem
frequentemente ficar sujeitas à validação empírica. As
visões de física de Einstein, as quais eram bem diferentes
das de seus predecessores, demonstraram ser válidas em
Hiroshima, ficando claro que não se tratava apenas de uma
visão particular de Einstein sobre a física - não era o caso de
sua verdade contra a verdade de outros, mas de uma
realidade inescapável a todos, principalmente aos presentes
naquele lugar e naquele momento trágico e catastrófico. Os
processos de validação são, de forma crucial, o fator
ignorado pela intelligentsia, o que permite que muitos
intelectuais vejam toda sorte de fenômenos de ordem
social, econômica ou científica como meras noções
subjetivas, o que permite, implicitamente, a adoção de
modelos favorecidos ideologicamente, transformando-os em
"realidade" e utopia.
Assim como acontece com a impugnação da ideia de
verdade objetiva, temos a impugnação dos padrões
tradicionais em vários campos, incluindo música, arte e
literatura. "Não há distinções rígidas entre o real e o irreal
nem entre o verdadeiro e o falso", segundo o dramaturgo
Harold Pinter.[333] Nem tal ideia está confinada aos
dramaturgos. O prestigiado historiador britânico Paul
Johnson destacou, por exemplo, que um romancista alcança
"domínio estético quando aqueles que não conseguem
compreender o que ele está fazendo, e por que está
fazendo, tendem a se desculpar por sua falta de
compreensão, em vez de culpar o autor por seu fracasso em
transmitir o que pretende".[334]
O mesmo e invejável resultado personalista foi
alcançado por pintores, escultores, poetas e compositores
musicais, dentre outros, muitos dos quais com ajuda
financeira dos contribuintes, aos quais eles não têm
obrigação nenhuma de agradar, nem mesmo para tornar
seu trabalho compreensível para eles. Em alguns casos, as
produções "artísticas" desses artistas subsidiados são
propositadamente concebidas para ridicularizar, chocar e
insultar o público e podem ser até mesmo questionáveis
como arte. Mas como Will Rogers disse há muito tempo:
"Quando você não é mais nada, pode alegar ser artista e
ninguém poderá provar que você não o seja".[335] jacques
Barzun chama acertadamente os artistas de "os
denunciadores mais persistentes da civilização ocidental"
[336] o que é perfeitamente compreensível, uma vez que não

se paga preço algum pelo comportamento autoindulgente.


◆ ◆ ◆

POSTURA CRÍTICA E ATITUDE DRAMÁTICA


Postura crítica e comportamento dramático
desempenham um papel especialmente importante na
carreira dos intelectuais, e isso é algo quase inevitável.
Embora o pensamento seja sua atividade central, pensar é
algo que todo mundo faz. O único argumento ou a única
justificativa para a existência de uma classe especial de
intelectuais é de que eles pensam melhor, de um ponto de
vista intelectual, em termos de originalidade, complexidade
e consistência interna de suas ideias, com uma ampla base
de conhecimento sobre determinado campo e a
consonância de suas ideias com premissas aceitas entre
seus pares, mas não necessariamente do ponto de vista das
consequências empíricas para os outros.
◆ ◆ ◆

CRÍTICOS CONTUMAZES
Numa época de disseminado acesso à educação
superior, para os que passam pelas sucessivas etapas de
seleção estar entre os 5% ou 10% mais qualificados, em
vários critérios, é geralmente crucial para se chegar às
instituições de ensino da elite, a partir das quais a maior
parte das grandes promessas para carreiras intelectuais de
sucesso começa. Uma preocupação com a postura crítica
não é, portanto, uma idiossincrasia individual, mas parte de
uma experiência de grupo que acompanha a aquisição de
territórios institucionais, e são muitas as triagens no
caminho para se tornar um intelectual. Mesmo aqueles
intelectuais que tiveram um histórico educacional mais
modesto incorporam a atmosfera dominante dos
intelectuais de ponta, tornando-se aptos a crer que os
intelectuais, como tais, formam um grupo realmente
especial e precioso.
Um senso de superioridade não se apresenta como
algo acidental, pois a superioridade foi essencial para levar
os intelectuais até onde eles se encontram. Eles são, de
fato, geralmente muito superiores dentro da estreita faixa
de preocupações humanas com as quais lidam. Mas da
mesma forma o são os mestres em jogos de xadrez,
prodígios musicais, programadores de softwares
sofisticados, atletas profissionais e outras pessoas
exercendo atividades mundanas cuja complexidade pode
ser apreciada apenas por aqueles que aprenderam a
dominá-la. O equívoco fatal de muitos na intelligentsia é
generalizar, a partir de sua especialidade de conhecimento,
uma sabedoria para lidar com os problemas do mundo em
geral, o que significa intrometer-se nos assuntos de outras
pessoas, cujo conhecimento sobre sua devida área é muito
superior ao que qualquer intelectual pode esperar oferecer.
Diz-se que um tolo veste melhor seu próprio casaco do que
um sábio a vesti-lo.
Muitos intelectuais, tão preocupados com a noção de
que o conhecimento especial que têm excede o
conhecimento especial médio de milhões de outras pessoas,
esquecem um fato muito mais repleto de consequências
que revela que o conhecimento mundano deles não
representa sequer um décimo do conhecimento mundano
total desses milhões que eles desprezam. Todavia, para
muitos na intelligentsia, a apropriação que fazem das
decisões individuais de milhões é tida como mera
transferência de um campo com menos conhecimento para
outro em que há mais conhecimento. Aqui se encontra a
falácia fatal por trás de muito do que é dito e feito pelos
intelectuais, incluindo-se os repetidos fracassos das
planificações centralizadoras e outras formas de engenharia
social, as quais concentram poder nas mãos em que há
menos conhecimento total, mas muito mais presunção,
baseando-se na suposição de que possuem um
conhecimento médio superior de um tipo especial.
Como já observado, havia 24 milhões de preços a
serem estabelecidos pelos planejadores centrais na União
Soviética[337] uma missão impossível para se executar, caso
esses preços possuíssem qualquer relação racional entre si,
como reflexo da escassez relativa ou dos custos de bens e
serviços, ou dos desejos relativos dos consumidores desses
24 milhões de bens e serviços, comparados entre si. Mas
embora isso se mostrasse uma tarefa esmagadora para a
comissão de planejadores centrais, é, todavia, uma tarefa
absolutamente administrável nas economias de mercado,
operada por milhões de consumidores e produtores
individuais, cada um deles acompanhando a quantidade
relativamente pequena de preços que são relevantes para
suas tomadas de decisão pessoal, com a respectiva
coordenação da locação de recursos e distribuição de
produtos e serviços na economia sendo feita por meio da
competição de preços no mercado para insumos e produtos.
Resumindo, os milhões de indivíduos sabem muito
mais do que qualquer comissão de planejadores pode
possivelmente conceber, mesmo que esses planejadores
centrais tenham todos altos títulos acadêmicos e a maior
parte das pessoas não tenha. Ignorância credenciada ainda
é ignorância. Ironicamente, o grande problema para os
intelectuais supostamente sabedores é que eles não têm
sequer o conhecimento suficiente para fazer o que se
propõem a fazer. Ninguém tem. Mas os intelectuais recebem
todo incentivo para afirmar que podem fazer mais do que
qualquer outro, e sua educação e a de seus pares são
suficientes para fazer essas alegações parecerem viáveis.
No entanto, considerando-se um nível de especialização
cada vez mais estreito, torna-se cada vez mais improvável
que mesmo os acadêmicos mais impressionantes, dentro de
determinada especialidade, possam abarcar todos os
fatores que compõem um problema prático no mundo real,
na medida em que muitos, ou talvez a maioria, desses
fatores quase sempre escapam ao domínio de uma única
especialidade.
As dimensões morais também parecem exercer uma
grande atração sobre a intelligentsia. Oportunidades para se
fazer moralmente superior diante dos outros, por vezes
incluindo toda a sociedade, são ferozmente cobiçadas, seja
na oposição às formas mais duras de punição criminal, seja
denunciando a destruição de Hiroshima e Nagasaki ou na
insistência em se adotar as determinações da Convenção de
Genebra aos terroristas capturados, os quais nem aceitam
os termos da convenção nem são por ela referidos. Padrões
morais duplos, denunciando os Estados Unidos por ações
que são quase por completo ignoradas quando cometidas
da mesma maneira ou de forma pior por outros países, são
defendidos sob a alegação de que deveríamos ter padrões
morais superiores. Dentro dessa lógica, um comentário
acidental pode vir a ser tomado como "racista" e provocar
mais indignação na mídia dos Estados Unidos do que a
decapitação de pessoas inocentes perpetrada por
terroristas, os quais divulgam as imagens para públicos
sedentos de sangue no Oriente Médio.
Raramente existe qualquer grande preocupação,
expressa pela intelligentsia, a respeito do efeito cumulativo
de tamanha manipulação de informações e de comentários
sobre o público em geral ou sobre a população estudantil
que recebe uma dieta regular desse tipo de manipulação
desde o primário até a vida universitária. O que é chamado
de "multiculturalismo" raramente representa um retrato
completo dos prós e contras das sociedades do mundo todo.
Muito mais comum é a ênfase dada aos aspectos
desagradáveis quando se trata de discutir a história e a
condição atual dos Estados Unidos ou da Civilização
Ocidental, ao mesmo tempo que se minimizam ou mesmo
se ignoram os aspectos desagradáveis toda vez que se
discute a Índia e outras sociedades não ocidentais.
Uma vez que todas as sociedades são desafiadas
interna e externamente, distorções que denigram a
sociedade têm consequências, incluindo a instauração de
um espírito de relutância para defender a própria sociedade
contra exigências impraticáveis ou ameaças mortais. Como
ficará claro no capítulo 7, isso pode significar uma relutância
em responder até mesmo às ameaças militares mais
temíveis, por vezes dando a inimigos potenciais, como um
Hitler, todo benefício da dúvida até que seja tarde demais.
◆ ◆ ◆

O DRAMÁTICO
E o dramático? A visão do intelectual ungido se
inclina, por si mesma, para decisões dramáticas e
categóricas, uma proliferação de "direitos", por exemplo -
em vez de favorecer o aumento do campo de negociações.
Sejam quais forem os benefícios e as perdas para o público
em geral, em cada uma dessas abordagens os benefícios
para os intelectuais são mais proveitosos nas tomadas de
decisão categóricas - aquelas que anunciam de forma
alarmante e dramática sua sublime visão -, ao passo que as
meras negociações reduzem as questões a enfadonhos
processos minuciosos de discussão, e tudo isso é feito num
plano de igualdade moral entre os adversários, ou seja, uma
tremenda heresia na visão do intelectual ungido.
Tal favorecimento tendencioso às decisões categóricas
produz consequências funestas para a sociedade como um
todo. Chega-se a um ponto que não importa mais em qual
política você acredita, pois, ao acreditar nela
categoricamente, qualquer política pode ser pressionada
até se tornar contraproducente. As instituições por meio das
quais as decisões são tomadas podem ser cruciais sempre
que algumas delas tendam a se tomar categóricas,
subordinadas a outras. Instituições políticas, especialmente
as instituições legais, inclinam-se a tomar decisões
categóricas, ao passo que as famílias e os mercados
tendem a decisões que favoreçam as negociações
compartilhadas, por causa de uma indisponibilidade em se
sacrificar completamente tanto o amor quanto a riqueza.
Existem outros motivos que explicam a tendência
em direção ao dramático. Vale a pena notar novamente que
aqueles que se fazem intelectuais no sentido aqui aplicado
não estão lidando fundamentalmente com matemática,
ciência, medicina ou engenharia, mas com línguas,
literatura, história ou psicologia. Embora a maior parte da
rotina de um médico, ao salvar vidas humanas utilizando
métodos médicos comuns, tenha uma reconhecida
importância social, a mera recordação de eventos prosaicos
não torna a história ou o jornalismo algo interessante, muito
menos os torna importantes aos olhos da sociedade ou um
caminho profissional pelo qual se conquista distinção,
reconhecimento ou influência para o intelectual que
transmite essas informações. São momentos e indivíduos
excepcionais que tornam a história algo que valha a pena
ser lido. No jornalismo, o adágio "Homem mordido por
cachorro não é notícia", mas o reverso é, transmite o
mesmo ponto. Também na literatura e na psicologia é o
tema ou a teoria excepcional que confere importância para
o profissional ou para a atividade.
Diferentemente, um médico que nunca faz nada que
esteja fora da prática da ciência médica recebe, no entanto,
reconhecimento e respeito por sua contribuição à saúde e
por salvar a vida dos seres humanos. Não há qualquer
necessidade de se alegar originalidade ou superioridade
para outros médicos a fim de receber tanto as recompensas
materiais quanto as morais da profissão. Todavia, na maioria
dos campos em que a intelligentsia atua, esse
reconhecimento automático não existe. Apenas o novo, o
excepcional ou o dramático coloca o profissional ou o campo
no mapa em relação a um reconhecimento público. Na
verdade, mesmo dentro desses campos, um domínio
completo do assunto pode significar pouco na carreira do
mundo acadêmico, sem necessariamente haver uma
contribuição pessoal para o desenvolvimento do campo. Daí
o imperativo entre os acadêmicos: "publique ou pereça".
No processo de gestação dos intelectuais, tanto os
incentivos à hostilidade crítica quanto os incentivos para
que continuem a mostrar sua natureza excepcional
contribuem para a constituição de um padrão
comportamental resumido na observação de Eric Hoffer: "0
intelectual não sabe atuar em temperatura ambiente".[338]
O mundano não pode sustentá-los, como sustenta as
pessoas em campos nos quais o mundano implica algo
amplamente reconhecido como vital em si mesmo, como na
saúde e na produção econômica. Considerando-se o
processo que seleciona e recompensa os intelectuais e os
incentivos que continuam a receber, é compreensível que a
atenção deles seja atraída para coisas excepcionais, as
quais demonstram sua natureza excepcional, e se afaste de
coisas que, embora mundanas, possam ser vitais para os
outros, mas são muito prosaicas para atrair o interesse dos
intelectuais.
Como observado no capítulo 3, boa parte da
intelligentsia mostra pouco ou mesmo nenhum interesse
sobre os mecanismos que facilitam ou dificultam a produção
econômica, muito embora seja basicamente uma produção
mais eficiente que responda pelo declínio da pobreza
generalizada com a qual os intelectuais têm se preocupado
por séculos. Muito do que é chamado de pobreza nas
nações industrializadas de hoje teria sido considerado uma
prosperidade inacreditável pela maioria das pessoas nos
tempos passados ou em algumas nações contemporâneas
do Terceiro Mundo. Mas os intelectuais contemporâneos que
mostram pouco interesse em tais coisas ficam, por outro
lado, enormemente interessados nas distribuições relativas
da riqueza, as quais fluem para os vários segmentos da
sociedade, e nas formas e nos meios de redistribuição dessa
riqueza, mesmo que historicamente o crescimento da torta
econômica, como aconteceu, tenha feito muito mais para
reduzir a pobreza do que as mudanças nas porções relativas
dos pedaços designados para os diferentes segmentos da
população.
Mesmo entre sociedades inteiras que foram criadas
com o propósito explícito de mudar os tamanhos relativos
das fatias de distribuição - os países comunistas-, essas
sociedades fizeram muito menos para reduzir a pobreza do
que os países cujas políticas facilitaram a criação de uma
torta maior. É difícil, ou mesmo impossível, explicar a
disseminada falta de interesse dos intelectuais pela criação
de riqueza, os quais ficam eternamente discutindo e
lastimando a pobreza, quando, na verdade, o crescimento
da quantidade geral de riqueza é o único processo que cura,
em larga escala, o problema da pobreza. As soluções
mundanas, mesmo em assuntos vitais, não são promovidas
pelos incentivos, pelas restrições e pelos hábitos dos
intelectuais.
Para uma demasiada parte da intelligentsia, a solução
para os grandes problemas, como a pobreza, acarreta
grande investimento intelectual que ela própria encarna. H.
G. Wells, por exemplo, disse que "escapar de uma
continuada frustração econômica para um estado de
abundância universal e justiça social requer um poderoso
esforço intelectual”.[339] De maneira semelhante, criar uma
paz duradoura "é uma imensa, pesada, complexa e
angustiante tarefa de engenharia mental".[340]
A coincidência entre o desafio do mundo real e o
desafio intelectual, que Wells e outros se propuseram a
tratar como algo quase axiomático, depende de suposições
iniciais que formam certa visão social. Suposições opostas
desembocam em conclusões não menos opostas, como
aquelas de George J. Stigler mencionadas no capítulo 1.
"Uma guerra pode arrasar todo um continente ou destruir
toda uma geração sem, contudo, levantar novas questões
teóricas".[341] Resumindo, mesmo as catástrofes mais
graves não se apresentam, necessariamente, como desafios
intelectuais.
Depois que o governo comunista chinês decidiu, no
final do século XX, tornar a economia de seu país
crescentemente capitalista, o acentuado índice de
crescimento econômico que isso gerou tirou do estado mais
baixo de pobreza, segundo estimativas, um milhão de
chineses por mês.[342] Certamente que qualquer um que
estivesse genuinamente interessado em reduzir a pobreza
não ficaria apenas satisfeito, mas curioso em saber como
tamanho benefício pode ser alcançado. Entretanto,
praticamente nenhum dos intelectuais que se mostram
preocupados com a questão da pobreza esboçou qualquer
interesse verdadeiro pela real redução de pobreza, por meio
dos mecanismos de mercado, ocorrida na China, na Índia ou
em qualquer outro lugar. A coisa não aconteceu nem do
jeito que eles previram nem do jeito que ansiavam, portanto
sua análise foi descartada, como se jamais tivesse
acontecido.
Novamente, o que está em jogo são as atitudes e não
os princípios. Atitudes que se orientam em políticas e
instituições que se baseiam nas visões predominantes entre
os intelectuais, em oposição a outras políticas e instituições
as quais produziram resultados demonstráveis sem,
contudo, refletirem ou sequer considerarem as visões dos
intelectuais.
Jornalistas e outros formadores de opinião que
escrevem para o público em geral encontram incentivos
adicionais e poucas restrições para explicarem o mundo em
termos que tanto seu público quanto principalmente eles
mesmos consideram emocionalmente satisfatórios. Muitas
questões são mal concebidas, não porque sejam muito
complexas para as pessoas entenderem, mas porque uma
explicação mundana é muito menos satisfatória
emocionalmente do que uma explicação que produz vilões
para se odiar e heróis para se exaltar. De fato, a explicação
emocionalmente satisfatória pode ser geralmente mais
complexa do que uma explicação mundana que está mais
em consonância com a verificação dos fatos. Isso é
especialmente válido em relação às teorias conspiratórias.
Talvez o exemplo clássico de uma preferência
disseminada por explicações emocionalmente contagiantes
tenha sido dado durante a reação da mídia norte-
americana, dos políticos e de boa parte do público às
mudanças de preço e à falta, na década de 1970, de
gasolina. Nenhum desses eventos requeria um nível de
sofisticação econômica que ultrapassasse o que é
encontrado em qualquer texto introdutório padrão de
economia. De fato, não é nem mesmo necessário atingir
esse nível de sofisticação a fim de compreender como a
oferta e a demanda operam num produto básico como o
petróleo, negociado em altíssima escala num mercado
mundial gigantesco, sobre o qual até mesmo empresas
apelidadas de Big Oil, nos Estados Unidos, têm pouco ou
mesmo nenhum controle sobre os preços. Também não é
necessária nenhuma inovação nas fronteiras do
conhecimento para se entender como o controle de preços
sobre o petróleo, durante a década de 1970, provocou
escassez de gasolina no mercado, uma vez que controles de
preço tinham gerado escassez de muitos outros incontáveis
produtos em países por todo o mundo, tanto nas sociedades
modernas quanto no Império Romano ou na antiga
Babilônia.[343]
Nenhuma dessas explicações mundanas, todavia,
provou ser tão atraente ou dominante na mídia e na política
quanto a "ganância" das companhias de petróleo. Ao longo
dos anos, numerosos executivos de companhias petrolíferas
norte-americanas foram convocados diante de comissões do
Congresso para ser denunciados em rede nacional de
televisão pelos preços da gasolina, pela escassez ou por
qualquer coisa que representasse a questão do momento.
Os políticos que proclamavam em alto e bom som sua
determinação em "chegar ao fundo da questão" deram
origem a numerosas investigações federais sobre as
companhias de petróleo, acompanhadas de manchetes
garrafais nos jornais e declarações igualmente dramáticas
na televisão. Posteriormente, as frustrantes conclusões
posteriores sobre as investigações apareceram tipicamente
em pequenos artigos enterrados nos cantos dos jornais, ou
de uma forma igualmente velada nos programas de
televisão, ou nem sequer apareceram. Com a catarse
emocional agora terminada, as conclusões mundanas que
confirmavam que nenhuma evidência de conluio ou de
controle de mercado fora encontrada não eram
consideradas mais, contudo, notícia.
Embora os intelectuais existam, em primeiro lugar,
porque supostamente pensem melhor ou porque têm posse
de mais conhecimento do que as pessoas comuns, na
realidade a superioridade mental deles é limitada a uma
faixa estreita dentro do vasto espectro das capacidades
humanas. Os intelectuais são geralmente extraordinários
dentro de suas especialidades, da mesma forma que são os
grandes jogadores de xadrez, os prodígios musicais e
muitos outros. A diferença é que essas outras pessoas
excepcionais raramente imaginam que seus extraordinários
talentos em uma atividade em particular lhes dão a
autoridade para julgar, pontificar ou direcionar toda a
sociedade.
Muitas pessoas, ao longo dos anos, têm acusado os
intelectuais de não terem senso comum. Mas é esperar
demais querer que a maioria dos intelectuais tenha senso
comum, uma vez que todo o papel da vida deles se baseia
no fato de se verem como incomuns, ou seja, em dizer
coisas que são diferentes do que todo o resto está dizendo.
No entanto, qualquer pessoa pode pretender ser original.
Além de determinado ponto, ser incomum significa se lançar
em excentricidades sem sentido ou usar de expedientes
astutos para chocar ou ridicularizar. Politicamente, pode
significar a busca por "soluções" ideologicamente
dramáticas, em vez de buscar negociações prudentes. Não
apenas os movimentos comunistas, mas também os
movimentos nazistas e fascistas exerciam um apelo todo
especial para os intelectuais, como observou o historiador
Paul Johnson:

O flerte e o envolvimento dos intelectuais com a


violência ocorrem com demasiada frequência para
serem desconsiderados como mera abstração. Em
geral, tomam a forma de admiração pelos
"homens de ação", os quais se valem de meios
violentos. Mussolini tinha um número
impressionante de seguidores intelectuais, e não
eram somente compostos por italianos. Em sua
ascensão ao poder, Hitler fazia consistentemente
mais sucesso no campus universitário; seu apelo
eleitoral para os estudantes regularmente
superava seu desempenho diante da população
como um todo. Ele sempre se saía muito bem
diante de professores escolares e universitários.
Muitos intelectuais foram atraídos para os
escalões mais altos do partido nazista e
participaram dos excessos mais grotescos das SS.
Os quatro - Einsatzgruppen - batalhões móveis de
exterminação que formaram a ponta de lança
para a "solução final" de Hitler na Europa do
Leste, tinham, em geral, um alto contingente de
universitários graduados entre seus oficiais. Otto
Ohlendorf, que comandava o batalhão "D", por
exemplo, tinha graduação em três universidades e
um doutorado em jurisprudência. Da mesma
forma, Stalin também tinha legiões de intelectuais
que o admiravam em sua época, assim como
aconteceu com outros homens de violência no
pós-guerra, como Castro, Nasser e Mao Tse-Tung.
[344]
Mais tarde, tivemos muito da mesma história
ocorrendo nos infames campos de matança do Camboja:

Os crimes hediondos cometidos no Camboja de


abril de 1975 em diante, os quais acarretaram a
morte de algo em torno de um quinto e um terço
da população daquele país, foram organizados por
um grupo de intelectuais francófonos de classe
média, conhecidos como Angka Leu (a
Organização Superior). Dentre seus líderes, cinco
eram professores escolares, um era professor
universitário, um era funcionário público e o outro
era economista.[345]

A afirmação de Eric Hoffer de que os intelectuais "não


conseguem atuar em temperatura ambiente"[346] tem
muitos outros exemplos que a confirmam.
Não importa quão dramática ou atraente uma visão
particular pareça, o fato é que todos nós somos obrigados,
fundamentalmente, a viver no mundo da realidade. Quando
a realidade é manipulada para se encaixar numa visão
particular, essa informação manipulada se torna um
instrumento inapropriado para tomar decisões numa
realidade que não perdoa nossas fantasias; por isso,
devemos todos nos ajustar à realidade, pois ela não se
ajustará a nós.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 6
OS INTELECTUAIS E A JUSTIÇA

Embora a ciência tenha condição de evoluir


linearmente, o mesmo não vale para a justiça, na qual
os mesmos insigts e erros estão sempre à espreita.

RICHARD A. EPSTEIN[347]

A justiça é uma das muitas arenas dentro da qual o


conflito ideológico é deflagrado. Assim como a economia de
livre mercado estabelece severos limites ao papel
desempenhado pela visão dos intelectuais, da mesma forma
acontece quando se tem um estrito comprometimento com
o império da lei, especialmente ao se tratar de legislação
constitucional. Todavia, para aqueles cuja visão confere à
elite culta o papel de tomadores de decisão terceirizados e
coletivistas, a justiça precisa sofrer severas alterações a fim
de se conformar a um novo padrão um tanto quanto
diferente do padrão existente adotado pelos que favorecem
o peso muito maior do conhecimento distribuído entre
milhões de pessoas, de cuja vastidão nenhum indivíduo
abarca sequer uma fração. Se a justiça se subordinar ao
conhecimento, à sabedoria e às virtudes de tomadores de
decisão terceirizados, então é fácil conceber que essas
pessoas elaborarão leis que serão "justas", "caridosas" ou
tomadas de um forte senso de "justiça social". Mas uma vez
que esses termos são todos indefinidos e completamente
maleáveis nas mãos dos que detêm domínio retórico, tal
conceito sobre o funcionamento da justiça torna-se
absolutamente incompatível com o tipo de justiça desejada
por todos que querem que ela forneça uma estrutura de leis
confiáveis, dentro da qual decisões independentes possam
ser tomadas por milhões de pessoas, as quais ajustam
constantemente suas negociações em sociedade.
Não pode haver qualquer estrutura judiciária confiável
toda vez que juízes forem livres o suficiente para impor,
como lei, suas próprias noções individuais sobre o que é
justo, caridoso ou está mais de acordo com a justiça social.
Sejam quais forem os méritos ou os deméritos das
concepções particulares de alguns juízes em relação a esses
termos, não é possível que eles sejam conhecidos antes por
terceiros, nem que se apresentem de modo uniforme entre
os juízes e, portanto, não se configuram como lei no sentido
completo do termo, como um conjunto de regras que são
previamente conhecidas por todos aqueles que estão
sujeitos a elas. A Constituição dos Estados Unidos proíbe
explicitamente leis ex post facto, de maneira que os
cidadãos não podem ser punidos ou responsabilizados por
ações que não eram consideradas ilegais quando
ocorreram. Porém, juízes que tomam decisões com base em
concepções próprias sobre o que é correto, caridoso ou está
alinhado às diretrizes de justiça social estão realmente
criando leis depois do fato, as quais são, antes de tudo,
desconhecidas aos que se tornam sujeitos a ela.
Aqui, como em muitas outras situações, o erro fatal
dá-se com o ingresso para além do campo que se domina.
Apesar de os juízes terem conhecimento e habilidades
especializadas para determinar em que ponto a lei limita a
liberdade de ação do indivíduo, isso é completamente
diferente de termos juízes dando palpites sobre como
indivíduos legalmente responsáveis devem exercer a
liberdade de ação que lhes é devida dentro dos limites da
lei. Os indivíduos podem, por exemplo, escolher contrair as
responsabilidades do matrimônio ou apenas se juntar, sem
contraí-las. Mas juízes que premiam o recebimento de uma
"pensão" a um dos parceiros depois de um rompimento,
acabam, de fato, forçando retroativamente as
responsabilidades do casamento sobre pessoas que
resolveram evitá-las quando decidiram viver juntas sem
contraírem as responsabilidades dessa conhecidíssima
instituição.
Em cada um dos casos, as consequências podem se
espalhar para muito além dos casos ou das questões
particulares. A crescente penumbra de incertezas que se
cria em torno de todas as leis sempre que os juízes se
entregam às suas próprias noções, encoraja a criação de
crescentes litígios por parte daqueles que não teriam um
caso real válido sob a lei escrita, mas que podem, contudo,
se tornar capazes de extorquir concessões dos que eles
processam, os quais, por sua vez, nem sempre estão
dispostos a arriscar uma engenhosa interpretação da lei,
dada por determinado juiz.
◆ ◆ ◆

MUDANDO A JUSTIÇA
Certamente, as leis devem mudar na medida em que
as condições na sociedade mudam. No entanto, existe uma
diferença fundamental entre leis que mudam em função do
eleitorado, o qual decide votar em representantes que
promulgarão nova legislação que se tornará lei, não antes
de ser anunciada previamente, e leis alteradas
individualmente por juízes que informam de imediato
àqueles que se colocam diante deles no tribunal como sua
nova interpretação sobre as leis será aplicada à vida deles.
A famosa declaração do juiz da Suprema Corte Oliver
Wendell Holmes, "A vida da justiça não se assenta na lógica,
mas na experiência",[348] foi mais que uma mera avaliação
histórica, pois faz parte de uma filosofia judiciária. Em um
de seus pareceres como membro da Suprema Corte ele
disse:
A tradição e os hábitos da comunidade contam
mais do que a lógica (...) o reclamante deve
esperar até que ocorra uma mudança de hábitos
ou, ao menos, um consenso estabelecido de
opinião civilizada antes que possa ser esperado
que esse tribunal derrube as regras que os
legisladores e a corte de seu próprio estado
apoiam.[349]

Embora se valesse da experiência acumulada das


gerações, expressas nas leis, contra as elucubrações dos
intelectuais, Holmes nunca negou o valor que alguns
"grandes intelectos" tiveram para o desenvolvimento da
justiça, embora ressaltasse que, mesmo "entre os maiores",
"são quase que superficiais diante da totalidade das
experiências".[350] Mas se a evolução sistêmica da justiça,
como concebida por Holmes, trata-se menos de uma
questão de intelecto e muito mais de sabedoria, uma
sabedoria que é destilada da experiência acumulada de
gerações inteiras, em vez de se embasar no brilhantismo ou
nas presunções de uma elite intelectual, então aqueles
intelectuais que buscam mais do que um papel "superficial"
têm poucas opções além de criar um tipo bem diferente de
justiça, um que seja mais apropriado aos seus dotes e às
suas aspirações particulares.
De fato, essa tem sido, por mais de dois séculos, a
mola mestra dos que compartilham a visão do intelectual
ungido. No século XVIII, o marquês de Condorcet concebeu
uma visão sobre a justiça que é oposta àquela entendida
por Holmes, porém consonante com a visão da intelligentsia
do século XX:

As leis são mais bem formuladas e se tornam


menos o produto vago da circunstância e do
capricho se criadas por homens de saber, ainda
que não por filósofos.[351]

Durante a segunda metade do século XX, a visão


sobre a justiça como algo a ser deliberadamente moldado
segundo o espírito dos tempos, da forma como ele é
interpretado pelas elites intelectuais, tornou-se muito
comum entre juízes e nas principais escolas de direito. O
professor Ronald Dworkin, da Universidade de Oxford,
condensou essa abordagem quando descartou a evolução
sistêmica do direito como uma "crença tola"[352] baseada no
"caótico e no desordenado andamento da história".[353] Ao
fazer isso, o professor iguala os processos sistêmicos ao
caos, da mesma forma que fazem aqueles que promovem o
estabelecimento de um planejamento econômico
centralizado, em vez de confiarem nas interações
sistêmicas dos mercados. Em ambos os casos, a preferência
é pela imposição da visão da elite, passando por cima, se
necessário, das visões que abarcam e integram o conjunto
da sociedade, mas como o professor Dworkin também disse,
"uma sociedade mais igual é uma sociedade melhor,
mesmo quando seus cidadãos preferem a desigualdade".
[354]
Portanto, exercendo franca desigualdade política, essa
visão procura impor igualdade social e econômica, o que
permite que uma elite se sobreponha aos interesses gerais
da população. Embora a alegação do professor Dworkin
pareça pouco provável ao dizer que a maioria das pessoas
realmente prefere a desigualdade, o que elas
provavelmente preferem, no entanto, é a liberdade que os
processos sistêmicos conferem, em vez de diretrizes ditadas
por uma elite centralizadora, mesmo quando esses
processos sistêmicos acarretam certa quantidade de
desigualdade econômica.
As leis, em seu sentido completo de regras
conhecidas previamente e aplicadas da forma como estão
escritas, constituem-se em grandes restrições para as
tomadas de decisão coletivistas favorecidas pela
intelligentsia, em especial quando se trata de leis
constitucionais, as quais não podem ser alteradas de pronto
pela maioria do momento. Os que adotam a visão do
intelectual ungido costumam se exasperar diante de tais
restrições e usam seus talentos, incluindo artifícios
retóricos, a fim de afrouxar as restrições das leis sobre os
agentes governamentais. O que vale dizer que eles se
esforçam por esvaziar as leis de sua identidade jurídica,
subordinando-as às tomadas de decisão arbitrárias
fortalecidas pelas elites. De fato, essa já é, há muito tempo,
a direção tomada pelos intelectuais, os quais promovem
tomadas de decisão coletivistas feitas por membros da elite,
ao mesmo tempo que se formam agentes governamentais
que buscam áreas de atuação cada vez mais largas para o
exercício de seus poderes.
◆ ◆ ◆

A CONSTITUIÇÃO E OS TRIBUNAIS
Intelectuais e juízes, tomados individualmente, podem
vir a conceber inúmeras e distintas formas de interpretar a
Constituição. Todavia, existem certos padrões e certas
normas que podem ser trilhados segundo períodos
particulares da história. A era progressista, no início do
século XX, testemunhou o começo de um padrão que se
tornaria dominante, primeiramente entre os intelectuais e
depois nos próprios tribunais. Essas ideias da era
progressista não foram promovidas somente por
acadêmicos ligados ao direito, como Roscoe Pound e Louis
Brandeis, mas também pelos dois únicos presidentes dos
Estados Unidos que foram, mesmo que por poucos anos,
intelectuais, no sentido que atribuímos ao termo, de
pessoas que ganham a vida a partir de seu trabalho
intelectual. Falo de Theodore Roosevelt e de Woodrow
Wilson.
Theodore Roosevelt, ao se referir às suas políticas
como presidente em suas memórias, inclui "minha
insistência na teoria de que o poder executivo se encontra
limitado apenas por restrições e proibições específicas as
quais aparecem na Constituição ou são impostas pelo
Congresso em posse de seus poderes
constitucionais".[355] Essa visão ignora levianamente o que
está escrito na 10a Emenda Constitucional, na qual o
governo federal pode exercer apenas aqueles poderes
conferidos a ele em particular pela Constituição, com todos
os outros poderes ficando ou nas mãos dos estados ou das
próprias pessoas.
Theodore Roosevelt virou a 10a Emenda de ponta-
cabeça, entendendo que todos aqueles poderes que não
haviam sido especificamente proibidos ao presidente eram
de seu uso. Tampouco suas palavras eram meramente
teóricas. Quando Roosevelt autorizou tropas a cercarem
uma mina de carvão durante uma greve, ele disse ao
general encarregado: "Eu lhe ordeno a não dar ouvidos a
nenhuma outra autoridade, nenhuma atenção a qualquer
ordem judicial ou a qualquer outra coisa a não ser meus
comandos". Nesse caso, ele tampouco estava disposto a
escutar um congressista de seu próprio partido, o qual
questionara a constitucionalidade das ações do presidente:
"Exasperado, Roosevelt agarrou Watson pelo ombro e
berrou: 'A Constituição foi feita para o povo e não o povo
para a Constituição'".[356]
Agindo dessa forma, Theodore Roosevelt, de forma
retórica, transformou a si mesmo em "povo", assim como
transformou a Constituição num documento opcional ou de
mera consulta, desafiando por completo o exato propósito
da Constituição como tal, ou seja, a forma legal por
excelência de se impor limites aos poderes governamentais
e a seus agentes.
Woodrow Wilson foi outro presidente intelectual no
sentido aqui definido. Ele se comportava, contudo, de forma
menos dramática, mas se mostrava igualmente impaciente
em relação às restrições determinadas pela Constituição.
Ele introduziu um tema que sobreviveria em muito a sua
presidência ao escrever, quando ainda acadêmico em
Princeton, sobre os "simples dias de 1787", data em que a
Constituição foi adotada, dizendo: "Cada geração de
estadistas olha para a Suprema Corte a fim de que ela
forneça a interpretação que servirá às necessidades de
cada época ".[357] "Os tribunais são o fórum do povo", ele
insistia, escolhendo uma instância diferente do governo
para substituir o papel e as decisões das pessoas. Da
mesma forma que Theodore Roosevelt, ele transformava a
Constituição num mero documento de consulta, relegando
aos fóruns o papel de determinar "a adequação da
Constituição em relação às necessidades e aos interesses
da nação", como a "consciência" da nação nos assuntos
jurídicos. Assim, Woodrow Wilson esperava que os tribunais
se constituíssem em instâncias criadoras de políticas
jurídicas, em vez de se apresentarem apenas como
instâncias judiciárias que aplicam e vigiam leis criadas por
terceiros. Que juízes federais vitalícios não eleitos sejam
chamados de "fórum do povo" é apenas mais um exemplo
de manipulação retórica, transformando uma instituição
especificamente isolada e protegida numa suposta
encarnação dos desejos e das opiniões populares.
Se os tribunais "interpretarem a Constituição
literalmente, como alguns propuseram", Wilson disse, isso
tornaria o documento em "camisa de força”[358]. Wilson
ainda usava outro argumento que no século seguinte seria
repetido por muitos outros, a saber, o papel da "mudança"
em geral e da mudança tecnológica em particular. "Quando
a Constituição foi elaborada não havia sistema rodoviário,
telégrafos, muito menos telefones",[359] ele dizia, já
antecipando muitos outros que usaram o mesmo argumento
por gerações citando aviões, computadores e outras
maravilhas tecnológicas. Wilson não fez qualquer tentativa
para explicar como essas e outras mudanças exigiam,
especificamente, que os tribunais buscassem novas e
distintas interpretações da Constituição. Pode-se levantar
uma longa lista de decisões controversas e marcantes feitas
pela Suprema Corte, desde o caso Marbury versus Madison
até o caso Roe versus Wade, e encontraremos poucos
casos, se algum, nos quais a mudança tecnológica fez
alguma diferença.
Aborto,[360] práticas religiosas nas escolas,[361] prisão
de criminosos,[362] segregação racial,[363] pena capital,[364]
exposição a símbolos religiosos em repartições públicas[365]
e diferenças representativas nas eleições[366] eram todas
questões absolutamente familiares àqueles que escreveram
a Constituição. Apóstrofos melodramáticos sublinhando as
"mudanças" representam o triunfo da retórica, mas têm,
raras vezes, qualquer relevância nos assuntos reais em
questão.
Em sua forma genérica, "mudança" é um dos fatos
mais indiscutíveis da vida para todas as pessoas e seus
respectivos alinhamentos ideológicos. Nem mesmo há
qualquer questão sobre se as leis, incluindo-se por vezes a
Constituição, precisam ser mudadas. Na verdade, a própria
Constituição reconheceu uma necessidade por tais
mudanças, estabelecendo um mecanismo que permite a
criação de novas emendas. Contudo, há uma questão
central que é resolutamente ignorada em toda retórica e em
todo debate envolvendo "mudanças" nos poderes
decisórios, que é: Quem vai decidir?
Afinal de contas, temos corpos legislativos e uma
instância executiva de governo, para não falar de toda uma
galáxia de instituições privadas disponíveis, as quais
também podem lidar com as mudanças. Ficar apenas
repetindo o mantra da "mudança" não oferece qualquer
razão que explique por que os juízes, especificamente,
devem ser os encarregados de fazer as mudanças. É mais
um exemplo de argumentos sem prova, a não ser que a
repetição possa ser considerada prova.
Por vezes, a "dificuldade" em se mudar as leis e
especialmente a dificuldade em se criar emendas
constitucionais é invocada como razão para justificar por
que os juízes devem se tornar os agentes que aceleram as
mudanças. Por exemplo, Herbert Croly, o editor-chefe da
revista New Republic, disse, em seu clássico da era
progressista, The Promise of American Life, o seguinte: "No
final, todo governo popular deveria, depois de uma
deliberação necessariamente estudada, consolidar o poder
para ser capaz de tomar qualquer ação necessária, sempre
que o bem-estar público está em jogo, segundo a maioria
da população". Ele completou: "Isso não é possível com um
governo subordinado ao controle da Constituição Federal".
[367] Ele deplorava o que chamava de "a imutabilidade da

Constituição"[368] Muitos outros, depois dele, avançaram na


tese sobre a dificuldade de se criar emendas
constitucionais. Mas dificuldade não é algo que seja
determinado pela frequência. Se as pessoas não querem
uma coisa em particular, mesmo que a intelligentsia a
considere desejável ou até imperativa, isso não é uma
dificuldade. Isso é democracia.
Se as emendas constitucionais não são muito comuns,
isso, em si mesmo, não se apresenta como evidência sobre
a dificuldade em se emendar a Constituição. Não há
qualquer dificuldade em se levantar de manhã e calçar um
sapato vermelho e outro verde, mas isso não acontece com
muita frequência porque as pessoas simplesmente não
querem que aconteça. Quando elas quiseram, a
Constituição recebeu emendas por quatro vezes em oito
anos, de 1913 até 1920.
Recuando até 1908, Roscoe Pound, que
posteriormente se tornou reitor da Faculdade de Direito de
Harvard, referia-se à situação almejável de "uma
Constituição viva sob o regime da interpretação judicial".
[369] Ele clamava por um "despertar de ativismo jurídico",

apelando ao "jurista sociológico" e declarando que a justiça


"deve ser julgada pelos resultados que alcança".[370] O que
ele chamava de "jurisprudência mecânica" era condenado
por "seu fracasso em responder às necessidades vitais da
vida presente", pois nesse caso a justiça "se transforma
num corpo rígido de regras ", que "é a condição contra a
qual os sociólogos protestam, e protestam com justeza",[371]
ele dizia. Embora Pound retratasse um "abismo existente
entre o pensamento legal e o popular" como motivo para o
alinhamento do primeiro com o último, a fim de se criar um
sistema legal que "esteja moldado ao senso moral da
comunidade", essa noção aparentemente populista se
tornou mero cenário retórico na medida em que ele
colocava a justiça "nas mãos de uma casta progressista e
esclarecida cujas concepções estão na vanguarda e cuja
liderança alça o pensamento popular a níveis superiores".
[372]
Portanto, Roscoe Pound defendia que a elite ungida
alterasse a natureza das leis para conformá-las com as
"necessidades vitais da vida presente",[373] embora isso
estivesse em desacordo com o público na "vanguarda" em
suas palavras, ou seja, as leis e a justiça estariam servindo
a um suposto "senso moral". As leis, segundo Pound,
deveriam também refletir o que ele, sem definir,
repetidamente chamava de "justiça social".[374] Com Pound
e também com Woodrow Wilson, o que o público realmente
queria era desviado, dissipado no cenário, a não ser quando
servia para fomentar uma mobilização por "mudança ".
Pound lamentava que "ainda ficamos remoendo o assunto
sobre a sacralidade da propriedade diante da lei" e de forma
aprovadora citava "o progresso da lei que superava o antigo
individualismo", o qual "não se confina aos direitos de
propriedade".[375]
Dessa forma, em 1907 e 1908 Roscoe Pound
estabeleceu os princípios do ativismo judicial, ultrapassando
a mera interpretação das leis para buscar a implantação de
políticas sociais. Tal abordagem se tornaria dominante cem
anos mais tarde. Ele chegou a antecipar a prática posterior
de se referir às leis estrangeiras como justificativa para
decisões judiciais envolvendo a justiça norte-americana,[376]
um processo que afasta as decisões judiciais para mais
longe ainda da legislação que supostamente elas deveriam
interpretar, para longe do controle dos cidadãos, os quais
estão sujeitos a essas decisões, assim como para bem longe
da Constituição dos Estados Unidos.
De uma forma semelhante, Louis Brandeis falava de
"mudanças revolucionárias" na sociedade, para as quais os
tribunais tinham se tornado "grandemente surdos e cegos",
incluindo a necessidade de criar meios para que os
governos estaduais pudessem "corrigir os males do
desemprego causado pela tecnologia e pelo aumento da
capacidade produtiva”[377] O que habilitaria juízes a se
aventurarem tão além de suas competências jurídicas a fim
de implantarem políticas socioeconômicas não era, contudo,
especificado. Num artigo intitulado "The Living Law" [A Lei
Viva], Brandeis reforçava que houvera "uma mudança em
nosso desejo de justiça, de justiça legal para social".[378]
Porém, quem, afinal de contas, desejava tal mudança,
Brandeis nunca nos esclareceu, embora seus elogios a
Roscoe Pound e a outros teóricos da justiça e juízes
indiquem que esse era o desejo das elites intelectuais, as
quais ansiavam pela ampliação da esfera de sua influência
de poder decisório usando os tribunais como meio.
Brandeis, ass:m como Pound, citava teorias e práticas
estrangeiras no campo do direito como razão para justificar
o motivo pelo qual os juízes norte-americanos deveriam
seguir o mesmo caminho. Também citava a "ciência social"
e seus questionamentos "levantando a questão sobre se o
roubo não era, talvez, culpa da comunidade tanto quanto
seria do indivíduo".[379]
Assim como Pound, Brandeis apontava que os
tribunais "continuavam a ignorar as necessidades sociais
que surgiam nos novos tempos" e, "tomados de
complacência", continuavam a aplicar noções obsoletas
como "a sacralidade da propriedade privada".[380] Como
muitos outros de sua época e de tempos posteriores,
Brandeis tratava os direitos de propriedade como privilégios
especiais para uns poucos afortunados, em vez de um limite
para o poder dos políticos. O ponto culminante da
concepção progressista sobre os direitos de propriedade
veio em 2005, quando a Suprema Corte, no caso Kelo
versus New London, decretou que políticos poderiam se
apoderar da propriedade privada, tipicamente as casas e os
negócios da classe trabalhadora e da classe média, e
redirecioná-la para terceiros, tipicamente incorporadores
que construiriam para o mercado de alto padrão, o qual
aumenta a arrecadação dos cofres controlados pelos
políticos.
Novamente, assim como Pound, Brandeis notava
algumas tendências em direção à "maior apreciação por
parte dos tribunais às necessidades sociais existentes".[381]
Por que os juízes eram habilitados a se transformarem em
árbitros das "necessidades sociais" não era explicado, ou
seja, a questão mais genérica envolvendo as próprias elites,
as quais ultrapassam as fronteiras de sua competência
profissional, não era levantada. Brandeis também invocava
a "justiça social",[382] sem, contudo, defini-la, assim como
Pound fizera antes dele e outros inúmeros ativistas fariam
depois. Ele também justificava o tipo de justiça que ansiava
ilustrando com um exemplo de Montenegro, uma justiça que
"expressasse a vontade popular",[383] embora no sistema de
governo norte-americano a vontade popular seja expressa
por meio de agentes eleitos, em vez de operar por meio de
juízes não eleitos. Isso é tão óbvio que se torna difícil
entender por que a vontade popular nem sequer é
invocada, a não ser como recurso retórico para mascarar
golpes judiciais.
A maior parte dos tribunais da era progressista
rejeitava os argumentos feitos por Roscoe Pound e Louis
Brandeis. A mais notória das rejeições veio no caso Lochner
versus New York, de 1905, que decidiu em favor da
proibição constitucional para que o governo não mudasse os
termos dos contratos privados. Mas com o passar dos
tempos os tribunais foram invadidos por um volume
crescente de doutrinas legais da era progressista, afetando
inclusive a Suprema Corte para a qual Brandeis foi
designado. Os tribunais não subverteram somente o caso
Lochner, mas também outros precedentes constitucionais.
Ao se tomar reitor da mais prestigiada faculdade de direito
do país, em Harvard, Roscoe Pound também encabeçou
uma virada no pensamento jurídico dos Estados Unidos.
Assim como ocorre em muitas outras questões, os
intelectuais tendem a desconsiderar, em vez de responder,
às objeções feitas por aqueles com pontos de vista opostos
aos seus. John Dewey, por exemplo, referia-se a uma
"adoração sentimental e verbal pela Constituição",[384] mais
uma vez reduzindo o valor das ideias contrárias às suas,
tidas como meras emoções, retirando-se, portanto, a
necessidade de fornecer uma contra-argumentação
substantiva.
Embora existam muitas controvérsias de natureza
judicial sobre questões particulares, a controvérsia mais
fundamental a rondar esse campo é a que versa sobre
quem deve controlar as leis e quem deve alterá-las. Os
intelectuais norte-americanos favorecem, desde pelo menos
a metade do século XX e de forma esmagadora, a expansão
do papel dos juízes, que, segundo eles, devem ultrapassar o
âmbito de aplicar as leis criadas por terceiros, refazendo-as
para que "estejam apropriadas com os novos tempos", o
que vale dizer subordinando a justiça aos interesses da
visão predominante da época em questão, a visão do
intelectual ungido.
Sempre que a Constituição dos Estados Unidos se
apresenta como barreira para o pleno exercício da função
expandida dos juízes eles são exortados a "interpretar" a
Constituição, entendida como mero conjunto de valores a
ser aplicado da forma que os juízes julgarem mais
conveniente, atualizando-a sempre que acharem
necessário. Nesse caso, a Constituição não é vista como um
conjunto de instruções específicas a ser seguido, e é
exatamente isso que significa "ativismo judicial", embora a
manipulação retórica tenha conseguido confundir esse
sentido com outros.
◆ ◆ ◆

ATIVISMO JUDICIAL
Os que defendem um ampliado raio de ação para as
"interpretações" dos juízes a fim de se adequarem às
supostas necessidades ou ao "espírito" da época, em vez de
se manterem presos ao significado estrito da lei quando
promulgada, parecem, implicitamente, supor que os juízes
ativistas inclinarão o sentido das leis na direção favorecida
por seus defensores, ou seja, orientarão a justiça na direção
da visão do intelectual ungido. Mas o ativismo judicial é,
contudo, um cheque em branco no qual se pode explorar
qualquer direção, em qualquer questão, dependendo das
predileções de cada juiz em particular.
Embora o presidente do Supremo, Earl Warren, tenha
feito um uso ampliado das interpretações a fim de banir a
segregação racial nas escolas públicas em 1954, quase
exatamente um século antes desse acontecimento o
presidente do Supremo, Roger Taney, também fizera uso
ampliado das interpretações para dizer, no caso Dred Scott,
que um homem negro "não tinha os mesmos direitos aos
quais um homem branco estava ligado".[385] Foram os
dissidentes daquele caso que insistiram em que se seguisse
a lei conforme fora escrita e conforme os precedentes
legais, mostrando que negros livres haviam exercido direitos
legalmente reconhecidos, em várias partes do país, antes e
depois da adoção da Constituição.[386]
Os intelectuais tanto da era progressista quanto de
tempos posteriores podem ter lido corretamente as
tendências de sua época, para que o ativismo judicial
movesse a justiça em direção aos objetivos e aos valores
dos intelectuais. Porém, isso não é nem inerente nem
inevitável. Se o princípio da livre condução judicial e da livre
elaboração das leis se torna estabelecido e aceito,
abarcando todo o espectro ideológico, então o balanço do
pêndulo ideológico, no transcorrer do tempo, pode detonar
uma guerra judicial de cada um contra todos, na qual o
conceito fundamental de justiça pela lei é, em si mesmo,
solapado juntamente da disposição das pessoas para se
prenderem aos ditames arbitrários dos juízes. Enquanto
isso, tomados pelo sofisma dos "resultados", os juízes
acabam ridicularizando o próprio conceito de justiça sob o
regime da lei, incluindo a Constituição dos Estados Unidos.
Um caso clássico de sofística judicial a serviço de
"resultados" sociais desejados'' foi o de 1942, Wickard
versus Filburn, o qual estabeleceu um precedente e uma
lógica que se estenderam para muito além das questões do
caso em particular. Sob a validade da Lei de Ajuste Agrícola,
de 1938, o governo federal tinha o poder de controlar a
produção e a distribuição de muitos produtos agrícolas. A
justificação legal vinha da autoridade do Congresso em
regular o comércio interestadual, como exposto na
Constituição. Ainda assim, a lei foi aplicada a um fazendeiro
de Ohio que plantava o que a Suprema Corte caracterizou
como "uma pequena produção de trigo"[387] para seu
consumo e para o de seus animais de criação. Esse
fazendeiro plantou algo em torno de 12 acres a mais do que
o Departamento de Agricultura permitia, mas ele desafiou a
autoridade federal a fim de que ela dissesse o que ele
deveria plantar em sua fazenda, uma vez que aquele
produto não participava do comércio interestadual ou
mesmo do próprio estado.
A Suprema Corte determinou que a autoridade federal
se impunha sobre "toda aquela produção que não fora
determinada para o comércio, mas completamente
destinada para o consumo na fazenda".[388] A
fundamentação da Suprema Corte foi a seguinte:

Um dos propósitos fundamentais da lei em


questão foi o de expandir o preço de mercado do
trigo e, para esse fim, limitar o volume excedente
que poderia, dessa forma, afetar o mercado. É
quase impossível negar que um fator que
compreende tamanho volume e variação, como o
trigo destinado para consumo doméstico, acabe
afetando substancialmente as condições de preço
e de mercado. Isso pode acontecer porque,
estando pronto para entrar no mercado, esse trigo
se projeta sobre ele e, caso seja induzido por uma
alta de preços, tende a entrar no mercado e
equilibrar o aumento nos preços. Mas caso,
suponhamos, nunca entre no mercado, ele será
direcionado para o consumo interno do agricultor
que o produz, o qual, de outra forma, recorreria ao
mercado para satisfação de seu consumo interno.
Portanto, nesse sentido, o trigo produzido para
uso doméstico acaba competindo com o trigo
comercializado no mercado.[389]

Dessa forma, todo o trigo que não era de forma


alguma comercializado também ficou sujeito ao controle
federal, dentro da cláusula que regulamenta o comércio
interestadual na Constituição. Sob tamanha flexibilidade da
autoridade da lei, praticamente qualquer coisa poderia ser
denominada como "comércio interestadual", o que, de fato,
acabou se tornando uma frase mágica para justificar
qualquer expansão do poder federal ao longo dos anos,
dentro de um espírito contrário ao da 103 Emenda, a qual
limita a autoridade federal. Em 1995, houve certa
consternação em alguns lugares quando a Suprema Corte
votou em 5 a 4 o caso U.S. versus Lopez, determinando que
portar uma arma perto de uma escola não caracterizava
"comércio interestadual", de forma que o Congresso não
tinha autoridade para banir tal prática. O que tornou a
votação tão apertada e o resultado surpreendente foi o fato
de ele rejeitar a artimanha amplamente praticada dos
tribunais em expandir o significado do termo "comércio
interestadual", a fim de dar cobertura e regulamentar quase
tudo que o Congresso decida controlar.
Ativistas judiciais não apenas regulamentam
excessivamente, mas podem também ir em direção
contrária. Um exemplo clássico disso foi o caso United
Steelworkers of America versus Weber. A seção 703(a) da
lei dos Direitos Civis de 1964 tornava ilegal que um
empregador "discriminasse qualquer indivíduo em relação a
suas compensações, seus termos, suas condições ou seus
privilégios empregatícios em função de raça" ou outras
várias características.
A seção 703(d) proibia mais especificamente tal
discriminação em "qualquer programa oferecido no intuito
de fornecer aprendizado e treinamento". No entanto, um
empregado branco, chamado Brian F. Weber, não recebeu
autorização para participar de um programa de treinamento
cuj as vagas haviam sido estabelecidas pelo critério de
idade, muito embora empregados negros mais jovens
tivessem sido admitidos, uma vez que listas de idade por
raça e quotas raciais haviam sido estabelecidas em
separado.
Que a situação realmente feria o sentido básico da lei
não foi explicitamente negado no parecer da Suprema
Corte, escrito pelo juiz William J. Brennan. Contudo, o juiz
Brennan rejeitou "uma interpretação literal" da lei dos
Direitos Civis, preferindo buscar o "espírito" da lei na
preocupação fundamental do Congresso que foi "amparar a
miséria do negro em nossa economia".[390] Uma vez que o
suposto propósito fundamental da lei não foi para proteger
os brancos contra discriminação racial, a lei foi tida como
não se aplicando a Brian F. Weber, que perdeu o caso. O
aparecimento de tal decisão diante da clara disposição da
lei que representa justamente o contrário foi comparado às
grandes escapadas do ilusionista Houdini, na opinião
divergente do juiz William H. Rehnquist.[391]
Em todos esses três exemplos - Dred Scott, Wickard v.
Filburn e Weber - as decisões refletiram os "resultados"
almejados, em vez de a lei escrita. São exemplos clássicos e
concretos de ativismo judicial. Infelizmente, o significado da
frase vem sendo ofuscado nos últimos anos e, por isso,
necessita ser analisado de perto.
"Ativismo judicial" é uma expressão idiomática cujo
significado não pode ser apreendido pelos termos em
separado das duas palavras, da mesma forma que o
significado da exclamação "cachorro-quente!" não pode ser
determinado por definições separadas de "cachorro" e
"quente". Entretanto, em tempos recentes algumas pessoas
tentaram redefinir ativismo judicial em função de quão ativo
um juiz tem sido em declarar leis ou ações governamentais
como inconstitucionais. Todavia, a Constituição em si
apresenta-se como uma limitação aos poderes do
Congresso, assim como limita os poderes de outros ramos
do governo. Os juízes são ainda vistos como guardas fiéis
para invalidar legislações que são contrárias à Constituição,
desde o notório caso Marbury versus Madison, em 1803, de
forma que a frequência com que desempenham essa tarefa
não depende somente deles, mas também da frequência
com que terceiros excedem os poderes que lhes são
conferidos pela Constituição.
O verdadeiro problema do ativismo judicial é sobre a
questão que envolve a fundamentação das decisões dos
juízes. Pergunta-se, então, se essas decisões se sustentam
em leis criadas por outros, incluindo as assembleias
constituintes, ou se, ao contrário, são os próprios juízes que
embasam suas decisões em suas concepções sobre "as
necessidades da época" e de "justiça social" ou em outras
considerações que estão além do que está escrito na lei ou
nos precedentes legais.
Há outra expressão idiomática usada por juízes que se
limitam a seguir o que está escrito na lei. Falo do termo
conhecido como "autocontenção judicial ", ou seguir a
"intenção original" das leis. Aqui, novamente, o significado
desses termos não pode ser compreendido nas palavras em
separado. Autocontenção judicial significa exercer a justiça
de acordo com leis criadas por terceiros, em vez de se
basear em avaliações próprias, no caso dos juízes, sobre o
que seria melhor para cada uma das partes, num caso em
particular ou para a sociedade em geral.
Oliver Wendell Holmes, juiz da Suprema Corte,
exemplificou essa filosofia legal quando disse que seu papel
como juiz "é verificar se o jogo está sendo jogado segundo
as regras, gostando eu delas ou não".[392] Ele também
disse: "O critério de constitucionalidade não depende de
acreditarmos que a lei é feita para o bem público"[393] Mas
na medida em que determinado juiz pratica a
autocontenção judicial, ele torna a lei existente o critério
supremo na decisão dos casos, o que geralmente implica
que tal juiz tem papel ativo em impugnar leis que violam as
restrições da Constituição, a qual se apresenta como "a lei
suprema da pátria".
Portanto, não é o volume de atividade judicial que
distingue o ativista judicial do praticante da autocontenção
judicial, uma vez que essas são expressões idiomáticas que
significam, na verdade, diferentes abordagens sobre o
exercício da função do juiz. Juízes que baseiam suas
decisões em considerações socioeconômicas, dentre outras,
seguindo os passos indicados por Roscoe Pound ou Louis
Brandeis, são os verdadeiros ativistas judiciais no sentido
original do termo, sem contar se eles declaram muitas ou
poucas leis como inconstitucionais.
Por exemplo, embora o juiz William O. Douglas tenha
sido um ativista judicial clássico, no sentido de só dar
ouvidos à Constituição ao legislar em função de suas
preferências ideológicas, como no famoso caso Griswold v.
Connecticut, em que sentenciou fundamentado em
"emanações" provenientes das "penumbras" da
Constituição, ele, não obstante, cedia aos legisladores,
quando estes promulgavam leis de cunho social liberal,
usando uma linguagem cara ao coração dos defensores da
autocontenção judicial, dizendo que a corte não deveria ser
uma "superlegislatura", mas deveria deixar a política social
a cargo do Congresso e dos representantes estaduais.[394]
Por outro lado, sempre que as leis existentes
expressavam uma política social que para ele era
reprovável, o juiz Douglas não hesitava em intervir e
declará-las inconstitucionais, como fez no caso Griswold v.
Connecticut, mesmo que ele não dispusesse de nada
melhor para fundamentar sua sentença do que as
"emanações" que, de alguma forma, ele vislumbrou como
provenientes das "penumbras" da Constituição,[395] as quais
nem mesmo a mente mais brilhante da área de direito
constitucional, dentro ou fora dos tribunais e da Corte,
jamais constatara.
O momento máximo do ativismo judicial deu-se
durante o período Warren na Suprema Corte, nas décadas
de 1950 e 1960, quando o presidente da Suprema Corte
Earl Warren, acompanhado por uma maioria de ideologia
favorável a ele, decidiu fazer política social tanto na área
civil quanto na área criminal, quase que invariavelmente
sob os aplausos da intelligentsia da mídia e do mundo
acadêmico. Todavia, na medida em que outros juízes com
uma visão mais conservadora do próprio papel chegavam à
Suprema Corte, iniciando-se com a presidência de Warren
Burger, em 1969, muitos da intelligentsia começaram a
usar, com malícia, as antigas reclamações sobre o ativismo
judicial contra os novos juízes, dizendo quão ativistas esses
juízes eram ao declarar a inconstitucionalidade das leis ou
ao reparar precedentes legais absurdos estabelecidos por
ativistas judiciais, como os da época de Warren.
O jornalista liberal Michael Kinsley acusou o juiz do
Supremo Antonin Scalia de fazer ativismo judicial ao dar um
parecer no Tribunal de Apelação, o qual, nas palavras de
Kinsley, anulava "uma parte importante da legislação
passada por grande maioria nas duas casas do Congresso e
assinada por um presidente popular",[396] como se
existissem fatores externos que conferissem mais ou menos
constitucionalidade às leis. Linda Greenhouse, do New York
Times, chamou a decisão do juiz Scalia, que invalidava a
aplicação das leis do comércio estadual sobre casos de
porte de arma próximo às escolas, como exercício de "poder
bruto" da Suprema Corte, pois naquele caso, U.S. versus
Lopez, o juiz "invalidou uma lei que as duas casas do
Congresso e o presidente dos Estados Unidos haviam
aprovado",[397] como se outras leis também anuladas pela
Suprema Corte com base em suas inconstitucionalidades,
desde o caso Marbury versus Madison de 1803, também
não tivessem sido devidamente passadas pelo Congresso.
Sob o título "Desprezando o Congresso'', um artigo
publicado na Michigan Law Review disse que "a Suprema
Corte, no caso Lopez, deu um passo importante para o
desenvolvimento de sua própria visão de ativismo judicial,
na qual o Congresso recebe menos respeito por seu grande
trabalho"[398] De forma semelhante, o senador Herb Kohl
denunciou a decisão da Suprema Corte sobre o caso Lopez
como "amostra de ativismo judicial que ignora a segurança
das crianças a fim de respeitar ninharias legais". Todavia, o
Washington Post adotou uma postura mais equilibrada, a
qual foi expressa em seu editorial sobre o caso:

Baseando-se somente no comentário do senador,


ninguém adivinhará que a maioria dos estados já
proíbe o porte de armas nas áreas próximas às
escolas. De fato, Alfonso Lopez, o adolescente de
Santo Antonio cuja acusação foi revertida neste
caso, fora inicialmente preso sob acusações
estaduais que foram retiradas apenas quando o
governo federal assumiu o processo. Claramente,
a invalidação dessa lei não deixa as crianças desta
nação mais vulneráveis em suas salas de aula.
Todo caso pode, contudo, forçar os legisladores
federais a uma reflexão importante, pois terão de
pensar duas vezes antes de se precipitarem a
legislar sobres áreas problemáticas sem antes
considerarem "ninharias" legais envolvendo
questões constitucionais entre os estados.[399]
O senador Kohl não foi, de forma alguma, o único
legislador a discutir o caso em termos de seus "resultados"
sociais, em vez de respeitar os termos das limitações
constitucionais sobre o poder federal. O senador Arlen
Specter disse: "Eu acho que o crime é um problema
nacional" e "as armas e as drogas representam os principais
instrumentos para o exercício do crime". Todavia, o liberal
professor de direito Laurence Tribe viu, nesse caso, além
dos critérios condicionados aos "resultados", como foi
relatado pelo Chicago Sun-Times:

"O Congresso forçou seus limites um tanto quanto


imprudentemente", disse Laurence H. Tribe,
professor de direito da Universidade de Harvard, o
qual notou que os legisladores não conseguiram
sustentar uma ligação entre comércio
interestadual e os perigos advindos de armas
próximas às áreas escolares. Ele disse que a
sentença revelava que "a atual Suprema Corte
considera os limites estruturais ao poder do
Congresso com muito mais seriedade do que as
pessoas imaginavam (...) o que para os liberais e
para os pragmáticos parece aterrador.[400]

A nova definição de ativismo judicial incluía não


apenas a oposição aos caprichos do Congresso, mas
também a alteração de precedentes judiciais. Nas palavras
de Linda Greenhouse, o caso Lopez "foi a primeira vez, em
sessenta anos, que a Suprema Corte invalida uma lei
federal sob alegação de que o Congresso excedeu sua
autoridade constitucional na aplicação indevida das leis de
comércio interestadual".[401] Todavia, os juízes prestam
juramento para defender a Constituição e não para
defender os precedentes. Caso contrário, os casos Dred
Scott e Plessy v. Ferguson teriam se tornado cláusula
pétrea.
O caso Lopez não foi, de forma alguma, o único a
mobilizar ondas de protesto vindas da intelligentsia
denunciando a última Suprema Corte de fazer "ativismo
judicial", embora ela só tivesse feito seu trabalho ao
considerar algumas leis e políticas legislativas como
inconstitucionais. Em 2001, o professor Cass Sunstein, da
Universidade de Chicago, lamentava que: "Estamos
atravessando agora um intenso período de ativismo judicial
de direita". Segundo ele, isso tinha produzido, dentre outras
coisas, um "judiciário não democrático",[402] já que, de fato,
um tribunal de alçada com o poder para invalidar leis
aprovadas por agentes eleitos é algo inerentemente não
democrático. Mas seguindo esse raciocínio, então a queixa
do professor Sunstein se aplicaria também à própria
Constituição dos Estados Unidos, em vez de recair sobre
aqueles que exercem suas funções sob a validade da
Constituição.
Ainda assim, Sunstein reclamou novamente em 2003,
dizendo que "A Suprema Corte de Rehnquist derrubou pelo
menos 26 leis do Congresso desde 1995" e seria, segundo
ele, "culpada de ativismo ilegítimo", pois dentre outras
coisas, teria derrubado "um bom número de leis da ação
afirmativa", assim como derrubou "legislações federais
consideradas excessos do Congresso". Segundo o professor
Sunstein, a Suprema Corte "proibiu o Congresso de legislar
com base em suas próprias visões" com o respaldo da 14a
Emenda.[403] Mas se o Congresso pode determinar a
extensão de seus próprios poderes valendo-se da 14a
Emenda ou de qualquer outra provisão constitucional, então
a Constituição perde todo o seu significado como limite para
o poder do Congresso e para o poder governamental em
geral.
Numa abordagem semelhante! um artigo publicado
na New Republic e intitulado "Hiperativos: Como a Direita
Aprendeu a Amar o Ativismo Judicial" alegava que os juízes
conservadores "se tornaram reflexo exato dos ativistas
judiciais que passaram toda”[404] a carreira atacando".
Usando essa nova definição de ativismo judicial, um escritor
do New York Times acusou o presidente do Supremo, John
Roberts, de ter apoiado o "ativismo judicial mesmo que isso
significasse passar por cima do Congresso e dos estados".
[405] Um editorial posterior do New York Times declarava que

"existe uma disposição para se derrubar as leis do


Congresso" e que isso seria "o critério objetivo mais
comum"[406] do ativismo judicial. Essa redefinição põe de
lado toda a questão central, que é verificar se as leis que
foram invalidadas eram, de fato, consistentes ou
inconsistentes com a Constituição dos Estados Unidos. Mas
a questão central é repetidamente descartada quando se
diz que a Suprema Corte é "ativista" sempre que ela se
opõe a apoiar uma nova legislação ou precedentes
particulares. A nova definição de ativismo judicial se
constitui numa base puramente numérica, a partir da qual
se decide quem é e quem não é ativista judicial. O professor
Sunstein é um exemplo, ao basear suas acusações em
quantas "leis federais por ano" a Suprema Corte declarou
como inconstitucionais.[407] Essa noção se espalhou, vinda
da intelligentsia até chegar ao universo da política. Dessa
forma, o senador Patrick Leahy usou essa nova definição de
ativismo judicial ao insistir que "os dois juízes mais ativistas
que temos agora são os juízes Thomas e Scalia, os quais
derrubaram leis para depois escreverem outras no lugar das
leis do Congresso, recorrendo a tal prática mais do que
quaisquer outros juízes da atual Suprema Corte".[408]
Embora esses dois juízes sejam muito mais identificados
com o exercício da autocontenção judicial, foi necessário
apenas um golpe retórico para se virar a mesa e rotulá-los
de ativistas conservadores. Ao se borrar a linha que separa
ativismo judicial de autocontenção judicial, não apenas se
anula a crítica feita aos juízes ativistas progressistas
(liberais), mas também se permite que ganhem pontos
extras ao se invocar equivalência moral entre eles e os
juízes que praticam autocontenção judicial, os quais passam
então a ser chamados de "ativistas" ao simplesmente se
redefinir o termo.
O ativismo judicial genuíno, assim como muitos outros
fenômenos sociais, pode ser mais prontamente
compreendido ao se examinar os incentivos e os obstáculos
que se colocam diante dos envolvidos. Um dos obstáculos
sobre a ação dos juízes, e que claramente foi enfraquecido
ao longo dos anos, é a desaprovação de seus pares tanto no
judiciário quanto entre os acadêmicos da área nas escolas
de direito. Ativismo judicial em prol de litigantes ou de
causas favorecidas pela visão da intelligentsia recebe hoje
boa aceitação, e em muitos casos a celebração ou a
exaltação dos juízes ativistas, ou seja, os incentivos,
favorecem o ativismo judicial.
Os juízes em geral, assim como acontece com os
intelectuais, tornam-se famosos somente quando saem de
seu domínio profissional, onde são competentes, para se
aventurarem como reis-filósofos, decidindo sobre questões
sociais, econômicas ou políticas. Nem mesmo os
admiradores do presidente do Supremo Earl Warren
tentaram retratálo como um grande erudito em direito.[409]
Ele e outro presidente do Supremo, Roger Taney, um século
antes, tornaram-se famosos ao darem pronunciamentos
sensacionalistas sobre a sociedade, fundamentados em
bases sociológicas, em vez de legais, as quais embasavam
suas notórias sentenças. Sabendo-se que pronunciamentos
que ultrapassam o campo das devidas especialidades e
competências se tornaram praticamente um pré-requisito
para se conquistar destaque público, não surpreende que
tantos juízes, agindo de forma semelhante a tantos
intelectuais, dizem, em nossos dias, tantas coisas sem
sentido algum.
◆ ◆ ◆

AUTOCONTENÇÃO E "INTENÇÃO ORIGINAL"


A "autocontenção judicial" foi por vezes resumida em
outra expressão idiomática: seguir "a intenção original" das
leis. Todavia, muitos, na intelligentsia, prenderam-se à
palavra "intenção" a fim de alegar que é difícil ou mesmo
impossível discernir exatamente o que aqueles que
escreveram a Constituição, ou a legislação para aquele
propósito, realmente intencionavam, especialmente depois
de muitos anos. Assim, o professor Jack Rakove da
Universidade Stanford disse:

Estabelecer a intenção que se encontra atrás de


qualquer ação é uma tarefa ardilosa [e] a tarefa
cresce em complexidade geométrica quando
tentamos atribuir intenção a grupos de pessoas,
especialmente homens, que estavam atuando há
dois séculos. Esses homens nos deixaram
registros incompletos sobre seus motivos e suas
preocupações e também chegaram às suas
decisões por meio de um processo em que os
debates sobre os princípios se misturavam aos
debates envolvendo explícita barganha.[410]

A palavra-chave em tudo isso e a falácia central nessa linha


comum de raciocínio estão na palavra "atrás". Os
profissionais que praticam a autocontenção judicial buscam
compreender e aplicar a lei escrita como ela se apresenta,
como um conjunto de instruções para juízes e cidadãos,
desconsiderando as motivações, as crenças, as esperanças
ou os medos que possam ter se colocado atrás da
confecção da lei. Até mesmo a lei mais simples, como a que
estabelece o limite de velocidade de 65 milhas por hora,
pode ser expandida numa complexa questão que assumirá
dimensões irrespondíveis caso seja olhada em termos de
atitudes, de valores, etc. Isso acontece sempre que se
procura considerar o que está atrás das intenções dos que
criaram essa lei, em vez de entender a lei como uma
instrução explícita prontamente compreendida.
Olhar as leis segundo as intenções subjetivas dos
que as escreveram não é apenas uma abordagem mais
complicada, mas é uma abordagem que busca ou alega ser
capaz de discernir os julgamentos de valor ou o "espírito"
por trás das leis, o que dá aos juízes espectros
interpretativos muito mais amplos e, dessa forma, muito
mais oportunidades de ajustar as leis para que se
conformem "às necessidades da época" e "à justiça social,
ou a qualquer outro sinônimo que seja o predileto de cada
juiz em particular. Mas os críticos da autocontenção judicial
projetam dificuldades tamanhas sobre outros que não estão
olhando por trás das leis, mas que se limitam a exercer uma
tarefa muito mais direta de ler as leis como instruções
explícitas, em vez de tê-las como afirmações gerais de
valores.
Como o juiz Antonin Scalia coloca: "Apesar das
repetidas afirmações dizendo o contrário, realmente não é
nossa intenção legislar em bases subjetivas". O que ele está
de fato buscando é o "significado original do texto", e
complementa: "Na verdade, com frequência ou mesmo na
maioria das vezes isso é fácil de discernir e simples de
aplicar".[411] O juiz Scalia não está sozinho nesse
entendimento. Desde William Blackstone, na Inglaterra do
século XVIII, até Oliver Wendell Holmes e Robert Bork, nos
Estados Unidos do século XX, todos os que procuram se
ligar ao sentido original das leis foram muito claros ao dizer
que não estavam falando sobre eventos psicológicos
ocorrendo dentro dos recessos internos na mente dos
sujeitos que elaboram as leis.
Uma coisa é certa, os votos que conferem autoridades
política, legal e moral das leis são votos sobre o que é
publicamente determinado diante dos que votam. Em
outras palavras, ninguém votou considerando o que estava
por trás da mente de alguém. Além do mais, ninguém pode
obedecer ou desobedecer ao que está por trás da mente de
outrem.
Segundo Blackstone,[412] é o significado
publicamente conhecido das palavras das leis, "a ser
compreendido em sua forma mais usual e reconhecida" na
época em que foi escrito, que determina como um juiz
deveria interpretá-lo. Da mesma forma, para Holmes a
interpretação legal sobre o que o legislador disse não
significa tentar "entrar em sua mente".[413] Holmes disse:
"Nós não investigamos o significado da legislação, mas dos
estatutos".[414] Numa carta ao jurista britânico Sir Frederick
Pollock, Holmes disse: "Não damos a mínima para o
significado do autor".[415] A função do juiz, segundo Holmes,
é "ler a própria língua de forma inteligente, e uma
consideração sobre as consequências entra em cena, caso
isso aconteça, apenas quando o significado das palavras
usadas está aberto para questionamentos racionais".[416] De
forma semelhante, o juiz Robert H. Bork afirmava que os
juízes deveriam dar suas sentenças "segundo a Constituição
histórica".[417]
Apesar de tais afirmações simples e diretas de
defensores e seguidores da autocontenção judicial, os quais
seguem uma longa tradição histórica, temos por outro lado
muita manipulação retórica usada para expandir a função
judiciária para dimensões impossíveis de ser administradas.
Isso acontece ao se alterar a questão direta para outra que
busca discernir motivos subjetivos, crenças, esperanças e
medos que estariam por trás da confecção das leis. O
professor Rakove, por exemplo, disse que na época da
Convenção Constitucional em 1787, James Madison
"abordou os membros da Convenção tomado por uma
grande paixão intelectual",[418] discorrendo sobre seu
"medo" de certas políticas ligadas ao direito de propriedade
e à religião,[419] que ele "descreveu privadamente" as
emendas constitucionais de forma particular.[420]
O professor Ronald Dworkin também se posicionou
abertamente contra a intenção original das leis com base no
entendimento que vê os "eventos legais", na mente dos
legisladores ou escritores da Constituição, como categorias
difíceis ou impossíveis de ser discernidas[421] tornando
ainda "mais evidente o fato de que não temos qualquer
conceito fixo sobre a intenção de grupo" nem mesmo
qualquer forma de decidir "quais aspectos do estado mental
dos indivíduos têm relevância para a intenção grupal”.[422]
O juiz da Suprema Corte, William J. Brennan, falou sobre as
"evidências esparsas ou ambíguas da intenção original" dos
elaboradores da Constituição.[423] Sob o mesmo
entendimento, outros destacaram que "frequentemente as
afirmações públicas não refletem as intenções reais".[424]
Tamanhas tentativas em se alterar a questão do
significado concreto das leis, transformando-as em busca
esotérica para se descobrir o que estava por trás da criação
da lei, são em geral usadas por aqueles que adotam
interpretações judiciais que ultrapassam o que a lei diz
explicitamente, indo, por vezes, na direção contrária do que
está impresso na lei escrita, como fez o juiz William J.
Brennan no caso Weber. O professor Ronald Dworkin
defendeu a decisão de Weber dizendo que "a questão sobre
como o artigo VII deve ser interpretado não pode ser
respondida apenas ao se encarar as palavras que o
Congresso usou".[425] O jogo retórico usado na expressão
"encarar" as palavras, em contraste com as
reinterpretações aventureiras, opõe-se agudamente com a
afirmação de Holmes sobre a simples leitura inteligente da
língua.
Para Dworkin, o significado do caso Weber foi de que
esse caso representava "mais um passo nos esforços da
Suprema Corte para o desenvolvimento de uma nova
concepção sobre as necessidades de igualdade na busca
por justiça racial".[426] Por que os juízes teriam o direito de
se antecipar a tais decisões e legislar com base em seus
próprios e novos conceitos sobre questões sociais, sob o
pretexto de estarem interpretando a lei, ao mesmo tempo
que caminhavam na direção oposta ao que a lei
expressamente diz, é uma questão que nunca é levantada e
muito menos respondida.
Dizer que é difícil ou mesmo impossível discernir o
que realmente significavam as leis é muitas vezes usado
como prelúdio para se tomar decisões que ignoram os
significados mais evidentes, como aconteceu no caso
Weber, e com isso forçar a interpretação a partir de noções
hoje na moda entre os círculos da elite, tomando tais
desvios como lei. Dworkin e outros intelectuais defendem
abertamente tais práticas, o que torna o alegado
agnosticismo que representam, em relação à "intenção",
uma cortina de fumaça que visa a ganhos práticos. Para
todos aqueles que não estão dispostos a seguir o significado
original das leis, a facilidade ou a dificuldade em se
descobrir o significado é irrelevante, exceto como manobra
para distrair os adversários.
A Constituição foi um documento escrito de forma
bastante simples e direta, e quando usava frases do tipo "a
religião estabelecida", por exemplo, fazia referência a algo
bastante conhecido pelas pessoas que já tinham vivido sob
uma igreja instituída, a Igreja da Inglaterra. Proibir o
estabelecimento de uma religião não tinha nada a ver com
uma "parede de separação" entre a Igreja e o Estado, o que
não aparece na Constituição, mas é uma frase proferida por
Thomas Jefferson, que nem sequer estava no país quando a
Constituição foi escrita. Não havia nada de esotérico na
frase "uma religião estabelecida". Por mais de cem anos
depois que a Constituição foi escrita, isso nunca significou
que seria ilegal ostentar símbolos religiosos nas repartições
do governo, embora um número crescente de pessoas, em
tempos posteriores, tenha desejado que o significado
tivesse sido esse, e apesar de um número ainda maior de
juízes modernos estarem dispostos a fazer valer esse
desejo.
A mesma coisa acontece com frases do tipo "devido
processo legal" ou "liberdade de expressão", as quais
tinham uma longa tradição na justiça britânica antes que
esses termos fossem usados na Constituição dos Estados
Unidos por pessoas que tinham, havia muito pouco, deixado
de ser súditos ingleses. Portanto, elas não estavam
cunhando novas frases para novos ou esotéricos conceitos
cujos significados os juízes teriam que adivinhar.
A autocontenção judicial não envolve apenas a
preservação das cláusulas constitucionais e das cláusulas
da legislação que estão sob a autoridade do Congresso ou
dos estados, mas compreende também a relutância em
anular decisões judiciais anteriores. Sem tal relutância, as
leis se tornariam tão maleáveis com a mudança dos quadros
dos tribunais que os cidadãos encontrariam grandes
dificuldades em planejar suas realizações econômicas,
dentre outras atividades que tomam tempo, até alcançarem
resultados positivos, pois se tornaria impossível predizer
como se comportariam os novos membros da magistratura
e quais seriam suas preferências na condução das leis.
É desnecessário dizer que tal relutância em se anular
decisões judiciais anteriores não pode assumir um caráter
absoluto, mas quando ocorre, tem que ser balizada em
julgamentos cuidadosos e muito bem fundamentados. Se
algum acadêmico publicasse um artigo ou um livro
mostrando de forma convincente que o caso Marbury v.
Madison foi equivocadamente decidido em 1803, mesmo
assim nenhum tribunal de hoje se inclinaria a anular aquela
decisão, sobre a qual dois séculos de precedentes foram
construídos e sob a qual todo tipo de projetos e
comprometimentos foram realizados durante esses séculos,
baseando-se no sistema legal que foi desenvolvido no
despertar do caso Marbury v. Madison.
Ainda assim, ironicamente muitos dos mesmos
intelectuais que apoiaram de modo apaixonado a derrubada
de uma longa história de precedentes, durante as décadas
de 1950 e 1960, da mesma forma condenaram
amargamente tribunais mais recentes e mais conservadores
que podaram alguns dos precedentes estabelecidos por
juízes liberais, em especial nas decisões tomadas durante a
era da Corte de Warren. Dessa forma, sob a manchete "A
Suprema Corte Perde sua Autocontenção", um editorial do
New York Times foi contrário à decisão do caso Lopez
dizendo: "Ao decidir que falta ao Congresso o poder de
tornar ilegal o porte de armas dentro de um raio de
trezentos metros próximos a uma escola, a Suprema Corte
deu uma virada histórica e infeliz, questionando sem
necessidade leis já estabelecidas".[427] Citando o juiz
Stephen Breyer o jornal Times enfatizou "o valor da
autocontenção judicial", definido por eles como "submeter-
se ao Congresso, pois ele mostrou haver uma base racional
na relação entre a proibição decretada e as leis de comércio
interestadual". Mas submeter-se àqueles cujos poderes a
Constituição especificamente limitou seria ridicularizar as
limitações. Se for o caso de o Congresso decidir sobre a
magnitude de seus próprios poderes, que propósito pode
haver nas limitações constitucionais sobre os poderes do
Congresso ou do governo federal?
Apesar de toda a inconsistência que essas reações da
intelligentsia apresentam, quando vistas como comentários
em jurisprudência, elas se tornam perfeitamente
consistentes quando vistas como parte dos "resultados
sociais" de um tribunal engajado, uma vez que a
intelligentsia preferiu claramente a política de resultados
sociais das decisões da Corte da época de Warren aos
resultados sociais das muitas decisões das cortes
posteriores. Porém, decisões judiciais guiadas por resultados
sociais baseados nas preferências dos juízes, em vez de
guiadas pela lei escrita, acabam produzindo um bom
número de efeitos colaterais sobre a justiça das leis, vista
como uma estrutura fundamental dentro da qual os
membros da sociedade podem planejar suas ações. O efeito
mais óbvio é que ninguém é capaz de prever quais
resultados sociais os juízes se inclinarão a favorecer no
futuro, deixando até mesmo as mais claras leis escritas
cercadas por uma neblina de incertezas a anunciar
crescentes litígios.
O oposto do juiz socialmente engajado é o juiz que
sentenciará a favor de litigantes que ele possa porventura
desprezar, se o caso assim determinar. Por exemplo, o juiz
da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes votou a favor de
Benjamin Gitlow no caso Gitlow vs. New York, em 1925,
comentando depois, numa carta a Harold Laski, que votara
respeitando "o direito de um cretino em idolatrar a ditadura
do proletariado".[428] De forma parecida, Holmes divergiu no
caso Abrams vs. United States em favor da defesa cujas
visões ele caracterizou em seu parecer como "um credo que
acredito ser o da ignorância e da imaturidade".[429] Como
ele chegou a dizer para Laski: "Tenho aversão à maioria das
coisas em favor das quais eu decidi favoravelmente".[430]
Por outro lado, ele podia sentenciar contra litigantes os
quais ele próprio via de forma favorável. Em outra carta a
Laski, Holmes disse que tivera que "decidir contrário a um
argumento muito bem exposto por dois homens de cor - um
bem negro - que até mesmo em sua maneira de falar era
melhor, posso dizer, que a maioria dos discursos brancos
que ouvimos".[431] Holmes não estava tomando partido ou
buscando "resultados" sociais, mas estava somente
aplicando a lei.
◆ ◆ ◆

RESULTADOS ADVINDOS DAS DOUTRINAS POR


"RESULTADOS"
Os direitos fundamentais dos indivíduos, garantidos
pela Constituição dos Estados Unidos e pelas tradições
legais que remontam a uma época anterior à própria
Constituição, podem ser perdidos em decorrência de
sentenças judiciais que se orientam na busca de resultados
sociais particulares de acordo com uma visão predominante.
Mesmo ao se admitir que a nebulosa expressão "justiça
social" possa ter um significado discernível, ela parece
indicar, contudo, que a mera justiça formal não é o
suficiente, mas precisa ser suplementada e sobreposta por
um tipo de justiça baseado em resultados sociais desejados.
De qualquer forma, o regime das leis, "um governo baseado
nas leis e não na vontade dos homens", apresenta-se como
antítese da política jurídica "socialmente engajada", pois
nessa última os resultados sociais serão determinados
segundo as preferências de indivíduos particulares, os quais
receberão poder para selecionar e apanhar resultados
desejáveis, em vez de se guiarem pelas regras conhecidas
as quais se aplicam tanto aos cidadãos quanto aos juízes.
Talvez o ponto máximo de uma justiça socialmente
engajada tenha sido alcançado durante as deliberações dos
"representantes em missão" na França revolucionária da
década de 1790. Esses representantes eram membros
especiais da Convenção que governava o país, escolhidos
em missão para fazer justiça, e foram encarregados de
corrigir os equívocos, com autoridade para agir "acima de
todas as leis e poderes existentes":

Eles podiam dar ordem de prisão, criar tribunais


revolucionários, conduzir julgamentos e montar as
execuções na guilhotina. Receberam o poder de
anular, estender ou cercear a autoridade de
qualquer lei. Podiam também impor decretos ou
proclamações sobre qualquer questão. Tinham
autoridade para fixar preços, exigir bens de
terceiros, confiscar propriedades, coletar tributos.
Podiam expulsar qualquer governo existente ou,
caso achassem necessário, dissolver qualquer
corpo governamental, substituindo-os por comitês
nomeados por eles mesmos.[432]

Isso representou o ponto máximo de uma justiça


socialmente engajada. Embora hoje ninguém esteja mais
defendendo a criação de corpos de missionários
representativos, esse é o caminho tomado por muitos
juristas que insistem numa justiça de "resultados" em
detrimento das leis estabelecidas. De fato, alguns juízes, em
particular, designaram pessoas, logo chamadas de
"mestres", para que determinassem e vigiassem a condução
das políticas e as operações nas prisões, nas escolas e em
outras instituições governamentais, chegando ao ponto de
ordenar aos legisladores estaduais que criassem novos
impostos.
Guiar-se segundo os resultados parece ser algo
especialmente questionável num tribunal ao qual faltam,
intrinsecamente, os mecanismos institucionais para se
monitorar quais são, de fato, os resultados das decisões
judiciais, na medida em que as repercussões se espalham
por todos os lados e por toda a sociedade e de uma forma
contrária àquela que os juízes imaginaram. Alguns
resultados têm sido, de fato, diametralmente opostos
àqueles que o ativismo judicial engajado procurava obter.
◆ ◆ ◆

O ÔNUS DA PROVA
Talvez nada seja mais fundamental na verdadeira
tradição legal norte-americana do que a incumbência ao
ônus da prova para a promotoria, nos casos criminais, e
para o acusador, nos casos civis. No entanto, a militância e
o zelo por "resultados" têm levado ao reposicionamento do
ônus da prova, que recai então sobre as costas do acusado,
o qual é obrigado a provar sua inocência em determinadas
ações legais. Esse princípio, ou falta de um, já aparecia nas
leis antitruste antes de ser aplicado aos casos envolvendo
os direitos civis.
Por exemplo, a lei Robinson-Patman tornou ilegal a
discriminação de preços, exceto sob certas circunstâncias.
Mas uma vez que um caso prima facie fez com que preços
diferentes fossem cobrados para diferentes tipos de
clientes, o acusado teve então que provar onde estavam as
exceções, como as diferenças de custo no serviço a esses
clientes, que se aplicavam ao caso. Uma vez que a
aparentemente simples palavra "custo" oculta, no entanto,
complexidades que podem manter contadores, economistas
e advogados atados em disputas intermináveis, a questão
pode então se tornar insolúvel tanto para o acusador quanto
para o acusado, ficando impossível provar, de forma
conclusiva, o litígio. Isso significa que o acusado ou perderá
casos como esse ou os negociará fora dos tribunais, nos
termos determinados pela outra parte, devido à
impossibilidade de provar sua inocência.
O problema mais fundamental, todavia, é que o ônus
da prova foi colocado sob a responsabilidade do acusado, na
contramão de tradições legais centenárias aplicadas nos
casos em geral.
O mesmo princípio de justiça engajada, que coloca a
incumbência ao ônus da prova sobre o acusado, reapareceu
mais tarde nos casos judiciais envolvendo as leis dos
direitos civis e suas políticas. Aqui, mais uma vez, tudo o
que se precisa é de um caso prima facie, ou seja, uma
acusação que não chega sequer a cumprir o padrão da lei
civil que determina a preponderância da evidência,
baseando-se simplesmente na "representação" estatística
das minorias ou das mulheres nos quadros de emprego de
uma empresa, para que então se coloque o ônus da prova
sobre os ombros do empregador, o qual se vê obrigado a
provar que não agiu com discriminação. Nenhuma
obrigação de prova, qualquer que seja, é exigida sobre
aqueles que pressupõem uma igualitária ou aleatória
distribuição de realizações ou de recompensas entre grupos
sociais ou raciais na ausência de discriminação, apesar de
haver enorme quantidade de evidências tanto históricas
quanto contemporâneas mostrando uma completa
desproporção nas realizações entre indivíduos, grupos e
nações.[433]
Um empregador que contratou, pagou e promoveu
pessoas desconsiderando raça ou sexo pode, no entanto,
achar impossível ou mesmo proibitivamente caro refutar
acusação de discriminação. Por exemplo, a Comissão por
uma Oportunidade Igual de Emprego (E.E.O.C.) moveu uma
ação de discriminação sexual contra a rede de lojas Sears,
em 1973, baseando-se somente em dados estatísticos, sem
ser capaz de apresentar uma mulher sequer trabalhando ou
já tendo trabalhado em qualquer uma das centenas de lojas
da Sears por todo o país, como prova de que fora
discriminada. Mesmo assim, essa ação se arrastou pelos
tribunais por quinze anos, custando US $20 milhões à Sears
em custos processuais antes que a Sétima Corte de
Apelação finalmente sentenciasse em favor da empresa.
Sabendo-se que pouquíssimos empregadores têm tal
volume de dinheiro para gastar em ações legais ou nem
têm como bancar a publicidade negativa gerada por
acusações desse tipo, as quais consomem longos anos, a
maioria acaba fazendo acordos fora dos tribunais, tentando
minimizar os danos, e esses numerosos acordos são então
citados na mídia e em outros meios como prova de quanta
discriminação ainda existe. Outra vez, tudo isso remonta à
prática de se colocar o ônus da prova sobre o acusado.
Tivesse o ônus da prova sido colocado sobre a E.E.O.C., é
bem provável que o caso, em primeiro lugar, nunca tivesse
chegado aos tribunais, na medida em que aquela comissão
não conseguiu apresentar uma mulher sequer que
afirmasse ter sido discriminada. Tudo o que havia eram
estatísticas, as quais não se encaixavam no preconceito,
predominante na intelligentsia, de que todos os grupos
tenderiam a ser proporcionalmente representados na
ausência de discriminação.
Outro caso semelhante e que seguiu um longo
caminho até chegar à Suprema Corte, demorando quinze
anos mais uma vez desde o julgamento original, foi decidido
em favor do empregador, mas posteriormente derrubado
quando o Congresso passou uma nova lei restabelecendo a
incumbência do ônus da prova sobre o acusado. O caso
envolveu a empresa Wards Cove Packing, baseada nos
estados de Washington e Oregon, mas com uma fábrica de
enlatamento de peixes mais ao norte, no Alasca. Uma vez
que a empresa recrutava seu corpo de gerentes onde os
escritórios centrais da empresa se localizavam e sua mão
de obra operacional onde o enlatamento dos peixes era
processado, isso levou a um quadro de gerentes composto,
em sua maioria, de brancos contratados em Washington e
no Oregon e uma mão de obra predominantemente não
branca no Alasca. Porém, esse fato estatístico se
transformou em base para acusações de discriminação. O
Nono Tribunal de Apelação favoreceu a acusação de
discriminação, mas a Suprema Corte invalidou a decisão e
reabriu o caso para reconsiderá -lo. Isso disparou
uma tempestade de críticas que vieram da mídia e do
mundo acadêmico.
A repórter do New York Times que cobre a Suprema
Corte, Linda Greenhouse, disse que a sentença do caso
Wards Cave v. Atonio "alterou o ônus da prova numa
questão central, passando dos empregadores para os
empregados, que acusam sofrer discriminação",[434]
avaliando quais seriam as repercussões sobre os grupos
sociais e os respectivos resultados sociais, em vez de se
preocupar com os princípios e as categorias jurídicas -
reclamantes e réus - nos quais o ônus da prova é, por
séculos, deixado para o reclamante, o qual é obrigado a
provar suas acusações. Mas, segundo Linda Greenhouse, a
decisão do caso Wards Cove "retirou dos empregadores uma
parte do ônus sobre práticas que mostram ter impacto
discriminatório".[435]
O que a sra. Greenhouse resolveu chamar de
"impacto discriminatório" era a diferença entre a realidade
demográfica dos empregados e da população, o que vale
dizer, fatos comuns no mundo real, mas que não se
encaixam na visão do intelectual ungido. Assim como em
outros contextos, a visão foi tida como axiomaticamente
verdadeira, de forma que os desvios estatísticos que saem
de uma uniforme ou aleatória distribuição dos membros de
grupos raciais que compõem a mão de obra de determinada
empresa são tidos como evidência de comportamento
tendencioso do empregador, uma suposição que passa
então a ser responsabilidade do empregador refutar para
que não seja condenado por violar uma lei federal.
O colunista do New York Times Tom Wicker acusou
igualmente a Suprema Corte por sua "radical decisão no
caso Ward Cove" de "reverter o padrão da lei estabelecida"
ao "designar o ônus da prova ao empregado que moveu
ação contra seu empregador, acusando-o de práticas de
contratação e administração empregatícias
discriminatórias". Antes disso, segundo Wicker, a Suprema
Corte, "ao se manter fiel ao costume legal, colocava o ônus
da prova sobre os ombros da parte mais capaz de mostrar
que os procedimentos em litígio eram justos e necessários,
é claro, do empregador". Outra vez, os precedentes legais
foram tidos como essenciais, mesmo que o precedente legal
desse caso, Griggs v. Duke Power, tenha durado muito
pouco em comparação ao caso Plessy v. Fergunson, quando
foi derrubado pelo caso Brown v. Board of Education.
Nada no artigo de Wicker dava aos leitores qualquer
pista de que colocar o ônus da prova sob responsabilidade
do acusado compreendia rara exceção nas tradições legais
que existem há séculos, exceção para certos casos cujos
"resultados" sociais assumiam uma importância capital e os
acusados, em particular o mundo dos negócios, estavam em
baixa com a intelligentsia, fosse nos casos antitruste sob a
lei Robinson-Patman, fosse nos casos dos direitos civis.
Quando o Congresso elaborou uma legislação a fim de
reverter o caso Wards Cave, o então presidente dos EUA,
George H. W. Bush, ameaçou impor um veto. Diante do
impasse, Tom Wicker disse: "Ele propõe tornar mais fácil
para que empregadores discriminem e endureçam o
tratamento aos empregados, geralmente membros de
minorias, e não tenham que responder legalmente por suas
ações".[436]
Os editoriais do New York Times posicionaram-se de
forma semelhante. O caso Wards Cave, diziam, "colocava
novas e pesadas obrigações aos reclamantes pelos direitos
civis”.[437] Mais uma vez, não era passada, aos leitores, a
mínima indicação sobre a realidade jurídica em questão. O
que o New York Times chamava de "pesadas obrigações aos
reclamantes pelos direitos civis" eram as mesmas
obrigações às quais a maior parte de outros reclamantes, e
na maior parte dos casos que não envolvem os direitos
civis, é obrigada a obedecer há séculos, com base no
princípio legal de que os acusados não são obrigados a
provar sua inocência.
Igualmente, uma coluna no Washington Post usou
como critério a lógica dos "resultados" sociais, criticando
que a decisão do caso Wards Cave "tornou muito mais difícil
para os reclamantes ganhar ações como essa".[438] Um
editorial no Boston Globe, de forma semelhante, reclamou
que a decisão do caso "tornava virtualmente impossível que
empregados vencessem ações de discriminação".[439] Outro
editorial do mesmo jornal se queixava dizendo que o ônus
da prova "agora mudava para o reclamante"[440] como se
esse fosse um lugar incomum para o ônus da prova estar.
A resposta dos acadêmicos não foi menos enfática
nem menos tendenciosa em sua apresentação dos fatos,
além de não ter sido menos comprometida com os
"resultados" sociais. O professor Ronald Dworkin, de Oxford,
escreveu sobre a "brutal disparidade" entre as raças, no
caso Wards Cave, ao que ele chamou de "discriminação
estrutural" e de "ônus impossível" colocado sobre as costas
dos reclamantes.[441] O professor Paul Gewirtz da
Universidade Yale disse: "A Suprema Corte deu duros golpes
em dois dos mais importantes mecanismos para se integrar
a força trabalhadora dos Estados Unidos".[442] Certamente
que seu foco se dirigia aos resultados sociais quando
mencionava "a integração dos trabalhadores dos Estados
Unidos", e não se dirigia, é claro, ao funcionamento
apropriado da justiça. O professor Reginald Alleyne, da
Faculdade de Direito da UCLA, não se mostrou menos
engajado com a justiça de "resultados" e atribuiu a decisão
do caso Wards Cave a juízes que "simplesmente detestam a
legislação dos direitos civis".[443] O professor Howard Eglit,
da Faculdade de Direito Chicago-Kent, caracterizou a
decisão do caso Wards Cove como um "tortuoso tratamento
revisionista sobre o ônus da prova".[444]
Outro professor de direito, Alan Freeman, da State
University de Nova York, em Buffalo, também usou a
inadequada noção de seus pares, batizando os juízes da
Suprema Corte que decidiram o caso de "apologistas
reacionários da ordem existente", os quais merecem nosso
"desprezo".[445] O professor de direito Candace S. Kovacic-
Fleischer, da American University, pediu ao Congresso para
que "restaurasse a alocação normal do ônus da prova, ou
seja, se o reclamante prova uma prática empregatícia ou
práticas que causam um impacto desproporcional, o ônus
então deve ser mudado para o empregador, que passa a ser
obrigado a provar uma necessidade operacional para tal
prática".[446] Mas essa alocação do ônus da prova foi
"normal" somente nos casos dos direitos civis e em alguns
casos antitruste, os quais, por sua vez, foram na contramão
de séculos de prática habitual da justiça anglo-americana.
A incumbência do ônus da prova colocado sobre os
empregadores não foi algo determinado pela lei de Direitos
Civis de 1964. Pelo contrário, durante os debates no
Congresso, os quais precederam a promulgação da lei, o
senador Hubert Humphrey e outros líderes que lutavam
para passar essa legislação repudiaram explicitamente a
ideia de que disparidades estatísticas seriam suficientes
para forçar um empregador a provar que não estaria agindo
de forma discriminatória.[447] O senador Joseph Clark, outro
defensor da lei dos Direitos Civis de 1964, disse que a
Comissão para uma Oportunidade Igual de Emprego,
estabelecida pela lei, "fica obrigada a provar, em posse de
fortes evidências, que a desqualificação empregatícia e
outras ações discriminatórias trabalhistas foram provocadas
por questões raciais".[448] Portanto, ele falava de fortes
evidências, como em outros casos de ações civis, não em
caso prima facie, cujo ônus da prova foi mudando, então,
para o empregador, como mais tarde se tornou padrão de
resultado das sentenças judiciais.
Foi na decisão da Suprema Corte no caso Griggs v.
Duke Power, de 1971, que se alterou o ônus da prova para o
empregador. Nesse caso, havia critérios de contratação -
testes de inteligência e diplomas de segundo grau - que
ocasionavam um "impacto desigual" sobre as minorias de
trabalhadores. A decisão do caso Griggs, que ocorrera
menos de vinte anos antes da decisão do caso Wards Cove,
tornou-se "lei estabelecida", a partir da qual Tom Wicker via
a decisão do caso Wards Cove como um desvio "radical".
Estranhamente, parece que esses jornalistas,
acadêmicos e seus pares ideológicos sabem que é sempre a
discriminação de empregadores racistas que se apresenta
como razão para as disparidades estatísticas de trabalho,
de forma que é apenas uma questão de tornar isso claro
para os tribunais para que eles cheguem às mesmas
conclusões. O que isso significa é que esses membros da
sociedade, os quais são vistos desfavoravelmente pelos
intelectuais ungidos, não terão os mesmos direitos que a
população em geral, muito menos os privilégios concedidos
aos que os ungidos veem de modo favorável. A ideia de que
a lei serve para tornar as coisas mais duras ou mais fáceis
para um segmento selecionado da sociedade, para que ele
vença ações movidas contra outros segmentos, passa pela
cabeça de muitos ou mesmo da maioria dos intelectuais que
criticaram a decisão do caso Wards Cove. Eles queriam
"resultados" e o Congresso lhes deu o que queriam com a
Restauração da Lei dos Direitos Civis de 1991, que colocou o
ônus da prova de volta sobre as costas do empregador, ao
contrário da Lei dos Direitos Civis de 1964.
◆ ◆ ◆

DIREITOS DE PROPRIEDADE
Em nenhum outro lugar os resultados das sentenças
de cunho social foram mais radicalmente opostos ao que
fora contemplado no início do que nos casos envolvendo o
direito de propriedade, que se constitui um grande campo
de batalha envolvendo visões sociais contrárias. À medida
que ideias como a de "uma Constituição viva" foram sendo
aplicadas às condições atuais, sempre que alguns juízes as
consideraram apropriadas, tornando-se dominantes a partir
da segunda metade do século XX, os direitos de
propriedade foram reduzidos, no melhor dos casos, a uma
condição subalterna. Como o estimado economista urbano
Edwin S. Mills afirma: "Os tribunais praticamente aboliram a
5a Emenda em sua aplicação às propriedades urbanas".[449]
Os direitos de propriedade são vistos em termos
radicalmente distintos entre os que adotam a visão trágica
e os que integram a visão do intelectual ungido. Os que têm
uma visão trágica sobre os defeitos e as fraquezas humanas
veem os direitos de propriedade como limitações
necessárias para restringir o poder dos agentes de governo
que possam, porventura, apropriar-se dos pertences da
população em geral, seja em seu próprio benefício, seja em
benefício de políticas de doação para outros agentes cujo
apoio os políticos anseiam. Tais práticas, tomadas pelos
detentores do poder, foram muito comuns durante os
despotismos em épocas antigas, não sendo também
desconhecidas nas democracias modernas. As pessoas que
fundaram os Estados Unidos da América, escrevendo sua
Constituição, viam a proteção aos direitos de propriedade
como salvaguarda para a proteção de outros direitos. O
direito de livre expressão, por exemplo, perderia todo o
sentido caso a crítica às autoridades levasse a retaliações
do governo na forma de expropriações dos pertences
pessoais.
Os economistas costumam ver os direitos de
propriedade como algo essencial para ( 1 ) manter a
tomada de decisões econômicas nas mãos de indivíduos
privados, ou seja, fora do controle dos políticos, e (2) para
manter os incentivos dos mesmos indivíduos, os quais
investirão seu tempo, seus talentos e seus recursos movidos
pela expectativa de poderem colher e reter os frutos de
seus esforços. Todavia, os que adotam a visão do intelectual
ungido, na qual tomadores de decisão terceirizados e
coletivistas são vistos como mais bem-equipados do que as
pessoas em geral para tomarem decisões acertadas, veem
os direitos de propriedade como obstáculos à realização de
muitos objetivos sociais desej áveis por meio da ação
governamental. Segundo os que comungam de tal visão, os
direitos de propriedade simplesmente protegem os
indivíduos afortunados o bastante para que se façam donos
de substanciosa propriedade à custa dos interesses mais
amplos da sociedade. O professor Laurence Tribe, da
Faculdade de Direito de Harvard, por exemplo, disse que os
direitos de propriedade representam simplesmente um
benefício individual em favor de uma "riqueza
entrincheirada”.[450]
Em outras palavras, os direitos de propriedade são
vistos em função de seus resultados individuais, em vez de
serem vistos em função de processos sociais facilitados por
um sistema de propriedade privada de tomada de decisão
econômica. Por outro lado, os direitos de livre expressão
quase nunca são vistos, em termos tão estreitos, como
benefícios de interesse especial para uso de uma pequena
parcela da população, justamente os que se fazem
escritores profissionais, jornalistas e ativistas políticos. Pelo
contrário, os direitos de livre expressão são vistos como
direitos essenciais ao funcionamento de todo o sistema de
governo representativo, embora os direitos de propriedade
sejam raras vezes vistos pelos intelectuais como também
essenciais ao funcionamento da economia de mercado. Pelo
contrário, os direitos de propriedade são atacados de
pronto, vistos como proteções especiais para os
economicamente privilegiados, segundo o professor Tribe e
muitos antes dele, como Roscoe Pound, Louis Brandeis, e
inúmeros outros.
Essas pessoas que desconsideram os direitos de
propriedade não ficam restritas à promoção de suas
próprias visões, mas em geral censuram e filtram a visão
oposta sobre os direitos de propriedade ou mesmo a
distorcem, fazendo dela a defesa de uma existente "riqueza
entrincheirada",[451] de forma que boa parte do público não
fica sequer sabendo qual é a questão em jogo, tornando sua
resolução irrelevante. Uma vez que os direitos de
propriedade ficam reduzidos, pela manipulação retórica, a
um mero benefício especial para uns poucos privilegiados,
esses direitos são vistos como menos importantes do que
outros benefícios para a sociedade em geral. Segue-se,
dessa linha de raciocínio, que os direitos de propriedade
têm com frequência que ceder diante de outros direitos
toda vez que a questão se coloca como "direitos de
propriedade versus direitos humanos".[452]
Tais argumentos, todavia, fazem sentido somente
quando inseridos no quadro ideológico da visão do
intelectual ungido. Por outro lado, não existe qualquer
embate entre direitos de propriedade e direitos humanos
porque (1) a propriedade em si não tem direitos e (2) são
apenas os seres humanos que têm direitos. Qualquer
embate é dado, na realidade, entre duas partes contrárias
compostas por seres humanos. Os direitos de propriedade
são barreiras legais contra políticos, juízes e burocratas que
arbitrariamente buscam se apropriar do patrimônio de
alguns seres humanos, transferindo-os para outros.
Aqueles que veem nos tomadores de decisão
coletivistas tanto o direito quanto o dever de promover a
"distribuição de renda", tornando a sociedade mais igual ou
mais justa, consideram os direitos de propriedade uma
barreira que não deve impedir o avanço do objetivo que se
sobrepõe a ela. À medida que as ideias dos intelectuais
progressistas se tornaram dominantes nas faculdades de
direito e nos tribunais, durante a segunda metade do século
XX, os direitos de propriedade foram sendo solapados por
decisões judiciais e a capacidade dos agentes
governamentais em se sobreporem aos direitos dos
proprietários ganhou terreno, justificada com base no
interesse público, supostamente em ação para contemplar
os interesse dos menos afortunados. Todavia, aqui como em
toda parte, ao se encaixarem na visão do intelectual, certas
noções carecem de extraordinária atenção de verificação
para se averiguar se elas também se encaixam nos fatos.
Em outras palavras, a noção de que o solapamento dos
direitos de propriedade beneficia aquelas pessoas com
baixa renda, as quais não possuem bens próprios de peso, é
tida como axiomática, em vez de urna hipótese a ser
testada empiricamente.
A suposição implícita de que o enfraquecimento dos
direitos de propriedade beneficiaria as populações carentes
em detrimento dos mais ricos, acaba por se verificar, em
inúmeros casos, como exatamente o oposto. Tendo mais
liberdade para confiscar a propriedade alheia, os agentes do
governo, em todos os níveis, acabaram promovendo
demolições maciças de áreas habitacionais da classe
trabalhadora e de baixa renda em programas de "renovação
urbana", os quais substituíram o antigo padrão desses
bairros, estabelecendo um nível mais alto de padrão de
habitação, construindo-se shoppings e outras atrações para
os membros mais afluentes da sociedade.
A quantidade acrescida de impostos que tais áreas
"remodeladas" são obrigadas a pagar forneceu óbvios
incentivos para que líderes políticos se beneficiassem à
custa da população desalojada. Essa população desalojada
é composta, em sua maior parte, por minorias e pessoas de
baixa renda, fundamentalmente negros. A consumação
máxima da tendência legal em se reduzir os direitos de
propriedade em função dos interesses de ação do governo
ocorreu em 2005 no caso Kelo v. New London, no qual a
cláusula constitucional dizendo que a propriedade privada
poderia ser usada para "uso público" foi expandida para
significar que tal propriedade poderia ser tomada para um
"propósito público". Enquanto o uso público incluiria coisas
como a construção de um reservatório de água, uma ponte
ou outra coisa do tipo, "propósito público" pode, por sua
vez, significar quase que qualquer coisa, e no caso Kelo
significou confiscar as casas das pessoas para repassar a
propriedade a incorporadores que construiriam uma série
de edifícios de alto padrão.
Um benefício ainda mais direto para os ricos e os
poderosos, em detrimento das pessoas de baixa ou de
média renda, provém do alargado raio de ação que os
agentes do governo têm para se sobrepor aos direitos de
propriedade em nome da criação de "espaços abertos",
"crescimento inteligente" e outras formas de impor
restrições arbitrárias e politicamente empacotadas sob uma
gama de rótulos retoricamente atraentes. Banir a
construção de casas ou de outras estruturas em
comunidades de alto padrão ou em torno delas reduz muito
a capacidade de as pessoas comuns viverem em tais
comunidades, tanto por causa da redução física de terrenos
disponíveis para construção quanto por que os preços
disparam a níveis absurdos toda vez que a área de
construção é artificialmente reduzida.
A subida de preços de moradia a duplicar, triplicar ou
mais toda vez que aparecem restrições de construção não
afeta, por outro lado, aqueles que já moram em
comunidades de alto padrão (exceto os locadores), mas de
fato beneficia esses proprietários com a valorização de suas
moradias num mercado que foi artificialmente restringido.
Os poderes arbitrários das comissões de planejamento
habitacional, dos conselhos de zoneamento e das agências
ambientais para restringir ou proibir o uso da propriedade
privada, conferem a esses organismos a condição de
barganhar concessões dos que buscam construir qualquer
coisa sob a jurisdição que controlam. Essas concessões
podem ser extraídas tanto de forma ilegal, com subornos
pessoais, quanto legal, ao forçar o proprietário para que
ceda parte da propriedade para a jurisdição local. Por
exemplo, na cidade de San Mateo, na Califórnia, a
aprovação para o desenvolvimento de um programa de
construção habitacional foi condicionado aos construtores
sob os seguintes termos: eles tinham que ceder às
autoridades locais "12 acres de terra nos quais seria
construído um parque público", além de contribuir com US$
350 mil para o desenvolvimento da "arte pública" e vender
15% das casas abaixo do preço de mercado.[453]
O presidente do Supremo, John Marshall, disse que o
poder para taxar é o poder para destruir. O poder de
regulamentação arbitrária é o poder de extorquir, da
mesma forma que o poder de colocar o ônus da prova sobre
os ombros do acusado.
No caso da moradia, as "condições" extorquidas dos
construtores são finalmente pagas pelas pessoas que
compram ou alugam as casas ou os apartamentos
construídos. A erosão dos direitos de propriedade permitida
pelos tribunais afeta até mesmo as pessoas que não têm
propriedade, mas que são obrigadas a pagar aluguéis mais
caros ou que ficam impossibilitadas de comprar ou alugar
em comunidades onde o preço de moradia foi
artificialmente inflacionado, por meio de restrições
habitacionais que se mostram restritivas até mesmo para a
grande maioria das pessoas, exceto para os ricos e
poderosos, estabelecendo, assim, um cordão sanitário em
torno das comunidades de alto padrão, isolando-as das
pessoas de renda média ou baixa. Sejam lá quais forem os
"resultados" buscados, em princípio, por aqueles que
exortam o enfraquecimento dos direitos de propriedade, são
esses os resultados realmente alcançados.
Mesmo aquelas pessoas de média ou baixa renda que
já vivem dentro de áreas que neutralizam os direitos de
propriedade com restrições arbitrárias de construção podem
ser obrigadas a saírem com a subida astronômica dos
preços dos aluguéis. Em San Francisco, por exemplo, a
população negra foi cortada pela metade, desde 1970, e em
outros municípios das áreas costeiras no estado da
Califórnia não é raro encontrar um declínio da população
negra em dez mil habitantes ou mais, entre os anos de 1990
e 2000, segundo o censo desse período,[454] mesmo
considerando o aumento populacional desses locais durante
o mesmo período.
Um dos muitos problemas advindos de decisões
socialmente engajadas é que os resultados reais nunca
ficam restritos aos resultados particulares que os juízes
tinham em mente, além de serem em geral imprevisíveis.
Considerando-se a instauração dos precedentes legais, os
"resultados" dessas decisões são poucas vezes reversíveis,
não importando o quão distante os resultados reais fiquem
em relação ao que era esperado. Reversão do ônus da prova
e enfraquecimento dos direitos de propriedade são apenas
dois exemplos, entre muitos.
◆ ◆ ◆

CRIMINALIDADE
A visão habitual sobre a criminalidade, entre muitos
dos intelectuais, tem uma história de no mínimo duzentos
anos, mas ganhou destaque e ascendência somente a partir
da segunda metade do século XX. A alegação de Louis
Brandeis, afirmando que a "ciência social moderna"
começara a questionar se a comunidade como um todo não
seria tão responsável pelo roubo quanto o próprio ladrão,
ignorava o fato de que imputar o crime à sociedade era uma
noção já bastante comum entre os que partilhavam da visão
do intelectual ungido, uma tradição que remontava ao
século XVlll, o que vale dizer que isso já existia antes do
aparecimento da moderna "ciência social",[455] embora
essas especulações mais antigas já ensaiassem a prática de
se enrolarem no manto da ciência.
A visão do intelectual ungido esvazia o aspecto
punitivo e reforça os aspectos preventivos procurando, em
primeiro lugar, as causas sociais que estão "na base" da
atividade criminosa e também investindo, por outro lado, na
"reabilitação" dos criminosos. Os temas secundários que
gravitam em torno da visão principal incluem a diminuição
de responsabilidade pessoal por parte dos criminosos,
alegando infâncias infelizes, histórias de vida angustiantes
ou outros fatores que, supõe-se, estejam acima do controle
dos indivíduos. Teorias conflitantes sobre criminalidade
podem ser interminavelmente debatidas e nenhuma dúvida
será respondida, ao mesmo tempo que outras questões
serão expandidas a dimensões infinitas. O que é relevante
em nosso caso, todavia, é o que a evidência dos resultados
reais tem nos revelado desde a ascendência da visão dos
intelectuais sobre a criminalidade, a qual se tornou
dominante, observando a reação dos intelectuais às
evidências.
Nos Estados Unidos, onde os índices de homicídio
declinaram por décadas e estavam, em 1961, abaixo da
metade dos índices de 1933, ocorreu uma inversão por
ocasião das reformas legais da década de 1960, que se
baseavam nas ideias dos intelectuais e eram
entusiasticamente apoiadas pela intelligentsia. As novas
abordagens foram seguidas, quase que de imediato, por
uma reversão daquela longa tendência de queda, e o índice
de homicídios dobrou por volta de 1974.[456] Na Grã-
Bretanha, a adoção da mesma visão sobre a criminalidade
foi seguida por abruptas e semelhantes reversões de
antigas tendências de queda nos índices de criminalidade.
Um estudo constatou:

Estudiosos em criminologia traçaram um longo


declínio de violência interpessoal desde o final da
Idade Média, até que uma abrupta e
desconcertante reversão ocorreu a partir da
metade do século XX (...) e uma comparação
estatística de criminalidade na Inglaterra e em
Gales com os Estados Unidos, baseada em dados
de 1995, descobriu que das três categorias de
crime violento - assaltos, invasões e roubos - os
ingleses correm, hoje, muito mais riscos que os
norte-americanos.[457]

A forma abrupta de reversão de uma tendência de


queda duradoura nos índices de criminalidade, em ambos
os lados do Atlântico, reduz grandemente a probabilidade
de que os resultados tenham sido decorrentes de complexas
mudanças sociais, as quais levam anos para se completar.
Mas, dentro de um período relativamente curto de tempo,
legislações, decisões judiciais e mudanças nas políticas
governamentais tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados
Unidos reduziram bastante a possibilidade de criminosos
serem condenados e punidos por determinado crime,
diminuindo também a severidade na aplicação das penas e,
do mesmo modo, reduzindo a capacidade dos cidadãos,
seguidores da lei, de se defender quando confrontados com
um criminoso ou de estar armados para repelir ataques
criminosos.[458] Na Grã-Bretanha, a ideologia
antiarmamentista é tão forte que até mesmo o uso de
armas de brinquedo para defesa pessoal é contestado:
A mera ameaça de estar se defendendo pode
também ser considerada ilegal, como descobriu
uma senhora idosa. Ela obteve sucesso em
assustar e repelir uma gangue de bandidos ao
disparar uma bala de festim de uma arma de
brinquedo apenas para ser presa sob a alegação
de atemorizar terceiros em posse de uma arma de
mentira. O uso de uma arma de brinquedo para
autodefesa, durante um assalto de domicílio, é
também considerado inaceitável, como um
proprietário acabou descobrindo ao conseguir
imobilizar dois homens que estavam assaltando
sua casa. Ele chamou a polícia, mas quando os
policiais chegaram, o prenderam por porte ilegal
de arma.[459]

Os intelectuais britânicos são defensores notórios e


veementes do controle de armas. Um artigo de 1965 da
New Statesman declarava que armas de fogo em posse de
particulares "não serve a nenhum propósito civilizado" e
que "a posse ou o uso de pistolas ou de revólveres por civis"
era algo que "não pode ser justificado em nenhuma
circunstância, seja qual for".[460] Um artigo de 1970, da
mesma revista, exortava a aplicação de leis que banissem
"todas as armas de fogo", estivessem ou não guardadas,
"de toda a população civil".[461]
Assim como tantas outras ideias da intelligentsia, a
insistência militante pelo controle de armas desafia,
contudo, anos de evidências acumuladas, as quais apontam
para a futilidade e a contraprodutividade de tais medidas.
Por exemplo, um estudo acadêmico em 2001 descobriu que
"o uso de armas de fogo nos crimes aumentara em 40%
dois anos depois que o porte dessas armas havia sido
banido no Reino Unido".[462] Um estudo anterior descobrira
que "nos homicídios envolvendo o crime organizado e o
tráfico de drogas nenhuma arma legalizada fora usada, pois
todas as 43 encontradas eram ilegais".[463] Da mesma
forma, outros estudos indicavam que na Inglaterra e nos
Estados Unidos, leis contra a posse de armas não
promoveram alterações sensíveis sobre as pessoas
envolvidas em atividades criminosas:

Em 1954 houve apenas doze casos de assaltos em


Londres nos quais uma arma de fogo fora usada,
e, sob uma inspeção mais próxima, oito delas
eram apenas "supostamente de fogo". Mas os
assaltos armados em Londres subiram de quatro,
em 1954, quando não havia controle sobre armas
de fogo e o dobro de pessoas com licença para
porte de pistolas, para 1.400 assaltos em 1981,
chegando a 1.600 em 1991. Em 1998, um ano
após a proibição de praticamente todas as armas,
o índice de assalto à mão armada subiu em mais
10%.[464]

À medida que leis de controle do uso de armas se


tornavam cada vez mais rígidas na Grã-Bretanha, no final do
século XX, os índices de homicídio subiam em 34%,
enquanto os índices de homicídio no Canadá e nos Estados
Unidos caíam em 34% e 39%, respectivamente. Os índices
de homicídio na França e na Itália também estavam
declinando em 25% e 59%, respectivamente.[465] A Grã-
Bretanha, com sua insistente ideologia antiarmamentista
fomentada pelos intelectuais e pelas elites políticas,
mostrou-se uma exceção diante das tendências
internacionais. Enquanto isso, durante esse mesmo período,
o mercado de vendas de armas para particulares crescia
nos Estados Unidos, chegando a um pico de vendas de
"quase oito milhões de armas de pequeno porte, das quais
quatro milhões compreendiam pistolas e revólveres".[466]
Longe de acarretar mais homicídios, esse foi um período de
acentuada queda nos índices de homicídio dentro dos
Estados Unidos. No total, havia um número estimado de
quase duzentos milhões de armas nos Estados Unidos, e os
mais baixos índices de crimes violentos se verificavam onde
a incidência de porte de arma pela população civil era mais
alta. A mesma situação vale para a Suíça.[467]
No entanto, nenhum desses indicadores promoveu
qualquer diferença entre a intelligentsia norte-americana e
a britânica na maneira de pensar o controle de armas. Na
Grã-Bretanha, tanto a ideologia quanto as políticas
governamentais têm uma visão negativa também em
relação a outras medidas de defesa pessoal. Uma oposição
à prática de defesa pessoal pelos cidadãos comuns estende-
se para além da posse de armas de fogo, reais ou de
imitação. Um homem de meia-idade que foi atacado por
dois criminosos dentro de um vagão no metrô de Londres
"sacou uma espada de dentro de sua bengala, golpeando
um dos bandidos". Esse homem foi preso junto de seus
agressores sob a alegação de portar uma arma.[468] Mesmo
colocar arame farpado em volta de jardins e galpões, os
quais haviam sido invadidos por várias vezes, veio a ser
proibido pelas autoridades locais que temiam sofrer
processo caso um ladrão se machucasse enquanto tentasse
entrar na propriedade.[469] Que uma ação como essa fosse
levada a sério é outro sinal a indicar as noções
predominantes entre os agentes governamentais britânicos.
A teoria sobre as "causas sociais" da criminalidade
tem se mostrado igualmente imune às evidências em
ambos os lados do Atlântico. Tanto nos Estados Unidos
quanto na Inglaterra os índices de criminalidade subiam
vertiginosamente bem na mesma época em que as
supostas "causas sociais do crime" - pobreza e falta de
oportunidades - estavam diminuindo aos olhos de todos. A
fim de ridicularizar por completo a teoria das "causas
sociais", os distúrbios nos guetos, que varreram muitas
cidades nos Estados Unidos na década de 1960, foram
muito menos comuns nas cidades dos estados do Sul, onde
a discriminação racial ainda era visível. Além disso, o
distúrbio mais letal daquela época ocorreu em Detroit, onde
o índice de pobreza da população negra estava 50% abaixo
da média nacional, ao mesmo tempo que essa a cidade
apresentava o mais alto índice de conquista de casa própria
entre a população negra, considerando todas as cidades dos
Estados Unidos, além de o índice de desemprego estar na
época, em Detroit, em apenas 3,4%, um número menor do
que o índice nacional de desemprego da população branca
do período.[470]
Os distúrbios urbanos fizeram-se mais frequentes
durante a administração do presidente Lyndon Johnson,
quando foram marcados pela promulgação marcante de
uma legislação de direitos civis e uma expansão maciça de
programas sociais chamados "guerra contra a pobreza". Por
outro lado, tais distúrbios praticamente desapareceram
durante os oito anos de administração Reagan, um período
de esvaziamento dos programas sociais.
Seria difícil conceber uma teoria social que tivesse
sido mais consistente e inequivocamente desmentida pelos
fatos. Mas nada disso foi suficiente para abalar a crença dos
que adotam a teoria das "causas sociais" a fim de explicar a
criminalidade. Os Estados Unidos não foram o único país em
que a suposta "causa social" para o crime mostrou não
possuir qualquer correlação com os reais índices de
criminalidade. Na Grã-Bretanha, encontramos a mesma
realidade:

Diante de tremendas adversidades, a


criminalidade violenta despencou durante o século
XIX. Da segunda metade do século XIX até o início
da Primeira Guerra Mundial, os assaltos caíram em
71%, os ferimentos em 20% e os homicídios em
42% (...). Aquela época foi insultada por
apresentar todas as doenças que a sociedade
moderna atribui como causas da criminalidade -
pobreza aviltante em convívio direto com
prosperidade crescente, surto de favelas,
acentuado crescimento populacional,
deslocamento de populações, urbanização,
dissolução do trabalho familiar, policiamento
deficiente e, é claro, uma quantidade enorme de
pessoas portadoras de armas de fogo.[471]

Mesmo os fatos mais flagrantes podem ser colocados


de lado ao se dizer que as causas da criminalidade são
"complexas" demais para que sejam abarcadas por
"explicações" simplistas. Essa tática retórica expande a
questão simplesmente para dimensões irrespondíveis, como
prelúdio para se descartar qualquer explicação que não se
alinhe com a visão predominante, desconsiderando outras
visões como "simplistas" por não conseguirem responder
por completo a questão expandida. Mas ninguém é obrigado
a dominar as complexidades da lei da gravidade de Newton
para saber que pisar para fora do topo de um arranha-céu
trará graves consequências. De maneira parecida, ninguém
precisa destrinchar as complexidades das inumeráveis
razões conhecidas e desconhecidas que determinam a
ocorrência de atos criminosos para saber que colocar os
criminosos atrás das grades é mais eficiente para reduzir o
índice de criminalidade do que quaisquer teorias complexas
ou políticas sofisticadas favorecidas pela intelligentsia.[472]
Expandir a questão para dimensões irrespondíveis,
para então escarnecer qualquer outra resposta não bem-
vinda como "simplista", é apenas uma das maneiras que a
habilidade retórica dos intelectuais tem para se esquivar
dos fatos. Outro exemplo, a exigência do retorno da "lei e da
ordem" foi longamente estigmatizado como sinal de racismo
explícito, já que os índices de criminalidade entre os negros
eram maiores do que entre os brancos.
Como foi observado no capítulo 2, um comissário de
polícia de Nova York aposentado que tentava relatar, para
uma delegação de juízes, o perigo em potencial que
representavam algumas de suas sentenças foi literalmente
ridicularizado pelos juízes e pelos advogados presentes.[473]
Resumindo, a teoria triunfou sobre a experiência, assim
como a visão da intelligentsia tem frequentemente
triunfado sobre os fatos, e os "ignorantes" foram tratados
como não merecedores de qualquer consideração pelos
intelectuais ungidos.
Atitudes semelhantes têm acompanhado a mesma
visão na Grã Bretanha, onde a maior parte da mídia, da
academia e da intelligentsia em geral, assim como agentes
públicos treinados nas universidades, trata as queixas da
população sobre os crescentes índices de criminalidade e as
exigências por sérias medidas contra os criminosos como
meros sinais de ignorância do público em relação às
profundas questões envolvidas. Em ambos os lados do
Atlântico, as elites reforçam o lado dos problemas vividos
pelos criminosos, ressaltando como os programas sociais
serão a solução perfeita para o problema da criminalidade.
Nos Estados Unidos, mesmo coisas como "pronta coleta" de
lixo foram descritas pelo colunista do New York Times, Tom
Wicker, como parte da "justiça social" necessária para
conter o crime.[474]
Nenhuma quantidade de duras evidências tem se
mostrado suficiente para penetrar na bolha blindada da
visão da elite britânica. Pelo contrário, todo e qualquer dado
a contradizer essa visão tem sido sistematicamente
suprimido, censurado ou retoricamente desqualificado pelos
agentes britânicos, de forma que a revista britânica The
Economist divulgou "uma desconfiança crescente em
relação aos agentes públicos",[475] ao mesmo tempo que a
mídia britânica se esforça para que o público se sinta
culpado pela prisão do, em parte, pequeno número de
criminosos que estão de fato presos.[476] Um caso típico de
desdém diante das reclamações do público em geral é a
resposta, ou falta dela, às experiências de pessoas que
vivem em bairros nos quais instituições de recuperação de
criminosos foram criadas:

Essas pessoas falam de um pesadelo em vida


causado por uma ininterrupta realidade de crimes,
intimidações, vandalismos e assédios infligidos
por residentes criminosos. Todos esses moradores
relataram o fracasso em alertar os políticos locais,
a polícia, os agentes de justiça e a promotoria ou
qualquer outro organismo público sobre a
desesperada situação em que se encontram.[477]

Para muitos dos que comungam a visão do intelectual


ungido, uma ampla diferença entre as crenças e as
preocupações da população em geral e as crenças e as
preocupações deles próprios e de seus pares ideológicos
não é motivo suficiente para reconsiderações de suas
ideias, mas uma fonte de orgulho ao ver-se detentor de uma
visão superior.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, depois que muitos
anos de crescimento dos índices de criminalidade criaram
suficiente indignação pública para forçar uma mudança na
condução das políticas de segurança pública, os índices de
encarceramento começaram a subir e os de criminalidade a
cair, simultaneamente, pela primeira vez em anos. Os
seguidores da visão do intelectual ungido lamentaram o
crescimento da população carcerária do país e, quando eles
chegavam a reconhecer a queda dos índices de
criminalidade, confessavam seu estado de surpresa; como
se fosse uma estranha coincidência que a criminalidade
estivesse declinando à medida que um número crescente
de criminosos era retirado das ruas. Em 1997, por exemplo,
o colunista do New York Times Fox Butterfield escreveu o
artigo "A Criminalidade Continua em Queda, mas as prisões
Continuam Crescendo", como se houvesse algo de estranho
no fato:

É apresentado como uma história confortável: por


cinco anos seguidos o crime está em queda,
juntamente de uma queda nos homicídios. Então,
por que o número de detentos nos presídios e nas
prisões em toda a nação continua a subir? (...) Já
temos, na Califórnia e na Flórida, uma situação em
que se gasta mais para encarcerar as pessoas do
que se gasta com a educação universitária.[478]

A comparação irrelevante entre os custos dos presídios com


os custos em educação universitária tornou-se uma marca
da crítica contra a política de encarceramentos. Um editorial
do New York Times, em 2008, ainda repetia esse argumento
e suas lamentações diante de uma crescente população
carcerária:

Depois de três décadas de um crescimento


explosivo, a população carcerária do país alcançou
números sombrios: mais de um entre cem
americanos adultos está atrás das grades. Um em
cada nove homens negros, entre 20 e 34 anos de
idade, está cumprindo pena, assim como um em
cada 36 homens adultos de origem hispânica.

Por toda a nação, a população carcerária paira em


torno de 1,6 milhão, o que supera qualquer outro
país que apresente números confiáveis. Os 50
estados da federação gastaram no ano passado
algo em torno de US$ 44 bilhões de dinheiro
público com presídios, US $11 bilhões a mais do
que em 1987. Os estados de Vermont,
Connecticut, Delaware, Michigan e Oregon
transferem tanto ou mais dinheiro para os
presídios do que o fazem para a educação
superior.[479]

Essa não foi, de forma alguma, a primeira vez que


índices crescentes de encarceramento foram denunciados
pelo New York Times. Anos antes, em 1991, o colunista Tom
Wicker, do New York Times, dissera que "crimes violentos
não haviam cessado de forma alguma" diante dos
crescentes níveis de encarceramento, uma alegação que foi
desmentida por estatísticas posteriores. Wicker exortava a
aplicação de sentenças mais curtas, assim como "melhorias
nos serviços de educação, orientação vocacional e
tratamento aos drogados" nas prisões, e deplorava os
"temores públicos tomados de pânico e suas reações
punitivas".[480] Aqui, como em muitas outras questões, as
visões discordantes de terceiros são retoricamente
reduzidas a meras emoções ("tomados de pânico"), em vez
de serem tratadas como argumentos que precisariam ser
analisados e respondidos com fatos.
Dentro dos próprios presídios, a mudança de atitude
da opinião pública, em face aos presidiários, nos Estados
Unidos, teve reflexo em medidas mais severas contra
detentos causadores de problemas:

Casos de agressão em Folsom caíram 70% em


quatro anos, de 6,9 para cada cem detentos em
1985, para 1,9 em 1989.
Apesar de um acentuado crescimento na
população carcerária do país durante a década de
1980 e apesar de irrupções ocasionais de
violência, como o ocorrido em Rikers Island
naquele verão em Nova York, histórias como a de
Folsom estão se tornando comuns em todo o país.
Os funcionários dos presídios, encorajados por
uma opinião pública que não se mostra
condescendente com os criminosos, dizem que
tomaram maior controle sobre suas instituições.
[481]

Evidências concretas sobre a eficiência em se aplicar


a autoridade de polícia e de detenção dentro e fora dos
presídios não acarretaram qualquer mudança sensível nos
que comungam da visão do intelectual ungido tanto nos
Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha. No entanto, uma
correlação inversa entre os índices de encarceramento e os
de criminalidade foi também encontrada na Austrália e na
Nova Zelândia, onde o restabelecimento de uma política de
encarceramento mais severa foi seguido por um declínio
dos índices de criminalidade.[482]
A intelligentsia da Grã-Bretanha tem sido tão imune
aos fatos quanto sua contrapartida norte-americana. São
abundantes os que se opõem à política de encarceramento
tanto na mídia quanto no mundo acadêmico britânico.[483] A
revista The Economist, por exemplo, destacou o "vício
norte-americano de encarcerar a qualquer custo",[484]
colocando em termos de meras emoções tudo aquilo que
escapa ao padrão consagrado pela intelligentsia, uma
prática adotada nos dois lados do Atlântico. Um oficial de
justiça relatou a diferença entre a visão idealizada e a
realidade, a partir do que escutou no rádio enquanto dirigia
seu carro até seu local de trabalho, a penitenciária. No
rádio, um ministro do governo estava sendo entrevistado:
Um radialista notório apresentou sua questão para
o ministro com a seguinte afirmação: "Todos
sabemos que, neste país, mandamos gente em
excesso para a prisão". Essa observação
introdutória foi anunciada com grande convicção e
segurança; ela transmitia a crença de que tal
afirmação era algo que "todos sabiam" e se
tornara indiscutível. No entanto, à medida que
escutava a entrevista, eu sabia que me dirigia a
uma penitenciária que, apesar de sua imensa área
repleta de detentos, pois ela servia a muitos
tribunais de diferentes distritos espalhados por
todo o país, estava, contudo, com apenas metade
de sua capacidade preenchida. O que é ainda
mais significativo, essa penitenciária fora
designada para abrigar condenados na faixa etária
de 17 a 20 anos, reconhecida pelo altíssimo nível
de criminalidade. Portanto, se algum presídio
tivesse que ficar lotado, seria o nosso. No entanto,
por alguns anos estivera com a metade de sua
capacitação e na maioria do tempo esse número
esteve abaixo da metade. Isso se dava no exato
momento em que o programa de rádio Today,
tomado de convicção, enganava seu público
ouvinte sobre o número de criminosos que recebia
sentenças de custódia, o Home Office estava
traçando planos para fechar nossa penitenciária,
assim como muitas outras.[485]

Na Grã-Bretanha, assim como nos Estados Unidos, é


geralmente tida como axiomática a ideia de que "as prisões
não resolvem o problema", como destaca a revista The
Economist. A explicação: "Eles podem manter os criminosos
longe das ruas, mas falham em desencorajar o crime. Dois
terços dos ex-presidiários voltam a cumprir pena três anos
após terem sido soltos".[486] Tornando-se essa linha de
raciocínio, a comida mostra-se ineficiente corno resposta à
fome porque é apenas uma questão de tempo, depois da
ingestão de alimentos, até que alguém sinta fome
novamente. Como acontece com muitas outras coisas, o
encarceramento só funciona quando está sob vigência. O
fato de criminosos cometerem crimes quando não mais
estão encarcerados nada diz sobre a eficiência do
encarceramento na redução da criminalidade. A questão
empírica sobre o impacto no índice de criminalidade ao se
manter mais criminosos longe das ruas não foi sequer
considerada nessa bombástica desqualificação das prisões
como "ineficientes".
A ideologia que defende "formas alternativas",
eliminando o sistema carcerário, não é apenas uma senha
que identifica os membros da intelligentsia britânica, mas é
também amparada pelo interesse de alguns setores
públicos em reduzir os gastos com presídios. Embora
alegações sobre o custo de um detento, comparando-se
com o custo de manter um estudante numa universidade
cara, tenham se tornado um lugar-comum nos argumentos
contra as políticas de encarceramento, a comparação
relevante seria entre o custo de manter alguém na prisão
versus os custos de deixar um criminoso profissional solto
na sociedade. Na Grã-Bretanha, o custo total do sistema
penitenciário por ano foi avaliado em £ 1,9 bilhão, ao passo
que só o custo financeiro dos crimes cometidos por ano
pelos criminosos foi estimado em £ 60 bilhões.[487] Nos
Estados Unidos, o custo com o encarceramento de um
criminoso é, no mínimo, US $10 mil menor, por ano, do que
o custo de deixá-lo solto na sociedade.[488]
Na Grã-Bretanha, a ideologia anticarcerária é tão forte
que apenas 7% dos criminosos sentenciados acabam atrás
das grades.[489] Em dezembro de 2008, o Daily Telegraph de
Londres, em sua publicação on-line telegraph.co.uk, relatou:
"Milhares de criminosos isentos de carceragem retomam
suas atividades criminosas". O artigo dizia: "Mais de 21 mil
criminosos cumprindo sentenças sem custódia cometeram
outros crimes no ano passado, gerando dúvidas sobre a
garantia do partido trabalhista em tornar as punições uma
alternativa mais dura que o encarceramento".[490] A
transformação da Grã-Bretanha, forjada pelo triunfo da
visão do intelectual ungido, pode ser resumida ao se notar
que o país, que já tivera um dos índices de criminalidade
mais baixos do mundo, presenciava, no final do século XX,
um aumento impressionante de seus índices em várias
categorias, ultrapassando os dos Estados Unidos.[491]
Um jovem chamado Lee Kuan Yew, visitando a Grã-
Bretanha pouco depois do término da Segunda Guerra
Mundial, ficou tão impressionado com o respeito às leis e à
ordem do cidadão londrino que retornou para sua nativa
Cingapura determinado a transformá-la, varrendo a pobreza
e o crime que lá grassavam na época. Mais tarde, como
líder da cidade-estado de Cingapura, já por muitos anos,
Lee Kuan Yew instituiu políticas que resultaram em níveis de
prosperidade inéditos no país, junto de um declínio
igualmente acentuado dos índices de criminalidade. No
início do século XXI, o índice de criminalidade para cada
cem mil habitantes em Cingapura era de 693 e na Grã-
Bretanha era superior a dez mil.[492] Cingapura tinha, de
fato, voltado no tempo, adotando políticas e métodos que
são agora desdenhados pela intelligentsia como "obsoletos"
e "simplistas".
Sob a luz do fato de que uma quantidade
absolutamente desproporcional de crimes é cometida por
um segmento de certa forma pequeno da população, não se
apresenta como nenhuma surpresa verificar que, ao se
colocar uma pequena fração da população total atrás das
grades, verificam-se expressivas reduções dos índices de
criminalidade. Todavia, isso não é suficiente para os que
adotam uma visão cósmica de justiça e lamentam que
algumas pessoas, sem terem realmente responsabilidade,
nascem sob circunstâncias que favorecem o
comportamento criminoso mais do que outras que nascem
sob circunstâncias melhores.
Enquanto os que comungam de tal visão tendem a
considerar as circunstâncias econômicas ou sociais fatores
promotores de injustiça, a mesma concepção de injustiça,
vista sob a mesma perspectiva cósmica, é adotada quando
as pessoas nascem num meio ambiente cultural que tende
a levá-las a práticas criminosas. No entanto, longe de
assumir a temerosa tarefa de tentar alterar as culturas e
subculturas, os membros da intelligentsia tornam-se, no
entanto, entusiastas da ideologia do multiculturalismo,
segundo a qual as culturas são todas equivalentes e a
tentativa em se mudar algumas delas é considerada uma
intrusão indevida, uma forma de imperialismo cultural.
Da mesma forma que acontece com tantas outras
noções aparentemente bacanas, a ideologia do
multiculturalismo não faz qualquer distinção entre uma
definição arbitrária e uma proposição verificável. Isso
significa que não distingue entre as palavras que estão na
cabeça de um indivíduo e a validade empírica dessas
palavras no mundo real. Ainda assim, existem
consequências tanto para os indivíduos quanto para a
sociedade que se manifestam a partir de fatos concretos do
mundo real, não de definições que se encontram na cabeça
das pessoas. Empiricamente, a questão sobre a
equivalência ou não das culturas torna-se o seguinte:
equivalente de que maneira demonstrável? Essa questão é
raramente, ou nunca, perguntada e muito menos
respondida pela maior parte da intelligentsia.
Somando-se às alegações de que a criminalidade
pode ser reduzida ao se tratar das supostas "causas
sociais", muitos intelectuais também advogam a
"reabilitação" de criminosos, o "controle da raiva" e outras
abordagens terapêuticas para a redução da criminalidade
não como um simples complemento aos métodos
tradicionais de encarceramento, mas como substituto.
Assim como outras "alternativas ao encarceramento", essas
concepções não são tratadas como hipóteses a serem
testadas, mas como axiomas a serem defendidos. Pouco
importa quão alto seja o índice de reincidência encontrado
entre criminosos que passaram por extensos programas de
"reabilitação" ou a quantidade de violência que continua a
ser praticada por aqueles que passaram por programas de
"controle da raiva", essas noções não estão sujeitas à
refutação de evidências. Entre a supressão das evidências,
pelos agentes das políticas,[493] e a evasão por meio da
manipulação retórica, pelos intelectuais, temos a formação
de teorias blindadas, protegidas contra a ameaça da
comprovação factual.
Valendo-se da mesma moeda, nenhum dos métodos
tradicionais de controle da criminalidade, os quais foram
suplantados pelos novos métodos em moda, podem ser
recuperados e reconsiderados, mesmo diante de fortes
evidências factuais. A própria menção às ideias "vitorianas"
sobre a sociedade em geral ou o controle da criminalidade
em particular garante uma resposta automática de desprezo
por parte da intelligentsia. O fato de a era vitoriana ter
representado um período de acentuado e constante declínio
no alcoolismo, na criminalidade e em patologias sociais em
geral tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, [494]
em contraste às ideias mais modernas com seus resultados
opostos em ambos os países, não provoca qualquer
diferença na visão da intelligentsia e tais fatos permanecem
amplamente desconhecidos entre o público em geral, o qual
depende da mídia e dos meios acadêmicos para obter
informação.
O fato de as medidas de senso comum na contenção
de crimes serem realmente eficientes continua a
escandalizar muitos integrantes da intelligentsia. Depois de
décadas de controvérsias sobre as formas de se reduzir a
criminalidade, saiu em 2009, na manchete do San Francisco
Chronicle: "Os Homicídios Despencam com Policiamento
Intensivo em Áreas Perigosas". A reportagem começava
assim:

"O total de homicídios em San Francisco, na


primeira metade de 2009, marcou o nono ano
consecutivo de queda, caindo em mais de 50% em
relação ao ano passado, uma queda que a polícia
atribui ao policiamento intensivo em áreas de alta
ocorrência de crimes, com o direcionamento de
combate ao crime focado nos grupos de pessoas
responsáveis pela maior parte das ocorrências
policiais".[495]

Uns poucos intelectuais - James Q. Wilson sendo o


mais proeminente entre eles - nadam contra a maré
ideológica quando se trata da questão sobre a
criminalidade, mas a maior parte de seu trabalho consiste
em mostrar o que está errado com as obras dos
intelectuais, cujas teorias sobre a criminalidade e as
prescrições para o seu controle são dominantes, mas que na
prática levam a criminalidade a índices crescentes. O custo
líquido dos intelectuais para a sociedade em relação à
criminalidade não inclui somente a vasta quantidade de
recursos que são desperdiçados - o que acaba saindo muito
mais caro do que manter os criminosos atrás das grades -,
mas também o alto custo de sua ideologia, politicamente
aplicada, na vida dos cidadãos comuns, os quais sofrem na
pele a brutalidade dos crimes e as constantes
desmoralização e ameaça diante de bandidos e de
agitadores. Caso fosse possível quantificar o custo de se
tomarem as teorias dos intelectuais lei comum, o custo total
seria indubitavelmente enorme.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 7
OS INTELECTUAIS E A GUERRA

Tempos ruins para se viver são bons para se aprender.

EUGEN WEBER[496]

Como quase todas as demais pessoas, os intelectuais


preferem geralmente a paz à guerra. Todavia, como já
observado no capítulo 4, ideias sobre como prevenir a
conflagração de guerras podem ser fundamentalmente
distintas. Assim como acontece com a questão do combate
à criminalidade, cuja história remonta no mínimo ao século
XVIII, o mesmo ocorre com a visão que os intelectuais têm
sobre a paz e a guerra. Ao contrário da visão trágica que
enxerga na força militar o instrumento mais eficiente de
contenção contra agressores potenciais, a visão dos
intelectuais caminha, contudo, na direção das negociações
internacionais e dos acordos de desarmamento, vistos pela
intelligentsia como meios eficientes de prevenção contra as
guerras.
Embora os intelectuais tenham uma visão geral sobre
as guerras, não existem guerras no geral. A questão real é a
seguinte: como os intelectuais habitualmente reagem
diante das guerras, em cada caso em particular, ou diante
de ameaças de guerra em momentos e circunstâncias
específicos? Na medida em que lidamos com intelectuais
cuja influência sobre a opinião pública e sobre as políticas
governamentais é enorme, isso condiciona nossa
investigação aos intelectuais do mundo ocidental de nossa
época e de tempos recentes. Algumas vezes, dentro desse
período, os intelectuais mostraram-se ferrenhos defensores
dos conflitos armados e, em outras vezes, grandes
opositores em relação a outros conflitos. Encontramos
elementos na visão dos intelectuais que são consistentes
com ambas as situações.
Por vezes, a posição dos intelectuais, contrária ou a
favor de determinada guerra, parece envolver uma questão
temporal, ou seja, se a época referida foi precedida por um
longo período de paz ou se, ao contrário, foi uma época
cujos horrores de uma guerra recente marcaram
indelevelmente a memória das pessoas. O período que
levou à conflagração da Primeira Guerra Mundial, por
exemplo, foi um momento histórico em que os Estados
Unidos não passavam por uma guerra expressiva, a qual
envolvesse uma grande parte da população, por mais de
uma geração. Na Europa, já se passara quase um século
desde que as guerras napoleônicas haviam devastado o
continente. Na Alemanha, durante a metade da década de
1890 - duas décadas depois da guerra franco-prussiana -,
muitos intelectuais, incluindo professores universitários,
apoiavam os planos belicosos do cáiser para que se
construísse uma poderosa e custosa marinha de guerra[497]
como parte de uma política internacional mais ambiciosa,
apesar de, na época, a Alemanha ser uma potência militar
terrestre com poucos interesses coloniais para proteger.
Naquela época, foi fácil para muitos intelectuais e
outros grupos pensarem na guerra de forma abstrata,
encontrando em seu apelo de coesão social e de propósito
nacional valores contagiantes e virtudes positivas, ao
mesmo tempo que seu devastador custo humano era
deixado de lado, esquecido nos recessos mais profundos do
pensamento. Mesmo aqueles que tinham consciência sobre
a devastação e a carnificina que uma guerra pode gerar
falavam, como fez William James, sobre a necessidade de
um "equivalente moral para a guerra ", uma força que
pudesse mobilizar as pessoas em função de um propósito e
aspirações comuns. Para muitos intelectuais havia a ideia, já
há muito consagrada, de se dirigir as massas, uma ideia que
incumbia a terceiros a tarefa de dar sentido para a vida
delas.
Como já observado, o intelectual ungido busca
apropriar-se do poder de tomada de decisão, retirando-o
das pessoas comuns e repassando-o para os membros da
elite intelectual e moralmente atuante, impondo propósitos
sociais comuns, os quais se sobrepõem aos propósitos e às
decisões individuais que se encontram dispersos entre a
população em geral. A guerra cria um cenário no qual tal
visão pode prosperar. Cria também muitas outras coisas, de
maneira que o efeito gerado é altamente influenciado pelas
condições da época. No início do século XX, a Primeira
Guerra Mundial apresentou uma grande oportunidade para
que a visão do intelectual ungido florescesse, mas também,
depois, apresentou um lembrete devastador sobre os
horrores da guerra, os quais haviam sido ignorados ou
subestimados.
A reação adversa do pós-guerra contra os horrores
daquele conflito colocaram em andamento uma visão
radicalmente diferente sobre a guerra, gerando uma onda
disseminada de pacifismo entre os intelectuais. Mas num
curto período de poucos anos, mesmo que muitos
intelectuais tenham mudado radicalmente a visão que
tinham sobre a guerra, o que eles não mudaram foi sua
convicção arraigada de que, na posição de ungidos,
continuariam agindo como guias, dirigindo as massas,
tomando a iniciativa na promoção de políticas
governamentais segundo os novos moldes de uma visão
oposta às guerras. Esses vários períodos que compõem a
história da visão intelectual, ora favorável ora contrária à
guerra, precisam ser examinados um a um.
◆ ◆ ◆

A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL


De várias maneiras, a Primeira Guerra Mundial foi um
choque para muitas pessoas. Depois de quase cem anos
sem a ocorrência de grandes deflagrações e de maiores
conflitos no continente europeu, muitos da civilização
europeia começaram a acreditar, ilusoriamente, que a
Europa havia superado, de alguma forma, as guerras,
relegando-as ao passado. Muitos dos que pertenciam à
extrema esquerda acreditavam que a solidariedade
internacional entre a classe dos trabalhadores evitaria que
trabalhadores de diferentes países lutassem e se matassem
nos campos de batalha, pois, era suposto, não agiriam em
benefício de seus exploradores. Nos países de ambos os
lados do conflito, gerações que não tinham qualquer
experiência com a guerra marcharam envoltas em grande
exaltação pública, alegria e fanfarra, tomadas de forte
sensação de confiança, acreditando que tudo estaria
terminado -com a vitória alcançada - num tempo
relativamente curto.[498]
Poucos eram os que tinham a mínima noção sobre o
quanto a tecnologia moderna tornaria aquela guerra no
mais letal e desgastante conflito que o mundo já vira, tanto
para os soldados quanto para a população civil. Os
sobreviventes, por todo o continente, acabariam famintos,
vagando entre as ruínas e a destruição da guerra, e os
impérios tradicionais seriam despedaçados, jogados ao
esquecimento. Mas ainda muito menor era o número
daqueles que puderam avaliar o quanto um novo fenômeno
monstruoso - o totalitarismo - seria desovado durante o
caótico desfecho da guerra. Os intelectuais estavam entre
aqueles cujas ilusões seriam brutalmente esmagadas, por
todas essas catástrofes da Primeira Guerra Mundial.
◆ ◆ ◆

O PERÍODO PRÉ-GUERRA
No início do século XX, a única guerra que a maioria
dos norte-americanos tinha experimentado fora a Guerra
Hispano-Americana, durante a qual o poder esmagador dos
Estados Unidos foi suficiente para expulsar rapidamente os
espanhóis de suas colônias em Cuba, Porto Rico e nas
Filipinas. Ao olhar em retrospectiva para essa guerra,
Woodrow Wilson aprovara a anexação de Porto Rico pelo
presidente William McKinley, dizendo que os anexados "são
corno crianças e nós somos homens maduros nesses
assuntos profundos sobre governo e justiça". Wilson
desdenhava o que chamava de "lamentações e choramingo
anti-imperialista" dos críticos.[499] Assim como para
Theodore Roosevelt, mesmo antes de se tornar presidente,
ele não fora somente um apoiador da Guerra Hispano-
Americana, mas um participante significativo. De fato, foi ao
explorar, politicamente, seus feitos militares naquela
guerra, como líder de homens conhecidos pelo nome de
"cavaleiros destemidos", que Wilson se lançou pela primeira
vez como uma figura nacional.
Essa foi uma época em que o imperialismo era visto
corno missão internacional cuja atividade levaria a
democracia para outros lugares. Portanto, foi apoiado por
muitos intelectuais da era progressista.[500]O clássico da era
progressista, The Promise of American Life, escrito pelo
editor da New Republic, Herbert Croly, argumentava que,
sem a devida superintendência das democracias ocidentais,
a maioria dos dirigentes asiáticos e africanos tinha pouca
chance de tornar seus países nações democráticas
modernas. Ele dizia: "A maior parte das comunidades
asiáticas e africanas só conseguirá ter bom início político ao
se submeter à tutela preliminar; e a admissão de tamanha
responsabilidade por uma nação europeia representa uma
fase desejável para a constituição da disciplina nacional e
frequente fonte de genuíno avanço nacional".[501] Mais
genericamente: "Uma guerra movida em nome de um
excelente propósito contribui mais para a melhoria humana
do que uma mera paz artificial", segundo o próprio Croly.
[502]
Embora, pela tradição, muitos intelectuais façam
oposição ao imperialismo, isso acontece quando essa
política se relaciona aos interesses econômicos, militares,
territoriais ou de prestígio político de alguns líderes, mas a
ausência de fatores como esses e a existência de motivos
ideológicos fazem com que tais intervenções internacionais
não se caracterizem como algo universalmente condenável
pela intelligentsia. Na verdade, a completa ausência de
qualquer interesse nacional em uma intervenção em
particular tem sido geralmente tratada pelos intelectuais
como sinal verde para se retirar qualquer tom de
condenação moral para tal intervenção, embora continue
válida em outros casos de imperialismos.
Visto sob esse aspecto, um apoio substancial dos
intelectuais da era progressiva em prol de intervenções
militares norte-americanas em países pobres, dos quais
nenhum benefício material de expressão poderia ser
esperado, foi muito compreensível, numa época em que tais
intervenções não representavam qualquer transtorno aos
Estados Unidos, o qual herdara um longo período de paz,
fazendo com que a realidade brutal das guerras fosse quase
esquecida. Em tais circunstâncias especiais, o imperialismo
era visto simplesmente como uma extensão, para além das
fronteiras nacionais, da noção de virtude e - de sabedoria
especiais do intelectual ungido, o qual deveria guiar a vida
de outros povos.
O notório editor William Allen White disse que:
"Apenas os anglo-saxões podem governar a si mesmos" e "é
o destino manifesto dos povos anglo-saxões seguirem em
frente como conquistadores do mundo". O jornalista
progressista Jacob Riis, que conhecia Theodore Roosevelt
desde os tempos em que ele fora comissário de polícia na
cidade de Nova York, disse, em sua cruzada: "Cuba está
livre e deveria agradecer ao presidente Roosevelt por sua
liberdade". Ele também disse: "Não sou belicista xenófobo,
mas quando certas coisas acontecem tenho que me
levantar e aplaudir. A forma que a moderna diplomacia
norte-americana está conduzindo as questões é motivo de
aplausos".[503] Willard D. Straight, financiador e um dos
fundadores da revista New Republic, e Herbert Croly, seu
primeiro editor, apoiaram as aventuras imperialistas de
Theodore Roosevelt.
Croly declarava que "a pacificação forçada de um ou
mais centros de desordem" no hemisfério ocidental seria
uma tarefa para os Estados Unidos, o qual "já teve uma
estreia eficiente nesse grande projeto ao pacificar Cuba e ao
tentar introduzir um pouco de ordem nas relações entre as
turbulentas repúblicas da América Central".[504] Croly não
via nenhuma contradição entre os princípios que
embasavam as reformas domésticas dos progressistas e o
apoio dos progressistas a uma política internacional
intervencionista.

Longe de obstruir o processo de desenvolvimento


doméstico, a guerra e sua política expansionista
beneficiaram essa melhora ao despertar as
aspirações nacionais, dando um tremendo impulso
para o trabalho de reforma nacional (...) o que
indiretamente ajudou a colocar na cadeira
presidencial o homem que, como já disse,
representava tanto a ideia nacional quanto o
espírito de reforma.[505]

De forma semelhante, John Dewey via a guerra como


uma forma de frear "a tradição individualista", à qual ele se
opunha, para o estabelecimento"da supremacia da
necessidade pública sobre as possessões privadas”.[506]
Woodrow Wilson não apenas acreditava no acerto da
intervenção de McKinley sobre as colônias espanholas, mas,
como presidente, ordenou a execução de um bom número
de intervenções militares na América Latina[507] antes de
executar sua maior e mais fatídica intervenção, a entrada
dos EUA na Primeira Guerra Mundial, que assolava a Europa.
◆ ◆ ◆

OS ESTADOS UNIDOS EM GUERRA


O motivo ostensivamente alegado para a entrada dos
Estados Unidos no impasse sangrento, em que se arrastava
a Primeira Guerra Mundial na Europa, foi movido pela ação
de submarinos alemães, os quais afundaram navios de
passageiros transportando civis norte-americanos. Mas
esses eram navios que entravam em zona de guerra, dentro
da qual tanto os britânicos quanto os alemães impunham
bloqueios navais, os primeiros por meio de navios de
guerra, os segundos usando submarinos e ambos com a
explícita intenção de sabotar o fornecimento de material de
guerra e de comida para o inimigo.[508] Além disso, o
torpedeamento mais famoso realizado pelos submarinos
alemães, o afundamento do Lusitania, ocorreu com um
navio de passageiros britânico que, como foi revelado anos
mais tarde, carregava secretamente suprimentos militares.
Pela própria natureza da guerra submarina, esse tipo
de máquina de guerra não daria avisos e pausas para que a
tripulação e os passageiros desembarcassem antes do
torpedeamento. Isso era ainda mais incontornável quando
se sabia que muitos dos navios civis que entravam em zona
de guerra estavam armados e que, com o advento do rádio,
qualquer um deles poderia de pronto avisar outros vasos de
guerra, os quais poderiam se dirigir imediatamente para
região a fim de destruir o submarino. Os repentinos ataques
dos submarinos - a única forma de operação abaixo das
águas adicionavam uma dose extra de terror às mortes de
vítimas inocentes. Porém, foi a insistência de Woodrow
Wilson sobre o direito que teriam os norte-americanos de
ultrapassar os bloqueios navais durante um período de
guerra que acabou criando o cenário para essas tragédias.
Ele tinha ao seu lado convenções internacionais criadas
antes que os submarinos se tornassem fator vital da guerra
marítima. Finalmente, ele transformou o caso da guerra
submarina alemã contra navios que se dirigiam a portos
inimigos o motivo central de seu apelo ao Congresso, em
1917, para a declaração de guerra contra a Alemanha.
Se esse era o motivo real de Wilson para se lançar à
guerra ou, em vez disso, apenas uma desculpa para lançar
uma cruzada ideológica internacional não está claro,
especialmente diante da própria mensagem de guerra e das
subsequentes afirmações e ações do presidente Wilson. Ao
declarar sua mensagem de guerra no Congresso, Wilson não
se conteve em suas críticas à natureza autocrática do
governo alemão e em seu comentário sobre "coisas
animadoras que aconteceram na Rússia nas últimas
semanas",[509] com a deposição do governo autocrático do
czar. Isso se alinhava com sua caracterização mais famosa
sobre a Primeira Guerra Mundial, como uma guerra pela
qual "o mundo precisa se tornar seguro para a democracia",
[510] e seus posteriores esforços pós-guerra para refazer

nações e impérios sob a imagem de sua visão, de como eles


deveriam ser - o que era a continuação, numa escala maior,
de suas políticas intervencionistas na América Latina.
Antes que a guerra terminasse, Wilson exigiu
publicamente "a destruição de todo o poder arbitrário que
possa, em qualquer lugar e de forma separada, secreta e
isolada, perturbar a paz do mundo". Isso não era uma
retórica vazia. Wilson enviou uma nota para a Alemanha
exigindo que o imperador Guilherme abdicasse.[511]
Assim como muitos outros intelectuais, Wilson
retratava suas ações ideológicas, tomadas sem motivos
materiais, como se estivessem de alguma forma num plano
moral superior às ações tomadas em vista do
desenvolvimento econômico dos indivíduos ou dos
interesses territoriais das nações[512] - como se sacrificar
inúmeras vidas para permitir que o intelectual ungido
desempenhasse seu papel histórico no mundo, avançando
sua visão, não significasse, no mínimo, o mesmo nível de
egoísmo e endurecimento que a busca por fins materiais
determina. Mais tarde, Adolf Hitler diria: "Tenho que adquirir
imortalidade, mesmo que para isso toda a Alemanha pereça
no processo".[513] Woodrow Wilson era muito moralista para
dizer tal coisa, mas tendo-se em vista a capacidade que o
ser humano tem para justificar, com verniz racional, suas
paixões, a diferença real não é muito grande.
Gastar sangue e recursos de uma nação para o
engrandecimento de seus ideais foi um modelo adotado por
muitos intelectuais da época, assim como em períodos
posteriores. Além disso, da mesma forma que muitos outros
assuntos tratados pelos intelectuais, as políticas e as ações
de Woodrow Wilson não foram, em grande parte, julgadas
por suas consequências empíricas, mas avaliadas segundo
sua adequação à visão do intelectual ungido. Entre
progressistas e outros membros da esquerda que apoiaram
o presidente Wilson em seus esforços de guerra estavam
Herbert Croly, John Dewey, Clarence Darrow, Upton Sinclair,
Walter Lippmann, John Spargo e George Creel, um ex-
caluniador que encabeçava a propaganda dos esforços de
guerra para a administração Wilson. Dewey, por exemplo,
declarou: "Sou um completo e total simpatizante da parte
desempenhada por este país nesta guerra e desejo ver
todos os recursos empregados para o sucesso da operação".
[514]
Considerando-se que Wilson fora, durante boa parte
de sua vida adulta, o símbolo máximo do intelectual
acadêmico, é certamente esperado que suas palavras como
presidente encontrassem ressonância, inúmeras vezes,
entre muitos outros intelectuais, conquistando abundantes
elogios. Por exemplo, um dos discursos de Woodrow Wilson
sobre o direito de autodeterminação dos povos, em 1916,
provocou as seguintes reações:

Por exemplo, o presidente da Faculdade Williams


comparou-o ao discurso de Gettysbury. Walter
Lippmann, usando a doutrina Monroe como ponto
de referência, escreveu: "Em seu significado
histórico é facilmente o evento diplomático mais
importante que nossa geração conheceu".
Hamilton Holt proclamou que o discurso "não
deixa a desejar em sua importância política diante
da Declaração da Independência".

Num editorial intitulado "A Grande Fala do sr.


Wilson", a New Republic sugeria que o presidente
tinha verbalizado "um ponto de virada decisivo na
história do mundo moderno".[515]

Não só a história fracassou em ranquear as


observações do presidente Wilson com os pronunciamentos
com os quais elas foram comparadas, mas naquela época,
seu próprio secretário de Estado, Robert Lansing,
encontrava-se profundamente confuso com o conceito de
autodeterminação dos povos. Ele escreveu em seu diário:

Essas frases certamente vão causar problemas e


irritação. O presidente é um orador nato. Ele
admira os aforismos e se rejubila em formulá-los.
Mas quando chega o momento de aplicá-los na
prática, ele se torna tão vago que começamos a
duvidar do valor dessas coisas. Ele aparentemente
nunca prevê aonde suas palavras vão levar ou
como elas serão interpretadas pelos outros. Na
verdade, ele parece não se importar, desde que
suas palavras soem bonito. O dom de falar bem
pode se tornar uma maldição, a menos que as
frases sejam colocadas ao teste de aplicações
práticas antes de serem pronunciadas.[516]

Dez dias mais tarde, o secretário Lansing retornou a


esse mesmq assunto em seu diário:

A frase está simplesmente carregada de dinamite.


Levantará esperanças que nunca poderão ser
cumpridas. Temo que isso custe milhares de vidas.
No fim está destinada ao descrédito, a ser
chamada de o sonho de um idealista que
fracassou em perceber o perigo até que fosse
tarde demais para conter aqueles que tentaram
colocar o princípio sob vigência. Que calamidade
que a frase foi pronunciada! Quanta miséria isso
causará ! Pense nos sentimentos do autor quando
ele contar os mortos que morreram porque ele
pronunciou uma frase![517]

É importante observar que Lansing não alcançou


apenas uma conclusão diferente da dos admiradores de
Wilson. Ele aplicou um critério inteiramente diferente -
resultados concretos, em vez de ressonância com uma visão
consagrada. A viabilidade militar, econômica e social das
nações criadas por decreto depois da Primeira Guerra
Mundial não foi uma questão que os vitoriosos tiveram
tempo suficiente para investigar, muito menos para
responder. Assim como em outros inúmeros contextos nos
quais "os povos" são invocados, os povos concretos tiveram,
na realidade, pouco a dizer a respeito das decisões
tomadas. A chamada autodeterminação dos povos era, de
fato, a determinação do destino de muitos povos feita por
estrangeiros, os quais se apoderaram do papel de
tomadores de decisão, como substitutos, ao mesmo tempo
que não tinham nem o grau de conhecimento nem a
responsabilidade pelas consequências, as quais acabaram
sendo desastrosas.[518]
Embora o conceito de autodeterminação dos povos
esteja associado ao presidente Wilson, a ideia de uma
completa redefinição das fronteiras nacionais já pairava na
atmosfera intelectual. H. G. Wells, em 1914, escrevera sobre
a necessidade de "uma Europa pacificada e remapeada"[519]
depois da guerra e disse: "Estamos agora lutando por um
novo mapa da Europa".[520] Em outras palavras, a visão do
intelectual ungido moldaria a vida de milhões de outras
pessoas, incluindo a vida de nações estrangeiras inteiras, a
visão posteriormente expressa e realizada pelo presidente
Woodrow Wilson.
Escrevendo em 1915, Walter Lippmann, que se
tornaria, quatro anos mais tarde, membro da delegação do
presidente Wilson em Paris, percebera a brutal falta de
conhecimento sobre os povos cujos destinos estariam sendo
debatidos, mas que eram tratados como se fossem peças
de um tabuleiro de xadrez, arranjadas em função de um
grande esquema:

Estamos imersos em mapas, falando sobre povos


e populações como se fossem massas abstratas,
sintonizando nossa mente em uma escala jamais
ouvida na história (...). Quando você pensa sobre o
mistério que representa a simples zona leste de
Nova York, para os que moram no lado oeste da
mesma cidade, o negócio de organizar o mundo
para a satisfação das pessoas que nele vivem
assume suas proposições verdadeiras.[521]

A ideia de fazer com que cada "povo" tenha sua


própria terra ignora tanto a história quanto a demografia,
para não falar de economia e segurança militar. As
localizações dos povos e das fronteiras nacionais já haviam
mudado repetida e drasticamente por toda a história. Boa
parte dos territórios no mundo, assim como a maior parte
dos territórios dos desmembrados impérios Habsburgo e
Otomano, pertenceram a diferentes soberanias, em
diferentes períodos da história. Nesses impérios, o número
de cidades com múltiplos nomes provindos de línguas
distintas deveria ter funcionado como indicação clara sobre
a realidade histórica, assim como as mesquitas convertidas
em igrejas e as igrejas convertidas em mesquitas.
A ideia de resgatar minorias oprimidas ignorava o
prospecto até se tornar realidade - de que as minorias
oprimidas, ao se tornarem grupo governante de suas
próprias nações, iniciariam imediatamente o processo de
opressão de outras minorias agora sob seu controle. A
solução encontrada por Wilson e aplaudida pelos outros
intelectuais se fazia tão ilusória quanto perigosa. Estados
pequenos e vulneráveis criados a partir do
desmembramento do Império Habsburgo foram
posteriormente arrebanhados, um por um, por Hitler
durante a década de 1930; uma operação que teria sido
muito mais difícil e temerosa caso ele tivesse que enfrentar
um Império Habsburgo unido. O dano causado estendeu-se
para além dos pequenos estados, pois mesmo um estado
maior como a França ficou muito mais vulnerável depois
que Hitler tomou controle dos recursos militares e materiais
da Tchecoslováquia e da Áustria. Hoje em dia, a Otan é, de
fato, uma tentativa de proteger Estados individualmente
vulneráveis, agora que os impérios dos quais alguns deles
faziam parte foram dissolvidos.
Assim como aconteceu com outra frase arrebatadora
de Wilson, "O mundo precisa se tornar seguro para a
democracia",[522] os resultados reais e concretos de suas
políticas levaram à direção exatamente oposta - ao
surgimento de brutais regimes totalitários, os quais
substituíram os governos autocráticos na Rússia, na Itália e
na Alemanha. Apesar das "promissoras" notícias sobre a
queda do governo czarista na Rússia, à qual Wilson se
referiu em seu discurso pedindo ao Congresso que
declarasse guerra à Alemanha, o regime de Kerensky que se
seguiu foi prejudicado pela administração Wilson, a qual
cedeu empréstimos à Rússia, que deles precisava
desesperadamente, sob a condição de que o país
continuasse a lutar uma guerra desastrosa, impopular e
sem sinal de vitória, o que levou, dentro de um ano, à
revolução bolchevique, inaugurando um dos regimes
totalitários mais sangrentos do século XX.
Resumindo, o fim da autocracia na Europa, que Wilson
e a intelligentsia, em geral, acolheram de forma tão festiva,
não trouxe à cena promissores governos democráticos,
esperados para substituir o antigo modelo, mas essas
autocracias foram substituídas por regimes muito piores. Os
czares, por exemplo, não executaram tantos prisioneiros
políticos em 92 anos como os soviéticos executaram em um
único ano.[523]
Assim como em outros contextos, os intelectuais
tendiam a agir com base em incessantes críticas e uma
oposição militante às deficiências dos governos existentes
para que isso levasse à "mudança" que, implicitamente, era
tida para melhor, a despeito das muitas vezes em que as
mudanças foram, de fato, para pior. Wilson representava
também o máximo dessa posição intelectual. Anos mais
tarde, outros governos autocráticos denunciados por outras
gerações de intelectuais na China, no Irã ou em Cuba foram
seguidos por regimes totalitários muito mais brutais e
internamente repressivos, além de serem mais perigosos
em suas políticas internacionais.
Os efeitos da administração Woodrow Wilson para a
democracia dentro dos Estados Unidos foram, da mesma
forma, negativos, apesar de toda a retórica para tornar o
mundo mais seguro para a democracia. A imposição de
restrições de guerra sobre as liberdades civis foi propagada
de forma muito mais intensa durante o envolvimento, de
certo modo breve, dos Estados Unidos na Primeira Guerra
Mundial toda ela combatida fora do país e do outro lado do
oceano - do que foi durante o envolvimento muito mais
longo dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial,
quando o conflito esteve muito mais perto de casa, com os
ataques japoneses à base naval de Pearl Harbor e a invasão
das ilhas Aleutas, além dos ataques de submarinos alemães
aos navios norte-americanos ao longo da costa leste dos
Estados Unidos. Algumas das decisões marcantes da
Suprema Corte, em relação à liberdade de expressão,
vieram como resposta às tentativas da administração
Wilson em silenciar os críticos sobre a forma como a
Primeira Guerra fora conduzida.
Durante o período relativamente breve do
envolvimento militar norte-americano na Primeira Guerra
Mundial - um pouco mais de um ano e meio -, um pacote
singularmente expressivo de regulamentações federais
sobre a condução da vida interna dos Estados Unidos entrou
em vigência, confirmando a visão intelectual dos
progressistas que viam a guerra como uma oportunidade
valiosa para substituição dos processos tradicionais de
tomada de decisões, baseados em mecanismos
socioeconômicos individuais para a implantação de formas
coletivistas de controle e de doutrinação. Assembleias,
comissões e comitês foram rapidamente criados e
colocados sob a direção do Conselho da Indústria de Guerra,
o qual passou a governar boa parte da economia,
estabelecendo racionamentos e fixando preços. Enquanto
isso, o Comitê de Informação Pública, descrito de forma
correta como o "primeiro ministério moderno de propaganda
do Ocidente", era criado e administrado pelo progressista
George Creel, que tomou como missão tornar a opinião
pública uma única e compacta "massa quente" de apoio aos
esforços de guerra em nome de "100% de americanismo",
rotulando todo aquele que "se recusasse a apoiar o
presidente durante essa crise" como "pior que um traidor".
[524]
À medida que o público sofria o ataque da
propaganda em escala maciça - com dezenas de milhões de
panfletos e com "estudos de guerra" criados nas faculdades
e nas universidades, por exemplo - uma Lei de Sedição foi
promulgada, a qual proibia "exortação, impressão, escrita
ou publicação de qualquer tipo de linguagem desleal,
caluniosa, abusiva ou profana sobre os governos ou os
militares dos Estados Unidos". Até mesmo a revista pró-
guerra New Republic foi alertada de que correria o risco de
ser banida dos correios se continuasse a publicar anúncios
do Centro Nacional das Liberdades Civis.[525] Toda essa
operação foi promovida pelos progressistas - não de forma
gratuita, mas consistentemente alinhada com sua visão
dirigista, a visão do intelectual ungido que toma o controle
das massas em nome de objetivos coletivos, os quais se
sobrepõem às decisões individuais que os progressistas
veem como caóticas.
A grande ironia era que todo esse aparato de
repressão econômica, política e social foi justificado como
parte dos esforços de uma guerra movida para que "o
mundo se torne seguro para a democracia"-um objetivo que
se encontrava, por sua vez, muito longe da causa ostensiva
para a declaração de guerra, a guerra submarina alemã.
Assim como as repercussões do envolvimento norte-
americano na Primeira Guerra Mundial não cessaram com o
término da guerra, da mesma forma as repercussões das
políticas domésticas da administração Wilson também não
cessaram com seu final. Por exemplo, para John Dewey, o
orquestrado controle governamental sobre a economia
demonstrava "as possibilidades concretas de
regulamentação governamental sobre os negócios privados"
e esse "controle público" era visto como de implantação
"ridiculamente fácil".[526] Como acontece em outros lugares,
ordens governamentais foram manipuladas de forma
retórica, transformando-se em eufemismos politicamente
mais aceitáveis como "controle público", e a facilidade em
se impor tais regulamentações foi interpretada como
sucesso em se alcançar os objetivos proclamados. Além
disso, depois que as regulamentações de guerra foram
instituídas, a própria administração Wilson logo passou e
não pode determinar os efeitos duradouros de suas políticas
em épocas de paz.
O público, comportando-se de forma diferente dos que
faziam uso de eufemismos, repudiou a linha progressista de
Wilson nas urnas, elegendo administradores conservadores
por toda a década de 1920. Porém, a experiência inebriante
de intervenção governamental e controle da economia em
tempo de guerra moldou o pensamento de muitos
indivíduos, os quais seriam, depois, apoiadores ou
participantes da administração do New Deal durante a
década de 1930, encabeçados pelo segundo-secretário da
Marinha do governo Wilson, Franklin D. Roosevelt.
◆ ◆ ◆
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

OS INTELECTUAIS E O PERÍODO ENTRE-


GUERRAS
Se por um lado a Primeira Guerra Mundial reforçou as
tendências dirigistas tanto da intelligentsia quanto de
muitos na arena política, por outro ela devastou antigas
noções adotadas pelos intelectuais, que viam a guerra,
domesticamente, como um tônico social benéfico ou um
meio para disseminação de políticas progressistas no
âmbito internacional. Embora os intelectuais tivessem
apoiado as políticas de intervencionismo militar de Woodrow
Wilson na América Latina e na Europa, os horrores e as
devastações sem precedentes da Primeira Guerra Mundial
reorientaram quase toda a comunidade intelectual do
mundo ocidental, a qual se alinhou na direção contrária, em
direção ao pacifismo militante. Na verdade, o pacifismo
tornou-se uma atitude universal entre boa parte da
população em geral e, portanto, uma força política poderosa
nas nações democráticas.
Não importa quão drasticamente os intelectuais foram
forçados a mudar sua mente com o despertar da Primeira
Guerra Mundial, de qualquer forma eles continuaram
convencidos, como sempre, de que suas visões sobre os
assuntos de guerra e paz eram muito superiores às visões
do público em geral. Parte da razão para a universalização
da visão pacifista foi circunstancial- em especial as
experiências sombrias e chocantes da Primeira Guerra
Mundial - e parte foi devido à reação do público em geral às
circunstâncias, em particular a intelligentsia e de forma
mais aguda a intelligentsia francesa, uma das mais
diretamente afetadas pelos horrores da guerra dentre as
democracias ocidentais. Os próprios fatos da guerra eram
desoladores:

Por volta de 1,4 milhão de franceses perderam a


vida; e mais de um milhão ficaram envenenados,
desfigurados, mutilados, amputados e deixados
em estado de invalidez permanente. Cadeiras de
rodas, muletas ou mangas de camisas balançando
soltas ou enfiadas nos bolsos se tornaram
cenários comuns. Um número ainda maior sofrera
algum tipo de ferimento: metade dos 6,5 milhões
que sobreviveram à guerra contraiu ferimentos
graves. E de forma mais visível, havia 1,1 milhão
de franceses que foram evidentemente diminuídos
e eram descritos como mutilés, um termo que a
língua inglesa prefere encobrir com o eufemismo
"deficiente".[527]

Em seu front ocidental, boa parte da guerra foi lutada


em território francês, e a França sofreu enormes baixas
durante a Primeira Guerra Mundial. Mais de um quarto de
todos os franceses entre 18 e 27 anos pereceram no
conflito.[528] Além disso, nem os custos humanos nem os
financeiros cessaram após o término das hostilidades.
Embora antes da guerra a população francesa masculina
fosse praticamente igual à feminina, as enormes baixas de
guerra entre jovens franceses determinou que, durante a
década de 1930, o número de mulheres entre 20 e 40 anos
de idade excedesse o número de homens na mesma faixa
etária em mais de um milhão - o que significava que mais
de um milhão de mulheres que atravessavam o auge da
vida adulta não poderiam realizar as expectativas
tradicionais de se tornarem esposa e mãe. Durante a
década de 1930, não houve número suficiente de bebês,
nascidos na França, para repor as pessoas que morreram
durante o mesmo período.[529]
O sentimento de confiança no governo francês
também desmoronou na medida em que pessoas que
haviam, por patriotismo, investido em fundos para ajudar a
financiar a Primeira Guerra Mundial viram os valores desses
fundos serem drasticamente reduzidos pela inflação,
dissipando as poupanças de toda uma vida de muitos
cidadãos. Portanto, em nenhum outro país se apresentava
campo mais fértil para o florescimento do pacifismo
militante e a desmoralização da pátria e nenhum criou mais
de ambos do que a intelligentsia francesa.
Romances críticos à guerra e memórias de veteranos
encontraram um amplo mercado na França. Uma tradução
do clássico livro antibelicista Nada de Novo no Front vendeu
72 mil cópias em dez dias e quase 450 mil cópias durante o
período natalino. O jornal L'Humanité contou a história do
livro em série e a revista Vie Intellectuelle elogiou a obra.
Em 1938, o ano do apaziguamento de Munique, o jornal
Echo de la Nievre disse: "Qualquer coisa menos a guerra".
[530] O romancista francês Jean Giono, um crítico antigo de

seu governo, também exortava a aceitação dos termos de


Hitler em Munique.[531] Tendências muito parecidas também
dominavam o público britânico durante os anos entre as
duas Guerras Mundiais:

No final da década de 1920 e início da década de


1930, a atmosfera pacifista era abastecida por um
fluxo de memórias e romances que exploravam os
horrores da Grande Guerra. Livros como Death of
a Hera [Morte de um Herói], de Richard Aldington,
e Memoirs of a Fox-hunting Man [Memórias de um
Caçador de Raposas], de Siegfried Sassoon, foram
publicados em 1928. Goodbye to Ali That [Adeus a
Tudo Isso], de Robert Graves, Adeus às Armas, de
Ernest Hemingway, e Nada de Novo no Front, de
Erich Maria Remarque, apareceram em 1929. O
filme de Lewis Milestone sobre o livro de
Remarque causou grande impacto.[532]

Somando-se aos muitos romances antibelicistas sobre


a Primeira Guerra Mundial, em torno de oitenta ou mais
livros sobre os horrores de futuras guerras foram publicados
na Grã-Bretanha entre as duas Guerras Mundiais. [533]
Um dos movimentos intelectuais mais notáveis da
década de 1920 foi aquele que lançou ao mundo todo a
ideia de que as nações deveriam se reunir e publicamente
renunciar aos conflitos armados. O proeminente intelectual
britânico Harold Laski colocava a questão da seguinte
maneira: "A experiência sobre as terríveis dimensões de um
conflito mundial parece ter convencido a melhor parte
dessa geração que o efetivo banimento da guerra se
apresenta como única alternativa razoável contra o suicídio
em massa".[534] Nos Estados Unidos, John Dewey criticava
os céticos com relação ao movimento para a renúncia
internacional da guerra como pessoas "estupidamente
presas a uma mentalidade ligada aos velhos hábitos". Ele
era firme em seu apoio a esse movimento, que desembocou
no pacto Kellogg-Briand de 1928. Dewey via os argumentos
contrários à renúncia da guerra como provenientes "dos que
acreditam no sistema da guerra".[535] Para Laski, Dewey e
outros a questão não se restringia apenas a uma hipótese
sobre a condução da guerra e da paz versus outra hipótese,
mas emergia como certeza do intelectual ungido versus a
posição dos ignorantes, os quais eram desconsiderados com
desprezo, em vez de terem seus argumentos respondidos.
Ser pacifista durante as décadas de 1920 e 1930
tornou-se motivo de prestígio e frases de cunho pacifista
facilitavam a admissão nos círculos de vaidades e de
lisonjas das elites. Durante uma reunião do partido
trabalhista britânico, o economista Roy Harrod ouviu uma
candidata proclamar que a Grã-Bretanha deveria se
desarmar "como exemplo para os outros", um argumento
bastante comum na época. A resposta dada por Harrod e a
réplica que provocou retrata o espírito da época:

"Você acha que nosso exemplo fará com que


Hitler e Mussolini se desarmem?", perguntei.

"Oh, Roy", ela disse, "será que você perdeu todo


seu idealismo?".[536]

Sob o mesmo espírito, outros ostentavam seu


pacifismo em termos pessoais, em vez de políticos. O
escritor J. M. Murry disse: "O que importa é que homens e
mulheres deem testemunho".[537] Todavia, a pacifista
Margery South opunha-se a esse tipo de pacifismo, o qual
poderia se tornar uma "preciosa" doutrina "cujo objetivo
será a regeneração do indivíduo, em vez da prevenção da
guerra".[538] Aqui, como em outros casos, a visão do
intelectual ungido servia aos intelectuais, e não se tratava
apenas de resolver a questão concreta. Assim como
Margery South, John Maynard Keynes também se opunha à
criação de políticas nacionais baseadas "na exortação para
se salvar a própria alma".[539]
Considerando-se o alto envolvimento psíquico dos
pacifistas com sua causa, não surpreende o fato de que
aqueles com opiniões contrárias sobre questões de guerra e
paz, assim como em outras questões, fossem, em vez de
respondidos, demonizados e tratados corno inimigos
pessoais ou corno pessoas que os ameaçavam. Corno foi
observado no capítulo 4, Bertrand Russell afirmava que o
sujeito que se opunha ao pacifismo era alguém que se
"deleita com a guerra e odiaria viver num mundo onde a
guerra fora eliminada".[540] Num estado de espírito
semelhante, H. G. Wells falava sobre urna substancial
porção de "seres humanos que definitivamente gostam das
guerras e, conscientes disso, querem e buscam a guerra".
[541]
Kingsley Martin, durante muito tempo editor da
influente revista New Statesman, também caracterizava
Winston Churchill, em 1931, corno alguém cuja mente "está
confinada a um molde militarista", corno urna explicação
psicológica para entender a campanha de Churchill pela
"manutenção da força total do exército francês e da
marinha britânica".[542] Mais genericamente, Kingsley Martin
tratava os que tinham visões contrárias às suas, em relação
à condução da guerra e da paz, corno pessoas com
problemas psicológicos, em vez de apresentar argumentos
que precisariam ser respondidos com outros argumentos:

Ter um inimigo estrangeiro à espreita no horizonte


nos permite odiar e preservar nossa boa
consciência (...). É somente durante os tempos de
guerra que conquistamos um completo passaporte
moral, quando todas as coisas que aprendemos
aos pés de nossas mães, todas as inibições morais
impostas pela educação e pela sociedade podem
ser descartadas sem culpa, quando se pode
participar livremente do jogo sujo, quando a
mentira se torna um dever e matar não é mais
considerado assassinato.[543]

Dessa forma, a insignificância dos oponentes é


tomada como axiomática, esvaziando-se quaisquer
argumentos contrários às posições pacifistas. Kingsley
Martin não foi o único a usar esse tipo de artimanha. No
Parlamento, os colegas de Churchill eram igualmente
desdenhosos.[544]
Essas visões não eram peculiares aos intelectuais
britânicos e norte-americanos. A intelligentsia francesa
desempenhou um papel fundamental na promoção da causa
pacifista entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Mesmo
antes de o Tratado de Versalhes ser assinado, o
internacionalmente renomado escritor francês Romain
Rolland, vencedor do Grande Prêmio de Literatura da
França, depois eleito à Academia de Ciências da Rússia e
ganhador do prêmio Goethe, além de ter recebido o prêmio
Nobel de Literatura, divulgara um manifesto conclamando
os intelectuais de todos os países para que se opusessem
ao militarismo e ao nacionalismo e caminhassem em
direção à paz.[545]
Em 1926, proeminentes intelectuais de vários
países assinaram uma petição, internacionalmente
divulgada, exortando pelo "passo definitivo ao completo
desarmamento e à desmilitarização da mentalidade entre
as nações civilizadas". Dentre os signatários, encontramos
H. G. Wells e Bertrand Russell na Inglaterra e Romain
Rolland e Georges Duhamel na França.
A petição exortava o banimento do serviço militar, em
parte "para livrar o mundo do espírito do militarismo".[546]
Por trás de tais argumentos se encontrava a suposição
crucial de que o desarmamento físico e o moral seriam
necessários para se sustentar a paz. Tanto nessa petição
quanto em outras declarações afirmando visões
semelhantes, não há qualquer preocupação com o fato de
que ambos os tipos de desarmamento deixariam as nações
desarmadas muito vulneráveis, à mercê de outras nações
que resolvessem não adotar os mesmos princípios, o que
então tornaria uma nova guerra algo muito mais atraente
para as últimas na medida em que as chances de vencê-la
aumentariam tremendamente. Hitler, por exemplo, baniu o
clássico antibelicista Nada de Novo no Front, uma vez que
ele não queria saber de desarmamento físico ou moral para
a Alemanha, mas não deixou de observar com cuidado o
fenômeno se desenrolar nas democracias ocidentais
enquanto tramava seus movimentos para capturá-las.
Os pacifistas dessa época pareciam não levar em
consideração que outras nações poderiam ser reais inimigos
potenciais, mas avaliavam a guerra como o inimigo a ser
debelado, juntamente das armas de guerra e daqueles que
as fabricavam, "os mercadores da morte", que se tornou, na
época, o termo da moda, além de título de um best-seller
lançado em 1934.[547] Os "mercadores da morte caminham
gordos e satisfeitos", declarava John Dewey, em 1935.[548]
Romain Rolland os chamava de "negociantes do massacre".
[549] H. G. Wells disse: "O equipamento bélico seguiu

cegamente o avanço industrial até que se transformasse


num perigo monstruoso e imediato para a sociedade".[550]
Harold Laski falava sobre a "malignidade dos armamentos".
[551] Aldous Huxley referia-se aos navios de guerra como

insetos "repugnantes", um "imenso besouro acocorado na


água exibindo toda sua venenosa couraça, da qual se
pronunciam instrumentos de destruição, cada cerda uma
arma, cada poro um escape para torpedos", e
complementava: "O homem criara esse enorme e odioso
modelo de inseto com o explícito propósito de destruir
outros homens".[552]
Os pacifistas não viam as forças militares como
agentes de dissuasão diante das forças militares de outras
nações, mas como influências malignas em e por si
mesmas. J. B. Priestley, por exemplo, disse que "devemos
desencorajar qualquer crescimento armamentista",
explicando que "a escalada armamentista fomenta o medo".
Além disso: "Uma vez que uma nação esteja pesadamente
armada, ela é obrigada a flertar com a possibilidade da
guerra, e do mero flertar para a real deflagração da guerra é
necessário apenas um pequeno passo".[553] O notório
escritor E. M. Forster, autor de Passagem para a Índia, disse
que ficara "chocado" ao perceber que suas ações na
Imperial Chemical eram ações de uma empresa que
poderia, em potencial, produzir armas de guerra, embora
não fosse, na época, uma empresa "armamentista". Dessa
forma, ele vendeu imediatamente todas suas ações. Um ano
mais tarde ele comentou: "Uma das razões pelas quais votei
no partido trabalhista, na semana passada, foi minha
esperança de que ele não nos arme adequadamente: isso
seria, usando uma linguagem mais decorosa, suficiente para
nos afastar da corrida armamentista, cujo desastre parece
estar assegurado".[554]
A visão de considerar as armas, em vez de outras
nações, como o perigo real, não foi apenas uma moda
intelectual, mas acabou criando sólidas bases políticas, as
quais foram aplicadas nas agendas dos governos e nos
acordos internacionais, começando pelos Acordos Navais de
Washington de 1921-1922, assinados pelas principais
potências navais do mundo para que se limitassem o
número e o tamanho dos vasos de guerra, um acordo que
foi saudado por john Dewey, dentre outros,[555] e o pacto
Kellogg-Briand de 1928, o qual renunciava a guerra. "Fora
com os rifles, as metralhadoras e os canhões!", dizia o
ministro do Exterior francês, Aristide Briand,[556] coautor do
pacto Kellogg-Briand. Em uma carta para a New Republic,
em 1932, Romain Rolland exortava: "Unam-se, todos vocês,
contra o inimigo comum. Abaixo a guerra!".[557] Mais tarde,
Georges Duhamel, ao olhar retrospectivamente para os
pacifistas franceses do período entre-guerras, incluindo a si
mesmo, resumiu a abordagem então adotada, que evitava
considerar outras nações como inimigas potenciais:

Nós, franceses, por mais de doze anos não


poupamos esforços para esquecer o que, de fato,
sabíamos sobre a Alemanha. Sem dúvida que foi
um ato imprudente, mas brotou de um desejo
sincero, de nossa parte, de alcançar harmonia e
colaboração. Estávamos dispostos a perdoar. E
que estávamos dispostos a perdoar? Algumas
coisas muito horríveis.[558]

A visão da própria guerra como o inimigo, em vez de


observar o comportamento de outras nações, começou a se
difundir logo depois do término da Primeira Guerra Mundial,
assim como a ideia de que o patriotismo deveria ser
superado pelo internacionalismo em nome dos interesses
pela paz. Dirigindo-se, em 1919, aos professores escolares,
Anatole France exortava para que eles usassem a escola
como ferramenta para se promover o pacifismo e o
internacionalismo. "Ao ensinar as crianças, vocês
determinarão o futuro", ele dizia. "O professor deve fazer a
criança amar a paz e suas obras; ele deve ensiná-la a
detestar a guerra; ele banirá da educação tudo aquilo que
excita ódio ao estrangeiro, mesmo o ódio ao inimigo de
ontem", ele complementava. Anatole France declarava que
"precisamos nos tornar cidadãos do mundo ou veremos
todas as civilizações perecerem".[559] Durante as duas
décadas seguintes, ideias como essas se tornaram
dominantes nas escolas francesas.
Um papel central na disseminação do movimento
pacifista na França foi desempenhado pelas escolas ou,
mais especificamente, pelos sindicatos de professores
franceses, que na década de 1920 deram início a uma série
de campanhas organizadas que se opunham aos livros
escolares do pós-guerra que retratassem favoravelmente os
soldados franceses, os quais haviam defendido seu país
contra os invasores alemães durante a Primeira Guerra
Mundial. Tais textos foram cunhados de "belicosos", uma
tática verbal ainda comum entre os integrantes da visão do
intelectual ungido, tratando as visões divergentes como se
fossem meras emoções, como se nesse caso apenas o
estado mental de beligerância explicasse a resistência aos
invasores ou se associasse àqueles que arriscaram a vida
para defender a nação. O líder do sindicato dos professores,
o Syndicat National des Instituteurs (SN), lançou uma
campanha contra esses livros escolares de "inspiração
belicosa", os quais foram caracterizados como "um perigo
para a implantação da paz". Já que era dito que o
nacionalismo era uma das causas da guerra, o
internacionalismo ou a "imparcialidade" entre as nações foi
considerado uma característica necessária a ser adotada
nos livros escolares.[560]
Isso não era tido como contrário ao espírito patriótico,
mas no mínimo acabou esvaziando o senso de dever
perante os que tinham morrido para proteger a nação, com
sua obrigação implícita sobre as gerações seguintes para
que fizessem o mesmo se e quando isso se tornasse
novamente necessário.
Os líderes com inclinação para reescrever os livros
escolares de história chamaram seu objetivo de
"desarmamento moral", o que abriria o caminho para o
desarmamento militar, o qual muitos consideravam outro
ponto central para a conquista da paz. As listas dos livros
censurados nas escolas foram organizadas por Georges
Lapierre, um dos líderes do SN. Por volta de 1929 ele se
gabava de ter removido todos os livros "belicosos", os quais
a campanha encabeçada pelo SN tinha retirado das escolas.
Esses livros haviam sido reescritos ou substituídos. Diante
da ameaça de perder uma boa parte do mercado editorial
escolar, os editores franceses submeteram-se às exigências
dos sindicatos, determinando que os livros sobre a Primeira
Guerra Mundial deveriam ser revisados a fim de refletir a
"imparcialidade" entre as nações e promover o pacifismo.
Dessa forma, o que fora a heróica defesa dos soldados
franceses em Verdun, um evento de proporções épicas,
apesar das maciças baixas sofridas, acabou se
transformando na história dos sofrimentos horríveis pelos
quais passaram todos os soldados em Verdun, castigados
pelas balas, pelas granadas, pelos gases venenosos e pelo
congelamento. A história foi, então, apresentada dentro do
tão almejado espírito de imparcialidade: "Imaginem a vida
desses combatentes - franceses, aliados ou inimigos".[561]
Resumindo, homens que haviam sido honrados como heróis
da pátria por terem sacrificado a própria vida numa luta
desesperada para deter os invasores de seu país eram
agora verbalmente reduzidos a vítimas, colocados no
mesmo patamar de outras vítimas, incluindo os invasores.
As cerimônias dedicando monumentos para comemorar os
soldados que haviam morrido em batalha eram, por vezes,
usadas para a encenação de discursos que promoviam a
ideologia pacifista.[562]
Dentre aqueles que tentavam alertar contra o
"desarmamento moral" estava o marechal Phillipe Pétain, o
vencedor da batalha de Verdun e que, em 1934, dissera que
os professores franceses eram livres para "criar nossos
filhos em ignorância ou em desprezo pela terra pátria".[563]
Anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, um
dos alertas divulgados aos soldados franceses dizia:
"Lembrem-se de Mame e de Verdun!".[564] Porém, isso era
dito para uma geração que havia sido ensinada a ver Mame
e Verdun não como lugares históricos de heroísmo patriótico
dos soldados franceses, mas como lugares onde os
soldados, de todos os lados, tinham sido igualmente
vítimas. O comportamento da França durante a Segunda
Guerra Mundial foi notadamente contrastante com o
comportamento que tivera na Primeira Guerra. A França
havia repelido os invasores alemães por quatro longos anos
durante a Primeira Guerra Mundial, apesar de ter sofrido
baixas horrendas, um número maior de baixas do que um
país muito maior como os Estados Unidos jamais sofreu em
qualquer guerra ou em todas elas juntas. No entanto,
durante a Segunda Guerra Mundial a França se rendeu
depois de apenas seis semanas de combate, em 1940. No
amargo momento da derrota, o líder do sindicato dos
professores ouviu o seguinte: "Você é parcialmente
responsável pela derrota".[565] Charles de Gaulle, François
Mauriac e muitos outros franaceses atribuíram o desastre à
falta de empenho nacional e a uma decadência moral geral,
as quais podiam explicar o repentino e humilhante colapso
da França em 1940.[566]
Embora o súbito colapso da França tenha causado
surpresa em todo o mundo, Winston Churchill já dissera
muito antes, em 1932, o seguinte: "A França, embora
armada até os dentes, é pacifista em suas entranhas".[567]
Hitler não se surpreendeu com o repentino colapso da
França, e de fato ele o previra.[568] Quando ele pressionou
seus generais para que traçassem os planos para a invasão
da França, logo após a rápida vitória sobre a Polônia no
outono de 1939, as análises dos generais sobre os fatores
logísticos e militares envolvidos os deixavam com sérias
dúvidas sobre a viabilidade da operação. Os generais de
Hitler duvidavam de que pudessem ter sucesso atacando a
França antes de 1941 ou mesmo antes de 1942. Porém, o
máximo atraso que Hitler concedera foi até a primavera de
1940, quando de fato começou a invasão alemã sobre a
França. Os motivos de Hitler eram completamente
diferentes dos fatores objetivos que os generais alemães
consideravam. Ele baseara suas análises no comportamento
dos franceses.
Hitler dissera que a França não era mais a mesma
França que lutara encarniçadamente nos quatro anos da
Primeira Guerra Mundial, afirmando que a França atual
perdera sua força combativa necessária para assegurar a
vitória e que ela vacilaria e se renderia.[569] Isso foi, de fato,
o que acabou, em geral, acontecendo. Os fatores objetivos,
tais como o número e a qualidade dos equipamentos
militares à disposição da França e de seus aliados
britânicos, em comparação aos que estavam à disposição
dos invasores alemães, levavam os líderes militares tanto
na França quanto na Alemanha a concluírem, na época do
início da invasão, que a França tinha as maiores chances de
vitória.[570] Contudo, Hitler já fizera, muito antes, um estudo
sobre a opinião pública, assim como sobre a opinião oficial,
na França e na Grã-Bretanha. [571] As palavras e os feitos dos
políticos e dos pacifistas nesses países entraram nos
cálculos de Hitler.
A invasão da França ocorreu naquele momento
somente porque Hitler insistiu, de forma inflexível, sobre a
data, desconsiderando os conselhos de seus generais mais
graduados. Décadas mais tarde, estudos acadêmicos na
França e na Alemanha chegaram à mesma conclusão a que
chegaram os líderes militares franceses e alemães em 1940,
de que os fatores militares objetivos favoreciam uma vitória
da França[572]- e certamente nada parecido com o rápido e
total colapso que, de fato, aconteceu. O quanto desse
colapso pode ser atribuído ao importante fator que a sorte e
os erros de cálculo desempenham em qualquer guerra, e o
quanto pode ser atribuído a uma erosão fundamental do
moral, do patriotismo e da resolução entre os próprios
franceses é uma questão que dificilmente será respondida
de forma definitiva.
O que fica claro, todavia, é que o espírito de incerteza
que marcou as respostas políticas francesas diante das
ameaças alemãs, durante os anos que anunciaram a
deflagração da Segunda Guerra Mundial, continuou a existir
durante o conflito, começando com os longos meses da
chamada "guerra de araque", de setembro de 1939 a maio
de 1940, durante os quais a França tinha uma superioridade
militar esmagadora no front ocidental da Alemanha, na
medida em que as forças alemãs se concentravam no leste,
lutando contra a Polônia, mas mesmo assim a França nada
fez. O general alemão responsável pela defesa do
vulnerável front ocidental disse: "Cada dia calmo, no lado
oeste, é para mim um presente de Deus".[573] Nos primeiros
dias da guerra, quando as forças militares alemãs se
concentravam mais pesadamente no front oriental, um dos
generais sob seu comando o informou que, se os franceses
atacassem, ele não teria recursos suficientes para contê-los
nem por um dia.[574] Mesmo um civil como o
correspondente norte-americano para assuntos estrangeiros
William L. Shirer ficara espantado ao observar a inação dos
franceses durante a "guerra de araque", relatando a
completa indecisão e inaptidão deles quando, em 1940, os
alemães atacaram.[575]
Apesar de a França ser o exemplo mais dramático de
"desarmamento moral", durante o período entre-guerras ela
não foi, de forma alguma, o único país em que essas visões
prevaleceram no seio da intelligentsia. De forma parecida,
os pacifistas geralmente retratavam as guerras como
resultado de atitudes ou de emoções nacionais, em vez de
vê-las como resultado de maquinações egoístas de
governantes agressivos. Num editorial de 1931 da New
Statesman and Nation, Kingsley Martin disse que "a guerra
moderna é produto da ignorância e do idealismo, não de
uma malignidade sagaz".
Portanto, o que seria necessário para evitar uma
guerra futura era "fazer com que a nova geração reconheça
que o patriotismo marcial é uma virtude obsoleta", uma vez
que participar de uma guerra futura seria "individualmente
vergonhoso, assim como socialmente suicida".[576] Bertrand
Russell definia patriotismo como "uma disposição para
matar e ser morto por motivos triviais".[577]
Em 1932, o escritor britânico Beverley Nichols
declarou publicamente que era a favor da paz a qualquer
preço, escrevendo mais tarde o livro Cry Havoc! [Brado de
Ataque!] uma das obras pacifistas mais proeminentes da
década.[578] Em 1933, alunos da Universidade de Oxford
comprometeram-se, em público, a não lutar pela defesa de
seu país, um fato que ficou conhecido como o "juramento
de Oxford", espalhando-se rapidamente por outras
universidades britânicas e tendo o apoio de intelectuais do
porte de Cyril Joad e A. A. Milne, o famoso autor de Winnie
the Pooh [Ursinho Pooh], e na França, de André Gide, que
falou sobre os "corajosos alunos de Oxford".[579] Joad disse
que "a melhor maneira de garantir a paz é se recusar, sob
quaisquer circunstâncias, a fazer a guerra". Ele exortava "a
realização de uma intensa campanha a fim de induzir o
maior número possível de jovens a renunciar ao combate
em qualquer guerra entre nações".[580]
Joad escreveu claramente sobre os horrores e as
agonias da guerra, embora Winston Churchill tivesse
alertado que a Grã-Bretanha "não pode evitar a guerra ao
dilatar os seus horrores".[581] Na Grã-Bretanha, assim como
na França, o patriotismo foi considerado suspeito e causador
da guerra. H. G. Wells, por exemplo, declarava ser contrário
ao "ensinamento de histórias patrióticas que sustentam e
carregam a venenosa tradição guerreira do passado" e
queria que a cidadania britânica fosse substituída pela
"cidadania mundial"[582] Ele considerava o patriotismo uma
relíquia inútil a ser substituída pela "ideia de dever
cosmopolita".[583] De forma semelhante, J. B. Priestley via o
patriotismo como uma "força poderosa usada
principalmente para o mal". [584] Uma carta ao The Times de
Londres, em 1936, assinada por intelectuais proeminentes
como Aldous Huxley, Rebecca West e Leonard Woolf,
conclamava para a "disseminação do espírito cosmopolita"
exortando "os escritores de todos os países" para que
"ajudassem todos os povos a sentirem sua irmandade
subjacente".[585]
Enquanto isso, Hitler observava esses acontecimentos
na Grã Bretanha e na França[586] tecendo seus próprios
planos e avaliando as crescentes perspectivas de vitória
militar.
Quase tão extraordinário quanto o nível de
engajamento pelo qual os pacifistas da década de 1930 se
deixaram levar foi a manipulação retórica que usaram para
minimizar os perigos de sua postura pacifista, diante do
rearmamento massivo que a Alemanha de Hitler promovia,
juntamente da exacerbação do patriotismo entre os
alemães, ao mesmo tempo que ele era erodido pela
intelligentsia nas democracias ocidentais. Bertrand Russell
lançou mão de um argumento que já fora usado em 1793,
quando William Godwin afirmara que um país que não
apresentasse qualquer ameaça militar ou provocação para
outras nações não seria atacado.[587] Caso a Grã-Bretanha
reduzisse o poderio de suas forças armadas, como Bertrand
Russell defendia, "não ameaçaríamos ninguém e ninguém
teria qualquer motivo para fazer guerra conosco". Russell
prosseguia dizendo:

Quando o desarmamento é sugerido, é natural


imaginar que a conquista de um agressor
estrangeiro se seguirá inevitavelmente e será
acompanhada de todos os horrores que
caracterizam as invasões. Isso é um equívoco,
como o exemplo da Dinamarca nos mostra.
Provavelmente, se não tivéssemos nem
armamentos nem império, os outros Estados
estrangeiros nos deixariam em paz. Caso eles não
fizessem isso, teríamos que nos entregar sem luta
e não despertaríamos, portanto, a ferocidade
deles.[588]

Segundo Russell, se você declarar "que está pronto a


se tornar indefeso e contar com a sorte, as outras pessoas,
não tendo mais razão para temê-lo, cessarão de odiá-lo,
perdendo todo o incentivo em atacá-lo". A razão para tal
conclusão era a seguinte alegação: "Nos homens mais
civilizados é necessário resistir ao despertar da ferocidade".
[589] Disso se segue que o medo de uma guerra iminente

deveria levar a um "desarmamento unilateral".[590] Esse tipo


de raciocínio não era peculiar a Bertrand Russell nem era
exclusivo da Grã Bretanha. Na França, um livro do líder do
partido socialista francês, mais tarde primeiro-ministro,
Léon Blum dizia:

Se uma nação decidiu se desarmar, isso não


acarretaria, na realidade, nenhum risco, pois o
prestígio moral de sua decisão a tornaria
invulnerável a qualquer ataque e a força de seu
exemplo induziria todos os outros Estados a
fazerem o mesmo.[591]

Outro elemento do movimento pacifista da década de


1930 tanto na França quanto na Grã-Bretanha era a ideia de
que mesmo uma vitória na guerra não faria qualquer
diferença real. Segundo Bertrand Russell, "a vitória não será
menos desastrosa para o mundo do que teria sido a
derrota". Por causa da necessidade de guerra de controle
estrito sobre uma população em pânico, "a anarquia só será
evitada por meio de uma ditadura militar, a qual não será
temporária", de forma que até mesmo o resultado final de
vitória "será a substituição de um Hitler alemão por um
britânico".[592] De forma semelhante, Kingsley Martin via
uma nova guerra como uma guerra "da qual ninguém pode
sair vitorioso",[593] que "a guerra destruiria completamente
a civilização".[594] Na França, o romancista Jean Giono
perguntava o que aconteceria de pior, caso houvesse uma
invasão alemã sobre a França. Os franceses se tornariam
alemães, ele dizia. "Prefiro ser uma alemã viva a ser uma
francesa morta",[595] dizia a escritora Simone Weil, usando o
mesmo raciocínio ao perguntar "por que a possibilidade de
uma hegemonia alemã é pior do que a hegemonia
francesa?".[596]

Dois anos mais tarde, essa abordagem abstrata


sobre os países desabou e a conquista nazista
sobre a França tornou dolorosamente presentes as
consequências reais da hegemonia de Hitler,
agora muito mais específicas. Durante os
desdobramentos da derrota francesa, Simone
Weil, de ascendência judaica, apesar de ser cristã
praticante, fugiu dos perigos do governo genocida
dos nazistas na França e veio a morrer na
Inglaterra ainda durante a guerra. Georges
Lapierre, que havia encabeçado o movimento
contra os textos escolares "belicosos" na França,
tornou-se membro, no despertar do período da
ocupação nazista, da resistência subterrânea ao
domínio nazista, mas foi capturado e enviado ao
campo de concentração de Dachau, onde morreu.
[597] Weil e Lapierre aprenderam com a
experiência, mas o aprendizado veio tarde demais
para que os poupasse, assim como a seu país, das
consequências desastrosas de suas posições.
Enquanto isso, Jean Giono colaborava com os
invasores nazistas. Mas dentre os intelectuais
franceses ele não esteve sozinho nesse tipo de
atividade.

Na Grã-Bretanha, os disseminados sentimentos


pacifistas da intelligentsia, durante o período entre-guerras,
também se infiltraram na arena política e alcançaram os
líderes do partido trabalhista britânico:
Em junho de 1933, durante a eleição suplementar no
East Fulham, o candidato trabalhista recebeu uma
mensagem do líder do partido trabalhista, George Lansbury:
"Eu fecharia todos os postos de recrutamento,
desmobilizaria o exército e desmantelaria a aeronáutica.
Aboliria todo o terrível equipamento de guerra e diria ao
mundo 'façam o pior'". Clement Attlee, que o sucederia
como líder, disse à Câmara dos Comuns, em 21 de
dezembro de 1933: "Somos decididamente contrários a
qualquer movimento em direção a uma política de
rearmamento".

O partido trabalhista consistentemente votava,


discursava e fazia campanha contra o
rearmamento até o desencadear da guerra.[598]

Dois anos depois, Attlee disse: "Nossa política não é


buscar segurança por meio do rearmamento, mas pelo
desarmamento.[599] Mesmo já em 1937, Harold Laski dizia:
"Vamos realmente apoiar esse governo reacionário (...) que
busca o rearmamento para propósitos que recusa
detalhar?".[600] A oposição do partido trabalhista à prontidão
militar não foi alterada até que os organismos da classe
trabalhadora do partido trabalhista, representados por seus
sindicatos, finalmente sobrepujassem os componentes
intelectuais, representados por Laski e outros, os quais
tinham uma posição dogmática contrária ao uso de meios
militares.[601]
Um editorial de 1938 da New Statesman and Nation
deplorava a atitude dos sindicatos em "apoiar o
rearmamento" sem, contudo, exigir favores em
contrapartida, na forma de influência sobre as políticas
internacionais, ou sem forçar o governo a "limitar
efetivamente os lucros da indústria de armamentos".[602]
Em vez de tratar o assunto como urna questão de
sobrevivência nacional, os membros intelectuais do partido
trabalhista viam a política de rearmamento como uma mera
questão ideológica, isso um ano antes do início da Segunda
Guerra Mundial.
O antimilitarismo e as políticas antiarmamentistas
também eram comuns entre os membros da intelligentsia
dos Estados Unidos. John Dewey, Upton Sinclair e Jane
Addams estavam entre os norte-americanos que assinaram
o manifesto de 1930 contra o treinamento militar para os
jovens.[603] Em 1934, Oswald Garrison Villard exortava "o
decréscimo de um terço no contingente do exército dos
Estados Unidos e a dispensa de 50% dos oficiais da reserva
como sinal de nossa boafé".[604] Esses sentimentos entre os
intelectuais não deixavam de influenciar os líderes políticos.
Quando a administração Roosevelt cortou o orçamento do
exército, o chefe do Estado Maior do exército, general
Douglas MacArthur, entabulou um acalorado bate-boca com
o então presidente, colocando seu cargo à disposição.
MacArthur ficou tão irritado que, ao deixar a Casa Branca,
chegou a vomitar nas escadas.[605]
Em decorrência da atmosfera pacifista que dominou o
período entre-guerras nas democracias ocidentais,
conferências internacionais de desarmamento e acordos em
que nações renunciavam à guerra se tornaram muito
populares. Mas da mesma forma que ocorre com o controle
doméstico de armas, a questão real é se os tratados de não
proliferação das armas vão realmente limitá-las,
descontando-se aqueles que respeitam as leis seja no nível
doméstico, seja no internacional. Embora tenham assinado
os tratados, tanto o Japão quanto a Alemanha violaram os
acordos de limitação dos seus arsenais, produzindo, dentre
outras coisas, navios de guerra maiores do que esses
acordos internacionais permitiam, superando o tamanho de
quaisquer navios britânicos ou norte-americanos.
As violações dos termos dos tratados de controle dos
arsenais não são uma fatalidade. Tais acordos são
inerentemente unilaterais. Os líderes das nações
democráticas estão sob constante pressão para assinar e
respeitar os tratados, ao contrário do que acontece com os
líderes das ditaduras, os quais controlam, suprimem ou
mesmo ignoram a opinião pública. Nas nações
democráticas, nem os acadêmicos nem os intelectuais da
mídia estão, em geral, muito preocupados em analisar
minuciosamente as especificidades dos acordos de
desarmamento, mas se preocupam em celebrar o
simbolismo que a realização de tais tratados evoca, festej
ando o "arrefecimento das tensões internacionais" como se
a mera catarse emocional fosse suficiente para desviar, de
seus objetivos, governos militarmente agressivos. Dessa
forma, intelectuais como john Dewey felicitaram os Acordos
Navais de Washington de 1921-1922,[606] e o The Times de
Londres elogiou o acordo naval anglo-germânico de 1935
como "um fato formidável nas relações anglo-germânicas",
como uma demonstração "enfática de renúncia de
propósitos hostis contra este país" pela Alemanha, e uma
"decisão lúcida do SENHOR HITLER em pessoa".[607]
Ao mesmo tempo, os defensores da visão pacifista
condenavam, sem reservas, os líderes de seus próprios
países sempre que se recusassem a fazer concessões que
selariam tais acordos. Somando-se aos termos que tendem
explicitamente a favorecer aquelas nações cujos governos a
intelligentsia não se encontra livre para criticar, temos, nas
subsequentes violações desses mesmos acordos por nações
agressoras, a tendência de maior tolerância por parte dos
líderes das nações democráticas, os quais não têm
incentivos para anunciar apressadamente para seus
cidadãos, que foram "enganados" ao assinar acordos
bastante divulgados e celebrados.
A intelligentsia não precisa converter os líderes
políticos para suas causas pacifistas a fim de influenciar a
condução das políticas de governo. Os líderes das nações
democráticas são sempre obrigados a se deparar com a
perspectiva das eleições, e a atmosfera em que essas
eleições são realizadas é de suma importância para os
políticos que buscam manter a carreira em andamento e o
partido no comando. Assim sendo, embora o rearmamento
alemão clandestino, em total violação dos termos, tenha
começado antes mesmo de Hitler chegar ao poder em 1933,
isso continuava a ser um "segredo" apenas no sentido de o
governo alemão não reconhecer o fato e de o público em
geral, nos países democráticos ocidentais, não receber
informações a respeito. Mas isso não era segredo para os
líderes das nações democráticas, os quais recebiam os
relatórios dos serviços de inteligência.[608]
O líder do partido conservador e posterior primeiro-
ministro Stanley Baldwin, por exemplo, sabia muito bem o
que estava acontecendo, mas também tinha consciência
das repercussões políticas caso anunciasse publicamente
que a Alemanha estava se rearmando. Numa resposta a um
discurso de Winston Churchill na Câmara dos Comuns, em
1936, na época um parlamentar sem cargo no governo e
que acusava o governo britânico de ter se envolvido num
"desarmamento unilateral", dizendo que "falta ao exército
britânico quase todas as armas necessárias para a atual
guerra moderna",[609] o primeiro-ministro Baldwin se
defendeu segundo as realidades políticas na época das
eleições de 1933:

Supondo que eu tivesse me dirigido à nação para


dizer que a Alemanha estava se rearmando, e que
deveríamos nos rearmar, alguém acha que essa
pacífica democracia teria apoiado esse meu apelo
naquele momento? Não consigo imaginar uma
abordagem mais desastrosa, a qual teria levado à
derrota certa naquela eleição.[610]

Mesmo doze anos mais tarde, quando, depois da


guerra, escrevia sua monumental obra The Second World
War [Memórias da Segunda Guerra Mundial], Churchill ainda
sentia repulsa pela resposta de Baldwin:

Aquilo fora, de fato, de uma franqueza


assombrosa. Mostrava a verdade nua e crua, e, de
forma indecente, a realidade de seus motivos. Um
primeiro-ministro confessar que não havia
cumprido seu dever em relação à defesa nacional
porque tinha medo de perder as eleições foi um
incidente sem paralelo em nossa história
parlamentar. Certamente, o sr. Baldwin não fora
movido por nenhum desejo ignóbil de permanecer
no cargo. Em 1936, ele estava, de fato,
seriamente inclinado a se aposentar. Sua política
fora ditada pelo medo de os socialistas chegarem
ao poder e ainda muito menos seria feito. Todas as
declarações e todos os votos contra as medidas
de segurança e de defesa foram registrados.[611]

Aqui, como em muitas situações, o impacto da


intelligentsia sobre o curso dos eventos independeu de uma
intervenção direta sobre os donos do poder. Tudo que eles
precisaram fazer foi convencer um montante suficiente da
opinião pública, de forma que os donos do poder
começassem a temer a perda de seu poder se fossem
contrários à visão predominante, que no caso era o
pacifismo. Se Baldwin tivesse perdido poder, ele o teria feito
para aqueles que tornariam a visão pacifista uma realidade
potencialmente desastrosa para o país. A Grã-Bretanha,
afinal de contas, escapou por muito pouco de sofrer uma
invasão e ser conquistada em 1940, e foi salva apenas por
causa de seus novos caças de interceptação, que abateram
os bombardeiros alemães durante suas maciças incursões
aéreas, planejadas para preparar o caminho da invasão, na
qual exércitos seriam mobilizados para atravessar o Canal
da Mancha. Tivessem os pacifistas do partido trabalhista
chegado ao poder em 1933, não fica claro, de forma
alguma, se essa estreita margem de sobrevivência teria
permanecido.
Havia uma relutância semelhante entre os líderes
franceses em alertar o público sobre o perigo ou talvez, até
mesmo, em reconhecê-lo. Embora o ministro francês do
Exterior, Aristide Briand, estivesse muito ciente do
crescente apoio político que os nazistas receberam da
população alemã durante as eleições alemãs de 1930 e o
quanto isso anunciava uma real ameaça militar à França,
ele, como Baldwin, não estava preparado para alarmar o
público francês:

Briand permanecera imperturbável: Hitler não irá


longe, ele assegurava à imprensa, enquanto fazia
o melhor que podia para manter as notícias sobre
a retomada do militarismo alemão longe do
público francês. As paradas e as demonstrações
da direita alemã foram "completamente
suprimidas dos noticiários mostrados nos cinemas
franceses", relatou o adido militar norte-
americano.[612]

Mesmo antes de Hitler chegar ao poder, os agentes da


inteligência francesa já haviam penetrado na clandestina
reconstrução militar do poderio alemão.[613] Mas tanto a
imprensa quanto os políticos não queriam relatar ao público
francês coisas que ele não queria ouvir, afinal de contas os
traumas que haviam passado durante a Primeira Guerra
Mundial ainda estavam latentes. Mesmo depois de outra
escalada de votos para os nazistas, durante as eleições de
1932, as quais colocaram Hitler no governo alemão, as
evasivas e a negação sobre os perigos para a França
continuaram:

Após as novas eleições alemãs, os nazistas se


tornaram o maior partido do parlamento, mas a
imprensa francesa se recusava a reconhecer o
perigo da situação. O presidente Hindenburg
trouxera o general Von Schleicher para assegurar
o poder contra as pretensões do pintor demagogo.
Jornais da esquerda e da direita celebravam o
"piedoso fim do hitlerismo" (L'CEvre, 01/01/1933 )
e "a decadência do movimento de Hitler" (Paris-
Sair, 01/01/1933). O Cervejeiro Alemão perdera o
bonde, exultava o L'Echo de Paris (07/11/1 932),
esquecendo-se de quão respeitador da lei o
general populista do século XIX tinha sido. O
socialista Populaire e o realista Action Française
concordavam: Hitler estava, daquele momento em
diante, excluído do poder. Contudo, Schleicher
pediu demissão no final de janeiro de 1933 e, no
final das contas, o demagogo foi alçado ao poder.
Um pacifista dedicou seu último livro, Peace on
Earth [Paz na Terra], a Adolf Hitler.[614]

Como se dá em outros tempos e em outros contextos,


vale a pena observar o tom da imprensa, uma pretensa
superioridade intelectual que declara o assunto como
encerrado, o qual se apresenta como corolário de
autoexaltação da intelligentsia.
Apesar de o desejo francês de evitar a repetição dos
horrores que experimentaram na Primeira Guerra Mundial
ser muito compreensível, as insistentes negações de seus
intelectuais sobre os perigos que se avolumavam do outro
lado do Reno chegaram aos níveis mais altos da fantasia.
Um dos primeiros sinais dessa fantasia aconteceu na
celebração do pacto Kellogg-Briand de 1928, banindo a
guerra. Denominado com os nomes do secretário de Estado
norte-americano e do ministro de Exterior francês, esse
pacto recebeu praticamente aprovação unânime na
imprensa francesa.[615] Porém, nada é mais fácil do que um
povo pacífico renunciar à violência, mesmo que esse povo
não ofereça meios concretos de prevenir a violência dos
outros.
Os franceses não queriam ouvir nada de ruim sobre a
Alemanha. O livro Mein Kampf [Minha Luta] de Hitler, no
qual ele explicitara suas intenções hostis em relação à
França, não chegou ao público ou à intelligentsia francesa
porque um tribunal francês interrompeu sua tradução,
impedindo que fosse completada, de forma que apenas
versões modificadas se encontravam disponíveis para os
poucos interessados.[616] No final da década de 1930, à
medida que refugiados fugiam da Alemanha para a França,
trazendo consigo as histórias sobre os horrores do regime
nazista, essas histórias não eram apenas amplamente
rejeitadas, mas, porque muitos desses refugiados eram
judeus, isso provocou uma crescente onda de
antissemitismo segundo a qual os judeus estariam tentando
provocar uma guerra entre a França e a Alemanha. O
antissemitismo não estava confinado às massas, mas
também se fazia comum entre os intelectuais franceses.[617]
Na Grã-Bretanha, como na França, havia uma forte
resistência, entre os membros da intelligentsia, para se
reconhecer a verdadeira face do regime nazista dentro da
Alemanha ou como ameaça externa para as democracias
ocidentais. O influente jornal Manchester Guardian dizia
que, apesar de suas ideias radicais, os nazistas acabariam
se comportando como "políticos comuns" quando
assumissem o poder. O jornal britânico de maior circulação
na época, o Daily Herald, desprezava Hitler, chamando-o de
"palhaço", dizendo que ele teria o mesmo destino de seus
predecessores como chanceler da Alemanha cujos
mandatos haviam durado apenas algumas semanas. De
forma parecida, o Daily Telegraph dizia que Hitler já era
coisa do "passado" e que estaria fora do poder antes do
final de 1932.[618] Harold Laski também declarava, em
1932, que "o movimento hitlerista tinha deixado seu
apogeu", que Hitler era um "conspirador barato, em vez de
um revolucionário inspirado, a criatura das circunstâncias,
em vez de o fazedor do destino".[619]
O jornal britânico mais influente, o The Times de
Londres, considerava Hitler "um moderado", ao menos o
comparando com os outros membros de seu partido.[620]
Depois que Hitler e os nazistas alcançaram o poder supremo
na Alemanha, em 1933, o The Times foi especialmente
resistente em noticiar, para seu público leitor, as opressões
domésticas ou as ameaças internacionais que os nazistas
promoviam. As notícias despachadas pelos próprios
correspondentes do jornal na Alemanha eram com
frequência filtradas, reescritas e por vezes apenas
rejeitadas toda vez que relatavam a realidade crua sobre o
que acontecia no regime de Hitler. As reclamações dos
correspondentes foram inúteis e alguns chegaram a pedir
demissão como forma de protesto contra a manipulação
que o jornal fazia, maquiando as notícias que criticavam as
atrocidades do regime nazista, transferindo os
correspondentes para longe dos eventos cruciais da
Alemanha, ao mesmo tempo que os editoriais do The Times
apoiavam as políticas de apaziguamento do primeiro-
ministro Neville Chamberlain. O editor do Times, Geoffrey
Dawson, escreveu de forma franca para seu correspondente
em Genebra:
Faço meu melhor, dia após dia, para manter fora
do jornal qualquer coisa que possa ferir suas (dos
alemães) susceptibilidades (...) Estou convencido
de que a paz do mundo depende, mais do que
qualquer outra coisa, de nossa capacidade em
construir relações razoáveis com a Alemanha.[621]

Aqui, como em outros contextos, o dano provocado


pela intelligentsia parece assumir grandes proporções, uma
vez que eles saíram dos limites de competência de suas
especialidades (nesse caso, colher e relatar as notícias) em
busca de um papel mais amplo e significativo na
determinação dos eventos (nesse caso, manipulando as
notícias para que se encaixem em sua visão).
◆ ◆ ◆

RESPOSTAS ÀS CRISES INTERNACIONAIS


As ideias que permearam toda a visão da
intelligentsia, entre as duas Guerras Mundiais, não teriam
sido mais do que uma nota de rodapé na história das
épocas caso não tivessem repercutido por toda a sociedade
e, de fato, na história do mundo. Mas a influência das ideias
disseminadas pela intelligentsia tornou-se mais aparente
durante a série de crises internacionais que antecipou e
desembocou na Segunda Guerra Mundial. A primeira dessas
crises, em 1936, envolveu o problema da remilitarização da
Renânia.
Depois do choque da Primeira Guerra Mundial, o
Tratado de Versalhes buscou sufocar o gigantesco potencial
militar alemão, impondo uma série de restrições ao poderio
bélico do país, incluindo limitações no tamanho das forças
militares, banindo o recrutamento militar e proibindo o
governo alemão de estacionar tropas na região da Renânia,
justamente a região da Alemanha onde o parque industrial
mais significativo se concentrava. Essa última provisão
significava que quaisquer ataques alemães futuros
poderiam ser punidos com a tomada, pelos franceses, de
seu desprotegido setor industrial.
Essas limitações, embora ferissem a soberania da
Alemanha, eram claramente baseadas numa visão real, a de
não enxergar a Alemanha como uma nação abstrata
inserida num mundo abstrato, mas como um país que
representava uma séria ameaça para as nações ao seu
redor tanto por sua capacidade militar, demonstrada na
Primeira Guerra Mundial, ao infligir pesadíssimas baixas em
seus inimigos, como por sua predominância industrial na
Europa, além de sua localização central no continente, a
partir da qual poderia atacar em qualquer direção.
Todavia, com o passar do tempo, por volta da década
de 1930, a intelligentsia britânica começou a discutir essas
restrições sobre a Alemanha de uma forma abstrata. O fato
de a Alemanha ter sido tratada de forma desigual durante o
Tratado de Versalhes era visto, por boa parte da
intelligentsia britânica, como razão para se questionar a
validade da proibição ao governo alemão de fazer coisas
que outros governos podiam. Como Winston Churchill bem
observou, em seu livro muito bem intitulado The Gathering
of Storm [A Aproximação da Tempestade], quando disse:
"Em 1932, a delegação alemã para a Conferência de
Desarmamento exigiu categoricamente a remoção de todas
as restrições sobre seu direito de se rearmar e teve grande
apoio da imprensa britânica ". Ele completou:

O Times falava sobre "a devida reparação da


desigualdade" e o The New Statesman do
"reconhecimento sobre o princípio de igualdade
entre as nações". Isso significava que setenta
milhões de alemães receberiam o direito de se
rearmarem e se prepararem para a guerra e
desconsiderava o direito dos vitoriosos da última e
terrível guerra de fazer qualquer objeção.
Igualdade de status entre vitoriosos e vencidos;
igualdade entre os 39 milhões de franceses e uma
Alemanha com quase o dobro dessa população!
[622]

Resumindo, as especificidades mundanas, das quais


dependiam as questões de vida e de morte, foram
subordinadas pela intelligentsia a princípios abstratos
referentes às nações também em abstrato. A Alemanha era
então tratada como se fosse Portugal ou a Dinamarca,
embora as restrições impostas pelo Tratado de Versalhes
fossem precisamente o resultado do fato de a Alemanha
não ter se comportado como Portugal ou a Dinamarca,
tendo uma capacidade e uma disposição militar
infinitamente superiores às desses dois países.
Com a chegada de Adolf Hitler ao poder, em 19 33, o
rearmamento irrestrito da Alemanha deixou de se tornar
uma mera exigência para se tornar realidade. Isso ocorreu
ao longo de etapas, começando cuidadosamente e então
prosseguindo com mais ousadia na medida em que as
democracias ocidentais nada faziam para fazer valer as
restrições do Tratado de Versalhes. Por causa do
inexpressivo poderio militar alemão no início, sob a vigência
das restrições, as violações começaram num momento em
que a França, sozinha, tinha uma superioridade militar
esmagadora sobre a Alemanha e, portanto, poderia ter
intervindo unilateralmente a fim de interromper a
reconstrução do parque bélico alemão pelos nazistas, fato
do qual Hitler estava bem ciente e os líderes militares
alemães temiam ainda mais.[623]
O passo crucial, sem o qual as hostilidades nazistas
seriam impossíveis, foi o estabelecimento de tropas alemãs
na região industrial do país, a Renânia. Apenas depois que o
controle militar de seu parque industrial tivesse sido
assegurado, a Alemanha poderia atacar outras nações.
Hitler compreendia claramente o quão fundamental era o
aquartelamento das tropas alemãs na região da Renânia e o
quão arriscado seria esse movimento, tendo-se em vista o
tamanho relativo dos exércitos alemão e francês da época.
Seu intérprete, Paul Schmidt, ouviu Hitler dizer mais
tarde, "As 48 horas depois da remilitarização da Renânia
foram as mais perturbadoras da minha vida. Caso os
franceses tivessem marchado para a Renânia, teríamos
batido em retirada com nosso rabo entre as pernas, pois os
recursos militares à nossa disposição eram completamente
inadequados para sequer oferecermos uma resistência
moderada".[624]
O risco atingiu seu momento máximo: conquistas
militares no exterior ou o colapso do regime nazista dentro
da Alemanha. "Uma retirada de nossa parte", Hitler admitiu
mais tarde, "teria anunciado o colapso".[625] Hitler apostou
todas suas fichas na indecisão dos franceses. Ele ganhou
sua aposta e, mais tarde, dezenas de milhões de pessoas
perderiam a vida. No entanto, a remilitarização da Renânia,
como outras ações anteriores, continuou a ser avaliada pela
intelligentsia britânica como uma questão internacional
meramente abstrata. Uma frase repetida muitas e muitas
vezes na imprensa britânica depois que Hitler enviou tropas
para a Renânia foi: "Afinal de contas, eles estão apenas
retomando seu próprio quintal".[626] Uma visão muito
semelhante foi também adotada pela imprensa francesa.
[627] Apesar de uma superioridade militar francesa, a falta

de vontade política os paralisou a ponto de abrirem mão


dessa superioridade, permitindo que Hitler remilitarizasse a
Renânia sem ser incomodado.

Em nenhum lugar da França havia a menor


indicação de que o público quisesse ou mesmo
tolerasse uma ação militar por causa da
remilitarização alemã da Renânia. O periódico
satírico Le Canard Enchainé expressava uma visão
comum quando dizia: "Os alemães invadiram a
Alemanha!". Os líderes comunistas, supostamente
na linha de frente de oposição ao nazismo,
conclamavam veementemente para se evitar "que
o flagelo da guerra se abata novamente sobre
nós". Eles exortavam para que toda a nação se
unisse "contra aqueles que querem nos levar ao
massacre". O porta-voz dos socialistas afirmou ser
"inadmissível qualquer resposta que leve ao risco
de uma guerra", dizendo que mesmo o reforço da
Linha Maginot seria um ato de "provocação". Os
diários de direita Le Matin e Le Jour declaravam
que o conflito com a Alemanha beneficiaria
apenas a Rússia comunista.[628]

Essas opiniões não estavam restritas à França.


Quando o ministro do Exterior francês Pierre-Étienne Flandin
encontrou-se com o primeiro-ministro britânico Stanley
Baldwin, a fim de pedir apoio político britânico a uma
eventual ação francesa contra a remilitarização alemã da
Renânia - com a França já tendo os meios militares para
responder de forma unilateral -, segundo Flandin, a resposta
de Baldwin foi: "Você pode estar certo, mas se houver
mesmo que uma chance em cem de a guerra acontecer por
causa de sua política de conflito, não tenho o direito de
comprometer a Inglaterra".[629] Esse tipo de raciocínio era o
lugar-comum da época e não via que uma postura passiva
pudesse representar também seus perigos diante da
situação. Em retrospecto, sabemos agora que a inação das
democracias ocidentais, diante das repetidas provocações
de Hitler, foi crucial para fortalecer a confiança de Hitler
sobre uma guerra bem-sucedida, à medida que ele foi
percebendo que os líderes ocidentais eram muito tímidos
para responder a tempo ou mesmo para reagir em algum
momento.
Isso se tornou especialmente claro durante outras
crises internacionais que levaram à Segunda Guerra
Mundial. A vacilante e ineficiente resposta do Ocidente à
invasão da Etiópia por Mussolini em 1935, desafiando as
decisões da Liga das Nações, foi uma das inações que levou
Hitler a duvidar seriamente da capacidade de resposta do
Ocidente. A passividade diante da remilitarização da
Renânia, em 1936, assim como diante da intervenção alemã
e italiana na Guerra Civil Espanhola, naquele mesmo ano,
seguida pela omissão das democracias ocidentais em dar
resposta à anexação alemã da Áustria em 1938, tudo isso
contribuiu para o crescente desprezo que Hitler nutria pelos
líderes do Ocidente, fortalecendo sua confiança de que eles
nada fariam além de conversar.
Todavia, a crise que mais consolidou a confiança de
Hitler foi a que se seguiu às suas reivindicações para anexar
os Sudetos da Tchecoslováquia, uma área adjacente ao
território alemão povoada por uma maioria de ascendência
alemã. Durante a Conferência de Munique, em 1938, a
França, a Grã-Bretanha e a Itália concordaram com a
anexação dos Sudetos pelos nazistas, abandonando a
Tchecoslováquia em sua agonia, apesar de existir um mútuo
tratado de defesa entre a França e a Tchecoslováquia.
O poder da intelligentsia é demonstrado não somente
por sua habilidade em criar um clima geral de opinião
pública que intimide todos os que se opõem às sua agenda,
mas também por sua habilidade em criar um clima de
opinião que muito favorece aqueles líderes políticos cuj as
decisões estão em consonância com a visão da
intelligentsia. Bem provável que nunca tenha havido um
líder de uma nação democrática tão ampla e
entusiasticamente aclamado pelo público, pela imprensa e
pelos membros dos partidos de oposição, assim como de
seu próprio partido, como o primeiro-ministro britânico
Neville Chamberlain quando retornou da Conferência de
Munique de 1938, acenando a realização de um acordo com
Hitler que ele caracterizou como o instrumento "da paz para
nossos tempos".[630] Menos de um ano mais tarde tinha
início o maior e mais sangrento conflito de toda a história da
humanidade.
Vendo cada uma das sucessivas exigências de Hitler
como uma questão particular, ou seja, adotando a
perspectiva do racionalismo imediatista, a imprensa
francesa considerou a exigência alemã de 1938 para anexar
os Sudetos da Tchecoslováquia perguntando-se: "Seria o
caso de os franceses serem mortos por causa do presidente
Berres, o maçom?", como o Je Suis Partout colocou, e em
1939, enquanto Hitler exigia a anexação do único porto
polonês de Danzig (Gdansk), a questão era colocada nos
seguintes termos: "Devemos morrer por Danzig?", como
exibia uma manchete do L'CEuvre.[631] A frase "por que
morrer por Danzig?" foi considerada, na época, um marco
de sofisticação entre os membros da intelligentsia, mas era,
no entanto, um sinal dos perigos da manipulação retórica, a
qual é capaz de fazer perguntas de uma forma que torna a
resposta desejável quase inevitável, quaisquer que sejam os
méritos ou os deméritos concretos da questão.
Contrário ao racionalismo imediatista, a questão real
não era se valia a pena morrer pela Renânia, pela
Tchecoslováquia, pela anexação da Áustria ou pela cidade
de Danzig. A questão era se alguém reconhecia, na linha de
ação de Hitler, um padrão que indicava uma ameaça letal a
todos. Em 1939, o público francês parecia ter chegado a
uma compreensão mais realista sobre o que Hitler estava
fazendo e começou a contrariar a visão dominante da
intelligentsia. Uma pesquisa realizada em 1939 na França
mostrou que 76% do público aprovava o uso da força na
defesa do porto de Danzig.[632] Uma narrativa sobre esse
período observou que o primeiro-ministro francês Édouard
Daladier "reclamava que não conseguia aparecer num lugar
público ou num bistrô sem que se deparasse com pessoas
que se levantavam e gritavam: 'Lidere! Nós o seguiremos!'".
[633]
No entanto, o tempo para agir já se esgotara, pois
dentro de alguns meses a Segunda Guerra Mundial
estouraria. O pacifismo generalizado da época e suas
consequências políticas tinham deixado a França acuada
num canto, de onde, agora, teria que enfrentar a realidade
de uma guerra iminente depois de perder aliados
potenciais, os quais ela lançara aos lobos na tola esperança
de ser poupada do ódio de Hitler. Como já foi mencionado
no capítulo 2, entre o equipamento militar usado pelos
alemães quando invadiram a França, em 1940,
encontravam-se tanques fabricados na Tchecoslováquia.
◆ ◆ ◆

A DEFLAGRAÇÃO DA GUERRA
Durante a Segunda Guerra Mundial, as nações
agressoras do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - não tinham
recursos suficientes, e tinham completa consciência disso,
para enfrentar os recursos combinados das nações
democráticas, incluindo-se a Grã-Bretanha, a França e os
Estados Unidos, durante uma corrida armamentista. A fim
de alcançarem seus objetivos, os poderes do dependiam de
(1) evitar que as democracias do ocidente mobilizassem
seus recursos a tempo de afastar derrotas devastadoras, o
que de fato as forças do Eixo infligiram de forma recorrente
durante os três primeiros anos da Segunda Guerra Mundial,
e (2) da falta de ânimo dos aliados para que continuassem a
lutar diante de uma cadeia incessante de baixas e de
retiradas tanto na Europa quanto na Ásia, até que os seus
recursos mais amplos pudessem ser finalmente mobilizados
para começar os contra-ataques.
Essa estratégia chegou perigosamente perto do
sucesso. Já era novembro de 1942, três anos depois que a
Grã-Bretanha entrara na Segunda Guerra, quando
finalmente o primeiro-ministro britânico Winston Churchill
pôde dizer, depois da batalha de El Alamein no Norte da
África: "Temos uma nova experiência. Temos a vitória".[634]
Antes disso não houvera nada além de uma constante
corrente de derrotas e de retiradas para os britânicos tanto
na Europa quanto na Ásia e poucos esperavam que a Grã-
Bretanha sobrevivesse em
1940,[635] depois que a França caiu de joelhos em
apenas seis semanas de combate, e quando a Luftwaffe
lançava uma operação de bombardeios maciços sobre
Londres e outras cidades britânicas.[636]
Os norte-americanos também tiveram sua primeira
vitória militar em 1942, com um impressionante golpe de
sorte que superou a desigual superioridade naval japonesa
na batalha de Midway.[637]
Os intelectuais tiveram um papel único na criação
daquela situação desesperadora em que tanto a Grã-
Bretanha quanto os Estados Unidos se encontravam,
batendo incessantemente o tambor do pacifismo e
impedindo esforços de defesa nacional durante o período
entre-guerras. Em outubro de 1938, um mês depois de
Munique e menos de um ano antes do início da Segunda
Guerra Mundial, o influente jornal britânico New Statesman
and Nation descrevia a política de rearmamento como "uma
forma ineficiente e custosa de subsidiar empresas que não
conseguem encontrar um emprego melhor para o capital" e
declarava que "nós não ganharemos respeito próprio ao
multiplicarmos o número de nossos aviões de guerra".[638]
Mesmo em fevereiro de 1939, alguns meses antes do início
da Segunda Guerra Mundial, o New Statesman and Nation
referia-se à "corrida armamentista internacional de Bedlam"
e questionava o dinheiro que era adquirido pelos
"fabricantes de aeronaves e de munições", os quais eram
descritos como "amigos" do "governo conservador".[639]
Hoje, sabemos que aqueles aviões e aquelas munições
foram responsáveis pela estreita margem de escape pela
qual os britânicos sobreviveram ao massacre aéreo de
Hitler, um ano mais tarde, apesar de uma visão geral, em
1940, de que a Grã-Bretanha não sobreviveria. A história
também sugere que anos de retórica sobre a "corrida
armamentista" e sobre "os mercadores da morte"
contribuíram bastante para tornar essa margem de
sobrevivência tão estreita e precária.
Os intelectuais tiveram um papel fundamental na
criação do ambiente de fraqueza militar e de irresolução
política que dominou as nações democráticas, o que fez,
para os líderes das ditaduras do Eixo, uma guerra contra
essas nações parecer vantajosa e de provável sucesso.
Além de ajudar a provocar a guerra mais devastadora da
história da humanidade, os intelectuais também impediram
a formação e a modernização das forças armadas nas
nações democráticas nos anos que antecederam a guerra,
demonizando os fabricantes de armamentos, tidos como
"mercadores da morte", uma expressão que se tornou
clássica, mas que fez as forças armadas norte-americanas e
britânicas ficarem frequentemente em desvantagem nas
batalhas,[640] até que esforços desesperados e atrasados
tanto na indústria de guerra quanto nos campos de batalha
evitaram por pouco a derrota total e mais tarde viraram o
jogo que levou finalmente à vitória.
Os custos de guerra, advindos dos movimentos e das
atitudes antimilitaristas e pacifistas apregoados pela
intelligentsia, foram assustadores tanto em vida humana
quanto em recursos materiais. Caso Hitler e seus aliados
tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial, os custos
duradouros para toda a raça humana teriam sido
incalculáveis.
Uma negligência em relação à história tem
possibilitado que nós, hoje, esqueçamos a estreita margem
pela qual as democracias ocidentais conseguiram escapar
da catástrofe total que teria sido uma vitória de Hitler e de
seus aliados. Mais importante, a negligência histórica nos
faz esquecer, em primeiro lugar, o que levou as
democracias do Ocidente a correr tanto perigo - e o
potencial de as mesmas noções e as mesmas atitudes,
promovidas pela intelligentsia de hoje, como foi feito pela
intelligentsia do mundo entre-guerras, levarem-nos aos
mesmos perigos abissais sem a mínima segurança de que
tanto a sorte quanto a fortaleza interior, que nos salvaram
da primeira vez, nos salvarão novamente.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 8
OS INTELECTUAIS E A GUERRA:
REPETINDO A HISTÓRIA

Além de sorrisos e de concessões, o temido mundo


civilizado não encontrou nada que se opusesse aos
massacres sistemáticos durante o repentino
ressurgimento de um barbarismo descarado.

ALEKSANDR SOLZHENITSYN[641]

Desde a Segunda Guerra Mundial, muitas guerras já


foram deflagradas em várias partes do mundo, mas
nenhuma até agora foi comparável a essa guerra em
magnitude ou na amplitude de suas consequências. Assim
como acontecera na Primeira Guerra Mundial, a Segunda
Grande Guerra também provocou mudanças significativas
na atitude dos intelectuais ocidentais, porém de uma forma
bem diferente. Durante a Primeira Guerra Mundial, como já
sabemos, muitos dos intelectuais que num primeiro
momento haviam cerrado fileiras para defender a causa
aliada, especialmente ao ser articulada por Woodrow
Wilson, acabaram depois voltando-se para um pacifismo
radical quando a carnificina brutal da guerra pôs fim às suas
ilusões. Por outro lado, logo após o término da Segunda
Guerra Mundial, as trágicas lições da guerra e dos anos que
a tinham preparado estavam ainda muito presentes na
consciência das pessoas para que a maioria retornasse ao
ingênuo pacifismo radical, o qual havia sido tão comum
entre os intelectuais ocidentais durante o período entre-
guerras.
Durante a Segunda Guerra, as chocantes diferenças
entre o comportamento das nações democráticas e o das
nações totalitárias tornaram-se por demais evidentes, de
forma tão vívida e dolorosa que a "equivalência moral" se
tornou um produto escorregadio, perigoso de se usar sem
critérios, mesmo entre a intelligentsia. Isso seria revertido
mais tarde, à medida que as lembranças das atrocidades da
Alemanha nazista e do Japão imperial começaram a se
perder no fundo da memória das pessoas junto de
atrocidades semelhantes cometidas pela União Soviética, as
quais permaneceram, em grande parte, ocultas ou mesmo
ignoradas. Mas durante o período seguinte ao desfecho da
Segunda Guerra Mundial, o mal e o perigo eram coisas que
não podiam ser ignoradas ou vistas com espírito de
desprendimento e envoltas em eufemismos. A revista Time,
por exemplo, disse em maio de 1945, no final da guerra na
Europa.

Essa guerra foi uma revolução contra as bases


morais da civilização. Ela foi concebida, pelos
nazistas, com um desprezo consciente pela vida,
pela dignidade e pela liberdade do indivíduo
humano e foi deliberadamente movida para a
escravização e para a destruição em massa das
populações civis e de não combatentes. Foi uma
revolução contra a alma humana.[642]

A condição de ansiedade covarde e de embotamento


da inteligência da década de 1930, em comparação à
atmosfera mental do período seguinte ao término da
Segunda Guerra Mundial, foi sintetizada na maneira como o
presidente Harry Truman decidiu prosseguir com o
desenvolvimento da bomba de hidrogênio, uma arma
infinitamente mais destrutiva do que as bombas que
haviam devastado Hiroshima e Nagasaki. Este foi o tom da
reunião que o presidente Truman teve com seus
conselheiros:

Lilienthal disse que temia uma corrida


armamentista. Acheson rebateu, destacando as
crescentes pressões públicas e políticas sobre
Truman. Lilienthal replicou, expressando suas
"graves reservas" ao projeto, e Truman o
interrompeu. O presidente não acreditava que a
bomba H seria usada, mas tendo-se em vista a
forma como os russos se comportavam, não havia
outra linha de ação a adotar. A reunião durou
apenas sete minutos. "Os russos podem construir
essa bomba?", perguntou Truman. Todos os outros
três acenaram afirmativamente. "Nesse caso,"
disse Truman, "não temos escolha. Seguiremos
com o programa".[643]

A década de 1950 ainda estava muito próxima da


Segunda Guerra Mundial para que as noções dos
intelectuais do período anterior à guerra, com suas atitudes
e seus lugares-comuns, pudessem voltar à cena ou para que
os benefícios de uma sociedade livre e digna pudessem ser
considerados invulneráveis e seus defeitos pudessem se
tornar razão para uma rejeição irresponsável de suas
normas e de duas instituições. Esse comportamento seria
retomado na década de 1960, especialmente entre os mais
jovens, os quais não sabiam o que fora a Segunda Guerra
Mundial e muito menos o que levara àquela catástrofe.
A diferença entre o imediato período pós-Segunda
Guerra e o período posterior foi expressa de muitas formas.
Ao visitar os cemitérios e os memoriais de guerra na Europa
ocidental, décadas mais tarde, o reconhecido historiador
militar Victor Davis Hanson notou uma diferença entre as
mensagens nos cemitérios norte-americanos e as
mensagens nos memoriais de guerra europeus:

As inscrições nos túmulos norte-americanos


lembram aos visitantes para que não se esqueçam
do sacrifício, da coragem e da liberdade
duramente conquistados, advertindo que os
malignos provocaram a guerra para ferir os mais
fracos e foram detidos quando alguém melhor
veio para freá-los. Por outro lado, a "loucura" da
guerra, parafraseando Barbara Tuchman, é o que
mais se vê ao se visitar a maioria dos museus
europeus sobre a Segunda Guerra. As galerias, os
vídeos e os guias sugerem que uma loucura súbita
se apoderou, repentina e igualmente, de todos,
europeus e norte-americanos, em lugares como
Nijmegen e Remagen. "Estupidez", repreendeu-me
um visitante europeu em Arnhen, é o que melhor
explica por que milhares de rapazes se mataram
dessa forma para se apoderarem de pontes "sem
a menor importância".[644]

Uma vez que os campos comemorativos norte-


americanos foram, sem dúvida, criados antes dos
memoriais de guerra europeus, erguidos depois que as
economias europeias puderam se recuperar das
devastações de guerra, as diferenças podem refletir os
diferentes tempos, em vez de refletirem somente diferenças
entre europeus e norte-americanos. Num período posterior,
pessoas vivendo uma segurança conquistada com a vida de
outras pessoas podem levianamente desconsiderar pontes
como não tendo "a menor importância", quando na
verdade, numa situação de guerra, o controle sobre as
pontes pode representar uma questão de vida ou de morte
para os exércitos e consequentemente para o destino de
nações inteiras.
Um exemplo notável que retrata a grande mudança
de ânimo que alguns intelectuais sofreram foi o argumento
pós-Segunda Guerra de Bertrand Russell, afirmando que as
nações deveriam impor um ultimato à União Soviética para
que se submetesse a um novo governo mundial, que teria
suas próprias forças armadas e, caso o ultimato fosse
rejeitado, seria necessário lançar uma guerra preventiva
contra ela, uma vez que os Estados Unidos tinham a bomba
nuclear e a União Soviética não tinha ainda construído a
sua.[645] Como foi noticiado no The Observer, de Londres,
em 21 de novembro de 1948:

"Ou lançamos uma guerra contra a Rússia antes


que esse país tenha sua própria bomba atômica
ou teremos que nos prostrar e deixar que ele nos
governe." (...) Uma guerra atômica seria algo
absolutamente horrível, mas seria "a guerra para
acabar com as guerras" (...).sTemer os horrores de
uma guerra futura não seria uma forma de
preveni-la. "Qualquer coisa é melhor do que a
submissão."[646]

É difícil pensar numa mudança maior, tendo-se em


vista o próprio Bertrand Russell que, no período entre-
guerras, defendia um pacifismo e um desarmamento
unilaterais, e mais tarde retornaria a esse posicionamento.
Uma década depois, Lord Russell disse: "Sou a favor do
desarmamento nuclear controlado". Mas caso fosse provado
ser impossível fazer com que a União Soviética concordasse
com isso, ele defendia um "desarmamento nuclear
unilateral". Ele completava dizendo o seguinte: "É uma
escolha angustiante (...)."Desarmamento unilateral pode
significar, por enquanto, a dominação comunista de nosso
mundo (...). Mas, se as alternativas são entre uma eventual
extinção da humanidade e uma conquista comunista
temporária, eu prefiro ficar com a última".[647]
Depois de seu retorno à antiga posição pacifista,
defensora de um desarmamento unilateral, Bertrand Russell
passou a condenar aqueles que no Ocidente apoiavam o
método da dissuasão pelo poderio nuclear, descrevendo-os
como pessoas que "pertenciam ao clube dos assassinos".
Durante esse período, Bertrand Russell descreveu o
primeiro-ministro britânico Harold Macmillan e o presidente
norteamericano John F. Kennedy como "as pessoas mais
malignas que já viveram na história dos homens" e como
"homens cinquenta vezes mais malignos que Hitler", uma
vez que Russell retratava a política de dissuasão pelo
poderio nuclear desses políticos como" a organização do
massacre de toda a humanidade".[648]
Fosse como defensor da guerra preventiva ou como
pacifista radical antes da Segunda Guerra e no final de sua
carreira, Bertrand Russel sempre buscou apresentar
"soluções" dramáticas e bombásticas. Embora, em ambos
os casos, suas soluções fossem incomuns, o que foi muito
mais comum entre os intelectuais foi pensar no mundo em
termos de soluções dramáticas de algum tipo e passar, de
acordo com as circunstâncias, por uma completa reversão
de posicionamento sobre a forma específica dessas
soluções, como aconteceu, em geral, com os intelectuais
durante e depois da Primeira Guerra Mundial. Essa conduta
os deixa confiantes a respeito de suas alegadas sabedorias
e virtudes superiores, as quais devem guiar as massas e
influenciar as políticas nacionais. Claramente, ao menos
uma de suas posições, mutuamente incompatíveis, tinha
que estar equivocada, o que nos remete à frase:
"Frequentemente errado, mas nunca em dúvida".
◆ ◆ ◆
REENCENANDO A DÉCADA DE 1930
A década de 1960 e a Guerra do Vietnã provocaram
um amplo retorno do clima intelectual e ideológico que
reinara durante as décadas de 1920 e de 1930. Na verdade,
muitos dos termos e das frases do período anterior
reapareceram na década de 1960, frequentemente usados
como se fossem insights novos e inéditos, em vez de velhas
noções já desacreditadas pela história. Por exemplo, os
defensores do desarmamento mais uma vez referiam-se a si
mesmos como integrantes do "movimento pela paz",
chamando a política de dissuasão pelo poderio militar de
"corrida armamentista". Mais uma vez, o argumento era
feito em cima da ideia de que "a guerra não resolve". Os
fabricantes de armas, que foram chamados de "mercadores
da guerra" durante a década de 1930, eram agora
denominados de "complexo militar-industrial", sendo mais
uma vez considerados uma ameaça à paz, em vez de serem
vistos como fornecedores dos meios dissuasórios para a
contenção de nações agressoras. O Compromisso de
Oxford, feito pelos rapazes ingleses da década de 1930 para
que se recusassem a lutar pelo seu país na guerra, foi
reencenado durante a década de 1960 por jovens
norteamericanos que tinham idade para o recrutamento e
diziam: "Pros diabos, eu não vou".
O realismo ilustrativo dos horrores da guerra foi, mais
uma vez, visto como meio para se promover a paz, e o
racionalismo imediatista foi novamente considerado a
melhor forma de se lidar com questões que tinham
potencial para o recrudescimento das hostilidades e da
deflagração da guerra. A recomposição da visão pacifista
sofreu algumas alterações e a antiga retórica de indignação
moral cedeu lugar a um pragmatismo menos carregado de
julgamentos, mas que continuava a contemplar o ponto de
vista do outro lado, assim como fizeram os intelectuais do
período entre-guerras. Foram muito poucos os que, ao
adotarem essas e outras ideias da década de 1930,
reconheceram os antecedentes dessas ideias e os desastres
que esses antecedentes provocaram. A maior parte das
ideias, entre os pacifistas da intelligentsia da década de
1960, já havia aparecido nos discursos do primeiro-ministro
britânico Neville Chamberlain na década de 1930, os quais
foram publicados como coleção em seu livro In Search of a
Peace [Em Busca da Paz], o qual apareceu apenas alguns
meses antes do início da Segunda Guerra Mundial.[649]
O mais importante, como se dá com frequência, é que
as palavras foram outra vez imantadas. O desarmamento
passou a ser axiomaticamente igualado à paz. Para os
defensores do desarmamento, Churchill dissera: "Quando
vocês tiverem a paz, vocês terão o desarmamento",[650] não
o contrário, mas não havia, uma vez mais, qualquer esforço
para se testar essa hipótese contra aquelas que
transformavam automaticamente os defensores do
desarmamento em "o movimento pela paz".
◆ ◆ ◆

A GUERRA DO VIETNÃ
Dentre as muitas implicações da guerra no Vietnã,
temos aquela que, uma vez mais, consagrou o papel da
intelligentsia em sua capacidade de influenciar as políticas
de uma sociedade e o curso da história. Esse papel não foi o
que buscava Maquiavel, de influenciar diretamente o
pensamento, as crenças ou os objetivos dos governantes.
Nas nações democráticas modernas, a intelligentsia pode
exercer sua influência, e algumas vezes de forma decisiva,
ao criar um clima geral de opinião pública no qual se torna
politicamente impossível para os governantes fazer aquilo
que acham que é preciso ser feito.
Como já foi observado no capítulo 7, Stanley Baldwin -
e ele próprio mais tarde admitiu - não ousou relatar ao
público britânico que a Alemanha estava se rearmando em
1933, pois temia perder as eleições daquele ano, uma vez
que dizer que a Alemanha se rearmava implicaria a
necessidade de se rearmar a Grã-Bretanha, e o clima de
opinião pública da época teria rejeitado essa conclusão e
também o mensageiro que trouxesse essas notícias
indigestas. Portanto, Baldwin não ousou falar o que sabia;
[651] não apenas para salvar sua própria posição política,

mas porque sabia que qualquer tentativa de sua parte em


soar o alarme dos perigos iminentes que vinham da
Alemanha poderia levar ao poder o partido da oposição, o
partido trabalhista, o qual se opunha completamente aos
preparativos militares, tornando a nação ainda mais
vulnerável do que ela já estava.
Resumindo, o clima de opinião pública da época
tornou politicamente muito árduo para que a Grã-Bretanha
se rearmasse de modo adequado tanto de forma
dissuasória, para desencorajar potenciais inimigos, quanto
para se defender no caso de guerra, muito embora os
agentes governamentais do alto escalão britânico
estivessem plenamente conscientes do rearmamento
clandestino da Alemanha, reconhecendo os perigos que
permaneciam desconhecidos para o público em geral. Assim
sendo, a influência da intelligentsia foi decisiva, muito
embora falhasse por completo em convencer os altos
oficiais governamentais sobre o acerto de seus argumentos.
Ainda que a Guerra do Vietnã tenha envolvido
questões e fatos bem diferentes, a deflagração do conflito
ecoou a mesma influência da intelligentsia sobre a opinião
pública. Quaisquer que fossem os méritos ou os deméritos
da decisão dos Estados Unidos em entrarem naquela guerra
a fim de evitar que o Vietnã do Sul fosse conquistado pelo
governo comunista do Vietnã do Norte, o fato duro é que
mais de cinquenta mil norte-americanos morreram numa
guerra na qual as forças do EUA conquistaram vitórias
militares decisivas, mas que pouco alteraram o curso da
guerra, pois se tornaram derrota política. O clima de opinião
pública reinante, criado pela intelligentsia nos Estados
Unidos, tornou politicamente impossível continuar lutando,
mas isso não afetou apenas a continuidade do envolvimento
das tropas norte-americanas na luta, mas impossibilitou até
mesmo que se continuasse a fornecer os recursos
necessários ao governo do Vietnã do Sul para que se
defendesse depois da retirada das tropas dos Estados
Unidos. Com um lado recebendo ajuda de fora e o outro
não, o resultado foi inevitável- a tomada do Vietnã do Sul
pelo Vietnã do Norte.
O ponto de virada decisivo da Guerra do Vietnã veio
em 1968 com um levante maciço das guerrilhas comunistas
no Vietnã do Sul durante um feriado vietnamita chamado
Tet - que ficou conhecido como a "ofensiva do Tet", lançado
durante o que seria uma trégua para a celebração do
feriado. Depois de muitas declarações otimistas feitas por
líderes políticos e militares dos Estados Unidos sobre o quão
bem a guerra estava sendo conduzida, foi um choque para o
público norte-americano saber que os comunistas foram
capazes de organizar um ataque tão maciço no coração do
Vietnã do Sul.[652] Além do mais, muitos na mídia
retrataram o acontecimento como uma derrota dos Estados
Unidos, quando de fato boa parte da guerrilha comunista foi
dizimada durante a luta e nunca mais foi a mesma.[653]
Os próprios líderes comunistas, depois de tomarem o
Vietnã do Sul, admitiram abertamente, anos mais tarde, que
haviam perdido a guerra militarmente contra os norte-
americanos, incluindo a ofensiva do Tet, mas destacavam
que haviam vencido politicamente nos Estados Unidos.
Durante a guerra, o prisioneiro de guerra norte-americano
James Stockdale ouviu de seu algoz norte-vietnamita que
"nosso país não tem condição de derrotar o seu no campo
de batalha", mas que eles esperavam "vencer a guerra nas
ruas de Nova York"[654]
O lendário líder comunista, general Vo Nguyen Giap,
que derrotara os franceses na decisiva batalha de Dien Bien
Phu, em 1954, e posteriormente comandou as forças do
Vietnã do Norte contra os norte-americanos, disse com
sinceridade anos mais tarde: "Nós não tínhamos força
suficiente para repelir meio milhão do contingente das
tropas norteamericanas, mas não era esse o nosso
objetivo". Seu objetivo era político: "Nossa intenção era
quebrar a vontade do governo norte-americano de persistir
no conflito. Westmoreland enganava-se ao esperar que seu
poder de fogo superior nos despedaçasse. Caso tivéssemos
nos focado na tarefa de equilibrar as forças, teríamos sido
derrotados em duas horas". De fato, os norte-vietnamitas
perderam "pelo menos um milhão" de homens, mortos
principalmente pelos norte-americanos, segundo um dos
assessores do general Giap, um número de baixas quase
vinte vezes superior ao sofrido pelas tropas norte-
americanas.[655] Olhando retrospectivamente, anos mais
tarde o assessor do general Giap chamou as perdas
comunistas durante a ofensiva do Tet de "devastadoras".
[656]
Temos a mesma história, durante uma entrevista
ainda posterior, com um homem que servira como coronel
do exército do Vietnã do Norte e que recebera a rendição do
Vietnã do Sul em 1975. A entrevista, concedida em 1995
pelo coronel Bui Tin, apresenta as seguintes perguntas e
respostas:

P: O movimento pacifista contra a guerra, nos


Estados Unidos, foi importante para a vitória de
Hanói?
R: Foi fundamental para nossa estratégia. O apoio
que tínhamos à guerra em nossa sociedade estava
completamente assegurado, ao passo que o lado
norte-americano era vulnerável. Todos os dias
nossas lideranças escutavam os noticiários
internacionais no rádio, às nove horas da manhã,
a fim de acompanharem o crescimento do
movimento contra a guerra nos Estados Unidos.
Visitas a Hanói por pessoas como Jane Fonda, o
ex-procurador geral Ramsey Clark e ministros nos
enchiam de confiança para que continuássemos a
resistir, mesmo diante dos reveses que sofríamos
no campo de batalha. Ficamos exultantes quando
Jane Fonda, usando um vestido vietnamita, disse
diante da imprensa internacional que estava
envergonhada das ações norteamericanas na
guerra e que lutaria ao nosso lado.

P: O Politburo prestava atenção a essas visitas?

R: Devotadamente.

P: Por quê?

R: Aquelas pessoas representavam a consciência


da América. A consciência dos Estados Unidos era
uma parte de sua capacidade para lutar a guerra e
estávamos redirecionando aquele poder ao nosso
favor. A América perdeu a guerra por causa de sua
democracia; por meio de dissidências e de
protestos ela perdeu o poder de mobilizar a
vontade necessária para vencer.![657]

Em relação à determinante ofensiva do Tet, em 1968,


a questão do entrevistador sobre os propósitos daquela
operação foi respondida de forma direta: "O Tet foi
concebido para influenciar a opinião pública norte-
americana". Em relação aos resultados da ofensiva do Tet:
"Nossas perdas foram assombrosas e uma completa
surpresa. Giap me disse, mais tarde, que o Tet fora uma
derrota militar, embora tivéssemos ganhado as vantagens
políticas planejadas quando Johnson concordou em negociar
e não concorreu à reeleição". Todavia, do ponto de vista
militar: "Nossas forças, no Vietnã do Sul, foram quase que
completamente varridas durante os combates de 1968".[658]
Essa combinação paradoxal entre acachapantes
vitórias militares dos Estados Unidos no Vietnã e
devastadoras derrotas políticas em Washington esteve
totalmente dependente do clima da opinião pública nos
Estados Unidos, um clima para o qual a intelligentsia
exerceu uma contribuição grandiosa.
Um dos temas dos críticos contemporâneos sobre a
Guerra do Vietnã, tanto antes quanto depois da ofensiva do
Tet, era baseado no argumento de que a guerra era
invencível, pois era essencialmente uma "guerra civil"
conduzida por guerrilhas comunistas dentro do Vietnã do
Sul, apesar de serem ajudadas e abastecidas pelo governo
comunista do Vietnã do Norte, em vez de ser uma guerra
entre duas nações. O notório historiador e comentarista
contemporâneo Arthur Schlesinger Jr. dizia que essas
guerrilhas poderiam "continuar lutando subterraneamente
pelos próximos vinte anos".[659] A ofensiva do Tet parecia se
alinhar com essa visão, especialmente quando esses
ataques disseminados começaram a ser retratados no New
York Times,[660] dentre outros lugares, como um "duro
golpe" e um "revés" para as tropas norte-americanas e do
Vietnã do Sul, e um "sucesso" para os comunistas. O
colunista Drew Pearson disse que os Estados Unidos haviam
sofrido "uma surra definitiva".[661]
O âncora da CBS, Walter Cronkite, disse: "Estamos
presos num atoleiro"[662] e, embora fosse uma conclusão
menos terrível do que algumas outras, o tamanho da
audiência de Cronkite e o fato de ele ser considerado, na
época e de acordo com pesquisas, a personalidade em que
o público norte-americano mais confiava, deram grande
peso à conclusão de que a guerra era militarmente inviável.
Tempos depois, os assessores do presidente Johnson
disseram que a transmissão de Cronkite convencera o
presidente de que ele perdera o apoio da opinião pública,
um fator necessário para levar a guerra a uma vitória
militar. Um mês depois, Lyndon Johnson anunciava que não
concorreria à reeleição e que buscava negociar com o
Vietnã do Norte.
Como sabemos, os líderes comunistas do Vietnã do
Norte em Hanói tinham, como os líderes norte-americanos
em Washington, praticamente a mesma avaliação militar
sobre a ofensiva do Tet, ou seja, que fora uma derrota
esmagadora para as guerrilhas comunistas. O sucesso
político dos comunistas consistia precisamente no fato de os
canais de mídia, como o New York Times, declararem o
sucesso de sua ofensiva militar. Da mesma forma, o Wall
Street Journal rejeitava a alegação da administração
Johnson que dizia que a ofensiva de Tet era um último
"respiro" do movimento guerrilheiro vietcongue no Vietnã do
Sul.[663] Nesse momento, a credibilidade da administração
Johnson havia sido despedaçada por suas palavras e suas
ações prévias.[664]
Portanto, embora agora saibamos que a avaliação
militar transmitida pela mídia fora imprecisa na época, isso
exerceu um peso muito maior na formação da opinião
pública do que as avaliações precisas feitas pelos líderes
nacionais tanto de Hanói como de Washington.
A alegação central dos críticos contrários à guerra era
de que, usando as palavras do reconhecido colunista Walter
Lippmann, "os norte-americanos não podem exterminar as
guerrilhas vietcongues" no Vietnã do Sul, uma visão
compartilhada pelo historiador Arthur Schlesinger Jr. e por
outros.[665] No entanto, a ofensiva do Tet alcançou, na
prática, a tarefa supostamente impossível, custando às
guerrilhas vietcongues uma tremenda perda de homens e
de territórios, os quais eles previamente controlavam, assim
como sua capacidade para conseguir novos recrutas; e o
que era chamado de guerra civil se tornou, mais tarde, uma
clara guerra entre exércitos nacionais.[666] Para Lippmann,
escrevendo em 1965, três anos antes da ofensiva do Tet, o
que acontecia no Vietnã do Sul era uma guerra civil na qual
"os rebeldes estão vencendo"[667] No entanto, Lippmann se
considerou vindicado pela ofensiva do Tet: "A guerra
vietnamita é, eu sempre acreditei, invencível".[668] O
colunista Joseph Kraft, do Washington Post, foi um dos
muitos que repetia o mantra de que a Guerra do Vietnã "não
poderia ser vencida".[669] Numa democracia, se um número
suficiente de pessoas acredita que uma guerra não pode ser
vencida, isso pode realmente torná-la assim.
Assim como muitos outros, a solução de Walter
Lippmann, desde o começo, fora a do "estabelecimento de
negociações". Ele prestava pouca atenção à viabilidade real
de tal acerto, assim como muitos outros intelectuais fizeram
e fazem, ao longo dos anos, sobre a real viabilidade de
muitos tratados internacionais de desarmamento e outros
acordos feitos com regimes totalitários controlados por
ditadores. Lippmann não estava sozinho. O economista John
Kenneth Galbraith estava entre os muitos que exortavam tal
abordagem.[670] No final, o sucessor de Lyndon Johnson, o
presidente Richard Nixon, acabou, de fato, estabelecendo
negociações com o Vietnã do Norte, que foram realmente
um plano de rendição em parcelas aos norte-vietnamitas,
feito para salvar as aparências. Todavia, os vietcongues
tomaram o Vietnã do Sul, tornando claro para o mundo o
que acontecera de verdade, e renomearam Saigon, a capital
do Vietnã do Sul, como Ho Chi Minh, em homenagem ao ex-
governante do Vietnã do Norte.
No período seguinte à vitória política comunista no
Vietnã, muitos dos que se opuseram, nas democracias
ocidentais, ao envolvimento dos Estados Unidos com a
Guerra do Vietnã, em função de preocupações humanitárias
devido ao grande número de perdas humanas tanto entre a
população civil quanto entre os soldados, foram
confrontados com o fato de que o fim da guerra não pusera
um ponto final nos massacres. O historiador militar Victor
Davis Hanson observou:

Em comparação com as décadas de guerra, a


vitória comunista trouxe muito mais mortes e um
deslocamento humano muito mais acentuado para
a população vietnamita. Essas baixas foram, com
maior frequência, causadas pela fome, pelo
encarceramento e pela fuga, em vez de serem o
resultado de assassinatos coletivos (...). Os
números exatos ainda são controversos, mas boa
parte dos especialistas aceita que bem mais de
um milhão de pessoas fugiram de barco e
centenas de milhares de outras atravessaram o
território vietnamita por terra em direção à vizinha
Tailândia e até mesmo à China (...). Os que
acabaram morrendo em decorrência de naufrágios
ou de outros acidentes variam de cinquenta mil a
cem mil pessoas (...).[671]

A Guerra do Vietnã fez reviver, nos Estados Unidos, o


padrão visto na França entre as duas Guerras Mundiais: o
rebaixamento moral dos soldados em batalha, retirados do
papel de heróis patriotas, não importando quais atos de
bravura e de autossacrifício tenham realizado. Os danos
colaterais sofridos pela população civil vietnamita durante
as operações militares dos norte-americanos, ou mesmo as
alegações de má conduta individual entre as tropas norte-
americanas, provocaram toda sorte de bombásticas
condenações morais sobre os militares dos EUA como um
todo, geralmente sem qualquer exame ou levantamento da
questão sobre a regularidade ou não de tais efeitos
colaterais durante as guerras ou se as atrocidades eram
autorizadas ou condenadas pelas autoridades[672] A
atrocidade contra a população civil que ganhou a mais
ampla cobertura da imprensa e da mídia foi o "massacre de
My Lai", perpetrado por uma unidade norte-americana
contra um vilarejo do Vietnã do Sul que era suspeito de
abrigar as guerrilhas comunistas, mas interrompido por
outras tropas norte-americanas quando chegaram ao lugar;
o oficial encarregado foi sentenciado pelo tribunal militar
por ter feito coisas que as guerrilhas comunistas faziam
rotineiramente e numa escala muito mais ampla.[673] Por
intermédio da manipulação da mídia, a imagem dos que
serviram como militares durante a Guerra do Vietnã, como a
imagem dos soldados franceses que serviram na Primeira
Guerra Mundial, apresentou-os frequentemente no papel de
vítimas. No Vietnã, "histórias de heróis não faziam parte do
cardápio", como disse o chefe de redação do Washington
Post anos depois, ao se lembrar da cobertura da guerra pela
mídia dos Estados Unidos.[674] Uma imagem padrão, colada
sobre os veteranos da Guerra do Vietnã, era a de que esses
homens pertenciam, de forma desproporcional e
majoritariamente, às classes mais pobres, menos educadas
e às minorias, e que os traumas de guerra os levaram ao
uso disseminado de drogas durante o serviço no Vietnã e a
atos de violência ao voltarem para casa, contraindo uma
"síndrome de estresse pós-traumático". Filmes muito
aclamados, retratando essa época, acabaram dramatizando
essas imagens.[675] Todavia, os frios dados estatísticos
contradizem esse panorama[676] e alguns dos "veteranos de
combate" do Vietnã que participaram dos especiais de
televisão de Dan Rather, dentre outros, nunca estiveram em
combate ou, até mesmo, nunca foram ao Vietnã.[677] Mas o
que eles diziam se encaixava na visão dominante e isso
geralmente era o suficiente para que eles fossem
convidados para aparecer na televisão e citados em jornais
e livros.
Por vezes, a mídia e a intelligentsia dos EUA
conseguiram superar o período entre-guerras na França ao
retratarem os veteranos de combate norte-americanos
como vilões. O único prêmio Pulitzer dado à cobertura da
ofensiva do Tet foi parar nas mãos de um jornalista que
escrevera sobre o massacre de My Lai, mas que nunca tinha
pisado no Vietnã.[678] Dessa forma, essa tragédia pontual
acabou ofuscando inumeráveis batalhas por todo o Vietnã
do Sul, nas quais as tropas norte-americanas obtiveram
vitórias esmagadoras. O fato de boa parte dos combates
contra guerrilhas urbanas vestidas em trajes civis acontecer
em áreas residenciais tornou a tarefa mais difícil para as
tropas norte-americanas, mas deu à imprensa numerosas
oportunidades para criticar as tropas:

As casas em volta da estrada estavam


abarrotadas com centenas de atiradores. Levou
uma semana, uma luta de casa a casa, para que
as tropas do exército norte-americano e seus
aliados do Vietnã do Sul localizassem e
expulsassem os vietcongues, os quais raramente
se rendiam e tinham que ser mortos até o último
homem. No entanto, na televisão os soldados dos
EUA eram culpados de explodir as residências dos
vietnamitas como se ninguém percebesse que
atiradores urbanos alvejavam os fuzileiros navais
dos Estados Unidos durante o que deveria ter sido
uma trégua de feriado.[679]

Essa batalha em Saigon não foi o único caso de uma


batalha noticiada de forma tendenciosa. A cidade de Hué,
próxima da fronteira com o Vietnã do Norte, foi capturada
por um numeroso contingente de guerrilhas vietcongues e
do Vietnã do Norte, o que foi seguido pelo massacre de
milhares de civis, os quais foram enterrados em covas
coletivas. O contra-ataque das tropas norte-americanas, que
retomou o controle da cidade, foi sistematicamente
criticado pela mídia por ter destruído estruturas históricas
antigas. Tais críticas vieram geralmente de jornalistas que,
por outro lado, nada tinham a declarar sobre os genocídios
perpetrados pelos comunistas sobre a população civil
daquela cidade.[680]
Muitos anos depois do término da Guerra do Vietnã, a
CNN exibiu, em 1998, uma história sobre uma alegada
atrocidade oficialmente sancionada pelos EUA em 1970.
Como foi noticiado pelo Wall Street Journal: "Um ex-boina-
verde processou a Cable News Network (CNN) e a revista
Time por difamação pela matéria exibida pela CNN e
repetida pela revista Time, agora retratada como falsa. A
matéria acusava os militares dos EUA de usarem gás
venenoso para matar os desertores norte-americanos
durante a Guerra do Vietnã".[681] Um dos coautores dessa
história, Peter Arnett, foi também a única fonte de uma
observação mais famosa, embora incomprovada, segundo a
qual um oficial militar norte-americano no Vietnã dissera
que: "Foi necessário destruir a cidade para salvá-la".[682]
Porém, o historiador militar Victor Davis Hanson ressaltou:
"No entanto, havia pouca evidência, além do próprio Arnett,
de que qualquer oficial dos EUA tivesse dito tal coisa"[683]
Imagens negativas das tropas norte-americanas,
filtradas pela mídia, foram tão amplamente difundidas, que
os veteranos do Vietnã, ao voltarem para casa, eram
frequente e abertamente desprezados e insultados.
◆ ◆ ◆

A GUERRA FRIA
A Guerra Fria, entre os Estados Unidos e a União
Soviética, começou muito antes de os EUA entrarem na
Guerra do Vietnã e continuou durante muito tempo depois
do término dessa última. Se o reconhecimento sobre o
perigo que representava a União Soviética para as
democracias ocidentais pudesse ser datado em função de
um evento em particular, esse evento seria o discurso de
Winston Churchill, de 1946, em Fulton, Missouri, quando
destacou que o compromisso assumido durante a guerra
pelos soviéticos, de promoverem eleições livres e
viabilizarem governos independentes na Europa do Leste,
fora rejeitado, indicando uma política claramente
expansionista do governo ditatorial dos soviéticos:

De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma


cortina de ferro se abateu sobre o continente
europeu. Atrás dessa linha estão todas as capitais
dos antigos Estados da Europa central e oriental.
Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste,
Belgrado, Bucareste e Sofia, todas essas famosas
cidades e as populações que vivem em seu
entorno estão agora localizadas no que eu devo
chamar de esfera soviética, e todas estão sujeitas,
de uma forma ou de outra, não apenas à
influência soviética, mas a um alto e crescente
grau de controle exercido por Moscou.[684]

Dentre os muitos esforços para se evitar que a cortina


de ferro avançasse para oeste, tivemos o Plano Marshall, o
qual visava à reconstrução da Europa ocidental, assolada
pelas devastações da guerra, e a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan), a qual visava constituir uma força
militar organizada de nações europeias, incluindo a
presença de tropas norte-americanas nesses países, além
de criar um guarda-chuva nuclear norte-americano sobre
eles, com ameaça de retaliação conjunta de todos os
participantes em resposta a um eventual ataque militar a
qualquer um dos membros da Otan. Nada disso foi realizado
sem passar por contínuas e grandes controvérsias dentro
das democracias ocidentais, nas quais a intelligentsia
desempenhou um papel de destaque.
Por exemplo, o discurso sobre a "cortina de ferro" de
Churchill provocou muitas reações contrárias tanto na
intelligentsia dentro dos Estados Unidos quanto na própria
Grã-Bretanha. O escritor ganhador do prêmio Nobel Pearl
Buck, por exemplo, referiu-se ao discurso de Churchill como
uma "catástrofe".[685] Um editorial do Chicago Tribune disse
que "o sr. Churchill perde boa parte de sua estatura com
esse discurso".[686] O colunista Marquis Childs lamentou "o
vezo altamente antirrusso que viciou todo o discurso."[687]
Os jornais Boston Globe, Washington Star e muitos outros
jornais norte-americanos também reagiram de forma
negativa ao discurso de Churchill, como fez o famoso
colunista Walter Lippmann, embora o New York Times e o
Los Angeles Times o tenham elogiado.[688] Na Grã-Bretanha,
as reações variaram, desde o Evening News, o qual elogiou
o alerta de Churchill, até George Bernard Shaw, que chamou
o discurso de "nada menos que uma declaração de guerra
contra a Rússia". Houve a mesma divergência de opiniões
em relação ao discurso da "cortina de ferro" em Paris.[689]
Nas décadas que se seguiram, os esforços para
reforçar as defesas militares da Europa ocidental contra a
ameaça do bloco soviético também geraram controvérsia
entre os setores e os membros da intelligentsia, alguns dos
quais perguntaram se não "seria melhor ser vermelho do
que estar morto". Todavia, a Europa ocidental era apenas
um dos palcos da Guerra Fria e a defesa militar era apenas
uma das áreas de conflito entre a União Soviética e os
Estados Unidos. O conflito estendia-se aos âmbitos
econômicos, políticos, sociais e ideológicos.
Embora essa fosse uma Guerra Fria, uma guerra sem
combates militares, já que as tropas norte-americanas e
soviéticas não lutaram diretamente umas contra as outras,
havia, no entanto, muitas partes do mundo nas quais
ocorreram batalhas militares entre tropas · apoiadas,
respectivamente, por soviéticos e por norte-americanos. O
Vietnã foi apenas mais uma dessas frentes de batalha. Além
do mais, embora a guerra entre os Estados Unidos e a União
Soviética fosse "fria", no sentido de não haver conflito
militar direto entre esses dois países, pairava, acima de
tudo, a ameaça da catástrofe máxima, a guerra nuclear.
Durante a Guerra Fria, e especialmente depois da
escalada do envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do
Vietnã, muitos membros da intelligentsia começaram a
repetir o velho mantra de que a guerra "nada resolve", um
eco da década de 1930, quando a futilidade das guerras foi
proclamada, dentre muitos outros, por Neville Chamberlain,
que dissera que a guerra "não vence nada, não cura nada e
não põe fim a nada",[690] o qual, por sua vez, apenas repetia
o que muitos diziam em sua época. Mas como tanta coisa
que é dita pela intelligentsia sobre os mais diversos
assuntos, a noção de que a guerra "nada resolve" tinha
muito pouca relação com qualquer evidência empírica e
muita relação com a visão do intelectual ungido, o qual se
alimenta da exaltação de seu próprio papel. Caso a batalha
de Lepanto, em 1571, ou a batalha de Waterloo, em 1815,
tivessem tido um resultado contrário ao que aconteceu
historicamente, isso poderia ter determinado um mundo
muito diferente. Caso a desesperada luta em Stalingrado e
nas praias da Normandia tivesse dado a vitória para o outro
lado, durante a Segunda Guerra Mundial, a vida talvez não
valesse a pena ser vivida para milhões de pessoas hoje em
dia.
Houve, certamente, guerras fúteis, nas quais todas as
nações, em ambos os lados, terminaram muito pior do que
antes do conflito, e a Primeira Guerra Mundial é um exemplo
clássico. Mas ninguém afirmaria às cegas que a ciência
médica "nada resolve" porque muitas pessoas morrem
apesar de receberem tratamento médico e algumas outras
morrem por receberem o tratamento errado, o mesmo vale
para os riscos remotos das vacinas. Resumindo, as
especificações mundanas são mais importantes na
avaliação de qualquer guerra em particular do que os
bombásticos, dramáticos e abstratos pronunciamentos tão
comumente adotados pela intelligentsia.
A futilidade de uma "corrida armamentista" foi mais
uma característica marcante da década de 1930 que voltou
a vigorar na década de 1960, mesmo que um
desarmamento unilateral - tanto moral quanto militar -,
adotado pelas nações democráticas após o término da
Primeira Guerra Mundial, tenha tornado muito favorável,
para os poderes do Eixo, a perspectiva de vitória em outra
guerra, o que desembocou na Segunda Guerra Mundial. A
noção de que uma "corrida armamentista" fomentaria a
guerra, que fora o tom dominante entre os intelectuais
durante o período entre-guerras, o qual acabou
influenciando a condução política, principalmente na figura
de Neville Chamberlain,[691] foi restaurada a partir da
segunda metade do século XX. Seja qual for a plausibilidade
dessa noção, o que parece crucial é que poucos intelectuais
sentiram qualquer necessidade de ir além da mera
plausibilidade em busca de evidências concretas, a fim de
aferir suas suposições, colocando-as sob o crivo da
verificação empírica, mas, em vez disso, trataram a questão
como um axioma inquestionável.
Assim que a Segunda Guerra Mundial demonstrara, de
forma trágica, os perigos das insuficientes políticas de
desarmamento e de rearmamento, a ideia sobre a alegada
futilidade da corrida armamentista foi descartada. Porém,
quando o presidente John F. Kennedy invocou essa lição da
Segunda Guerra Mundial ao dizer em seu discurso de posse
em 1961 que "não ousaremos tentá-los mostrando
fraqueza",[692] apesar de sua juventude ele falava em
consonância com uma geração que estava passando,
defendendo ideias que seriam, em breve, substituídas por
ideias opostas, adotadas ironicamente anos mais tarde por
seu irmão mais jovem no Senado dos Estados Unidos. A
ideia de força militar como fundação para a paz, a partir do
poder dissuasivo para conter potenciais inimigos, caiu em
desuso rapidamente a partir da década de 1960, ao menos
entre os intelectuais. Em vez disso, durante os longos anos
de Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos,
acordos para limitação de arsenais foram defendidos por
muitos, senão pela maioria, da intelligentsia ocidental.
Tratados proclamando predisposições pacíficas entre
as nações, especialmente aqueles que limitavam os
arsenais de guerra, foram mais uma vez aclamados pela
intelligentsia por promoverem um "arrefecimento das
tensões" entre as nações. Contudo, as tensões
internacionais haviam sido esfriadas por tais acordos,
muitas outras vezes em outras ocasiões, durante o período
entre as duas Guerras Mundiais, como, por exemplo, nos
Acordos Navais de Washington em 1921-1922, o Pacto de
Locamo em 1925, o Pacto Kellogg-Briand em 1928, o Acordo
Naval Anglo-Germânico em 1935 e o maior afrouxamento
de todos - o acordo de Munique em 1938, no qual a Grã-
Bretanha e a França dispensaram um aliado do qual, depois,
precisaram desesperadamente durante a guerra que
irrompeu um ano mais tarde.
Todo esse conhecimento histórico desapareceu da
memória, como se nunca tivesse acontecido, na medida em
que a intelligentsia ocidental da época da Guerra Fria voltou
a repetir a ênfase sempre reiterada de Neville Chamberlain
no "contato pessoal"[693] entre os líderes de nações em
tensão, celebrando, uma após a outra, as "reuniões de
cúpula" entre norte-americanos e soviéticos, batizando o
resplendor dessas reuniões como "espírito de Genebra",
"espírito de Camp David" e de outros lugares onde se deram
reuniões e pactos semelhantes. Era como se as causas das
guerras fossem emoções hostis que poderiam ser
esvaziadas por meio de uma compreensão melhor entre as
pessoas ou de mal-entendidos entre governos que poderiam
ser esclarecidos através de reuniões entres os chefes de
Estado das nações em tensão. Mas o desejo de A arruinar B
não é uma "questão" que pode ser resolvida amigavelmente
em torno de uma mesa de conferência.
Questões empíricas a respeito das especificidades
concretas dos acordos internacionais, como a possibilidade
de verificar os termos acordados ou se as restrições
impostas sobre o Ocidente se equiparavam às restrições
impostas aos soviéticos, raramente receberam muita
atenção da intelligentsia, cujos membros estavam muito
ocupados promovendo euforia sobre o fato de que acordos
internacionais haviam sido assinados acompanhados de
uma retórica prepotente.
A assimetria geral dos acordos internacionais entre os
governos democráticos e autocráticos remonta a um
período bem anterior à Guerra Fria. A intelligentsia dos
países democráticos não só ajuda na criação de um clima
de opinião pública que anseia pela realização desses
acordos, sem se preocupar com as especificidades dos
termos, mas também força os governos democráticos a
respeitarem estritamente os termos dos acordos, ao passo
que não existe qualquer pressão equivalente sobre os
governos autocráticos. Portanto, como já observado no
capítulo 7, os governos da Grã-Bretanha e dos Estados
Unidos restringiram o tamanho de seus navios de guerra em
conformidade com as determinações dos Acordos Navais de
Washington de 1921-1922, e os britânicos fizeram o mesmo
em relação ao Acordo Naval Anglo-Germânico de 1935 -
com o resultado explícito, durante a Segunda Guerra
Mundial, de que tanto o Japão quanto a Alemanha tinham
navios de guerra maiores do que quaisquer navios
britânicos ou norte-americanos, uma vez que os regimes
totalitários do Japão e da Alemanha se viam desimpedidos
para violarem os termos dos acordos.
De forma semelhante, durante a Guerra do Vietnã um
cessar fogo negociado em Paris teve que ser respeitado
pelo Vietnã do Sul, já que os sul-vietnamitas dependiam do
fornecimento de material militar dos Estados Unidos e esse
último se encontrava sob constante pressão da opinião
pública, a qual exigia que o cessar-fogo fosse respeitado.
Enquanto isso, o regime comunista do Vietnã do Norte
estava liberado para simplesmente ignorar o acordo que
seus representantes haviam assinado em meio a uma
fanfarra internacional, e que culminou no prêmio Nobel da
Paz tanto para o representante norte-vietnamita, Le Duc
Tho, quanto para o secretário de Estado norte-americano
Henry Kissinger.
Com o Vietnã do Norte livre para continuar a lutar e o
Vietnã do Sul impossibilitado de tomar contramedidas
comparáveis, o resultado foi que o Vietnã do Norte
conquistou o Vietnã do Sul. A administração Nixon não foi
ingênua quando endossou os acordos que levaram a esse
resultado. O presidente Nixon queria que a guerra acabasse
e os Acordos de Paris criaram o atalho para uma aparente
resolução pacífica da Guerra do Vietnã, e a criação de
atalhos é o que conta no mundo da política.
Uma vez mais, o impacto dos intelectuais sobre o
curso dos eventos independeu de seu poder direto de
convencimento sobre os donos ou os detentores do poder. O
presidente Nixon não tinha qualquer consideração pelos
intelectuais. Foi ao ajudar na formação de um clima de
opinião pública que a intelligentsia influenciou a decisão
política de Nixon, que custou o abandono do Vietnã do Sul, o
qual ficou à mercê de seu próprio destino.
Dentre as muitas noções das décadas de 1920 e de
1930, e que retornaram na década de 1960, encontrava-se
a alegação irrelevante de que, afinal de contas, os povos
dos países desejavam a paz - como se para Hitler fosse
importante o que o povo alemão desejava[694] ou como se
Stalin se importasse com os desejos do povo soviético.
Como corolário dessa noção, vinha à tona a velha ideia de
promover mais contatos "entre os povos" para favorecer o
processo de paz, como fora exortado por john Dewey na
década de 1920,[695] mas isso retornou como se fosse uma
nova ideia surgida durante a Guerra Fria. Era como se as
guerras fossem o resultado da insuficiência de empatia
entre os povos ou uma doença psicológica das massas que
poderia ser tratada terapeuticamente.
John Dewey dissera em 1922: "Se conseguirmos de
fato nos entender reciprocamente, alguma forma de
cooperação para fins comuns pode ser encontrada".[696] Na
década seguinte, um sentimento semelhante foi externado
pelo primeiro-ministro Neville Chamberlain[697] e, décadas
depois disso, a mesma ideia foi recuperada, tornando-se
fórmula preferida da mídia e do discurso acadêmico durante
as décadas da Guerra Fria. A ideia de que uma compreensão
mútua seria a chave para a paz - juntamente de seu
corolário de que contemplar o ponto de vista do outro lado
seria crucial - foi crucial para a diplomacia do primeiro-
ministro Chamberlain durante a década de 1930.[698] Mas
assim como tantas outras coisas da visão predominante,
isso foi considerado axiomaticamente e não como uma
hipótese que teria que se sujeitar à verificação empírica da
história ou de eventos mais contemporâneos.
A eleição de Ronald Reagan para presidência dos
Estados Unidos na década de 1980 acarretou políticas e
práticas diretamente opostas àquelas favorecidas pelos
intelectuais. Em vez de enfatizar, como fizera Neville
Chamberlain, a importância de se compreender o ponto de
vista de uma nação adversária,[699] o presidente Reagan
enfatizou a importância de tornar claro que as nações
adversárias compreendiam o ponto de vista dos Estados
Unidos, como ficou explícito quando ele chamou a União
Soviética de "império maligno" - para a consternação da
intelligentsia.[700] Em seu primeiro encontro com o soviético
Mikhail Gorbachev em Genebra, em 1985, Reagan foi
completamente duro: "Nós não aceitaremos e não
permitiremos que vocês tenham superioridade bélica sobre
nós. Podemos concordar em reduzir as armas ou podemos
continuar a corrida armamentista, a qual eu acho que vocês
sabem que não podem vencer".[701] Durante uma visita a
Berlim ocidental, em 1987, Reagan fora avisado que os
comunistas em Berlim oriental tinham equipamentos de
escuta de longo alcance. Essa foi sua resposta, como
relatada em sua autobiografia:

"Cuidado com o que o senhor diz", disse um


funcionário do governo alemão. Bem, quando ouvi
aquilo, saí para um lugar que ficava ainda mais
próximo do prédio e comecei a pensar em voz alta
sobre o que achava de um governo que
encurralava seu próprio povo como se fossem
animais em cativeiro.

Não consigo me lembrar exatamente do que disse,


mas talvez tenha sido um pouco grosseiro ao
expressar minha opinião sobre o comunismo, pois
esperava que fosse ouvido.[702]

Mais tarde, naquele mesmo dia, ele visitou o infame


Muro de Berlim, onde expressou publicamente uma frase
que assombrou a intelligentsia, tanto quanto fizera sua
observação sobre o "império do mal": "Sr. Gorbachev,
derrube este muro!".[703] Isso foi um duplo insulto porque,
ao menos oficialmente, o governo soberano de Berlim
oriental seria o responsável pelo Muro de Berlim. Ao passar
publicamente por cima da autoridade do governo de Berlim
oriental, dirigindo-se diretamente ao premier russo, ele
chamara, de fato, o regime da Alemanha oriental de
governo fantoche.
Outra área em que Ronald Reagan representou
rompimento com as práticas pretéritas dos líderes
ocidentais foi em recusar assinar acordos internacionais
sempre que não considerasse os termos justos, mesmo que
isso significasse que ele voltaria de uma reunião de cúpula
com as mãos vazias e com isso seria culpado, pela mídia, de
não conseguir um acordo. Na reunião de cúpula em 1986,
na Islândia, com o então líder soviético Mikhail Gorbachev,
houve muitos acordos tentadores nas tratativas de redução
de armas, mas quando chegou o momento de finalizar um
deles, Gorbachev disse: "Tudo isso depende, é claro, de
vocês desistirem do IDE" - Iniciativa de Defesa Estratégica -
o programa de defesa de mísseis chamado, por seus
oponentes, de "Guerra nas Estrelas". Mais tarde, ao se
lembrar desse momento crucial no instante final da reunião,
Reagan comentou em sua autobiografia:

Eu estava cada vez mais furioso.

Percebi, de pronto, que ele me trouxera à Islândia


com um único propósito: matar o programa de
Iniciativa de Defesa Estratégica. Ele sabia, desde o
começo, que traria essa exigência no último
minuto.

"A reunião está encerrada", eu disse. "Vamos


embora, George."[704]

Com isso, o presidente Reagan e o secretário de


Estado George Shultz deixaram a reunião, mesmo sabendo
que os soviéticos estavam dispostos a negociar por mais um
dia.[705] Haveria outras reuniões, mas essa deixou claro para
os soviéticos que, diferentemente de outros líderes
ocidentais, Reagan não precisava voltar para casa com um
acordo a qualquer custo.
Muitos na intelligentsia viram a abordagem de Reagan
como algo que provavelmente levaria à guerra, mas, pelo
contrário, ela acelerou o fim da Guerra Fria, ao passo que a
abordagem de Chamberlain, a qual supostamente levaria à
paz, acabou fomentando a maior guerra da história; no
entanto, toda essa realidade histórica não provocou um só
arranhão na visão do intelectual ungido.
◆ ◆ ◆

A INTELLIGENTSIA DURANTE A GUERRA FRIA


O virtuosismo retórico continuou muito em evidência
entre os membros da intelligentsia durante a década de
1960, como estivera presente no universo político-
ideológico das décadas de 1920 e de 1930. Os defensores
das políticas de desarmamento se denominavam, em
ambas as épocas, membros do movimento pela "paz",
impedindo, contudo, que outros tocassem na questão
crucial sobre a real validade do desarmamento unilateral,
não questionando se ele realmente aumentaria as chances
da manutenção da paz ou se seria o contrário; e se o
"arrefecimento das tensões internacionais" implicaria
realmente uma redução da iniciativa de guerra em todas as
nações ou se seria o caso de apenas deixar as potenciais
vítimas menos cientes dos perigos de agressores futuros.
Assim como em outros contextos, o excesso de virtuosismo
retórico substitui, com frequência, a verificação empírica
detalhada ou mesmo uma análise criteriosa. Não foi o caso
de a intelligentsia usar mal esses procedimentos, porém
suas astutas formulações retóricas geralmente tornam
desnecessárias, a esses intelectuais, tais verificações.
Durante a década de 1980, quando o presidente
Reagan respondeu à retomada do posicionamento de
mísseis soviéticos na Europa oriental com um
correspondente aumento de mísseis norte-americanos na
Europa ocidental, esse evento fez ressurgir os argumentos
da "corrida armamentista" das décadas de 1920 e de 1930,
polarizando a opinião pública nas nações do Ocidente,
incluindo os Estados Unidos. O colunista William Raspberry,
do Washington Post, deplorou "uma perigosa, custosa e
prolongada corrida de armas nucleares".[706] O colunista
Anthony Lewis, do New York Times, disse que "não é uma
resposta racional" ao poder soviético "intensificar uma
corrida armamentista”[707] O seu colega colunista do New
York Times, Tom Wicker, referia-se a "uma corrida
armamentista sem razão de ser".[708] "É cenamente melhor
concentrar esforços para se colocar a corrida armamentista
sob controle, mantendo assim a vida civilizada como nós a
conhecemos, fisicamente intacta", disse o escritor e ex-
diplomata George F. Kennan.[709] Alva Myrdal, ganhadora do
prêmio Nobel da Paz, disse: "Nunca deixei de procurar
entender os motivos e as razões para algo tão sem sentido
como a corrida armamentista".[710]
Tais visões tiveram reflexo na arena política. Como já
foi observado, o irmão mais novo do presidente John F.
Kennedy, o senador Edward M. Kennedy, de Massachusetts,
tornou-se uma figura política de destaque usando os
mesmos argumentos contra a "corrida armamentista",
repetindo os termos usados pela maior parte da
intelligentsia.
Em 1982, o senador Kennedy estava entre aqueles
que se opuseram à ampliação do poderio militar proposto
por Reagan, declarando que seria "uma nova e perigosa
espiral na competição por armas nucleares" e clamava por
uma "reversão da corrida nuclear".[711] Em 1983, o senador
Kennedy disse: "Buscaremos congelar a corrida
armamentista, a qual pode acabar tornando todo o planeta
numa fria terra devastada”.[712] Mais tarde, no mesmo ano,
ele diria: "Precisamos acabar com a corrida armamentista
antes que ela acabe conosco".[713] O senador Kennedy
também se juntou a outros senadores num protesto
publicado numa carta ao New York Times declarando que:
"Especialistas e cidadãos por todo o país estão abraçando o
congelamento do poderio nuclear como a melhor forma de
acabar com a corrida de armas nucleares antes que seja
tarde demais".[714] Em outras palavras, uma vez que o
aumento do poderio de mísseis nucleares soviéticos na
Europa oriental lhes desse superioridade militar na Europa,
deveríamos congelá-la, em vez de restaurar o equilíbrio. Ao
atacar as políticas do presidente Reagan no Senado, o
senador Kennedy convocou seus colegas senadores "a
acabarem com a corrida nuclear antes que ela acabe com a
raça humana".[715]
Embora o senador Kennedy fosse uma voz de
liderança na campanha pelo congelamento do poderio
nuclear norte-americano, ele recebeu o apoio de muitas
outras figuras políticas proeminentes, além do explícito
amparo dos membros da mídia, os quais ecoaram sua
mensagem. Os que ressuscitaram o antigo argumento
contra a "corrida armamentista" e sua política de dissuasão
militar, fazendo uso de uma retórica que havia sido
largamente usada durante o período entre as duas Guerras
Mundiais, supunham implicitamente que havia recursos
suficientes em ambos os lados para que uma escalada
indefinida e interminável de aumento de poderio ocorresse.
Tal suposição provou ser completamente falsa quando o
aumento do poderio militar promovido pelo presidente
Reagan na década de 1980 provou ser demasiado custoso
para a frágil economia soviética, como Reagan sabia muito
bem.[716] O fato de a real consequência da política de
Reagan ter causado o resultado exatamente oposto ao que
fora previsto pelo argumento contrário à "corrida
armamentista", ou seja, o término da Guerra Fria, em vez de
o início de uma guerra nuclear, não causou grande efeito
sobre a visão predominante, assim como outros fatos que
contradizem diretamente outras premissas da visão do
intelectual ungido.
O fato de as políticas mais conciliatórias terem
falhado, por décadas, na tentativa de pôr fim à ameaça
nuclear, sob a qual o mundo vivera durante as décadas de
Guerra Fria, foi igualmente ignorado. Grande parte da
intelligentsia simplesmente se derramou em elogios ao
premier soviético Mikhail Gorbachev por não mais seguir as
políticas de seus predecessores.[717] A alternativa seria
admitir haver algo para ser dito a respeito da ênfase que
Reagan sempre dera ao poderio militar e da forma como ele
rejeitara a retórica dos críticos da "corrida armamentista", a
qual fora, durante muito tempo, completamente central no
pensamento da intelligentsia.
Algumas pessoas contestaram se, de fato, o fim da
Guerra Fria não deveria ser creditado mais a Reagan do que
a Gorbachev, mas para muitos, ou mesmo a para a maioria
dos membros da intelligentsia, não havia o que discutir,
uma vez que seria impensável que qualquer uma de suas
suposições fundamentais estivesse errada. No entanto,
depois do término da Guerra Fria e da dissolução da União
Soviética, ex-funcionários soviéticos do alto escalão
disseram que as políticas de Reagan foram um fator crucial.
Segundo o Washington Post:

Falando sobre o fim da Guerra Fria, durante uma


conferência ministrada na Universidade Princeton,
funcionários do alto escalão disseram que o ex-
presidente Mikhail Gorbachev ficara convencido
de que qualquer tentativa de enfrentar e se
equiparar ao programa de iniciativa de Defesa
Estratégica de Reagan, o qual fora lançado em
1983 com o objetivo de construir um escudo de
defesa espacial contra os mísseis soviéticos, traria
um dano irreparável à economia soviética.[718]

A noção de "corrida armamentista ", como


caracterização negativa no da dissuasão militar, foi apenas
uma dentre muitas ideias das décadas de 1920 e de 1930
que foram ressuscitadas durante o período da Guerra Fria.
Da mesma forma que os sindicatos dos professores
franceses tornaram as escolas francesas centros de
doutrinação para promoção das agendas pacifistas durante
as décadas de 1920 e de 1930, enfatizando os horrores da
guerra, também nos Estados Unidos, durante o período da
Guerra Fria, as salas de aula norte-americanas se tornaram
lugares para doutrinação sobre os horrores da guerra.
Dramatizações dos bombardeios nucleares às cidades
japonesas foram, por exemplo, encenadas:

Expostas aos detalhes mais medonhos, essas


crianças, em geral de classe média alta, eram
obrigadas a observar mulheres e crianças
japonesas sendo incineradas pela tempestade de
fogo acionada pelo bombardeio atômico. Os
jovens colavam na cadeira. Soluços podiam ser
ouvidos. O ânimo geral provocado na classe pode
ser resumido e bem expresso por uma jovem
emotiva que perguntou: "Por que nós fizemos
isso?". A professora respondeu dizendo: "Fizemos
uma vez, podemos fazer novamente. Se essas
armas de destruição serão ou não usadas,
depende de vocês". E assim se iniciava uma
unidade de estudo sobre as armas nucleares.[719]

Levar as crianças às lágrimas nas salas de aula, como


parte do processo de doutrinação, já havia feito parte
também do modus operandi na França entre as duas
Guerras Mundiais:

Por exemplo, numa escola para rapazes em


Amiens, os professores perguntavam aos meninos
cujos pais haviam sido mortos em combate para
que falassem sobre o assunto para a classe. "Mais
do que uma lágrima era derramada", relatou o
diretor. De forma parecida, uma professora de
outra escola primária em Amiens notou que em
sua escola uma aluna, em cada seis, perdera o pai
entre 1914 e 1918: "A lembrança dos mortos era
encenada com a mais comovente reverência ", a
professora relatou, "e tanto professoras quanto
alunas eram unidas pela emoção criada". Outra
professora, agora de uma escola para garotas em
Pont de Metz, relatou o silêncio solene que,
gerado durante a lembrança dos mortos, "era
quebrado com os soluços de muitas crianças cujos
pais morreram na guerra".[720]

É importante observar que nesse caso, assim como


em outros contextos, o erro fatal dos professores esteve em
conduzir situações que estavam além de sua competência,
uma vez que os professores não têm nenhuma qualificação
profissional que os habilite compreender os perigos de
manipular as emoções das crianças, nem quaisquer
qualificações especiais para compreender as complicações
políticas no âmbito internacional, ou quais fatores
aumentam e quais diminuem a probabilidade das guerras,
muito menos que fatores tendem a levar ao colapso e à
derrota, como aconteceu com a França em 1940.
De forma parecida ao que aconteceu na França,
durante o período entre as duas Guerras Mundiais, o
principal sindicato dos professores dos Estados Unidos - o
National Education Association (NEA) tornou-se um posto
avançado de doutrinação pacifista e uma rica fonte para a
promoção de ideias esquerdistas em geral. Durante suas
reuniões anuais, o NEA passava inúmeras resoluções que
versavam sobre assuntos que ultrapassavam, em muito, o
âm bito estritamente educacional, abarcando tópicos como
trabalhadores imigrantes, leis eleitorais, controle de armas,
aborto, questões de soberania do distrito de Columbia,
dentre muitos outros assuntos, incluindo questões sobre paz
e guerra. Suas resoluções, seus discursos e suas
premiações, ao longo dos anos, promoveram a mesma
combinação de pacifismo e de internacionalismo que
marcou os esforços dos sindicatos dos professores franceses
entre as duas Guerras Mundiais.
Essas resoluções exortavam continuamente os
"acordos de desarmamento para redução da possibilidade
de guerra",[721] incitando que "os Estados Unidos façam
todos os esforços para fortalecer as Nações Unidas a fim de
que esse organismo se torne um instrumento mais eficiente
para a promoção da paz mundial",[722] denominado de
"congelamento da corrida armamentista",[723] e declarava
que "materiais específicos precisam ser desenvolvidos para
as salas de aula das escolas para a realização de projetos
de estudo que foquem no estabelecimento da paz e na
compreensão sobre os perigos da proliferação nuclear".[724]
A ideia tão em voga durante as décadas de 1920 e de 1930,
segundo a qual a guerra seria, em si, o inimigo a ser
debelado, e não outras nações, reapareceu numa resolução
da NEA que declarava que a guerra nuclear seria "o inimigo
comum de todos os povos e de todas as nações".[725]
Troféus foram dados como prêmio durante as reuniões da
NEA para escolas que criassem programas para a promoção
de uma política pacifista e internacionalista em nome da
"paz".
Em 1982, por exemplo, a NEA, em sua reunião anual,
premiou com um troféu para a paz sua afiliada da cidade de
St. Albans, no estado de Vermont, porque seus professores
haviam organizado todo tipo de atividades pacifistas,
incluindo o envio de cartas dos alunos aos senadores. Essas
cartas versavam sobre temas que incluíam questões sobre a
fome e a paz.[726] Em 1985, a West Virginia Education
Association (Associação Educacional do Estado da Virginia
Ocidental) foi premiada por desenvolver um projeto
"educacional" sobre assuntos nucleares que envolvia o
contato das crianças com a Casa Branca e o Kremlin.[727] O
velho tema do estabelecimento de laços de amizade entre
os povos, amplamente promovido no período entre as duas
Guerras Mundiais, quando o sindicato dos professores
franceses estabeleceu atividades em parceria com os
professores alemães,[728] foi revivido nos Estados Unidos,
quando se obrigou que as crianças fizessem e enviassem
presentes simbólicos ao Japão. Em 1982, a Assembleia
Representativa do NEA conclamou por um "congelamento"
no desenvolvimento, no teste e no posicionamento de
armas nucleares.[729] Nesse mesmo ano, o presidente do
NEA, Willard H. McGuire, abriu uma sessão especial sobre
desarmamento que ocorreu no prédio das Nações Unidas
em Nova York e declarou:
Se as guerras do passado deixaram um rastro de
morte e de destruição quase inimaginável, uma
futura guerra entre as maiores potências mundiais
pode muito bem significar o fim da civilização
neste planeta. Torna-se, portanto, imperativo que
nós, professores, por meio de nossas
organizações, trabalhemos para evitar que o
precioso instrumento da educação se torne
novamente ferramenta para que líderes irracionais
pervertam a juventude do mundo ao fazê-la
acreditar que exista qualquer nobreza no
militarismo, que possa haver paz apenas por
meios dissuasórios ou que possa haver segurança
apenas se vivermos assustados sob a proteção de
escudos nucleares.

Devemos educar as crianças do mundo para que


acreditem que a paz real é possível, uma paz livre
de ameaças nucleares e de contra-ameaças, uma
paz na qual a vida humana seja algo maior que
uma lista de números colocados no mapa de
algum general boçal. Tal paz pode ser possível
apenas através do desarmamento mundial. Os
professores do mundo precisam trabalhar em
direção a esse objetivo.[730]

O que o credenciava para desconsiderar bruscamente


agentes e militares que tinham muito mais acesso à
informação e muito mais experiência em assuntos
internacionais, taxando-os de "irracionais" e chamando os
generais de "boçais", é uma questão que nunca foi
levantada. Nem foi levantada a questão sobre seu mandato,
o qual transformou as salas de aula em centros de
doutrinação. Mas Willard H. McGuire não é um caso isolado.
Dois anos mais tarde, uma nova presidente da NEA, Mary
Hatwood Futrell, denegriu a administração Reagan por ter
"escalado a corrida armamentista e aumentado o risco de
uma incineração mundial".[731]
Em 1990, o presidente da NEA, Keith Geiger,
conclamou para que se colocasse "as necessidades
humanas acima da corrida armamentista"[732] e depois que
o lraque invadiu o Kuwait, ele exortou o presidente George
H. W. Bush para "continuar a buscar meios pacíficos a fim de
encerrar a ocupação iraquiana no Kuwait", de forma a
"evitar a guerra, ao mesmo tempo que não se abre mão dos
princípios invioláveis na questão do Golfo Pérsico".[733] Não
havia quaisquer sugestões de como seria possível que esse
feito extraordinário pudesse ser alcançado, muito menos
qualquer discussão sobre o histórico das tentativas de se
desfazer conquistas militares por meio da diplomacia ou de
boicotes.
Também tem sido muito comum, entre os principais
agentes da mídia, adotar uma visão condescendente às
nações que se opõem à sua. O colunista Robert Novak, por
exemplo, revelou uma discussão que teve com o fundador
da CNN, Ted Turner, que, como relatado por Novak, também
repetiu o mantra das décadas de 1920 e de 1930, o qual
equiparava os que acreditam na eficiência da dissuasão
militar como defensores da guerra:

Enquanto atravessávamos a Praça Lafayette em


direção ao meu escritório, Turner disse: "Não
consigo entender, Novak, por que você é a favor
de uma guerra nuclear total". Ele então começou
a defender as políticas de controle de armas do
Kremlin, ao mesmo tempo que enaltece o paraíso
em que vivia o povo cubano. Eu tentei contra-
argumentar, mas era difícil ter a chance de falar
num bate-boca com Ted Turner. Quando chegamos
ao escritório no 13° andar, eu o apresentei a uma
jovem no saguão do escritório da Evans & Novak,
cuja função principal era administrar as ligações
telefônicas. Turner olhou decididamente para ela e
perguntou: "Como você se sente em trabalhar
para um homem que é a favor do holocausto
nuclear?". A mulher olhou para Ted como se ele
fosse um louco e, de certo modo, ele era.[734]

◆ ◆ ◆

AS GUERRAS DO IRAQUE
Duas guerras contra o Iraque, começando
respectivamente em 1991 e em 2003 foram deflagradas sob
o espectro da Guerra do Vietnã, com previsões de outro
"atoleiro", em ambos os casos, embora, de fato, a guerra de
1991 tenha alcançado um total sucesso em expulsar os
iraquianos do Kuwait em pouco tempo, com um mínimo de
baixas de soldados norte-americanos diante de perdas
devastadoras infligidas sobre as tropas iraquianas. Tom
Wicker, do New York Times, por exemplo, previu em 1990
"uma sangrenta e mal concebida guerra contra o Iraque",
uma que traria "baixas devastadoras para as forças norte-
americanas".[735] Anthony Lewis, também do New York
Times, especulou um número em torno de "vinte mil baixas
norte-americanas".[736] Um escritor do Washington Post
noticiou um modelo matemático desenvolvido pelo Instituto
Brookings que produzia uma estimativa "otimista" de mais
de mil baixas norte-americanas na Guerra do Iraque, em
1991, e uma estimativa "pessimista" de mais de quatro mil
baixas.[737] Na realidade, 148 norte-americanos foram
mortos em combate durante a primeira Guerra do Iraque.
[738]
A segunda Guerra do Iraque, iniciando-se em 2003, foi
mais parecida com a maioria das guerras, com reveses e
efeitos colaterais imprevistos, os quais estão fora do plano
das questões em debate sobre a validade da invasão e a
natureza dos objetivos. Apesar de uma rápida vitória sobre
as forças armadas iraquianas, a paz não foi restaurada
porque um reino de terror entrou em cena, direcionado em
parte contra as tropas norte-americanas, mas
principalmente contra a população civil iraquiana,
perpetrado tanto por terroristas nativos quanto por
estrangeiros, os quais estavam determinados a evitar que
um tipo muito diferente de governo fosse estabelecido no
Oriente Médio sob os auspícios dos norte-americanos.
Como acontecera no caso da Guerra do Vietnã, uma
grande parte da mídia e da intelligentsia, em geral, declarou
que o que estava acontecendo no Iraque seria uma "guerra
civil" "impossível de ser vencida" e muitos exortaram a
retirada imediata das tropas norte-americanas. Mas quando
houve, pelo contrário, um aumento no número do
contingente norte-americano, em 2007, chamado de
"escalada", a fim de suprimir a onda crescente de ataques
terroristas, essa escalada foi ampla e antecipadamente
condenada, como uma operação fútil, pela intelligentsia,
pela mídia e pelo Congresso.
Em janeiro de 2007, a colunista Maureen Dowd, do
New York Times, desconsiderou a ideia como um "surto
irracional do presidente Bush".[739] O colunista Paul
Krugman, do mesmo jornal, disse: "A única questão real
sobre a planejada 'escalada' no Iraque, e que pode ser mais
bem descrita como uma escalada no estilo Vietnã, é saber
se seus proponentes são cínicos ou alucinados".[740] Em
fevereiro de 2007, o Washington Post disse: "É improvável
que a escalada do sr. Bush produza uma mudança em
direção à paz, mas, de fato, a violência pode seguir para
pior".[741] O St. Louis Post-Dispatch disse que "é muito
pouco e muito tarde".[742] Uma coluna de segunda página
no Philadelphia Tribune chamou a guerra de "impossível de
ser vencida".[743] O New York Republic perguntava
retoricamente: "Então, quem em Washington realmente
acredita que essa escalada vai funcionar?". Respondendo à
própria questão, dizia apenas que "um homem", o vice-
presidente Dick Cheney, e completava: "Mais cedo ou mais
tarde, mesmo para Dick Cheney a realidade será imposta".
[744] Até mesmo o tom de certeza absoluta e de

condescendência ecoavam os da intelligentsia das décadas


de 1920 e de 1930.
Entre os que, no âmbito da política, condenavam
antecipadamente a escalada estava o futuro presidente dos
Estados Unidos, o senador Barack Obama, que disse em
janeiro de 2007 que a iminente escalada de tropas era "um
erro contra o qual eu e meus colegas faremos oposição
ativa nos próximos dias". Ele chamou o aumento
programado de tropas de uma "escalada irresponsável" e
introduziu uma legislação para começar a remoção das
tropas norte-americanas do lraque até, no máximo, 10 de
maio de 2007, "com o objetivo de remover todas as forças
de combate dos Estados Unidos do lraque até 31 de março
de 2008".[745] O senador Obama disse: "A escalada das
tropas já foi tentada e fracassou porque nenhuma
quantidade de forças norte-americanas pode resolver as
diferenças políticas assentadas no coração de uma guerra
civil de outro povo".[746] Mais vinte mil soldados "não
poderão, de nenhuma forma, ser capazes de alcançar
qualquer objetivo positivo",[747]
O senador Obama não estava sozinho. O senador
Edward Kennedy propôs uma intervenção do Congresso
antes que houvesse uma escalada de tropas.[748] O líder da
maioria do Congresso, Harry Reid, e a porta-voz da Casa,
Nancy Pelosi, enviaram uma carta ao presidente Bush,
alertando-o para o perigo da estratégia de escalada das
tropas: "Uma escalada das tropas é uma estratégia que o
senhor já tentou e falhou," eles disseram, chamando o
aumento de tropas de "equívoco sério".[749] A senadora
Hillary Clinton também fazia parte dos que, no Congresso,
se opunham ao aumento de tropas e o ex-senador John
Edwards clamou por uma retirada imediata das tropas dos
Estados Unidos.[750]
Um estudo posterior do Instituto Brookings (2009)
sobre as fatalidades em 2007 entre os civis iraquianos - os
alvos principais dos ataques terroristas - mostrava que tais
fatalidades estavam estimadas em 3.500 pessoas ao mês,
quando as previsões sobre o fracasso do aumento de tropas
foram feitas em janeiro de 2007. No despertar do aumento
de tropas, todavia, essas fatalidades caíram para 750 ao
mês até o final do ano. As fatalidades entre as tropas norte-
americanas no Iraque eram de 83 ao mês, em janeiro de
2007, subindo a um pico de 126 ao mês durante o aumento
das operações militares contra as fortificações dos
terroristas, mas caindo a 23 baixas ao mês no final do ano
no transcorrer do aumento das tropas.[751]
Na época, todavia, houve uma resistência entre os
membros da intelligentsia às notícias revelando que a
escalada no número de tropas estava funcionando. Em
junho de 2007, o Los Angeles Times disse que "não há
evidência de que o aumento de tropas esteja tendo
sucesso".[752] Em setembro de 2007, sob o título "Ocultação
no Deserto", o colunista Paul Krugman, do New York Times,
lamentou o esforço da administração Bush para forçar um
"extraordinário sucesso, o qual tenta passar a impressão de
que a 'escalada' está surtindo efeito, apesar de não haver
qualquer traço de evidência que sugira que isso esteja
acontecendo".[753] O colunista do New York Times Frank Rich
declarou que a fábula da "diminuição da violência no
Iraque" era "insidiosa ".[754]
Certamente que algumas pessoas estavam
determinadas a ver toda situação como mais uma guerra
que "não poderia ser vencida", mais um Vietnã. Em 2009,
todavia, mesmo o New York Times começou a divulgar,
embora não como manchete de capa, que houvera uma
expressiva diminuição nas mortes entre as tropas norte-
americanas no lraque, assim como nas forças de segurança
iraquianas e entre a população civil, baixando para uma
fração dos números dos dois anos anteriores, antes do
aumento das tropas. Houvera também um aumento no
contingente das forças de segurança iraquianas e da
produção de energia elétrica do país.[755]
Todavia, enquanto o aumento de tropas ainda era
implantado, em 2007 um fato excepcional aconteceu. Dois
acadêmicos do Instituto Brookings, identificando-se como
pessoas que haviam previamente criticado "o péssimo
desempenho da administração Bush no Iraque", disseram,
no entanto, que após uma visita ao país, "ficamos surpresos
com os ganhos que vimos e o potencial para não produzir
necessariamente a 'vitória', mas uma estabilidade
sustentável que tanto nós como os iraquianos podemos
tornar real".[756] Outros relatos in loco, em 2007, também
revelaram um substancial sucesso contra os terroristas no
lraque e um correspondente retorno à normalidade na
sociedade iraquiana, incluindo o retorno de iraquianos
expatriados que haviam fugido do terrorismo e residentes
iraquianos que agora frequentavam lugares públicos aos
quais antes tinham medo de ir.
Aqueles que estavam comprometidos com a visão de
que a guerra "não poderia ser vencida", convencidos de que
a escalada de tropas seria inútil, continuaram com a mesma
posição, apesar das evidências crescentes que indicavam o
quanto o aumento de tropas estava funcionando. Em
setembro de 2007, o colunista do New York Times Paul
Krugman disse: "Para se entender o que realmente está
acontecendo no Iraque, siga o dinheiro do petróleo, o qual já
sabe que o aumento de tropas fracassou em seu objetivo".
[757]
A insistência de que o aumento de tropas fora um
fracasso apenas ganhou peso à medida que o sucesso da
operação começou a ficar evidente. Conforme se
aproximava, em setembro de 2007, a data do relatório que
o general David Petraeus deveria divulgar ao Congresso,
avaliando toda a operação de escalada de tropas que ele
comandara, um número crescente de protestos começou a
surgir tanto na mídia quanto no cenário político,
denunciando que o general tentaria apenas transformar
retoricamente o fracasso do aumento das tropas em
sucesso. O senador Dick Durbin, por exemplo, disse que
"Manipulando cuidadosamente as estatísticas, o relatório
Bush-Petraeus tentará nos persuadir de que a violência no
lraque está diminuindo e, por isso, o aumento de tropas
funcionou".[758] "Precisamos interromper o aumento de
tropas e começar a retirá-las do Iraque", disse o senador
Joseph Biden em agosto de 2007.[759]
Esses esforços antecipados com o intuito de
desacreditar o que o relatório divulgaria alcançou o clímax
num anúncio de página inteira no New York Times no exato
dia de abertura dos esclarecimentos do general; em letras
garrafais a manchete dizia: "General Petraeus ou general
Traidor?", patrocinada pela organização de ativismo político
MoveOn.org.[760] No subtítulo, lia-se: "Manipulando os dados
em nome da Casa Branca". O New York Times cobrou à
organização MoveOn.org menos do que a metade do preço
usual para um anúncio de página inteira, suspendendo sua
política contrária a anúncios que fazem uso de ataques
pessoais.[761]
Resumindo, o general Petraeus foi acusado de mentir
antes de dizer qualquer coisa e diante das evidências
crescentes advindas de muitas outras fontes que
apontavam para o fato de que o aumento de tropas
contribuíra, de forma decisiva, para a redução da violência
no Iraque. A atmosfera hostil com que o general Petraeus e
o embaixador norte-americano Ryan Crocker foram
recebidos diante do Congresso foi passada num relato
divulgado no USA Today:

Seguindo uma segunda-feira inteira de maratona


diante de dois comitês da Casa, eles enfrentaram
alguns dos oradores mais celebrados do Senado,
incluindo cinco candidatos à presidência, em
audiências ininterruptas.

Em dez horas de prestação de esclarecimentos, os


dois homens tiveram dois intervalos para ir ao
banheiro e menos de trinta minutos para almoçar.
[762]

Durante essas audições, a senadora Barbara Boxer


disse ao general Petraeus: "Eu peço que o senhor retire as
lentes cor-de-rosa".[763] Hillary Clinton disse que o relatório
do general requer que estejamos "dispostos a suspender
qualquer descrença".[764] O congressista Rahm Emanuel
disse que o relatório do general Petraeus poderia vencer "o
prêmio Nobel para estatísticas criativas ou o Pulitzer na área
de ficção".[765] O congressista Robert Wexler declarou que
"entre os especialistas isentos o consenso é inflexível: o
aumento de tropas fracassou em seus objetivos". Ele
comparou o testemunho do general Petraeus ao
desacreditado testemunho do general William
Westmoreland durante a Guerra do Vietnã.[766] A mesma
comparação foi feita por Frank Rich, do New York Times, o
qual afirmou haver "misteriosas simetrias na lábia do
general Petraeus" e "a missão semelhante do general
William Westmoreland sob o comando de Lyndon Johnson".
[767] Aqui, temos apenas um dos sinais indicando que os

fantasmas da Guerra do Vietnã ainda assombrariam as


futuras guerras. Até mesmo as táticas dos opositores à
Guerra do Vietnã reapareceram em muitos lugares.
Segundo o USA Today: "O esclarecimento foi pontuado por
interferências de manifestantes contrários à guerra, os
quais brandiam slogans, como "generais mentem e crianças
morrem".[768]
Finalmente, as alegações de que o aumento de tropas
fracassara perderam força em meio às evidências
crescentemente incontornáveis que atestavam o sucesso da
operação. Mas longe de provocar uma reavaliação da visão
predominante, que embora declamada de forma tão
estridente fora desqualificada pelos eventos, o sucesso da
medida para se enviar mais tropas apenas levou a um
encolhimento da cobertura jornalística sobre a situação no
Iraque em boa parte da mídia. Diferentemente do que
ocorrera no Vietnã, não se permitiu, no caso do Iraque, que
a derrota militar do inimigo se transformasse em rendição
política, embora isso tenha acontecido somente na última
hora, quando os gritos para a retirada imediata das tropas
se avolumavam.
Esses desenvolvimentos políticos refletiam uma visão
predominante sobre a guerra, gerada a partir da percepção
da Guerra do Vietnã pela intelligentsia. Entre outras coisas,
tal visão deixou um legado de termos consagrados, como os
repetidos "atoleiro" e "guerra invencível ". Assim como em
muitas outras áreas, os fatos mundanos que contradizem a
visão predominante receberam pouquíssima atenção.
Mesmo quando os políticos disseram que suas condutas se
alinhavam aos seus propósitos políticos, esses propósitos
poderiam servir apenas porque havia muitos outros que
sinceramente acreditavam na visão predominante e
apoiariam aqueles que adotassem essas crenças.
Novamente, como já acontecera em outras épocas e em
outros lugares, a influência da intelligentsia independeu de
sua capacidade de convencer diretamente os detentores do
poder, mas sua força se manifestou em sua condição de
criar um clima de opinião pública, o qual, por sua vez,
determinou os incentivos e as restrições que afetaram o que
os detentores do poder podiam ou não dizer e fazer.
Outro retrocesso à época da Guerra do Vietnã se deu
por conta da enorme divulgação sobre a condição dos
"veteranos de combate", alguns dos quais se proclamaram
contrários à guerra e mais tarde foram desmascarados
como não sendo, afinal de contas, veteranos de combate.
Como o próprio New York Times relatou depois que a
verdade sobre esses "veteranos de combate" veio à tona:

O homem todo musculoso com cabelo batido que


dizia ser Rick Duncan pareceu ter saído
diretamente de uma escalação de pessoal para
campanha de um candidato democrata qualquer,
o qual criticaria as políticas da administração
Bush.

Um ex-capitão do Corpo de Fuzileiros Navais que


sofreu traumatismo craniano com a explosão de
uma bomba detonada no acostamento de uma
estrada no Iraque e que estava no Pentágono
durante os ataques de 11 de setembro. Um
defensor dos direitos dos veteranos que se
opunha à guerra. Um oficial formado em Anápolis
que tinha orgulho de ser gay. Em posse de
credenciais tão especiais, ele angariou o respeito
e a atenção não apenas dos políticos, mas dos
delegados de polícia, dos jornalistas e dos
veteranos durante quase dois anos. No entanto, a
não ser seu primeiro nome, praticamente nada da
história que ele contou era verdade.[769]

O fato de mentiras tão fáceis de serem verificadas


terem sido tranquilamente inculcadas em boa parte da
mídia por dois anos sugere, uma vez mais, o tamanho da
receptividade da intelligentsia para tudo que se encaixa em
sua visão, pouco importando a falta de substância e o valor
real que essas coisas possam ter.
Durante a segunda Guerra do Iraque, a intelligentsia
dos Estados Unidos repetiu os mesmos padrões da
intelligentsia francesa entre as duas Guerras Mundiais, ou
seja, a redução retórica de soldados em combate do status
de heróis patriotas para o de vítimas dignas de pena. Até
mesmo histórias sobre problemas financeiros de reservistas,
retirados de seus empregos para servirem no Iraque, ou
histórias sobre o simples fato das tristes despedidas entre
amigos ou familiares, sendo que um deles é mandado para
servir como militar na guerra, foram motivo para matérias
de capa no New York Times,[770] ao passo que histórias
sobre o heroísmo das tropas norte-americanas em combate
no Iraque e no Afeganistão ou eram simplesmente
ignoradas ou apareciam nas matérias internas. Histórias de
extraordinária bravura de norte-americanos sob fogo
cerrado que receberam medalhas de honra do Congresso,
incluindo homens que se jogaram em cima das granadas
dos inimigos, sacrificando a própria vida para salvar a vida
de companheiros que estavam por perto, foram noticiadas
nas páginas 13 e 14, respectivamente, e uma na segunda
seção do New York Times.[771] O Washington Post e o Los
Angeles Times também enterraram essas histórias de
extraordinário heroísmo nas páginas internas e boa parte do
noticiário da TV seguiu imediatamente o mesmo padrão ao
minimizá-las ou simplesmente ignorá-las.
Por outro lado, as histórias negativas encontraram
instantâneo destaque na mídia, mesmo sem provas. Por
exemplo, uma grande indignação foi expressa na mídia
durante os primeiros dias da Guerra do lraque, quando
surgiu a denúncia de que saqueadores haviam pilhado
preciosos objetos de um museu iraquiano, o qual os
soldados norte-americanos falharam em proteger.[772] Que
homens lutando em plena guerra, com a própria vida em
jogo, deveriam direcionar sua atenção para proteger
museus foi uma premissa realmente extraordinária. Porém,
a própria acusação revelou ser falsa.[773] Os objetos em
questão haviam sido escondidos pelos próprios funcionários
do museu a fim de protegê-los de saqueadores e dos
perigos da guerra. No entanto, a mídia não se aguentou e
logo proferiu suas críticas contra os militares norte-
americanos, lançando impetuosas acusações repletas de
indignação afetada.
Em geral, as realizações positivas dos militares norte-
americanos, fossem nos combates ou no restabelecimento
da ordem civil ou ainda desempenhando atividades
humanitárias, receberam, contudo, pouca atenção da mídia.
A medida que a Guerra do Iraque começou a desaparecer
das primeiras páginas do New York Times, por conta da
diminuição dos ataques terroristas durante o aumento de
tropas em ação no Iraque, e a cobertura da guerra começou
também a encolher pela mídia, as baixas norte-americanas
continuaram a ser destacadas, mesmo quando elas
apresentavam apenas um dígito, e as baixas acumuladas
eram constantemente apresentadas, mesmo que não
fossem, de forma alguma, expressivas, comparando-se com
outras guerras. De fato, somando-se todos os norte-
americanos mortos nas duas guerras do Iraque, temos um
número inferior de baixas do que os soldados americanos
que morreram tomando a ilha de Iwo Jima, na Segunda
Guerra Mundial, ou mesmo menor do que um dia de
combate em Antietam, na Guerra Civil.[774]
A menos que alguém acredite que as guerras possam
ser lutadas sem baixas, não havia nada de incomum sobre o
índice de baixas na primeira ou na segunda guerra do
lraque, exceto pelo fato de que era muito mais baixo do que
o da maior parte das guerras. Mas as baixas se encaixam
como uma luva no explorado tema de soldados vistos como
vítimas, e o virtuosismo retórico permitiu que essa
mensagem de vitimização fosse caracterizada como "apoio
às tropas" ou mesmo "homenagem às tropas". Depois que o
New York Times publicou fotos de soldados norte-
americanos mortos e agonizantes no Iraque, seu editor
executivo respondeu aos críticos dizendo que "morte e
carnificina são parte da história e limpá-las para fora de
nosso relato sobre a guerra seria um desserviço".[775]
Tamanho virtuosismo retórico cria um espantalho que
"escancara" o fato de haver mortes numa guerra, um fato
de que ninguém jamais duvidou e que iguala a publicação
de fotos de soldados individuais na agonia da morte como o
simples relato da história, ao mesmo tempo que se
enterram as histórias de heroísmo no fundo do jornal.
O mesmo retrato de soldados vistos como vítimas
dominaram os noticiários que mostravam os veteranos de
combate retornando para casa. Problemas sobre veteranos
recém-chegados, como alcoolismo ou falta de moradia,
eram apresentados na mídia sem qualquer esforço para se
comparar a incidência de tais problemas entre os veteranos
com a incidência dos mesmos problemas entre a população
civil.[776] Em outras palavras, caso todos os veteranos
recém-chegados não fossem completamente imunes aos
problemas vividos pela população civil, isso era apresentado
como se fosse um problema especial causado pelo serviço
militar. Um artigo de primeira página do New York Times de
13 de janeiro de 2008 noticiava assassinatos nos Estados
Unidos perpetrados por veteranos regressos das guerras no
Iraque e no Afeganistão. "Em muitos desses casos", dizia o
artigo, "traumas de combate e o estresse das operações"
estavam entre os fatores que "parecem ter disparado o
cenário para a tragédia, que foi parte destruição e parte
autodestruição".[777]
Essa tentativa particular de retratar os veteranos
como vítimas não se deu ao trabalho de comparar o índice
de homicídio dos veteranos regressos com o índice de
homicídio entre a população civil, da mesma faixa etária.
Caso eles tivessem investigado, como foi destacado no New
York Post, teriam descoberto que o índice de homicídio entre
os veteranos regressos era um quinto do índice da
população civil da mesma faixa etária.[778] Sem sofrer
qualquer abalo, o New York Times retornou ao mesmo terna
em uma história de primeira página, um ano mais tarde, em
2009; uma vez mais explorando detalhes sórdidos de casos
individuais sem, contudo, comparar os índices de homicídio
entre os veteranos de guerra com o índice entre a
população civil da mesma faixa etária.[779]
Outra promoção da imagem de vitimização entre os
veteranos de guerra foi uma história sobre altos índices de
suicídio entre os militares, os quais alcançaram "seu pico
desde que o exército começara a registrar os casos", como
foi noticiado pelo New York Times,[780] numa história que
ganhou repercussão por toda mídia. No entanto, mais uma
vez, nenhuma comparação dos índices de suicídio entre
militares e civis foi feita, o que demonstraria um índice mais
alto de suicídio entre a população civil, como a Associated
Press informou,[781] mas que poucos canais de mídia se
preocuparam em mencionar. Novamente, uma boa parte da
mídia filtrara os fatos que seriam contrários à sua visão,
deixando seus leitores à mercê de um quadro totalmente
distorcido. Assim como fizera o The Times de Londres
durante a década de 1930, fez o New York Times, numa
época posterior, tomando a dianteira na prática de filtrar e
de distorcer as notícias para que se encaixassem em sua
visão.
◆ ◆ ◆
PATRIOTISMO E HONRA NACIONAL
Não importa quanto jornalistas, políticos ou outros se
dediquem a sabotar um esforço de guerra, pois qualquer um
que ouse chamar essas ações de não patrióticas fica
automaticamente sujeito a receber a resposta indignada:
"Como pretendes questionar meu patriotismo?". O fato de o
patriotismo ser visto como um assunto delicado o torna algo
para o qual nenhuma explicação é colocada, a menos que
uma repetição sem-fim seja considerada como explicação.
Isso não quer dizer que qualquer um do qual um
sujeito discorde sobre a condução de uma guerra ou sobre
qualquer outro assunto possa ser chamado de "não
patriota". Não é uma acusação para ser automaticamente
aceita ou rejeitada. Mesmo ações contrárias à autodefesa
de um país podem não ser de imediato antipatrióticas em
sua intenção. Não é necessário supor que a intelligentsia da
década de 1930, por exemplo, provocou deliberadamente
suas ações para que seus países se tornassem vulneráveis a
um ataque militar.
Como foi observado no capítulo 7, Georges Lapierre, o
líder das campanhas dos professores para a promoção de
uma cultura pacifista no material escolar da França durante
as décadas de 1920 e de 1930, as quais desvalorizavam o
sentimento de orgulho nacional e de defesa da nação,
juntou-se, no entanto, depois da queda da França em 1940,
ao movimento de resistência francesa contra os
conquistadores nazistas e, como resultado de sua escolha,
acabou sendo capturado e enviado à morte em Dachau.[782]
Ele não era certamente um não patriota. Mas quaisquer que
tenham sido suas intenções durante os anos entre-guerras,
a questão mais importante é o efeito fundamental de seus
esforços sobre toda uma geração. Muitos outros professores
pacifistas do período que precedeu à guerra também
terminaram lutando no movimento da resistência francesa
depois que a visão que haviam promovido por tanto tempo
desencadeou resultados opostos aos objetivos almejados.
Tomando as palavras de Burke, que viveu numa época
anterior, eles haviam contribuído para a promoção dos
piores resultados "sem serem os piores dos homens".[783]
Segundo a mentalidade desses homens, os professores
"teciam patriotismo e pacifismo", segundo o relato da
época,[784] mas desconsiderando-se o que acontecia na
mente desses educadores, o resultado concreto, no mundo
real, foi como se eles tivessem sabotado, deliberadamente,
o patriotismo de toda uma geração de estudantes que
estava sob sua tutela, para os quais eles tornaram o
internacionalismo e o pacifismo em virtudes capitais muito
acima de qualquer menção passageira de amor à pátria,
que se tornou um aspecto subordinado ao amor geral pela
humanidade.
Uma questão muito mais ampla do que o patriotismo
ou a falta dele, em indivíduos ou instituições em particular,
é a questão do quanto o patriotismo é repleto de
consequências, além da questão conjunta sobre o quanto
um senso de honra nacional também se faz repleto de
consequências.
Já faz tempo que o patriotismo é considerado, para
muitos intelectuais, um fenômeno psicológico sem base
substantiva. Ainda no século XVIII, William Godwin referia-se
ao patriotismo como "algo tremendamente sem sentido",
[785] o "desvario sem sentido dos românticos".[786] Como

observado no capítulo 7, essas visões ainda se faziam


comuns no século XX, durante o interregno entre as duas
Grandes Guerras Mundiais, entre proeminentes intelectuais
europeus como Bertrand Russell, H. G. Wells, Romain
Rolland, Kingsley Martin, Aldous Huxley, J. B. Priestley,
dentre outros. Nos Estados Unidos, John Dewey desprezava
o patriotismo como algo "que se degenerava em uma
convicção carregada de ódio baseada numa noção de
intrínseca superioridade" e a honra nacional como "uma
emotiva e saborosa Honra" baseada em "pura emoção e
fantasia".[787] Mas o peso e as consequências que o
patriotismo e o senso de honra nacional acarretam não
podem ser determinados, a priori, segundo a conformidade
que têm ou não em relação à visão do intelectual ungido.
Da mesma forma que acontece com muitas outras
coisas, o peso e o tamanho das consequências que
determinam serão avaliados. a partir do que acontece na
ausência deles. Quando Hitler iniciou a invasão da França
em 1940, contrariando o conselho de seus próprios
generais, ele o fez porque se convencera de que faltava à
França contemporânea exatamente essas qualidades
supostamente irrelevantes,[788] e o repentino colapso dos
franceses, apesar das vantagens militares que tinham,
aponta para a extrema relevância e o peso que essas
qualidades têm. O que é denominado "honra nacional" é
uma perspectiva de longa duração sobre as decisões
nacionais e suas consequências, o oposto de uma atitude
racionalista imediatista, em posse da qual a França furtou-
se a reagir diante da remilitarização da Renânia em 1936 ou
mesmo ao deixar de cumprir os tratados de mútua defesa
com a Tchecoslováquia em 1938, ou ainda ao não se
mobilizar militarmente de forma séria durante os longos
meses da "guerra de araque", que se seguiu à declaração
formal de guerra em 1939, apesar da ampla superioridade
militar francesa no front ocidental no momento em que as
tropas de Hitler se concentravam no leste, ocupando a
Polônia.
A vontade de lutar é um modo de dissuadir um ataque
e, de forma oposta, uma indisposição para se aceitar um
desafio ou retaliar uma provocação pode fazer da nação um
alvo para um assalto generalizado. "Honra nacional" é
simplesmente uma expressão idiomática para essa
perspectiva de longo prazo sobre os interesses nacionais,
em oposição a uma perspectiva imediatista, a qual se
presta aos interesses imediatos dos políticos ao poupá-los
de tomarem decisões duras e impopulares, mas que
distingue exatamente o simples político do estadista.
Contudo, foram muitos os intelectuais que tentaram reduzir
o senso de honra nacional, como o patriotismo,
qualificando-o como uma espécie de loucura psicológica e
como "uma razão muito insuficiente para justificar
hostilidades," segundo as palavras de Godwin.[789] Todavia,
mesmo o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, o
homem mais inegavelmente identificado com uma política
pacifista a qualquer custo, em face da ameaça de Hitler,
acabou reconhecendo depois, ao que parece, o peso do
valor da honra nacional, apenas algumas semanas antes do
início da Segunda Guerra Mundial:

Ontem, tive a oportunidade de trocar algumas


palavras com M. Blum, o líder socialista francês e
ex-primeiro-ministro, e ele me disse que em sua
visão e na visão de todos os seus pares
socialistas, com os quais havia conversado, o
perigo de eclosão de uma guerra na Europa
estava condicionado a um único e muito real fator:
a impressão que se formara, sobre a Grã-Bretanha
e a França, de que os dois países não estavam
seriamente comprometidos em defender suas
promessas e que não seria mais possível confiar
neles. Se esse fosse o caso, nenhum erro mais
mortal e maior poderia ter sido cometido e seria
uma coisa aterrorizante se a Europa fosse
arrastada à guerra por conta desse mal-entendido.
[790]

Resumindo, a Europa e o mundo estavam à beira de


uma guerra catastrófica porque nem aliados nem inimigos
acreditavam que a Grã-Bretanha e a França tinham, ainda,
qualquer traço de honra nacional. Ou seja, não havia mais
qualquer senso de firme resolução entre britânicos e
franceses que demonstrasse às nações amigas que
poderiam apostar seus futuros confiando e aliando-se a
esses dois países, e todos temiam causar a ira da Alemanha
nazista.[791] Da mesma forma, havia pouco temor, entre as
nações beligerantes, de que elas pudessem sofrer sérias
retaliações além das evasivas palavras da Grã Bretanha e
da França. O que faltou na afirmação de Chamberlain, na
véspera da guerra, foi o reconhecimento de que foram suas
próprias políticas, assim com as políticas similares da
França, que substituíram ação por conversas, que criaram
esse mal-entendido mortal sobre uma Grã-Bretanha e uma
França que só sabiam conversar. Hitler ficou, de fato, um
tanto quanto surpreso quando sua invasão da Polônia levou
às declarações de guerra da Grã-Bretanha e da França. [792]
Se a Segunda Guerra Mundial se formou a partir de
um "mal-entendido", o sacrifício da honra nacional dos
britânicos e dos franceses, um ano antes em Munique,
fortaleceu o mal-entendido e a recusa posterior em
sacrificar novamente a honra nacional levou à guerra.
A grande e amarga ironia foi Neville Chamberlain ser
obrigado a declarar guerra à Alemanha, em 1939, tornando
a invasão da Polônia uma guerra regional na Segunda
Guerra Mundial, a guerra mais catastrófica da história, uma
guerra que ele procurara evitar a todo custo descartando,
dois anos antes, "os antigos métodos de preservação da
dignidade"[793] que um dia formaram parte do conceito de
honra nacional. Em vez disso, Chamberlain decidiu agir com
base em um racionalismo imediatista do qual, como ele
disse em 1938, "podemos remover, um a um, os pontos
perigosos" por meio de "nossa disposição em enfrentar uma
realidade que não podemos mudar".[794] Mas apenas um
ano mais tarde Chamberlain abandonou esse racionalismo
imediatista ao declarar: "Não estamos dispostos a observar
passivamente a destruição das independências dos países,
um atrás do outro",[795] mesmo que restasse agora um
número menor de aliados em potencial depois de ter
abandonado a Áustria e a Tchecoslováquia para a
desimpedida conquista nazista, estando agora numa
posição mais fraca, a partir da qual teria que tentar mudar a
realidade da conquista conjunta da Polônia, dividida entre
Hitler e Stalin.[796]
A questão central nunca fora a Áustria, a
Tchecoslováquia ou a Polônia, isoladamente. A questão era
se Hitler receberia um passe livre para quebrar todo o
equilíbrio de poder da Europa, sobre o qual se assentava a
paz do continente. Essa quebra determinou uma
desvantagem fatal para a Grã-Bretanha e para a França ao
se solapar o equilíbrio em parcelas, ao mesmo tempo que
Grã-Bretanha e França lidavam com as questões
isoladamente, baseadas num racionalismo imediatista, ao
passo que Hitler colocava a questão explicitamente em
termos da "honra nacional de um grande povo".[797] Em
outras palavras, um objetivo de longo prazo pelo qual ele
estava disposto a lutar para conquistar.
Em relação à desconsideração que Chamberlain fizera
dos "antigos métodos de preservação da dignidade", John
Maynard Keynes percebeu o erro desse posicionamento:

Nossa força é grande, mas nossos estadistas


perderam a capacidade de parecer formidáveis. É
nessa perda que nossos maiores perigos se
assentam. Nosso poder para vencer uma guerra
talvez dependa de um aumento de nosso arsenal.
Mas nosso poder para evitar uma guerra depende,
no mesmo grau, da recuperação de nossa
capacidade de parecermos formidáveis, que é
uma qualidade determinada pela vontade e pela
atitude.

Keynes disse de Neville Chamberlain: "Ele não está se


furtando aos riscos da guerra. Está apenas se certificando
de que, ao eclodir, não tenhamos mais amigos e uma causa
comum".[798] Apenas dois anos mais tarde essas palavras se
tornaram dolorosamente proféticas quando a Grã-Bretanha
se viu sozinha diante do ódio da Alemanha nazista, no
momento em que a Luftwaffe de Hitler começou a
bombardear Londres e outros lugares no sul da Inglaterra,
ao mesmo tempo que uma força de invasão se aj untava do
outro lado do Canal da Mancha, na costa da França
ocupada. As concepções errôneas, das quais Chamberlain
se valera por anos, não partiram dele. Elas integravam a
atmosfera da época, uma atmosfera sob a qual os
intelectuais desempenharam um papel de destaque.
Apesar de haver uma tendência, em alguns círculos
intelectuais, de ver a nação como apenas uma parte
subordinada em relação ao mundo como um todo, e alguns
intelectuais agem ou se descrevem como cidadãos do
mundo, o patriotismo é, em certo sentido, pouco mais que o
reconhecimento do fato básico de que o bem-estar material
de alguém, sua liberdade pessoal e sua sobrevivência física
dependem de instituições em particular, assim como de
tradições e de políticas adotadas por uma nação em
particular, dentro da qual esse alguém vive. Não existe
governo mundial comparável a esse mecanismo de
proteção e, sem as instituições concretas de um governo
nacional, não há como ser cidadão de nada ou mesmo como
possuir direitos genuinamente garantidos, apesar de toda a
sedução poética que o termo cidadão do mundo possa
evocar. Quando o destino de uma pessoa é claramente
reconhecido como dependente da estrutura nacional do
entorno - as instituições, as tradições e as normas de
determinado país -, então a preservação dessa estrutura
não pode se tornar uma questão indiferente, enquanto os
indivíduos buscam meramente seus interesses individuais.
Patriotismo é o reconhecimento de um destino
compartilhado, assim como das responsabilidades
compartilhadas que esse destino coletivo acarreta. Honra
nacional é o reconhecimento de que o racionalismo
imediatista é uma ilusão que possibilita que os políticos se
furtem às responsabilidades de homens de Estado.
As condições podem se tornar muito repugnantes em
determinado país, a tal ponto, que começa fazer sentido
mudar para outro. Porém, não existe tal coisa como se
mudar para "o mundo". É claro que uma pessoa pode viver
em determinado país de forma parasita, aceitando todos os
benefícios pelos quais outras pessoas se sacrificaram - tanto
no passado quanto no presente -, ao mesmo tempo que se
rejeita qualquer noção de obrigação a fazer o mesmo. Mas
uma vez que essa atitude se generaliza, o país torna-se
indefeso contra forças tanto de desintegração interna
quanto de agressão externa. Portanto, patriotismo e honra
nacional não podem ser reduzidos a meros hábitos
psicológicos diante dos quais os intelectuais podem se
considerar superiores sem, contudo, pôr toda uma nação
em risco, e que pode ter consequências terríveis, das quais
a França foi um clássico exemplo em 1940. Era considerado
chique em alguns círculos franceses, durante a década de
1930, dizer: "Melhor Hitler do que Blum".[799] Mas isso
aconteceu antes de terem que viver sob o jugo de Hitler ou
de serem desumanizados nos campos de concentração de
Hitler.
Desdém pelo patriotismo e pela honra nacional foram
apenas uma das atitudes entre os intelectuais durante as
décadas de 1920 e de 1930, as quais reapareceram com
força renovada nas democracias ocidentais a partir da
década de 1960. Até quando a história continuará a se
repetir, reeditando estas como outras questões, é uma
pergunta para o futuro responder. Na verdade, é a questão
para o futuro do mundo ocidental.
◆ ◆ ◆
CAPÍTULO 9
OS INTELECTUAIS E A SOCIEDADE

Estudar a história é um poderoso antídoto contra nossa


arrogância contemporânea. Traz-nos humildade
constatar o quanto nossas suposições são irrefletidas,
mas que, aos nossos olhos, nos parecem novas e
plausíveis descobertas. Elas já foram testadas inúmeras
vezes e sob os mais variados disfarces, mas revelaram
ser, a um grande custo humano, inteiramente falsas.

PAUL JOHNSON[800]

A fim de se compreender o papel dos intelectuais na


sociedade, devemos entender o que eles fazem e não o que
dizem fazer ou pensam estar fazendo, mas o que de fato
representam suas ações com suas correspondentes
consequências e repercussões sociais. Podemos começar
tentando entender seus reais incentivos e seus
impedimentos, inerentes ao papel dos intelectuais,
comparando-os com pessoas que exercem outras
ocupações. Individualmente, os intelectuais podem dizer e
fazer toda sorte de coisas e em nome de inúmeras razões,
mas toda vez que buscamos compreender seus padrões
gerais, precisamos examinar as circunstâncias sob as quais
operam, avaliando seu histórico e o impacto que exercem
sobre a sociedade como um todo.
Entre as pessoas cujas atividades profissionais
requerem altos níveis de habilidade mental, incluindo
matemáticos, mestres enxadristas, cientistas, dentre outros,
definimos como intelectuais aqueles cujos produtos finais de
seus trabalhos são ideias, o que se distingue de criações
tangíveis, como as que encontramos entre engenheiros,
médicos e pilotos. Essa dicotomia não é arbitrária. Ela se
conforma, grosso modo, com um uso geral e, mais
importante, existem ainda diferenças de comportamento
entre os intelectuais, dessa forma definidos, em relação a
outros profissionais cuj as atividades são igualmente
exigentes do ponto de vista mental e que podem ser, em
muitos casos, colegas acadêmicos que trabalham no
mesmo campus universitário.
Essas diferenças estão intimamente ligadas tanto com
a oferta quanto com a demanda por intelectuais, em seus
papéis como intelectuais públicos, ou seja, pessoas cujas
palavras e ideias influenciam largamente a criação de uma
atmosfera geral de opinião, influenciando em muito as
decisões de peso que afetam toda a sociedade. Algumas
vezes, intelectuais formadores de opinião afetam os
resultados das políticas públicas por meio de um
engajamento direto com certas agendas em particular, mas
outras vezes o efeito se dá de maneira indireta quando
expõem apenas sua especialidade em particular, seja na
área de economia, de criminologia ou outro assunto
qualquer, de uma forma que a pessoa leiga possa entender
e que, portanto, influencia a compreensão da opinião
pública em geral, pouco importando qual agenda, em
específico, esses formadores de opinião defendem
abertamente.
Talvez mais significativo do que ambos os papéis dos
intelectuais seja a criação de um conjunto geral de
pressuposições, de crenças e de imperativos - uma visão -
que serve de arcabouço teórico para a forma como muitas
questões e eventos particulares serão tratados e
percebidos. Esse papel não depende, necessariamente, de
um "formador público de opinião" que se dirija para a
população em geral. Figuras tão díspares quanto Charles
Darwin e Friedrich Hayek exerceram enorme influência
sobre pessoas que nunca leram uma linha do que
escreveram, mas que, não obstante, absorveram suas
visões por meio de outros que os leram e receberam seu
impacto direto. O que John Maynard Keynes chamava de "a
gradual intrusão das ideias"[801] pode mudar a forma como
concebemos o mundo, assim como pode mudar a forma
como pensamos sobre o que ele deveria ser.
Apesar de o termo "intelectual", como um
substantivo, referir-se a um conjunto de pessoas de
determinada ocupação, como adjetivo o termo conota um
conjunto de padrões, de métodos e de realizações que
podem ou não caracterizar o comportamento real da
maioria das pessoas que exercem essa ocupação.
Certamente que muitos intelectuais públicos, ao
comentarem sobre questões e eventos que estão fora do
escopo de suas respectivas especialidades, nem sempre
alcançam a acuidade exigida pelos padrões intelectuais, e
isso nos melhores dos casos. No entanto, as muitas
violações desses padrões pelos próprios intelectuais têm
demonstrado repetidamente a distinção que buscam
embaralhar entre o substantivo e o adjetivo. Isso inclui
exemplos gritantes de irracionalismo e de "tendências"
baseadas em observações distorcidas, como, por exemplo,
que o capitalismo tornou os trabalhadores mais pobres,
como se eles tivessem sido mais prósperos antes. Tais
elucubrações estão carregadas de comparações
desprovidas de critério intelectual, como aquela que o
professor Lester Thurow pronunciou ao dizer que os Estados
Unidos apresentavam o "pior" desempenho, entre as nações
industrializadas, quando se tratava de desemprego, citando
problemas de desemprego somente nos Estados Unidos, ao
mesmo tempo que ignorava completamente o problema
crônico de desemprego muito pior que sofre a Europa
ocidental, para não falar de outras regiões. Uma das
violações mais comuns dos padrões intelectuais pelos
próprios intelectuais é atribuir uma emoção (racismo,
machismo, homofobia, xenofobia, etc.) àqueles que detêm
pontos de vista diferentes, em vez de responder a seus
argumentos.
No entanto, a confusão reinante entre o significado do
substantivo "intelectual" e as conotações da mesma palavra
quando empregada como adjetivo faz com que os críticos
do comportamento dos intelectuais sejam desconsiderados,
vistos como pessoas que são naturalmente hostis aos
esforços intelectuais ou mesmo pessoas incapazes de
apreciar os processos ou as conquistas intelectuais. O livro
de Richard Hofstadter, ganhador do prêmio Pulitzer, Anti-
Intellectualism in American Life, perpetuou essa confusão
tanto em seu título quanto em seu conteúdo, no qual as
pessoas que criticavam os intelectuais eram retratadas
como pessoas que exibem "o desrespeito nacional pela
mente" e uma "aversão aos especialistas e aos
conhecedores".[802] Mesmo a candidatura derrotada de Adlai
Stevenson, um homem que tinha apenas uma imagem de
intelectual, foi declarada por Russell Jacoby, em seu The
Last Intellectuals [Os Últimos Intelectuais], ser um exemplo
de "anti-intelectualismo endêmico da sociedade norte-
americana".[803]
No entanto, o público norte-americano continua a
homenagear as realizações intelectuais na ciência, na
engenharia e na área médica, o que vale dizer, campos
cujos praticantes exibem uma alta habilidade intelectual,
mas que não são intelectuais no sentido ocupacional do
termo, como definido aqui. Assim como em muitos outros
contextos, desqualificar o outro tem por finalidade se
esquivar e não responder aos seus argumentos.
◆ ◆ ◆

INCENTIVOS E RESTRIÇÕES
Quando definimos os intelectuais como pessoas
CUJOS produtos finais de seu trabalho são ideias submetidas
a um processo de validação assentado na mera aprovação
dos pares, descortinamos não apenas uma discrepância
ideológica entre eles e outras profissões igualmente
mentais, mas cujos produtos finais são palpáveis em termos
tecnológicos, médicos, científicos ou outros bens e serviços,
mas também descobrimos um diferente conjunto de
incentivos e restrições em jogo.
◆ ◆ ◆

A OFERTA DE INTELECTUAIS PÚBLICOS


Ideologicamente, e constatado por meio de inúmeras
pesquisas, sabemos que sociólogos e acadêmicos da área
de humanidades são, por exemplo, muito mais inclinados ao
pensamento liberal e esquerdista do que engenheiros e
cientistas. Além das diferenças ideológicas, encontramos
também diferenças nos incentivos e nas restrições entre os
intelectuais, no sentido aqui atribuído, em comparação com
outros campos acadêmicos ou outros especialistas que
trabalham em áreas mentalmente complexas. É certo que
um engenheiro pode se tornar famoso por seu trabalho
como engenheiro, porém é improvável que a maior
autoridade em literatura francesa ou em história da
civilização maia se torne publicamente conhecida além dos
limites de sua especialidade.
Os incentivos para se tornar um "intelectual público ",
ou seja, alguém conhecido por seus comentários e por suas
opiniões sobre os assuntos em voga, mesmo quando esses
assuntos não estão inseridos no campo de especialização
dessa pessoa, são muito mais determinantes para os
intelectuais, como aqui definidos, do que para outros que
podem ganhar fama e fortuna sem nunca ter que se
preocupar ou precisar ultrapassar o âmbito de seu próprio
campo de especialização, ou que nem sequer precisam
explicar sua especialidade numa linguagem mundana para
o público em geral. Um pioneiro em cirurgia cardíaca pode
conquistar notoriedade nacional ou mundial sem nunca
precisar explicar, para o público leigo, as complexidades do
coração ou da técnica cirúrgica. Por outro lado, um pioneiro
na área de linguística, como é o caso de Noam Chomsky,
nunca teria se tornado, para além do âmbito de sua
especialidade, uma figura amplamente conhecida, como ele
acabou se tornando ao fazer toda sorte de comentários
sobre assuntos e eventos que ultrapassam em muito os
limites de seu campo, a linguística.
Os intelectuais que estamos estudando são, em geral,
intelectuais formadores de opinião, pessoas cujos
comentários ajudam a criar todo um clima de opinião no
qual as questões em voga são inseridas, discutidas e, em
última instância, adotadas por aqueles que detêm poder
político. Pessoas que trabalham em áreas mais práticas
dentro ou fora do universo acadêmico também podem vir a
ultrapassar, como indivíduos, as fronteiras de suas
competências profissionais e comentar sobre uma gama de
questões, mas a diferença é que, nesse caso, há menos
incentivos internos para se fazer tal coisa.
O clássico estudo do professor Richard A. Posner
intitulado Public Intelectuais [Intelectuais Públicos] destaca
o quanto os indivíduos podem, muitas vezes, se tornar
muito mais célebres e prestigiados pelo público em geral do
que jamais seriam pelos seus pares dentro de suas
respectivas profissões. "Muitos intelectuais publicamente
notórios são, por sua vez, acadêmicos de modesta
expressão, mas que, não obstante, são fortuitamente
lançados ao estrelato", transformando-se em formadores de
opinião. O autor ainda afirma que existe uma "tendência,
entre os intelectuais públicos, os quais se tornam
celebridades na mídia, mas que dentro de sua cadeira
acadêmica têm uma posição pouco conceituada,
inversamente proporcional ao prestígio que gozam no
domínio midiático".[804]
Embora não seja difícil pensar em indivíduos que se
encaixem exatamente nessa descrição[805] e que teriam,
portanto, incentivos reais para buscar reconhecimento para
fora de suas respectivas especialidades, pois são pessoas
que não alcançaram reconhecimento dentro de seus
próprios campos; também não seria difícil pensar em outros
indivíduos que detêm o mais alto nível de realização em
suas especialidades e que também escolhem escrever livros
introdutórios para alunos ou artigos populares e livros para
o público em geral, percorrendo os mais vastos assuntos,
que vão de astronomia à economia. Intelectuais que
popularizam o campo de suas próprias especialidades
incluem ganhadores do prêmio Nobel, como os economistas
Paul Samuelson, Milton Friedman, Gary Becker, dentre
outros, incluindo no âmbito do pensamento jurídico
intelectuais de ponta como Robert Bork e o próprio
professor Posner. Todavia, entre os cem intelectuais públicos
mais mencionados pela mídia, Posner encontrou apenas
dezoito que também estão entre os cem intelectuais mais
mencionados na literatura acadêmica.[806]
Celebridade midiática e renome acadêmico são, de
fato, áreas que atraem pessoas diferentes. Sejam quais
forem os atrativos relativos específicos às duas atuações,
ser ao mesmo tempo um acadêmico de ponta e um
intelectual público de destaque requer uma habilidade rara
para escrever em níveis intelectuais um tanto quanto
distintos, além da diferença de estilo entre trabalhos
destinados ao público acadêmico e ao público em geral.
John Maynard Keynes, por exemplo, era um intelectual
possuidor dessa rara habilidade. Ele era internacionalmente
reconhecido como intelectual público, escrevendo sobre
assuntos que estavam relacionados ou não com a ciência
econômica anos antes de se tornar tanto o mais famoso
como o mais influente economista profissional do século XX.
Milton Friedman, tão diferente de Keynes em outros
aspectos, também detinha a mesma habilidade de escrever
no mais alto nível e padrão intelectual de sua profissão e,
ao mesmo tempo, escrever e falar de uma forma que
tornava a ciência econômica compreensível para pessoas
sem a menor formação na área. Mas pessoas com a mesma
versatilidade intelectual e literária de Keynes e Friedman
são extremamente raras.
Embora seja possível que alguns dos indivíduos mais
intelectualmente dotados escolham se tornar intelectuais
públicos, pelos mais variados motivos, são poucos os
incentivos que os compelem a sair fronteiras de suas
especialidades, exceto para aqueles que definimos como
intelectuais cuj os produtos finais são ideias. Para os
intelectuais nesse sentido, a escolha, em geral, pode ser a
de aceitar os limites restritos de reconhecimento e de
influência pública disponíveis ou se aventurar para além das
fronteiras de suas especialidades ou de suas competências
profissionais, apelando para um público ao mesmo tempo
muito mais vasto e muito menos exigente.
◆ ◆ ◆

A DEMANDA POR INTELECTUAIS PÚBLICOS


Saindo dos incentivos que geram uma oferta de
intelectuais públicos e indo para a demanda por tais
profissionais, encontramos novamente uma importante
distinção entre essas pessoas com habilidades mentais de
alto nível, que se fazem intelectuais no sentido aqui
atribuído, e outras que também participam de atividades
igualmente exigentes em termos das habilidades mentais
envolvidas, mas cujos produtos finais são mais tangíveis e
mais empiricamente testáveis. Existe uma demanda
espontânea da sociedade em geral, que anseia pelos
produtos finais de engenheiros, de médicos e de outros
cientistas, ao passo que seja qual for a demanda para os
produtos finais de sociólogos, de linguistas ou de
historiadores, ela vem em grande parte das instituições
educacionais ou é criada pelos próprios intelectuais, na
maioria das vezes ao saírem de suas especialidades
acadêmicas a fim de agirem como "intelectuais públicos",
oferecendo "soluções" para os "problemas" sociais ou para
alarmar a sociedade sobre perigos terríveis que alegam ter
identificado.
Resumindo, a demanda por intelectuais públicos é
amplamente fabricada por eles mesmos. De outra forma, as
visões de tais intelectuais sobre o estado atual do mundo ou
sobre como poderíamos melhorá-lo não fariam grande
diferença para o público ou não teriam qualquer efeito na
condução das políticas de governo em uma democracia. O
público em geral contribui para o afluxo de intelectuais a
partir de uma variedade de modos involuntários, e o fazem
como pagadores de impostos que bancam escolas,
faculdades e muitas outras instituições e programas que
subsidiam as realizações artísticas e intelectuais. Outras
ocupações que requerem grande habilidade mental, como,
por exemplo, os engenheiros, têm um vasto mercado
espontâneo para seus produtos finais, como aviões,
computadores ou prédios. Mas esse é, poucas vezes, o caso
de pessoas cujos produtos finais são ideias. Não há um
grande ou um proeminente papel para elas
desempenharem na sociedade, a menos que elas o criem.
Não poderia haver um conjunto de incentivos e de
restrições mais apropriado para que pessoas de alta
capacidade intelectual fossem estimuladas a proferir ideias
bombásticas, irresponsáveis e até mesmo tolas. Algumas
dessas coisas tolas e perigosas já foram aqui destacadas,
mas mesmo assim essas amostras mal conseguem arranhar
a superfície da imensa quantidade de pronunciamentos
imprudentes da intelligentsia, os quais, abarcando gerações
do passado, precipitam-se no futuro.
Especialmente entre os intelectuais acadêmicos, a
apreciação pública espontânea e até mesmo a aclamação
do trabalho de colegas no âmbito das ciências, da
engenharia, da medicina e de outros campos fornecem
ainda outro incentivo para que busquem seu próprio "lugar
ao sol". Da mesma forma que também são afetados pela
proeminência de muitos profissionais que estão fora do
universo acadêmico, como pessoas na área comercial, nos
negócios, na justiça, na política, nos esportes e no
entretenimento, por exemplo. Mas a maioria desses não
intelectuais primeiro conquista reconhecimento público ou
aclamação por suas realizações dentro de suas respectivas
áreas de especialização, ao passo que muitos intelectuais
poderiam alcançar um reconhecimento público comparável
apenas saindo de sua especialidade ou de sua competência.
Quem, além de filósofos e de matemáticos
profissionais, teria ouvido falar em Bertrand Russell caso ele
não tivesse se tornado um intelectual público, proferindo
comentários devastadores sobre coisas para as quais ele
não tinha a menor competência? O mesmo vale para o
linguista Noam Chomsky, o etimologista Paul Ehrlich e
muitos outros que tiveram destaque em suas respectivas
especialidades, mas que só conquistaram atenção pública
ao se distanciarem de suas especialidades para então
proferir toda sorte de declarações bombásticas e
chamativas sobre assuntos que ultrapassavam
completamente suas competências. Eles não precisam ser
completos charlatães, apenas pessoas cujos vastos
conhecimentos sobre determinado assunto encobrem, deles
mesmos e de outros, sua ignorância fundamental em
relação às questões que os atraem para o debate público.
Entre acadêmicos e professores escolares, encontramos
aqueles aos quais faltam inclinação ou talento para se
tornarem intelectuais públicos, mas que podem dar vazão
às suas opiniões nas salas de aula para o público cativo de
alunos, um público que se insere numa arena mais reduzida,
mas que apresenta poucas chances de provocar um sério
desafio.
Sociedades inteiras têm que ser colocadas em risco
em nome de tais vaidades e falsificações por causa de um
pequeno segmento da sociedade? Como já vimos,
especialmente nas discussões sobre o papel dos intelectuais
ocidentais entre as duas Guerras Mundiais, nações inteiras
já foram colocadas em risco e de fato precipitadas ao
desastre por meio de um clima de opinião no qual a
intelligentsia desempenhou um papel de destaque. Mas isso
não está confinado apenas à mera questão histórica como
foi demonstrado com o restabelecimento, entre os membros
da intelligentsia e da mídia de nossa época, das atitudes,
dos argumentos e das próprias frases do período entre as
duas Guerras Mundiais.
◆ ◆ ◆

A INFLUÊNCIA DOS INTELECTUAIS


Antes de analisar a influência dos intelectuais,
devemos definir em que sentido considerar o termo
influência. O professor Richard A. Posner, por exemplo, não
considera os intelectuais públicos muito influentes e avalia
as previsões dos últimos, em particular, como "geralmente
desimportantes".[807] Sem dúvida que ele está certo, mas
em função dos termos em que discute o assunto. Ou seja, a
opinião pública não entrou em pânico com as previsões de
Paul Ehrlich sobre os iminentes desastres econômicos e
ambientais ou os retratos ficcionais de George Orwell sobre
o que encontraríamos no ano de 1984. Todavia, temos que
distinguir a influência de intelectuais em particular, com
suas agendas e previsões especiais, da influência que
exerce a intelligentsia como um todo, controlando assuntos
sobre os quais, como um grupo, eles geralmente
consolidam uma visão predominante, filtrando os fatos que
contradizem essa visão.
Apesar de o público britânico não ter seguido as
prescrições específicas de Bertrand Russell para que se
desmobilizassem as forças armadas britânicas às vésperas
da Segunda Guerra Mundial, é diferente de dizer que o
constante trombetear da retórica antimilitarista da
intelligentsia não tenha contribuído para o enfraquecimento
do poderio bélico britânico, impedindo a formação de um
arsenal dissuasivo que contrabalançasse o rearmamento da
Alemanha de Hitler.
O impacto que exercem aqueles que definimos como
intelectuais, ou seja, pessoas cujos trabalhos começam e
terminam com as ideias, vem se intensificando ao longo do
tempo devido a fatores como o crescente número de
intelectuais que as sociedades mais abastadas têm
condição de sustentar e as plateias cada vez maiores que
absorvem essas ideias, as quais se constituem a partir de
uma ampla disseminação da educação e do acesso à cultura
por toda a sociedade, além da penetração cada vez mais
profunda da grande mídia sobre a sociedade. A influência
dos intelectuais foi sentida diretamente nos assuntos sobre
defesa nacional e em seus efeitos sobre a coesão social,
sem a qual uma sociedade não pode continuar sendo uma
sociedade. Todavia, esse tipo de influência tem ficado
restrita às nações modernas e democráticas. Um respeitado
historiador referiu-se a essa realidade como "a fina camada
da crosta superior" da sociedade czarista da Rússia "que
constituía a opinião pública significativa".[808] Uma camada
ainda mais fina dos que detêm opiniões de peso
caracterizou as modernas ditaduras totalitárias na Rússia ou
em outros países pelo mundo.
Os intelectuais têm todo o incentivo para acreditar na
eficiência da especialidade que dominam, as ideias
articuladas, e para desvalorizar correspondentemente
fatores concorrentes como a experiência das massas e, em
especial, o uso da força pela polícia ou pelos militares. As
emanações desarticuladas da experiência das massas,
verificadas ao longo das gerações, são frequente e
sumariamente descartadas como meros preconceitos. A
força ou a ameaça de força é, do mesmo modo, tida como
um expediente muito inferior à razão articulada ao se lidar
com criminosos, crianças ou nações hostis. "A atuação
militar é o remédio do desespero diante do poder da
inteligência",[809] como dizia John Dewey.
A razão tende a ser considerada categoricamente
preferível, com pouca consideração às distintas
circunstâncias nas quais uma dessas abordagens - ou seja,
razão ou força - pode se revelar mais eficiente do que a
outra. A intelligentsia parece rejeitar em especial a ideia de
indivíduos particulares fazerem uso da força para defesa
própria e de suas propriedades ou de portarem armas na
eventualidade de usá-las.
Na esfera internacional, envolvendo questões sobre
guerra e paz, a intelligentsia com frequência diz que a
guerra deveria ser o "último recurso". Mas muito depende
crucialmente do contexto e do significado específico dessa
frase. A guerra deveria ser, é claro, "um último recurso",
mas último em termos de preferência, em vez de último no
sentido de se aguardar indefinidamente enquanto os
perigos e as provocações se acumulam sem resposta,
enquanto o pensamento fantasioso ou os acordos ilusórios
substituem sérios preparativos militares ou, se necessário, a
ação militar. Como disse Franklin D. Roosevelt em 1941, "se
você não atirar e esperar até que veja o branco dos olhos do
outro, você nunca saberá o que o atingiu".[810] A insistente
irresolução da França durante a década de 1930 e o período
da "guerra de araque", que terminou com o colapso do país
em 1940, deu ao mundo um exemplo doloroso sobre como o
cuidado excessivo pode ser levado a um ponto em que se
torna perigoso.
Embora os tipos de ideias que hoje predominam entre
os intelectuais tenham um longínquo pedigree, o qual
remonta, no mínimo, ao século XVIII, a enorme
predominância dessas ideias tanto nos círculos intelectuais
quanto na sociedade em geral, por meio da influência que
têm sobre o sistema educacional, a mídia, os tribunais e a
política, apresenta-se como um fenômeno bem mais
recente.
Isso não quer dizer que os intelectuais não tinham
qualquer influência em tempos mais remotos, mas nos
séculos anteriores havia bem menos intelectuais e ainda um
número menor de seguidores compondo a intelligentsia
para transportar suas ideias em direção às escolas, à mídia,
aos tribunais e à esfera política. Em tempos anteriores eles
representavam apenas uma influência entre muitas, e não
haviam ainda adquirido a habilidade de filtrar quais
informações e ideias seriam passadas para o público, pela
mídia e pelo sistema educacional, ou quais se tornariam o
critério fundamental do pensamento jurídico nos tribunais. É
certo que as tradições herdadas, tanto religiosas quanto
seculares, eram vistas como uma limitação, segundo o
ponto de vista das noções recém-engendradas pelos
intelectuais.
De forma mais fundamental, a influência dos
intelectuais sobre o curso dos eventos na sociedade em
geral, por meio de sua influência sobre o grande público,
era menor do que hoje porque, na maioria dos países em
outros tempos, o público em geral exercia muito pouca
influência na condução das políticas nacionais. O governo
dos Estados Unidos representou, afinal de contas, uma
grande ruptura em relação aos regimes de governo que
existiam no mundo quando os Estados Unidos foram
fundados em 1776. Antes disso - e em outros países muito
depois disso -, mesmo que a intelligentsia tivesse a mesma
influência sobre o público de que goza hoje, isso não teria
feito muita diferença nas políticas governamentais
controladas por governantes autocratas. Além do mais, nem
as massas nem as elites esperavam que os intelectuais
exercessem uma influência significativa sobre as decisões
de governo. Essa influência cresceu nos últimos séculos com
a disseminação da cultura letrada e com a disseminação do
poder político, estendendo-se por todas as camadas
socioeconômicas. Embora os Estados Unidos apresentassem
a maior plateia em potencial para intelectuais que
buscavam influência política, o povo norte-americano
tendeu a ficar muito menos impressionado pelos
intelectuais do que os europeus ou mesmo as pessoas de
outros lugares. A sociedade norte-americana começou a
existir como uma sociedade "decapitada", não apenas no
sentido de que dava à aristocracia europeia poucos
incentivos para que valesse a pena enfrentar os perigos de
uma viagem atravessando o Atlântico, além das
dificuldades em ser pioneiro numa nova terra, mas também
pelo fato de que não havia muito incentivo aos intelectuais
europeus para que enfrentassem esses mesmos perigos e
essas mesmas dificuldades. Além do mais, a sociedade
norte-americana permaneceu durante muito tempo em seu
período formador, que durou, em algumas partes do país, o
mesmo tempo que durou a conquista das fronteiras, um
período no qual o conhecimento, a força e as habilidades
mundanas tinham mais peso para a sobrevivência e para o
progresso do que os tipos especiais de conhecimento que os
intelectuais possuem.
O período da década de 1960 até a década de 1980
representou talvez o ápice da influência da intelligentsia nos
Estados Unidos. Embora suas ideias ainda permaneçam
como preponderantes do ponto de vista ideológico, seu
domínio esmagador já foi reduzido devido aos contra-
ataques provenientes de vários lugares, como, por exemplo,
a visão alternativa apresentada por Milton Friedman e a
escola econômica de Chicago, pelo aparecimento de
pequenos, mas significativos, contingentes de intelectuais
conservadores e neoconservadores em geral e com o
surgimento dos conservadores como minoria na mídia,
embora não mais desprezível, especialmente nos programas
de rádio e na internet, o que reduziu a habilidade da
intelligentsia, portadora da visão do intelectual ungido, de
bloquear as informações que possam desestabilizar sua
visão.
No entanto, qualquer anúncio sobre o
desmoronamento da visão do intelectual ungido seria muito
prematuro, caso não seja mera fantasia, tendo-se em vista
o domínio continuado dessa visão sobre todo o sistema
educacional, a televisão e o cinema sempre que temas
sociopolíticos são tratados. Portanto, a visão de mundo dos
intelectuais - como ele é e como deveria ser - permanece
dominante. Não houve, desde os tempos dos direitos
divinos dos reis, tamanha presunção de querer dirigir os
outros e de reprimir suas decisões, em grande parte por
meio de poderes governamentais ampliados. Toda a agenda
da intelligentsia, desde planejamento econômico
governamental até causa ambiental, resume a crença de
que terceiros sabem mais que os outros e deveriam receber
o poder de passar por cima da decisão alheia. Isso inclui,
por exemplo, impedir que as crianças consolidem os valores
recebidos pelos pais caso valores mais "avançados" tenham
a preferência daqueles que ensinam nas escolas e nas
faculdades.
A visão do intelectual ungido não é somente uma
visão de sociedade, mas também se comporta como uma
visão autoelogiosa dos próprios intelectuais e uma
mentalidade de que eles não estão dispostos a abrir mão.
Um "respeito decente pelas opiniões da humanidade" - a
frase usada na Declaração de Independência dos EUA - não
tem hoje mais lugar num mundo pautado pela visão do
intelectual ungido. Pelo contrário, pois desafiar o "clamor
público" tornou-se um distintivo de honra e a certificação de
ser um membro dos intelectuais ungidos. Os protestos das
massas não são tratados como avisos importantes mas
como evidências redobradas da superioridade do insight do
sujeito, que é compartilhado por outros "bem pensantes".
Essa é uma das muitas maneiras pela qual a visão é
blindada, afastando-a dos desafios que vêm das
experiências mundanas de milhões de pessoas. Além disso,
as impetuosas suposições e aspirações do intelectual
ungido são amplamente consideradas, por eles e por outros,
como o mais nobre idealismo, em vez de egocêntricas
indulgências.
Que o mundo sej a obrigado a apresentar um cenário
que se encaixe em suas preconcepções - caso contrário
existe algo de errado com o mundo - não constitui apenas
um adorno da intelligentsia, mas se apresenta como base
para o estabelecimento de cotas em corporações e em
universidades, as quais procuram criar tais cenários, assim
como interferir na condução das leis em casos em que se
usa a muleta da discriminação sempre que a realidade não
se encaixa com o cenário idealizado.
Embora os intelectuais acadêmicos não sejam, em
nossos tempos, os únicos, eles se constituem, contudo, no
suprassumo da vida intelectual, cujas carreiras são as que
menos dependem das exigências do mundo real e de
qualquer prestação de contas pelas consequências do que
dizem e do que fazem. São pessoas amparadas na
vitaliciedade de seus cargos e que têm enorme poder para
controlar as instituições em que trabalham, além do poder
para interferir em assuntos que ultrapassam suas
especialidades, como se os alunos podem se matricular nos
recrutamentos promovidos pela ROTC (Reserve Officer's
Training Corps) ou se poderão exercer seus direitos de
liberdade de expressão, os quais podem ser restringidos
pelas normas de conduta do campus.
Os intelectuais que atuam fora do universo acadêmico
podem ter carreiras em organizações de pesquisa
independentes (think tanks) ou ganhar a vida com a própria
produção escrita, mas tais intelectuais, comparando-os com
o contingente acadêmico, são pouco numerosos e não têm
a mesma segurança de emprego que a estabilidade e a
vitaliciedade da vida acadêmica proporcionam. No entanto,
em geral eles também não levam em conta os valores e as
crenças da população ou se constrangem diante das
evidências e das comprovações lógicas, desde que sigam o
que é consonante com a visão de seus colegas ou, no caso
de escritores freelance, consonante com um grupo
suficiente de pessoas que possam sustentá-los
financeiramente e aclamarem o que escrevem e dizem.
Intelectuais não afiliados com uma instituição
acadêmica podem ter ou não visibilidade perante o grande
público. Jornalistas opinativos - colunistas, editores e
comentadores -certamente têm acesso imediato a uma
massa de espectadores em virtude de suas profissões.
Porém, existe um número muito maior de jornalistas que é
composto simplesmente de repórteres, os quais só podem
chamar atenção do público para si ao ultrapassarem os
limites da mera reportagem, tornando-se pessoas que
filtram e assumem posições drásticas, conferindo
sensacionalismo ao que escrevem. Da mesma forma que
acontece com os acadêmicos, eles atraem pouco ou
nenhuma atenção pessoal quando se dedicam a fazer
somente o trabalho para o qual estão qualificados, sem
embelezamentos, mesmo quando as histórias que relatam
noticiam eventos capitais cuja importância atrai a atenção
do mundo. Poucas pessoas se lembram de quem noticiou
quando o homem pousou na lua ou mesmo quem era o
repórter que falava quando ouviram, pela primeira vez,
sobre o início ou término de uma grande guerra.
Mesmo para colunistas, editores de jornais e
jornalistas televisivos não há quaisquer qualificações reais
exigidas além de uma habilidade em atrair um público leitor
ou ouvinte, pouco importando se as palavras têm ou não
coerência lógica ou validade empírica. Da mesma forma,
não há qualificações específicas exigidas em muitas outras
ocupações entre a intelligentsia, como ser um "advogado do
consumidor" ou chefiar uma organização de "interesse
público", e certamente não é exigida nenhuma evidência
concreta de que o consumidor ou público é de fato
beneficiado por tais atividades ou se existe uma avaliação
do quanto o público pode ser prejudicado por essas
atividades. Para os membros da intelligentsia que se
engajam em tais atividades, as qualificações são
irrelevantes, exceto a habilidade em atrair atenção por
quaisquer meios disponíveis.
Acontece o mesmo com líderes e membros de grupos
de protesto, muitos dos quais integram a intelligentsia. A
habilidade em organizar manifestações massivas e
barulhentas, com ou sem violência, também garante não
apenas cobertura televisiva das próprias manifestações,
mas também a cobertura das justificativas particulares do
movimento. Embora os incentivos dos líderes sejam os de
adquirir publicidade gratuita para suas ideias, os incentivos
da mídia são os de preencher os programas de noticiário
com eventos de impacto repletos de ação e de
pronunciamentos polêmicos.
Nem a acuidade factual nem a consistência lógica dos
pronunciamentos são fatores decisivos tanto para a mídia
quanto para os membros dos movimentos. "O que conta é o
gestual arrogante, o completo desrespeito pela opinião dos
outros, o puro enfrentamento dos valores consagrados",[811]
como E ri c Hoffer explica em sua análise sobre os
movimentos de massa. Resumindo, tanto com intelectuais
acadêmicos como com não acadêmicos, a validação de suas
ideias e de seu status independe de qualquer verificação
empírica sobre o que dizem. Portanto, eles não precisam
prestar contas de suas ações e de suas palavras - e esse
tipo de atitude significa que não têm quaisquer
impedimentos para agir de maneira irresponsável.
Professores de escola constituem parte do corpo
periférico da intelligentsia, rodeando o núcleo central dos
intelectuais. Assim como muitos outros, o papel dos
professores escolares é bastante modesto e pouco
percebido e sua influência no curso da política nacional é
praticamente inexistente desde que permaneçam restritos
às suas atividades e ao seu papel de transmissores das
conquistas culturais do passado para as novas gerações.
Somente ao se desviarem de seu papel e se apropriarem de
atividades para as quais não têm nem qualificação nem
responsabilidade é que conseguem expandir grandemente
sua influência, seja por meio de doutrinação ideológica dos
alunos ou por sua manipulação psicológica com o intuito de
alterar os valores que esses estudantes receberam dos pais.
[812]
Em ambos os casos, os professores não prestam
contas diante das consequências tanto em relação aos
alunos quanto à sociedade. Por exemplo, quando a longa
tendência de queda de gravidez adolescente e de doenças
venéreas repentinamente se reverteu, depois que os
programas de "educação sexual "foram introduzidos nas
escolas norte-americanas na década de 1960,[813] coube
aos pais o trabalho de colher os cacos e arrumar a bagunça
sempre que uma filha adolescente aparecia grávida ou um
filho adolescente contraía uma doença venérea. Nenhum
professor ou nenhuma professora teve que arcar com as
consequências de nada, tanto em relação aos custos
financeiros quanto ao custo emocional e às noites de sono
perdidas. O virtuosismo retórico ainda possibilitou que a
alteração dos valores, promovida pela "educação sexual",
não apenas escapasse de qualquer censura, mas
continuasse a fomentar a ideia de que o que era chamado
"educação sexual" representava a solução, em vez de um
agravamento do problema. Assim como tantas outras
coisas, a noção encaixava-se na visão, eximindo-a da
exigência de se encaixar nos fatos. Além do mais, na
medida em que esses exercícios de doutrinação na
promoção de valores estranhos à cultura tradicional foram
denominados de "educação", quem poderia opor-se a eles?
Não apenas os próprios membros da intelligentsia têm
incentivos para se aventurarem muito longe de qualquer
especialidade que possam ter a fim de influenciar as
políticas públicas, mas o exemplo deles e, no caso dos
professores, sua prática encorajam o mesmo tipo de
irresponsabilidade zelosa entre os próprios alunos. Também
nesses casos são poucas, ou nenhuma, as restrições.
Já desde a escola primária os alunos são encorajados
ou recrutados para que se posicionem diante de complexas
questões públicas, as quais variam muito, podendo, por
exemplo, abranger assuntos relacionados às políticas sobre
o arsenal nuclear. Classes inteiras são designadas para que
escrevam sobre o assunto aos membros do Congresso ou ao
presidente dos Estados Unidos. Comitês de admissão das
faculdades podem favorecer as várias formas de
ambientalismo ou outros tipos de ativismo, considerando
quais candidatos serão admitidos. É bastante comum que
faculdades exijam "serviço comunitário" corno pré-requisito
para que os candidatos sejam avaliados, e a comissão de
admissão tem ampla liberdade para definir arbitrariamente
o que deve ser considerado "serviço comunitário", como se,
por exemplo, ficasse claro, sem a menor sombra de dúvida,
que prestar assistência e estimular o ócio ("a mendicância")
são um serviço em vez de um desserviço à comunidade.
Dessa e de outras maneiras, os pré-requisitos
intelectuais para se alcançar sérias conclusões sobre a
condução de determinadas agendas são ironicamente
sabotados pela própria intelligentsia. Ao encorajar ou
mesmo exigir que os alunos assumam uma posição quando
não têm nem conhecimento nem treinamento intelectual
para examinar seriamente questões complexas, os
professores acabam promovendo a expressão de opiniões
inconsistentes, o extravasamento de emoções
desarticuladas e o hábito de agir segundo essas opiniões e
emoções enquanto se ignoram ou se descartam visões
opostas sem ter o equipamento intelectual ou mesmo a
experiência pessoal para equiparar as visões de maneira
séria.
Resumindo, em todos os níveis da intelligentsia,
compreendendo uma grande gama de especialidades, os
incentivos tendem a recompensar aqueles que ultrapassam
os limites de suas competências, e as restrições contra as
falsificações são poucas ou simplesmente inexistentes. Não
é que a maior parte da intelligentsia minta
deliberadamente, numa tentativa cínica de ganhar
notoriedade ou de promover sua causa. Todavia, a
habilidade geral das pessoas para racionalizarem e
justificarem a si mesmas, assim como para justificarem seus
pares, certamente não está em falta entre os membros da
intelligentsia.
Alegações polêmicas, previsões alarmistas e
acaloradas cruzadas morais podem gerar, na mente do
público, um senso de importância dos intelectuais, assim
como para eles mesmos. Mas a fim de preservar esse senso
de importância, esforços continuados e frequentemente
árduos se fazem necessários. Portanto, os intelectuais
públicos "não conseguem operar em temperatura
ambiente",[814] como disse Eric Hoffer.
É difícil pensar em qualquer década do século
passado em que a intelligentsia não tenha embarcado em
alguma espécie de cruzada urgente para salvar o mundo de
um grande perigo qualquer, que o homem comum era
considerado incapaz de perceber. No início do século XX foi
a noção de eugenia, cuja implantação impediria que a
inteligência nacional declinasse como resultado de taxas de
natalidade mais altas entre pessoas de baixo Q.I., apesar de
os resultados de testes de Q.I. terem, de fato, mostrado um
aumento do índice durante aquele século.[815] Na década de
1920, a cruzada do dia era a promoção do desarmamento e
os tratados internacionais renunciando à prática de guerra;
na década de 1930 houve muitas cruzadas para se contar,
como houve no mundo pós-guerra.
Dentre as arrogantes suposições da intelligentsia,
temos aquela cuja ideia central insinua que estranhos
devam dar significado para a vida das pessoas comuns,
mobilizando-as para uma causa comum e dando-lhes um
sentido de importância. Qualquer um que pense que uma
mãe não é importante para a criança, ou a criança para
uma mãe, não sabe nada sobre seres humanos. Há poucas
coisas tão importantes para pessoas que se amam do que
um ao outro. A maior parte das pessoas já tem alguém para
o qual ele ou ela tem uma importância enorme e sua vida
nunca seria a mesma sem a presença dessa pessoa. Que
para os intelectuais tais tipos de pessoa pareçam não ter a
menor importância diz mais a respeito da natureza deles do
que sobre as pessoas. E projetar essa suposta não
importância sobre a vida das próprias pessoas é uma das
muitas violações dos padrões intelectuais fundamentais
perpetradas pelos intelectuais.
◆ ◆ ◆

RESTRIÇÕES
Diferentemente de engenheiros, de médicos ou de
cientistas, a intelligentsia não encontra nenhuma séria
restrição ou sanção baseada em verificação empírica.
Ninguém poderia ser processado por inépcia, por exemplo,
ao ter contribuído para a histeria causada em torno do
inseticida DDT e que levou a seu banimento em muitos
países por todo o mundo, mas que custou a vida de
literalmente milhões de pessoas devido ao reaparecimento
da malária. Por outro lado, médicos cujas ações tiveram
uma ligação muito mais tênue com complicações médicas
sofridas por seus pacientes tiveram que pagar milhões de
dólares em compensações por prejuízos, ilustrando, uma
vez mais, uma diferença fundamental entre as
circunstâncias profissionais da intelligentsia e as
circunstâncias das pessoas em outras profissões igualmente
exigentes do ponto de vista mental.
O fato de jornalistas não precisarem mais responder
legalmente por calúnia e por difamação, no caso de pessoas
consideradas "públicas", gerou, no entanto, consequências
sociais mais amplas, pois ao caluniar ou difamar pessoas
que detêm ou aspiram por altos cargos no governo,
prejudica-se o próprio público em geral, além de prejudicar
os indivíduos particulares. Isso acontece quando eleitores
são persuadidos a abandonar alguém que estavam, até
então, dispostos a eleger, como resultado de acusações
falsas divulgadas pela mídia, e isso pode ser tão prejudicial
quanto qualquer outra forma de fraude; ou quando
nomeados para os cargos de juízes federais, incluindo os
juízes da Suprema Corte, tiverem suas nomeações
sabotadas por causa de falsas acusações de racismo ou de
assédio sexual divulgadas pela mídia, privando a população
não apenas dos serviços desses indivíduos em particular,
mas também dos serviços posteriores de muitos outros, os
quais se recusam a prejudicar a própria reputação,
construída ao longo de toda uma vida, ao entrar num
processo de confirmação cujas acusações imprudentes e
sensacionalistas, espalhadas por toda a nação através da
mídia, tornaram-se a norma, e a prova de inocência é
praticamente impossível.
Não apenas o mundo externo, mas mesmo seus pares
profissionais impõem poucas restrições aos intelectuais
desde que estes estejam expondo a visão predominante do
intelectual ungido, especialmente para o público leigo. Nem
é da restrição fundamental - os padrões pessoais impostos
pelo próprio sujeito - que é difícil de escapar. Como
observou Jean-François Revel: "Cada um de nós deveria
perceber que cada indivíduo possui dentro de si a
capacidade formidável de construir um sistema explicativo
do mundo e, com ele, uma máquina para rejeitar todos os
fatos contrários ao sistema".[816]
Certamente, não falta aos intelectuais habilidade para
racionalizar e, afinal de contas, esse é um tipo de dom que
eles dominam melhor que a maioria das pessoas.
Considerando-se os incentivos e as restrições, ou a falta
deles, em jogo, muitas das coisas ditas e feitas pelos
membros da intelligentsia se tornam compreensíveis,
apesar de todo o prejuízo e de todo o desastre que têm
provocado nas sociedades ao seu redor.
◆ ◆ ◆

GOVERNO
Muitos dos incentivos e das restrições por trás dos
padrões dos intelectuais se aplicam a outro grupo - os
políticos -, cujas decisões como agentes do governo podem
engrandecer em muito a influência dos intelectuais. É
praticamente axiomático que, numa época em que o
governo legisla, regulamenta e financia uma gama de
atividades cada vez mais impressionantes! Não há um
indivíduo sequer com a quantidade ou a profundidade de
conhecimento significativo que possa decidir, de forma
competente, sobre uma gama tão vasta de assuntos. O
resultado final é que os políticos, assim como acontece aos
intelectuais, alcançam reconhecimento público sempre que
ultrapassam os limites de suas competências, e que eles
têm que proceder de tal forma, no mínimo, com a mesma
frequência dos intelectuais públicos, especialmente quando
muitos políticos não têm nenhuma área própria de
especialização, apenas a arte de se elegerem.
A quantidade de especialistas disponíveis para a
consulta dos agentes governamentais não é, de forma
alguma, um substituto adequado, uma vez que geralmente
existem especialistas em ambos os lados - ou muitos lados -
de cada questão. Escolher entre esses especialistas pode
também se revelar uma decisão que ultrapassa a
competência de muitos políticos. Além disso, a
especialidade real dos políticos profissionais - a de criar uma
boa impressão diante dos eleitores - pode tornar
desnecessário saber sobre o que estão realmente falando,
desde que suas palavras continuem a encontrar ressonância
nos eleitores. Na medida em que os políticos dizem e fazem
coisas em consonância com a visão predominante, eles
tendem a alcançar seu objetivo, pouco importando o quão
perto ou o quão distante da realidade esteja essa visão.
Juízes federais com cargos vitalícios se encontram
ainda menos constrangidos pela realidade. Legisladores não
possuem apenas mais funcionários à disposição do que os
juízes, a fim de colher informações, mas também recebem
feedback de peso, ou seja, feedback que não podem ignorar
ou descartar do conhecimento público sobre os efeitos reais
de suas legislações. Os juízes carecem de ambas as fontes
de informação e de correção, de forma que as ideias
provenientes dos setores da intelligentsia que absorvem
acabam tendo pouco feedback corretivo, e a importância
dos precedentes legais tornam as correções difíceis mesmo
quando existem receios, entre os próprios juízes, das
consequências sobre o que eles ou seus colegas fizeram.
Os juízes que se alinham à visão intelectual
predominante de sua época não se constrangem em
gratificá-la e tendem a ser adulados, em vez de criticados,
pelos setores da intelligentsia ligados à mídia ou às escolas
de direito, pois agem a fim de "inovar", tomando decisões
que tornam as políticas sociais consistentes com a visão do
intelectual ungido. Por outro lado, o máximo que se pode
esperar de juízes que restringem suas decisões ao círculo de
sua especialidade jurídica é que sejam ignorados. Em
muitos casos, tais juízes são atacados ao atrapalharem as
mudanças em nome do progresso, pois obstruem a visão do
intelectual ungido e não participam de sua implantação,
recusando-se a acompanhar seus colegas que a adotam.
Burocratas federais não têm a mesma permanência
dos juízes federais nem a amplitude de autoridade decisória
dos membros do Congresso, mas têm uma combinação das
duas coisas que os torna um poderoso "quarto poder do
governo". E um poder do governo que não se situa apenas
fora da estrutura de poder estabelecida pela Constituição,
mas um que com frequência combina poderes legislativos,
judiciários e executivos, os quais são tão cuidadosamente
separados pela Constituição. Embora as políticas, as
regulamentações e os gastos públicos promovidos pelas
burocracias não sejam tecnicamente legislação, têm,
contudo, quase sempre o mesmo efeito de uma legislação
sem sofrerem as restrições constitucionais que afetam o
Congresso. Expulsar um membro do Congresso requer
muito menos esforço dos cidadãos comuns do que tentar
reverter uma decisão da burocracia federal valendo-se dos
tribunais federais.
Grandes quantidades de dinheiro à disposição dos
burocratas também lhes dão grande influência sobre os
especialistas em suas áreas particulares de operação. As
escolhas arbitrárias da burocracia, as quais financiam certos
pesquisadores e acadêmicos, não apenas permitem que
eles influenciem a opinião pública em direção às políticas
favorecidas pelos burocratas, mas podem ter um efeito
assustador sobre especialistas que sabem que expressar
visões opostas àquelas dos donos do dinheiro público, seja
sobre autismo, seja sobre aquecimento global ou outros
numerosos assuntos, prejudica seu próprio acesso às
grandes quantias de dinheiro necessárias para se financiar
pesquisas de grande porte.
Uma vez que os financiamentos para pesquisa são em
geral fatores cruciais na carreira dos próprios especialistas e
de seus colegas, um silêncio discreto pode ser muito útil
sempre que um especialista se revela incapaz de acreditar
ou de defender a posição tomada pela burocracia. Um
ceticismo abertamente declarado, para não falar de uma
franca oposição, não apenas reduz as chances de obter os
fundos para pesquisa sobre aquele assunto em particular,
mas pode afetar, ao se posicionar de forma contrária aos
objetivos da burocracia, toda a instituição, que pode ser um
departamento acadêmico ou uma empresa de consultoria. O
especialista poderá então se tornar desagradável (com
todas as consequências que isso acarreta) para a instituição
e diante de seus colegas.
Resumindo, as burocracias são frequentemente
capazes de manipular as visões da intelligentsia para seus
próprios interesses, ao menos dentro das jurisdições em que
atuam, as quais estarão sujeitas a pequenas correções de
percurso por parte daqueles que sabem mais ou pela
população que sofre as consequências. Na medida em que a
mídia pensa e atua dentro da mesma estrutura de visão de
mundo, pode haver realmente poucos alertas transmitidos
para o público em geral de que existem outras visões e
outras possibilidades sobre as questões tratadas, e uma
quantidade ainda menor de postura crítica. Em vez disso, o
público provavelmente ouvirá que "existe um consenso
entre os especialistas" sobre a questão.
O governo em geral - ou seja, todos os três poderes
constitucionalmente estabelecidos, assim como o "quarto
poder", representado pela burocracia -é capaz de agir com
base em quaisquer noções ou suposições, mesmo que
infundadas, que por acaso predominem entre os setores da
intelligentsia. Podemos ter outras visões concorrentes em
potencial, mas para serem notadas elas terão que enfrentar
uma luta muito desigual. Evidências empíricas podem
abundar, as quais contrariam a visão predominante, mas
tais evidências serão tratadas como semente quando cai
em terra seca e não de forma adequada para a informação
do grande público. O moderno governo tentacular tende,
portanto, a engrandecer a influência da intelligentsia na
medida em que o governo é uma instituição de tomada de
decisão sob o controle de legisladores, de juízes, de
executivos e de burocratas, em que ninguém é constrangido
a permanecer dentro da área de sua própria competência
ao tomar decisões.
◆ ◆ ◆

O HISTÓRICO DOS INTELECTUAIS


O que os intelectuais realmente têm feito à sociedade
e a que custo? Muitos avanços grandiosos na medicina, na
ciência e na tecnologia vieram das universidades, dos
institutos de pesquisa e dos departamentos de
desenvolvimento industrial das empresas, os quais
beneficiaram a sociedade como um todo e, em última
instância, as pessoas no mundo todo. Muitos desses
benefícios foram produzidos por indivíduos dotados de
habilidades mentais extraordinárias - mas raramente esses
indivíduos foram intelectuais no sentido aqui discutido, de
pessoas cujos produtos finais são ideias e cujo único
processo de validação é a aprovação de seus pares. O que é
notável sobre os intelectuais nesse último sentido é o
quanto é difícil pensar sobre os benefícios reais que eles
conferiram a qualquer pessoa que não faça parte de seu
próprio círculo de interesses - e o quão se torna
dolorosamente evidente o quanto eles, de fato, custam para
o resto da sociedade, não apenas do ponto de vista
econômico, mas de muitas outras formas.
Embora praticamente qualquer pessoa possa nomear
uma lista de desenvolvimentos médicos, científicos ou
tecnológicos que de alguma forma melhoraram a vida das
pessoas das gerações de hoje, em comparação com a vida
das gerações do passado, incluindo as pessoas da última
geração, seria um desafio mesmo para uma pessoa
altamente informada dizer três formas nas quais nossa vida
é hoje melhor como resultado das ideias de sociólogos ou
de desconstrucionistas. Alguém poderia, é claro, definir
"melhor" ao dizer que tem consciência da sociologia e da
desconstrução ao realizar suas agendas políticas, mas esse
raciocínio circular apenas se juntaria às argumentações sem
prova.
Houve escritos importantíssimos, até mesmo obras de
gênio, no que é denominado ciências sociais, embora
muitos desses trabalhos tenham sido implícita ou
explicitamente ataques sobre questões ditas por outros
escritores nas ciências sociais, e não fica claro o quanto de
prejuízo líquido a sociedade teria sofrido se nenhum deles,
em toda a profissão, tivesse dito coisa alguma. Por exemplo,
os escritos de James Q. Wilson sobre a criminalidade têm
um enorme valor, mas principalmente para refutar as ideias
predominantes de outros criminologistas, os quais
produziram desastres sociais em ambos os lados do
Atlântico. Resumindo, foram outros intelectuais - não o
público em geral - que sustentaram políticas
contraprodutivas de combate ao crime, assim como em
outras questões sociais. Antes da ascendência dessas
noções no sistema de justiça criminal dos Estados Unidos,
os índices de criminalidade estavam em franco declínio por
décadas, sob as ideias e as práticas tradicionais tão
desdenhadas pela intelligentsia.
Algo semelhante poderia ser dito sobre outros
extraordinários escritos que refutaram outras modas
intelectuais, mas que teriam sido desnecessários caso essas
modas não tivessem surgido e se tornado predominantes
entre a intelligentsia, infiltrando-se nas políticas públicas.
Todavia, mesmo assumindo que houve benefício real
fornecido pelos trabalhos dos intelectuais contemporâneos,
é difícil acreditar que suas realizações se aproximem dos
benefícios que nos ofertaram os campos da engenharia, da
medicina e da agricultura.
Existe aquele antigo ditado afirmando que mesmo um
relógio parado está certo duas vezes ao dia. Os intelectuais
podem alegar crédito por terem apoiado o movimento pelos
direitos civis da década de 1960, mas muito desse crédito
deve ir para os que se colocaram em perigo no Sul, em vez
de serem contabilizados por aqueles que os felicitaram de
seus escritórios e de redações no Norte. Aqueles que
colocaram a própria carreira política em jogo na luta pelos
direitos civis, começando pelo presidente Harry Truman na
década de 1940, foram fundamentalmente as pessoas que
implantaram as mudanças legais que provocaram o colapso
da discriminação racial patrocinada pelo Estado. Porém,
quaisquer que tenham sido as contribuições que a
intelligentsia tenha feito em relàção às mudanças raciais,
elas devem ser contrabalanceadas com o seu papel em
justificar ou racionalizar o enfraquecimento da lei e da
ordem em contextos raciais ou não raciais, com os negros
tornando-se as vítimas principais da violência crescente,
incluindo o fato de que, em alguns anos, comparando-se
com os brancos, mais negros foram mortos em números
absolutos, apesar de haver grandes diferenças no tamanho
das duas populações.
Numa época anterior, liderados por Émile Zola,
intelectuais na França expuseram as fraudes envolvendo as
acusações que haviam enviado o capitão Alfred Dreyfus
para a prisão na Ilha do Diabo. De fato, diz-se que o próprio
termo "intelectual" foi cunhado naquele episódio.[817]
Embora outros - nos quadros militares e Georges
Clemenceau na política - tivessem ficado do lado do capitão
Dreyfus, mesmo antes da publicação do famoso artigo de
Zola, "J’Accuse",[818] episódio Dreyfus foi algo para ser
contabilizado pelos intelectuais. Mas já vimos o quanto se
deve do outro lado dessa contabilidade, especialmente na
França.
Embora seja difícil alinhavar um caso em que os
intelectuais, como produtores de ideias, tenham criado
amplos e duradouros benefícios para a grande maioria das
pessoas, comparando-se com o que as pessoas em outras
profissões criaram mesmo em ocupações mais comuns, o
que se apresentaria como um desafio muito menor seria
nomear coisas que os intelectuais tornaram pior tanto em
nossa quanto em outras épocas.
◆ ◆ ◆

COESÃO SOCIAL
Uma das coisas que os intelectuais fazem há muito
tempo é afrouxar os laços que sustentam uma sociedade.
Eles buscam remodelar os grupos nos quais as pessoas
tradicionalmente se arranjam, transformando-os em
agrupamentos criados e impostos pela própria intelligentsia.
Laços familiares, religião e patriotismo, por exemplo, têm
sido tratados pela intelligentsia como elementos suspeitos
ou prejudiciais, e os novos laços que os intelectuais criaram,
como classe - e mais recentemente "gênero" -, são
projetados como mais reais ou mais importantes.
A suposta solidariedade entre a classe trabalhadora fazia
parte das noções que ganharam prestígio entre os
intelectuais da esquerda. A Primeira Guerra Mundial foi um
choque para tais intelectuais, os quais tinham decidido, por
conta própria, que as classes operárias não entrariam na
guerra entre si, mesmo integrando nacionalidades
diferentes, presumivelmente porque os intelectuais
acreditavam que a nação era algo de menor valor que a
classe. Como se deu em outros casos, todavia, esses
intelectuais não se importaram em investigar se as próprias
classes trabalhadoras compartilhavam dessa visão.
Resumindo, a primazia da classe sobre a nação, como
tantas outras coisas na visão do intelectual ungido, não foi
uma hipótese a ser testada, mas um axioma proclamado.
Vimos no capítulo 7 algumas formas pelas quais os
intelectuais de destaque, nas democracias ocidentais,
abalaram a própria segurança nacional de seus países entre
as duas Guerras Mundiais. Antes que possa haver uma
defesa nacional, no sentido militar do termo, é preciso que
haja algum sentimento sobre a necessidade de se defender
a nação num sentido social, cultural ou outro qualquer. A
maior parte dos intelectuais modernos raramente contribui
para a manutenção desse sentido. Alguns chegaram até
mesmo a fazer afirmações como a de George Kennan:

Primeiro me mostre um norte-americano que


tenha tido sucesso para lidar com os problemas do
crime, das drogas, da deterioração dos padrões
educacionais, da decadência urbana, da
pornografia e da decadência de uma forma ou de
outra - mostre-me um norte-americano que (...) é
como deveria ser, então eu vou lhe dizer como nós
nos defenderemos dos russos.[819]

Nem todos os intelectuais são tão bruscos como esse,


mas não é, de forma alguma, incomum para alguns
membros da intelligentsia retratar os Estados Unidos sob
julgamento e precisando provar inocência - um padrão
raramente aplicado a outros países - em detrimento da
aliança pública para sua defesa contra inimigos potenciais
ou de suas próprias leis e normas. Mas os Estados Unidos
não estão sozinhos diante dessa atitude. A intelligentsia de
algumas nações europeias é ainda mais ousada, fazendo
apologia dos muçulmanos dentro e fora de seu próprio país,
permitindo o estabelecimento, de faro, de enclaves
muçulmanos com suas leis e seus padrões dentro da
Europa, ao mesmo tempo que ignoram as violações legais
perpetradas por imigrantes muçulmanos vivendo em países
europeus.[820]
Imagens idealizadas de países estrangeiros formam
apenas uma das maneiras pelas quais os intelectuais
enfraquecem sua própria nação. Também de outras formas,
muitos intelectuais erodem e destroem um sentido de
valores e de realizações compartilhadas que torna uma
nação possível ou um senso de coesão nacional com o qual
se possa resistir aos seus inimigos externos e internos.
Condenar os inimigos do país seria, para os intelectuais,
equiparar-se às massas, mas ao condenarem sua própria
sociedade, os intelectuais ungidos tornam-se, no sentido
mental e moral, especiais - ao menos diante de seus pares.
Tendo-se os incentivos e as restrições dados, é difícil
entrever como poderia ser diferente quando qualquer
significância que possam ter na sociedade em geral
depende quase que completamente da postura crítica que
têm da própria sociedade e da alegação de apresentarem
"soluções" especiais para tudo que definem como os
"problemas" da sociedade.
Isso não quer dizer que os intelectuais atuem
cinicamente em função da credulidade da ordem pública a
fim de tirar vantagem de sua especialidade profissional para
que recebam aclamação pública ou influência política. Eles
podem acreditar com sinceridade no que dizem, mas suas
crenças geralmente carecem de fundamento e não são
colocadas sob nenhum teste de validação. Depois que uma
de suas ideias ou de suas agendas é adotada, os membros
da intelligentsia quase nunca levantam a pergunta
decorrente: O que se saiu melhor em termos de resultado?
Com frequência as coisas se tornam demonstravelmente
piores[821] e então o virtuosismo retórico da intelligentsia é
colocado em ação a fim de alegar que a evidência nada
prova porque não foi de fato o que fizeram que causou o
descaminho das coisas. Embora seja bom alertar contra a
falácia post hoc, o que os intelectuais raras vezes fazem é
aceitar o ônus da prova sobre si mesmos a fim de mostrar
qual foi o melhor resultado quando suas ideias foram
praticadas.
Sob a influência da intelligentsia tornamo-nos uma
sociedade que recompensa e admira as pessoas por
violarem as próprias normas sociais consagradas,
fragmentando a sociedade em segmentos discordantes.
Somando-se a isso, os membros da intelligentsia
desqualificam explícita e sistematicamente a sociedade em
que vivem, denegrindo sua história e atacando sem piedade
suas deficiências momentâneas. Em geral, os intelectuais
estabelecem padrões para suas sociedades os quais
nenhuma sociedade composta por seres humanos jamais
alcançou ou provavelmente jamais alcançará.
Chamar esses padrões de "justiça social" permite que
os intelectuais se dediquem à promoção de reclamações
intermináveis, denunciando os modos particulares pelos
quais a sociedade fracassa em alcançar os critérios
arbitrários estabelecidos por eles, juntamente de um desfile
de outros grupos que se colocam como vítimas,
exemplificado na fórmula "raça, classe e gênero" que temos
hoje; e o mesmo tipo de pensamento por trás dessa fórmula
particular é usado quando se retratam as crianças como
vítimas de seus pais, e imigrantes ilegais como vítimas de
uma sociedade xenofóbica e indiferente. Ou seja, muitos
membros da intelligentsia se dedicam à produção e à
distribuição de agravos e de ressentimentos, vasculhando a
história quando não conseguem um número suficiente de
agravos contemporâneos que se encaixem em sua visão.
O tipo de sociedade que isso gera é uma na qual um
bebê recém-nascido entra no mundo de posse de um pacote
de reclamações contra outros bebês nascidos naquele
mesmo dia. É difícil imaginar uma fórmula mais explosiva
para a deflagração de conflitos internos juntamente do
enfraquecimento dos laços que mantêm a coesão de uma
sociedade.
"A constituição de nações a partir de tribos, no início
dos tempos modernos na Europa, da Ásia e da África
contemporâneas, foi o trabalho de intelectuais", segundo o
conceituado acadêmico Edward Shils.[822] Mas
independentemente de seus papéis históricos em outros
tempos e lugares, os intelectuais nas nações ocidentais de
nossos tempos estão amplamente comprometidos com a
criação de tribos a partir de nações. O que Peter Hitchens
denominou na Grã-Bretanha de "atomização da sociedade,"
a qual "amputou muitos dos laços invisíveis que uma vez
mantiveram nossa sociedade unida",[823] é um padrão que
não se restringiu à Grã-Bretanha ou às nações ocidentais.
As realizações positivas da sociedade na qual os
intelectuais vivem raramente recebem uma atenção
remotamente comparável ao volume de atenção dedicado a
queixas e a ressentimentos. Tal assimetria, juntamente das
deficiências lógicas e factuais de boa parte das lamentações
feitas em nome da "justiça social", pode criar a imagem de
uma sociedade que não vale a pena preservar e muito
menos defender. Os benefícios advindos dos arranjos sociais
existentes são tidos como garantias eternas, como se
fossem coisas que acontecessem mais ou menos
automaticamente mesmo quando quase inexistem em
outros países. Esses benefícios não são considerados coisas
para as quais sacrifícios (ou ao menos abstenção) foram
requeridos, muito menos coisas que podem ser danificadas
pelo zelo com que os movimentos por "mudança" são
promovidos ao se desconsiderar as repercussões dessas
mudanças.
◆ ◆ ◆

A LOCALIZAÇÃO DO MAL
Muitos entre a intelligentsia se consideram agentes
de "mudança", um termo muito usado de forma leviana,
como se as coisas estivessem tão ruins que a mera e
genérica "mudança" pudesse ser tomada como uma
mudança para melhor. A história das mudanças que
revelaram ser para pior mesmo em países em que as coisas
já estavam bem ruins - a Rússia czarista ou a Cuba sob o
regime de Batista, por exemplo -, recebe uma extraordinária
falta de atenção. Mas para que uma agenda de mudança
social benéfica e compreensível funcione e pareça plausível,
deve haver implicitamente a identificação do mal em
alguma classe, instituição ou grupo de representantes, uma
vez que pecados e deficiências universalmente presentes
nos seres humanos deixariam pouco lugar para se esperar
algo dramaticamente melhor numa sociedade reorganizada,
de forma que mesmo uma revolução seria vista como o
trabalho de reorganizar as cadeiras no deque do Titanic.
Reformas paulatinas que evoluem a partir das
experiências de tentativa e erro podem, ao longo do tempo,
implicar uma profunda mudança da sociedade, mas isso é
algo muito distinto do tipo de mudanças drásticas e
artificialmente impostas a fim de castigar o malvado e
exaltar o ungido, reforçando a visão ressentida e dramática
dos intelectuais. Essa visão exige a existência de vilões,
sejam indivíduos, grupos ou toda uma sociedade tida como
infectada por ideias erradas, mas que podem ser corrigidas
por aqueles que se apresentam como portadores das ideias
corretas. Esses vilões não podem estar muito longe ou
esquecidos para que recebam as devidas condenações dos
membros da intelligentsia. Vilões domésticos são alvos
muito mais acessíveis e vulneráveis, tendo maiores chances
de sucesso perante o público incitado pela visão da
intelligentsia.
O que deve ser atacado é a "nossa sociedade", para
que se submeta à "mudança" particular favorecida pela elite
intelectual. Os pecados da sociedade, no passado e no
presente, devem ser o foco dos ataques. Por exemplo, um
estudo sobre a pobreza global destacou o contraste entre as
perspectivas imensamente desiguais entre uma criança
negra nascida na zona rural da África do Sul e uma criança
branca nascida no mesmo dia na Cidade do Cabo,
chamando essas diferenças de "o legado das oportunidades
desiguais do regime apartheid".[824] Não resta dúvida de
que o regime apartheid foi nefasto ou que a invasão e a
conquista da África do Sul pelos brancos, cuja subjugação
das populações africanas nativas permitiu que o regime
apartheid fosse imposto, foram uma coisa maligna. Não
existe qualquer ambiguidade moral. Contudo, a conexão
causal com o estado de pobreza e de desigualdade presente
não fica clara.
Por acaso havia uma pobreza menor naquelas partes
da África subsaariana quando eram governadas pelos
negros? Mesmo durante os piores dias do regime apartheid
havia um grande fluxo migratório de outras populações
africanas enz direção à África do Sul, onde a pobreza era
menor do que em outras partes da África subsaariana
governadas por negros. Era menor o contraste entre a
pobreza dos negros da África do Sul e os brancos que
vieram conquistá-los antes da invasão, quando ambas as
populações de negros e de brancos viviam cada uma em
sua própria terra natal? A história nos mostra que a resposta
para ambas as perguntas deve ser "não". Esses drásticos
contrastes econômicos estão restritos à África e são
incomuns em escala global? Esses contrastes são peculiares
a grupos raciais particulares? A resposta a ambas as
perguntas também é "não". O mesmo autor destacou em
seu livro - na verdade, na página anterior - a gigantesca
diferença entre as rendas ao se comparar as populações dos
vários países africanos, um contraste muito maior do que o
que existe, por exemplo, nos Estados Unidos,[825] embora as
implicações não tenham sido trabalhadas aparentemente de
uma página para a seguinte.
Outro acadêmico destacou como uma pessoa poderia
traçar uma linha sobre o mapa da Europa e descobrir que
um bebê nascido no Leste Europeu teria perspectivas muito
menores do que um bebê nascido a oeste da linha.[826] Esse
contraste tinha séculos de duração e persistiu por toda
sorte de mudanças nos regimes de ambos os lados da linha.
Os males sociais não eram desconhecidos em ambos os
lados da linha, mas sair da condenação moral para a
explicação causal é tão válido na Europa quanto deveria ser
para a África ou para outros lugares.
A escravidão tem sido um mal difundido por todo o
mundo por milhares de anos, mas ao se confundir moral
com causa - buscando a localização do mal -, tivemos uma
completa inversão sobre a compreensão da história da
escravidão que se abateu por todo nosso sistema
educacional, assim como pela mídia e pela intelligentsia em
geral. Dessa forma, a escravidão foi retratada como se fosse
uma peculiaridade dos povos brancos cohtra os negros nos
Estados Unidos ou nas sociedades ocidentais. Ninguém
sonha em exigir reparações dos africanos do Norte por
todos os europeus que eles escravizaram, apanhados pelos
sarracenos, mesmo sabendo-se que esses escravos
europeus ultrapassaram largamente em número os
escravos africanos trazidos para os Estados Unidos e para
as treze colônias nas quais a nação foi formada.[827]
Uma vez que o Ocidente não está imune aos males,
aos erros e às deficiências da raça humana por todo o
mundo, a intelligentsia foi capaz de documentar esses
defeitos de uma forma que os faz parecer peculiares à
"nossa sociedade". No caso da escravidão, o que foi peculiar
em relação ao Ocidente foi o fato de que ela foi a primeira
civilização a se virar contra essa prática, um movimento
que começou no século XVIII e culminou com a abolição da
escravidão em todo o mundo durante o século XIX, não
apenas dentro das sociedades ocidentais, mas também se
estendendo às sociedades sujeitas de alguma forma ao seu
controle e à sua ameaça. No entanto, não há praticamente
qualquer interesse, dentre os membros da intelligentsia de
nossos dias, em saber como um fenômeno universal como a
escravidão foi eliminado depois de milhares de anos de
prática, pois ele não morreu simplesmente por conta
própria, mas foi suprimido à força pelo Ocidente por meio
de campanhas que tomaram o mundo e que duraram mais
de um século, enfrentando quase sempre a dura oposição
de africanos, de asiáticos e de outras culturas que queriam
a manutenção da escravidão. Contudo, a verdadeira história
não passa pelos filtros ideológicos e é raramente revelada.
O que é destacado é que havia escravidão no
Ocidente, como se isso fosse uma prática peculiar ao
Ocidente. O que também é destacado é que os povos
negros foram escravizados pelos brancos no Ocidente. Mas
mesmo no Ocidente pessoas brancas eram escravizadas por
outras pessoas brancas, por séculos, antes que o primeiro
africano fosse trazido acorrentado para o hemisfério
Ocidental. O próprio fato de esses africanos serem
chamados de "escravos" refletia o fato de haver um grupo
de homens brancos que fora escravizado por séculos - os
eslavos -, na medida em que a palavra para escravo deriva
do termo eslavo não apenas em inglês, mas o mesmo vale
para outras línguas europeias e para o árabe.[828] O
respeitado historiador Daniel Boorstin destacou: "Agora,
pela primeira vez na história do Ocidente, o status de
escravo coincidia com uma diferença de raça".[829]
Durante a maior parte de sua história os europeus
escravizaram outros europeus, os africanos escravizaram
outros africanos e os asiáticos escravizaram outros
asiáticos. Na medida em que a escravização em massa de
europeus se tornou uma opção menos viável, uma parcela
da maciça quantidade de africanos que eram escravizados
por outros africanos passou a ser transferida aos europeus.
O racismo nasceu dessa situação, mas não explica a
escravidão, a qual o precedeu por séculos. No entanto, a
impressão transmitida por muitos entre a intelligentsia é de
que o racismo explica o motivo pelo qual os brancos
escravizaram os negros. É uma impressão que se alinha
intimamente com a visão predominante, que a explora ao
máximo - deixando o resto da história sobre a escravidão
mundo afora de lado, o que faz com que a visão
predominante pareça plausível.
O imperialismo tem sido abordado da mesma forma
pela maior parte dos membros da intelligentsia, como um
mal que está restrito à "nossa sociedade". Mas é impossível
ler sobre a história do mundo, antiga ou moderna, sem se
deparar com o rastro sangrento de conquistadores e os
sofrimentos que infligiram sobre as populações
conquistadas. Como a escravidão, o imperialismo abarca
todos os povos da raça humana como conquistadores e
conquistados. Foi um mal que nunca foi, de fato, isolado,
apesar de todo o esforço, por parte dos intelectuais, em
retratarem alguns povos como nobres vítimas - mesmo às
vésperas de essas alegadas vítimas assumirem o papel de
algozes quando tiveram a chance, como muitos povos
fizeram depois que o direito de "autodeterminação" dos
povos de Woodrow Wilson levou as minorias oprimidas dos
desmembrados impérios Otomano e Habsburgo a
adquirirem suas próprias nações, nas quais uma das
primeiras preocupações foi com a opressão de outras
minorias, que passaram a viver sob o jugo de novos
senhores.
No entanto, a história das conquistas é hoje contada
de forma desproporcionalmente desfavorável aos europeus,
vistos como brutais conquistadores a submeter inocentes
povos nativos, esses últimos retratados com frequência
como "vivendo em harmonia com a natureza" ou alguma
outra versão do que Jean-François Revel denominou
acertadamente de "lírica da mitologia do Terceiro Mundo".
[830] Essa localização do mal é tornada plausível pelo fato de

os europeus terem, nos últimos séculos, mais riqueza,


tecnologia e poder de fogo do que qualquer outro povo
havia acumulado durante milhares de anos. Porém, os
europeus nem sempre estiveram na vanguarda da
tecnologia, nem sempre foram mais ricos do que outros
povos - durante os séculos que precederam o despontar da
Europa no palco mundial, milhões de europeus foram
subjugados por conquistadores e invasores vindos da Ásia,
do Oriente Médio e da África do Norte.
Foram séculos de luta para que a Espanha finalmente
expulsasse o último de seus conquistadores que vieram do
norte da África - no mesmíssimo ano em que enviava
Cristóvão Colombo na viagem que abriria todo um novo
hemisfério para ser conquistado por espanhóis e por outros
europeus. Tanto a escravidão quanto a conquista brutal já
eram comuns no hemisfério ocidental muito antes de os
navios de Colombo surgirem no horizonte. Na verdade, o
aparecimento da ideia de que a conquista é, per se, uma
prática condenável - assim como a escravidão -,
independentemente de quem a tenha feito, foi longamente
gestada como corolário de um senso de universalismo que
foi lançado de forma pioneira pela civilização ocidental. No
entanto, essa história é também, hoje, colocada de ponta-
cabeça ao se descreverem os traços peculiarmente nefastos
do Ocidente, apresentado, de forma ontológica e não
incidental, como o culpado que precisa reparar suas
ofensas.
◆ ◆ ◆

A PROPAGAÇÃO DA VISÃO
Uma pesquisa sobre todas as outras questões nas
quais a mesma distorção foi feita pelos intelectuais, seja na
história, seja em relação aos eventos contemporâneos,
preencheria volumes. O que é mais importante, essas coisas
entulham o material de estudo de nossas escolas e de
nossas faculdades.
A ideologia dominante do principal sindicato de
professores dos Estados Unidos - a NEA - é muito parecida
com a ideologia dos sindicatos dos professores franceses
que passaram muitos anos sabotando os esforços de defesa
nacional por toda uma geração de estudantes franceses,
igualando coragem com belicosidade e transformando a
história dos heróis que salvaram o país dos invasores da
Primeira Guerra Mundial numa história em que todos, de
ambos os lados, foram meras vítimas, nivelando assim as
tropas inimigas que buscaram devastar e subjugar a nação.
Imperfeições ou ineficiências raramente destroem
uma nação. Mas a desintegração de seus laços sociais e a
desmoralização da confiança e da aliança de seu povo
podem, no entanto, ocasionar sua destruição. Os
intelectuais contribuem em grande parte para ambos os
processos. Ao colocarem grupo contra grupo e ao verem
arbitrariamente inumeráveis situações sob o prisma de
"raça, classe e gênero", estabelecendo padrões
inalcançáveis de "justiça social" e impondo objetivos de
reparação histórica, os intelectuais garantem a criação de
uma situação interminável de conflito interno, prefigurando
o desmantelamento de qualquer sociedade, a qual é
sequestrada por uma intelligentsia e sua cruzada,
submetendo um público que aceita, passivo, a visão que os
intelectuais têm da sociedade e de si mesmos. Enquanto
pressuposições apressadas forem aceitas como
conhecimento e a pura retórica for considerada idealismo,
os intelectuais continuarão a triunfar em se projetarem
como vanguardistas de uma "mudança" genérica - de cujas
consequências eles continuarão a não prestar contas.
A intelligentsia alterou as grandes realizações e as
recompensas de alguns membros da sociedade, as quais
funcionavam como inspiração para muitas pessoas,
transformando tais ganhos em fonte de ressentimento e de
ofensas para com terceiros.
A intelligentsia desconsidera e ignora as coisas que
tornam os norte-americanos uma liderança no mundo -
incluindo a filantropia, a tecnologia e a criação de remédios
que salvam vidas -, tratando os erros, os defeitos e as
deficiências que os norte-americanos compartilham com os
seres humanos por todo o mundo como defeitos especiais
de "nossa sociedade ".
Ela encoraja as pessoas que com nada contribuem
para o mundo a reclamarem e organizarem protestos
porque os outros não estão fazendo o suficiente por elas.
Justifica a prática do crime por aqueles que preferem
se ver como azarados lutando contra um "sistema"
opressivo, mesmo quando eles são universitários
provenientes de famílias abastadas.
A intelligentsia transformou, tanto nos Estados Unidos
quanto na França, verdadeiros heróis militares que
colocaram e colocam a própria vida em risco por seu país
em vítimas de guerra, pessoas pelas quais alguém pode
sentir pena, mas que não inspiram ninguém.
Nas escolas e nas faculdades a intelligentsia alterou o
papel da educação, que é de equipar os alunos com o
conhecimento e as habilidades intelectuais para que
possam avaliar as questões e alcançarem independência
mental, transformando a educação em processo de
doutrinação, com as conclusões já fornecidas pelo
intelectual ungido.
Eles colocaram pessoas cujos trabalhos criam bens e
serviços que mantêm um crescente padrão de vida para
todos no mesmo plano das pessoas que se recusam a
trabalhar, mas são retratadas, não obstante, como
autorizadas a receber a sua "devida parte" do que outros
criaram - e essa autorização é dada sem nem sequer
considerar se eles preservam a decência nas ruas ou nos
parques.
A intelligentsia tem tratado as conclusões de sua
visão como axiomas a serem seguidos, em vez de hipóteses
a serem testadas.
Alguns membros da intelligentsia tratam a própria
realidade como subjetiva ou ilusória, colocando, portanto,
os modismos e as tendências intelectuais atuais no mesmo
plano dos conhecimentos comprovados e da sabedoria
cultural destilada pela experiência de gerações.
Os intelectuais dão às pessoas que já têm a
desvantagem da pobreza outra desvantagem adicional: a de
que são vítimas.
Eles agem como se fossem sujeitos ungidos,
detentores do privilégio exclusivo de decidir quais
segmentos da sociedade devem ser favorecidos, quais
seriam as pessoas autorizadas a realizar associações e
quais não estariam autorizadas, quais pequenos riscos as
pessoas estariam proibidas de contrair e a quais riscos bem
maiores estão liberadas.
Eles romantizaram culturas que deixaram seus povos
atolados na pobreza, na violência, na doença e no caos, ao
mesmo tempo que vilipendiam culturas que trouxeram
prosperidade, avanços médicos, lei e ordem ao mundo. Ao
fazer isso, eles frequentemente desconsideram ou filtram o
fato de que multidões de pessoas fugiam das sociedades
romantizadas pelos intelectuais, indo viver nas sociedades
que eles condenavam.
A intelligentsia é muito hábil em encontrar todo tipo
de desculpas para o comportamento criminoso, ao mesmo
tempo que é igualmente apta para imputar má conduta à
polícia, mesmo quando discutindo questões sobre as quais
não têm qualquer conhecimento técnico nem experiência,
como acontece com o problema das trocas de tiro.
Eles encorajam os pobres a acreditarem que sua
pobreza é culpa dos ricos, uma mensagem que pode
representar um incômodo passageiro para o rico, mas que
se torna desvantagem duradoura para o pobre, que pode,
com isso, não ver a necessidade de fazer mudanças
fundamentais em sua própria vida, as quais poderiam
melhorar sua condição socioeconômica, em vez de focar
seus esforços para prejudicar os outros.
Os membros da intelligentsia têm agido como se sua
ignorância sobre o motivo pelo qual algumas pessoas têm
rendas muito altas fosse razão para se acreditar que esses
rendimentos sejam suspeitos ou tidos como inaceitáveis.
A absoluta falta de senso crítico de muitos intelectuais
é vastamente verificável, mostrando-nos os contrastes, de
maneira grotesca, entre as noções que defendem e as
realidades do mundo que os cerca. Por exemplo, em 1932
muitos intelectuais norte-americanos de destaque se
pronunciaram publicamente para que as pessoas votassem
no partido comunista dos Estados Unidos, e muitos outros
notórios intelectuais, nas democracias ocidentais em geral,
mantiveram, durante toda a década de 1930, a ideia de que
o modelo da União Soviética representava uma opção
melhor diante do capitalismo dos Estados Unidos, numa
época em que as pessoas estavam de fato morrendo de
fome aos milhões na União Soviética e muitas outras eram
enviadas aos campos de trabalho forçado.
A noção de que uma política de desarmamento e de
concessões seria a única forma de evitar a guerra
sobreviveu à realidade de que foram precisamente esses
tipos de políticas que levaram à deflagração da guerra mais
catastrófica de todos os tempos. As mesmas políticas foram
restabelecidas pela intelligentsia durante a primeira
geração nascida depois daquela guerra e proclamadas com
igual zelo, senso superior de justiça e demonização de todos
os que ousassem pensar que uma abordagem diferente
representaria melhores chances de preservar a paz.
Também não houve muita reconsideração quando políticas
exatamente opostas levaram ao fim da Guerra Fria.
Os intelectuais buscam - em questões que
compreendem um espectro que abrange desde políticas
habitacionais até a legislação que regulamenta o
transplante de órgãos - apropriar-se das decisões que
deveriam ser tomadas pelas pessoas diretamente
envolvidas, as quais têm conhecimento e correm riscos
pessoais concretos, transferindo-as para terceiros que não
têm essas duas características e não pagarão preço algum
por seus erros.
Eles têm praticado a filtragem de informação na
mídia, nas escolas e nas universidades, deixando de lado
tudo que ameaça sua visão de mundo.
Acima de tudo, eles se exaltam e denigrem a
sociedade na qual vivem, jogando seus membros uns contra
os outros.
◆ ◆ ◆

RESUMO E IMPLICAÇÕES
As características dos intelectuais e os papéis que
buscam desempenhar se misturam. Isso se aplica tanto aos
próprios intelectuais - as pessoas cuja ocupação é a
produção de ideias como produto final - quanto à
intelligentsia como um todo, incluindo a grande zona
cinzenta formada por aqueles cuj as visões refletem as
visões dos intelectuais.
A revelação preferida da intelligentsia - seja o tema
específico ligado à criminalidade, seja à economia ou a
outras coisas - não é somente se mostrar conspicuamente
diferente da sociedade em geral, mas também, e quase
axiomaticamente, superior à sociedade tanto intelectual
quanto moralmente ou ambas as coisas. Sua visão de
mundo não é apenas uma visão de transformação do
mundo, mas é sobretudo a visão que eles têm de si
mesmos, pois se fazem em vanguarda autoungida,
conduzindo os outros para um mundo melhor.
Aqueles cujas ideias específicas ou visão geral são
diferentes -os ignorantes - são geralmente tratados como
elementos desprezíveis, meros obstáculos ao progresso,
incômodos que podem ser desconsiderados, contornados ou
desacreditados, em vez de ser tratados como pessoas que
participam do mesmo plano moral e intelectual, cujos
argumentos podem ser avaliados factual e racionalmente. O
uso disseminado e casual de frases como "ele simplesmente
não entende" revela uma preferência para se evitar um
confronto em termos iguais, o que significaria abrir mão de
uma parte da visão do intelectual ungido. Códigos de
discurso nas faculdades, repletos de critérios subjetivos e
geralmente provisões "reeducadoras" para aqueles que
expressam opiniões ignorantes, enfatizam a mesma
preferência nas instituições acadêmicas onde os intelectuais
têm o máximo controle direto.
Talvez o mais importante de tudo, a visão do
intelectual ungido representa um imenso investimento do
ego em um conjunto particular de opiniões e, portanto, um
grande obstáculo para uma eventual reconsideração dessas
opiniões sob a luz da evidência e da experiência. Ninguém
gosta de admitir que esteve errado, mas poucos são
aqueles que se comprometeram tão completamente com
um conjunto de crenças, como é o caso do intelectual
ungido, e que têm tão poucos incentivos para reconsiderar
as questões adotadas. Por exemplo, a brutalidade com que
o intelectual ungido ataca seus adversários e a virulência
com que eles se prendem às suas crenças, em desafio à
crescente evidência contra as "causas de base" da
criminalidade e outras teorias sociais, são claras evidências
sobre esse grande investimento pessoal em um conjunto de
opiniões sociais e políticas.
Os intelectuais não têm o monopólio do dogmatismo e
do ego ou do poder em racionalizar. Mas as restrições
institucionais que se colocam diante das pessoas nos
campos dos negócios, da ciência, dos esportes, dentre
muitas outras áreas, confrontam-nas com altos e
geralmente ruinosos custos em se persistir em ideias que
não funcionam na prática.[831]
De forma semelhante, a história de crenças
predominantes entre cientistas que se viram obrigados a
abandoná-las diante de evidências contrárias tem um papel
central em toda a história da ciência. No mundo dos
esportes, seja profissional ou colegial, nenhuma teoria ou
crença pode sobreviver a derrotas incessantes e nem
sobreviverá a elas qualquer diretor de clube ou treinador.
Tais restrições inescapáveis não fazem parte do
repertório das pessoas cujos produtos são ideias que
encontram apenas a validação de seus pares ideológicos.
Isso vale especialmente para os intelectuais acadêmicos, os
quais controlam suas próprias instituições e selecionam
seus colegas e seus sucessores. Nenhum professor que
goza de estabilidade profissional pode ser demitido porque
votou na implantação de políticas para o campus
universitário, que se verificaram econômica ou
educacionalmente desastrosas para sua faculdade ou para
toda a universidade, ou defendeu políticas que se tornaram
catastróficas para a sociedade como um todo.
Essa falta de prestação de contas para com o mundo
real não é fruto do acaso, mas compreende um princípio
profundamente enraizado cujo santuário recebe o nome de
"liberdade acadêmica". Da falta de prestação de contas
para o comportamento irresponsável é preciso apenas um
pequeno passo. Outros membros da intelligentsia, incluindo
tanto a mídia de noticiário quanto a mídia do
entretenimento, da mesma forma também dispõem de uma
ampla latitude em relação à validação do que dizem, tendo
como sua principal restrição a capacidade de atrair público
e audiência, seja com verdades ou falsificações, seja
produzindo efeitos construtivos ou destrutivos sobre a
sociedade como um todo.
De forma semelhante ao que acontece quando as
tartarugas recém-nascidas se dirigem instintivamente para
o mar, aquelas pessoas cujos produtos finais são ideias
tendem a gravitar em torno de instituições onde suas ideias
ficarão menos sujeitas aos perigos do descrédito factual.
Somando-se às instituições acadêmicas e à mídia, a
intelligentsia tende a gravitar em direção às organizações
não lucrativas em geral e a fundações em particular. O
dinheiro necessário para sustentar essas fundações
depende, em primeiro lugar; de discursos convincentes - um
dos talentos fundamentais da intelligentsia - que permitem
que as doações continuem a afluir, seja por meio de
alarmes sobre iminentes desastres, seja por meio de
promessas de "soluções" sociais.
Fundações com fundos próprios não precisam sequer
da modesta obrigatoriedade de atrair doações para sua
sobrevivência, de forma que podem perseguir a visão dos
que comandam essas fundações, sem precisar se preocupar
com mais nada além de influenciar o público da forma que
mais agrade seus agentes e a fim de conquistar a
aprovação de seus pares.
Esses lugares nos quais os intelectuais gravitam com
grande frequência tendem a ser locais onde o puro intelecto
faz toda diferença e onde a sabedoria não se faz necessária,
uma vez que são poucas as consequências a serem
enfrentadas ou os preços a serem pagos toda vez que ideias
promissoras se tornam verdadeiros desastres para a
sociedade em geral.
Embora sejam poucas as restrições que limitam o
trabalho da intelligentsia, o papel que aspiram
desempenhar na sociedade em geral só pode ser
conquistado por seus membros na medida em que o
restante da sociedade aceite passivamente o que a
intelligentsia diz, fracassando na avaliação de seu histórico.
Apesar das formidáveis armas que a intelligentsia tem à
disposição em suas cruzadas para a conquista da
hegemonia cultural, moral e ideológica, seus membros nem
sempre conseguem neutralizar as forças contrárias dos
fatos, da experiência e do senso comum. Isso é
especialmente verdadeiro no caso dos Estados Unidos, onde
os intelectuais nunca receberam o mesmo tipo de
deferência que há tanto tempo recebem na Europa, assim
como em outras partes do mundo. No entanto, mesmo entre
os norte-americanos, a constante intrusão de políticas, de
práticas e de leis baseadas nas noções e nas ideologias
predominantes entre a intelligentsia tem estreitado sem
cessar o campo de liberdades tradicionalmente gozadas
pelas pessoas comuns na condução da própria vida, e
criado muito menos espaço para que as pessoas tenham
voz nas políticas de governo.
O desprezo que os intelectuais têm pela realidade
objetiva e por seus critérios estende-se para além dos
fenômenos sociais, científicos e econômicos, abarcando os
campos das artes, da música e da filosofia. A única
consistência que permeia todas essas atividades díspares é
a autoexaltação dos próprios intelectuais. Diferentemente
das grandes realizações culturais do passado, como
magníficas catedrais construídas para inspirar tanto os reis
quanto os camponeses, a marca registrada das
autoconscientes arte e música "modernas" é seu caráter
inacessível ao grande público, e geralmente até certa
hostilidade deliberada ou mesmo uma ridicularização do
público.
Assim como um corpo orgânico pode continuar a
viver, apesar de abrigar certa quantidade de micro-
organismos cuja predominância o destruiria, da mesma
forma uma sociedade pode sobreviver a certa quantidade
de forças de desintegração que a compõem. Porém, isso é
muito diferente de dizer que não existem limites para a
quantidade, a audácia e a ferocidade com que essas forças
de desintegração agem sobre uma sociedade para que ela
continue a sobreviver sem ao menos ter a vontade de
resistir.
◆ ◆ ◆

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