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COLEÇRO

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T h ornas S owe 11 cuttunnL

os INTELECTUAIS
EA SOCIEDADE
Impresso no Brasil, dezembro de 20 1 1

Título original: Intellectuals and Society


Copyright © 2009 by Thomas Sowell.
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I 1 25

C a p ít u l o 4 I Os I n telect u a is e a s Visões d e
Sociedade

No âmago de todo código moral encontra-se uma i magem da natureza


humana, um mapa do universo e uma versão da história . Nessa natureza
humana (concebida), nesse u niverso (imaginado) e nessa histó ria (compreen­
dida), aplicam-se as reg ras do código.
Wa/ter Lippmann '

Os intelectuais não dispõem apenas de opiniões isoladas sobre


uma variedade de assuntos. Por trás de suas opiniões, gera lmente se
encontra alguma forma de concepção articulada sobre o mundo, uma
visão social. Assim como as outras pessoas, quando se trata de visões
gerais sobre o funcionamento do mundo, os intelectuais têm um senso
intuitivo sobre o que está em relação causal com o quê. A visão à qual
a maioria dos intelectuais de nossos dias tende a aderir tem caracterís­
ticas muito próprias, que a distingue de outras visões predominantes
em outros segmentos da sociedade contemporânea e pretérita, tanto
em relação às elites quanto em relação às massas.
Essas visões distintas, cada uma ao seu modo, fundamentam os
esforços explicativos tanto dos fenômenos físicos quanto dos sociais,
anunciados por intelectuais ou por outros. Algumas visões são mais
arrebatadoras e dramáticas que outras, assim como diferem em suas
hipóteses fundadoras. Contudo, todos os tipos de pensamentos dessa
natureza, formais ou informais, têm como ponto de partida alguma

1 Walter Lippmann, Public Opinion. Nova York, The Free Press, 1 965, p. 80.
Os I ntelectu ais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

espécie de pressentimento, uma suspeita ou algum tipo de intuição


estruturante cuj a aplicação gera uma visão e estabelece conexões
ca usais. A análise sistemática de uma visão, em suas implicações,
pode produzir uma teoria que poderá, por sua vez, ser refinada em
hipóteses específicas, as quais serão testadas empiricamente. Toda­
via, "a ideia preconcebida e supostamente 'não científica' estará qua­
se sempre lá " , como afirma o historiador britânico Paul Johnson. 2
O economista ]. A. Schumpeter definiu essa visão primeira como
" ato cognitivo pré-analítico " .3
Assim, qual seria então a visão predominante que estrutura
o pensamento da intelligentsia, compreendendo não só o n úcleo
mais central dos intelectuais do primeiro escalão, mas também
uma periferia formada por uma sombra de seguidores que gravi­
tam em torno dos grandes intelectuais ? E qual seria a visão alter­
nativa a se opor a eles ?

CONFLITO DE VIS Õ ES

No coração da visão social dos intelectuais contemporâneos se


assenta a crença na existência de " problemas ", criados pelas institui­
ções existentes. " Soluções " para esses problemas podem, todavia, ser
excogitadas pelos intelectuais. Essa é uma visão que abarca tanto a
sociedade quanto o papel dos intelectuais dentro dela . Portanto, os
intelectuais não se veem simplesmente como uma espécie particular
de elite, em seu sentido passivo, como grandes proprietários ou donos
de diversas sinecuras que se qualificam como membros de uma elite,
mas como elite ungida, como portadores da missão de guiar os outros
para a realização de uma vida melhor.

2 Paul Johnson, Enemies of Society. Nova York, Atheneum, 1 9 77, p. 1 45.


3 Joseph A. Schumpeter, History• of Economic Analysis. Nova York, Oxford

University Press, 1 954, p. 4 1 .


1 26 1 1 2 7

John Stuart Mill, que encarnou o intel ectual típico, expressava


explicitamente essa visão ao dizer que o " estado miserável da edu­
cação" e "o estado miserável dos arra njos sociais " representavam " o
único impedimento real " para obtenção d a felicidade gera l entre os
seres humanos.4 Além do mais, Mill via na in telligentsia " os intelectos
mais cultivado s do país " , "as mentes p ensan tes " , " os mel hores e mais
sábios " como genuín os guias para u m mu ndo melhor, pois consti­
tuíam " a vanguarda do pensamento e do sentimento na sociedade" .5
O papel da intellige1ttsia tem sido exat amen te esse, tanto antes quan­
to depois da época de Mill. São consi derad os líderes intelectuais por
excelência, cuj os pro fundos insights podem libertar as pessoas das
restrições desnecessári as da sociedade.
A famosa declaração de Jean-Jacq ues Rousseau: " O homem nas­
ceu livre e por toda pa rte se encontra a correntado" , 6 é a síntese magis­
tral da visão do intelectual ungido. S egunda ela, as restrições sociais
são causa fund adora de toda infelicida de hu mana e explicam por que
o mundo que nos rodeia difere, grande mente , do mundo em que gosta­
ríamos de viver. Nessa visão, opressão, pobr eza, inj ustiça e guerra são
resultados das instituições existentes, p roble mas cujas soluções exigem
a mudança das instituições, o que, p or sua vez, implica a muda nça
das ideias que ampara m, na base, ess as instituições. Portanto, os ma­
les da sociedade são vistos fundamentalme nte como um problema de
ordem moral e intelectual, para a extinção dos quais os intelectuais es­
tão especialmente eq uipados devido a o maio r conhecimento e insight
que possuem. Uma alegada não partici paçã o em quaisquer operações

4 ]ohn Stuart Mill, "Utilitarianism". In: Co llected Works of.lohn Stuart Mil/.
Toronto, University of Toronto Press, 1 96 9 , v. X, p. 2 1 5 .
5 Idem, " De Tocqueville o n Democracy in Ameri ca [I] " . In: Ibidem. Toronto,
University of Toron to Press, 1 977, v. XVIII, p . 86; idem, "Civi lization " . In:
Ibidem, p . 1 2 1 , 1 3 9; idem, "On Liberty" . I n : Ibi dem, p. 222.
6Jean-Jacques Rousseau, The Social Contra ct. Tra d . Maurice Cranston . Nova
York, Penguin Books, 1 968, p. 49.
Os Intelectua is e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

envolvendo interesses econômicos particulares, que os colocaria a fa­


vor da ordem existente e a bafaria a voz de suas consciências, é tam­
bém tida como qualidade intrínseca aos intelectuais.
Em geral, são as diferenças socioeconômicas entre pessoas nascidas
em circunstâncias sociais distintas que, há muito tempo, emergem como
tema central para o pensamento social dos intelectuais ungidos. Os con­
trastes gerados entre a extrema pobreza de uns e o luxo extravagante de
outros, somando-se aos contrastes igualmente chocantes de status social
entre as pessoas, compreendem as questões que dominam a agenda e os
interesses dos que compartilham a visão do intelectual ungido. Dentro
do espectro social, fontes mais gerais de infelicidade entre as pessoas,
como, por exemplo, problemas psicológicos advindos de estigmas so­
ciais e os horrores e traumas de guerra, também se encontram entre os
problemas de cujas soluções os intelectuais são portadores.
Tal visão sobre a sociedade, na qual temos muitos "problemas"
que devem ser "resolvidos " na adoção das ideias das elites intelectuais
moralmente ungidas não é, de forma alguma, a única visão possível,
embora sej a, hoje, a visão largamente predominante. Outra visão co­
existe, há séculos, com a visão dos intelectuais ungidos. É uma visão
contrária, na qual são os defeitos inerentes aos seres humanos que
são vistos como os problemas fundamentais. Portanto, as restrições
sociais são tidas, por sua vez, simplesmente como meios imperfei­
tos para se lidar com esse problema fundamental: os defeitos e as
restrições dos seres humanos. Um acadêmico especializado em estu­
dos clássicos contrastou as visões modernas adotadas pelo intelectual
ungido com "o quadro sombrio" , apresentado por Tucídides, sobre
" uma raça humana que escapou do caos e da barbárie ao preservar,
com grande dificuldade, uma fina camada de civilização " , basean­
do-se na "moderação e prudência " , as quais nascem da experiência .7

7Donald Kagan, On the Origins of War and the Preservation o{ Peace. Nova
York, Doubleday, 1 9 95, p. 4 1 4 .
1 28 1 1 2 9

Essa é a visão trágica sobre a condição humana, muito distinta da


visão adotada pelo intelectual ungido.
" Soluções " não são esperadas pelos que consideram muitas das
frustrações, doenças e anomalias da vida - o aspecto trágico da con­
dição humana - algo que está diretamente relacionado às inerentes
restrições dos seres humanos, tanto individual quanto coletivamente,
espiritual ou fisicamente. É uma visão contrastante à visão do intelec­
tual ungido de nossos dias, nos quais a sociedade existente é ampla­
mente discutida a partir de suas insuficiências, as quais precisam ser
corrigidas pelas melhorias oferecidas pelos intelectuais. Em contra­
partida, a visão trágica considera a própria civilização algo que neces­
sita de grandes e constantes esforços para que possa ser meramente
preservado. Esses esforços são tratados como experiências reais e não
como novas teorias "entusiasmantes " .
N a visão trágica, o barbarismo está sempre à espreita. A civiliza­
ção é vista como " delicada camada a recobrir um vulcão " . Essa visão
tem poucas soluções a oferecer, mas sobram-lhe muitas e mu itas ne­
gociações dolorosas. Comentando as referências de Felix Frankfurter
sobre o sucesso das reformas, Oliver Wendell Holmes queria saber o
quanto elas custaram, qual fora o preço das negociações envolvidas.
Ele perguntava, ao se promover a sociedade em certo aspecto, "como
saberei se não estou afundando, ainda mais agudamente, a mesma
sociedade, em outro aspecto" . 8 Essa visão cautelosa é, portanto, ti­
pic amente uma visão trágica, não no sentido de acreditar que a vida
deva ser sempre triste e sombria, pois há muita felicidade e realização
a serem alcançadas dentro de um mundo com limites. Ela é trágica
na forma em que enxerga as restrições humanas, as quais não podem
ser superadas meramente pela compaixão, pelo comprometi mento ou

8 Mark DeWolfe Howe (ed.), Ho lmes-Laski Letters: The Correspondence o(


Mr. ]ustice Holmes and Harold]. Laski 1 9 1 6- 1 935. Cambridge (Mass.), Har­
vard University Press, 1 953, v. l , p. 1 2 .
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

por outras virt udes que os intelectua is ungidos alegam defender ou


atribuem a si próprios.
Na visão trágic a , os impedimentos sociais buscam frear com­
porta mentos que geram infelicida de, muito embora os próprios
impedimentos tenham seu custo e causem certa quantidade de
infelicidade. É uma visão que comporta negociações , em vez de
soluções, baseando-se na sa bedoria que é destilada da experiên­
cia de muitos, em vez de se apoiar no brilhantismo de alguns .
O conflito gerado entre essas duas visões contrastantes tem sécu­
los de existência .9 Os participantes da visão trágica e os da visão
do intelec tual ungido não se difere nciam apenas em suas práticas
e agendas políticas, mas diferem de forma radical, pois a dotam
concepções de mundo completamente distintas. Além do mais, ao
falarem das criaturas que residem neste mundo, tratam de reali­
dades radica lmente diferentes, mesmo q ue ambos se refiram a elas
como seres h umanos, pois o entendimento que os participantes
das d uas visões têm sobre a natureza deles é também fundamen­
talmente distinto. 10
Na concepção cautelosa da visão trágica, encontramos limites
especialmente severos sobre o qua nto um indivíduo qualquer pode
saber e verda deiramente compree nder as coisas, o que explica por
que se coloca tamanha ênfase nos processos sistêmicos, cujas tran­
sações se apoiam no conhecimento e na experiência acumulada de
milhões, tanto do passado quanto do presente . Todavia, na visão
do intelectual ungido, quantidades muito maiores de conhecimento
e de inteligência estão disponíveis para uma minoria especial, e a
diferença entre esta e as massas é tida como muito maior do que a
que encon tramos na visão trágica . 1 1

9 Ver meu li vro A Conflict of Visions. 2. ed. Nova York, Basic Books, 2007.
10 9 - 1 7, 1 66-67, 1 9 8-99.
I bidem, p.
11
Ibidem, p. 1 47-53.
1 30 I 1 3 1

Essas visões contrastantes não diferem somente no que acreditam


existir e no que pensam a respeito do possível, mas também no que
pensam sobre o que precisa ser explicado. Para os integrantes da visão
do intelectual ungido, são males como pobreza, crime, guerra e injusti­
ça social que precisam ser explicados, mas para os integrantes da visão
trágica são coisas como prosperidade, lei, paz e justiça alcançadas que
requerem não apenas explicação, mas esforços constantes, negociações
e sacrifícios para serem preservadas. Isso é visto como mais vital do
que seus aperfeiçoamentos ao longo do tempo. Por exemplo, enquan­
to os integrantes da visão do intelectual ungido buscam as causas da
guerra, 1 2 os da visão trágica dizem coisas do tipo "Nenhuma situação
de paz se sustenta por si própria " , 1 3 pois sabem que a paz "se realiza
mediante equilíbrio instável, o qual pode ser preservado apenas por
meio de uma supremacia reconhecida ou pela igualdade de poderes " , 1 4
e que uma nação "desprezível pela sua fraqueza perde até mesmo o
privilégio de ser neutra " , 15 sabem que "em geral as nações farão guerra
sempre que tiverem uma perspectiva real de ganhos " . 1 6
A visão trágica é um tipo de visão sobre o mundo e sobre os seres
humanos um tanto quanto crua. Ela não toma nenhum dos benefícios
da civilização como garantia e não supõe que podemos dar como
líquida e certa a permanência daquilo que já temos, lançando-nos

12
Ver, por exemplo, William Godwin, Enquiry Conce rn ing Political Justice
and Its Influence on Morais and Happiness. Toronto, University of Toronto
Press, 1 946, v. 2, cap. XVI; John Dewey, Human Nature and Conduct: An ln­
troduction to Social Psychology. Nova York, Modem Library, 1 957, p. 1 1 4-
15; Bernard Shaw, The Intelligent Woman s Cuide to Socialism and Capital­
'

ism. Nova York, Bretano's Publishers, 1 928, p. 1 5 8 -60.


1 3 Donald Kagan, On the Origins of War and the Preservation of Peace, p. 2 1 2.
14 Wil l e Ariel Durant, The Les sons of History. Nova York, Simon and Schus­
ter, 1 968, p. 8 1 .
H Alexander Hamilton et ai., The Federalist Papers. Nova York, New Ameri­

can Library, 1 96 1 , p. 87.


16 Ibidem, p. 46.
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectua is e as Visões de Sociedade

despreocupadamente às melhorias sem antes estudar, a cada passo,


quais os riscos envolvidos, pesando o quanto essas i novações podem
danificar os próprios processos e princípios sobre os quais nossa exis­
tência atual e nosso bem-estar se apoiam. Não supõe que os irritantes
impedimentos e limites impostos sobre nós pelas regras sociais, desde
os preços até os estigmas, sejam culpa dos próprios limites. Acima de
tudo, não considera que teorias nunca antes tentadas detêm a mes­
ma credibilidade que instituições e práticas cuja própria existência
demonstra a habilidade que têm para sobreviver no duro mundo da
realidade, embora boa parte da realidade fique abaixo daquilo que
pode ser imaginado como um mundo melhor. Como afirma o profes­
sor Richard A. Epstein da Universidade de Chicago: " O estudo sobre
as instituições humanas é sempre uma pesquisa sobre as imperfeições
que se revelam mais toleráveis" . 1 7
Além da forma distinta como veem o mundo, as duas visões dife­
rem, fundamentalmente, na maneira como seus integrantes, em cada
uma delas, veem a si mesmos. Se você acreditar em coisas como livre
mercado, autoridade da lei, valores tradicionais, dentre outras carac­
terísticas que compreendem a visão trágica, então você será simp les­
mente alguém que acredita nessas coisas. Não existe qualquer senso
de exaltação pessoal resultante de crenças como essas. Mas, por outro
lado, ao lutar pela " j ustiça social " , " preservação do meio ambiente" e
" abolição das guerras " , um sujeito se identifica como participante de
algo muito maior, o qual transcende um simples conj unto de crenças
sobre fatos empíricos. Essa visão o coloca num patamar moral supe­
rior, como alguém preocupado e misericordioso, promotor da paz no
mundo, defensor dos oprimidos, alguém que luta por preservar a be­
leza da natureza e salvar o planeta da poluição perpetrada por outros
que não comungam a mesma consciência. Portanto, diferentemente

17 Richard A. Epstein, Overdose: How Excessive Government Regulation Sti­


fles Pharmaceutical lnnovation. New Haven, Yale University Press, 2006, p. 15.
1 32 I 1 33

da primeira, essa é uma visão que torna o sujeito alguém marcada­


mente especial, e essas visões não são simétricas.
Embora os conflitos gerados entre a visão trágica e a visão do in­
telectual ungido desemboquem em inúmeras discussões sobre as mais
variadas questões, artifícios retóricos sem qualquer base factual ou
analítica são criados ou, em outras palavras, temos a instauração de
argumentos sem prova.

ARGUMENTOS SEM PROVA

Embora alguns intelectuais estejam especialmente bem equipados


p ara se engajarem em debates logicamente estruturados, recorrendo
à evidência empírica na análise das ideias em disputa, muitas de suas
visões políticas ou ideológicas são, no entanto, embasadas em mero
virtuosismo retórico, o qual procura evitar, j ustamente, argumentos
estruturados em evidências empíricas. Dentre os muitos argumentos
desprovidos de prova, encontramos afirmações dizendo que as visões
contrárias são " simplistas" e que seus defensores não merecem crédi­
to por serem ingênuos, ignorantes, reacionários, dentre outros.

ARGUMENTOS " SI M P LISTAS "

Relacionando-se à suposta falta de valor dos oponentes, encon­


tramos a alegação de que certos argumentos não têm valor porque
são " simplista s " , porém isso não é apresentado como conclusão ad­
vinda de contraevidências ou contra-argumentos, mas os desconsi­
dera abertamente. Apesar de questionável do ponto de vista lógico,
essa é uma tática de debate muito eficiente. Ao lançar mão de um
termo depreciativo sobre seu adversário, o sujeito coloca-se num
p atamar intelectual superior sem oferecer, contudo, nada de su bs­
tantivo. Porém, é demonstrando, em vez de insinuando, que uma
Os Intelectuais e a Sociedade I Os l nteleduais e as Visões de Sociedade

explicação mais complexa é mais consistente logicamente ou mais


empiricamente válid a .
O fato d e determinado argumento ser mais simples que outro
não diz nada a respeito da validade empírica ou analítica de ambos.
Certamente, a explicação sobre muitos fenômenos físicos, como,
por exemplo, o sol se pondo no horizonte, faz-se mais simples ao
se usar o argumento de que a Terra é redonda, diferentemente das
explicações mais complexas, sobre o mesmo fenômeno, feitas pelos
membros da Sociedade da Terra Plana . Evasões do óbvio podem se
tornar muito complexas.
Antes de a explicação ser descartada por ser demasiadamen­
te simples, ela tem, em primeiro lugar, que estar errada. Mas, com
muita frequência, temos o caso de explicações que, por se parece­
rem muito simples, tornam-se especialmente vulneráveis às investidas
para se mostrar que está errada. Por exemplo, quando o professor
Orley Ashenfelter, economista da Universidade Princeton, começou
a antecipar os preços de marcas particulares de vinho, baseando-se
única e exclusivamente nas estatísticas climáticas, durante a época
de crescimento das vinhas, sem se preocupar em degustar vinhos ou
em consultar especialistas em vinhos, seu método foi sumariamente
descartado, por ser muito simplista, pelos conhecedores de vinho, um
dos quais se referiu à " bobagem implícita " 1 8 do método. No entanto,
as previsões do professor Ashenfelter têm se mostrado mais certeiras
do que as feitas pelos especialistas em vinho . 1 9
Somente depois que determinado método s e mostra equivocado é
que podemos chamá-lo de "simplista " . Por outro lado, o uso que se faz
de quantidades menores de informações, a fim de produzir conclusões

18
Ian Ayres, Super Crunchers: Why Thinking-by-Numbers Js the New Way to
Be Smart. Nova York, Bantam Books, 2007, p. 3 .
1 9 Ibidem, p. 1 -9. Ver também Mark Strauss, "The Grapes of Math " . Dis­
cover, j a n . 1 99 1 , p. 50-5 1 ; Jay Pa lmer, " Grape Expectations" . Barron 's,
3 0/1 2/1 996, p . 1 7- 1 9 .
1 34 1 1 3 5

válidas, mostra a maior eficiência da análise. Contudo, o uso indiscri­


minado do termo "simplista" acabou se tornando uma argumentação
amplamente usada toda vez que não se dispõe de provas concretas,
uma forma de desqualificar visões opostas sem a necessidade de con­
frontá-las com evidências ou análises.
No intuito de caracterizá-la de simplista, praticamente qualquer
resposta pode ser manipulada. Isso é feito ao se expandir indefinida­
mente a questão, englobando dimensões que fogem ao controle ex­
plicativo em questão para, então, insinuar-se inadequação, acusando
o argumento de simplista. Por exemplo, na década de 1 840, um mé­
dico a ustríaco apresentou estatísticas que mostravam uma diferença
substancial, verificada nos índices de mortalidade entre mulheres nas
clínicas de maternidade em Viena, quando eram examinadas por mé­
dicos que haviam lavado suas mãos antes de examiná-las e por mé­
dicos que não o tinham feito. Esse médico procurava impor a todos
os outros a obrigatoriedade de lavar as mãos antes de examinarem
as pacientes. Porém, sua sugestão foi rejeitada essencial mente por ser
simplista, fazendo uso de um tipo de argumento que está conosco
ainda hoje. Ele foi desafiado a explicar por que lavar a mão de alguém
afetaria a mortalidade das mulheres em trabalho de parto e, uma vez
que isso aconteceu antes de a teoria bacteriana ser desenvolvida e
aceita, ele não tinha como provar.20 Em poucas palavras, a questão
fora expandida a ponto de não poder ser respondida naquele estágio
do conhecimento, o que fazia qualquer resposta parecer "simplista " .
Todavia, a questão real não era s e aquele médico, o qual se baseava
em dados estatísticos, podia responder à questão mais ampla, mas se
a evidência mais pontual que ele indicava sobre a questão era válida
e se poderia, portanto, salvar vidas baseando-se apenas em fatos em­
píricos. O perigo em se cometer a falácia post hoc poderia ter sido
facilmente evitado ao se continuar a colher dados a fim de verificar

20
Ian Ayres, Super Crunchers, p . 82-83.
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

se o procedimento de lavagem das mãos, feito por outros médicos,


reduzia os índices de mortalidade das gestantes.
Hoje, aqueles que rej eitam uma ação policial mais contunden­
te, assim como a manutenção de punições mais severas como for­
mas eficientes de com bate à criminalidade, preferindo programas
e esforços de reabilitação social, frequentemente estigmatizam a
abordagem tradicional da " lei e da ordem " . Isso é feito, normal­
mente, ao se expandir a questão para que ela abarque " as raízes
do problema " , ou sej a , uma questão a que a ação policia l e o sis­
tema penal não podem responder. Tampouco, podem as teorias
a lternativas oferecer uma resposta que seja convincente para os
que exigem algo mais que uma resposta e cuj a única base está em
consonância com a visão da intelligentsia. A substituição de teo­
rias sedutoras pela questão mais pragmática e empírica sobre qual
abordagem, no controle da criminalidade, apresenta um histórico
mais eficiente é interpretada pela intelligentsia como uma maneira
muito simplista de ver as coisas.
Ironicamente, boa parte dos que enfatizam as complexidades dos
problemas e das questões do mundo real considera, no entanto, e com
frequência, as pessoas com visões opostas às suas como sujeitos in­
telectual ou moralmente desprezíveis. Em outras palavras, apesar de
toda ênfase colocada nas complexidades envolvidas, essas questões,
quando anunciadas por outros, não são consideradas complexas a
ponto de exigirem diferentes posições. São descartadas as muitas e
diferentes nuanças de avaliações, probabilidades e valores, as quais
poderiam, de forma legítima, gerar uma conclusão diferente.
Uma variação do tema sobre argumentos " simplistas" , impu­
tados aos adversários, é dizer que é preciso evitar as " panaceias" ,
quando, na realidade, nada é panaceia, caso contrário, por definição,
todos os problemas do mundo já teriam sido resolvidos. Quando,
durante o colapso do bloco comunista na Europa oriental, a impren­
sa mostrou a Tchecoslováquia celebrando sua liberdade, o colunista
1 36 1 1 37

do New York Times, Tom Wicker, alertou seus leitores dizendo que
a liberdade " não é uma panaceia e que se o comunismo falhou, não
s ignifica que a alternativa ocidental sej a perfeita ou mesmo satis­
fatória para milhões que vivem sob seu peso " .2 1 O fato histórico
concreto de milhões de pessoas que viviam sob as diretrizes do bloco
comunista e fugiram para o Ocidente, comparado ao fato de uma
fração ínfima de pessoas que fugiram no sentido inverso, pode nos
sugerir onde realmente havia maior nível de satisfação. Mas é claro
que nada que compreendeu estritamente o humano j amais alcançou
a perfeição e, assim, o fato de os intelectuais sempre poderem ima­
ginar algo melhor do que aquilo que existe de melhor não nos sur­
preende. Certamente, todavia, a visão de Tom Wicker não é a mesma
que a de Richard Epstein, para o qual o máximo que podemos espe­
rar é "a mais tolerável das imperfeições " . 22
Outro posicionamento parecido é o que afirma que nunca hou­
ve uma " era de ouro " . Isso é frequentemente colocado na boca de
pessoas que nunca alegaram que já houve tal coisa, mas que tendem
a pensar que algumas práticas do passado produziram resultados
melhores do que algumas práticas do presente. Em vez de oferecer
evidências que mostrem que as práticas atuais sempre produzem re­
sultados mais satisfatórios, "panaceias " e " eras de ouro " são usadas
para desqualificar argumentos contrários. Por vezes, a mesma noção
é expressa ao se dizer que não podemos ou não deveríamos " voltar
o relógio da história " . Mas, a menos que alguém aceite, como dog­
ma, que todas as medidas subsequentes em relação a uma data qual­
quer sej am automaticamente melhores do que o eram anteriormente
à data determinada, esse tipo de artifício revela ser uma evasão que
foge às especificidades das questões, ou sej a, mais um exemplo de
argumentação sem prova.

21
Tom Wicker, " Freedom for What ? " . New York Times, 0510 111 990, p. A3 1 .
22 Richard A. Epstein, Overdose, p. 1 5.
Os Intelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

A DVERSÁRIOS SEM MÉRITO

Na medida em que a visão do intelectual ungido é, ao mesmo


tempo, autocentrada e uma visão de mundo, quando os intelectuais
a defendem eles não estão simplesmente defendendo um conjunto de
hipóteses sobre eventos externos, mas estão, em certo sentido, de­
fendendo suas próprias almas e, em tais circunstâncias, o zelo e até
mesmo a violência com a qual defendem sua visão não é algo que de­
veria nos surpreender. Mas para pessoas com visões opostas, as quais
podem, por exemplo, acreditar que a maioria das coisas caminha me­
lhor quando deixada sob a ação do livre mercado, da tradição, das
famílias, etc., isso representa apenas um conj unto de hipóteses sobre
eventos externos e não há envolvimento gigantesco do ego em j ogo,
caso essas hipóteses sejam ou não confirmadas por evidências empíri­
cas. O bviamente, todos preferem ver suas hipóteses comprovadas, em
vez de desmentidas, mas o ponto aqui é que não há o mesmo nível de
envolvimento emocional no caso dos que endossam a visão trágica.
Essa diferença pode aj udar a explicar um padrão notável que
remete, pelo menos, aos meados do século XVIII. Falo da maior ten­
dência, entre os integrantes da visão do intelectual ungido, em avaliar
todos os que discordam de suas posições como inimigos moralmente
deficientes. Uma vez que existem variações individuais nesse padrão,
como existe variação de grau na maioria das coisas, temos, não obs­
tante, padrões gerais que já foram notados por muitos tanto em nossa
época quanto em períodos anteriores. Por exemplo, num relato con­
temporâneo lemos:

Discorde de um integrante da direita e o sujeito estará propenso a con­


siderá-lo obtuso, equivocado, tolo, ou seja, um asno. Discorde de um
integrante da esquerda e o sujeito estará ainda mais propenso a consi­
derá-lo egoísta, vendido, insensível, ou seja, possivelmente maligno.23

23 joseph Epstein, "True Virtue" . New York Times Magazine, 24/1 1/1 985, p. 95.
1 38 I 1 39

Defensores de ambas as visões, por definição, acreditam que


aqueles que defendem a visão contrária estão enganados. Mas isso
não é suficiente para os membros da visão do intelectual ungido. É
aceito como certo, há muito tempo, pelos que participam dessa visão,
que seus opositores são desprovidos de compaixão. No entanto, nun­
ca houve uma vontade real em testar tal impressão empiricamente.
Nesse sentido, desde o século XVIII a diferença entre os defensores
das duas visões se tornou explícita por ocasião da controvérsia entre
Thomas Malthus e William Godwin. Malthus dizia de seus adversá­
rios intelectuais o seguinte: " Não posso duvidar dos talentos indivi­
duais de homens como Godwin e Condorcet. Não estou inclinado a
duvidar da honestidade deles " .24 Contudo, quando Godwin se referiu
a Malthus, ele o chamou de " maléfico " , questionando a "humanidade
do homem" . Ele disse: " Confesso que desconheço a substância que
preenche um homem como esse " . 2 5
Edmund Burke foi figura emblemática entre os que tinham uma
visão trágica, mas, apesar de seus ataques incessantes sobre as ideias
e os feitos da Revolução Francesa, referia-se àqueles que adotavam
uma visão oposta à sua como pessoas que "podem vir a fazer as pio­
res coisas sem, contudo, serem os piores homens " .26 Seria difícil, para
não dizer impossível, encontrar afirmações semelhantes a respeito de
adversários ideológicos entre os integrantes da visão do intelectual
ungido, sej a no século XVIII ou hoje. Ainda assim, um julgamento
respeitoso para com adversários intelectuais, tratando-os como equi­
vocados ou mesmo perigosamente enganados, mas não necessaria­
mente malignos, continuou a ser prática comum entre os integrantes

24 Thomas Robert Malthus, Population: The First Essay. Ann Arbor, Univer­
sity of Michigan Press, 1 959, p. 3 .
25William Godwin, O f Population. Londres, Longman, Hurst, Rees, Orme
and Brown, 1 820, p . 520, 550 e 554.
26Edmund Burke, The Correspondence of Edmund Burke. Ed. R. B. Mc­
Dowell. Chicago, University of Chicago Press, 1 969, v. VIII, p . 1 3 8 .
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

da visão trágica. Quando Friedrich Hayek publicou, em 1 944, The


Road to Serfdom, seu emblemático desafio à preponderante visão
social da intelligentsia, disparando uma contrarrevolução intelectual
e política, posteriormente integrada por Milton Friedman, William
F. Buckley e outros intelectuais, além de políticos como Margaret
Thatcher e Ronald Reagan, ele caracterizava seus adversários como
" idealistas meramente tacanhos" e " autores cuj a sinceridade e cujo
desinteresse eram fortemente suspeitos " . 2 7
Todavia, a sinceridade de Hayek era suficiente para que os adver­
sários fossem considerados não apenas equivocados, mas perigosa­
mente equivocados, como foi ilustrado em sua visão ao dizer que eles
conduziam a sociedade ao "caminho da servidão" . De forma pareci­
da, em 1 945, mesmo em meio à campanha política, quando Winston
Churchill alertava sobre o risco de um governo a utoritário caso seu
adversário, o partido trabalhador, vencesse as eleições, ele completa­
va que isso não ocorreria porque seus adversários queriam reduzir
a liberdade das pessoas, mas porque " não enxergam para onde suas
te orias os estavam levando" . 28 Concessões semelhantes à sinceridade
e às boas intenções dos adversários podem ser encontradas em Milton
Friedman e em outros expoentes da visão trágica ou cautelosa. Mas
tal postura, em meio a seus adversários ideológicos, tem sido m uito
mais rara de se encontrar onde as supostas falhas morais e intelectuais
do adversário são cultuadas, caracterizando o modus operandi do in­
telectual ungido desde o século XVIII até o presente.29
A sinceridade e os sentimentos humanos são frequentemente
negados aos adversários ideológicos por aqueles que têm a visão
do intelectual ungido, em nome de várias j ustificativas, como, por

27 F. A. Hayek, The Road to Serfdom. Chicago, University of Chicago Press,


1 944, p. 55 e 1 85.
28
Winston Churchill, Churchill Speaks 1 897- 1 963 : Collected Speeches in Peace
& War. Ed. Robert Rhodes ]ames. Nova York, Chelsea House, 1 980, p. 866.
29 Ver meu A Conflict of Visions, 2. ed., p. 5 8-60, 256-60.
1 40 1 1 4 1

exemplo, por ser contrário ao estabelecimento de leis de salário mí­


nimo ou de controle sobre os preços dos aluguéis, posturas que são
interpretadas como reveladoras de uma absoluta falta de compaixão
para com os pobres. Todavia, as questões sobre a validade empírica
ou analítica de tais argumentos é deixada de lado. Mesmo que pu­
desse ser provado como certo que os adversários dessas e de outras
agendas "progressistas" são verdadeiros canalhas, ou mesmo pessoas
venais, isso ainda não constituiria resposta aos argumentos levanta­
dos por eles. Ainda assim, alegações que acusam oponentes ideológi­
cos de racistas, machistas, homofóbicos ou "incapazes de entender a
questã o " são geralmente empurradas pela intelligentsia, su bstituindo
refutações específicas sobre os argumentos discutidos.
"O que geralmente distingue os liberais ", segundo Andrew Hacker,
autor de grande sucesso, é que eles "já estão prontos a compartilhar
uma parte do que têm com outros menos afortunados do que eles " .30
Essa não é uma visão particular do professor Hacker. Muito antes de
seu nascimento já se refletia sobre uma opinião que se disseminara por
entre os membros da intelligentsia. Mas aqui, como em outros lugares,
o poder de uma visão é mostrado não pela evidência oferecida a favor,
mas precisamente pela falta de qualquer esforço em se procurar evidên­
cias, nesse caso a evidência de menor senso humanitário por parte dos
conservadores, os quais se opõem às agendas "progressistas" . Todavia,
um estudo realizado pelo professor Arthur C. Brooks, da Universidade
Syracuse, cujo intuito era aferir a extensão em que liberais e conserva­
dores doavam dinheiro, sangue e horas de serviço assistencial nos Esta­
dos Unidos para projetos filantrópicos, mostrou que os conservadores
doavam, em média, tanto um volume maior de dinheiro quanto uma
porcentagem também maior de suas rendas para causas filantrópicas,
e que suas rendas eram um pouco menores que a renda dos liberais.

30 Andrew Hacker, Two Nations: Black and White, Separate, Hostile, Un­
equal. Nova York, Charles Scribner's Son, 1 992, p. 52.
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

Os conservadores também cediam mais horas de seu tempo em traba­


lhos voluntários e doavam muito mais sangue.31
Isso certamente não prova que os argumentos dos conservado­
res em questões sociais ou políticas sejam mais válidos. Contudo, a
pesquisa nos mostra os enormes equívocos aos quais as pessoas estão
sujeitas toda vez que acreditam apenas no que se apresenta como
conveniente para sua visão, e não veem necessidade alguma em pas­
sar suas suposições pelo crivo das evidências empíricas. Antes que
se fizesse qualquer aferição empírica, a suposição de que os conser­
vadores seriam menos preocupados com o bem-estar das pessoas se
mostrou tão hegemônica e tão inquestionável por tanto tempo, lite­
ralmente por séculos, que fica difícil não admitir a força insidiosa da
manipulação ideológica.
De forma parecida, quando os integrantes da intelligentsia defen­
dem o desarmamento e os acordos internacionais, entre nações poten­
cialmente adversárias, como a única forma de garantir a paz entre elas
e são contestados pelos que adotam a visão trágica, os quais, por sua
vez, defendem o poder dissuasivo da força militar e as alianças mili­
tares, como forma eficiente de garantir a paz, essas posições distintas
são raramente vistas como simples diferenças hipotéticas sobre a po­
lítica internacional. Com frequência muito maior, os adoradores da
visão do intelectual ungido veem essas diferenças como claros sinais
a revelar os defeitos pessoais de seus adversários teóricos. Portanto,
os que acreditam no uso da força militar como eficiente instrumento
dissuasório, negando-se a endossar as políticas de desarmamento ou
os acordos internacionais, são descritos como pessoas que anseiam e
cultuam as guerras. Bertrand Russell, por exemplo, disse o seguinte:

Ao se d irigir a uma plateia de homens para falar sobre os meios de


se impedir a deflagração armada, pode ter certeza de que aparecerá

3 1 Arthur C. Brooks, Who Really Cares: The Surprising Truth About Compas­
sionate Conservatism. Nova York, Basic Books, 2006, p. 2 1 -22, 24.
1 42 I 1 43

um homem de meia-idade que dirá, em tom de desprezo: "As guerras


nunca cessarão, pois seria contrário à natureza humana " . É um tanto
óbvio que um homem desse tipo se delicia com a guerra e odiaria viver
n um mundo no qual a guerra tivesse sido erradicada . 32

Bertrand Russell não foi o único filósofo internacionalmente co­


nhecido a fazer esse tipo de comentário. O comentário anteriormente
transcrito foi feito em 1 936, dirigido contra os que queriam que a
Grã-Bretanha se rearmasse em resposta à massiva reconstrução do
poderio militar alemão promovida por Hitler. Três anos mais tarde,
o rearmamento nazista seria mobilizado contra os países europeus,
dando início à Segunda Guerra Mundial. Antes disso, na década de
1 920, quando muitos intelectuais favoreciam a realização de acordos
internacionais de paz, como o pacto Kellogg-Briand, de 1 92 8 , os que
se opunham a essa abordagem de renúncia à guerra eram retratados
por John Dewey como pessoas que exibiam "a estupidez de uma men­
te amarrada aos velhos hábitos " ,33 pessoas que sofriam de " inércia
mental " ,34 cuj as motivações tinham uma " natureza psicológica, em
vez de prática ou lógica " /5 ou mesmo como pessoas que " acredita­
vam no sistema da guerra" . 36
O escritor britânico J. B. Priestley tentou explicar o fracasso do
pacifismo teórico, pois embora fosse um pensamento hegemônico en­
tre seus colegas intelectuais da década de 1 930, tinha dificuldade de
convencer o pú blico em geral. Para ele o público era a favor da guerra
devid o a certo " tédio " , o qual gerava um " desejo disseminado de par­
ticipar de uma grande e emocionante encenação repleta de discursos

32 Bertrand Russell, Which Way to Peace?. Londres, Michael Joseph, Ltd.,


1 9 37, p. 1 79.
33 John Dewey, "Outlawing Peace by Discussing War " . New Republic,
1 6/05/1 928, p. 370.
34 Loc. cit.
35 john Dewey, "If War Were Outlawed " . New Republic, 25/04/1 923, p. 234.
36 Ibidem, p. 2 35.
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

inflamados, desfraldar de bandeiras, tropas se amotinando e listas de


mortos em combate" .37 Embora reconhecesse "a enorme vendagem"
do romance pacifista Nada de Novo no Front, Priestley dizia: " São os
horrores da história que fascinam os leitores " , uma vez que o livro "é
um grande espetáculo da tragédia humana " . 38
Na visão de Pri estley, não importa o que os fatos empíricos reve­
lam. Eles são sistematicamente empacotados e encaixados no modelo.
Os desejos do público, arbitrariamente atribuídos por Priestley, torna­
ram desnecessária a tarefa de confrontar seus argumentos com argu­
mentos contrários ou de confrontar a possibilidade de haver lacunas ou
defeitos nos argumentos defendidos pelos pacifistas, os quais, todavia,
não conseguiam convencer o público sobre a eficiência de seu modelo.
Estes diziam que o desarmamento e os tratados seriam as formas mais
apropriadas para se reduzir a ocorrência de guerras. Existe, entre os
intelectuais, uma longa e semelhante história sobre questões envolven­
do assuntos de guerras e de paz, cuja dinâmica recua, no mínimo, até
Godwin e Condorcet no século XVITI. Nesse debate, os que discordam
do modelo pacifista são retratados como belicosos fanáticos, os quais,
por motivos malignos ou irracionais, anseiam a deflagração de guer­
ras. 39 Entre as duas visões, trágica e a do intelectual ungido, o profundo
contraste de tratamento entre os adversários teóricos é vasto e dura­
douro em demasia para que possa ser atribuído a meras diferenças de
personalidade em particular, mesmo quando há variações individuais
em ambos os lados. A própria natureza das visões, em si mesmas, en­
volve grandes distinções do comprometimento com o ego. Acreditar
na visão do ungido é se considerar como tal, algo que é muito precioso
para se perder. Como T. S. Eliot coloca:

37 ]. B. Priestley, "The Public and the Idea of Peace " . In: Challenge to Death.
Ed. Storm Jameson. Nova York, E. P. Dutton & Co . , Inc., 1 935, p. 3 1 3.
38 Ibidem, p. 309.
39Ver, por exemplo, William Godwin. Enquiry Concerning Political ]ustice, v . 1,
p. 456-57.
1 44 1 1 45

Neste mundo, metade do mal é fruto dos que insistem em se sentir


importantes. Eles não q uerem fazer o mal, mas tampouco se impor­
tam com o perigo do mal. Talvez eles nem o vejam ou, se o j ustificam,
é porque estão absortos na infindável luta que travam para pensar
bem de si mesmos.40

A RETÓRICA DOS " DIREITO S "

Uma grande parte do discurso dos intelectuais se associa à luta


por " direitos " , mas cujas bases fundadoras não são questionadas e
muito menos avaliadas. Parágrafos constitucionais, legislação, obri­
gações contratuais e tratados internacionais não são citados a funda­
mentar tais " direitos" . Temos " direitos " e exigimos " salário digno " ,
" moradia decente " , " assistência médica acessível " , dentre inúmeros
outros benefícios tanto de ordem material quanto psicológica. Que
tais coisas possam ser desej áveis não está em questão. A verdadeira
questão é saber o motivo pelo qual são consideradas obrigatórias - o
corolário lógico que envolve qualquer questão sobre direitos -, ten­
do-se em vista as pessoas que não concordam com tais obrigatorieda­
des. Se alguém goza de um direito é porque outro alguém sofre uma
obrigação. Mas o direito proposto de " salário digno " , por exemplo,
não se baseia em nenhuma o brigação anuída por um empregador
qualquer. Pelo contrário, esse " direito " é citado como forte razão para
j ustificar o envolvimento do governo, o qual deve, então, obrigar o
empregador a pagar o que terceiros gostariam que fosse pago.
" Direitos " , na forma em que o termo é usado ideologicamente,
não determinam acordos mútuos entre indivíduos, empresas ou na­
ções. Por exemplo, terroristas capturados são tratados, por alguns,
como portadores dos direitos estabelecidos para prisioneiros de guer­
ra pela Convenção de Genebra . Contudo, isso é levantado mesmo

4 0 T. S. Eliot, "The Cocktail Party " . In: The Complete Poems and Plays. Nova
York, Harcourt, Brace and Company, 1 952, p. 348.
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

diante do fato de os terroristas não concordarem, de forma alguma,


com os termos da Convenção de Genebra, além de não integrarem o
que os relatores daquela convenção designaram como membros sob
sua proteção. Novamente, os "direitos " , da maneira como o termo é
usado ideologicamente, constituem-se fundamentalmente de afirma­
tivas arbitrárias e autoritárias feitas por terceiros que buscam fixar o
que outros nunca concordaram em fazer.
O mesmo princípio está em operação sempre que termos como
" responsa bilidade socia l " ou "contrato social" são usados para des­
crever o que terceiros querem que sej a feito, desconsiderando se ou­
tros concordaram ou não em fazê-lo. Dessa forma, sobre o mundo
dos negócios é fixada uma " responsabilidade social " , no intuito de
oferecer benefícios a muitos indivíduos ou para a sociedade em ge­
ral sem considerar, no entanto, se as empresas realmente escolheram
assumir tamanhas responsabilidades . Nem mesmo essas responsa­
bilidades se encontram necessariamente baseadas em leis que foram
promulgadas. Pelo contrário, pois são as alegadas " responsabilida­
des " que formam a base para a promoção de proj etos de lei, mes­
mo que elas não tenham, em si, fundamento algum, exceto o fato
de terceiros advogarem sua imposição. O mesmo princípio é usado
na imaginação fantasiosa de " promessas " , como em The Promise of
A merican Life, de Herbert Croly, o primeiro editor da progressista
New Republic, no qual essas " promessas " não são encontradas em
lugar algum, a não ser nos desejos de Herbert Croly e na mentalidade
de seus companheiros progressistas. De forma parecida, encontramos
a mesma situação nos "contratos " que ninguém assinou ou j amais
viu . Assim, a Previdência Social é frequentemente descrita como um
" contrato " entre as gerações, quando, por definição, gerações ain­
da não geradas não podem concordar com nenhum contrato desse
tipo . Obrigações legais podem certamente ser impostas às gerações
vindouras por meio da Previdência ou de dívidas nacionais, mas o
assunto não diz respeito ao que é fisicamente possível, mas questiona
1 46 1 1 47

a lógica e as fundações empíricas das imposições. Dizer que elas


têm fundamento moral, sem, contudo, fornecer nada de específico,
é apenas dizer que algumas pessoas sentem que é melhor desse jeito.
Mas, em primeiro lugar, não haveria questão alguma, a não ser que
outras pessoas pensassem de outro jeito. Muitas vezes, os alegados
" direitos " , " responsa bilidades sociais" ou outros "contratos " dessa
natureza não estão necessariamente baseados em reivind icações das
maiorias. Pelo contrário, são apresentados como motivos que dizem
por que a maioria, líderes políticos ou tribunais devem impor o que
terceiros buscam impor. São argumentos sem prova.
Por vezes, o termo " j u stiça social " é usado para maquiar justifi­
cativas que, de fato, são arbitrárias. Mas "j ustificar" significa alinhar
uma coisa com outra . Com o que essas alegações se alinham, além
dos sentimentos, das visões e do pensamento grupal que prevalecem
atualmente entre os participantes da intelligentsia ? O pensamento
grupal da intelligentsia não deixa de ser um pensamento grupal e seus
preconceitos também não deixam de ser preconceitos.
O juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes disse: "A pala­
vra 'direito' é uma das armadilhas mais traiçoeira s " e " uma constan­
te solicitação à falácia " .4 1 Da mesma forma que ele rej eitava direitos
abstratos, ele considerava os direitos verdadeiramente " esta beleci­
dos em qualquer sociedade" como detentores de uma base diferen­
te.42 Holmes estava particularmente preocupado com a noção de
que j uízes deveriam fazer cumprir direitos abstratos para os quais
não havia base alguma :

Há uma tendência em pensar os juízes como se fossem elementos isola­


dos, forças independentes vagando no infinito e não simples d i retores
de uma força cuja fonte lhes confere autoridade. Eu creio que nossos
tribunais cometeram erros e é isso que tenho procurado d izer quando

41 Alfre d Lief (ed.), R epresentative Opinions of Mr. ]ustice Holmes. Wes tpo rt
( CT), Greenwood Press, 1 97 1 , p. 1 60, 282.
42 Mark DeWolfe Howe (ed.), Holmes-Laski Letters, v. 2 , p. 888.
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

afirmo que a Lei Comum não se apresenta c o m o solene onipresença


celeste, e que os Estados Unidos não estão sujeitos a um tipo de lei
sobrenatural diante da qual se curvam em obediênciaY

A declaração original de Holmes, dizendo que a Lei Comum


" não se apresenta como solene onipresença celeste " , foi expressa no
caso Southern Pacific Co. versus ]ensen, julgado na Suprema Corte
em 1 9 1 7. Holmes explicava que a lei é "a voz articulada de uma so­
berania ou quase-soberania que pode ser identificada " .44 Porém, as
exigências por " direito s " abstratos dos intelectuais os transformam
em soberanos sem identificação ou autorização.

A DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA

No âmbito da política, uma das fontes mais férteis de confusão,


em discussões sobre questões ideológicas, é a dicotomia entre es­
querda e direita. Talvez a diferença mais fundamental entre esquerda
e direita é que apenas a primeira tem alguma espécie de definição.
O que é chamado de " direita " resume-se aos múltiplos e díspares
adversários da esquerda. Por sua vez, esses adversários da esquerda
podem não ter qualquer vínculo entre si, sej a na composição de prin­
cípios comuns, seja na composição de uma agenda política comum,
e podem variar, em suas preferências, de libertários do livre mercado

43Ibidem, p. 822-2 3 . A afirmação original de Holmes de que "a lei comum


não se manifesta como solene onipresença a p aira r no céu" foi retirada do
caso Southern Pacific Co. vs. ]ensen, julgado na Suprema Corte. Ele também
usou a frase em uma carta ao jurista britânico Sir Fre d eric k Pollock. Mark
DeWolfe Howe (ed . ) , Holmes-Pollock Lettters: The Correspondence of Mr.
]ustice Holmes and Sir Frederick Pollock 1 8 74- 1 93 2 . Cambridge (Mass.),
Harvard University Press, 1 942, v. 2, p. 2 1 5.
44Alfred Lief (ed.), The Dissenting Opinions of Mr. ]ustice Holmes. Nova
York, The Vanguard Press, 1 929, p . 3 3 .
1 48 1 1 49

a defensores da monarquia, da teocracia, da ditadura militar ou de


inumeráveis outros princípios, sistemas e agendas.
Para pessoas que tomam as palavras literalmente, falar da "es­
querda " é assumir que existe implicitamente outro grupo adversário
igualmente coerente que se constitui como "direita " . Talvez causasse
menos confusão se o que chamamos de "esquerda" fosse designado
por algum outro termo, um movimento X. Mas a designação em se
pertencer à esquerda tem, ao menos, alguma base histórica nos re­
presentantes que se sentavam à esquerda da cadeira do presidente
da Assembleia durante a reunião dos Estados Gerais da França no
século XVIII . Hoje, um resumo aproximado sobre a esquerda políti­
ca seria a visão que promove a tomada de decisões coletivistas, por
meio da ação direta do governo e de suas agências, os quais visam
ao objetivo de reduzir as desigualdades socioeconômicas . Podemos
adotar posições moderadas ou extremas sobre essa visão ou agenda
da esquerda, mas entre aqueles designados " de direita " , a diferenÇa
entre libertários do livre mercado e juntas militares não é apenas de
grau, na perseguição de uma visão em comum, mas de fato não existe
qualquer visão em comum entre eles. O que significa dizer que não
existe um bloco que possa ser definido como " direita " , embora exis­
tam múltiplos segmentos designados nessa categoria genérica, como
os defensores do livre mercado, os quais podem ser definidos.
A heterogeneidade que encontramos na " direita " não é o único
problema da dicotomia esquerda-direita . Dentro do espectro polí­
tico concebido pelos participantes da intelligentsia, reina a imagem
comum que se estende desde comunistas que se posicionam no ex­
tremo à esquerda até esquerdistas menos extremistas, pa ssando por
progressistas mais moderados, centristas, conservadores, direitistas
mais radicais e finalmente os fascistas. Esse quadro é tido como
certo pela intelligentsia, mas é mais um exemplo de conclusão sem
prova, a menos que uma interminável repetição possa ser conside­
rada prova. Ao nos desviarmos das imagens consagradas, buscando
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

as especificidades, observamos que, exceto pela retórica , existe no­


tável e mínima diferença entre fascistas e comunistas . Observamos
também que há muito mais em comum entre fascistas e até mesmo
a esquerda moderada do que entre ambos e os tradicionais conser­
vadores no sentido norte-americano do termo. Uma análise mais
atenta esclarecerá o ponto .
Comunismo é socialismo com vocação internacional e méto­
dos totalitários. Benito Mussolini, o fundador do fascismo, definia-o
como nacional socialismo num estado totalitário, termo também
por ele cunhado. A mesma ideia foi usada na Alemanha . Tivemos
o Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, o partido
de Hitler, agora quase sempre abreviado como partido dos nazistas,
enterrando-se e ocultando o termo socialista. Visto em retrospecto,
embora a característica predominante entre os nazistas fosse o ra­
cismo em geral e o racismo antissemita em particular, esse elemento
de ódio racial não era inerente à visão fascista, uma vez que não era
compartilhado pelo governo fascista de Mussolini, na Itália, ou de
Franco, na Espanha .
Numa ocasião, os j udeus foram de fato amplamente representa­
dos entre os líderes fascistas na Itália. Somente depois que Mussolini
se tornou o parceiro caçula de Hitler na composição das forças do
Eixo, no final da década de 1 930, que os j udeus foram expulsos do
partido fascista italiano. E só depois que a autoridade de Mussolini
foi neutralizada, em 1 943, e seu governo substituído por um governo
fantoche implantado pelos nazistas, no norte da Itália, que os j udeus
residentes naquela parte da Itália foram cercados e enviados para os
campos de concentração.45 Portanto, um governo explícita e oficial­
mente dominado por ideologia e prática racistas diferenciava os na­
zistas de outros movimentos fascistas.

45Jonah Goldberg, Liberal Fascism: The Secret History o{ the A merican


Left from Mussolini to the Politics of Meaning. Nova York, Doubleday,
2008, p. 1 7, 25-26 .
1 50 I 1 5 1

O que distinguia os movimentos fascistas, em geral, dos movi­


mentos comunistas era o fato de os comunistas estarem oficialmente
comprometidos com a apropriação governamental dos meios de pro­
dução, enquanto os fascistas permitiam a manutenção da proprieda­
de privada dos meios de produção desde que o governo direcionasse
as decisões dos proprietários e limitasse os índices de lucro que esses
proprietários poderiam receber. Eram ambos os sistemas totalitários,
embora os comunistas fossem oficialmente internacionalistas, ao pas­
so que os fascistas se diziam nacionalistas. No entanto, a proclamada
política de Stalin de " socialismo em uma nação " não era muito di­
ferente da proclamada política do nacional socialismo dos fascistas .
Quando chegamos aos aspectos práticos, encontramos diferen­
ças ainda menores, pois é certo que a Internacional Comunista servia
aos interesses nacionais da União Soviética, apesar de toda a retórica
internacionalista usada. A maneira como os comunistas do mundo
todo, inclusive nos Estados Unidos, retiraram a oposição que faziam
aos esforços conj untos de aj uda militar entre as nações ocidentais na
Segunda Guerra Mundial, num período de 24 horas após a invasão
da União Soviética pelas forças de Hitler, é apenas o mais dramático
de muitos exemplos que poderiam ser citados.
Em relação ao suposto comedimento do interesses fascistas, li­
mitados às políticas de seus próprios países, ele foi desmentido pe­
las invasões efetuadas tanto por Hitler quanto por Mussolini, assim
como pela rede de operações internacionais dos nazistas, que operava
por meio de alemães vivendo em outros países, abarcando do Brasil
à Austrália .46 Todas essas agências estavam submetidas aos interesses
nacionais alemães, passando por cima de inclinações ideológicas ou

46 Ver, por exemplo, G. Kinne, " Nazi Stratagems and Their Effects on Ger­
mans in Australia up to 1 94 5 " . Royal Australian Historical Society. V. 66,
parte 1 ( j u n . 1 98 0 ) , p. 1 - 1 9; Jean Roche, La Colonisation A llemande et Le
Rio Grande do Sul. Paris, Institue des Haures É rudes de L' Amérique La tine,
1 959, p. 54 1 -43.
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

de interesses privados de seus integrantes. Dessa forma, as queixas


dos alemães que viviam como sudetos, na Tchecoslováquia, foram
inflamadas durante a crise de Munique de 1 93 8 como parte do plano
de expansão territorial da Alemanha, ao passo que os alemães que
viviam na Itália foram obrigados a abafar suas reclamações, já que
Mussolini era aliado de HitlerY
À medida que a União Soviética proclamava seu internaciona­
lismo e anexava várias nações, que continuavam a ser " oficialmente
independentes " , as pessoas que detinham o poder real nessas nações,
geralmente sob o título de " segundo-secretário" do partido comunis­
ta, eram quase sempre russos, 48 repetindo o padrão dos tempos dos
czares, os quais governavam o que era mais honestamente chamado
de Império Russo.
Portanto, a noção de que comunistas e fascistas se configuram
em polos ideológicos não é verdadeira nem em teoria e muito menos
na prática. Comparando-se, de um lado, as semelhanças e as dife­
renças entre esses dois movimentos totalitários e, do outro, o con­
servadorismo, há muito mais semelhança entre esses dois sistemas
totalitários e suas respectivas agendas, incluindo a agenda da própria
esquerda, do que com as agendas da grande maioria dos grupos con­
servadores. Por exemplo, entre os itens que compunham a agenda
dos fascistas na Itália, assim como dos nazistas na Alemanha, temos
( 1 ) controle governamental sobre os salários e as horas de trabalho,
(2) impostos mais altos sobre os ricos, ( 3 ) limites governamentais
sobre os lucros, ( 4 ) controle governamental sobre os cuidados com a
população de idosos, ( 5 ) esvaziamento do papel da religião e d a fa­
mília nas decisões pessoais e sociais e ( 6 ) estabelecimento de métodos
de engenharia social para alterar a natureza das pessoas, geralmente

47
Valdis O. Lumans, Himmler's Auxiliaries. Chapel Hill, University of North
Carolina Press, 1 993, p. 77-87.
48Hélene Carrere d'Encausse, Decline of an Empire: The Soviet Socialist Re­
publics in Revolt. Nova York, Newsweek Books, 1 980, p. 146, 1 50-5 1 .
1 52 I 1 53

desde a primeira infância .49 Esse último e mais audacioso projeto


faz parte da ideologia da esquerda, tanto a esquerda democrática
quanto a totalitária, uma vez que existe desde o século XVIII, quan­
do Condorcet e Godwin defenderam tal tipo de intervenção, e que
ainda é defendido por inúmeros outros intelectuais.50 Esse proj eto
já foi colocado em prática em vários países, recebendo nomes como
" reeducação " e " retificação de valores " _5I
Certamente, essas diretrizes são, para a maioria dos conservadores
nos Estados Unidos, inaceitáveis. Por outro lado, são visões congênitas
às abordagens defendidas pelos liberais - os progressistas norte-ame­
ricanos - dentro do contexto político norte-americano. Deve-se notar
que os termos liberal e conservative, como são usados no contexto
norte-americano, não guardam muita semelhança com os significados
originais. Milton Friedman, um dos líderes do movimento intelectual
"conservador" de sua época, defendia mudanças radicais nos sistema
escolar dos Estados Unidos, assim como queria alterar o papel do Ban­
co Central na economia. Um de seus livros foi intitulado The Tyranny
o( the Status Quo [A Tirania do Status Q uo] . Da mesma forma que
Friedrich Hayek, Friedman se via como liberal, respeitando o sentido
original do termo, mas esse sentido foi completamente alterado nos
Estados Unidos, embora visões semelhantes às suas ainda sej am co­
nhecidas como visões liberais em alguns outros países.
Apesar disso, os estudos acadêmicos designam Hayek como de­
fensor do status quo, como um daqueles intelectuais cuj a "defesa
do estado existente de coisas fornece j ustificativas para os poderes
consagrados" . 5 2 Quaisquer que fossem os méritos ou os deméritos das

49 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 45-46 , 4 1 0- 1 3.


50 Ibidem, p. 324-25, 344-57.
51 Ver, por exemplo, o capítulo III de meu livro Inside America Education:
The Decline, the Deception, the Dogmas. Nova York, The Free Press, 1 993.
52 Lewis A. Coser, Men of Ideas: A Sociologist's View. Nova York, The Free
Press, 1 970, p. 1 4 1 .
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

ideias de Hayek, elas se distanciavam muito mais do status quo do


que as ideias dos intelectuais que o criticavam. Pessoas como Hayek,
que em geral são designadas como "conservadoras " , articulam ideias
que diferem em grau e em gênero de seus alegados pares ideológicos,
distanciando-se das ideias de outros participantes da chamada direita
política . Talvez se os liberais fossem chamados simplesmente de X e
os conservadores de Y haveria menos confusão.
Conservadorismo, em seu sentido original, não tem qualquer
conteúdo ideológico específico já que depende do que se está tentan­
do, em cada caso, conservar. Nos últimos dias da União Soviética,
os indivíduos que lutavam pela preservação do regime comunista
existente eram designados, acertadamente, de "conservadores " , em­
bora aquilo que buscavam conservar nada tivesse em comum com o
que era defendido por Milton Friedman, Friedrich Hayek ou William
F. Buckley, nos Estados Unidos. Muito menos esse "conservadoris­
mo comunista " poderia ser confundido com as posições do cardeal
Joseph Ratzinger, uma liderança conservadora no Vaticano e que,
posteriormente, foi sagrado papa . Indivíduos que recebem o rótu­
lo de " conservadores" têm posições ideológicas específicas, mas isso
não confere associação direta entre suas especificidades, distintas em
cada um dos diferentes contextos e locais.
Caso nos esforcemos por definir a esquerda, segundo seus objeti­
vos proclamados, torna-se evidente que objetivos muito semelhantes
foram proclamados por pessoas que a esquerda repudiou e a�ate­
matizou, chamando-as de fascistas e de nazistas. Portanto, em vez de
definir esses grupos por seus objetivos proclamados, podemos defini­
los pelos seus mecanismos institucionais específicos e pelas políticas
que executam ou defendem a fim de alcançar esses objetivos. Mais
especificamente, esses grupos podem ser definidos a partir dos meca­
nismos institucionais que buscam impor, no intuito de controlar as
decisões mais significativas sobre a sociedade em geral. Para fins ex­
plicativos de nossa análise é preciso separar, de um lado, os processos
1 54 I 1 55

que respeitam e defendem as decisões tornadas individualmente dos


processos que defendem decisões de cunho coletivista executadas por
terceiros. Essa dicotomia esquemática é necessária diante da vastíssi­
ma gama de possíveis mecanismos de decisão e controle.
Por exemplo, nas economias de mercado, consumidores e produ­
tores tomam individualmente suas decisões. As consequências sociais
são determinadas pelos efeitos acumulados das decisões individuais
na forma corno os recursos são alocados na economia como um todo
e na resposta que dão à variação de preços, de renda e de emprego, os
quais, por sua vez, afetam a relação de oferta e de demanda .
Embora esse tipo de visão sobre a economia seja geralmente con­
siderado "conservador" (no sentido original do termo ), uma vez colo­
cado sob a longa perspectiva da história das ideias torna-se uma visão
revolucionária. Desde os tempos antigos até o presente, abarcando
sociedades completamente distintas por todo o mundo, encontramos
os mais variados sistemas de pensamento tanto secular quanto reli­
gioso, os quais buscam determinar como os melhores, mais sábios
e virtuosos podem influenciar ou dirigir as massas a fim de criar ou
de manter uma sociedade mais feliz, viável e valorosa . Diante de tal
quadro histórico, foi um ponto de partida revolucionário quando, na
França do século XVIII, os fisiocratas se levantaram para proclamar
que, ao menos para a economia, o melhor que as autoridades reinan­
tes poderiam fazer seria deixar o processo caminhar por si mesmo.
Laissez-faire foi o termo que cunharam. Os que adotavam a nova
visão diziam que a imposição de políticas econômicas pelas autori­
dades seria uma preocupação "altamente desnecessária " , usando as
palavras de Adam Smith.53 Favorecia-se um sistema espontâneo de

53 " O estadista que tentasse direcionar a vida econômica das pessoas priva­
das, na maneira como devem emprega r seus capitais, não apenas tra ria para
si uma responsa bilidade desnecessária, mas assumiria uma autoridade que
não poderia ser facilmente confiada, não apenas a um indivíduo qualquer,
mas também a um Conselho ou Senado de qualquer tipo, e isso seria mais
Os Intelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

interação, o qual funcionaria muito melhor sem intervenções gover­


namentais, embora não fosse perfeito, apenas melhor.
Variações nessa visão de ordem espontânea podem também ser
encontradas em outras áreas, passando da linguagem às leis. Ne­
nhuma elite j amais se reuniu para determinar as línguas dos povos,
de qualquer sociedade que sej a . Esses idiomas evoluíram a partir de
interações sistêmicas entre milhões de indivíduos ao longo de mui­
tas gerações, nas mais variadas sociedades mundo afora. Os acadê­
micos em línguas estudam e codificam a s regras da linguagem, mas
depois do fato. As crianças aprendem a s palavras e o uso, intuindo
as regras do uso antes que elas sej am ensinadas formalmente nas
escolas. Apesar de ter sido possível às elites criar línguas como o
esperanto, tais sistemas artificiais nunca se sobrepuseram às língua s
historicamente desenvolvidas.
Na esfera das leis, uma visão semelhante foi expressa pelo j uiz da
Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, quando afirmou que: "A vida
da lei não é dirigida pela lógica, mas pela experiência " . 54 Portanto, seja
no universo da economia, da linguagem ou das leis, essa visão concebe
a viabilidade social e o progresso em função direta com as evoluções e
os processos sistêmicos, não se subordinando às prescrições das elites.
A confiança em processos sistêmicos, seja na área da economia e do
direito, seja em outras áreas, baseia-se na visão cautelosa e dos limites,
a visão trágica, a qual percebe as severas limitações de conhecimento
e de insight em qualquer indivíduo, mesmo considerando todo o bri­
lhantismo e a erudição que esse ser humano possa porventura possuir.
Os processos sistêmicos, em cuja dinâmica integram-se conhecimentos

perigoso do que nunca nas mãos de a lguém que tivesse tornado de loucura
e de presunção suficientes para pensar que pudesse exercer tal poder." Adam
Smith, Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Nova
York, Modern Libra ry, 1 937, p. 423 .
54 Oliver Wendell Holrnes Jr., The Common Law. Boston, Little, Brown and
Cornpany, 1 923, p . 1 .
1 56 1 1 57

e experiências muito mais vastos, pois há uma quantidade gigantes­


ca de pessoas envolvidas, geralmente tradições inteiras que evoluíram
a partir das experiências de sucessivas gerações, são processos muito
mais confiáveis do que os intelectos dos intelectuais.
Diferentemente, a visão da esquerda é a que favorece os tomadores
de decisão terceirizados e isso se realiza por meio dos que supõem deter
não apenas conhecimento superior, mas o suficiente em suas ações como
líderes políticos, especialistas, juízes, dentre outros. Essa é uma visão co­
mum aos variados matizes da esquerda política, abarcando tanto a ala
radical quanto a moderada e que também se faz presente nos setores
totalitários, sejam eles comunistas ou fascistas. Uma noção de propósito
comum, na sociedade, é central para a constituição de processos coleti­
vistas, expressa tanto em instituições democráticas quanto totalitárias
ou nas variações entre ambas. Uma das diferenças existentes entre os
sistemas democráticos e os sistemas totalitários, dentro da mesma lógica
coletivista, é a de grau, a qual se traduz na amplitude e na penetração das
decisões terceirizadas pelo governo, assim como na amplitude deixada
para os indivíduos fora do controle do governo.
O livre mercado, por exemplo, é uma gigantesca esfera de ação
que se furta ao poder governamental. Em tal tipo de meca nismo não
existe uma associação comum de propósitos, exceto entre indivíduos
e associações específicos, os quais decidam voluntariamente agregar­
se em grupos, que podem variar de ligas de boliche a corporações
multinacionais. Mas mesmo essas agremiações buscam, tipicamente,
os interesses de seus respectivos membros constituintes, e competem
contra os interesses de outras agremiações. Os que defendem esse me­
canismo social de controle disperso o fazem porque acreditam que os
resultados sistêmicos de tais competições e interações são geralmente
mais satisfatórios do que a formação de uma monstruosa agremia­
ção para imposição de propósitos comuns, forçada, goela abaixo, por
tomadores de decisão terceirizados, os quais supervisionam todo o
processo em nome do " interesse nacional " .
Os Intelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

A versão totalitário-coletivista de um exército de burocratas ter­


ceirizados, comandados por um governo totalitário, foi resumida no
lema de Mussolini: "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada con­
tra o Estado" .55 Além do mais, o Estado significava fundamentalmen­
te o líder político que o conduzia absolutamente, o ditador. Mussolini
era conhecido como I/ Duce, o líder, antes que Hitler recebesse o
mesmo título na Alemanha, o Führer . As versões democráticas do
mesmo mecanismo coletivista de tomada de decisão, observadas em
sociedades que escolhem seus líderes em eleições, tendem a deixar
parcela s maiores de atividade socioeconômica fora do controle do
governo. Todavia, a esquerda raramente adota princípios explícitos
por meio dos quais as fronteiras entre a ação do governo e as decisões
individuais possam ser facilmente determinadas. Isso acaba levando
à tendência, ao longo do tempo, de ampliar as zonas de interferência
do governo à medida que quantidades cada vez maiores de decisões
são retiradas das mãos dos indivíduos.
Preferências por tomadas de decisão de cunho coletivista, feitas
de cima para baixo, não esgotam todo o repertório que a esquer­
da democrática compartilha com os primeiros fascistas italianos e
com os nacionais socialistas, os nazistas, da Alemanha . Somando-se
à política altamente intervencionista sobre os mercados econômicos,
a esquerda democrática também compartilhou, com os fascistas e
os nazistas, a suposição de um abismo de compreensão e de i nteli­
gência entre as pessoas comuns e as elites, como eles . Embora tanto
a esquerda totalitária - fascistas, comunistas e nazistas - quanto a
democrática tenham feito uso de termos como "povo " , " trabalha­
dores " e " massas " , colocando-os como beneficiários ostensivos de
suas políticas, essas categorias não ostentam, no entanto, qualquer
autonomia em suas decisões. Muito da retórica orquestrada tanto
pela esquerda democrática quanto pela totalitária já esvaziou, há

55 Jona h Goldberg, Liberal Fascism, p. 52.


1 58 I 1 59

muito tempo, a importante distinção entre as pessoas enquanto be­


neficiárias e a utônomas para tomarem suas próprias decisões. Nesse
universo ideológico, o privilégio das decisões é propriedade exclusi­
va dos intelectuais ungidos, e isso é tido como certo.
Rousseau, apesar de toda ênfase que deu à "vontade geral " , deixou
às elites o papel exclusivo de interpretar essa " vontade geral " . Ele via
as massas como algo parecido a um "estúpido e pusilânime inválido " .56
Godwin e Condorcet também expressaram, no século XVIII, um des­
prezo semelhante às massasP Karl Marx disse: "Ou a classe trabalha­
dora se faz revolucionária ou não é nada " .58 Em outras palavras, para
esses intelectuais, milhões de seres humanos só tinham qualquer impor­
tância se adotassem a visão deles. O socialista fabiano George Bernard
Shaw incluía a classe trabalhadora entre os tipos "detestáveis " , pessoas
que não têm " direito de viver" . Ele completava: " Ficaria desesperado
caso não soubesse que todos fatalmente morrerão e não há necessida­
de alguma que justifique a permanência deles neste mundo " .59 Como
integrante do exército norte-americano durante a Primeira Guerra
Mundial, Edmund Wilson escreveu a um amigo: "Não seria sincero
se dissesse que as mortes desses homens, esse 'lixo branco miserável
do sul' e de outros me causam a metade da dor que sinto com a mera
convocação e o alistamento de qualquer um de meus amigos" .60

56 Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract. Trad. Maurice Cranston, p. 89.


57 William Godwin, Enquiry Concerning Política/ Justice, v. 1, p. 446; An­
toine-Nicolas de Condorcet, Sketch for a Historical Picture of the Progress of
the Human Mind. Trad. ]une Barraclough. Londres, Weindenfeld and Nicol­
son, 1 955, p. 1 14.
58 Karl Marx e Frederick Engels, Selected Correspondence 1 84 6- 1 895. Trad.
Dona Torr. Nova York, International Publishers, 1 942, p . 1 90.
59 Bernard Shaw, The Intelligent Woman 's Cuide to Socialism and Capital­
ism, p. 456.
60Edmund Wilson, Letters on Literature and Politics 1 9 1 2 - 1 9 72 . Ed. Elena
Wilson. Nova York, Farrar, Straus and Giroux, 1 977, p . 3 6 . Nem foi devido
ao racismo dos brancos do sul, pois Wilson fez referência ao quanto Chatta­
nooga lhe desagradava por causa " dos seus pretos e dos moinhos" ( Ibidem,
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

A esquerda totalitária tem sido igualmente clara em seu enten­


dimento sobre controle absoluto por parte de uma elite política a
controlar a bsolutamente os poderes decisórios: a " vanguarda do pro­
letariado " , os líderes de uma " raça superior " ou qualquer outro slo­
gan em particular. Nas palavras do próprio Mussolini: "As massas
simplesmente seguirão e se submeterão" .6 1
Em relação às suposições fundamentais, a semelhança entre os
múltiplos movimentos totalitários e a esquerda democrática foi aber­
tamente reconhecida pelos próprios líderes da esquerda dos países
democráticos, durante a década de 1 920, num momento em que
Mussolini era totalmente idolatrado por muitos intelectuais das de­
mocracias ocidentais, e numa época em que mesmo Hitler angariava
admiradores entre proeminentes intelectuais de esquerda. Foi somen­
te após o desenrolar dos acontecimentos, durante a década de 1 930,
com a invasão da Etiópia por Mussolini e o violento antissemitismo
de Hitler na Alemanha, além de suas agressões militares contra países
vizinhos, que eles se tornaram párias internacionais. A partir daí seus
sistemas totalitários foram repudiados pela esquerda e retratados
como sendo " de direita" . 62
D urante a década de 1 920, todavia, o escritor radica l Lincoln
Steffens escrevia positivamente sobre o fascismo de Mussolini, assim
como escrevera, mais notoriamente, sobre as vantagens do comunis­
mo soviético.63 Ele não era, contudo, o único radical ou progressista

p. 2 1 7, 220 ) . Anos mais tarde, ao ver a pobreza da Itália no final da Segunda


Guerra Mundial, Wilson disse: " Essa não é a forma como os brancos deve­
riam viver" (lbidem, p. 423 ).
61 Citado em Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 3 8.
62
As batalhas de rua entre nazistas e comunistas na Alemanha da década de 1 920
foram conflitos sangrentos entre facções que competiam pelo apoio do mesmo
eleitorado, da mesma forma que os comunistas mataram os socialistas durante
a Guerra Civil Espanhola e Stalin expurgou os trotskistas da União Soviética.
63 Lincoln Steffens, " Stop, Look, Listen! " . The Survey, 0 1 /03/ 1 927, p. 735-37,
7 54-55.
1 60 I 1 6 1

norte-americano a fazer tal cois a.64 Em 1 932, o famoso romancista e


socialista fabiano H. G. Wells conclamou os alunos de Oxford para
que se tornassem " fascistas liberais" e "nazistas esclarecidos " . 6 5 O his­
toriador Charles Beard estava entre os apologistas de Mussolini que
viviam nas democracias ocidentais, o mesmo acontecia com a revista
New Republic.66 O poeta Walla ce Stevens chegou a j ustificar a inva­
são da Etiópia por Mussolini. 67
W. E. B. Du Bois ficou, durante a década de 1 920, tão intrigado pelo
movimento nazista que decorou com suásticas as capas de uma revista
que editou, apesar dos protestos da comunidade judaica.68 Embora Du
Bois tivesse que lidar com o problema do antissemitismo, que o nazismo
implicava, ele dizia, na década de 1 930, que a criação da ditadura na­
zista "foi absolutamente necessária para a reorganização do Estado" na
Alemanha, e durante um discurso no Harlem, em 1 937, declarou: "De
certa forma, hoje existe mais democracia na Alemanha do que existia nos
anos anteriores" . 69 O fato mais revelador é que ele via os nazistas como
integrantes da esquerda. Em 19 36, ele disse: "A Alemanha é hoje, ao lado
da Rússia, o maior exemplo de sociedade marxista" . 70
No entanto, a heterogeneidade das posições foi perdida, as quais
foram encerradas num só saco, atirado para longe da esquerda.

64 Jonah Goldberg, Liberal Fascism , p. 28-29.


65 Ibidem, p . 2 1 . Um ano mais tarde, depois da ascensã o de Hitler ao poder,
Wells o caracterizava como " bronco desajeitado" com "seus símbolos idiotas"
e "suas crueldades imbecis" . H. G. Wells rotula va os nazistas de " broncos" .
New York Times, 22/09/1 933 , p . 1 3 . E m 1 93 9 ele atacava tanto Mussolini
quanto Hitler, embora ele isentasse a União Soviética de suas recriminações.
Ver "Wells See s U.S. Hope for Mankind " . New York Times, 04/08/1 93 9, p. 3 .
66 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 1 00-0 1 , 103-04.
67 Ibidem, p . 26-27.
68 Ibidem, p. 1 03 .
69 Ibidem, p. 10.
70 Daniel J. Flynn, lnte/lectual M orons: How ldeology Makes Smart People
Fali for Stupid ldeas. Nova York, Crown Forum, 2004, p. 1 73 .
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

A direita permitiu que a esquerda expulsasse de si e aglutinasse, numa


mesma categoria caótica, os vários segmentos ideológicos que, embo­
ra participassem da visão da esquerda, tornaram-se constrangedores
e, com isso, foram repudiados. Portanto, a grande celebridade do rá­
dio, nos Estados Unidos da década de 1 930, o padre Coughlin, que
era, dentre outras coisas, antissemita, foi verbalmente banido para a
" direita" , muito embora ele defendesse boa parte das propostas polí­
ticas que acabaram se transformando no New Deal. Muitos congres­
sistas democratas, em determinado momento, elogiaram o padre pu­
blicamente e alguns progressistas instaram o presidente Franklin D.
Roosevelt para que o tornasse membro do gabinete da presidência. 71
Durante esse período inicial, era comum na esquerda, como em
outros lugares, comparar, considerando experimentos aparentados,
o fascismo na Itália, o comunismo na União Soviética e o New Deal
nos Estados Unidos. n Posteriormente, tais comparações foram com­
pletamente rejeitadas, assim como fora a figura do padre Coughlin,
um genuíno representante da esquerda. Essas mudanças arbitrárias nas
classificações não apenas permitiram que a esquerda se distanciasse de
grupos e de indivíduos constrangedores, cujas suposições e conclusões
subjacentes detinham muitas semelhanças entre si, mas também deu à
esquerda a condição de transferir retoricamente o ônus dos constrangi­
mentos para seus adversários políticos. Além do mais, tais mudanças de
nomenclatura reduziram grandemente a probabilidade de observado­
res verem todo potencial negativo das ideias e das agendas promovidas
pela esquerda em seu perpétuo jogo para adquirir influência ou poder.
A concentração do poder do Estado almejada pela esquerda está
retoricamente a serviço de múltiplos e sublimes objetivos, porém ta­
manhas concentrações de poder oferecem, na realidade, grandes opor­
tunidades para que se cometa toda sorte de abusos, desembocando

71 Jona h Gold berg, Liberal Fascism, p. 140.


72 Ibidem, p . 1 22-23, 1 46-48.
1 62 I 1 53

em genocídios e assassinatos em massa perpetrados por homens como


Hitler, Stalin, Mao e Pol Pot. Nenhum desses líderes tinha uma visão
trágica do homem, que subentendesse o pensamento "conservador"
dos Estados Unidos de hoje. Foram precisamente as presunções de
ditadores como esses, iludidos pelas supostas vastidão e superioridade
de seus conhecimentos e de sua sabedoria, considerados muito acima
dos parcos conhecimentos das pessoas comuns, que ocasionaram essas
assombrosas tragédias que se abateram sobre populações inteiras.

" MUDANÇA" VERSUS STATUS Q UO

A intelligentsia geralmente divide as pessoas entre os que são a


favor das " mudanças " e os que favorecem a manutenção do status
quo. O livro Liberalism and Social Action [Liberalismo e Ação So­
cial] , de John Dewey, por exemplo, começa com as seguintes palavras:

O liberalismo j á se acostumou com os massacres perpetrados pelos


que se opõem à mudança social. Ele tem sido trata d o , há muito tempo,
como um i n imigo por aqueles que deseja m manter o status quo. 73

Já foi observado que mesmo figuras " conservadoras" notáveis,


como Milton Friedman e Friedrich Hayek, defendiam políticas radi­
calmente diferentes das que vigoravam nas instituições e nas socie­
dades. Nenhum livro estava mais completamente calcado na visão
trágica do que The Federalist [O Federalista] , mas ainda assim seus
autores não apenas se rebelavam contra o colonialismo britânico,
mas também propunham uma nova forma de governo radicalmente
contrária às autocracias que prevaleciam por todo o mu ndo na época.
Chamá-los de defensores do status quo é divorciar completamente as
palavras das realidades.

73 John Dewey, Liberalism and Social Action. Amherst (NY), Prometheus

Books, 2000, p. 1 3 .
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

A mesma coisa aconteceu com Edmund Burke e Adam Smith, em


relação a seus contemporâneos na Inglaterra do século XVIII, onde
Burke e Smith se destacaram como integrantes da visão· trágica . Am­
bos defendiam mudanças drásticas, a ponto de favorecerem a liber­
tação das colônias da América do Norte, em vez de apoiar a guerra
pela retenção das colônias, contrariando a posição do governo bri­
tânico, e ambos também se opuseram à escravidão numa época em
que poucos faziam isso no mundo ocidental e praticamente ninguém
o fazia fora dele. Burke elaborou um plano que preparava os escra­
vos para viver em liberdade, fornecendo-lhes propriedade para que
começassem a viver a vida como pessoas livres/4 Adam Smith não
apenas se opunha à escravidão como descartava, com grande despre­
zo, a teoria que afirmava que os escravos negros eram inferiores aos
brancos que os haviam escravizado.75
Chamar esses dois homens de defensores do status quo é o mais
completo descaramento no uso de pura malícia retórica com intuito
de encobrir a verdade dos fatos. Que uma forma tão descabida de
evasão aos fatos tenha permanecido intocada desde o século XVIII
até nossos dias, justamente entre os que se consideram "pessoas pen­
santes " , constitui um grave indício sobre o poder de uma visão cuja
retórica desmantela o próprio pensamento.
É duvidosa a existência de indivíduos, se de fato existe algum,
numa sociedade livre qualquer, que se encontrem completamente sa­
tisfeitos com todas as políticas e as instituições sob as quais vivem.
Praticamente todas as pessoas são, em graus e tipos variados, favo­
ráveis às mudanças. Qualquer discussão racional sobre os tipos e os

74 Ed m und Burke, "A Letter to the Right Hon. Henry Dundas, One of His
Majesty's Principal Secretaries o f State with the Skerch o f a Negro Code " .
I n : Edrnund Burke, The Works o { the Right Honorable Edmund Burke. 3 . ed.
Boston, Little, Brown and Company, 1 869, v. 6, p . 256-89.
7; A da m Smith, The Theory of Moral Sentiments. Indianá polis, Liberty Clas ­
sics, 1 976, p. 337.
1 64 I 1 65

graus de mudança a serem considerados tomaria, como ponto de par­


tida, quais mudanças em particular são favorecidas por quais pessoas
e baseadas em quais razões. Na sequência, teríamos as análises e as
evidências contrárias ou a favor dessas razões particulares. Todavia,
esse processo é negligenciado. Basta simplesmente proclamar-se favo­
rável à "mudança " , rotulando os que discordam dos defensores do
status quo. Temos mais um exemplo de argumentos sem prova.
As pessoas que se reconhecem como "progressistas" não afirmam
apenas que são favoráveis às mudanças, mas que essas mudanças são
sobretudo benéficas, ou seja, promovem o progresso. Contudo, outras
pessoas que também defendam mudanças, mas de naturezas um tanto
quanto diferentes, podem, da mesma forma, dizer que suas mudan­
ças são para melhor. Em outras palavras, todo mundo é progressista,
segundo sua própria ótica. O fato de algumas pessoas se imaginarem
peculiarmente inclinadas ao progresso não constitui apenas mais um
exemplo de autoglorificação, mas também representa uma fuga. Tenta­
se escapar da prova ao não mostrar, com base em evidência e análise,
onde e por que suas propostas particulares de mudança produziriam
melhores resultados do que as mudanças propostas por outras pessoas.
,
Em vez de percorrer todo esse processo investigativo, desqualificam-se
os adversários, sem maiores critérios de análise e de prova, dizendo,
como fez John Dewey, que são "apologistas do status quo " . 76
Embora façam uso de tais desqualificações no lugar de apresentar
argumentos sólidos, qualquer um que tenha cerra familiaridade com
a história do pensamento britânico do século XVIII sabe que o livro
A Riqueza das Nações, de Adam Smith, não se apresentou em defesa
do status quo, mas de fato apontou para uma direção absolutamente
contrária aos interesses instituídos pela elite da época tanto na ordem
socioeconômica como na ordem política. Seria um tanto quanto difí­
cil compreender o motivo pelo qual Adam Smith, ou qualquer outra

76 John Dewey, Liberalism and Social Action, p. 66.


Os I ntelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

pessoa, dedicaria toda uma década de sua vida escrevendo um livro


de novecentas páginas para dizer o quão feliz e satisfeito estava com
o mundo que o cercava . O mesmo poderia ser dito sobre os escritos
volumosos de Milton Friedman, Friedrich Hayek, \Villiam F. Buckley
e muitos outros escritores rotulados de "conservadores " .
O próprio conceito d e mudança, como é usado pelos intelectuais
de esquerda, o que significa dizer, a quase absoluta maioria da in­
telligentsia, é um que se faz arbitrariamente restritivo e tendencioso.
Esse conceito se limita apenas aos tipos particulares de mudança con­
sagrados pela esquerda, efetuados por meio dos mecanismos sociais
particulares que eles pretendem implantar. Outras mudanças, não
importando quão amplas e impactantes possam ser para a vida de
milhões de pessoas, tendem a ser ignoradas caso operem por meio de
outros e distintos mecanismos não contemplados pela intelligentsia.
No mínimo, tais desenvolvimentos não incluídos fora do escopo da
visão do intelectual ungido são reprovados e não são agraciados com
o título honorífico de " mudança " .
Por exemplo, a década d e 1 920 foi uma década d e enormes mu­
danças para a população dos Estados Unidos: a mudança de uma
sociedade predominantemente rural para uma sociedade predo­
minantemente urbana e a disseminação do uso da eletricidade, dos
automóveis e dos aparelhos de rádio, os quais entraram na vida de
muitos milhões de norte-americanos. Foi também o início do trans­
porte aéreo comercial e a revolução do mercado varej ista, com a ex­
pansão das redes comerciais que resultou numa acentuada queda de
preços . No entanto, quando os intelectuais se referem às épocas de
"mudança" quase nunca mencionam a década de 1 920, porque essas
rápidas mudanças, na forma como milhões de americanos viviam a
vida, não representam, contudo, os tipos particulares de mudança que
a intelligentsia idealiza, pois não participam dos mecanismos sociais
sonhados. Aos olhos da maioria da intelligentsia, a década de 1 920,
nas raras vezes em que se pensa nela, é vista como um período de
1 66 I 1 67

estagnação, de manutenção do status quo, presidido por administra­


dores conservadores que se opunham às " mudanças " .

RETÓRICA VERSUS PREFERÊNCIAS

Para compreender o papel dos intelectuais na sociedade, devemos


olhar para além de sua retórica ou mesmo da retórica de seus críticos,
observando a realidade de suas preferências ao serem reveladas.
Como podemos saber quais são os objetivos e as prioridades de
alguém ? Uma forma possível pode ser obtida prestando-se atenção
no que dizem, mas é claro que meras palavras nem sempre refletem,
com precisão, os pensamentos mais recônditos. Além do mais, mesmo
os pensamentos articulados não refletem necessariamente os reais pa­
drões de comportamento das pessoas. O bjetivos, preferências e prio­
ridades retoricamente articulados tanto interna quanto externamente,
não precisam ser consistentes com as escolhas realmente feitas quan­
do confrontados com opções oferecidas no mundo real. Um homem
pode alegar que manter o gramado aparado é mais importante do que
assistir à televisão, mas se o encontramos em frente da televisão por
horas a fio, durante semanas, enquanto o mato e a grama alta tomam
conta de seu j ardim, então as preferências reveladas, em seu compor­
tamento, apresentam-se como indicador muito mais acurado de suas
verdadeiras prioridades do que o fazem tanto sua retórica como as
possíveis crenças que o sujeito tem a respeito de si.
Quais tipos de preferências são revelados no comportamento
real dos intelectuais e como essas preferências reveladas se relacio­
nam com a retórica usada ? Os intelectuais declaram que o centro
de suas preocupações funda-se na preocupação pelo bem-estar dos
outros, especialmente os pobres, as minorias, a promoção de " j ustiça
socia l " , a proteção das espécies ameaçadas e do meio ambiente. A
retórica que usam é muito familiar e está completamente difundida
Os I n telectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

em nossa cultura para que seja necessária uma elaboração mais so­
fisticada . Todavia, a verdadeira questão é a seguinte: Quais são as
preferências realmente reveladas por seus comportamentos ?
A frase " resultados indesej áveis" tornou-se clichê precisamente
pelo fato de tantas políticas e de tantos programas desej ados para,
por exemplo, melhorar a situação dos menos afortunados, acaba­
rem na verdade deixando a situação deles pior, de forma que não é
mais possível acreditar que boas intenções, por si só, possam auto­
maticamente anunciar bons resultados. Qualquer pessoa cuj a preo­
cupação fundamental sej a a melhoria das condições socioeconômi­
cas dos menos afortunados já deveria ter percebido, depois de déca­
das de "resultados indesejáveis " , a necessidade incontornável de se
investir tempo e esforços em tornar boas intenções em políticas e em
programas realmente eficientes, além de investir tempo e esforços
adicionais para se tentar descobrir como aferir os impactos reais
dessas políticas e desses programas.
Qualquer um, cuja preocupação fundamental seja a melhoria das
condições dos menos afortunados, deve também estar alerta para ou­
tros fatores, mas cuj a origem ultrapassa a visão dos intelectuais, sem­
pre que esses outros fatores se mostram empiricamente como elemen­
tos que aj udam na promoção do bem-estar dos menos afortunados,
mesmo que por meios que não sej am contemplados pela inteligência e
de forma contrária às visões e às crenças adotadas pela intelligentsia.
Resumindo, uma das maneiras de testar se as alegadas preocupações
com o bem-estar dos menos afortunados são verdadeiras e se repre­
sentam, de fato, uma preocupação genuína pelo bem-estar dessas pes­
soas ou se, pelo contrário, é apenas uma forma de sequestrar a po­
sição de "vítima " dos menos afortunados, usando-a como forma de
condenar a sociedade a fim de alçar autoridade moral e política, seria
na o bservação das preferências reais, reveladas no comportamento
dos intelectuais. É preciso avaliar quanto rempo e quanta energia os
intelectuais investem na promoção de sua visão, comparando com o
1 68 I 1 69

tempo e a energia dedicados à aferição ( 1 ) das consequências reais


sobre a s coisas feitas em nome da visão e (2) na própria aferição dos
benefícios reais e concretos criados aos menos afortunados, mesmo
quando escapam aos ditames da visão consagrada, e que podem ser
até mesmo ser contrários a ela .
Por exemplo, cruzadas em nome de um "salário digno" ou para
por fim às " duras " condições de trabalho no Terceiro Mundo absor­
vem enormes quantidades de tempo e de energia na promoção de seus
objetivos, mas não dedicam tempo nenhum para analisar os vários
estudos feitos em países, por todo o mundo, a fim de verificar as con­
sequências reais de tais leis de salário mínimo em geral ou de leis de
"salário digno " em particular. As consequências reais incluem índices
mais altos e períodos mais longos de desemprego generalizado, afe­
tando especialmente os segmentos menos qualificados e especializa­
dos da população. Pode se concordar ou se discordar dos resultados,
mas a questão crucial aqui é se alguém se preocupa em lê-los.
Caso o real propósito das cruzadas sociais sej a a melhoria da
condição social dos menos afortunados, as consequências reais de
tais políticas, como controle de salários, tornam-se aspectos centrais
e precisam ser investigadas a fim de evitar a eterna recorrência de
"resultados indesej áveis " , os quais já se tornaram universalmente
reconhecidos no contexto das reformas sociais. Mas se o real pro­
pósito das cruzadas sociais for de fato proclamar um grupo ou al­
guém, como anjos reformadores, então essas investigações empíricas
passam a ter uma prioridade reduzida, caso ainda exista alguma,
uma vez que o obj etivo em se colocar do lado dos anjos é realizado
quando as políticas são defendidas e instituídas, após as quais as cru­
zadas sociais podem seguir em frente, para atacar outras questões.
A preferência revelada, em muitos casos, senão na maioria deles, é a
que procura ficar do lado dos anjos.
É difícil escapar à mesma conclusão, sempre que olhamos para os
mesmos intelectuais quando colocados diante de potenciais melhorias
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I n telectuais e as Visões de Sociedade

na condição dos pobres, mas que se baseiam em políticas ou em cir­


cunstâncias que não oferecem quaisquer oportunidades de estar ao
lado dos anjos contra as forças do mal. Por exemplo, sob a direção de
novas políticas econômicas, começando na década de 1 990, dezenas
de milhões de pessoas na Í ndia saíram do nível máximo de pobreza
naquele país. Na China, adotando, ainda mais cedo, uma política se­
melhante, um milhão de pessoas ao mês conseguem sair do nível de
pobreza .77 Certamente que qualquer pessoa interessada no destino
dos menos afortunados gostaria de saber como tamanho desenvolvi­
mento foi possível, diante de vastíssimos contingentes de população
miserável, perguntando como melhorias semelhantes podem ser ado­
tadas em outros lugares do mundo. Contudo, esses e outros aumentos
formidáveis de padrão de vida das populações, baseados fundamen­
talmente numa maior produção de riquezas, despertaram pouco ou
nenhum interesse entre os intelectuais.
Apesar de toda a importância que tiveram para as populações
pobres, esses desenvolvimentos não oferecem oportunidade alguma
para a intelligentsia se colocar ao lado dos anjos contra as forças
do mal, e é aí que suas preferências reais são reveladas, mostrando
sua verdadeira face. Questões sobre quais políticas ou condições mais
favorecem ou obstruem as taxas de crescimento e de produtividade
raramente despertam o interesse da maioria dos intelectuais, mesmo
ao se saber que tais mudanças fizeram mais para reduzir a pobreza,
tanto nos países ricos como nos pobres, do que o fizeram todas as
mudanças na distribuição de renda já implantadas. O escritor francês
Raymond Aron sugeriu que, ao se alcançar os ostensivos objetivos da
esquerda sem, contudo, fazer uso dos métodos favorecidos por ela,
acaba-se, na verdade, provocando ressentimentos:

7 7 John Larkin, " Newspaper Nirvana ? " . Wall Street journal, 0510512006, p.
Bl ; Tirn Harford, The Undercover Economist. Nova York, Oxford University
Press, 2005, p. 3 .
1 70 I 1 7 1

De fato, a esquerda europeia tem um ra ncor contra os Estados Uni­


dos, principalmente porque esses últimos obtiveram sucesso através de
meios que não estavam escritos no código revolucionário. Prosperida­
de, poder e tendência à un i formidade das condições econômicas, todos
esses resultados foram alcançados pela iniciativa privada, pela compe­
tição, em vez de intervencionismo estatal, ou seja, foram alcançados no
pleno exercício do capitalismo, o qual todo intelectual bem-educado
aprendeu a desprezar.78

De forma semelhante, apesar de décadas de lamentos e de quei­


xas, nos Estados Unidos, a respeito da baixa qualidade da educação
na maior parte das escolas de negros, estudos realizados em escolas es­
pecíficas, onde estudantes negros obtinham ou superavam as médias
nacionais/9 despertaram pouco ou nenhum interesse entre a maioria
dos intelectuais, mesmo entre aqueles que são ativos participantes das
questões raciais. Assim como aconteceu no caso de milhões de pessoas
que saíram da pobreza em países do Terceiro Mundo, essa falta de in­
teresse com o sucesso de algumas escolas de negros por pessoas que,
em outras circunstâncias, mostram-se altamente engajadas com as ques­
tões raciais, revela a real preferência: a condenação, como um todo, das
escolas mal sucedidas e da sociedade que mantém essas escolas. Uma
investigação sobre os motivos que levaram algumas escolas de negros
a terem ótimo desempenho poderia fornecer boas esperanças para a
descoberta de possíveis fontes de conhecimento e de insight, as quais
indicariam como melhorar a educação para um grupo que geralmente
é muito deficiente na área de resultados acadêmicos, o que reflete, ao
mesmo tempo, baixa renda e pouca inserção em atividades profissionais
que dependem de excelência acadêmica. Contudo, a história de sucesso

78Raymond Aron, The Opium o( the Intellectuals. Londres, Sec ker & War­
burg, 1 957, p. 227.
79 Ver, por exemplo, Abigail e S tephan Thernstrom, No Excuses: Closing

the Racial Gap in Learning. Nova York, Simon & Schuster, 2003, p. 43-
50; Thomas Sowell, "Patterns of Black Excellence " . The Public Interest,
primavera de 1 976, p. 26-5 8 .
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os Inte lectuais e as Visões de Sociedade

de algumas escolas não ofereceria uma oportunidade real para os inte­


lectuais ungidos se colocarem ao lado dos anjos contra as forças do mal.
O fato de muitas, ou mesmo da maioria, das escolas de negros com
alto desempenho escolar não seguirem as diretrizes educacionais em
voga, promovidas pela intelligentsia, pode explicar parte do motivo
pelo qual há tanta falta de interesse nelas, da mesma forma que um
completo desinteresse em verificar como a Í ndia e a China conseguiram
aumentar o padrão de vida de milhões de pessoas pode estar ligado ao
fato de tal sucesso ter sido causado justamente pelo afastamento dos
modelos econômicos há muito favorecidos pela esquerda.
Geralmente se diz que os intelectuais da esquerda são notoria­
mente " suaves com os criminosos ", mas mesmo nesse caso a questão
real é se essas pessoas acusadas de cometer crimes ou condenadas
são objetos genuínos de benevolência por parte dos intelectuais ou se
estão, num quadro mais amplo, sendo usadas por eles, servindo como
anteparos acidentais e, por isso mesmo, descartáveis. Por exemplo,
uma das experiências mais horrendas, sofridas por muitos homens
na prisão, é ser vítima de estupro ,c oletivo perpetrado por gangues
de outros prisioneiros. No entanto, qualquer tentativa de reduzir a
incidência de terríveis e duradouras experiências como essas, cons­
truindo-se mais presídios para que cada detento possa ser aloj ado em
celas individuais, é duramente combatida pelas mesmas pessoas que
costumam se colocar veementemente em defesa dos " direitos" dos
presidiários. Esses direitos importam somente na medida em que se
tornam instrumento para condenar a " sociedade " , explicando a opo­
sição para construção de mais presídios. Quando o bem-estar real dos
detentos entra em conflito direto com a questão simbólica de se evitar
que mais presídios sejam construídos, os detentos tornam-se apenas
mais um sacrifício no altar da intelligentsia.
De muitas maneiras, abarcando toda uma gama de assuntos, a
revelada preferência real dos intelectuais é obter autoridade moral e
poder político em detrimento do resto da sociedade. Não é permitido
1 72 1 1 73

que os desej os ou os interesses de nenhum dos alegados beneficiários


dessa autoridade ou desse poder, sej am eles os pobres, as minorias ou
os presidiários, se sobreponham à questão mais fundamental, que é
obter e manter a hegemonia moral do intelectual ungido.

JUVENTUDE E VELHICE

Considerando-se as concepções altamente divergentes de conheci­


mento entre os que partilham da visão trágica e os que se consagram na
visão do intelectual ungido, é certamente inevitável que os dois posicio­
namentos tenham diferentes entendimentos sobre o papel e a competên­
cia dos j ovens. Onde, grosso modo, o conhecimento é concebido como
aquilo que é ensinado nas escolas e nas universidades, e a inteligência é
concebida como puro poder mental para se manipular conceitos e arti­
cular conclusões, não há motivos para crer que os jovens não seriam, no
mínimo, tão capazes para essas coisas quanto os mais velhos, uma vez
que o desenvolvimento cerebral atinge seu pico no início da idade adulta.
Mas, para os integrantes da visão trágica, para os quais o conhecimento
mais decisivo e repleto de consequências é geralmente o conhecimento
mundano, acumulado pela experiência, em que a sabedoria é fundamen­
talmente retirada ao longo desse processo, então, quase por definição, a
geração mais nova geralmente não se encontra numa posição tão favo­
rável para tomar decisões sábias, tanto para si como, sobretudo, para a
sociedade, comparando-se com os que já acumularam muita experiência.
Séguindo essa linha de raciocínio, os que comungam a visão do
intelectual ungido há séculos depositam grandes esperanças nos j o- -
vens, ao passo que os que partilham da visão trágica confiam muito
mais nos mais amadurecidos pela experiência .
A noção, veiculada n a década d e 1 960, sugerindo que " devería­
mos aprender com nossos jovens " tinha antecedentes que remontavam
ao século XVIII. Fenômenos sociais subsidiários, como a redução da
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

idade para votar e o esvaziamento do tratamento respeitoso para com


os mais velhos em geral e com os pais em particular, constituem, da
mesma forma, partes integrantes de toda a concepção de conhecimento
predominante na intelligentsia. Sempre que os problemas sociais são
vistos exclusivamente como consequência das instituições e dos pre­
conceitos existentes, os j ovens são, em geral, considerados menos apri­
sionados ao status quo, o que os torna grandes esperanças.
De volta para o século XVIII, William Godwin expressou tal en­
tendimento quando disse: "A próxima geração não terá de vencer
tantos preconceitos " .80 As crianças, segundo Godwin, " são como ma­
térias-primas colocadas em nossas mãos " 8 1 e a mente delas "é como
folhas de papel em branco " . 82 Ao mesmo tempo, elas são oprimidas
pelos pais e precisam passar por "vinte anos de cativeiro " antes que
recebam "a minguada porção de liberdade que o governo de meu país
oferece para seus súditos adultos ! " . 83 Certamente que, nessa visão, os
j ovens são vistos como candidatos para " liberação " tanto de si mes­
mos quanto da sociedade, uma visão ainda em plena vigência entre os
intelectuais mais de dois séculos depois.
Todavia, essas conclusões caem por completo toda vez que o
conhecimento e a sabedoria são concebidos dentro dos parâmetros
da visão trágica . Por exemplo, Adam Smith disse: " Geralmente, os
mais sábios e experientes são os menos crédulos " . Portanto, em
geral os mais velhos são menos suscetívei s a noções mirabolantes.
Ainda Smith: "É apenas a sabedoria e a experiência acu m ulada que
nos ensinam a sermos incrédulos e elas raramente nos ensinam o
suficiente " . 84 O zelo e o entusiasmo dos j ovens, tremendamente

80 William Godwin, Enquiry Concerning Political Justice, v . 1, p. 107.


81
Ibidem, p. 47.
81William Godwin, The Enquirer: Reflections on Education, Manners, and
Literature. Londres, G. G. and J. Robinson, 1 797, p . 70.
83 Ibidem, p. 67.
84 Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments, p. 529.
1 74 1 1 75

aclamados por muitos na intelligentsia, são avaliados de forma


muito diferente pelos que partilham da visão trágica. Burke, por
exemplo, disse o seguinte: "Não se deve fomenta r a ignorância pre­
sunçosa, que é acionada pela paixão insolente " . 85 Dentro da visão
trágica, alguns chegaram ao ponto de apontar uma invasão perene
da civilização por bárbaros, ou sej a, os recém-nascidos, os quais as
famílias e as instituições sociais têm o dever de civilizar, uma vez
que, ao ingressarem no mundo, não o fazem de forma distinta do
que o faziam os bebês na época das cavernas.
Pessoas com visões de mundo opostas não têm apenas conclusões
conflitantes em relação aos jovens e aos velhos. Nesses, assim como em
outros inumeráveis assuntos, as conclusões a que cada um chega estão
envolvidas em corolários subjacentes sobre o conhecimento e a sabedo­
ria. Há algum tempo, questões sobre a condução da educação dos j ovens
se constituem em campo de batalha entre os aderentes das duas visões.
O entendimento de William Godwin, o qual afirmara que os jovens "são
uma espécie de matéria-prima colocada em nossas mãos", permanece,
passados dois séculos, uma poderosa tentação para doutrinação em
sala de aula tanto nas escolas quanto nas universidades. No século XX,
�'oodrow Wilson, ao escrever sobre os an9s em que tra balhou como ad­
ministrador acadêmico, comentou: "Sonhava em tornar aqueles jovens
da nova geração em pessoas muito diferentes de seus pais". 86
Esse tipo de doutrinação pode começar muito cedo, desde o primá­
rio, quando os alunos são encorajados ou solicitados para escreverem
sobre assuntos controversos, por vezes em cartas destinadas a homens
públicos. De forma mais fundamental, o processo de doutrinação ha­
bitua as crianças a tomarem posições sobre assuntos excessivamente

Edmund Burke, Speeches and Letters on American Affairs. Nova York, E.P.
85
Dutton & Co., Inc., 1 96 1 , p. 203 .
86Woodrow Wilson, "What is Progress ? " . In: American Progressivism: A
Reader. Ed. Ronald ]. Pestritto e William ]. Atto. Lanham (MD), Lexington
Books, 2008, p. 48.
Os Intelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

complexos e pesados, depois de ouvirem apenas um lado das questões.


Além disso, elas se habituam a extravasar suas emoções, em vez de
se habituarem a analisar as evidências conflitantes e a dissecar argu­
mentos. Em poucas palavras, elas são condicionadas a tirar conclusões
pré-fabricadas, em vez de ser equipadas com as ferramentas intelectuais
apropriadas para que possam se tornar capazes de elaborar suas pró­
prias conclusões, incluindo conclusões diferentes das de seus profes­
sores. Nas faculdades e universidades, departamentos acadêmicos
inteiros funcionam e trabalham para a elaboração de conclusões pré­
fabricadas, seja em relação às questões sobre raça, meio ambiente ou
outros assuntos, que recebem o nome de "estudos " sobre a questão dos
negros, do meio ambiente e das mulheres. Poucos ou mesmo nenhum
desses "estudos " analisam visões conflitantes ou mesmo comparam evi­
dências conflitantes, como seria exigido dentro dos moldes e critérios
de um estudo acadêmico, em vez de meramente ideológico.
Os que criticam a doutrinação ideológica feita nas escolas e facul­
dades geralmente fixam seus ataques nos conteúdos ideológicos parti­
culares, mas, do ponto de vista educacional, isso foge à questão central.
Mesmo que, para uma questão de mera argumentação, todas as conclu­
sões alcançadas pelos diversos "estudos" sejam tanto lógica como factual­
mente válidas, isso não alcança o cerne da questão educacional. Mesmo
se os alunos deixassem esses "estudos" com aproveitamento de 100% em
conclusões corretas em relação às questões A, B e C, isso não os equipa­
ria, de forma alguma, com as ferramentas necessárias para lidar com ou­
tras questões X, Y e Z que tendem a aparecer ao longo dos anos futuros.

NOÇ Õ ES VERSUS PRINCÍPIOS

Idealmente, o trabalho de intelectuais baseia-se em certos prin­


cípios lógicos, empíricos e talvez de valores morais e de preocupa­
ção social. Todavia, tendo-se em vista os incentivos e as restrições da
1 76 1 1 77

profissão, o tra balho dos intelectuais não precisa seguir esse padrão.
Em vez de termos o rígido estabelecimento de princípios, há, por outro
lado, uma ampla margem para o desenvolvimento de meras atitudes,
as quais acabam guiando o trabalho dos intelectuais, especialmente
quando são atitudes predominantes entre seus pares e se encontram
isoladas do mundo externo, protegidas do mundo real.
Embora a lógica e a evidência constituam os critérios ideais para
o trabalho de qualquer intelectual, existem muitas provas que nos
mostram algo diferente, pois muito do que é dito e feito pelos in­
telectuais tem um compromisso diminuto com princípios formais e,
por outro lado, um compromisso muito maior com meras atitudes.
Por exemplo, os mesmos intelectuais que são tão receptivos à ideia
de redução das penas de mulheres condenadas por homicídio e que,
segundo é alegado, sofreram espancamentos domésticos ou outros ca­
sos semelhantes de maus-tratos domésticos na infância, mostram-se,
contudo, inflexíveis às alegações para se atenuar as acusações contra
policiais que tiveram um átimo de segundo para tomar uma decisão
de vida ou morte, correndo o risco de morrer, recusando-se a tratá-los
com menos severidade.
Alguns intelectuais que notoriamente se opõem aos princípios de
conduta racista permaneceram, no entanto, em si lêncio ou mesmo
defenderam líderes de comunidades negras que perpetraram ataques
racistas contra donos de loj as asiáticos que residiam em guetos negros
ou atacaram brancos em geral e j udeus em particular. Alguns intelec­
tuais chegaram ao ponto de redefinir o racismo de forma a tornar os
negros imunes ao rótulo,P ou seja, mais um exercício de manipulação
retórica . Muitos na intelligentsia denunciam a "ganância " que reina
entre os executivos, mas cuja renda é uma fração das rendas de atletas

87 Sob a alegação de que apenas aqueles que detêm poder podem ser caracte­
rizados como racistas - uma condição que impede qualquer definição a priori
e uma que implicaria que os nazistas não eram racistas durante a década de
1 920, antes de chegarem ao poder.
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

profissionais e de celebridades midiáticas, os quais são raramente ou


mesmo nunca acusados de gananciosos.
A intelligentsia mobilizou protestos de indignação quando os lu­
cros aferidos pelas companhias petrolíferas subiram, muito embora o
peso que o lucro corporativo exerce sobre o preço do galão de gaso­
lina seja muito menor do que o peso dos impostos sobre o preço do
mesmo galão. Mas o conceito de "ganância " quase nunca é aplicado
ao governo, seja em relação à quantidade de impostos que ele recolhe
ou mesmo quando as casas da população trabalhadora são confis­
cadas a roldão para o replanej amento de imensas áreas, de forma a
trazer mais e pesados impostos, permitindo que políticos gastem mais
e aumentem suas chances d e se reelegerem.
Tais respostas e falta de respostas dos intelectuais não represen­
tam apenas atitudes que simplesmente se colocam no lugar dos prin­
cípios, mas representam atitudes que, por vezes, anulam esses prin­
cípios. Esse comportamento tendencioso também não se restringe a
atacar grupos particulares de seres humanos, mas é aplicado aos pró­
prios conceitos, como, por exemplo, o conceito de risco.
Intelectuais que se dizem altamente críticos a quaisquer riscos as­
sociados a certos medicamentos farmacêuticos, considerando obriga­
ção banir a comercialização de alguns desses remédios por causa do
alto risco que representam, não consideram, contudo, que exista qual­
quer necessidade de o governo banir esportes como paraquedismo ou
rafting, mesmo quando se sabe que apresentam índices muito mais altos
de risco de morte, os quais, ainda por cima, são praticados por motivos
meramente recreativos, ao passo que os riscos de alguns medicamentos
são contraídos no combate a dor e a deficiências e podem salvar mais
vidas do que as tiram. De forma parecida, quando um atleta do boxe
morre devido aos golpes que sofreu no ringue, isso certamente dispara
uma enxurrada de exigências, que partem da mídia e da intelligentsia,
para que o boxe seja banido, mas tais exigências não são apresentadas
quando temos mortes de atletas esquiando, mesmo que essas últimas
1 78 I 1 79

sejam muito mais frequentes do que as mortes com o boxe. Mais uma
vez, não se trata de princípios, mas de atitude.
Embora as atitudes variem de indivíduo para indivíduo, as ati­
tudes dos intelectuais são, em sua grande parte, atitudes de grupo.
Além do mais, essas atitudes mudam coletivamente ao longo do tem­
po, tornando-se estilos transitórios de determinada época, em vez
de se fixarem como atitudes permanentes, e muito menos princípios
permanentes. Assim, na era progressista no começo do século XX,
as minorias raciais e étnicas eram vistas sob uma ótica amplamente
negativa, e o apoio dos progressistas à causa do movimento de euge­
nia não estava desligado de um anseio presumível em prevenir que
essas minorias propagassem suas populações. Tal a titude foi muito
comum na década de 1 930, só depois as minorias étnicas e raciais se
tornaram obj etos de especial zelo. Depois da década de 1 960, esse
zelo se transformou numa verdadeira obsessão, apesar de toda a in­
consistência em comparação às obsessões diametra l mente opostas
anteriores, adotadas pelos intelectuais, na época os " progressistas " ,
no início d o século XX.
Durante essa primeira fase do século XX, quando fazendeiros e
trabalhadores eram o foco especial do zelo intelectual, ninguém pres­
tava muita atenção sobre como os benefícios concedidos a esses gru­
pos poderiam afetar adversamente as minorias e os outros grupos. Da
mesma forma, numa época posterior, pouca atenção foi dada pelos
intelectuais "progressistas " a como a ação afirmativa para as mino­
rias ou para as mulheres afetava negativamente outros grupos. Não
existe princípio algum que equilibre essas mudanças de atitude coleti­
va . Temos simplesmente a bola da vez, da mesma forma que acontece
com as manias, entre os a dolescentes, os quais, por um tempo, assu­
mem formas de comportamento compulsivo e depois as consideram
fora de moda, mas que nunca são tratadas como sujeitas ao escrutínio
lógico ou à evidência durante o período em que se vive a obsessão ou
o período após o seu descarte. Voltando à década de 1 920, quando
Os I ntel ectuais e a Sociedade I Os I ntelectuais e as Visões de Sociedade

o caso Sacco-Vanzetti ganhou notoriedade internacional devido à


presumível inj ustiça do julgamento, o j uiz da Suprema Corte Oliver
Wendell Holmes escreveu, numa carta a Harold Laski, sobre o foco
arbitrário da época:

Eu não posso deixar de me perguntar sobre os motivos de um interesse


tão maior pelo vermelho - anarquista - do que pelo negro. Casos mil
vezes mais graves, envolvendo inj ustiças contra os negros aparecem de
tempos em tempos, mas ninguém lhes presta a mínima atenção. Não
acredito que seja um mero amor abstrato pela justiça que tenha causa­
do tanta comoção nas pessoas. 8 8

PESSOAS ABSTRATAS VIVENDO NUM MUND O ABSTRATO

As falsas crenças dos intelectuais a respeito da sociedade não se


constituem aleatoriamente. Na prática, suas confusões e suas falsas ca­
racterizações promovem a visão universal de uma sociedade profunda­
mente defeituosa, a qual necessita urgentemente de intervenções políti­
cas que, por sua vez, irão estabelecer e consagrar a visão predominante
da intelligentsia. Uma das bases para ambiciosos pronunciamentos
sobre a totalidade da sociedade é calcada na concepção de pessoas no
abstrato, retirando-se as especificidades e as características concretas,
encontradas em seres humanos de carne e osso, da forma como eles
existem no mundo real. Por exemplo, a preocupação que os intelectuais
têm com os níveis de consumo, ligados às desigualdades econômicas,
torna-se compreensível para eles somente se esses indivíduos ou gru­
pos, que se diferenciam em suas condições econômicas, não se distin­
guirem em fatores de produtividade que determinam esses resultados,
como seria o caso com pessoas tidas no abstrato. Pessoas abstratas
podem ser agregadas em categorias estatísticas, como vida familiar e

88
Mark DeWolfe Howe (ed . ) , Holmes-Laski Letters, v. 2, p. 974.
1 80 I 1 8 1

índices de renda, sem, contudo, precisar haver a menor preocupação


se essas categorias estatísticas estão falando de pessoas semelhantes ou
se falam do mesmo número de pessoas, ou de pessoas que se diferem
expressivamente em relação à idade ou em distinções mais finas.
As pessoas abstratas detêm uma imortalidade que as pessoas de car­
ne e osso ainda têm que conquistar. Assim, um historiador escrevendo so­
bre o recém-criado Estado da Tchecoslováquia, depois da Primeira Guer­
ra Mundial, disse que a política referente aos grupos étnicos, os quais
viviam dentro de suas fronteiras, foi concebida a fim de "corrigir a injus­
tiça social" e "consertar os erros históricos do século XVII " ,89 desconsi­
derando o fato de que as pessoas reais de carne e osso daquele século j á
tinham morrido havia muito, colocando a reparação de seus erros para
além do alcance humano. Boa parte do mesmo tipo de raciocínio conti­
nua a ser ideologicamente poderoso entre os membros da intelligentsia
nos Estados Unidos do século XXI, em que " brancos " e "negros" são
vistos como abstrações intertemporais a carregar questões centenárias
que precisam ser reparadas, em vez de tratá-los como pessoas de carne e
osso que levam seus pecados e seus sofrimentos consigo para o túmulo.
Diferentemente das pessoas reais, pessoas abstratas podem ser en­
viadas " de volta " para lugares onde nunca estiveram. Dessa forma, fa­
mílias alemãs que viveram por séculos em regiões da Europa oriental e
nos Bálcãs foram mandadas "de volta" para a Alemanha, depois da Se­
gunda Guerra Mundial, pois a maior parte das populações que viviam
nessas regiões reagiu ressentidamente ao fato de terem sido maltrata­
das durante a ocupação nazista, impondo, então, uma massiva limpe­
za étnica de alemães em seus países depois da guerra. Muitas dessas
pessoas de carne e osso e de ancestralidade alemã nunca tinham pisado
na Alemanha, para onde estavam sendo mandadas "de volta " . Apenas
como abstrações intertemporais elas tinham vindo de lá.

8 9 Eliza bethWiskemann, Czechs & Germans: A Study of the Struggle in the


Historie Provinces of Bohemia and Moravia. Londres, Oxford University
Press, 1 93 8, p. 1 4 2 , 1 4 8 .
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os I ntelectua i s e as Visões de Sociedade

Foi a mesma história com os chamados indianos tâmeis no Sri


Lanka, os quais, durante a década de 1 960, foram mandados " de volta"
para a Índia, de onde seus ancestrais haviam emigrado no século XIX. De
forma parecida, quando populações de heranças paquistanesa e indiana
foram expulsas de Uganda, durante a década de 1 9 70: a maior parte des­
sas pessoas nascera em Uganda e uma boa parte delas foi se estabelecer
na Grã-Bretanha e não na Índia ou no Paquistão. Talvez um dos esforços
mais persistentes em se repatriar abstrações atemporais tenha sido feito
com as propostas, nos Estados Unidos do século XIX, de se libertar os
escravos e mandá-los "de volta para a África " , um continente em que a
grande maioria deles ou mesmo seus avós nunca tinha pisado.
Quando diferenças reais entre pessoas reais são mencionadas ou
levadas em consideração por outros, os intelectuais são os primeiros
a declarar que são meras "percepções " e meros "estereótipos " . Evi­
dência para conclusões tão apressadas são raramente perguntadas ou
fornecidas. Igualdade a bstrata é o ponto de partida a priori de suas
suposições. Não há motivo algum para que pessoas a bstratas tenham
resultados diferentes quando suas diferenças reais em capacidade fo­
ram, a bstratamente, descartadas.
Pessoas abstratas são, acima de tudo, iguais, embora pessoas de
carne e osso estej am distantes de tal condição ou de tal ideal. Desigual­
dades de renda, poder, prestígio, saúde e outras coisas têm sido moti­
vo de grande preocupação entre os intelectuais tanto como coisas que
exigem explicação como coisas que precisam ser corrigidas. O tempo e
o esforço dedicados às questões de desigualdade poderiam nos sugerir
que a igualdade é algo tão comum e automático que sua ausência re­
quer uma explicação. Muitos intelectuais abordam a questão sobre a
igualdade com espírito muito parecido àquele com que Rousseau abor­
dou a questão da liberdade: " O homem nasce livre, mas ele se encontra
acorrentado em todos os lugares " . Para a grande maioria dos integran­
tes da intelligentsia moderna, o homem é considerado como nascido
igual, mas que misteriosamente tornou-se desigual em todos os lugares.
1 82 I 1 83

Muitas causas para essa inexplicável desigualdade já foram su­


geridas: exploração, desvantagens socialmente construídas, racismo,
machismo, preconceitos de classe, para citar só alguns exemplos. Con­
tudo, raramente é considerado necessário demonstrar a existência de
uma igualdade automática, a qual tornaria necessária a explicação de
sua ausência. Qualquer um que admita que indivíduos ou, pior ainda,
que grupos sejam desiguais, é intelectualmente destituído e denunciado
moralmente como preconceituoso e intolerante em relação àqueles que
sofrem com a desigualdade. No entanto, o caso empírico pela igualda­
de universal varia de uma posição débil à completa inexistência.
Alguém acredita seriamente que os brancos, em geral, jogam bas­
quete profissional tão bem quanto os negros ? Como, então, é possível
explicar a predominância de negros nessa lucrativa atividade que ofe­
rece fama e fortuna ? Durante o período de predominância dos negros
no basquete profissional, os donos dos times são todos brancos, as­
sim como a maior parte dos técnicos. Por meio de quais mecanismos
os negros poderiam ter maquinado restrições ao acesso ao basquete
profissional, sabotando os brancos com igual habilidade para esse
esporte ? Mesmo aqueles que admitem que os negros, no momento
atual e sob as circunstâncias sociais e culturais existentes, tornam-se
j ogadores de basquete mais habilidosos por uma questão empírica in­
sistem, no entanto, que os brancos poderiam jogar igualmente bem se
as circunstâncias, incluindo carreiras alternativas disponíveis, fossem
as mesmas para ambas as raças.
Assumir que isso é verdadeiro apenas revela qual tipo de con­
cepção de igualdade está implícito em muito do que os intelectuais
dizem. Eles não estão falando de uma igualdade empírica, mas de
uma igualdade potencial, ou seja, igualdade no abstrato. Essa não é
uma diferença insignificante, mesmo que sej a uma diferença frequen­
temente ignorada ou desconversada no curso das discussões. Ainda
que na média o potencial abstrato sej a igual, entre essas imensas agre­
gações de pessoas que formam as raças e as classes sociais ele existe
Os I ntelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

apenas no momento da concepção. Mas ninguém escolhe uma carrei­


ra ou concorre a um curso universitário no momento da concepção.
No momento em que pessoas reais vivendo no mundo real alcançam
tais pontos de tomada de decisão, muita coisa já aconteceu desde a
concepção e raramente aconteceu a mesma coisa para todo mundo.
Mesmo entre a concepção e o nascimento muitas coisas diferentes
já aconteceram, pois verificamos a produção de diferentes taxas de
mortalidade infantil, diferentes doenças e condições médicas, incluin­
do-se problemas com drogas, afetando os bebês nascidos de mulheres
com diferentes padrões de comportamento, como consumo ou não de
tabaco, drogas, alimentação insalubre e álcool .
A distinção entre potencial abstrato e capacidades desenvolvidas
não é trivial, mesmo que seja geralmente perdida ou minimizada por
intelectuais que falam em termos absolutamente genéricos sobre a
" igualdade " . O potencial abstrato carrega um peso muito pequeno,
em qualquer lugar do mundo, sempre que as pessoas tomam decisões
para si. Desempenho é o que interessa. O que a maior parte das pes­
soas quer saber é o seguinte: O que você é realmente capaz de realizar?
Não o que você poderia ter realizado em outras circunstâncias ou que
sej a capaz de realizar depois que outras instituições e outras políticas
forem criadas, mas o que você pode fazer aqui e agora no mundo real.
O que queremos saber é o que pessoas reais podem realmente fazer e
não que tipo de potencial abstrato existe em pessoas abstratas.
A excepcional facilidade que os intelectuais têm para lidar com
abstrações não elimina a diferença entre essas a bstrações e o mundo
real. Nem mesmo garante que aquilo que é válido e verdadeiro para
essas a bstrações sej a igualmente verdadeiro na realidade, muito me­
nos garante que as sofisticadas visões abstratas dos intelectuais deve­
riam passar por cima das experiências diretas das pessoas vivendo no
mundo real. Os intelectuais podem, de fato, desconsiderar as "percep­
ções " dos outros, rotulando-as como " estereótipos" ou "mitos " , mas
isso não é o mesmo que provar que elas estão empiricameme erradas,
1 84 I 1 85

mesmo quando um número notável de intelectuais age como se elas


estivessem. Por trás da prática disseminada de considerar diferenças
de grupo em " representações" demográficas, em várias profissões e
instituições ou níveis de renda como evidência de discriminação, exis­
te a noção implícita de que os grupos não podem ser diferentes ou que
quaisquer diferenças são culpa da " sociedade " , a qual deve corrigir
seus erros e seus pecados.
Sabendo-se que não existe sujeito algum chamado " sociedade" ,
o que tais intelectuais geralmente se dedicam a reformar é o governo.
O que está implícito nisso tudo é a suposição de que existe algo de
errado com o fato de indivíduos e grupos serem diferentes em suas
habilidades empíricas, uma vez que foi presumido que seus potenciais
abstratos são os mesmos.
Uma vez que o foco mude de potencial a bstrato para realida­
des empíricas, a noção de igualdade não se torna meramente uma
abstração sem provas, mas concretamente improvável, ao ponto de
se tornar absurda. Como as pessoas que vivem nas montanhas do
Himalaia poderiam desenvolver as mesmas habilidades marítimas de
pessoas vivendo nos portos do Mediterrâneo ou do Atlântico ? Como
os polinésios poderiam saber lidar com camelos tão bem como os
beduínos do Saara ou, inversamente, como os beduínos poderiam ser
pescadores tão habilidosos quanto os polinésios ?
Habilidades empiricamente observáveis sempre foram acentua­
damente desigua is, o que significa dizer que as pessoas reais nunca
chegaram perto da igualdade das pessoas no abstrato. Por séculos,
os ingleses tosquiaram suas ovelhas e mandaram a lã para Flandres
para que fosse beneficiada e transformada em tecido. Teriam os ingle­
ses se su bmetido a tamanha operação caso fossem igualmente bons
em beneficiar a lã bruta, transformando-a em tecido ? No final das
contas, os ingleses, depois de longo processo de desenvolvimento, do­
minaram a indústria da lã, o que muito contribuiu para o declínio
econômico de Flandres, mas isso levou séculos. Da mesma forma,
Os Intelectuais e a Sociedade I Os Intelectuais e as Visões de Sociedade

levou séculos até que os ingleses se transformassem nos senhores das


instituições financeiras modernas. Antes que isso acontecesse, grande
parte do controle de suas finanças estava nas mãos dos lombardos e
dos j udeus. Há uma razão pela qual existe a Lombard Street no dis­
trito financeiro da Londres de hoje, assim como outra rua, na mesma
região, chamada Old Jewry. Por séculos, segmentos industriais intei­
ros foram dominados por minorias em países de todo o mundo; por
exemplo, alemães fazendo cerveja na China, no Brasil, na Austrália e
nos Estados Unidos; o comércio de exportação dominado por chine­
ses na Malásia, na Indonésia, nas Filipinas, na Jamaica e no Panamá;
os indianos j ainistas na lapidação de diamantes para o mercado mun­
dial, na Í ndia ou em Amsterdã; os italianos tanto na música clássica
quanto popular, por todo o mundo, e assim por diante. Mas os fatos
empíricos não afetam a visão imposta de igualdade a bstrata que do­
mina o pensamento da intelligentsia.
Habilidades em função de atividade e de experiência estão entre
as coisas que diferenciam radicalmente os grupos, os países e as ci­
vilizações. Í ndices de alcoolismo variam enormemente entre grupos
de países por todo o mundo e o mesmo acontece com os índices de
criminalidade e de mortalidade infantil, dentre muitas outras coisas.
Mas nenhum desses fatores empíricos parece perturbar a visão da
igualdade abstrata . O tom de indignação que ecoa da mídia e da in­
telligentsia quando é divulgado que os negros são preteridos muito
mais frequentemente que os brancos, na obtenção de empréstimos
hipotecários, desconsidera absolutamente muitos dos fatores usados
para determinar as condições de empréstimo. Eles não se dão sequer
ao trabalho de averiguar os fatos que indicam em que proporção tais
fatores diferem entre os diversos grupos.
Muito barulho foi feito pelo fato de negros e brancos com o mes­
mo nível de renda ainda apresentarem diferentes patamares de rej ei­
ção na candidatura a empréstimos hipotecários, como se a renda fosse
o único fator que entrasse na análise ou como se outros fatores não
1 86 1 1 87

estudados pudessem ser tidos como iguais ou comparáveis.90 Toda vez


que há falta de informações concretas ou quando elas são ignoradas,
a igualdade surge como o padrão predeterminado, não importando a
quantidade de desigualdades que foram encontradas nos diversos casos
estudados. O equívoco fundamental nesse tipo de procedimento pode
ser demonstrado numa área pouco controversa como, por exemplo,
o beisebol. Havia dois j ogadores no time do New York Yankees, em
1 927, com idênticas médias de acerto em rebatidas, mas um deles per­
manece famoso até os dias de hoje, enquanto o outro caiu quase que
completamente no esquecimento. A igualdade entre eles numa dimen­
são não implicava, de forma alguma, igualdade em outras dimensões.
No caso, um dos rebatedores alcançou a marca de seis corridas até a
base (home runs) naquele ano, seu nome era Earle Combs, ao passo
que o outro chegou à marca de sessenta e seu nome era Babe Ruth.
De forma parecida, quando os famosos estudos de Lewis Terman so­
bre crianças portadoras de Q.I. excepcionalmente elevado, que duraram
décadas, avaliaram as realizações dessas mesmas crianças em idade adul­
ta, notou-se que muitas tiveram uma vida adulta de grandes realizações,
mas, como observou outro escritor, "quase nenhuma das crianças geniais
pertencentes às classes sociais e econômicas mais baixas se notabilizou
em algum campo" . Quase um terço dessas crianças com alto Q.l. "do
outro lado da faixa social" tinha "algum parente que havia abandonado
a escola antes de terminar o ginásio" .9 1 Portanto, elas eram como as ou­
tras crianças superdotadas somente porque tinham Q.l. de 140 ou mais,
mas não se equiparavam em relação a outros fatores culturais, os quais
determinam grandes realizações profissionais.
O mesmo princípio se aplica em outros e inumeráveis contextos
não apenas na sociedade dos Estados Unidos, mas nos países mundo

90Thomas Sowell, The Housing Boom and Bust. Nova York, Basic Books,
2009, p. 97- 1 02.
91 Malcolm Gladwell, Outliers: The Stor)' of Success. Boston, Little, Brown
and Co., 2008, p. 1 1 2.
Os I n telectuais e a Sociedade I Os Intelectua is e as Visões de Sociedade

afora. Na Í ndia, alunos universitários provenientes de famílias com


níveis de renda semelhantes diferem, contudo, em seus níveis de
aprendizado quando se comparam os alunos que foram dalits,92 os
antigos " intocáveis " , com os alunos da casta hindu. Encontramos,
historicamente, níveis educacionais muito mais baixos entre os dalits.
Igualdade de renda não implicou igualdade de outras características
importantes. Em outros países, pessoas que recebem a " mesma " edu­
cação, mensurada em quantidade, revelaram possuir grandes diferen­
ças de qualidade, fosse ela mensurada em relação às próprias especia­
lizações escolhidas, nos desempenhos dos alunos ou na qualidade das
instituições nas quais foram educadas. Apenas as pessoas abstratas,
vivendo num mundo abstrato, são iguais.
O ponto aqui não é dizer que a intelligentsia estava enganada ou
mal informada sobre determinadas questões. O ponto mais fundamental
é dizer que, ao pensar em termos de pessoas abstratas num mundo abs­
trato, os intelectuais se furtam à responsabilidade e ao trabalho árduo de
apreender os fatos reais sobre pessoas reais vivendo num mundo real, fa­
tos que geralmente explicam as discrepâncias entre o que os intelectuais
veem e o que eles gostariam de ver. Muitos dos que são tidos como pro­
blemas sociais são, na realidade, as diferenças entre teoria e realidade que
muitos intelectuais interpretam como erros do mundo, que necessita ser
reformado. Além do mais, essas mudanças serão implantadas de cima
para baixo nas instituições e não nas culturas, as quais são tidas como
iguais perante a doutrina reinante do multiculturalismo.
A existência de uma igualdade empírica nunca precisou ser de­
monstrada e provada no mundo dos intelectuais contemporâneos,
pois ela é, por definição, o ponto de partida matricial. O ônus da pro­
va é imposto somente aos que discordam disso.

92 Padma Ramkrishna Velaskar, Inequality in Higher Education: A Study of


Scheduled Caste Students in Medica/ Colleges of Bombay. Bombaim, Tata
Institute of Social Sciences, 1 986. (Dissertação de doutorado)
DADOS [NTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ( CIP)
( CÂMARA BRAS ILEIRA DO LIVRO, SP, BRAS I L )

Sowell, Thomas
Os Intelectuais e a Sociedade / Thomas Sowell ; tradução de
Maurício G. Righi. - São Paulo : É Realizações, 201 1 .

Título original: Intellectuals and Society.


ISBN 978-85-8033-0 1 8 -2

1 . Influência (Psicologia) 2. Intelectuais 3. Intelectuais -


Aspectos Sociais 4. Opinião Pública I. Título.

1 1 -03444 CDD-305.552

ÍNDICES PARA CATÁLOGO S ISTEMÁTICO:


1. Intelectuais : Sociologia 305 .552

Este livro foi impresso pela


Cromosete Gráfica e Editora
para É Realizações, em dezembro
de 20 1 1 . Os tipos usados são
da fa míl i a Sa bon L ight Std
e Frutiger Light. O papel do
miolo é pólen bold 9 0g, e o da
capa, cartão supremo 3 0 0g.
COLEÇÃO
RBERtURR
CULtURAL

Este é um estudo sobre o grande peso que têm os intelectuais,


cujas atividades afetam sobejamente, como classe organizada, as
sociedades modernas, moldando o clima de opinião pública de forma
decisiva, sob cuja influência são desenvo lvidas as políticas oficiais
sobre as mais variadas questões, abarcando os campos da economia,
do direito, da guerra c da paz .

A tese dl' Os l11telectuais e a Sociedade é de que a influência hoje


l'Xercida pelos intelectuais não é apenas maior do que foi no
passado, mas assume, também, uma forma diferente do modelo
concebido por pensadores como Maquiavel, os quais buscavam
intluenciar diretamente os governantes. Não é por meio de uma
interkrl·ncia direta sobre as opiniões dos líderes e senhores do poder
que os intelectuais modernos têm atuado e alterado mais o curso
dos evl'ntos, mas por uma ação principal focada na formação e na
condução de uma opinião pública. Mesmo os líderes de governo que
alimemam certo desprezo pelos intelectuais tiveram que se curvar ao
clima de opinião pública formado pelos últimos.

Os lntelcctllais e a Sociedade não é uma obra que apenas examina


a agenda e o histúrico dos intelectuais, mas também analisa os
incentivos c as restrições sob os quais suas visões e concepções
cmergir<llll. Um dos aspl'Ctos mais surpreendentes deste estudo
de Sowell r o faro de ele provar não só a altíssima frequência de
cquívon>s cometidos pelos intelectuais, mas como esses erros têm sido
a hsolura mente desastrosos par a a sociedade, em suas falsas prescrições
pam curar os males do mundo. No entanto, essas visões equivocadas
nilo são alteradas, apenas recicl ,1das, mesmo diante de evidC·ncins
empíricas que têm atestado os desastres provocados por das.

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9 788580 330182

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