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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO

EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Apelação nº xxxxxxxx
3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo
Juízo de origem: 10ª Vara de Fazenda Pública – Foro Central/SP

A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, já


qualificada nos autos do processo em epígrafe, por seu Nú cleo Especializado de
Cidadania e Direitos Humanos, que faz jus à intimaçã o pessoal e concessã o de
prazo em dobro, nos termos do artigo 128, incisos I e XI, da Lei Complementar n°
80/94, alterada pela Lei Complementar n° 132/09, vem, com o devido acatamento
e respeito, à presença de Vossa Excelência, nos autos da açã o em epígrafe que
move contra o ESTADO DE SÃO PAULO, interpor o presente RECURSO
EXTRAORDINÁRIO, com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea a, da Constituiçã o
Federal, uma vez que o v. acó rdã o contrariou e negou vigência a dispositivos da
Constituiçã o Federal.

Requer, ainda, seja o presente recurso recebido e


processado, remetendo-se os autos ao C. Supremo Tribunal Federal com as
inclusas razõ es.

Sã o Paulo, 26 de abril de 2021.

Defensor(a) Pú blico(a)
Unidade de XXXXXXXXX

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RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Recorrente: Defensoria Pú blica do Estado de Sã o Paulo


Recorrido: Estado de Sã o Paulo
Origem: Tribunal de Justiça do Estado de Sã o Paulo – 3ª Câ mara de Direito Pú blico
Primeiro Grau: 10ª Vara de Fazenda Pú blica – Foro Central/SP

“O exercício das liberdades pú blicas, essencial para a


atividade cívica, está entre as mais importantes políticas de
investimento em prosperidade, estabilidade e paz. Como
apontou o Secretá rio-Geral em seu discurso de 15 de
setembro de 2015 por ocasiã o do Dia Internacional da
Democracia, o progresso e a participaçã o cívica estã o
intimamente ligados; uma naçã o confiante dá voz aos
cidadã os e lhes atribui um papel no desenvolvimento de seu
país. Os governos nã o podem por si pró prios dar respostas a
tudo, razã o pela qual é do seu interesse remover os
obstá culos ao exercício das liberdades pú blicas, a fim de
tornar mais fácil libertar a criatividade e o engenho da
atividade cívica para produzir soluçõ es”.
(A/HRC/32/20 - Recomendaçõ es prá ticas para a criaçã o e
manutençã o de um ambiente seguro e auspicioso para a
sociedade civil, com base em boas prá ticas e liçõ es
aprendidas - Relató rio de 2016 do Alto Comissariado das
Naçõ es Unidas para os Direitos Humanos)

Egrégio Supremo Tribunal Federal,


Colenda Turma Julgadora,
Eméritos Ministros,

I. BREVE RESUMO DO PROCESSO

Trata-se de Açã o Civil Pú blica ajuizada pela Defensoria


Pú blica de Sã o Paulo, por seu Nú cleo Especializado de Cidadania e Direitos
Humanos, na defesa de direitos fundamentais (liberdade de expressã o, direito de

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reuniã o e direito à cidade) e na busca de reparaçã o por danos sofridos por pessoas
em contexto de manifestaçõ es pú blicas. O objetivo primordial é a busca de uma
atuaçã o da Polícia Militar que privilegie o diá logo à violência e que, em casos de
necessidade incontorná vel de uso da força, que o faça de forma progressiva. Assim,
para além da reparaçã o pelas violaçõ es cometidas pelo Estado, pretende-se
também a condenaçã o do Estado em obrigaçõ es de fazer e nã o fazer que
aperfeiçoem o trabalho policial em contexto de manifestaçõ es pú blicas.

Os pedidos deduzidos decorreram de monitoramentos


realizados pela Defensoria Pú blica, ao longo de dois anos, em oito manifestaçõ es
populares, com características e objetivos pró prios (manifestaçõ es políticas,
festivas e esportivas), os quais demonstraram a ausência de protocolos e de
treinamento da Polícia Militar do Estado de Sã o Paulo para lidar com determinadas
intercorrências durante tais manifestaçõ es, sendo que, nas situaçõ es em que seria
admissível intervençã o policial repressora, constatou-se postura abusiva,
desnecessá ria e ofensiva a protocolos internacionais de uso da força.

Em suma, pretende-se com a presente açã o a observâ ncia,


por parte do Estado de Sã o Paulo, aos direitos fundamentais supracitados, o que
pressupõ e, necessariamente, a adequaçã o dos procedimentos de atuaçã o da Polícia
Militar em manifestaçõ es pú blicas a princípios bá sicos da Constituiçã o Federal e de
Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Nesse sentido, pleiteou-se a
condenaçã o do Estado de Sã o Paulo a:

“(a) expedir ato normativo (...) definindo parâ metros de atuaçã o


da Polícia Militar do Estado de Sã o Paulo em policiamento de
manifestaçõ es pú blicas, de acordo com as orientaçõ es técnicas
retro mencionadas (...);

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(b) abster-se, desde já, de impor condiçõ es ou limites de tempo
e lugar à s reuniõ es e manifestaçõ es pú blicas, mesmo nas situaçõ es
em que houver a interrupçã o do fluxo de veículos (...);
(c) abster-se, desde já, de portar arma de fogo, inclusive com
muniçã o de elastô mero, por policiais atuando no
acompanhamento e fiscalizaçã o de manifestaçõ es;
subsidiariamente, abster-se de fazer uso de arma de fogo,
inclusive com muniçã o de elastô mero, por policiais atuando no
acompanhamento de manifestaçõ es pú blicas, salvo na exclusiva
hipó tese de legítima defesa pró pria ou de terceiro para afastar
grave risco de morte (...);
(d) identificar todos os policiais atuando em acompanhamento
de manifestaçõ es pú blicas com nome completo e patente, de
forma visível, além de outras formas de identificaçã o visíveis à
distâ ncia (...);
(e) indicar negociador civil, que deverá ser responsá vel pela
coordenaçã o e diálogo do líder dos manifestantes com o comando
policial, formando-se o “safety triangle”, marcado pela
permanente comunicaçã o pessoal entre seus integrantes (...);
(f) comunicar a decisã o administrativa de dispersã o da
manifestaçã o, tomada pelo Comandante da Polícia Militar
responsá vel pela operaçã o de policiamento, aos manifestantes,
por meio que permita a compreensã o imediata da ordem (por
exemplo, por meio de megafone ou carro de som), conferindo-se
tempo razoá vel para sua compreensã o e acatamento (...);
(g) publicar o ato administrativo citado no item f, no prazo de
5 (cinco) dias, no Diá rio Oficial do Estado e no sítio eletrô nico do
Portal da Transparência do Estado, respeitado o dever de
fundamentaçã o (...);
(h) abster-se de utilizar gá s lacrimogêneo e bombas de efeito
moral para dissolver aglomeraçõ es antes da prá tica do ato

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administrativo elencado no item f, e, em qualquer hipó tese, em
locais fechados e no centro de aglomeraçõ es de pessoas (...);
(i) abster-se de postar, em manifestaçõ es pacíficas, a Tropa de
Choque da Polícia Militar do estado de Sã o Paulo, a qual deverá
permanecer fora da vista dos manifestantes, só podendo atuar
apó s a decisã o administrativa indicada no item f (...);
(j) abster-se de impedir qualquer cidadã o de captar imagem e
som de seus agentes em atuaçã o (...);

O d. Juízo de primeiro grau concedeu parcialmente a tutela


de urgência pleiteada (fls. 1232/1248) e, posteriormente, proferiu sentença de
procedência parcial (fls. 1457/1488), determinando que o Estado elaborasse “um
projeto de atuação de sua Polícia Militar, a aplicar-se quando se trate de
manifestação de populares em protestos, um projeto, que, aliás, é reclamado pelo
princípio constitucional da eficiência”. O projeto deveria (i) determinar que os
policiais militares portassem identificaçã o com nome e posto, em local visível de
sua farda e (ii) minudenciar as condiçõ es em que pudesse haver ordem de
dispersã o dos populares, como providência limite, indicando que tipo de oficial
poderia determiná -la, em que circunstâ ncias deveria fazê-lo, obrigando-o, ainda, a
divulgar as razõ es que levou em consideraçã o para agir, tudo de modo que se
pudesse posteriormente controlar o ato administrativo praticado, inclusive por via
judicial.

Na r. sentença constou, ainda, vedaçã o à utilizaçã o de armas


de fogo, balas de borracha e gá s lacrimogêneo como armas pela Polícia Militar “em
protestos exercidos em função do direito fundamental de reunião, salvo em situação
excepcionalíssima, quando o protesto perca, no todo, seu caráter pacífico, cabendo à
Polícia Militar, se adotado qualquer daqueles instrumentos (armas de fogo, balas de
borracha e gás lacrimogêneo), informar ao público em geral que circunstâncias

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justificaram sua ação, e qual o nome do policial militar que determinou a repressão
com uso daqueles instrumentos”.

Em resumo, o MM. Juízo singular determinou a adoçã o de


medidas pelas quais a harmonizaçã o entre o direito de reuniã o e a garantia da
ordem pú blica pudesse ser alcançada e, ainda, julgou procedentes os pedidos de
reparaçã o por danos morais, sociais e patrimoniais individuais formulados na
inicial.

O Estado de Sã o Paulo interpô s recurso de apelaçã o (fls.


1597/1633), ao passo que a Defensoria Pú blica interpô s recurso de apelaçã o
adesivo quanto à parte em que sucumbiu (fls. 1640/1662), tendo sido a matéria
devolvida ao Tribunal de Justiça de Sã o Paulo também por conta do reexame
necessá rio.

A Turma julgadora da 3ª Câ mara de Direito Pú blico do TJSP


reformou a r. sentença, dando provimento ao recurso do Estado de Sã o Paulo e ao
recurso de ofício, e negando provimento ao recurso adesivo da Defensoria Pú blica
(fls. 1871/1900), assim ementado o v. aresto:

APELAÇÃ O AÇÃ O CIVIL PÚ BLICA. Manifestaçõ es populares.


Apresentaçã o de projeto definindo a atuaçã o da Polícia
Militar. Direito de reuniã o X Direito à segurança pú blica,
livre locomoçã o dos demais cidadã os que optaram por nã o
aderir a uma determinada manifestaçã o, bem como a
Separaçã o de Poderes. Sopesamento de princípios
constitucionais. Prevalência, no caso concreto, destes
ú ltimos. Preliminar de ilegitimidade da Defensoria Pú blica
para propor Açã o Civil Pú blica afastada. Inexistência de
continência com a Açã o Civil Pú blica nº 0024010-
95.2013.8.26.0053. Ato típico do Poder Executivo,

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caracterizado pela discricionariedade. Ingerência do Poder
Judiciá rio que contraria o princípio da independência e
harmonia entre os Poderes. Precedentes. Sentença
reformada. Recurso da Fazenda Estadual e reexame
necessá rio providos e recurso adesivo da Defensoria Pú blica
improvido.

Em face do v. acó rdã o, foram opostos embargos de


declaraçã o pela Defensoria Pú blica (fls. 1/17 do processo autuado em apenso, sob
o nº 1016019-17.2014.8.26.0053/50000), que, contudo, foram rejeitados pelo E.
Tribunal a quo.

Assim, diante da inegá vel contrariedade e negativa de


vigência a dispositivos da Constituiçã o Federal, nã o resta alternativa senã o a
interposiçã o do presente Recurso Extraordiná rio, pelas razõ es a seguir expostas.

II. DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

II.1. DA TEMPESTIVIDADE

O recurso é tempestivo, uma vez que a Defensoria Pú blica


goza dos benefícios da contagem em dobro dos prazos processuais, a teor do
disposto no artigo 128, inciso I, da LC nº 80/94, que inicia quando da intimaçã o
pessoal com abertura de vista para a Instituiçã o. Nesse sentido, também dispõ e o
Có digo de Processo Civil, em seus artigos 186, caput e §1º, e 183, §1º.

No caso dos autos, a intimaçã o pessoal da Defensoria Pú blica


ocorreu por meio eletrô nico, conforme certidã o de fl. 39 do apenso (processo n.
1016019-17-2014.8.26.0053/50000), que indica ter sido encaminhada para o
portal eletrô nico em 1/3/2021, sendo que à fl. 41 consta que em 11/3/2021

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transcorreu o prazo de leitura no portal eletrô nico, tendo o prazo se iniciado em
12/3/2021 (primeiro dia ú til seguinte).

Considerando-se que a Defensoria Pú blica goza de prazo em


dobro, o qual somente se conta em dias ú teis (artigo 219 do CPC), e que o prazo
para interpor recursos é de 15 dias (artigo 1003, §5º, CPC), é certo que o prazo de
30 dias ú teis (em dobro) somente vence em 27 de abril de 2021, já que nã o houve
expediente forense nos dias 1º, 2 e 21 de abril de 2021, por conta dos feriados de
endoenças, paixã o e Tiradentes, respectivamente (documento anexo).

Assim, diante da interposiçã o do recurso na presente data, é


evidente, pois, a sua tempestividade.

II.2. DO CABIMENTO

Está preenchida a hipó tese do art. 102, III, “a” da


Constituiçã o Federal, pois o acó rdã o recorrido contrariou os dispositivos
constitucionais contidos nos artigos 2º (separaçã o dos poderes); 5º, incisos IV
(liberdade de expressã o), XV (direito de locomoçã o), XVI (direito de reuniã o) e
XVII (liberdade de associaçã o); 182, caput (direito à cidade); além de violar
Tratados Internacionais de Direitos Humanos firmados pelo Brasil, a saber, a
Convençã o Americana sobre os Direitos Humanos (arts. 1, 2, 13, 15, 16 e 25) e o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (arts. 19 e 21).

Acerca das violaçõ es a tratados internacionais firmados pelo


Brasil, a Recorrente esclarece desde logo que a matéria é trazida no bojo deste
Recurso Extraordiná rio com fundamento no artigo 5º, §§ 2º e 3º, da Constituiçã o
Federal.

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Conforme reza o §2º, os direitos e garantias expressos na
Constituiçã o Federal “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”, sendo que o § 3º dispõ e que “Os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Nesse sentido, tanto a Convençã o Americana sobre Direitos


Humanos (Pacto de Sã o José da Costa Rica) quanto o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, ainda que formalmente nã o tenham sido aprovados pelo
rito das emendas constitucionais, sã o revestidos de constitucionalidade material,
conforme entendimento da mais autorizada doutrina. Sobre o ponto, vale conferir
liçã o da Prof.ª Flá via Piovesan:

“(...) Há de se interpretar o disposto no artigo 5º, § 2º do


texto, que, de forma inédita, tece a interaçã o entre o Direito
Brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos.
Ao fim da extensa Declaraçã o de Direitos enunciada pelo
artigo 5º, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e
garantias expressos na Constituiçã o ‘nã o excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a Repú blica Federativa
do Brasil seja parte’. A Constituição de 1988 inova, assim,
ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente
protegidos, os direitos enunciados nos tratados
internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar
tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos
internacionais uma natureza especial e diferenciada,
qual seja, a natureza de norma constitucional.
Esta conclusã o advém de interpretaçã o sistemá tica e
teleoló gica do texto, especialmente em face da força
expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos

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fundamentais, como parâ metros axioló gicos a orientar a
compreensã o do fenô meno constitucional. A este raciocínio
se acrescentam o princípio da má xima efetividade das
normas constitucionais referentes a direitos e garantias
fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos
direitos fundamentais, o que justifica estender aos direitos
enunciados em tratados o regime constitucional conferido
aos demais direitos e garantias fundamentais. Esta
conclusão decorre ainda do processo de globalização,
que propicia e estimula a abertura da Constituição à
normação internacional — abertura que resulta na
ampliação do ‘bloco de constitucionalidade’, que passa a
incorporar preceitos asseguradores de direitos
fundamentais. Logo, por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º, a
Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em
tratados internacionais natureza de norma
constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos
constitucionalmente garantidos, que apresentam
aplicabilidade imediata.”1 (grifos nossos)

Na mesma linha sã o os ensinamentos do Professor Peter


Haberle, que define o que vivemos hoje como um "Estado Constitucional
Cooperativo", aquele que nã o mais se apresenta como um Estado Constitucional
voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros
Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o
papel dos direitos humanos e fundamentais2.

Mais especificamente sobre o cabimento de recurso contra a


decisã o que contraria tratado internacional sobre direitos humanos, o Professor
Rodolfo de Camargo Mancuso esclarece:

1
PIOVESAN, Flávia. A Constituição de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev6.htm>
2
HABERLE, Peter. El estado constitucional. Trad, de Hector Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autó noma de México, 2003. p. 75-77. (voto Gilmar mendes RE 466.343-1)

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“A matéria, como antes assinalado, é objeto do §3º do art. 5º
da CF, inserido pela EC 45/2004: ‘Os tratados e convençõ es
internacionais de direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serã o
equivalentes às emendas constitucionais’. Essa
equiparação leva a que, como dito inicialmente, a
decisão que contrariar tratado internacional sobre tal
matéria desafie recurso extraordinário (CF, art. 102, III,
a), e nã o recurso especial (art. 105, III, a)”3.

A Recorrente nã o ignora a controvérsia existente acerca da


posiçã o hierá rquica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, por conta
da disposiçã o do §3º do artigo 5º da Constituiçã o Federal. No entanto, como a
doutrina acima colacionada defende, há argumentos bastante sólidos para
sustentar a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos
humanos, ainda que não tenham sido aprovados pelo rito das emendas
constitucionais.

No entanto, mesmo que nã o se admita a tese da hierarquia


constitucional dos tratados de direitos humanos nã o aprovados pelo rito do artigo
5º, §3º, CF, entende-se cabível a interposiçã o de recurso extraordiná rio quando da
violaçã o a tratado dessa natureza.

Sobre o ponto, importante trazer à baila entendimento


manifestado recentemente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do
AgInt no REsp 1704452/SC, no sentido de que a tese da supralegalidade
consagrada por este E. Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 466.343-1
nã o implica competência do Superior Tribunal de Justiça para analisar a questã o,
devendo a violaçã o a tratados internacionais de direitos humanos ser objeto, em
qualquer caso, de Recurso Extraordiná rio:

3
“Recurso extraordinário e recurso especial”, 14ª ed., Revista dos Tribunais, p. 277.

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PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO
ESPECIAL. AMBIENTAL. AÇÃ O CIVIL PÚ BLICA. CONVENÇÃ O
N. 169/OIT. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. NORMA
SUPRALEGAL. COMPETÊ NCIA. ZONA DE PENUMBRA.
CONSULTA PRÉ VIA. MOMENTO PRECISO. TERRA INDÍGENA.
NATUREZA INCERTA. SÚ MULA 7/STJ. RESOLUÇÃ O
CONAMA. DECRETOS FEDERAIS. NORMA INFRALEGAL.
SÚ MULA 284/STF. FUNAI. INTERVENÇÃ O.
OBRIGATORIEDADE. MERA
TRANSCRIÇÃ O DAS RAZÕ ES DO ESPECIAL. DIALETICIDADE.
AUSÊ NCIA. SÚ MULA 182/STJ.
1. A violação direta de convenção internacional
supralegal deve ser alegada em recurso extraordinário
interposto na origem e com agravo à Corte Suprema
pendente. (rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, j. em
10/03/2020, DJe 19/03/2020)

Esclarecedor o voto do relator, Ministro Og Fernandes:

“Porém, afirmei [na decisã o singular] ser descabida a


aná lise, por este Tribunal, de afronta à norma convencional
veiculadora de direitos humanos, dada sua natureza
superior à lei ordiná ria. Ademais, ao paralisar a eficá cia da
norma legal, o tratado supralegal, parece-me, aproxima-
se ontologicamente muito mais de disposição
constitucional do que de legislação federal.
Penso que a matéria merece ser aprofundada.
Registrei, na decisã o agravada, o posicionamento
doutriná rio (grifos acrescidos):
‘Questã o interessante se relaciona com a oportunidade de o
Supremo Tribunal Federal realizar controle difuso, em face
de direito supralegal, mediante recurso extraordiná rio. É
que se poderia argumentar, em primeiro lugar, que tratado
nã o constitui norma constitucional e, depois, que violaçã o de
direito supralegal nã o abre oportunidade à interposiçã o de
recurso extraordiná rio (art. 102, CF).
É ó bvio que tratado nã o se confunde com norma
constitucional, podendo assumir este status quando
aprovado mediante o quorum qualificado do §3º do art. 5º
da Constituiçã o Federal.

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Sucede que também certamente nã o se equipara, na
qualidade de direito supralegal, com direito federal, cuja
alegaçã o de violaçã o abre ensejo ao recurso especial (art.
105, CF).
Lembre-se que o Supremo Tribunal Federal admitiu e julgou
recurso extraordiná rio em que se alegou violaçã o de direito
reconhecido como supralegal exatamente quando enfrentou
a questã o da legitimidade da prisã o civil do depositá rio infiel
(RE n.466.343)’.
(MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade
(na perspectiva do direito brasileiro), 2013.
Também assim pensa Mazzuoli (grifos acrescidos):
‘Questã o interessante, no que toca ao controle difuso de
convencionalidade, diz respeito ao cabimento de Recurso
Extraordiná rio perante o STF sempre que a decisã o
recorrida contrariar dispositivo constitucional ou de
qualquer tratado de direitos humanos em vigor no Brasil.
A essa soluçã o se chega interpretando o art. 102, III, a, da
Constituiçã o – que diz caber ao STF “julgar, mediante
recurso extraordiná rio, as causas decididas em ú nica ou
ú ltima instâ ncia, quando a decisã o recorrida contrariar
dispositivo desta Constituiçã o” – junto com o art. 5.º, § 2.º, da
mesma Carta, segundo o qual os direitos e garantias
expressos na Constituiçã o “nã o excluem outros decorrentes
[…] dos tratados internacionais [de direitos humanos] em
que a Repú blica Federativa do Brasil seja parte”.
Ora, como o Recurso Extraordiná rio é instrumento do
controle difuso de constitucionalidade, e como os direitos e
garantias expressos na Constituiçã o nã o excluem outros
decorrentes dos tratados de direitos humanos em vigor no
Brasil, parece certo que a referência prevista no art. 102, III,
a, da Constituiçã o, sobre o cabimento do Recurso
Extraordiná rio “quando a decisã o recorrida contrariar
dispositivo desta Constituiçã o”, há de ser ampliada (no que
tange à proteçã o dos direitos humanos e fundamentais) com
a integraçã o do conteú do daqueles tratados ao bloco de
constitucionalidade, quer tenham tais instrumentos status
de norma constitucional (art. 5.º, § 2.º) ou, mais ainda,
equivalência de emenda constitucional (art. 5.º, § 3.º)’.
(MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da
convencionalidade das leis. São Paulo: RT, 2016)”.

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Relevante notar que – como aliá s pontuou a doutrina citada
no voto acima transcrito do Ministro Og Fernandes –, no julgamento do Recurso
Extraordiná rio 466.343-1, este Augusto Supremo Tribunal Federal negou
provimento ao apelo extraordiná rio que alegava afronta à Constituiçã o Federal,
conferindo a esta ú ltima interpretaçã o conforme os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos. Vale dizer, este E. Tribunal Supremo analisou hipó tese de
violaçã o a Tratado Internacional de Direitos Humanos nã o aprovado pelo regime
das emendas constitucionais, reconhecendo-se competente para tanto.

No referido julgamento, o entã o Ministro Joaquim Barbosa


votou no sentido de que “o essencial é que a primazia conferida em nosso sistema
constitucional à proteção à dignidade da pessoa humana faz com que, na hipótese de
eventual conflito entre regras domésticas e normas emergentes de tratados
internacionais, a prevalência, sem sombra de dúvidas, há de ser outorgada à norma
mais favorável ao indivíduo”. Isso demonstra, a nosso ver, data maxima venia, que o
que estava sendo analisado por este E. STF, naquela oportunidade, era a pró pria
norma prevista no tratado internacional de direitos humanos que, naquele caso da
prisã o civil do depositá rio infiel, era conflitante com o que dispunha a Constituiçã o
Federal brasileira. Como se sabe, no julgamento do caso, esta Augusta Corte
Suprema posicionou-se pela supremacia do Tratado Internacional de Direitos
Humanos, em detrimento da disposiçã o constitucional.

Já no caso presente, sequer existe conflito entre o direito


interno e o direito internacional: as disposiçõ es de Tratados Internacionais de
Direitos Humanos que ora se invoca sã o no mesmo sentido das normas
constitucionais, deixando evidente a violaçã o praticada pelo v. acó rdã o recorrido
contra o bloco de constitucionalidade como um todo.

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Ainda que, na prá tica, a decisã o deste Augusto Supremo
Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordiná rio nº 466.343-1 gere uma
zona de penumbra sobre a competência para exercer o controle de
convencionalidade em casos como o presente, é evidente que nã o podem os
jurisdicionados ser prejudicados por essa indefiniçã o acerca de qual seria o
Tribunal competente para julgar violaçõ es de normas que nã o sã o consideradas
nem de hierarquia constitucional nem como lei federal. Por essa razã o, as violaçõ es
à Convençã o Americana sobre os Direitos Humanos e ao Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos sã o objeto tanto deste recurso extraordiná rio quanto do
recurso especial, que também se interpõ e nesta data.

II.3. DO PREQUESTIONAMENTO

A questã o constitucional trazida à apreciaçã o deste E.


Supremo Tribunal Federal – mais precisamente os direitos à liberdade de
expressã o, reuniã o e associaçã o (artigo 5º, IV, XVI e XVII, da Constituiçã o Federal)
e o direito à cidade (artigo 182, caput, Constituiçã o Federal) – vem sendo debatida
desde o início do processo, estando preenchido, pois, o requisito do
prequestionamento.

Também estã o prequestionados o princípio da separaçã o de


poderes (artigo 2º, Constituiçã o Federal) e o direito à liberdade de locomoçã o
(artigo 5º, XV, CF), citados explicitamente como razã o de decidir do v. aresto, em
interpretaçã o, porém, equivocada.

O v. acó rdã o da 3ª Câ mara de Direito Pú blico do TJSP


abordou explicitamente o direito à reuniã o, entendendo, contudo, que, à luz do
princípio da proporcionalidade, este deveria ser afastado, preponderando-se a
liberdade de locomoçã o dos demais cidadã os e a “liberdade do Estado” de praticar

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atos que entenda necessá rio à contençã o de abusos dos participantes de uma
determinada manifestaçã o (fls. 1880 e 1886/1887):

A questã o trazida à baila, torna-se mais delicada pelo fato de


envolver direitos e garantias constitucionais.
De um lado, tem-se o direito de reuniã o no artigo 5º, inciso
XVI da CF/88 e de outro o direito à segurança estabelecido
no caput do mesmo artigo 5º.
(...)
Assim, ao menos no ver deste magistrado, sob nenhum
prisma, há como se deferir o provimento jurisdicional
pleiteado na inicial, quando do sopesamento dos princípios
da liberdade de reuniã o com a liberdade de locomoçã o dos
demais cidadã os que nã o queiram dela participar, bem como
a de liberdade do Estado em decidir livremente a contençã o
que entenda necessá rio em caso de distú rbios numa
manifestaçã o popular, o que em tese afetaria o princípio da
Separaçã o de Poderes.
Se realizarmos a ponderaçã o acima descrita, o deferimento
do pedido seria inadequado, desnecessá rio e
desproporcional (em sentido estrito), visto que o direito
fundamental da liberdade de reuniã o, na atual sistemá tica
deste Estado de Sã o Paulo, de forma alguma está cerceado
pela presença da polícia militar, sendo que, ao contrá rio, se
deferido o pleito inicial, haveria flagrante interferência do
Poder Judiciá rio na esfera de outro Poder, o que só se
poderia admitir em casos excepcionais, o que “data vênia”
nã o é o caso.

Houve também referência explícita no v. acó rdã o à liberdade


de expressã o, conforme destacado pela decisã o que negou provimento aos
embargos de declaraçã o opostos contra o referido acó rdã o (fl. 32 dos embargos):

Verifica-se que o Acó rdã o foi expresso ao abordar a questã o


suscitada nos presentes embargos de declaraçã o.
Sobre a liberdade de expressã o e o direito de reuniã o,
pontuou o Acó rdã o:
“A livre manifestaçã o de pensamento inerentes à s
manifestaçõ es populares, novamente, ao menos no ver deste

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magistrado, nã o está de forma alguma cerceada pela
presença da Polícia Militar, sendo que em caso de distú rbios
eventualmente ocorridos, por sua total imprevisibilidade na
forma como podem ocorrer (nú mero de participantes,
objetos utilizados paus, pedras, produtos inflá veis, fogos de
artifício), nã o podem ficar atreladas a uma rígida forma de
atuaçã o ditada pelo Poder Judiciá rio.
(...)
É notó ria a importâ ncia e a complexidade que as
manifestaçõ es populares apresentam no atual momento de
nosso país. Tal situaçã o, por ó bvio exige uma aná lise
aprofundada do contexto socioeconô mico e político da
sociedade brasileira”.
Como se vê, a decisã o embargada reconhece a importâ ncia
dos direitos mencionados pela embargante, contudo,
fundamentado na ausência de hierarquia entre os direitos
apresentados no presente feito, fez-se necessá ria a utilizaçã o
da ponderaçã o de princípios, a qual foi minuciosamente
descrita. (grifo nosso)

Como se vê, o pró prio Tribunal a quo reconheceu a


existência de prequestionamento quanto à s disposiçõ es constitucionais suscitadas
pela Recorrente. E, suprindo a deficiência do v. acó rdã o da apelaçã o, pronunciou-se
também a respeito do direito à cidade, no v. acó rdã o de embargos de declaraçã o (fl.
33 do processo apenso – embargos de declaraçã o):

O direito à cidade invocado pela embargante nã o deve


compor a aná lise de colisã o entre os princípios, isto porque,
todo cidadã o possui referido direito, ou seja, tanto os que se
manifestam quanto aqueles que possam vir a ser
prejudicados com manifestaçõ es ilegais e violentas. (grifo
nosso)

Por outro lado, no que se refere à s violaçõ es de normas de


tratados internacionais de direitos humanos, a questã o também foi apontada de
forma ampla e minuciosa pela Defensoria Pú blica logo na petiçã o inicial,
especificamente à s fls. 16/21, 25/26, 28/29, 31/33, 36/39 dos autos. Nas

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contrarrazõ es de apelaçã o, os parâ metros internacionais de direitos humanos
foram novamente abordados.

Ocorre que o v. acó rdã o recorrido nã o abordou


explicitamente os dispositivos e entendimentos internacionais, mas apenas
considerou, data maxima venia, de forma genérica, como “inexistentes” quaisquer
violaçõ es ao direito de reuniã o e à liberdade de expressã o.

Uma vez omisso quanto ao controle de convencionalidade,


ou seja, quanto à aná lise de dispositivos expressos de Tratados Internacionais de
Direitos Humanos e de interpretaçõ es internacionais, o acó rdã o foi embargado
pela Defensoria Pú blica, inclusive para fins de prequestionamento. No entanto, o
Tribunal a quo rejeitou os embargos, deixando de se pronunciar expressamente
sobre os pontos levantados, uma vez que, em seus pró prios termos, “os direitos
previstos na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e apresentados pela
Defensoria Pública, já possuem os seus equivalentes na Constituição Federal de 1988
e foram adequadamente analisados pelo v. Acórdão embargado”.

Como se vê, mais uma vez, o Tribunal a quo reconheceu


expressamente o cumprimento do requisito do prequestionamento.

Mas, ainda que assim nã o fosse, é vá lido lembrar


posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a violaçã o a
determinada norma legal nã o requer, necessariamente, que tal dispositivo tenha
sido expressamente mencionado no acó rdã o do tribunal de origem, sendo
suficiente que a matéria tenha sido levada à apreciaçã o do tribunal a quo4.

Tal entendimento – também da doutrina: “para a


caracterização do prequestionamento e a consequente abertura da instância
4
STJ, REsp n.º 521.750/PB, Quinta Turma, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 25/05/2004,
publicado em: 02/08/2004.

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superior, basta o diligente comportamento da parte no prévio debate da matéria, por
meio de embargos de declaração”5 – foi positivado no artigo 1.025, do CPC:

Art. 1.025. Consideram-se incluídos no acó rdã o os elementos


que o embargante suscitou, para fins de pré-
questionamento, ainda que os embargos de declaraçã o
sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior
considere existentes erro, omissã o, contradiçã o ou
obscuridade.

Ou seja, ainda que os embargos de declaraçã o tenham sido


rejeitados, os elementos neles suscitados devem ser considerados como decididos
e incluídos na decisã o atacada.

Diante do exposto, tendo a Defensoria Pú blica oposto


embargos de declaraçã o tempestivamente, buscando a manifestaçã o expressa do
Tribunal de origem acerca dos dispositivos violados, resta preenchido o requisito
de admissibilidade recursal do prequestionamento quanto à questã o jurídica
objeto do presente reclamo, sob pena de violaçã o do direito ao contraditó rio e à
ampla defesa constitucionalmente assegurados à Recorrente.

II.4. DA NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 279 DO STF: INEXISTÊNCIA DE PRETENSÃO


DE REEXAME DE PROVAS

Cumpre tornar claro que o presente recurso trata de


matéria jurídica, e não fática. Nã o se cuida de provar ou deixar de provar fatos
ou circunstâ ncias, mas, estando estes já provados e julgados na sentença e no v.
acó rdã o, o que se pretende é que lhes seja atribuída valoraçã o jurídica adequada,
bem como que sejam as normas constitucionais e convencionais aplicadas de
forma correta.
5
NEGRÃ O, Theotonio, Novo Có digo de Processo Civil e Legislaçã o Processual em Vigor, 47ª ed.,
Saraiva, 2016, p. 955. Art. 1025, nota 1.

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A adequada aplicaçã o dos dispositivos constitucionais e
convencionais que se requer neste recurso nã o passa pelo reexame dos fatos, que,
no caso vertente, sã o incontroversos – além de públicos e notórios.

Confira-se o trecho abaixo, constante da r. sentença, que


indica como as provas produzidas nos autos, com a devida observâ ncia dos
princípios do contraditó rio e da ampla defesa, foram detidamente estudadas pelo
MM. Juízo de primeiro grau:

“O que, contudo, verificou-se durante os protestos populares


havidos no ano de 2013, desencadeados a princípio por uma
insatisfaçã o quanto ao reajuste no valor da tarifa dos ô nibus
nesta Capital, é que a Polícia Militar do Estado de Sã o Paulo
nã o estava estrutural e logisticamente preparada para lidar
com as manifestaçõ es populares, que, é fato, nã o eram
comuns no Brasil, salvo aquelas realizadas em 1985 por
ocasiã o do movimento denominado "Diretas-Já ". De 1985 a
2013, com efeito, o que houve foram manifestaçõ es
esporá dicas, sem uma finalidade específica que pudesse
arregimentar uma grande parcela de manifestantes. Assim,
era mesmo de se esperar que a Polícia Militar do Estado de
Sã o Paulo nã o soubesse agir nessas manifestaçõ es
populares. Mas o que se viu, em 2013, foi caracterizado por
uma absoluta e total falta de preparo da Polícia Militar, que,
surpreendida pelo grande nú mero de pessoas presentes aos
protestos, assim reunidas em vias pú blicas, nã o soube agir,
como revelou a acentuada mudança de padrã o: no início,
uma inércia total, omitindo-se no controle da situação, e
depois agindo com demasiado grau de violência, não
apenas contra os manifestantes, mas também contra
quem estava no local apenas assistindo ou trabalhando,
caso dos profissionais da imprensa. Pelo menos dois

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jornalistas foram vítimas da violência policial nesses
eventos.
(...)
Destarte, em face da gravidade de todos os episó dios
narrados na peça inicial, revela-se apropositada esta ação
civil pública, que busca trazer a controle do Poder
Judiciário essa situação, buscando encontrar-se um
ponto de equilíbrio entre dois direitos: o direito
fundamental de reunião, a todos garantido, e o direito
(dever) da ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO, de garantir a ordem pública. Impõ e-se, pois, um
juízo de ponderaçã o, que objetive harmonizar tais direitos
em colisã o, cabendo observar que o direito fundamental
invocado (o de reuniã o) por buscar garantir a liberdade
coletiva de expressã o, exige do Poder Pú blico um dever de
nã o agredir e de se abster de impedir a reuniã o de quem
queira dessa forma democrá tica manifestar-se.
(...)
Aplicando-se, pois, o princípio da proporcionalidade como
forma de controle jurisdicional desse tipo de conflito,
verifica-se que a forma de atuação da Polícia Militar nos
protestos tem se caracterizado por ser destituída de
critérios técnicos adequados e que sejam adotados como
padrão a todo tipo de protesto, e que sejam eficientes
para a proteção do direito fundamental de reunião, a
garantir que tais protestos ocorram em situação de
normalidade, atuando repressivamente apenas em
situações que o justifiquem, o que quer dizer, quando o
caráter pacífico da reunião deixe de existir,
providenciando para que identifiquem e isolem aqueles
manifestantes que estejam a agir com violência ou
praticando crimes, fazendo o possível para que o direito de
reuniã o mantenha-se em condiçã o de normalidade até seu
término, com o que se obterá certamente uma má xima
efetividade do direito fundamental de reuniã o”.

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Por outro lado, devolvida toda a matéria ao Juízo de
segundo grau (efeito devolutivo da apelação), houve aquiescência do
Tribunal estadual quanto ao exame da matéria fática realizado pelo
magistrado singular, conferindo à s normas jurídicas, porém, interpretaçã o oposta.
Aliá s, com a devida vênia, sequer poderia o Tribunal a quo reexaminar os fatos de
forma diversa, já que, conforme acima se asseverou, trata-se de fatos não apenas
incontroversos nos autos, mas também públicos e notórios.

Em casos como o presente, já decidiu este E. Supremo


Tribunal Federal que nã o há que se falar em incidência da sú mula 279:

I. Recurso extraordiná rio: prazo de interposiçã o: suspensã o


pelas férias forenses. II. Recurso extraordiná rio: decisã o
interlocutó ria que resolve a questã o constitucional
controvertida: acó rdã o que, provendo apelaçã o de sentença
que extinguira o processo por entender incidente o art. 53 ,
caput, da Constituiçã o , assenta o contrá rio e determina a
seqü ência do processo: RE cabível. III. Recurso
extraordinário: cabimento: inaplicabilidade da Súmula
279, quando se cuida de rever a qualificação jurídica de
fatos incontroversos e não de discutir-lhes a realidade
ou as circunstâncias. IV. Imunidade parlamentar material
(Const. art. 53): â mbito de abrangência e eficá cia. 1. Na
interpretaçã o do art. 53 da Constituiçã o - que suprimiu a
clá usula restritiva do â mbito material da garantia -, o STF
tem seguido linha intermediá ria que, de um lado, se recusa a
fazer da imunidade material um privilégio pessoal do
político que detenha um mandato, mas, de outro, atende à s
justas ponderaçõ es daqueles que, já sob os regimes
anteriores, realçavam como a restriçã o da inviolabilidade
aos atos de estrito e formal exercício do mandato deixava ao
desabrigo da garantia manifestaçõ es que o contexto do
século dominado pela comunicaçã o de massas tornou um
prolongamento necessá rio da atividade parlamentar: para o
Tribunal, a inviolabilidade alcança toda manifestaçã o do
congressista onde se possa identificar um laço de implicaçã o
recíproca entre o ato praticado, ainda que fora do estrito
exercício do mandato, e a qualidade de mandatá rio político

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do agente. 2. Esse liame é de reconhecer-se na espécie, na
qual o encaminhamento ao Ministério Pú blico de notitia
criminis contra autoridades judiciais e administrativas por
suspeita de prá ticas ilícitas em prejuízo de uma autarquia
federal - posto nã o constitua exercício do mandato
parlamentar stricto sensu -, quando feito por uma Deputada,
notoriamente empenhada no assunto, guarda inequívoca
relaçã o de pertinência com o poder de controle do
Parlamento sobre a administraçã o da Uniã o. 3. A imunidade
parlamentar material se estende à divulgaçã o pela imprensa,
por iniciativa do congressista ou de terceiros, do fato
coberto pela inviolabilidade. 4. A inviolabilidade
parlamentar elide nã o apenas a criminalidade ou a
imputabilidade criminal do parlamentar, mas também a sua
responsabilidade civil por danos oriundos da manifestaçã o
coberta pela imunidade ou pela divulgaçã o dela: é conclusã o
assente, na doutrina nacional e estrangeira, por quantos se
tem ocupado especificamente do tema. (RE 210917 RJ).

AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁ RIO.


DIREITO CONSTITUCIONAL. RECEPÇÃ O DE NORMA PRÉ -
CONSTITUCIONAL. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA
279/STF. DESNECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DA
MATÉRIA FÁTICA. LIVRE EXERCÍCIO DE ATIVIDADE
LÍCITA. ART. 5º , XIII , CRFB/88 . DEFESA DA AMPLA
CONCORRÊ NCIA. ART. 170 , IV , CRFB/88 . NECESSIDADE DE
PROSSEGUIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁ RIO.
AGRAVO INTERNO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. A
viabilidade do exercício da profissã o é matéria de índole
constitucional (art. 5º , XIII , da CRFB/88 ), observadas as
qualificaçõ es e os limites estabelecidos em lei. 2. In casu, a
antiga norma regulamentadora do exercício da profissã o de
optometrista deve ser analisada frente à ampla concorrência
encartada no texto constitucional (art. 170 , IV , da
CRFB/88 ), bem como ao diferente contexto socioeconô mico
atual. 3. O processamento do recurso extraordiná rio sob
aná lise independe de reexame do quadro fá tico já disposto e
apreciado pelo acó rdã o recorrido. 4. Agravo interno provido,
para continuidade do recurso extraordiná rio e aná lise de
repercussã o geral. (Ag Reg RE 626639 PR).

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O Tribunal a quo deixou de aplicar ao caso concreto as
normas constitucionais e convencionais suscitadas pela Recorrente, entendendo
que “a livre manifestação de pensamento inerentes às manifestações populares (...)
não está de forma alguma cerceada pela presença da Polícia Militar, sendo que em
caso de distúrbios eventualmente ocorridos, por sua total imprevisibilidade na forma
como podem ocorrer (...) não podem ficar atreladas a uma rígida forma de atuação
ditada pelo Poder Judiciário” (trecho do acó rdã o).

Como se vê, o Tribunal estadual não discordou da análise


dos fatos levada a efeito pelo juízo singular quanto ao despreparo da Polícia
Militar: em momento algum, o v. acórdão nega que a polícia tenha agido com
violência; mas, ao revés, justifica tal forma de agir sob o argumento de que
“distúrbios eventualmente ocorridos, por sua total imprevisibilidade” nã o
permitiriam à polícia ter uma atuaçã o rígida, “ditada pelo Poder Judiciário”, a partir
das balizas de direitos humanos. E mais: o v. acó rdã o ainda afirma textualmente
uma suposta “liberdade do Estado em decidir livremente a contenção que
entenda necessário em caso de distúrbios numa manifestação popular”.

Esta é a questão jurídica que se coloca para apreciação


deste Augusto Tribunal Supremo: a atuação da Polícia Militar de São Paulo
em manifestações populares pode ser arbitrária ou deve respeitar as normas
constitucionais e os princípios de direitos humanos adotados pelo Brasil ao
ratificar a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos?

No entender da Recorrente, a atuaçã o da polícia deve


ocorrer em consonâ ncia com o que dispõ em a Constituiçã o Federal e os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos e, como tal nã o se verifica, há afronta direta a

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seus dispositivos. Este o provimento que se espera deste E. Supremo Tribunal
Federal. Cuida-se, a toda evidência, de matéria eminentemente jurídica.

II.5. DA REPERCUSSÃO GERAL

O presente caso reveste-se de repercussã o geral, nos termos


do que exige o artigo 1.035 do Có digo de Processo Civil.

Com efeito, as questõ es constitucionais e convencionais


debatidas neste recurso sã o da mais extrema relevâ ncia, ultrapassando,
evidentemente, os interesses subjetivos do processo (artigo 1035, §1º, CPC). Frise-
se, ainda, que as questõ es que se coloca para apreciaçã o deste E. STF sã o
relevantes do ponto de vista político, social e jurídico, pois dizem respeito a
direitos e garantias fundamentais previstos em nossa Carta Magna e alçados
à condição de cláusula pétrea, cujo desrespeito coloca em risco o próprio
Estado Democrático de Direito.

Para além dos direitos previstos no artigo 5º, o presente


recurso trata também de violações ao artigo 182 (direito à cidade), bem como
ao artigo 2º, que traz em seu bojo princípio basilar para a própria estrutura
da República Federativa do Brasil, que é o princípio da separação dos
poderes.

Diante de questõ es tã o estruturantes e tã o caras ao


ordenamento jurídico brasileiro e ao sistema internacional de direitos humanos,
revela-se impossível, data maxima venia, nã o reconhecer a repercussã o geral da
matéria ora tratada.

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Até porque a problemática apresentada neste processo é
estrutural – na medida em que revela o modus operandi padrão da polícia
militar de São Paulo – e nã o se restringe à s violaçõ es ocorridas nas oito situaçõ es
descritas na petiçã o inicial. Daí que o que pleiteia a Recorrente neste processo é
a adoção de providências que sejam capazes de alterar essa “ordem de coisas
inconstitucional”, a fim de proteger, resguardar e garantir os mais básicos
direitos humanos.

Este E. Supremo Tribunal Federal já reconheceu a


repercussão geral da discussão sobre os contornos dos direitos à liberdade
de expressão e de reunião em ao menos duas oportunidades diferentes.

A primeira delas foi no julgamento do RE 806.339/SE, em


que se discutia a necessidade de aviso prévio para a realizaçã o de manifestaçã o. Na
oportunidade, assentou este E. Pretó rio Supremo:

“(...) Cabe ao guarda maior da Constituiçã o Federal definir, a


partir do dispositivo apontado, as balizas no tocante à
exigência de prévio aviso à autoridade competente, como
pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de
reuniã o, direito ligado à manifestaçã o de pensamento e à
participaçã o dos cidadã os na vida política do Estado”.
Diante dessa consideraçã o, esta Corte Constitucional definiu
que: “Possui repercussão geral a controvérsia alusiva ao
alcance da exigência de prévio aviso à autoridade
competente como pressuposto para o exercício do
direito versado no artigo 5º, inciso XVI, da Carta de
1988”. (RE 806339 RG, Relator(a): MARCO AURÉ LIO,
Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2015, PROCESSO
ELETRÔ NICO DJe-245 DIVULG 03-12-2015 PUBLIC 04-12-
2015)

Posteriormente, ao analisar o ARE 905149, que tem por


objeto o uso de má scaras em manifestaçõ es pú blicas, houve manifestaçã o expressa

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desta Corte Constitucional sobre a evidente repercussã o geral que há na
construçã o de parâ metros para o exercício dos direitos à liberaçã o de expressã o e
de reuniã o:

“DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO


EXTRAORDINÁRIO. LIBERDADES DE EXPRESSÃO E
REUNIÃO. PROIBIÇÃ O DE MÁ SCARAS EM MANIFESTAÇÕ ES.
SEGURANÇA PÚ BLICA. REPERCUSSÃO GERAL.
1. Constitui questão constitucional saber se lei pode ou
não proibir o uso de máscaras em manifestações
públicas, à luz das liberdades de reunião e de expressão
do pensamento, bem como da vedação do anonimato e
do dever de segurança pública.
2. Repercussão geral reconhecida.

Confira-se, abaixo, trecho da manifestaçã o do I. Ministro Luís


Roberto Barroso:

“(...) Ao contrá rio do que entendeu o Tribunal a quo, nã o se


trata de alegada ofensa reflexa. Nã o há necessidade de
analisar nenhum dispositivo infraconstitucional para alcançar
o argumento de violaçã o à s normas constitucionais
invocadas, valendo lembrar que o art. 23 da Constituiçã o
fluminense reproduz o art. 5º, XVI, da Constituiçã o da
Repú blica, hipó tese em que esta Corte admite a interposiçã o
de recurso extraordiná rio (...).
De resto, a construção de parâmetros na matéria é
questão de evidente repercussão geral, sob todos os
pontos de vista (econômico, político, social e jurídico),
haja vista a relevância e a transcendência dos direitos
envolvidos num Estado Democrático de Direito.
Diante do exposto, manifesto-me no sentido de reconhecer o
cará ter constitucional e a repercussã o geral do tema ora em
exame”. (ARE 905149 RG, Relator(a): ROBERTO BARROSO,
Tribunal Pleno, julgado em 25/08/2016, PROCESSO
ELETRÔ NICO DJe-263 DIVULG 09-12-2016 PUBLIC 12-12-
2016).

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Inegá vel, portanto, a repercussã o geral da matéria ventilada
no presente recurso, que merece nã o apenas ser conhecido, mas também provido
por esta E. Corte Constitucional.

III. DAS RAZÕES PARA A REFORMA DA DECISÃO RECORRIDA

III.1. DA AFRONTA E NEGATIVA DE VIGÊNCIA A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS

O v. acó rdã o recorrido contrariou os artigos 5º, incisos IV


(liberdade de expressã o), XVI (direito de reuniã o) e XVII (liberdade de associaçã o);
e 182, caput (direito à cidade); além de ter negado vigência ao artigo 2º (princípio
da separaçã o dos poderes) e ao artigo 5º, XV, (liberdade de locomoçã o), todos da
Constituiçã o Federal.

De acordo com a atual legislaçã o brasileira, o direito ao


protesto é assegurado constitucionalmente pela combinaçã o de três direitos
previstos no artigo 5º da Carta Magna:

“Liberdade de Expressã o”: IV - é livre a manifestaçã o do


pensamento, sendo vedado o anonimato;
“Liberdade de Reuniã o”: XVI - todos podem reunir-se
pacificamente, sem armas, em locais abertos ao pú blico,
independente de autorizaçã o, desde que nã o frustrem outra
reuniã o anteriormente convocada para o mesmo local, sendo
apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
“Liberdade de Associaçã o”: XVII - é plena a liberdade de
associaçã o para fins lícitos, vedada a de cará ter paramilitar.

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O direito à cidade (art. 182, caput), direito humano de
terceira dimensã o, também está estritamente ligado à s garantias supracitadas,
devendo o termo “cidade” ser compreendido como espaço pú blico de
desenvolvimento da personalidade de seus habitantes.

Muito embora o direito ao protesto seja um direito garantido


na Constituiçã o Federal, por meio da inter-relaçã o dos dispositivos acima citados,
inexiste no Brasil legislaçã o específica que regulamente a utilizaçã o do uso da força
policial durante os protestos sociais, que esteja de acordo com as balizas
internacionais de direitos humanos.

A ausência de lei que discipline o uso da força pelas


autoridades policiais no contexto de manifestaçõ es pú blicas é nociva para a
liberdade de expressã o, na medida em que possibilita, na prá tica, que o Estado use
o seu poder de coaçã o de forma desproporcional e arbitrá ria contra os
manifestantes – o que, repita-se, constitui fato pú blico e notó rio, além de
incontroverso nos autos.

Diferentemente do apontado pelo Tribunal a quo, nã o


pretende a Recorrente que a liberdade de manifestaçã o popular seja considerada
ilimitada, impedindo a atuaçã o estatal; mas também nã o se pode aceitar o
entendimento esposado no acó rdã o recorrido de que a atuaçã o da polícia possa ser
arbitrá ria sem observâ ncia aos princípios mais bá sicos de direitos humanos. Em
verdade, o que se busca com a presente açã o é a definiçã o de parâ metros para o
uso proporcional e progressivo da força, em conformidade com os ditames da
Constituiçã o Federal brasileira.

No caso vertente, o que se nota, data maxima venia, é que o


Tribunal a quo julgou os recursos de apelaçã o partindo de falsas premissas: de que

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a presente açã o pretenderia impedir o trabalho da polícia militar em
manifestaçõ es pú blicas6 e conferir direitos ilimitados aos manifestantes, em
detrimento do restante da populaçã o, que teria restringido, assim, seu direito de
locomoçã o. No entanto, como já está claro, as premissas sã o absolutamente
equivocadas e nenhum dos argumentos tecidos no acó rdã o recorrido tem o condã o
de afastar a obrigaçã o estatal de elaborar protocolos de segurança pú blica
transparentes e que efetivem o uso progressivo da força.

Nesse ponto, é de rigor reforçar que o que pretende a


Recorrente é que o direito de protesto seja exercido dentro de seus limites
constitucionais, sem ferir direitos de outrem.

A esse propó sito, é imperioso mencionar o Tema 855 fixado


por este E. Supremo Tribunal Federal: “Definição do alcance do art. 5º, XVI, da
Constituição Federal, notadamente da exigência de aviso prévio à autoridade
competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião”,
originado do Leading Case RE 806339, que, curiosamente, foi citado na decisã o
recorrida:

“A liberdade de manifestaçã o popular nã o impede a atuaçã o


estatal, já que nã o é ilimitada (vide RE 806.339/SE, Rel. Min.
Marco Aurélio, Tema 855, segundo o qual o direito de
reuniã o nã o pode ‘impedir, de forma absoluta, o livre acesso
das pessoas a aeroportos, rodovias e hospitais, em flagrante
desrespeito à liberdade constitucional de locomoçã o,
colocando em risco a harmonia, a segurança e a saú de
pú blica. Ainda que, para o debate de ideias, seja preciso
6
Vide trecho do v. aresto, fl. 1896: “Por outro lado, deve-se ter cuidado ao macular a imagem da polícia,
sob pena de criar um ambiente de descrédito com relação à organização responsável por manter a ordem
pública e garantir a segurança dos cidadãos. A própria legislação já existente admite a utilização de armas
letais e não letais é admitida para preservação da vida e integridade física dos policiais, sendo certo que
não se pode conceber que o policial seja obrigado a colocar sua vida e integridade física em risco sem o
direito de legitimamente se defender.”

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gerar incô modo, ele nã o pode obstruir de maneira absoluta
os demais direitos. Desse modo, o bloqueio integral do
trá fego em rodovias e vias pú blicas representa abuso do
exercício do direito de reuniã o e livre manifestaçã o’
(Informativo 928, Brasília, 17 a 19 de dezembro de 2018).
Ademais, durante o julgamento, destacou-se a
constitucionalidade da exigência da comunicaçã o prévia em
prazo razoá vel à queles que pretendem se reunir, sendo que
o poder pú blico tem o dever de intervir e de tomar medidas
judiciais cabíveis, para permitir o direito de ir e vir de outras
pessoas e garantir o livre fluxo de mercadorias.”

No entanto, ao contrá rio do quer fazer crer o E. Tribunal a


quo, o acórdão recorrido foi proferido em sentido contrário do que decidiu o
plenário deste E. Pretório Supremo no julgamento do RE 806339, realizado
em 15/12/2020, assim ementado:

RECURSO EXTRAORDINÁ RIO COM REPERCUSSÃ O GERAL.


DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DE MANIFESTAÇÃ O.
DIREITO DE REUNIÃ O E DE EXPRESSÃ O. AVISO PRÉ VIO.
DESNECESSIDADE. PROVIMENTO DO RECURSO
EXTRAORDINÁ RIO. 1. Em uma sociedade democrática, o
espaço público não é apenas um lugar de circulação, mas
também de participação. Há um custo mó dico na
convivência democrá tica e é em relaçã o a ele que eventual
restriçã o a tã o relevante direito deve ser estimada. 2. O
aviso ou notificação prévia visa permitir que o poder
público zele para que o exercício do direito de reunião
se dê de forma pacífica e que não frustre outra reunião
no mesmo local. Para que seja viabilizado, basta que a
notificação seja efetiva, isto é, que permita ao poder
público realizar a segurança da manifestação ou
reunião. 3. Manifestações espontâneas não estão
proibidas nem pelo texto constitucional, nem pelos
tratados de direitos humanos. A inexistência de

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notificação não torna ipso facto ilegal a reunião. 4. A
notificaçã o nã o precisa ser pessoal ou registrada, porque
implica reconhecer como necessá ria uma organizaçã o que a
pró pria Constituiçã o nã o exigiu. 5. As manifestaçõ es
pacíficas gozam de presunçã o de legalidade, vale dizer, caso
nã o seja possível a notificaçã o, os organizadores nã o devem
ser punidos por sançõ es criminais ou administrativas que
resultem multa ou prisã o. 6. Tese fixada: A exigência
constitucional de aviso prévio relativamente ao direito de
reuniã o é satisfeita com a veiculaçã o de informaçã o que
permita ao poder pú blico zelar para que seu exercício se dê
de forma pacífica ou para que nã o frustre outra reuniã o no
mesmo local. (grifo nosso)

De tudo o que se conclui, Ínclitos Julgadores, é que o v.


aresto recorrido acaba por amesquinhar a discussã o trazida a Juízo ao realizar
“sopesamento” de direitos onde, na verdade, há liberdades individuais que
impõ em limitaçõ es ao poder do Estado; onde, na verdade, há direitos coletivos que
determinam restriçõ es ao uso da força legítima.

É dizer: o que está em questã o é a necessidade de


autocontençã o estatal para viabilizar o direito de reuniã o e a livre circulaçã o de
ideias, requisito bá sico de uma sociedade democrá tica e plural.

O “sopesamento” realizado pela instâ ncia a quo joga uma


cortina de fumaça sobre o quanto requerido na petiçã o inicial, a saber, a
readequaçã o do Estado para que o uso da força ocorra apenas quando necessá rio e
de forma proporcional, sem ferir o nú cleo fundamental do direito de reuniã o.

Aparentemente, nos termos da decisã o recorrida, a


proporcionalidade foi reduzida a uma simples regra quantitativa: de um lado
haveria o direito à liberdade de reunião e, de outro, a liberdade de locomoção

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e a “liberdade do Estado” em decidir livremente o método de contençã o que
entenda necessá rio em caso de distú rbios numa manifestaçã o popular. Ademais,
segundo o Tribunal a quo, interferir na “escolha livre” de tal método afetaria o
princípio da separaçã o de poderes.

Excelências, data venia, “livre escolha estatal” nã o é da


gramá tica de sociedades livres e plurais pautadas pelo princípio da legalidade.

O Estado, personificado pelas autoridades pú blicas que o


dirigem momentaneamente, escolhe dentre as opçõ es constitucionais e legais que
pautam a sua atuaçã o – vale acrescentar, também, dentre as escolhas
convencionais internacionais.

A palavra “liberdade” (individual), no contexto dos direitos


fundamentais, é associada aos direitos civis que protegem o indivíduo do poder
discricioná rio do Estado, estabelecendo os limites da interferência estatal na vida
privada dos cidadã os e evitando o abuso de poder. Por mais que se entenda que
“liberdade do Estado” seria, neste contexto, sinô nimo de discricionariedade estatal,
é muito representativo a utilizaçã o deste termo logo apó s terem sido feitas
referências à s liberdades de reuniã o e de locomoçã o, como se todas estivessem em
um mesmo patamar, sendo o Estado também titular de garantias em oposiçã o aos
cidadã os.

Evidentemente, no consagrado exercício do “sopesamento”,


nã o há que se ponderar direitos individuais e coletivos com poderes estatais.

Em oportunidade recente, o E. Ministro Marco Aurélio


proferiu voto no julgamento do Recurso Extraordiná rio 1.209.429, o qual tem por
plano de fundo esta mesma situaçã o fá tica, consignando:

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Ao atribuir à vítima, que nada mais fez senã o observar o
fiel cumprimento da missã o de informar, a
responsabilidade pelo dano, o Tribunal de Justiça
endossou ação desproporcional, das forças de
segurança, durante eventos populares.
(...)
Incumbe às forças policiais agir com cautela, visando
garantir aos cidadãos segurança, proteção à
integridade física e moral. O uso desse tipo de
armamento há de se fazer considerados padrões
internacionalmente recomendados.
A Organização das Nações Unidas – ONU tem, ao longo
dos anos, elaborado diretrizes quanto à utilização de
armas por agentes de segurança.
No manual intitulado “Orientações sobre Uso de Armas
Menos Letais na Aplicação da Lei”, consta a
recomendação de uso de projéteis de borracha apenas
como último recurso, de modo proporcional e
direcionado a indivíduo violento e em situação de
ameaça de ferimento a agente público ou à população
em geral.
A Polícia Militar do Estado de São Paulo deixou de levar
em conta diretrizes básicas de conduta em eventos
públicos, sendo certo que o fotojornalista nã o adotou
comportamento violento ou ameaçador.

Entendimento semelhante foi compartilhado pelo E.


Ministro Edson Fachin, ao tratar do emprego de força pelo Estado no julgamento
da liminar da Arguiçã o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635:

(...) Vale dizer: o uso da força só é legítimo se for


comprovadamente necessário para proteção de um bem
relevante, como a vida e o patrimônio de outras pessoas.
A exigência de proporcionalidade decorre da
necessidade de proteção ao direito à vida e à
integridade corporal e encontra respaldo nos Princípios
Básicos das Nações Unidas para o Uso da Força:

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“Sempre que o uso legítimo da força e de armas de fogo 7 for
inevitá vel, os responsá veis pela aplicaçã o da lei deverã o: (a)
Exercer moderaçã o no uso de tais recursos e agir na
proporçã o da gravidade da infraçã o e do objetivo legítimo a
ser alcançado; (b) Minimizar danos e ferimentos, e respeitar
e preservar a vida humana; (c) Assegurar que qualquer
indivíduo ferido ou afetado receba assistência e cuidados
médicos o mais rá pido possível; (d) Garantir que os
familiares ou amigos íntimos da pessoa ferida ou afetada
sejam notificados o mais depressa possível.”
(...) Os Estados devem prever uma escala com diversos
protocolos sobre o uso da força, devem rever esses
protocolos constantemente e devem, ainda, treinar os
seus agentes de modo a assegurar a eles pleno
conhecimento e condições técnicas para observá-los
estritamente. Essas regras devem (a) especificar as
circunstâ ncias nas quais os agentes poderã o portar armas e
a descriçã o de quais armas e muniçõ es poderã o ser
portadas; (b) assegurar que as armas sejam utilizadas
apenas em situaçõ es apropriadas e de modo a reduzir danos
desnecessá rios; (c) proibir o uso de armas e muniçõ es que
causem dano injustificá vel ou que apresentem riscos
injustificá veis; (d) regular o controle, o depó sito e a entrega
das armas aos agentes, de modo a certificar-se que sã o eles
responsá veis pelas armas que lhes foram entregues; (e) dar
avisos sempre que a arma foi disparada; (f) manter um
sistema de relató rios para que os agentes possam justificar
sempre que a arma for utilizada.
Nesse ú ltimo ponto reside uma garantia indispensá vel, ainda
que posterior, à utilizaçã o da arma de fogo. Os agentes de
Estado devem minudentemente justificar todas as
circunstâ ncias que os levaram ao emprego da arma e devem
demonstrar que a exceçã o de seu emprego está plenamente
justificada pelas circunstâ ncias do caso. Esses relató rios
devem ser examinados por autoridade independente e, em
casos de letalidade, devem ser enviados imediatamente à
revisã o.
São, portanto, extremamente rígidos os critérios que
autorizam o uso legítimo de força armada por partes dos
agentes de Estado. Esses critérios não podem ser
relativizados, nem excepcionados. Sã o critérios objetivos
7
A observaçã o de tais princípios no uso de armas de fogo, seja com muniçã o letal ou nã o letal, é
fundamental para evitar que ocorram graves violaçõ es aos direitos humanos

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e, tal como assentou a Suprema Corte dos Estados Unidos, no
caso Graham v. Connor (490 U.S. 386 (1989)), independem
de eventual boa-fé por parte dos agentes pú blicos.
Não há como evitar os protocolos de conduta para o
emprego de armas de fogo. O direito à vida os reclama.
Exigem que o Estado somente empregue a força quando
necessário e exigem a justificativa exaustiva dessas
razões. Os protocolos previamente estabelecidos sã o o guia
a ser seguido, pois, de forma transparente e responsá vel,
definem em que situaçõ es o uso progressivo da força se
tornará legitimado, ao mesmo tempo em que permitem a
avaliaçã o das justificativas apresentadas pelos agentes
quando do emprego da força.
Registre-se que o Estado brasileiro foi condenado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova
Brasília, nã o apenas pela violaçã o à s regras mínimas de uso
da força, mas também por nã o prever protocolos para o uso
da força, seja para atestar a necessidade do emprego, seja
para fiscalizá -lo.

Fica claro, portanto, que o acó rdã o recorrido foi proferido


em sentido contrá rio do que vem sendo decidido por este E. Supremo Tribunal
Federal. Para tanto, realizou verdadeiro amesquinhamento e reduçã o grotesca do
objeto da presente açã o a um suposto conflito entre direitos de particulares, uns
titulares de “liberdade de reuniã o”, outros titulares de “liberdade de locomoçã o”.

Nesse ponto, há que se reconhecer que o v. acó rdã o


recorrido negou vigência, também, ao artigo 5º, XV, CF (liberdade de locomoçã o),
ao conferir-lhe interpretaçã o equivocada, entendendo-o como direito que
supostamente seria ferido pelo “direito de reuniã o”.

É da hermenêutica dos direitos humanos fundamentais que


sua interpretaçã o deve ser pautada no sentido da maior proteçã o possível ao ser
humano. Assim, ambos os direitos sopesados estã o igualmente protegidos pela
Constituiçã o Federal brasileira e pelos tratados internacionais de direitos humanos

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dos quais o Brasil é signatá rio, devendo-se verificar, em eventual caso prá tico de
conflito entre os direitos, qual deles é capaz de garantir maior proteçã o ao
indivíduo.

Interessante, na espécie, trazer a argumentaçã o apresentada


pelo E. Ministro Celso de Mello, em seu doutriná rio voto na ADPF nº187:

“O sentido de fundamentalidade de que se reveste essa


liberdade pú blica (o direito de reuniã o) permite afirmar que
as minorias também titularizam, sem qualquer exclusã o ou
limitaçã o, o direito de reuniã o, cujo exercício mostra-se
essencial à propagaçã o de suas idéias, de seus pleitos e de
suas reivindicaçõ es, sendo completamente irrelevantes, para
efeito de sua plena fruiçã o, quaisquer resistências, por
maiores que sejam, que a coletividade oponha à s opiniõ es
manifestadas pelos grupos minoritá rios, ainda que
desagradá veis, atrevidas, insuportá veis, chocantes,
audaciosas ou impopulares”.

Fica claro, assim, que a utilizaçã o do princípio da


proporcionalidade pelo E. Tribunal a quo foi feita de forma equivocada, data
maxima venia.

Em primeiro lugar porque o princípio da


proporcionalidade, na sua essência, tem por escopo limitar a atuação e
discricionariedade dos poderes públicos, vedando que a Administração
Pública aja com excesso na perseguição de seus objetivos.

Ademais, como bem detalhado na decisã o, o método


consagrado passa por três etapas de aplicaçã o: adequaçã o (pertinência entre fins e
meios); necessidade (possibilidade de existir medida restritiva de maior ou igual
eficá cia e que restrinja o princípio colidente em menor medida); e

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proporcionalidade em sentido estrito (fase do sopesamento das circunstâ ncias
relevantes do caso concreto).

O conceito de todas estas etapas foi devidamente trazido no


v. acó rdã o sem, no entanto, ter havido a adequada aplicação ao caso concreto.
Apenas concluiu-se que “se realizarmos a ponderação acima descrita, o deferimento
do pedido seria inadequado, desnecessário e desproporcional (em sentido estrito)”,
nã o havendo indicaçã o, contudo, de quais teriam sido os elementos que,
supostamente, conduziram a essa conclusã o.

Sobre o ponto, cabe reproduzir entendimento de Virgílio


Afonso da Silva com relaçã o a decisõ es que mencionam o princípio da
proporcionalidade sem de fato aplicá -lo – que serve como uma luva ao acó rdã o
recorrido:

Apesar de salientar a importâ ncia da proporcionalidade


‘para o deslinde constitucional da colisã o de direitos
fundamentais’, o Tribunal não parece disposto a aplicá-la
de forma estruturada, limitando-se a citá-la. (...) Não é
feita nenhuma referência a algum processo racional e
estruturado de controle da proporcionalidade do ato
questionado, nem mesmo um real cotejo entre os fins
almejados e os meios utilizados. O raciocínio aplicado
costuma ser muito mais simplista e mecânico.
Resumidamente:
. a constituiçã o consagra a regra da proporcionalidade.
. o ato questionado nã o respeita essa exigência.
.·. o ato questionado é inconstitucional.
O silogismo, inatacá vel do ponto de vista interno, é composto
de premissas de fundamentaçã o duvidosa e é, por isso,
bastante frá gil quando se questiona sua admissibilidade do
ponto de vista externo.” 8 (grifo nosso)
8
Afonso da Silva, Virgílio. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais 798, 2002. p. 31.

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No caso vertente, ainda que se admitisse a ponderaçã o de
direitos supostamente realizada na decisã o recorrida para chegar à predileta
restriçã o do direito de reuniã o perante o direito de ir e vir, seriam inafastá veis as
seguintes conclusõ es:

a) Quanto à adequaçã o, que é a pertinência entre fins e


meios, há como afirmar, prima facie, que é inadequado restringir a liberdade de
locomoçã o para assegurar o direito de reuniã o, por violaçã o ao nú cleo essencial
daquele. No entanto, situaçõ es há , diversas, em que a atuaçã o policial
desproporcional e ineficaz, por meio, por exemplo, da dispersã o violenta de
manifestaçõ es, gera mais distú rbios e mais restriçã o à liberdade de ir e vir do que
geraria a manifestaçã o impedida de ocorrer. É dizer: o direito de locomoçã o estaria
mais assegurado caso fossem julgados procedentes os pedidos formulados pela
Recorrente em sua petiçã o inicial, ou seja, caso fosse condenado o Estado na
obrigaçã o de fazer de “indicar negociador civil, que deverá ser responsável pela
coordenação e diálogo do líder dos manifestantes com o comando policial,
formando-se o safety triangle, marcado pela permanente comunicação pessoal entre
seus integrantes”. Nesse sentido, se o fim almejado é a preservaçã o da liberdade de
locomoçã o, nem sempre há pertinência entre fins e meios, portanto, deve-se
concluir que nã o há a inadequaçã o singelamente apontada no v. aresto recorrido.

b) Quanto à necessidade (possibilidade de existir medida


restritiva de maior ou igual eficá cia e que restrinja o princípio colidente em menor
medida), o planejamento e o diá logo entre autoridades e manifestantes pode
viabilizar o desvio do trâ nsito de veículos, o nã o impedimento de entradas de
hospitais, dentre outras medidas; é isto que se pretende com a presente açã o, que
haja meios institucionalizados de promover o diá logo com os manifestantes, ao
invés de uso desnecessá rio da força para impor “liberdades estatais”. Assim, as

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medidas propostas na petiçã o inicial restringem a liberdade de reuniã o na menor
medida possível. O v. aresto, porém, concluiu laconicamente pela desnecessidade,
sacrificando o direito de reuniã o em nome de uma absoluta liberdade de
locomoçã o de terceiros.

c) Quanto à proporcionalidade em sentido estrito (fase do


sopesamento das circunstâ ncias relevantes do caso concreto), verifica-se que os
fatos pú blicos, notó rios e incontroversos objeto desta açã o foram pura e
simplesmente desconsiderados pelo Tribunal a quo, ao realizar suposto
sopesamento de direitos abstratamente considerados. Com efeito, o acó rdã o
recorrido nã o levou em conta todas as ocasiõ es em que a Defensoria Pú blica
constatou distú rbios civis e atuaçã o equivocada da polícia e a consequente
necessidade de adequaçã o do Estado aos parâ metros bá sicos de uso da força,
internacionalmente consagrados.

Por fim, ainda que fosse viá vel o sopesamento pretendido


pelo Tribunal estadual do “direito de reuniã o” com a “liberdade estatal” – o que se
afigura impossível, repita-se, em um Estado Democrá tico de Direito, em que o
Estado nã o goza de “liberdades”, mas, ao revés, possui “poderes-deveres” – jamais
se chegaria à conclusã o do v. acó rdã o recorrido, pelas razõ es já expostas acima.

O que se conclui, portanto, é que o atual comportamento


adotado pelos agentes da lei no acompanhamento e repressã o das manifestaçõ es
populares (i) nã o é medida adequada, pois nã o atinge a finalidade a que se
pretende – de assegurar segurança pú blica, ou, por assim dizer, um estado de
normalidade que permita o usufruto de direitos e o cumprimento de deveres; (ii)
nã o se configura como medida necessá ria, visto que existem meios menos gravosos
de se atingir tal objetivo, assim como de assegurar a incolumidade física dos
policiais, por meio de um padrã o de comportamento baseado na gestã o negociada,

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que respeite os direitos fundamentais individuais; e (iii) nã o passa pelo teste da
proporcionalidade em sentido estrito, que expressa o confronto entre vantagens e
desvantagens de determinada medida, uma vez que as intervençõ es policiais
desnecessá rias e o uso imoderado da força violam os mais bá sicos direitos
humanos.

A forma de atuaçã o da polícia militar de Sã o Paulo pode


parecer “necessá ria” dentro de um modelo de segurança pú blica baseado na ló gica
do combate, em políticas de lei e ordem. Mas, indubitavelmente, nã o se faz
necessá ria em um modelo de segurança cidadã , que prima pelo garantismo dos
direitos fundamentais.

Um segundo argumento utilizado como “fundamento” no v.


acó rdã o recorrido é o de que “ao Poder Judiciário não cabe se imiscuir no mérito
administrativo, sobre pena de afronta ao princípio da separação dos poderes, ou seja,
não pode determinar a maneira como o Poder Executivo vai implementar suas
políticas públicas, em especial com relação à segurança pública, tema sensível e que
atinge a totalidade da população”.

Este argumento, porém, data maxima venia, nã o procede,


configurando, ao revés, negativa de vigência ao artigo 2º da Constituiçã o Federal.

O princípio da separaçã o dos poderes é um axioma


fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, sendo tratado como clá usula
pétrea (artigo 60, § 4º, CF).

A razã o de ser do princípio – qual seja, delegar atribuiçõ es a


ó rgã os distintos, desconcentrando o poder demasiado e sem limites, garantindo-se,
assim, a efetividade dos direitos fundamentais – evoluiu no Brasil acompanhado da

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Teoria Tripartite e tendo em vista a ideia de unidade do Estado Constitucional de
Direito, segundo a qual o poder estatal é uno e indivisível, nã o obstante a
existência de ó rgã os estatais.

Os poderes, reunidos em ó rgã os, possuem funçõ es


estabelecidas pelo legislador constituinte originá rio, que as distribuiu de forma
que cada um dos Poderes tivesse características predominantes, concernentes à
sua esfera de atuaçã o, sem, contudo, estabelecer exclusividade absoluta no
exercício desses misteres. Isto porque, além das funções típicas, também foram
previstas pelo constituinte determinadas funções atípicas para cada Poder,
vale dizer, aquelas que lhes cabe desempenhar a fim de limitar o poder dos
demais.

A isto se dá o nome de mecanismo de freios e contrapesos,


desenvolvido por Montesquieu, como o verdadeiro caracterizador da harmonia
entre os poderes. Exemplo de função atípica do Poder Judiciário é justamente
o controle que a ele cabe efetivar sobre os atos administrativos e, mais
especificamente, sobre as políticas públicas elaboradas pelo Poder
Executivo.

No que tange à discricionariedade conferida à Administraçã o


Pú blica, importa notar que esta tem por objetivo requerer do administrador o
cumprimento do dever de adotar a melhor soluçã o, de forma a satisfazer de forma
excelente a finalidade constitucional e legal. Caso o administrador adote alguma
medida que conflite com a finalidade da norma, o Judiciário deverá exercer o
controle jurisdicional do ato, ou mesmo da omissão do ato, quando for o caso.
Nas palavras do doutrinador Celso Antô nio Bandeira de Mello:

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“o chamado ‘poder discricioná rio’ tem que ser simplesmente
o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal. Só
assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado,
compreendendo-se, entã o, que o que há é um dever
discricioná rio, antes que um “poder” discricioná rio”
(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antô nio. Discricionariedade e
controle jurisdicional. 2ª ed. Sã o Paulo: Malheiros, 1998, p.
15.)

É pró prio do Estado Democrá tico de Direito o controle


recíproco entre os Poderes estatais e seus agentes, bem como o controle exercido
pela sociedade com vistas a fiscalizar as instituiçõ es políticas, responsá veis pela
concretizaçã o dos objetivos, metas e finalidades consignados na ordem
constitucional. O pró prio constituinte de 1988 previu a participaçã o popular na
formulaçã o e execuçã o das políticas de segurança pú blica, imprescindível para
consolidaçã o de uma esfera pú blica de cidadania.

Assim, não obstante o Poder Judiciário não tenha a missão


precípua de elaborar políticas públicas, ele assume o poder-dever de
assegurar que as escolhas realizadas pelo constituinte e expressamente
previstas na Constituição Federal sejam cumpridas. Ao exercer o referido
poder-dever, nã o está o Judiciá rio descumprindo uma clá usula pétrea, mas, ao
contrá rio, está , em verdade, exercendo o controle constitucional que lhe cabe,
verificando se o artigo 3º da Constituiçã o Federal, o qual arrola os objetivos
fundamentais da Repú blica Federativa do Brasil, está sendo devidamente
cumprido.

Nas palavras do E. Ministro Celso de Mello, relator da ADPF nº


45, na qual se debateu as situaçõ es em que estaria autorizado o controle judicial de
políticas pú blicas:

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É certo que nã o se inclui, ordinariamente, no â mbito das
funçõ es institucionais do Poder Judiciá rio - e nas desta
Suprema Corte, em especial - a atribuiçã o de formular e de
implementar políticas pú blicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituiçã o
Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina,
Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside,
primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tal incumbência, no entanto, embora em bases
excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se
e quando os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos
individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de clá usulas revestidas
de conteú do programá tico.

Mais recentemente, este E. Supremo Tribunal Federal


exprimiu entendimento semelhante a respeito do tema do controle judicial das
políticas pú blicas na ADPF 635, que trata das graves lesõ es a preceitos
fundamentais da Constituiçã o Federal praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na
elaboraçã o e implementaçã o de sua política de segurança pú blica, notadamente no
que tange à excessiva e crescente letalidade da atuaçã o policial.

Diante da gravidade e do aumento das açõ es policiais


violentas nas favelas do Rio de Janeiro, o STF proferiu decisã o liminar proibindo
operaçõ es policiais em comunidades do Estado enquanto perdurar a pandemia de
COVID-19, exceto em casos de “hipóteses absolutamente excepcionais”, sendo
necessá rio o envio de justificativa por escrito ao Ministério Pú blico.

Em decisã o de junho de 2020, o ministro relator registrou


que “o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos

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Humanos, no caso Favela Nova Brasília, não apenas pela violação às regras
mínimas de uso da força, mas também por não prever protocolos para o uso da
força, seja para atestar a necessidade do emprego, seja para fiscalizá-lo” e
concluiu: “se espera que, a partir da condenação do Estado brasileiro, medidas
concretas sejam adotadas para evitar que os lamentáveis episódios de Nova Brasília
não se repitam”9.

No dia 4 de agosto de 2020, o pleno deste Augusto Supremo


Tribunal Federal formou maioria para manter a decisã o. Em sessã o virtual de 8 de
agosto de 2020, três ministros reconheceram que o Estado brasileiro continua
descumprindo a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Favela Nova Brasília e manifestaram-se no sentido de que o Rio de Janeiro
deveria apresentar, em 90 dias, um plano de redução da letalidade policial.

Na sessã o virtual encerrada no dia 17 de agosto de 2020, o


Plená rio da Corte concedeu medida cautelar na ADPF contra decretos
estaduais que regulamentam a política de segurança pública adotada pelo
então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, atualmente afastado de seu
cargo. Foram impostas ao governo local as seguintes medidas:

(i) restringir o uso de helicó pteros nas operaçõ es


policiais, os quais só devem ser usados em casos de
necessidade, mediante justificativa;
(ii) restringir operaçõ es policiais em locais pró ximos a
escolas, creches, hospitais ou postos de saú de.
Operaçõ es nestes locais devem ocorrer apenas de
forma excepcional;
(iii) dever de documentaçã o, por parte dos peritos das
provas produzidas em investigaçõ es de crimes
contra a vida;
9
Supremo Tribunal Federal. ADI 635/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Edson Facchin. Pesquisa
de Jurisprudência, Acórdãos, 05 de junho de 2020. Disponível em: <
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502>

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(iv) proibir o uso de escolas ou unidades de saú de
como base das operaçõ es das polícias civil e
militar;
(v) dever de investigaçã o pelo Ministério Pú blico em
caso de suspeita de envolvimento de policiais em
crimes;
(vi) ordenar que agentes de segurança e profissionais
de saú de preservem todos os vestígios de crimes
cometidos em operaçõ es policiais. Deve ser evitada
a remoçã o indevida de corpos de pessoas mortas
em conflito para uma suposta prestaçã o de
socorro, sendo também vedado o descarte de
peças e objetos importantes para a investigaçã o.

Tais decisõ es evidenciam a ausência de impeditivos para que


sejam providos, por esta Corte Constitucional, os pedidos formulados pela
Recorrente na petiçã o inicial, especialmente aqueles relativos à expediçã o de ato
normativo para definir parâ metros de atuaçã o da Polícia Militar do Estado de Sã o
Paulo em policiamento de manifestaçõ es pú blicas, de acordo com as balizas
internacionais de direitos humanos. Aliá s, não apenas fica escancarada a
possibilidade de tal incidência por parte do Poder Judiciário, como também a
negativa de vigência ao artigo 2º da Constituição Federal incorrida pelo v.
acórdão a quo.

Em suma, a decisã o recorrida nã o pode ofuscar o verdadeiro


objeto desta açã o, que é a contençã o do uso da força desproporcional pelo Estado.
Decorre dos dispositivos constitucionais apontados e dos tratados internacionais
que serã o mencionados a seguir a obrigaçã o estatal de elaborar protocolos de
segurança pú blica transparentes que efetivem o uso progressivo da força.

III.2. DA NEGATIVA DE VIGÊNCIA AOS ARTIGOS 1, 2, 13, 15, 16 E 25 DA CONVENÇÃO


AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS; E AOS ARTIGOS 19 E 21 DO PACTO
INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

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O v. acó rdã o recorrido contrariou os arts. 1, 2, 13, 15, 16 e 25
da “Convençã o Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa
Rica”, bem como os arts. 19 e 21 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, consoante se demonstrará a seguir.

a) Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José


da Costa Rica

Constitui fato pú blico e notó rio – além de incontroverso nos


autos – a violência da polícia militar em policiamento de manifestaçõ es populares
ocorridas no Estado de Sã o Paulo, o que, por si só , fere os direitos previstos nos
artigos 13 (liberdade de pensamento e de expressã o), 15 (direito de reuniã o) e 16
(liberdade de associaçã o) da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos
(CADH). Para além disso, ao deixar de proteger e garantir esses direitos, o TJSP
violou também os artigos 1 (obrigaçã o de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar
disposiçõ es de direito interno) e 25 (proteçã o judicial), da mesma Convençã o.

Opostos embargos de declaraçã o apontando a ausência do


controle de convencionalidade no v. acó rdã o recorrido – que consiste na aná lise da
compatibilidade dos atos internos diante de normas internacionais de direitos
humanos, que deve ser realizada por todo e qualquer ó rgã o julgador –, o Tribunal
estadual afirmou que os dispositivos da Convençã o Americana de Direitos
Humanos já possuem seus equivalentes na Constituiçã o Federal, razã o pela qual
nã o foram analisados (fl. 33 dos autos do apenso embargos de declaraçã o).

Com a referida afirmaçã o, que, data maxima venia, ignora e


desconsidera toda a atuaçã o internacional pelos direitos humanos abordada
durante o processo, nã o apenas fica clara a omissã o incorrida pelo E. Tribunal a

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quo, como também o completo descompasso entre a decisã o recorrida e a
jurisprudência do sistema internacional de direitos humanos sobre os dispositivos
mencionados. E mais: fica escancarada, com a devida vênia, a contrariedade da r.
decisã o recorrida também à Constituiçã o Federal brasileira, como já demonstrado.

Segundo o entendimento da Comissã o Interamericana de


Direitos Humanos, a liberdade de expressã o é pedra angular da democracia, sem
ela nã o há uma sociedade democrá tica. Ela é o suporte do Estado democrá tico de
direito e deve ser interpretada da forma mais ampla possível, compreendendo a
liberdade de buscar, receber e difundir informaçõ es e ideias de toda índole, mesmo
aquelas que ofendem o Estado10, conforme previsto no art. 13 da CADH:

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão


1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de
expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar,
receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem
consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em
forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo
de sua escolha.

Por sua vez, o direito de reuniã o está previsto no artigo 15,


nos seguintes termos:

Artigo 15. Direito de reunião


É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O
exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições
previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade
democrática, no interesse da segurança nacional, da
segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou

10
CIDH, A Filiaçã o Obrigató ria de Jornalistas, Opiniã o Consultiva OC-5/85. Serie A, No. 5, par.  70:
“Liberdade de expressã o é uma pedra angular na existência de uma sociedade democrá tica. É
indispensá vel para a formaçã o da opiniã o pú blica e para que a comunidade, na hora de exercer suas
opçõ es, esteja suficientemente informada. É por isso que, é possível afirmar que uma sociedade que
nã o está bem informada, nã o é plenamente livre. A liberdade de expressã o é portanto nã o só um
direito dos indivíduos mas da pró pria sociedade”.

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a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais
pessoas.

A Organizaçã o das Naçõ es Unidas compreende a reuniã o


como todas as manifestaçõ es, greves, marchas, comícios etc, sinalizando como
obrigaçã o dos Estados Membros, ao assinar diferentes documentos internacionais,
facilitar e proteger reuniõ es pacíficas, incluindo aí sua responsabilidade em
promover mediaçõ es e negociaçõ es com os grupos que as realizam e nã o as
reprimir de maneira imediata e violenta.11

Por sua vez, a liberdade de associaçã o, prevista no artigo 16,


garante que o direito à reuniã o seja exercido livremente com fins ideoló gicos,
políticos, econô micos, trabalhistas, sociais, desportivos ou de qualquer outra
natureza:

Artigo 16. Liberdade de associação


1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se
livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos,
econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de
qualquer outra natureza.

Os fatos incontroversos, pú blicos e notó rios colacionados a


estes autos retratam episó dios de violência em que a Polícia Militar atua de forma
a dispersar completamente as manifestaçõ es com bombas de efeito moral e tiros
de bala de borracha, de modo que os manifestantes sequer ficam sabendo do
motivo da dispersã o e sã o apenas surpreendidos com violência. Isso ocorre mesmo
em atos organizados, de conhecimento das autoridades pú blicas, com finalidade
lícita e de cará ter transitó rio, sendo inconteste a violaçã o aos artigos supracitados
da CADH.

11
ONU. https://nacoesunidas.org/onu-divulga-relatorio-sobre-direitos-dos-manifestantes-contra-
abusos-policiais/

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Por este motivo, um dos pedidos da açã o consiste na
expediçã o de ato normativo definindo parâ metros de atuaçã o da Polícia Militar do
Estado de Sã o Paulo em manifestaçõ es, conforme orientaçõ es técnicas. No â mbito
internacional, protocolos dessa espécie já existem. No entanto, o v. acó rdã o
entendeu que o plano iria enrijecer a atuaçã o da Polícia Militar (fl. 1887).

Contudo, o que foi chamado de “rígida forma de atuaçã o”


nada mais é do que uma forma de atuaçã o que respeita os direitos humanos
fundamentais dos cidadã os, com a preservaçã o do direito à liberdade de
pensamento e de expressã o, à liberdade de associaçã o e de reuniã o dos
manifestantes.

O Protocolo Internacional formulado pela Anistia


Internacional12 considera como direito legítimo as pessoas expressarem suas
opiniõ es pelas ruas, devendo as autoridades facilitar e nã o restringir as reuniõ es
pú blicas pacíficas de modo a evitar o uso da força. O protocolo declara:

a) Quando uma pequena minoria tenta transformar uma


reuniã o pacífica em uma reuniã o violenta, os policiais devem
proteger os manifestantes pacíficos e nã o usar os atos
violentos de uma minoria como um pretexto para restringir
ou impedir o exercício dos direitos fundamentais de uma
maioria;
b) Bastõ es e equipamentos de impacto semelhantes nã o
devem ser utilizados em pessoas que nã o sã o ameaçadoras e
nã o agressivas. Onde o uso de bastã o é inevitá vel, os agentes
da lei devem ter ordens claras para nã o causar lesõ es graves
e que as partes vitais do corpo sejam excluídas como zonas-
alvo;
c) O tipo de equipamento utilizado para dispersar uma
reuniã o pú blica deve ser cuidadosamente considerado e
usado somente quando necessá rio, proporcional e

12
Disponível em http://www.amnesty.org/en/documents/EUR01/022/2012/en/

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legalmente. Equipamentos de policiamento e segurança -
como balas de borracha, gá s lacrimogêneo e granada
paralisante, muitas vezes descritos como armas "menos
letais" - podem resultar em ferimentos graves e até a morte.
Irritantes químicos, como gá s lacrimogêneo, nã o devem ser
utilizados onde as pessoas estã o confinadas em uma á rea e
de uma forma que pode causar danos permanentes (como a
curta distâ ncia, ou diretamente orientados para os rostos
das pessoas).

Quanto à atuaçã o de policiais nas operaçõ es militares o


Protocolo dispõ e:
a) Ordens claras devem ser dadas a todos os policiais que a
assistência médica a qualquer pessoa lesada deve ser
fornecida sem demora;
b) Qualquer uso da força durante uma reuniã o pú blica deve
ser objeto de aná lise e, se for o caso, de investigaçã o e sançã o
disciplinar ou criminal.
c) As reclamaçõ es contra a polícia devem ser investigadas de
forma eficaz e imparcial, e se for o caso, sujeitas à s sançõ es
disciplinar ou criminal.
d) Os policiais devem ser identificados durante as operaçõ es
de ordem pú blica (através de etiquetas com nome ou
nú mero). Ordens executó rias devem ser dadas para
assegurar o cumprimento da obrigaçã o de usar essas
etiquetas. Equipamentos de proteçã o devem ser usados para
a proteçã o dos policiais e nã o como um meio para esconder
a sua identidade.

A premissa contida no v. acó rdã o recorrido, de que seria


vá lido o impedimento violento de uma dada manifestaçã o, causando dispersã o de
todos os manifestantes, para fazer cessar um ato criminoso, é, por si só , um
atentado à liberdade de expressã o e de associaçã o, ao direito de reuniã o e,
principalmente, ao Estado democrá tico de direito.

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Aqui, cabe ressaltar a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em especial no emblemá tico Caso López e
outros Vs. Honduras (sentença proferida em 5 de outubro de 2015):

A Corte reconheceu a relaçã o existente entre os direitos


políticos, a liberdade de expressã o, o direito de reuniã o e a
liberdade de associaçã o. Reconheceu também em conjunto,
esses direitos tornam possível a dinâ mica democrá tica. Em
situaçõ es de ruptura institucional, apó s um golpe de Estado,
a relaçã o entre esses direitos torna-se ainda mais manifesta.
Do mesmo modo, a Corte apontou que as manifestaçõ es e
expressõ es a favor da democracia devem contar com a
má xima proteçã o possível, e, dependendo das
circunstâ ncias, podem estar ligadas a todos ou a alguns
desses direitos.

A dispersã o completa de manifestaçõ es nã o pode ser


justificada pela presença de alguns indivíduos agindo com violência entre os
demais que agem pacificamente. Até porque os manifestantes que agem
pacificamente também devem ter o seu direito à segurança preservado, inclusive,
para proteçã o em face daqueles que agem com violência. Nesse sentido já pontuou
o relator especial da ONU, Maina Kiai (2013):

“Um indivíduo nã o deixa de usufruir o direito de liberdade


de reuniã o pacífica com o resultado de violência esporá dica
ou outros atos puníveis cometidos por outros no curso dos
protestos se o indivíduo em questã o permanecer pacífico em
suas intençõ es e comportamento”13.

Nã o diferente, o documento elaborado pela Organizaçã o


para a Segurança e Cooperaçã o na Europa (OSCE), intitulado Diretrizes sobre
Liberdade de Reuniã o Pacífica, aponta que:

13
Disponível em: <http://www.osce.org/odihr/73405?download=true> - Artigo 19: Protestos no
Brasil 2013, p. 25.

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“o uso de violência por um pequeno nú mero de
participantes em uma manifestaçã o (incluindo o uso de
linguagem incitató ria) nã o transforma automaticamente
uma manifestaçã o pacífica em uma nã o-pacífica, e qualquer
intervençã o deve objetivar lidar com os indivíduos
envolvidos ao invés de dispersar o evento todo”14.

Assim como nã o convence o argumento de que isolados atos


possivelmente criminosos justificariam a dispersã o de toda uma manifestaçã o,
também nã o prospera a “fundamentaçã o” do v. acó rdã o baseada na liberdade de
locomoçã o das pessoas que nã o participam das manifestaçõ es.

De início, cabe ressaltar que, de certo, uma intervençã o


policial a esmo com bombas e tiros de bala de borracha atinge de forma ainda mais
severa a liberdade de locomoçã o dos nã o manifestantes, que, inclusive, podem ser
atingidos.

Nã o obstante, é inadmissível que a violência policial contra


manifestantes pacíficos seja justificada pela liberdade de locomoçã o dos demais
cidadã os, principalmente quando se trata de atos organizados e legítimos, de
conhecimento das autoridades pú blicas, com finalidade lícita e de cará ter
transitó rio.

A interferência policial violenta em manifestaçõ es restringe


os direitos previstos nos artigos 13, 15 e 16 da CADH. Tal interferência revela-se
ilegal e inconvencional à medida que demonstra um controle repressivo direto à
circulaçã o de ideias, o que, segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no caso Bronstein vs. Peru (2001)15, é inadmitido pelo art. 13.3 da Convençã o.

14
Disponível em: http://www.osce.org/odihr/73405?download=true - Artigo 19: Protestos no
Brasil 2013, p. 24.
15
Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2016/04/506ad88087f45ce5d2413efc7893958e.pdf>

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Ainda que a liberdade de locomoçã o dos outros indivíduos
pudesse legitimar a interferência policial em manifestaçõ es, nã o justificaria a
forma violenta como esta ocorre. Sabe-se que o uso nã o moderado da força policial
coloca em risco também o direito à vida dos manifestantes, que se trata de direito
inderrogá vel, ou seja, nenhuma situaçã o, por mais excepcional que seja, justifica
seu desamparo.

Em desconformidade com o que preconiza a CADH, a força


policial do Estado de Sã o Paulo agiu em completa desarmonia com os direitos
humanos bá sicos dos manifestantes, ignorando, inclusive, os “Princípios Bá sicos
sobre a Utilizaçã o da Força e de Armas de Fogo pelos Funcioná rios Responsá veis
pela Aplicaçã o da Lei” elaborados pela ONU16, que, dentre outras coisas, dispõ e que
“os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, no exercício das suas funções,
devem, na medida do possível, recorrer a meios não violentos antes de utilizarem a
força ou armas de fogo. Só poderão recorrer à força ou a armas de fogo se outros
meios se mostrarem ineficazes ou não permitirem alcançar o resultado desejado”.

Especificamente sobre manifestaçõ es pú blicas e reuniõ es, o


princípio 13 protege, até mesmo, as realizadas ilegalmente: “Os funcionários
responsáveis pela aplicação da lei devem esforçar-se por dispersar as reuniões ilegais
mas não violentas sem recurso à força e, quando isso não for possível, limitar a
utilização da força ao estritamente necessário”.

Sendo necessá rio o uso da força, o princípio 5, “a” e “b”


determina que:

16
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev20.htm#:~:text=Os%20funcion
%C3%A1rios%20respons%C3%A1veis%20pela%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20da%20lei
%20n%C3%A3o%20devem%20fazer,%C3%A0%20deten%C3%A7%C3%A3o%20de%20pessoa
%20que

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5. Sempre que o uso legítimo da força ou de armas de fogo
seja indispensá vel, os funcioná rios responsá veis pela
aplicaçã o da lei devem:
a) Utilizá -las com moderaçã o e a sua açã o deve ser
proporcional à gravidade da infracçã o e ao objetivo legítimo
a alcançar;
b) Esforçar-se por reduzirem ao mínimo os danos e lesõ es e
respeitarem e preservarem a vida humana;

O plano proposto pela Recorrente nesta açã o iria


proporcionar justamente que tais princípios fossem efetivados e que eventual
necessidade do uso da força já estivesse prevista dentro dos parâ metros
necessá rios para que nenhum direito de nenhuma das partes envolvidas fosse
violado.

Cabe ainda ressaltar os apontamentos do Relató rio sobre a


Situaçã o dos Direitos Humanos no Brasil 2021, elaborado pela Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos, que aborda a temá tica da “Liberdade de
Associaçã o e Protestos Sociais” nos seguintes termos:

“Um espaço cívico vibrante, protegido de ataques ou


ameaças, constitui a pedra angular de sociedades
democrá ticas está veis e que prestam contas à populaçã o. No
entanto, durante a visita in loco, a Comissão recebeu
denúncias sobre restrições à expressão crítica no
contexto do protesto social e na defesa dos direitos
humanos. A CIDH tem verificado que esta situação se
agravou nos últimos anos, especialmente desde 2013,
com um aumento preocupante do número de restrições
ao exercício dos direitos humanos no contexto dos
vários protestos sociais e manifestações que ocorrem
em todo o país. Segundo informaçã o das organizaçõ es da
sociedade civil houve o aumento da presença da polícia
militar nas manifestações em vários Estados, que ao
invés de proteger, agiram no sentido de dispersar os

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protestos, gerando um efeito intimidatório sobre
aqueles que desejam se manifestar.
(...)
Conforme relatado e discutido adiante, investigaçõ es
criminais ou administrativas sobre essas violaçõ es sã o
infrequentes e elas costumam permanecer impunes. Além
disso, a CIDH tem observado o impacto diferencial dessas
leis e prá ticas sobre os pessoas ou grupos que
historicamente estã o expostos à discriminaçã o estrutural na
sociedade brasileira. Assim, por exemplo, a CIDH foi
informada que grupo de pessoas que reivindicam o direito à
terra no Brasil, formado por, entre outros, camponeses,
povos indígenas, quilombolas e outras comunidades
tradicionais, têm sido submetido a prisõ es e processos
criminais para punir e intimidar suas demandas pela
reforma agrá ria no país.
A CIDH anota que o uso do aparato judiciário e policial
para fins de repressão de movimentos sociais já foi
objeto de contencioso no SIDH, tendo o Estado sido
condenado pela Corte a adotar medidas de reparação e
não repetição. Durante a visita in loco, a CIDH recebeu
novas denú ncias sobre esse tipo de expediente,
especialmente em relaçã o a movimentos sociais pelo acesso
à terra e à moradia. 
(...)
Ademais, a Comissão recebeu informação preocupante
sobre a criminalização, ataques físicos e psicológicos
que estudantes adolescentes brasileiros sofreram
durante protestos e movimentos sociais no país. Isto foi
registrado no contexto dos protestos contra um conjunto de
políticas de reforma educacional promovidas pelo Estado de
Sã o Paulo em 2015. 
(...)
Finalmente, a CIDH também recebeu informação
preocupante sobre uma série de processos e
persecuções penais, invocando crimes como o desacato

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e a difamação contra jornalistas, ativistas de direitos
humanos e manifestantes.” (p. 176-179)

A partir disso, o Relató rio traça uma série de conclusõ es e


recomendaçõ es a serem seguidas pelo Brasil, como, por exemplo:

7. Reformar protocolos e diretrizes de organismos locais,


estaduais e federais responsá veis pela aplicaçã o da lei, de
modo a garantir que cumpram com os parâ metros
internacionais sobre: 
(...)
e. Em situações de protesto, respeito e facilitação do
exercício da liberdade de reunião e manifestação, além
de protocolos de contenção, técnicas de abordagem e
uso de armas não letais.

Como se vê, a Comissã o Interamericana de Direitos


Humanos já reconheceu, em seu relató rio mais recente sobre a situaçã o dos
direitos humanos no Brasil (2021), que o estado brasileiro nã o cumpre as
obrigaçõ es assumidas internacionalmente, dentre elas aquelas previstas na CADH,
que foram mencionadas neste tó pico e que constituem direitos humanos bá sicos
de um Estado que se pretenda “Democrá tico de Direito”.

Por fim, como antes já aduzido, insustentá vel o argumento


da separaçã o dos poderes de que lançou mã o o Tribunal estadual para
supostamente justificar as arbitrariedades cometidas pela polícia militar de Sã o
Paulo. Até porque tal princípio surgiu exatamente para limitar o poder estatal e
evitar abusos de um poder exercido sem limites.

Determinar que a força policial do Estado de Sã o Paulo


elabore um plano para atuar em observâ ncia aos direitos humanos fundamentais
nã o caracteriza violaçã o à separaçã o dos poderes. Pelo contrá rio, evitar que um

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dos poderes continue atuando de forma abusiva é propriamente a funçã o do
princípio em questã o, e a atuaçã o do Poder Judiciá rio se torna, além de possível,
imprescindível.

Nessa perspectiva, cabe citar a decisã o da ADPF 635 MC-


TPI/RJ em que o Supremo Tribunal Federal interferiu na atuação policial
para a preservação de direitos fundamentais, determinando: (i) que, sob pena
de responsabilizaçã o civil e criminal, nã o se realizem operaçõ es policiais em
comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em
hipó teses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas
por escrito pela autoridade competente, com a comunicaçã o imediata ao Ministério
Pú blico do Estado do Rio de Janeiro – responsá vel pelo controle externo da
atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordiná rios de realizaçã o dessas
operaçõ es durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais,
devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para nã o
colocar em risco ainda maior populaçã o, a prestaçã o de serviços pú blicos
sanitá rios e o desempenho de atividades de ajuda humanitá ria.17

Como se vê, nenhum dos argumentos contidos no v. acó rdã o


recorrido subsiste como razã o apta a justificar os excessos da polícia e as
consequentes violaçõ es a dispositivos da CADH, ficando nítida, por outro lado, a
contrariedade da decisã o guerreada, também, aos artigos 1, 2 e 25:

Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos


1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se
a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a
garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que
esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação
alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza,

17
Disponível em file:///C:/Users/Usuario/Downloads/Decisa%CC%83o%20ADPF%20Favelas.pdf

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origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.

Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito


interno
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no
artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições
legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes
comprometem-se a adotar, de acordo com as suas
normas constitucionais e com as disposições desta
Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza
que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e
liberdades.

Artigo 25. Proteção judicial


1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido
ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou
tribunais competentes, que a proteja contra atos que
violem seus direitos fundamentais reconhecidos
pela constituição, pela lei ou pela presente
Convenção, mesmo quando tal violação seja
cometida por pessoas que estejam atuando no
exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados Partes comprometem-se:
a. a assegurar que a autoridade competente prevista
pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de
toda pessoa que interpuser tal recurso;
b. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades
competentes, de toda decisão em que se tenha
considerado procedente o recurso.

Demonstrada, portanto, a violaçã o à Convençã o Americana


de Direitos Humanos, restando claro que nã o pretende a Recorrente que a
liberdade de manifestaçã o popular seja considerada ilimitada, impedindo a
atuaçã o estatal; mas também nã o se pode aceitar o entendimento esposado no
acó rdã o recorrido de que a atuaçã o da polícia possa ser arbitrá ria sem observâ ncia
aos princípios mais bá sicos de direitos humanos.

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O que se busca com esta açã o é, simplesmente, o uso
proporcional e progressivo da força pela polícia militar de Sã o Paulo, em
conformidade com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e com os
parâ metros internacionais.

b) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

Outro instrumento internacional que restou violado pelo v. acó rdã o é o


Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto nº
592 de 1992, por meio do qual o Estado brasileiro se comprometeu, mais uma vez,
a garantir a liberdade de expressã o e o direito de reuniã o, previstos nos artigos 19
e 21, respectivamente:

ARTIGO 19
1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão;
esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e
difundir informações e idéias de qualquer natureza,
independentemente de considerações de fronteiras,
verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou
artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do
presente artigo implicará deveres e responsabilidades
especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a
certas restrições, que devem, entretanto, ser
expressamente previstas em lei e que se façam
necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das
demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a
moral públicas.

ARTIGO 21
O direito de reunião pacífica será reconhecido. O
exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições

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previstas em lei e que se façam necessárias, em uma
sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para
proteger a saúde ou a moral pública ou os direitos e as
liberdades das demais pessoas.

A devida interpretaçã o destes artigos deve ser feita com base nos
Comentá rios Gerais dos Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU18. A
liberdade de expressã o e de opiniã o (artigo 19), abordadas no Comentá rio Geral nº
34, sã o condiçõ es essenciais para o desenvolvimento digno do ser humano e para a
existência de uma sociedade livre e democrá tica. Por esta razã o, a obrigaçã o de
respeitá -las na integralidade vincula todos os Estados Partes e seus respectivos
poderes e autoridades. O cumprimento dessa obrigaçã o é efetivo quando os
Estados garantem a proteçã o das pessoas diante de qualquer ato que possa
prejudicar o gozo das liberdades em questã o.

O pará grafo 1 do artigo 19 dispõ e sobre a proteçã o do direito de


sustentar opiniõ es sem interferência e, sobre ele, o Comitê afirma se tratar de um
direito que o Pacto nã o autoriza exceçõ es ou restriçõ es. O pará grafo 2, por sua vez,
obriga os Estados a garantirem o direito à liberdade de expressã o, estando incluso
o direito a buscar, receber e transmitir informaçõ es e ideias de todos os tipos,
independentemente de fronteiras.

Inequívoco, portanto, que, ao dispersar violentamente manifestaçõ es


pú blicas pacíficas, o Estado de Sã o Paulo deixa de cumprir com o dever assumido
pelo Brasil de garantir a liberdade de expressã o e opiniã o sem restriçõ es, sendo
notó rio o descompasso do v. acó rdã o também com este diploma legal.

18
https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Coment%c3%a1rios%20Gerais%20da
%20ONU.pdf

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As possíveis restriçõ es à s liberdades em questã o estã o previstas no
pará grafo 3; no entanto, o Comitê de Direitos Humanos da ONU alerta que quando
um Estado Parte impõ e restriçõ es ao exercício da liberdade de expressã o, elas nã o
podem colocar em risco o direito propriamente dito. Assim, as restriçõ es devem
estar previstas em lei, com precisã o suficiente para permitir que a populaçã o
adeque sua conduta a ela, e devem cumprir os requisitos de necessidade e
proporcionalidade.

Ainda, o Comitê de Direitos Humanos afirma que “quando um Estado


Parte invoca um motivo legítimo para restringir a liberdade de expressão, deve
demonstrar de maneira específica e individualizada a natureza precisa da
ameaça e a necessidade e proporcionalidade da medida concreta que foi
adotada, em particular estabelecendo uma conexão direta e imediata entre a
expressão e a ameaça”.

Ora, o plano de atuaçã o pleiteado por esta Defensoria Pú blica visa


justamente pré-estabelecer situaçõ es em que a força policial poderá e deverá agir,
bem como pré-estabelecer a sua forma de atuaçã o – que deve priorizar o diá logo à
violência. Em outras palavras, os pedidos da Defensoria Pú blica coincidem com as
providências que já sã o exigidas do Brasil no â mbito internacional.

Violações aos artigos 19 e 21, ainda, restringem, conforme


abordado pelo Comitê no Comentário Geral nº 25, os direitos previstos no
art. 25, quais sejam, o direito de participar da condução de assuntos públicos
(alínea a), direito de voto (alínea b) e direito à igualdade de acesso a funções
públicas (alínea c).

Segundo o Comitê, a restriçã o à alínea “a” se dá , uma vez que “os


cidadãos também participam da condução dos assuntos públicos exercendo

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influência por meio do debate público e do diálogo com seus representantes ou
através de sua capacidade de se organizar. Esta participação é apoiada pela
garantia da liberdade de expressão, reunião e associação”.

Quanto ao direito previsto na alínea “b”, o Comitê afirma que “os


Estados devem tomar medidas eficazes para assegurar que todas as pessoas com
direito a voto possam exercer esse direito (...). A liberdade de expressão, reunião e
associação são condições essenciais para o exercício efetivo do direito de voto
e devem ser plenamente protegidas”.

Já a alínea “c” guarda relaçã o com a liberdade de expressã o e o direito


de reuniã o, visto que “a fim de assegurar o pleno gozo dos direitos protegidos pelo
artigo 25, é essencial a livre comunicação de informações e ideias sobre questões
públicas e políticas entre cidadãos, candidatos e representantes eleitos. Isto implica
uma imprensa livre e outros meios de comunicação capazes de comentar questões
públicas sem censura ou restrição e de informar a opinião pública. Exige o pleno
gozo e respeito pelos direitos garantidos nos artigos 19, 21 e 22 do Pacto,
incluindo a liberdade de se envolver em atividade política individualmente ou
através de partidos políticos e outras organizações, liberdade para debater assuntos
públicos, realizar manifestações e reuniões pacíficas, criticar e se opor, publicar
material político, fazer campanhas eleitorais e divulgar ideias políticas”.

Como se vê, é notó ria a importâ ncia, em um Estado Democrá tico de


Direito, da liberdade de expressã o e do direito de reuniã o para a garantia de outros
direitos. O Comitê de Direitos Humanos afirma que “as liberdades de opinião e
expressão formam a base para o pleno gozo de uma ampla gama de direitos
humanos”.

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Nã o há dú vida, portanto, da violaçã o incorrida pelo v. acó rdã o recorrido
aos dispositivos supracitados do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos.

IV. DA FIXAÇÃO DE TESES COM REPERCUSSÃO GERAL SOBRE O DIREITO DE


PROTESTO

Este Supremo Tribunal tem adotado a boa prá tica de


elaborar teses sobre a interpretaçã o do direito, como no caso do RE 806339, que
fixou a seguinte tese: “A exigência constitucional de aviso prévio relativamente ao
direito de reunião é satisfeita com a veiculação de informação que permita ao poder
público zelar para que seu exercício se dê de forma pacífica ou para que não frustre
outra reunião no mesmo local”.

Como já exposto acima, este Tema foi afrontado pelo v.


aresto recorrido, pois era um dos pedidos da açã o civil pú blica: “abster-se, desde já,
de impor condições ou limites de tempo e lugar às reuniões e manifestações públicas,
mesmo nas situações em que houver a interrupção do fluxo de veículos”.

Com o provimento do presente recurso, requer-se que este


Supremo Tribunal fixe as seguintes teses jurídicas sobre os direitos fundamentais
em discussã o:

I) Atos ilícitos praticados por indivíduos em uma


manifestaçã o pú blica devem ser individualmente reprimidos, nã o
descaracterizando o cará ter lícito da manifestaçã o, tampouco autorizando a sua
dispersã o.

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II) Ainda que uma manifestaçã o pú blica obstaculize total ou
parcialmente o trâ nsito de veículos, o Estado nã o pode usar de violência para
dissolvê-la, devendo buscar os meios de responsabilizaçã o civil e criminal.

III) É vedado ao Estado impor condiçõ es ou limites de tempo


e lugar à s manifestaçõ es pú blicas.

IV) É vedada a dispersã o de manifestaçõ es pú blicas com uso


de arma de fogo, inclusive de elastô mero, sendo lícito o uso de armas nã o letais
como gá s lacrimogêneo e bombas de efeito moral em locais abertos apenas depois
de descumprida a decisã o administrativa de dispersã o da manifestaçã o
devidamente comunicada aos manifestantes.

V) A dispersã o de manifestaçõ es pú blicas com uso da força


só é lícita apó s caracterizado o descumprimento da ordem legal de dispersã o.

V. DO PEDIDO

Por todo o exposto e pela violaçã o dos artigos 2º (separaçã o


dos poderes); 5º, incisos IV (direito à liberdade de expressã o), XV (direito de
locomoçã o), XVI (direito de reuniã o) e XVII (direito de associaçã o); e 182, caput
(direito à cidade) da Constituiçã o Federal; bem como pela violaçã o aos artigos 1, 2,
13, 15, 16 e 25 da Convençã o Americana sobre os Direitos Humanos e aos artigos
19 e 21 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Recorrente requer,
apó s a oportunizaçã o da apresentaçã o de contrarrazõ es pelo Recorrido, seja
conhecido e provido o presente Recurso Extraordiná rio, a fim de que seja
reformado o v. acó rdã o para reestabelecer integralmente a r. sentença, acolhendo
os pedidos formulados em sede inaugural, bem como sejam fixadas as teses
propostas no tó pico IV deste recurso.

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Sã o Paulo, 26 de abril de 2021.

Defensor(a) Pú blico(a)
Unidade de XXXXXXXXX

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