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PONTES E LACERDA - MT
2023
MILADY ALMEIDA BASSI
PONTES E LACERDA-MT
2023
AGRADECIMENTOS
The present work purpose to analyze the institutional mechanisms of proceeding in the fight
against work in conditions similar to slavery and the main problems make it difficult the
convergence of effective actions for the eradication of contemporary slave labor in Brazil. The
changes in the conceptualization for the characterization of slave labor and its current
conception enabled the expansion of the protection given to the vulnerable worker, however,
the jurisprudential divergences still constitute an obstacle for the viability of the condemnation
typified in the article 149 of the Penal Code. Before such an obstacle, added to the slowness of
the judiciary when the case was judicialized, although independent, the extrajudicial
mechanisms of action and the role given to the Public Ministry through the plans for the
eradication of work analogous to slavery became preponderant alternatives in the fight against
work contemporary slave, as will be demonstrated in the measures adopted in the fiscal actions
triggered in the case of workers recently found in the County of Bento Gonçalves/RS. The
research is justified by the academic and political relevance of the subject, as well as the author's
interest in deepening into this specific topic. As for the methodology used, through the
bibliographical research it was possible to make deductive inferences, in other words, the
approach of the paradigmatic case of Bento Gonçalves made it possible to identify the main
governmental problems faced by the Brazilian states in the eradication of slave labor, at the end
was possible to conclude that an update of plans to eradicate slave labor is needed. Such a plan
consists of a reference of action to the federative entities, and was outdated in the face of the
changes promoted by the Labor Reform.
Keywords: Slave labor. Combat mechanisms. Ministry of Labor. Case city Bento
Gonçalves/RS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
2.9.1 - As controvérsias que envolvem a destinação das indenizações por dano moral coletivo
...................................................................................................................................................29
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 40
REFERÊNCIAS......................................................................................................................41
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INTRODUÇÃO
À Medida em que o modelo econômico de servidão feudal europeu migra para o trabalho
assalariado, a utilização de mão de obra escrava e o tráfico negreiro configuram a organização
do sistema de exploração colonial a fim de promover a acumulação de capital na metrópole. No
início do séc. XIX, depois de abolir o tráfico em suas colônias, a Inglaterra inicia o movimento
abolicionista ao exercer pressão diplomática e militar na luta contra ele. Mas apesar da
condenação moral ao sistema servil, tanto pela opinião comum quanto nos círculos
conservadores, todas as atividades econômicas do Brasil gravitavam em função do modelo
escravista, o qual paradoxalmente se reforçou após a independência, quando da ascensão dos
latifundiários à direção política do novo Estado (PRADO JR., 2012).
Nesse momento aportavam-se cerca de 40.000 escravos anualmente no Brasil, contudo
o crescimento vegetativo de sua população era diminuto, ao passo que a importação de mulheres
era consideravelmente inferior à de homens, bem como as condições precárias as quais eram
submetidos impediam sua multiplicação. Após a proibição do tráfico tomar-se-ão várias
medidas para assegurar a conservação e crescimento vegetativo da população de escravos em
solo brasileiro, como o incentivo ao casamento e a proibição da separação das famílias, mas
nada surtiu efeitos frente a extinção da exportação de escravos em 1850 (PRADO JR., 2012).
As primeiras medidas contingenciais brasileiras com relação ao tráfico de pessoas foram
consubstanciadas num tratado assinado em 1826, através do qual o país se comprometia a
proibir totalmente o tráfico de pessoas em três anos, após esse prazo o comércio humano seria
considerado “pirataria”, e também tratado como tal. Desse modo, a fim de cumprir com sua
promessa, o Brasil promulga a Lei Feijó de 7 de novembro de 1831 que ficou com conhecida
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como “lei para inglês ver” devido ao desinteresse do Estado em promover o seu cumprimento.
A lei sancionada por D. Pedro II, declarava livre todos os escravos vindos de fora do país e
imputava pena aos seus importadores, mas essencialmente significou apenas uma convenção
assumida frente aos interesses internacionais , quando nunca se teve a real intenção de aplica-la.
Diante desse cenário, a Inglaterra decide intervir por conta própria para resolver o
problema definitivamente. Para tanto, em agosto de 1845 foi aprovado o ato Bill Aberdeen no
Parlamento Inglês, o qual tornaria lícita a prisão de qualquer embarcação empregada no tráfico
africano, com autorização para atear fogo e invadir praias e portos, onde quer que se refugiasse
um navio traficante. Tal medida configurava uma afronta à soberania brasileira e levou a um
estado de quase guerra até o efetivo empenho do Brasil na reação contra o tráfico. Nesse
momento foram adotadas não só Leis eficientes, mas uma repressão ostensiva e contínua que
diminuiu gradualmente o tráfico até a sua completa extinção por volta de 1855 (PRADO JR.,
2012).
O encerramento desse ciclo foi de grande importância para a consolidação da liberdade
e soberania do Estado brasileiro, aberto à livre concorrência internacional. A abolição do tráfico
africano afetou a própria estrutura de base da colônia, e o processo de decomposição de tal
sistema se perpetuará ao longo do tempo, ainda não completo nos dias de hoje. Importante
lembrar que suprimida a importação de escravos é resolvida apenas a primeira etapa do
problema escravista, visto que o trabalho servil se conserva enquanto as forças conservadoras
preferem calar-se e evitar repercussões em torno do assunto (BARBOSA, 2008).
Nesse ínterim, aparecem no parlamento várias propostas emancipacionistas que nem
chegaram a ser objeto de deliberações. Logo também aparecerá o problema da falta de mão de
obra, ao passo que o crescimento vegetativo da classe trabalhadora não será suficiente para
suprir a expansão da cultura do café. Aqui a solução para tal situação seria a de desviar os
escravos para as regiões mais prósperas, que migrarão consideravelmente para o centro-sul do
país. Diante dessa situação desfavorável para o Norte, os senhores de engenho da Bahia e
Pernambuco proporão inclusive projeto de lei para barrar o tráfico interprovincial de escravos.
Esse desequilíbrio demográfico fez com o que o Norte amadurecesse ideais emancipacionistas
mais rapidamente, nesse sentido:
1 O campesinato consiste na produção agrícola de base familiar e social de subsistência onde predomina a
cooperação entre seus membros através de trocas de produtos
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campo por salários baixíssimos, enquanto que nas cidades a tendência era a marginalização e o
ócio forçado (BARBOSA, 2008).
No entanto, embora a massa de imigrantes seja constantemente identificada como a
classe operária brasileira, que iniciaria os primeiros sindicatos, a formação da classe
trabalhadora foi um processo longo e contínuo que teve início ainda durante a vigência da
escravidão, a partir do compartilhamento de experiencias entre trabalhadores escravizados e
livres com expectativas comuns. Um exemplo disso é a organização dos trabalhadores do porto
no Rio de Janeiro, formada por carregadores e estivadores escravizados que criaram um vínculo
de solidariedade no qual economizavam recursos para a compra da liberdade. Os seus
descendentes continuaram no setor, dando origem aos primeiros sindicatos dos trabalhadores
do porto (MATOS, 2009).
2 O manual publicado pelo MTE é fruto da reflexão e experiência de Auditores-Fiscais do Trabalho no combate
ao trabalho análogo ao de escravo, sendo sua finalidade orientar esse profissional através de um acervo
diversificado de procedimentos.
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considerado trabalho escravo, não devendo a sua caracterização se sujeitar aos estereótipos do
trabalhador acorrentado, açoitado e ameaçado constantemente, portanto, as más condições de
trabalho, independente do cerceamento da liberdade também tipificam a conduta.
À vista disso, a conceituação brasileira acerca do trabalho escravo, assim como sua
nomenclatura, sofreu modificações desde a ratificação da Convenção n.º 29, ou seja,
diferentemente da terminologia internacional dada pela OIT – trabalho forçado ou obrigatório
– no ordenamento jurídico brasileiro o trabalho forçado constitui somente um dos elementos
para a configuração do trabalho em condições análogas à de escravo – terminologia adotada
pelo Brasil. Essa ampliação conceitual contemporânea com relação ao trabalho escravo
representa um avanço social e evidencia que sua caracterização vai além da privação da
liberdade, incluindo também a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, bem
como a sujeição a condições degradantes de trabalho, conforme alteração legislativa de 2003
que modificou a redação do art. 149 do Código Penal3.
A sujeição do trabalhador a jornadas exaustivas se refere não somente ao tempo de
duração da jornada, mas também ao esforço excessivo que o leve ao limite de sua capacidade.
A exigência de produtividade mínima, a indução à competitividade para se atingir determinada
meta que o leve ao esgotamento físico para conseguir determinado prêmio, são características
comumente presentes nas atividades remuneradas por produção e configura sujeição à jornada
exaustiva de trabalho, prevista no caput do art. 149. Ressalte-se que os limites impostos pelas
legislações às jornadas de trabalho têm por finalidade a proteção da saúde e segurança do
trabalhador, posto que o descanso é essencialmente importante para restabelecer as forças
físicas e mentais, de modo a evitar inclusive os acidentes de trabalho.
A privação do trabalhador ao acesso à direitos básicos de segurança e saúde configuram
sujeição a formas degradantes de trabalho. A jurisprudência entende que a prestação de serviço
em instalações inadequadas e capazes de agredir a intimidade, a saúde e a segurança, como por
exemplo, a precariedade e falta de higiene dos abrigos, o acesso insuficiente à alimentação e
água potável, são considerados elementos que caracterizam o trabalho degradante. Segundo
Sagaz (2017, p. 99) a referida conduta “fomenta a indignidade do trabalhador, acentuando a
pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais, desvalorizando humanitária e socialmente
o trabalho”.
3 “Art.149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e
multa, além da pena correspondente à violência”.
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Através das convenções internacionais ratificadas ao longo do século XX, e com status
normativo de lei, o Brasil se comprometeu em adotar todas as medidas necessárias, legislativas
ou de outra natureza, para a erradicação do trabalho escravo. Conquanto exista elementos
comuns ao tipo penal, a administração pública adotou conceituação mais ampla para repressão
do trabalho escravo, bem como a possibilidade de edição de medidas pelo Poder Executivo.
[…] o conceito de trabalho escravo para fins administrativos é mais amplo do que
aquele previsto no Código Penal. E nem poderia ser diferente, haja vista que a política
criminal garantista em vigor no país volta-se – em especial – para a proteção do status
libertatis do réu. No caso concreto sob análise, não estamos a cuidar de processo penal.
Ao contrário, a ação administrativa volta-se para o atendimento do interesse público,
daí decorrendo todas as prerrogativas de que dispõe a Administração, inclusive as
presunções de legitimidade e veracidade que recaem sobre seus atos. (BRASIL, 2011,
p. 19).
Portanto, a instância administrava e penal são independentes entre si, de modo que a
mesma conduta poderá ser objeto de repressão após decisão decorrente de auto de infração
lavrado em decorrência de ação fiscal onde haja identificação de trabalhadores em condições
análogas à de escravo, independentemente da existência de ação penal como pressuposto para
a responsabilização administrativa, porquanto em atenção ao princípio da prevalência do
interesse público, a sociedade e os trabalhadores não poderão ter seus interesses paralisados ao
aguardar decisão de processo penal em curso.
A Carta magna de 1988, no seu art. 129, inciso III atribuiu ao Ministério Público a
legitimidade para promover o inquérito civil, instrumento pré-processual investigatório que
juntamente à ação civil pública (Lei n.º 7.347/85) ampliaram o acesso à justiça, viabilizando a
proteção para quaisquer espécies de direito lesado, como a proteção ao patrimônio público e
social, ao meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Por sua vez, a Lei
Complementar n.º 75/93 conferiu ao Ministério Público do Trabalho papel importante no
combate ao trabalho análogo ao de escravo, enquanto órgão especializado para instaurar o
inquérito civil e promover a ação civil pública em caráter preventivo ou repressivo, à defesa
dos direitos sociais indisponíveis das relações de trabalho.
O Ministério Público enquanto responsável pela promoção da ação civil pública, possui
poderes instrutórios conferidos ao Procurador do Trabalho que ao presidi-lo poderá conduzir
diligencias investigatórias, requisitar exames, perícias e documentos de entidades públicas e
privadas, adentar quaisquer espaços desde que respeitados os direitos constitucionais de
inviolabilidade de domicílio, efetuar a condução coercitiva de testemunhas quando necessária,
requisitar o auxílio de servidores e os subsídios materiais necessários para conduzir suas
diligências, dentre outras competências.
Embora importante, o inquérito civil é dispensável para a propositura da ação civil
pública, bastando para tanto, a existência de elementos que constituam a convicção do MP
4 “Art. 627-A CLT. Poderá ser instaurado procedimento especial para a ação fiscal, objetivando a orientação sobre
o cumprimento das leis de proteção ao trabalho, bem como a prevenção e o saneamento de infrações à legislação
mediante Termo de Compromisso, na forma a ser disciplinada no Regulamento da Inspeção do Trabalho”.
5 “Art. 876 CLT - As decisões passadas em julgado ou das quais não tenha havido recurso com efeito suspensivo;
os acordos, quando não cumpridos; os termos de ajuste de conduta firmados perante o Ministério Público do
Trabalho e os termos de conciliação firmados perante as Comissões de Conciliação Prévia serão executadas pela
forma estabelecida neste Capítulo”.
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O projeto Ação Integrada foi criado em 2008 pela auditoria fiscal do trabalho do Mato
Grosso e consiste num programa de atuação integrada de órgãos públicos, instituições privadas
e membros da sociedade civil para a oferta de cursos de qualificação profissional e o
acolhimento das vítimas em programas de assistência social como o CREAS e o
encaminhamento a oportunidades de trabalho formalizado. As articulações entre o Ministério
do Trabalho e Emprego, a Procuradoria Regional do Trabalho e a Universidade Federal do Mato
Grosso deram origem a uma equipe multidisciplinar de acompanhamento das vítimas.
Através dos dados dos beneficiários do seguro-resgatado é possível a localização das
vítimas de trabalho análogo ao de escravo. Localizada a residência, será feita a primeira
abordagem através de entrevistas pelas quais a equipe tomará conhecimento do perfil do
trabalhador, seus relatos pessoais e suas aspirações de trabalho. A partir daí será possível o
estabelecimento de parcerias institucionais que melhor atendam as necessidades das vítimas.
Para além da inclusão profissional, também é possível a “formação cidadã” através de palestras
sobre direitos humanos e trabalhistas que o habilite a identificar violações de direitos.
O sucesso da inserção profissional dos resgatados é consequência direta da
individualização da assistência prestada. Segundo Costa (2020) as necessidades de qualificação
refletem as origens dos trabalhadores, por exemplo, aqueles que estão inseridos no meio rural
demandam por cursos relacionados a área agrícola, como cursos de operação de máquinas
agrícolas, quando será possível o estabelecimento de parcerias com o Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (Senar).
Os resultados positivos do projeto de reinserção do trabalhador que foi vítima de
trabalho análogo à escravidão fizeram da estratégia empreendida no estado do Mato Grosso um
modelo nacional de atuação interinstitucional integrada para a prevenção do recorrente
problema da reincidência das vítimas ao recrutamento fraudulento de trabalho, que as
submetem novamente a condições indignas de subsistência. Ocorre que o perfil de baixa
escolaridade e formação profissional das vítimas contribui para a manutenção da situação de
vulnerabilidade, e não raras as vezes mais de um membro da família está inserido no contexto
de exploração. Outra característica comum consiste no deslocamento constante para o interior
do estado em busca de oportunidades de emprego.
Costa (2020) em sua análise antropológica dos entraves à nacionalização do plano de
ação integrada, cita as opiniões de auditores ficais do trabalho ao lidarem diariamente com a
reincidência dos trabalhadores resgatados em situações análogas à escravidão: “É como
enxugar gelo!”. A afirmação diz respeito à inefetividade das medidas de auxílio como o seguro
desemprego, que sozinho não é capaz de promover a reinserção do indivíduo no mercado de
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trabalho formal. O seguro resgatado consiste numa modalidade especial de seguro desemprego,
no qual são concedidas três parcelas mensais no valor de um salário mínimo às vítimas
resgatadas nas ações fiscais de trabalho.
A ação civil coletiva foi introduzida no ordenamento jurídico pelo Código de Defesa do
Consumidor (Lei 8.078/1990) e constitui alternativa judicial adequada à proteção dos direitos
individuais homogêneos, que ao contrário dos direitos difusos, são divisíveis e passíveis de ser
atribuídos individual e proporcionalmente a cada um dos indivíduos interessados. As
indenizações a título de dano extrapatrimonial sofrido poderão ser pleiteadas em juízo,
individualmente pela vítima, bem como pelos legitimados expressos no art. 82 do CDC. Dentre
o rol de legitimados encontra-se o Ministério Público que no exercício de suas funções, poderá
propor a ação civil coletiva no interesse das vítimas e de seus sucessores por danos
individualmente sofridos, igualmente, a referida ação também será exercida pelo Ministério
Público do Trabalho perante a Justiça Especializada para a indenização pelos danos morais
individuais oriundo das relações de emprego e do trabalho em condições análogas à de escravo.
Por muito tempo perdurou a controvérsia doutrinária a respeito do cabimento da ação
civil pública também para a proteção dos direitos individuais homogêneos. De fato, a
Constituição Federal atribuiu à ação civil pública somente a proteção dos interesses difusos e
coletivos, enquanto que a defesa dos interesses individuais tratados circunstancialmente de
forma coletiva através da ação coletiva foi introduzida pelo CDC, com o objetivo evitar a
proliferação de demandas individuais e decisões contraditórias. No entanto, após a promulgação
da LC n.º 75/1993 não há mais óbice à possibilidade de o MP promover a ação civil pública
para a tutela de qualquer interesse individual indisponível e homogêneo.
2.9.1 - As controvérsias que envolvem a destinação das indenizações por dano moral coletivo
A destinação dos valores decorrentes de indenização por dano moral coletivo em ação
civil pública trabalhista ou provenientes de termos de ajustamento de conduta é fruto de
controvérsias. O art. 13 da Lei n.º 7.347/85 prevê a reversão do dinheiro proveniente das
condenações pecuniárias a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos
Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da
comunidade. Como resposta à lei que regulamenta a ação civil pública, a Medida Provisória
913/1995 criou o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos-CFDD,
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cuja finalidade dos recursos será a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por
infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos, conforme expresso no art.
1º da referida norma.
A reparação consistirá na promoção de eventos educativos, científicos e na edição de
material informativo especificamente relacionados com a natureza da infração ou do dano
causado, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela
execução das políticas. No entanto, essa centralização de recursos provenientes de condenações
aos direitos difusos não é plenamente atendida no contexto juslaboral pelo fato de ainda não
existir um fundo específico que conte com a participação do ministério Público do Trabalho,
como exigido pela Lei n.º 7.347/85.
Embora as causas trabalhistas sejam responsáveis por grande aporte de recursos
provenientes das multas previstas nos artigos 11 e 13 da Lei de Ação Civil Pública, o Fundo de
Amparo do Trabalhador (FAT) também não seria contemplado com esses recursos, se não fosse
a previsão jurisprudencial diante da omissão normativa. Mas existem outros problemas
decorrentes de os objetivos do FAT não guardar correspondência adequada com a reparação
dos danos causados aos trabalhadores, nesse sentido:
benfeitorias sociais como a construção de escolas, postos de saúde e áreas de lazer. Nesse caso,
os montantes serão revertidos à coletividade apenas quando o autor demandar pela tutela
diferenciada, ou seja, realizado um consenso entre o MPT e o Magistrado, os valores são
destinados à proteção dos interesses dos trabalhadores, como forma de assegurar o resultado
prático do processo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim
de retê-lo no local de trabalho;
De forma sucinta, o que propõem é que sejam considerados casos de trabalho análogo
ao de escravo apenas as situações comprovadas de manutenção de trabalhadores em
cárcere privado. Outros aspectos que hoje são considerados para a caracterização do
crime, como a servidão por dívidas e as jornadas exaustivas de trabalho, por exemplo,
ficariam fora dessa conceituação. Alguns parlamentares defendem que existe um
exagero na atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho e no ativismo de organizações
da sociedade civil que utilizariam a “bandeira” da luta contra o trabalho escravo para
denegrir a imagem do agronegócio e ameaçar o direito à propriedade privada
(BRANDÃO; ROCHA, 2013, p. 202).
No dia 22 de fevereiro de 2022 foi feita uma denúncia à Polícia Rodoviária Federal de
Caxias do Sul, por três trabalhadores que conseguiram fugir de alojamento onde haviam sofrido
agressões físicas, espancamento e até mesmo eletrochoques. De igual forma, a polícia de Porto
Alegre também foi contatada por outros três trabalhadores que alegavam terem passado por
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igual situação. Após averiguações da Polícia Rodoviária Federal, foi possível a organização de
uma ação fiscal composta por Auditores Fiscais do Trabalho, juntamente com o Ministério
Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Federal (PF), iniciada às 18 horas do dia 22 de abril. No
local foram encontrados 207 trabalhadores mantidos em alojamento pertencente à empresa de
mão de obra terceirizada - Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão da Saúde Ltda -
onde eram submetidos a jornadas de trabalho extenuantes sob vigilância armada e tortura. O
alojamento não comportava tamanha quantidade de trabalhadores, e segundo relatos de várias
das vítimas, por vezes, eram fornecidas comidas estragadas nas refeições. Outra situação
perturbadora registrada foi o relato de tortura com eletrochoques e descontos de até um salário
mínimo vigente por dia não trabalhado, quando do acometimento de doenças.
A maior parte dos trabalhadores eram originários do estado da Bahia e tiveram de
custear o próprio transporte até o município de Bento Gonçalves/RS, onde trabalhavam na
colheita e no descarregamento das uvas. As vítimas também adquiriam os próprios
equipamentos de proteção individuais (EPI’s) e eram compelidas a efetuar compras de produtos
de necessidades básicas em mercadinho com preços superfaturados, sendo levados ao
endividamento antes mesmo de receber qualquer pagamento. A empresa terceirizada era
contratada das vinícolas Salton, Garibaldi e Aurora e recebia cerca de R$ 6.500,00 por
trabalhador, sendo que repassaria aos empregados o valor correspondente ao salário acordado
apenas ao final da safra, quando executado todo o serviço.
As vítimas foram resgatadas e instaladas temporariamente em alojamento cedido pela
prefeitura do município de Bento Gonçalves, onde receberam alimentação adequada, roupas
limpas e atendimento médico clínico e psicológico, enquanto era articulado o retorno para suas
cidades de origem. O Ministério do Trabalho juntamente com o Ministério Público do Trabalho
foram responsáveis pela articulação com a empresa Fênix para o depósito dos vencimentos e
custeio das despesas com a viagem, além da regularização dos documentos pessoais dos
trabalhadores, necessários ao recebimento do seguro-desemprego.
Assim como as verbas rescisórias, as obrigações com hospedagem e atendimento pós-
resgate das vítimas é responsabilidade do empregador direto, no entanto, Pedro Augusto
Oliveira de Santana foi preso em flagrante durante as operações. O administrador da empresa
Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão da Saúde Ltda atua há mais de dez anos
arregimentando trabalhadores safristas, que inicialmente eram levados para trabalhar nos
abatedouros de frango do Rio Grande do Sul, depois passou a fornecer mão de obra para o
segmento do vinho na serra gaúcha. Santana já era reclamado em ação trabalhista envolvendo
o trabalho análogo ao de escravo referente à outra empresa de sua propriedade, em tal processo,
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o empregado alegou ter sido submetido a jornadas de trabalho extenuantes, entre 12 e 16 horas
diárias.
O Termo de Ajuste de Conduta tem natureza de negócio jurídico com eficácia de título
executivo extrajudicial e consiste no recurso utilizado no Direito Coletivo do Trabalho para
que o empregador direto e as beneficiárias da cadeia produtiva assumam as obrigações com o
pagamento de multa, bem como as indenizações individuais e coletivas. As vinícolas envolvidas
no caso de Bento Gonçalves se comprometeram em pagar indenizações a título de danos morais
individuais no valor de R$ 2.000.000,00, valor que será repartido entre as vítimas que foram
submetidas ao trabalho análogo ao de escravo e R$ 5.000.000,00 a título de danos morais
coletivos revertidos a fundo indicado pelo Ministério Público do Trabalho para a recomposição
dos impactos perpetrados aos direitos difusos.
As cláusulas previstas no TAC abrangem todos os empreendimentos atuais e futuros
das compromissárias e preveem a observância de obrigações de não fazer como: a abstenção de
recrutar trabalhadores mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia, a fim de submete-los à
servidão ou utilizar-se de serviços de empresa interposta para a mesma finalidade; a abstenção
de manter trabalhadores em condições contrárias às disposições de proteção ao trabalho e não
assegurar as condições de retorno ao seu lugar de origem. As cláusulas compromissárias que
tem por objeto obrigações positivas requerem a disponibilização de alojamentos em condições
adequadas de utilização; o fornecimento de alimentação farta e sadia e água potável; ou a
contratação de empresas com capacidade técnica para a execução do serviço contratado, que
garanta segurança, higiene e salubridade.
As empresas controladoras também se comprometeram com a fiscalização das empresas
contratadas para a prestação de serviços que ative em seu proveito e as diligencias a serem
tomadas no momento da contratação, a fim de garantir o cumprimento das normas trabalhistas
durante todo o contrato de trabalho. O dever de fiscalização também se estende para com os
produtores rurais de uva com quem mantenham relações comerciais, através de visitas de
averiguação das quais será feito relatório de qualquer irregularidade trabalhista encontrada.
Também serão realizados eventos que abordem temas pertinentes aos direitos humanos e
direitos trabalhistas para promover a conscientização de seus parceiros comerciais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 15 março. 2023.
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Presidência da República, 1940. Disponível em:
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 355.392/RJ. Terceira Turma. Rel.
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PRADO JR. Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 43ª ed.,
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https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tde/1483. Acesso em: 11 abr. 2023.