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2017 1

Essencial
SETE - feminino de luas e marés

SETE
feminino de luas e marés

Organização: Deolinda Nunes e Wanda Monteiro


Produção Gráfica: Carloz Torres (Editora Essencial)
Capa: Aline Monteiro Teixeira
Revisão: Samantha de Sousa

N972s

Sete - feminino de luas e marés


Coletânea Poética
Nunes, Deolinda e Monteiro, Wanda Orgs.
Ed. Essencial.2017 / São Paulo / 254 págs
Isbn: 978-85-68672-27-3

1. Literatura Brasileira 2.Título

CDD B869.1

Essa obra não poderá ser comercializada

Copyright © 2017 Deolinda Nunes e Wanda Monteiro

Direitos da edição impressa adquiridos pela


EDITORA ESSENCIAL CNPJ: 14.001.349/0001−52
Fone: (11) 98763.5313 / (11) 3459.5255
2 email: editoraessencialsp@gmail.com
SETE - feminino de luas e marés

“Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de


fora, e pensei o quanto pior, talvez,
ser trancado no lado de dentro”

Virginia Woolf

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SETE - feminino de luas e marés

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SETE - feminino de luas e marés

Sumário
Adriane Garcia 13
Alice Ruiz 21
Aline de Mello Brandão 29
Alzira Rufino 37
Ana Carolina Nunes 45
Ana Meireles 53
Arlene Lopes 61
Cláudia Gonçalves 69
Deolinda Nunes 77
Dôra Leal 85
Giselle Ribeiro 93
Inês Santos 101
Jandira Zanchi 109
Janete Manacá 117
Juliana Costa 125
Letícia Ferreira Eça 133
Líria Porto 141
Lívia Natália 149
Maria Helena Latini 157
Maria Lúcia López 165
Maria Sueli Fonseca Gonçalves 173
Norma de Souza Lopes 181
Penélope Martins 189
Roseana Murray 197
Samantha de Sousa 204
Socorro Lira 212
Telma Cunha 220
Vaneri de Oliveira 228
Vivian Schlesinger 236
Wanda Monteiro 245 5
SETE - feminino de luas e marés

APRESENTAÇÃO

Na ciranda mãos se encontram. A roda desliza entre


sons, passos, tempo.
SETE - feminino de luas e marés é uma ciranda
poética, uma colheita de vozes femininas que
estão cotidianamente desvelando os invisíveis e as
significâncias da vida/morte.
As autoras, 30 mulheres, aparecem na coletânea em
ordem alfabética. Por ser roda, SETE é movimento, o
final pode ser o começo e o meio apenas um jeito de
recomeçar.
SETE - feminino de luas e marés não será
comercializado. Faz parte de um projeto que divulgará
a obra em espaços e movimentos culturais se somando a
outras vozes, leituras, olhares.

Facebook: https://www.facebook.com/Sete-Feminino-
de-Luas-e-Maes-160774487777484/

E-mail: setefemininodeluasemares@gmail.com

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SETE - feminino de luas e marés

PREFÁCIO

- Imagino...
- Não, não pode imaginar, porque não é mulher.
(Madame Bovary)

Sete-feminino de luas e marés

O silêncio inscrito placenta, voz e vida. Nas páginas


semoventes deste livro, luas migrantes dentro do
sangue, marés tecendo a pedra, arado o mundo na terra
da palavra, escavada a língua - abismo, sepulcro e útero,
olho d’água - neste SETE, pulsa a poesia.
A palavra, não somente como pólen, a palavra
como ato político, o poema. Familiar e estranho,
transformá-lo, transbordar o mundo, a palavra escrita
corpo, dor, lágrima, riscos, movências, amor. O corpo
escrito memória, superfície de silêncios, estilhaços,
a poesia lançada pensamento, subversão. A palavra
precária, nômade, novas terras inventadas, resistências,
a cartografia de um feminino que dissolve fronteiras,
a casa, a prisão, a lei ancestral, o doméstico espaço dos
muros, o interdito da palavra, o que o poema disse, as
impossibilidades. Erguida a taça, um brinde à lua no céu
da boca. A palavra voa, liberta. Por um instante, meus
olhos conseguem, enfim, imaginar. Ela crescente, acesa
de vida, a poesia deste livro.

Lisboa, sol de setembro, 2016.


Daniel da Rocha Leite
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SETE - feminino de luas e marés

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SETE - feminino de luas e marés

Um salto para outra margem

“A língua deve atingir desvios femininos, animais,


moleculares, e todo o desvio é um devir mortal. Não há
linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o
conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para
revelar a vida nas coisas.”
(Deleuze - A literatura e a vida)

As luas e suas marés é o que rege o destino da palavra


poética das autoras que assinam este livro. Mulheres que
no seu fazer poético, promovem a conciliação do poema
e do ato na comunhão entre a palavra concebida com a
palavra viva. Livres porque donas de si e de seu verbo,
rebelam-se contra a opressão e os domínios conceituais
pré-concebidos sob a égide da primazia do masculino.
Descobrem-se acima das codificações e das classificações
e adotam para si universalidade do humano sem abdicar
da singularidade sobre-humana de gestar a poesia e
parir o poema encarnado em imagens, vivo na palavra.
No solitário ato da escrita e diante da ausência de
imagens de mundo que veem e sentem, confrontam-se
consigo mesmas para criar essas imagens, configurando-
as em poemas. O poema é um lugar na iminência da
descoberta. Um lugar onde o leitor encontrará não o
significado da imagem, mas sim a significância de sua
busca.
No corpo dessa escritura, decerto, o leitor buscará um
ninho, um ponto de inserção ou intercessão, um ventre-
centro-fixo vibrante onde signos nascem e renascem
para além desse ventre, reverberando uma linguagem
erguida.
As imagens, frame a frame, uma película, um sempre-
feixe-de-sentidos, colados à luz da percepção das autoras,
faz-se poesia. Uma poesia que se rebela à explicação, mas
que se entrega ao destino de um novo feixe de sentidos 9
SETE - feminino de luas e marés

do leitor. A leitura, uma vereda e a oferta da aventura na


recriação de novas imagens.
A escrita, sua dança e seu ritmo, cujas concepções
se deram no tempo mítico e na comunhão mística
e mágica do ato poético de cada autora nas terras
férteis de seu imaginário. Um livro de poetas e, não
por acaso, mulheres. Elas, buscando na subjetividade
perdida, um chão de possibilidades a nos salvar para
longe da objetividade que a realidade nos impõe.
Elas, comovendo-se com o mundo, enxergando nos
invisíveis do cotidiano o íntimo absurdo do humano e
a impermanência do tudo que se move e vive para além
do humano. Elas, antevendo caminhos e desenhando
paisagens, abismos e riscos na senda das palavras. Elas
que dão luz às palavras para que nos salvem da lucidez e
de seu confinamento e nos tragam a agudeza e o efeito
loucura – o gozo de sua liberdade.
Num parto ao verbo na forma do sagrado. Elas,
consagrando a fertilidade do verbo, no ato da escrita, no
seu dizer poético.
A poesia que não comporta explicação porquanto
concebida em ato e parto entregando-se à compreensão
em si mesma e por si mesma. A poética, líquida e
orgânica, dessas escritoras, em comunhão nessa praia
feita de palavras em poesia, pretende levar o leitor ao
espanto de morrer e desmorrer no salto-mortal para
dentro de si e num sopro renascer para fora de si – numa
outra margem.
Este livro de poemas, um convite ao leitor para
experimentar o salto, na vertigem de seguir e prosseguir
no rito de passagem para essa outra margem, onde,
liquefeito, correrá nas águas do sagrado feminino regido
por luas e marés.

Inverno de 2016, Niterói, Rio de Janeiro

10 Wanda Monteiro
SETE - feminino de luas e marés

SETE
FEMININO DE
LUAS E MARÉS

[ 30 Mulheres ]

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SETE - feminino de luas e marés

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SETE - feminino de luas e marés

Foto: Carlos Magno

Adriane Garcia, escritora, de Belo Horizonte-MG.


Têm publicados três livros: Fábulas para adulto perder
o sono, Prêmio Paraná de Literatura 2013; O nome do
mundo, editora Armazém da Cultura, 2014; Só, com peixes,
editora Confraria do Vento, 2015.

Publicou nas revistas Germina, Mallarmargens,


Diversos Afins, Incomunidade, Vox, Vida Secreta, Cult.
Participa no site Escritoras Suicidas.

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SETE - feminino de luas e marés

Tremer
A série

Uma semente que nunca


Arrebentará a casca
Bomba inócua
Mina terrestre inoperante
Guardando o aborto das flores
Frio é feito pra se encolher.

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SETE - feminino de luas e marés

II

Nos primeiros dias não


Dormi
Depois passei a
Hibernar
(Encolhimentos de cobertor)
Demônios fingindo que eram
Você
Se aproveitavam dos espaços nos sonhos.

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SETE - feminino de luas e marés

III

Subo até esta última folha


Verde broto a mais tenra a mais perto
Do Sol
Subo ao meu gigante esperado
De um sonho antigo
Subo
Esta queda será enorme
Subo
Será a maior queda de todas
Subo por algum imperativo
Que sempre quis estraçalhar-me.

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SETE - feminino de luas e marés

IV

Agora de sentir frio eu quero


Aprender as variações do branco
Acostumar-me com cem nomes para gelo
A ponto de não estranhar
Minha própria temperatura
Quando eu novamente
Morrer.

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SETE - feminino de luas e marés

De imaginar sua ausência


A noite tornou-se polar
O frio das lâminas que cortam
Os cordões umbilicais.

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SETE - feminino de luas e marés

VI

Depois que você morreu


Eu decepei o jardim
Fechei as cortinas
E vim morrer de frio
Se havia vida lá fora
Não vi.

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SETE - feminino de luas e marés

VII

Esqueci tudo o que eu sabia


E passei a apregoar as boas-novas
Achava-me discípula da
Verdade
Quando na verdade
Não passava de uma
Discípula da esperança
Na minha terra se dizia que
Eu cantara de galo:
O cano frio do metal a
Dois centímetros da nuca
Eu nem senti.

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SETE - feminino de luas e marés

Foto: Vilma Slomp

Alice Ruiz é poeta e tradutora. Começou a escrever


na adolescência, tendo várias publicações poéticas em
jornais e revistas nessa fase. Seu primeiro livro surgiu em
1980, vieram muitos outros depois. Compõe letras desde
os 26 anos, tem diversas canções gravadas por parceiros
e intérpretes da música popular brasileira.
Antes de publicar seu primeiro livro já havia escrito
textos feministas no início dos anos 1970. Recebeu o
prêmio Jabuti de poesia em 1989 e outro em 2009. Tem
poemas traduzidos e publicados em antologias nos
EUA, Bélgica, México, Argentina, Espanha e Irlanda. É
haikaista. Curitibana, vive em São Paulo. É avó, mas
não abre mão da alma de menina.
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SETE - feminino de luas e marés

Lembra

Lembra o tempo
em que você sentia

e sentir
era a forma
mais sábia de saber

E você nem sabia?

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SETE - feminino de luas e marés

Saudação da saudade

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida.

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz.
Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento.

Aí, ainda assim


minha saudade
te saúda
e se despede
de mim. 23


SETE - feminino de luas e marés

É duro ter coração mole

Por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração.


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SETE - feminino de luas e marés

Se

Se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra
eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto
ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio
daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...   25
SETE - feminino de luas e marés

Noite e dia

Não me agradam
essas coisas que despertam
barulho, susto, água fria
tudo na minha cara
mais nenhum sonho por perto.

Não me agradam
essas coisas que adormecem
vazio, escuro, calmaria
tudo que lembra morte
quando nada mais dá certo.

Não me agradam
essas coisas sem poesia
uma noite só noite
um dia só dia.

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SETE - feminino de luas e marés

ainda me viro
e me vejo
pronta a te chamar
a te contar
que aprendi hoje
coisas que você soube

ainda te vejo
em cada bicho
em cada pensamento
me surpreendo olhando
com teus olhos de pesquisa
e o que vejo
vira beleza

ainda te sinto
em tudo que permanece
como se tua pressa
de vida que se extingue
ficasse um pouco em tudo
ainda

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SETE - feminino de luas e marés

Por uma só fresta


entra toda vida
que o sol empresta

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SETE - feminino de luas e marés

Foto: Luciana Brandão Carreira

Aline de Mello Brandão nasceu em Belém do


Pará, é médica, escritora, poeta, professora universitária.
Cantiga Geral de Amor, Viola D’Água, A Saga de Sumano:
uma história amazônica, As Mãos do Tempo, Abaúna e outros
poemas são obras publicadas pela autora. Também é
Membro Titular da Academia Brasileira de Neurologia
e Professora Adjunto IV de Neurologia da UFPA,
atualmente aposentada.

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SETE - feminino de luas e marés

Contando as horas

Contando as horas, me esqueço


que o tempo quer passar.
Nas minhas contas, não meço
em qual segundo contado
meu tempo irá repousar.
E vou, distraidamente,
reescrevendo os minutos,
poetizando a memória,
ponteiros absolutos
vão pontilhando essa história
em que das horas me esqueço
e no papel estremeço
o fluxo temporário.
Vou nas letras viajando,
navegando sem horário
nas horas que vou te dando
num tempo sem calendário.

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SETE - feminino de luas e marés

Translúcida

Atravessada de luz,
a emoção desafia
revive em tom que conduz
a alma nua do dia.

Sempre chama, enquanto vida


em amor, transparecida
no (en)canto e melodia
do sentimento que reza
no idioma da poesia.

Ouso sonhares diversos


nas linhas onde entrevejo
sangue maduro dos versos,
assim (es)colho o que almejo
como quem (re)colhe a fruta,
sumo escorrendo, mordida
boca de sábia inocência.

Entreteço a transparência
na fina fímbria que entoo
laço a quentura do abraço
ensaio o instante do voo.
Filha da luz, a clareza
(a que jamais envelhece)
nascida em mim é certeza
e anima o que entretece.

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SETE - feminino de luas e marés

Tesouros

Tesouros - não julgo tê-los


tenho talvez um punhado
do vivido e do sonhado
e vivo para aquecê-los.

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SETE - feminino de luas e marés

Um passarinho que canta

Na árvore plantada do verão


pousa leve a ave junto ao fruto
canta muito linda e alegremente
faz que a gente esqueça a dor do mundo
bem te via vir ao meu encontro
afagar-me a face tão cansada
cantar a modinha mais serena
entoando em canto: bem te quero.

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SETE - feminino de luas e marés

Saltimbancos

Os saltimbancos na praça
faziam grande algazarra
cuspindo fogo e fumaça.
A meninada sorria
inaugurando a fanfarra,
distribuindo alegria.

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SETE - feminino de luas e marés

Sul e Norte

Há poesia do norte
há poesia sulista
e motes de toda sorte
na criação do artista

Há poeta repentista
e criação intimista,
vagarosa de compor.
Há versos feitos de amor

e também de alegria.
No sul do norte da dor,
na luz acesa do dia
há invento e cantoria

tudo sem tirar nem por!

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SETE - feminino de luas e marés

Poesia brasileira

Vive crescente
anuncia
propaga invade
inebria
renova alcança
irradia
tudo de novo
alumia
ela garante
o seu dia
relê escreve
sentencia
nasce renasce
alquimia
brilha rebrilha
utopia
dádiva dança
alforria
sopra enternece
assovia
é brasileira
poesia
é fina flor
cantoria

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SETE - feminino de luas e marés

Foto: Urivani Carvalho

Alzira Rufino começou a escrever poesia aos 9


anos de idade. Recebeu seu primeiro prêmio aos 13 anos.
Optou por atuar como profissional de saúde, no entanto,
nunca parou de escrever. Foi a primeira colocada no
Concurso de Poesia do Hospital Santa Casa de Santos.
Integrante da Casa do Poeta Vicentino, recebeu Diploma
de Mérito. Segunda colocada no Concurso de Poesias,
promovido pelo Miramar Praia Shopping na cidade de
Santos, SP. Obra individual - Livros publicados: Mulher
Negra Tem História (1987), Eu Mulher Negra Resisto (1988),
Muriquinho Pininho (1989), O poder muda de mãos, não de
cor (2000), Qual o quê (2004), Editora da Revista Eparrei
e outras publicações de 1985 a 2016 produzidas pela
Casa de Cultura da Mulher Negra, da qual é fundadora
e atual presidenta.
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SETE - feminino de luas e marés

Reflexos

Apropriar-se do meu DNA


Acordo, durmo.
Escovo os dentes.
Apropriar-se dos manuscritos de ontem.
Fazer releituras
Apropriando- me da realidade dos rebanhos
Leituras em determinados momentos
com a ferramenta possível.
Horizontalizo.
Me refaço no meu espelho diário.
Aproprio-me dos fenômenos que
mudam o destino , com olhos e face de produção caseira.
Aproprio-me da minha identidade,
metas que aguardam mudanças não só para diversão.
Aproprio-me da humanidade que me surpreende.
Aproprio-me do calor do útero finalizando a produção.
Aproprio-me do fazer e refazer as malas
Aproprio-me da liberdade de me dar voz de prisão
e ordem de recolher para o meu cérebro e sentidos.
Apropriar-se do aceitar esse corpo carrasco
que no suor do meu corpo
transpira pensamentos.

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SETE - feminino de luas e marés

Consciente

Recito porque não declamo


Expiro importado, vencido.
Conteúdo arcaico da palavra deteriorada.
Tenho choque alérgico.
Sou medicada com gotas genéricas em palavras.
Sem rótulo.
Transfusão, urgente!
A máquina ligada registra meu cérebro
Vomito o asco das palavras
Reclamo, mas não recito
Fecha-se o quadro.
Apago!

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SETE - feminino de luas e marés

Mulheres

Mulheres
Mundo
Propriedade
Proprietários
Poder
Ferros marcados
Véus, burcas.
Negras mulheres!
Nos rios
Nos ventos
Nos mares
O fogo da liberdade
Livres
Entre os adés e os ojás.

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SETE - feminino de luas e marés

Diálogo

Nos tragam água


Não a esse ácido indiferente
Pensamos no pó de nossos Deuses africanos
Estamos preparadas para os punhais
que embalam em algodão
Para não sentirmos o corte
Impositivo
Autoritário
Sentimos a dor
Não do corte, mas do movimento dele.
Sutil, sorridente.

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SETE - feminino de luas e marés

Na luta

Arrumo o coque,
calço a chinela.
Xale nas costas,
saia rodada,
navalha no seio.
E vou à luta!

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SETE - feminino de luas e marés

Pai evadido

Lavam-se os botecos,
a mulher grávida amarela
transita.
Uma criança pede doce
Observo uma frase tatuada na sua barriga:
- Faça do amor o seu maior presente.

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SETE - feminino de luas e marés

Cuida de mim, anjo azul

A vida
O recomeço
Querer ser como um passarinho?
Cortam-te as asas, não te deixam voar.
Medo que machuca
Coração em divisão.
Ter por querer
Consciência em gênero
Sou negra!
Longe...
Esquecer o egoísmo, a exclusão.
No cérebro o racismo dizendo
Que volta depois, que volta depois..
Mulher Negra,
sempre no refazer a vida.
Toma juízo!
Toma cuidado!
Querem os seus sonhos inteiros,
Essa história de inclusão?
-Sabor de vitrine.
No grito:
-Cuida de mim, anjo azul!!
Anjo azul...
Dá uma porrada no outro dia,
Não incineres as minhas lembranças,
nem a minha consciência ancestral.

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SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo Pessoal

Ana Carolina Nunes, geminiana, nascida em São


Paulo. Começou a ler e escrever aos seis anos. Cedo
ainda, percebeu o quanto as palavras crescem nas letras
e se expandem pra além delas. Sente a poesia como uma
essência sem fronteiras, sem hora certa. Atualmente,
mora em Minas Gerais, cursa Geografia na Universidade
Federal de Viçosa.  

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SETE - feminino de luas e marés

Peregrinação interna

dentro do raque há uma língua solta


a deliciar-se com o vento das estradas
há pulsos rentes às araucárias anoitecidas
e os braços determinam a direção dos ventos
basta teu olhar vítreo
pra toda Terra modificar seu magnetismo
todos os elementos pendem da mesma teia
está tudo conectado

a liberdade recém saída do forno queima


a ponta dos dedos até criar calos
e apontar melhor manejo

toda boca anseia pelo desenho dos remos


o que deságua, o que une, o que espalha
toda alma se vale pelo dinamismo fluvial.

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SETE - feminino de luas e marés

II

Linhas

o som da chuva persiste na manhã gélida


enquanto a água explode no vidro
em janelas, carros, almas
o vento se encarrega
de lembranças
que sequer podem ser lembradas
você pode sentir o corpo imóvel ao pé da escada
é uma velha crônica que prega
- certas angústias são bombeadas pela vida o tempo
inteiro.

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SETE - feminino de luas e marés

III

eu dividiria com você meu único cigarro de palha


o último copo d’água
a cama, o cobertor, o travesseiro
meu refúgio inteiro
eu dividiria minha vida
e assim ela se multiplicaria
como alguns meses de intercâmbio que fizeste
ao meu mundo
eu dividiria com você
a muda de alecrim
a poesia brotando na calçada
a chuva fina que faz reacender
uma esperança urbana e necessária
meus dramas, minhas crônicas
eu dividiria meus espasmos e o que quiser
da minha alma vagante
eu dividiria, divido e dividirei
as dívidas filosóficas e saldos emocionais
porque tudo que alegremente pousa na minha janela
tem formato da sua letra inicial
e sorri em gratidão
pelo encontro de dois fluxos de águas
lacrimais, espirituais e cotidianas
eu divido contigo o que tenho
pois transbordo artefatos simbólicos
de chama viva ao teu caminho
de pedras e rosas.
48 Obrigada
SETE - feminino de luas e marés

 IV

Reza a ela

Querida Lilith
orei ontem à noite por
afinco
força
pensei tocar os dez dedos do mundo
sobre um piano mudo e a vida chovia
relampejava incessante
devaneei tanta realidade submersa,
querida Lilith,
os marcos históricos pré dispostos
a virem existir
no corpo da forte Luxemburgo
rosa que mora no mundo inteiro
iniciou-se algo sufocado pedindo por continuidade

Querida Lilith, ensine-nos a lutar


de dentro pra fora a revolução!
ensine-nos a tecer
nos ensine a atravessar o mar
a libertar Evas
a nos libertar
Querida Lilith, ensine-nos a expandir
a sermos nós
e não eles. 

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SETE - feminino de luas e marés

quantos rabiscos cabem na sua intuição?


minha quinta-feira está tão vazia e isso definitivamente
não diz a respeito dos meus compromissos
minha quinta-feira está tão vazia e isso definitivamente
não me dá tempo de pensar
na auto reconstituição
penso no truco do próximo domingo
e em eventos acadêmicos que participarei
penso na escuridão advinda das ideias de claridade
e na vontade incessante de dormir bem
pois tenho sonhado com você e rodoviárias
com você e aeroportos
com você, músicas e lojas
sonho com você no instante que te desconheço
minha quinta-feira está tão vazia e isso definitivamente
não me dá direito de uma nova contradição.

50
SETE - feminino de luas e marés

VI

na época em que você comprava tomates


na mercearia ao lado, eu
buscava por autoconhecimento nas janelas
de todos os carros
buscava o reflexo de cores inimagináveis no céu
e anotava com caneta esferográfica no pulso
o número de tons que coloriam seus olhos
e isso sempre mudava

na época em que você comprava tomates


na mercearia ao lado,nós
deslizávamos pela rua Teerã e confabulávamos
ideias conspiratórias
sobre donos de redes de televisão
e vida secreta dos mocinhos de filme de velho oeste

outubro tem se alongado por muito tempo


e se as senhoras que nos observam das janelas já não
usam
o mesmo vestido
isso certamente significa algo.

51
SETE - feminino de luas e marés

VII

ela não tem pressa de vir ao mundo


aliás
está dentro de mim há tanto tempo
ela brinca em minhas veias,morde meu estômago
a todos os balbucios do coração
de lá pra cá feito criança atrás de pipa
ela não pode ter pressa de vir ao mundo físico
pois sua existência luz antecede e transcende toda essa
concretude
ela e eu somos quase uma
mesmo dentro de mim, ela é minha criadora
meu ancestral, grande raiz
onipresente pois apesar de alojar-se em meu templo
habita também mil arestas de almas outras
ela é junção e anda bem viva
vindo ao mundo nove mil setecentas e trinta e três vezes
por hora
ela é derramada na construção de moradas
de armas, de plantação de rosas e morangos
ela se senta em comícios e corre no parque pela manhã
ela não tem pressa de vir ao mundo
fluidez
ela poesia sempre vem
pois é dela que a vida é constituída

52
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Adriana Meireles

Ana Meireles nasceu em Icoaraci, Distrito de Belém


do Pará. Cursou Psicologia pela Universidade Federal
do Pará- UFPA e Especialização em Psicologia Jurídica
pela Universidade da Amazônia-Unama. É servidora
pública e dedica seu tempo livre à escrita. Participou
em volumes de Antologia. Recebeu premiação em
concurso literário promovido pela Editora LiteraCidade
de Belém/Pa com o poema “De argamassa” publicado
na revista Exfluências (Brasil/Portugal). Recebeu
menção honrosa pela Academia Paraense de Letras com
o poema “Belém - Cidade Menina”. É autora dos livros
“Escritos ao Vento”, “Tempo Meu” pertencente ao Projeto
Sementes Líricas e “Entreversos”, que faz parte do Projeto
Tocaiunas publicado pela Editora Cromos. 53
SETE - feminino de luas e marés

Contra o tempo

Contra o tempo tive que correr.


Guardei as botas num lugar da casa
e deixei a enxada junto ao portão.
O fogo aceso na cozinha cozia
o grão de bico e o feijão.
Nas xícaras deixadas sobre a mesa
o café que esfriara.
O tempo não demorava a passar.
As roupas todas haviam sido lavadas
e o varal
era somente um fio de nylon vazio
tênue divisória de dois mundos
preenchido de nada e tudo.
A chuva chegou e caiu, e o chão do quintal
encharcou.
As plantas com as folhas molhadas ficaram
e pareciam sorrir como se quisessem chorar.
Dei-lhes a costa para ver no espelho de água
o meu rosto.
E logo um frio senti vir por detrás do pescoço
e minha pele inteira arrepiou-se.
O inverno se anunciava!
E, por entre meus ossos porosos
rangia a fenda de uma saudade
que dobrava os meus sonhos risonhos
em lençóis de pesar e piedade.
Como se fosse a chuva
que caía no quintal lá fora
e despencasse pra dentro do peito
molhasse de pranto as lembranças quentes
54 esfriando o meu coração.
SETE - feminino de luas e marés

A felicidade é da vida

A vida corrida em demasia


tira da sua substância a ternura , a alegria.
Buscar dela extrair forma insana de magia
é coisa de rebulir...
a cantiga, a fantasia.
Correm as horas e o encanto não se apressa
conta dos minutos a parte de faz de conta
e tudo mais do que se conta.
não se parte e nem tropeça.
Assim é a felicidade apartada da dor:
é ilusão de precisão
que incorre fazer sofrer
quem espera pra sempre lhe ter.

Não existe vida sem ausência de dor


nem mesmo se se tem a dádiva de um grande Amor
a dor quando envolve queima bem de fininho
e todos já experimentaram
não escapa nem o dedo mindinho.

Por isso, seja feliz com a dor que tem.


Se possível: sorria até sem nenhum vintém
ame sem nada esperar
qualquer expectativa faz o coração pesar
e contemple o céu como se estivesse a cismar
a felicidade é da vida: esta que a todos pariu.

55

SETE - feminino de luas e marés

Poema bem-escrito

Meu poema “bem escrito”


eu logo deletei.
mandei para o fundo do mar
para ao fundo aprofundar.

Em águas abissais,
poderia ele dialogar
com o segredo dos seres
entre conselhos animais.

A ouvir estranhos sussurros


com ouvidos intra-mundos
e a imaginação a fantasiar.

Só assim poderia renascer


como se estivesse a caminhar
no chão duro da dor.

56
SETE - feminino de luas e marés

A senha é sorrir

A senha é sorrir...
Pode ser um meio sorriso
um sorriso disfarçado,
discrepante, de soslaio.
Um sorriso de boca
Murchada!
Ressecada!
Mal beijada!
Um sorriso divino,
emoldurado!
Emendado à parede da emoção.
Sorriso desenhado, de contorno
dissimulado!
Sorriso apaixonado
pintado de batom,
e escancarado!
Sorriso de deboche
esconderijo da língua
felina.
Sorriso em meio à dor
sorriso de amor traidor.
Sorriso pueril
de pureza!
Sorriso que esconde a palavra,
que é sorriso mal disfarçado
tece em farsa de alegria
a face indômita da tristeza.  
57
SETE - feminino de luas e marés

Com alma de artista

Não sou capciosa


Não sou capitalista
Mas sou indecorosa
Com alma de artista.
Tenho fama de cheirar
Lama...
E sorrir meio malabarista
Não tenho culpa se nenhuma cor
Adere ao meu pudor
Sou sem nenhum pudor!
Rasgo a roupa do corpo
Com a palavra
E minha cara dou a bofetada
Tenho alma de artista, sim!
Mas nenhum papel me
Ultrapassa
Danço, canto, escrevo e finjo
E o meu drama é ser
Distinto
Sozinho me pinto
E encarno as máscaras
Vivo no vão de uma piada
Na intrepidez de uma
Palavra
E a vida é quem me diz
O que a mim, comigo
extravasa.
Não sou uma cópia pirata
Mas é o capitalismo
O vilão que me maltrata.
58
SETE - feminino de luas e marés

Em cena

No plano alto do teu salto


desequilibrei-me do palco.
Mudei a cena do ato
pra não cair no cadafalso.
Refiz de novo o espetáculo.
Convergi a vida de fora de mim,
para uma noite de carmim.
Vesti de escarlate o meu traço
para esconder o embaraço.
O meu corpo - cobri de pedaços.
Estava em cena um outro ato.
Que a música embalou como um contrato.
Abri as portas de vão em vão.
E escolhi a melhor condição:
Fotografar sem nada pensar.
E sorrir, como se fosse engolfar.
Tudo levado a termo e efeito.
Burilamento quase perfeito.
Luzes, cores, refletores.
Fugiu de mim todos os pudores.
Ficou em mim todos os amores.

59
SETE - feminino de luas e marés

Ponto infinito

Quando me guardo, sou concha fechada


Quando me solto, sou porta aberta.
Algumas vezes sou vento preso no tempo de uso.
Fechadura arcaica de um único furo.
E em todas as condições:
Fechada feito concha
Aberta como porta
Sou plena em meu porte:
No verão aqueço-me e me abro pra sorte
No inverno enrijeço-me e me espanto de morte
Na primavera tenho cheiro de perfumes florais
E no outono sou folhas que caem
e me deixam completamente nua.
E só o que espero: sisuda, calada e confusa
é que venha o sol, o vento, a água da chuva
e eu pise o chão da terra sem medo de erosão.
Sou um ponto infinito,
no curso das quatro estações.

60
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Luciane Pires Ferreira

Arlene Lopes é baiana, de Jacobina-Ba. Por 26 anos,


morou no Sul do Brasil. Desde 2003, em Porto Alegre
- RS. Em setembro 2016, voltou para a Bahia e reside
na Cidade de Rio de Contas, Chapada Diamantina. De-
signer de interiores por formação, optou pela caminha-
da na produção de conteúdos culturais. Primeiramente
na escrita poética, com textos em teatro e publicações
de poemas em iniciativas coletivas de escritores brasile-
iros, conteúdos em blogs e revistas. A partir da parceria
com músico e compositor gaúcho, Santiago Neto, pas-
sou a atuar como letrista em suas novas canções, refa-
zendo o repertório do artista. É compositora filiada a
UBC (União Brasileira de Compositores) e produtora
executiva de projetos culturais.
61
SETE - feminino de luas e marés

Cimento Fresco

Deslizou suavemente
feito folha de outono

coração em silêncio
pálpebras cerradas
sono sem sonhos
aterrissou em meus braços

a chaleira ainda estava no fogo


quando a morte entrou na cozinha

no dia seguinte
no cimento ainda fresco
escrevi o nome da minha mãe

62
SETE - feminino de luas e marés

Dos equívocos

Um vivente
que possuía muitas coisas
e carregava nos ombros
o peso dos equívocos
debruçou-se no corredor da agonia
remoeu palavras ruínas
e mágoas circulares
carcomeram seu coração
andou sobre pedregulhos pontiagudos
feriu os calcanhares embriagados de posses

certa vez
encontrou uma mulher-poema
que na dor do caminho
o presenteou
com sorrisos de larga profundidade
e versos em forma de beijos
duas vezes ao dia
então ele indagou:
como sorri se não tem posses?
ela ofereceu-lhe o terceiro sorriso do dia
- tenho o existir.

63
SETE - feminino de luas e marés

Papai e mamãe

Papai era comerciante de todo tipo de


coisa
por isso cuidava bem da aparência
mamãe costurava e também
trabalhava na cooperativa de sisal
mas sempre arrumava tempo para
pintar as unhas

Mamãe pariu sete filhos


os sobreviventes papai levou embora
fui a primeira
papai desatento e aquariano
não percebeu minhas lágrimas nem o
choro de mamãe

Papai comprou um carro novo


mamãe adotou um menino e passou a
fazer somente o que queria

Num dia de julho, papai sangrou muito,


durou pouco
não nos viu crescer

mamãe viu o menino se tornar adulto


mas não esperou o café ficar pronto
repousou nos meus braços o seu
último suspiro
Eu, com o tormento de quem sobrevive
me senti a morte em pessoa
64
SETE - feminino de luas e marés

Cinzas

Ando vestida de silêncio


penumbra
a fadiga roendo minhas tripas
secando minha juventude
meu sorriso verde musgo
sem força, sem vida, sem sorte
túmulo em desuso
ando vestida de morte
a alma em chagas
soterrada pelas cinzas
inexistência
numa quarta-feira arruinada

65
SETE - feminino de luas e marés

Inabitada

Nena aprendeu a engolir o choro


antes mesmo de aprender a falar
não fez poesia
escreveu emudecimentos
com um olhar de cacto
cativante e deserto
viu seus escombros
refletidos na água parada
não quis mergulhar como Aglaya
Nena com pouca precipitação pluviométrica
não era suicida
era inabitada

66
SETE - feminino de luas e marés

Extrações

arrancaram-lhe da mãe
arrancaram-lhe a mãe
arrancaram-lhe as unhas dos dedos do pés
que topavam com as pedras sem nenhum obstáculo
arrancaram-lhe os dentes de leite
e as amígdalas
Quando o pai foi arrancado, também arrancaram-lhe
a irmã
os plantaram numa cova dupla , os cobriram com
terra infértil

os regaram com água salobra


nunca brotaram
arrancaram-lhe a cama, as roupas
a casa, as lágrimas
Arrancaram-lhe um filho, o útero, a avó,
o peito, os sisos e o juízo
escreveu para repelir seu desejo de morte
matou todas as recordações

67
SETE - feminino de luas e marés

Ínfimo

O primeiro homem que Nina amou


não esperou o amor desgastar
não envelheceu
perfurou
não disse adeus
caiu no buraco
a plateia necrófaga
aplaudiu
Nina doeu
não coube no buraco
onde estava a irmã
O último amor de Nina
se exibia para a plateia
andando em cima do muro
com muletas adormecidas
Caco
tombou
a plateia vaiou
Nina acostumada com as coisas que quebram
ignorou deixou outra juntar o que sobrou de caco
Nina conheceu um grande bípede
de linguagem articulada
a plateia não vaiou nem aplaudiu
suas tantas mentiras
Nina tranquilamente o despiu
era ínfimo.

68  
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo Pessoal

Cláudia Gonçalves, Porto Alegre – RS. É poeta,


produtora e ativista cultural.
Coordenadora de Publicações do Proyecto Cultural
Sur/Brasil, Coordenadora do Projeto
“Poeta, mostra tua cara na escola”, Assessora de
Coordenação do Congresso Brasileiro de Poesia,
membro da Casa do Poeta Rio-Grandense e da Casa do
Poeta Camaquense. Ministra workshop de minilivros
em bienais, feiras, escolas, ONGs e centros culturais,
além de compor o movimento Poetas Pela Paz e Justiça
Social. Tem poemas publicados em vários sites jornais,
revistas, e-books, entre outros. Muitos de seus poemas
já foram traduzidos para o inglês, o italiano o espanhol
e o francês. Em sua trajetória poética, já participou de
mais de quarenta antologias, entre as quais: duas em
Portugal, duas em Moçambique, uma na Argentina,
duas no Chile e uma na Colômbia.
Em 2015 lançou o livro “cerne”.

Contato: cacaugoncalves@gmail.com
69
SETE - feminino de luas e marés

relato

não me atenho à seta


para encurtar em reta
gosto da curva
que
re
tarda
a chegada
[o que dilacera é a partida]
__ o branco do não dito
no silenciar da parte
ida

70
SETE - feminino de luas e marés

constatação

às vezes para romper


o eixo
do
elo
há que mergulhar
em abismos

[na vileza das vértebras]

musgos tramam
entre–juntas

71
SETE - feminino de luas e marés

opaco

empacotada na ausência
a intimidade do ninho
o que rói
_____
é vago
imagem desfocada
_____diluída
na tempestade
dos dias

72
SETE - feminino de luas e marés

inaudito

na janela de ontem
[impresso]
um riso
de
cor
ativo

ilustrando o verbo
nunca proferido

73
SETE - feminino de luas e marés

resposta

na juntura
das cartas que
não escrevi
um sequioso silêncio
re
vira
a dor_mecidas
palavras

74
SETE - feminino de luas e marés

depurado

foi ali num canto do horto


cerzir um verso
com a sobra
do sal
que gotejava
da face

75
SETE - feminino de luas e marés

toada de ontem

já é tarde e ainda cisma


que não há efêmero
__ no calor do abraço
fecha as cortinas
e monta um mosaico
à luz de lamparinas

já é tarde e ainda cisma


com a canção de ontem
__ o cinema mudo
e o que adormeceu no linho

já é tarde e ainda cisma


em tomar um vinho
e não deixar ao vento
o que é do tempo
__ feito palavras
no pergaminho

76
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Deolinda Nunes nasceu num dia de garoa, inverno


paulistano. Professora de Educação Infantil apaixonada
pelo universo infantil e toda sua poética. Na lida, a cada
dia, renova as esperanças e o amor pela vida.

Três coletâneas poéticas publicadas: Encontrar-te,


Além da Palma da Mão e Olho D’Água, pela editora CBJE.

77
SETE - feminino de luas e marés

carta à vida

percorre-me
com lendas
adentra
o noturno
de minh’alma
entardecida
tingi-me
em sal(do)
sem fim
de saudade
naufrágios:
sobrevivo!

ouço as histórias
de mapas reconstituídos
na sola dos mergulhos
e na fissura das asas

pressinto-te num
risco de relâmpago
e sigo como quem
não quer esquecer
o tempo de ser

em dias de exílio
78 sinto tua falta
SETE - feminino de luas e marés

matéria-prima

nosso jeito de errar


o corte do pão
nos aproxima
em equívocos
nosso olhar fragmentado
possui a mesma origem:
grilhões timbrados em ferrugem

a liberdade
rasa não impede
querer ver
o fundo que cabe
em nosso peito:
peso e leveza
no mesmo avesso

arte transforma

79
SETE - feminino de luas e marés

insônia

um dia
irei lembrar
das palavras que calo
(tudo cabe no silêncio)
irei lembrar
do sono que
não tenho
(nem tudo
cabe no esquecimento)
- um dia irei lembrar

o leito do rio
acena memória
dos peixes de fogo
cascalhos de cinzas
no correr do rio
o ar nos convence
que em cada gota
em movimento
as lembranças
seguem acordadas


80
SETE - feminino de luas e marés

entalhe

o dia nasce
no entalhe
suado das
mãos que
persistem
ao ranger
cortante de
densas horas
e se estende
na soleira
feito gato
se espreguiçando

sobe no telhado
como quem
busca alguma
razão para crer
no amanhã
e de cima
frente ao sol
o dia
prossegue
secando
lágrimas
adormecidas
81
SETE - feminino de luas e marés

tempo

óleo de linhaça na tinta


unge a tela
nas células a música
unge a alma
suor unge as janelas do tempo

o inverno passado
transpirou inquietações
interrogações escorriam
pelas artérias da parede
contornando as vidraças
dos olhos em chuva

tempo? inimigo e aliado


lembro-me bem
do cheiro da tua ausência
ainda esquecida na gaveta

82
SETE - feminino de luas e marés

pela pele

desvestida de quietude
transpiro aridez dos meus desertos
perambulo ecos dissonantes
a maçã enquanto isso
repousa sobre a mesa
em seu universo
repousa...repousa?
sumo alcalino dentro da pele
sempre travessia
[desentranhamento-origem-sem-pecado]

inevitável é a t r a v e s s i a

83
SETE - feminino de luas e marés

sementes de sol

da rotina
da cidade
somos
o óbvio
em desalinho
entranhas
entrelinhas

da dor
somos o
fundo do tacho
do doce que
desandou
desassossego
reviravolta

do sonho de
liberdade
somos o princípio
que habita as
sementes de sol:
resistência

84
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Dôra Leal, nasceu em 23 de maio de 1951, em Belo


Horizonte, Minas Gerais, onde foi registrada Maria
Auxiliadora Vale Leal. Aos 9 anos de idade começou a
escrever poesias. Não guardou os escritos dessa época.
Eram singelos e dedicados à família. Na adolescência
retomou à escrita. Como encantava-se muito com
as pessoas, passou a escrever sobre a diversidade que
elas continham. Entre uma poesia e outra, dedicou-se
totalmente à leitura. Não havia nada que a divertisse
mais que os livros. Através deles, criou um mundo de
sonhos e magia. Quando começou a publicar em sites na
internet, assinava seus poemas como Dôra Leal ou como
Vestida de Água, pseudônimo que utilizou durante
vários anos. Sempre utilizou de transparência sobre os
sentimentos, já que os considera espelho da alma. Dôra
Leal não permite que sua sensibilidade a sufoque. Antes
disso, cria poemas. Dessa forma vai seguindo em busca
de seu poema maior 85
SETE - feminino de luas e marés

Biografia do Eu

Escorreram-me entre os dedos algumas loucuras.


Poucas, confesso, porque muitas, eu vivi.
Entre os pés no chão e a cabeça nas nuvens, tracei uma
rota.
Não tão torta e não tão reta.
As sinuosidades é que abasteceram meus sonhos.
Dei-lhes a música, a poesia e a visão luminosa.
Tropecei em meus próprios novelos.
Enredos que me foram impostos à mercê de minha não
aceitação.
Lambi estrelas, empanturrei-me de nuvens.
E coloquei-me a sós com a Lua.
Contei-lhe meu trajeto, minha persistência e algumas
incoerências.
De alma nua, rasguei meu verbo.
Todas as conjugações, todas as insubordinações..
Com as pontas dos dedos, apontei minhas dimensões.
Enquanto o mundo desenhava seus limites, preocu-
pei-me em quebrar os meus.
Águas, sóis, luares, estradas.
Linhas, letras, ângulos, patamares.
Escalei topos, deslizei versos.
E o tempo encarregou-se de me fornecer experiência.
Rendo-me a essa experiência estranha.
Estranha porque é feita de sombras e clarões.
Flashes em surdina, livres de pressão.
Experiência pura. Química da razão.
86 No momento, meus olhos são verdes.
SETE - feminino de luas e marés

 Nave

à tona
transpiro as dores
adeus de cais

à toa
resguardo os hinos
louvores aos ais

atenta
sobrevivo às ondas
marés e sais

e voo
transpondo sonhos.
Esperanças demais.

Pele ao Sol,
asas ao vento.
Traduzo sentimento

porque a vida é risco.


Felicidade é momento
e eu busco a paz...

87
SETE - feminino de luas e marés

Sem aviso

Um dia, sem aviso, a água secou.


Trincou o solo e afugentou os bichos
Foi como uma dor nem percebida
As mãos acenaram para o nada
E o nada era tão abstrato quanto a vida.
Um dia, sem aviso, o rio não encontrou o mar
Então os peixes não puderam mais admirar a imen-
sidão
Os olhos só enxergavam o nada
E o nada era tão absurdo como a morte.
Um dia, sem aviso, o céu despencou
E escancarou a boca que já não sorria
E lacrimejou os olhos que estavam cegos
E o nada, então, empipocou a pele
E saudou a esperança
Esse sentimento tão abstrato quanto a vida.
(A vida é, com certeza, abstrata demais).

88
SETE - feminino de luas e marés

Noite branca

Não era apenas uma noite branca.


Era uma luz confusa direcionando a lua.
E ela, enamorada do infinito,
pensava a vida como se folheasse um livro.
Tudo dentro da margem.
Tudo em monólogos curtos.
Amou além do que seria lenda.
Supriu o corpo saciando-se do hermético.
Fez mais que uma viagem.
Fez um passeio de postal.
Selado, sem remetente,
sem contorno, sem confidente.
Ela não se deteve nos penhascos.
Nem ficou a ouvir notícias.
Buscou nas letras o que era sina,
descobriu que o fato não lhe cabia.
E viu-se em folhetins nem manuseados.
Pintura tosca, olhos marejados.
Sorriu de si mesma, sem medo do ridículo.
E a noite branca, em sons de guizos,
mostrou-lhe os dentes.
Dentes alvos, como lírios...
Fechou a prosa, desfez a cama.
Enroscou-se nua na nuvem gélida
E iluminou-se, inteira, daquela luz confusa.

89
SETE - feminino de luas e marés

Consequência

Leio em mim duas palavras únicas


Sílaba por sílaba traduzo suas essências
Nas pontas unifico céu e chão
No meio, nada mais que silêncio.

Ao dividi-las ao meio,
Separo o esquecimento da lembrança
Metade é a fuga do meu próprio medo
Metade é a imagem do atrevimento.

E sigo na divisão sem muito método


Em cada pedaço crio um verso
Como se esparramasse riso e pranto
Em meio às reticências que desconheço.

E rubro as faces ao vê-las tão expostas


Tento refazê-las cosendo apreços
Dou-lhes nova pele e assim, renovadas,
Tatuo-as em mim – sou sentimento.

90
SETE - feminino de luas e marés

Aves migratórias

Sóis, luas, estrelas


Caminhos, nuvens densas
Montanhas, rios, mares
Ares, pares, nós
A sós, criando sonhos.
Sobreviventes das tempestades!
Luz, imensidão, sempre emoção
Brincam de faca e corte
E migram ao coração...

91
SETE - feminino de luas e marés

Inequação

Venho cultivando flores.


Dando-lhes sombra, água e conversas
Trocamos afetos, por que não?
Eu, com minha persistência
Elas, com suas manhas.
Agora exponho meus canteiros
Aos olhos do público são normais
Mas meus olhos os veem como oásis,
como cânticos, como estandartes.
Como o amor é diversificado!
Amo o belo, o feio e o passável.
Odeio a violência, o oportunismo e a falsidade.
Sou antenada, distraída e inquieta.
Viajo em ondas de frequências desordenadas
E aterrisso onde a poeira faz sua morada.
Sou assim, cheia de incógnitas não decifradas.

92
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Giselle Ribeiro nasceu no dia 25 de outubro de 1967,


no Norte do Brasil, em Capanema, uma cidadezinha
que já fabricava cimento e poeta. Na infância, mudou
para Belém e fez os olhos abrirem mais para medir e
sentir o tamanho da capital em que vive até hoje. E se
a cidade cresce, os olhos acompanham a medida dos
tempos, porque, depois da infância, tornou-se professora
de Teoria Literária na Universidade Federal do Pará
e aprendeu a tecer poemas com as linhas de bordar a
realidade. E foi preciso abrir muito mais os olhos.

93
SETE - feminino de luas e marés

ELLE EST DANSEUSE

- ou fênix dançarina -

a dança me empurra para a fogueira,


queima as impurezas
e me entrega o fogo
da vida

por isso entro na roda


para dançar

para arrancar do corpo


o peso
e fazer a alma voar.

94
SETE - feminino de luas e marés

Legado

Muito cedo
minha mãe me levou ao oculista
depois de algumas perguntas,
ditas anamnese,
ele se pôs a olhar nos meus olhos...
Acho que assim ele viu as imagens
escondidas que eu colecionava.
Por isso,
talvez,
me receitou:
lentes de metáfora.

Desde então
vejo os homens e suas sombras,
ouço as vozes das coisas
e sinto o pulso do poema
rompendo a inexistência

95
SETE - feminino de luas e marés

Para ouvir com os olhos

Na porta da loja fechada, um homem jogado fora. A família


diz ignorar o paradeiro dele. O dono da loja viajou, foi
comprar novos manequins em outro continente.
E a pátria? A pátria quer limpar a paisagem dizendo manter
o homem jogado fora deitado eternamente em berço
esplêndido.
Essa maldita pátria que não me convence da morte presa,
amarrada, sobrevivente dos pés do homem jogado fora.

96
SETE - feminino de luas e marés

Princesa sem dons para tamanha felicidade

Era uma princesa


com uma coroa de medos presa nos cabelos.

Um dia chamou todos os joalheiros do castelo


para um conselho receber.
E o joalheiro mais astuto
foi desfazendo cada fio de medo
da coroa da princesa:

medo de viajar sozinha,


do mar, ela também tinha muito medo,
medo de comer peixe com espinha...

Mas joalheiro nenhum


sabia o que fazer
da coroa e da cabeleira
daquela desmedida princesa.

Foi quando a rainha,


mãe da princesa medrosa,
comprou a tesoura mais afiada,
toda de ouro e prata
para os cabelos da princesa cortar.

Nesse dia,
a rainha esqueceu
que cabelos e medos crescem novamente...
97
SETE - feminino de luas e marés

Madame Homero

Dei à ela uma cadeira de balanço,


uma roda de crianças
e um tabuleiro de Grimm e Perrault...

E ela me deu sua moeda mais valiosa.

Ergueu os braços como se fosse voar,


fez gestos largos como se fosse me abraçar
e do seu coração embrasado
fez soprar histórias para ninar e acordar.

E foi assim que ela entrou na minha casa


com sua numerosa família
e todos os dias e noites faz nascer em mim
a Mulher-Sol e o Homem-Lua.

98
SETE - feminino de luas e marés

Retrato

Ele tem os olhos


perdidos
num futuro que eu não me acho.
Um dia eu alcanço as suas mãos,
outro dia
elas não me atendem.
E quando eu morro de saudade
ele compra flores
pro meu corpo enfeitar.
E me beija a boca.
E me beija a boca.
E me tira o fôlego.
E me beija a boca.
Rouba meu batom
deixando em meus lábios
o mesmo tom pálido
dos que, por amor, se suicidaram.

99
SETE - feminino de luas e marés

Realidade veloz

Da periferia
ao centro da cidade
a menina alucinada
com as luzes verdes e vermelhas
da vitrine
pergunta ao vendedor:

Então é isso que chamam de Halley, moço?

Não criança,
isso que você está vendo
é o Papai Noel.
o Halley só aparece
a cada setenta e seis anos.

E o Papai Noel, moço?

100
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Roberto Candido

Inês Santos nasceu e mora em São Paulo, capital.


É educadora, professora aposentada, psicopedagoga
e poeta. Diletante e apaixonada por diferentes artes,
fez cursos alternativos de Cinema, literatura infanto-
juvenil, oficinas literárias, etc.
Escreve poemas desde 2012 e publica-os no Facebook.
Já foi publicada também nas páginas: Projeto Tempestade
Urbana, Boca a Penas e no The São Paulo Times, e nas
revistas impressas Ramo – revista brasileira de poesia,
Poesia em São Miguel, Hoje, 2015 – Casa Amarela
Espaço Cultural, e na Plural – Revista Artesanal – 1900
– Flores do mal, e na La Barca, ambas da Scenarium.
101
SETE - feminino de luas e marés

Sinfonia de uma tempestade

Chove lá fora
A chuva é sonora
Molhando a terra
E tudo sobre ela

É tocante aqui dentro


O sonoro lamento
Do interdito do vento
Zunindo na janela

Que mais parece


Uma potestade
Querendo impor
Sua força e vontade.

102
SETE - feminino de luas e marés

Momentos e tempos

Já é madrugada
Vejo a lua no céu
Uma metade
Deitada.

103
SETE - feminino de luas e marés

Em busca do cais

Por sobre o mar


O infinito descansa
O olhar.

104
SETE - feminino de luas e marés

Ouça

Cansada ou não
A vida segue
Tocada

Por ventos
Tempestades
Pequenas
Felicidades

Do passado
No presente
Saudade
Não (in)vente.

105
SETE - feminino de luas e marés

Dúvidas?

Para colocar
Um ponto final
Numa questão
Apague o anzol
Da interrogação

(Encontre, pense
Converse, responda
Faça a pergunta).

106
SETE - feminino de luas e marés

Instinto ou pulsão

Sempre
Corro
Da morte
Apesar
De sabê-la
Na direção
Da vida.

107
SETE - feminino de luas e marés

Cosmogonia
também é
escrever
poesia
Na união
de versos
a origem
de um
:
Universo!

108
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Jandira Zanchi é poeta e ficcionista, autora de


Gueixa (Editora Patuá, 2013), Balão de Ensaio (Editora
Protexto, 2007) e o livro virtual A Janela dos Ventos
(Emooby, 2012).
Tem lançamento para breve de Área de Corte pela
Editora Patuá.
Integra o conselho editorial de Mallarmargens -
revista de literatura e arte contemporânea.

109
SETE - feminino de luas e marés

atemporal

nenhum céu vai conter esse amor...


nublado dessas arestas/madrigais inverossímeis
esculpido na arte do silêncio (emaranhado
do fulgor da fuga) é só lamento lucidez (lacre de luz)
e vértice de sombra

(mas, ainda assim, ele é você eterno menino


açoitado nos fractais desses tempos descontínuos
costurados de semi humanos de serestas sofríveis )

espaço alongado de toda virtude vazada


e virgem em danças, complexas e incompreensíveis,
fuligem das formas/formidáveis facínoras

deslocadas para o além do ser


o meta tempo atemporal de nossos sonhos.

110
SETE - feminino de luas e marés

dígitos

prevejo noites antes que se consumam


os dias já que esferas e/ou estrelas
giram tão rápido nessas nuances...

cardeais são esses pontos e seus transtornos

ao norte navego em mares/maremotos


umas marés desses teus olhos ascendidos
meus sonhos - soníferos salgados -

beijos de palavras que colhi, apressada,


quase transtornada nesses veios velas enfurnadas
que acenam e se despedem alheias ao além aos fatos
aos requebrados prantos
marejadas de umas águas salmouras
cientes calientes cravejadas de rosários
rosas líquidas de paixão
(nas crescentes/coerentes cravejadas
sendas dessa tarde que ímpia
se levanta rasgada de todos os seus mantos)

enquanto timidamente tua voz anuncia os 6 ou 7 dígitos


de uma senha decodificada e, ainda, cravada de todo o seu
esperanto.

111
SETE - feminino de luas e marés

evora

o círculo, tão lento, do fogo


e sua face fácil
quase sonora, dançante
amante, acendida
aos pés e aos ventos
de um encanto
evora evocada, por você
em todos as grisalhas fendas do dia
nevascas de sonhos e anseios
navegados na flor, quase limbo
de almas acendidas/afagadas
acordadas do dia/meia noite
levante no sol e no anoitecer.

112
SETE - feminino de luas e marés

marafonas

isento só o dia desfeito de seus alecrins


- meia lua - mendicâncias de marasmos
e marafonas, esses minúsculos poentes
de pó varrido ao léu largo da vida

avulsos de avisos e avistamentos


cedilhados das nobres nigérias desses fardos
encrespam –se dos ritos rasgados das tardes
insones incongruentes

espasmos espalhados pelo cárcere

azul albergue de TI

as folhas quase pálidas frisadas


em suas mantas, ainda marias, aterrado na luz
o maiúsculo marasmo de si
quase... em mim.

113
SETE - feminino de luas e marés

transfigurados

das extrema unções que a vida nos fornece


nenhum esperanto encolhe melhor
a estreita raiz de nossos amores
do que o fado do fardo
carregado por entres umas estrelas
virgens e vomitadas de seu centro

algoz agoniado manto que tremula como


corregedor da valentia- sem sina/opaca opala -
desses dias transitivos
transfigurados ... nunca esclarecidos
tombados como mártires, espada e espadachim
largo céu cenário camuflado

enviesado, meu pranto floreia


de marginais e transversais
a clara noite sem estrelas

bate a maré sua fúria de sertões


sertanejos salubres saciados
amaciados amantes sem alcova
embrutecidos dos ventos, inóspitos, guerreiros
furtivos e bastados ao bento ser que verga
- vagabundo –
as fagulhas de um fogo sagrado
acontecido no beiral da vida/sacerdócio

enfim, arrastado pelas colméias da virtude


até as dunas – dantescas – dos desencontros.

114
SETE - feminino de luas e marés

fatigados

sonetos se despedem de seus soníferos sonhos


amarfanhado é o dia dessa lua cetim crepom
dos teu olhos altos ao léu lançados,
fartos e fadigados, se curvam
esses cânticos crespos das cinzas cruas
escorridas e sem som,
salmouras de água doce aos céus,
lume/lusíada lanço um dardo... estilhaço..
me volta um cenário de pompa e virtude
venâncios venezianos
nas sombras quase tintas da noite
vasculham palcos e arrombam
sedutoras falas de cetins e rosas
adormeço, ainda, no leito da lua
em sua fatigada face quase crua
alheia ao sol e despida de rendas
(aquela por onde infantes e fardos
se debatem entrecruzados nas anáguas malhas
dessas memórias/ matizes meretrizes
de tuas parcas e falidas falas)

feroz é o valente acorde do vento


e sua ventania calma de ardis
e artimanhas arteiras fontes de
cruz e calor.

  115
SETE - feminino de luas e marés

dízimo

coerente o dia nessa agonia sem estilo..


fibroso, rasgado, lado a lado, pelas serpentes
dos desejantes, furibundos anéis mestiços
de muito pouco viço
me escondo nos ares do veneno de abril
enquanto marcham, pelas descendências de Apolo,
o jugo e o jumento cimentado da servidão
ferina, faleço antes que se perfumem os novos
calores do mesmo homem
vértice vertebrado varrido das
virtudes de algum altar

único desses dias orados sem muito sumo


pálpebras vermelhas do amor
ciscos derramados com tanto furor
que se calaram até mesmo as nadadas frações da
memória
esse arquivo de pouca estima
interrogado do deus
marginal ciente da invalidez de seus contornos

pois era amor na cauda vibrante de tuas notas


ainda que tenha sido pálido o ângulo dourado
derrotado dízimo de meus sonhos.

116
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Luciane Ferreira da Silva

Janete Manacá nascida em São Martinho, povoado


rural ao norte do Paraná. Veio ao mundo pelas mãos
de uma parteira. Seu pai era músico e sua mãe uma
guerreira. Bacharel em Serviço Social, Comunicação:
Rádio e TV e Filosofia, pela Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).
Há 35 anos construiu o ninho e regou seus sonhos
na calorosa cidade de Cuiabá/MT. No percurso dessa
existência é aprendiz na arte de tecer palavras, com elas
compõe versos que a sustentam na travessia do caos.

117
SETE - feminino de luas e marés

O milagre da vida

Eu vim do pântano dos aflitos


Em meio a olhares corajosos
De quem vence os próprios limites

Cheguei chorando para me certificar


De quantos colos estavam a me esperar
Depois de nove meses de desafios

Haviam mãos de mulheres guerreiras


Cuja fé vence qualquer barreira
Eram minhas doces e ancestrais benzedeiras

Com as mãos em feitio de oração


Agradeciam o milagre de mais uma vida
Que renascia na dureza daquele chão

Choros e cantos misturavam-se naquele instante


E o seio materno a jorrar o leite além do pranto
Na certeza de mais um dia de efêmera felicidade

Mulheres marcadas pela impiedade do passar do tempo


Rompem o sagrado e divino momento
E erguem os olhos ao firmamento em gratidão

É a vida emocionada que pede passagem


É a flor que se rompe à espera de liberdade
E recebe boas vindas patuá, benzimento e afetividade
118
SETE - feminino de luas e marés

Nas águas do antigo lar

Jorram das minhas artérias


Águas doces e salgadas
Em harmonia com o tempo

Vou tecendo novos caminhos


Com fios de esperança em movimento
E a alma a repousar em silêncio

Quando a saudade derrubar meu pranto


Volto à roda para bordar meu manto
Expulsar desencantos e me purificar

E quando meu corpo não mais se sustentar


Com os pés sangrando de tanto bailar
Libertem minhas asas para eu poder voar

E quando a escuridão chegar


No útero de Gaia quero repousar
Renascer enfim, nas águas do antigo lar

119
SETE - feminino de luas e marés

Infância

Da infância rendas, babados, cachos e laços


Flores nos jardins e a eternidade dominical
Brincadeiras inocentes, abraços, contentamentos

Da infância o cheiro saudoso


Pudim de leite, geleia de amora silvestre
O jasmim e a camélia contemplados do quintal

Da infância a missa comprida


O sono e o sermão em latim
Cálice dourado, pão, vinho e canto desafinado

Da infância a sonoridade esperada


A praça da igreja o toque dos sinos e a meninada
Novidade no povoado no alto falante é anunciada

Da infância as rodas alegres o passa anel


O chá de funcho a bolachinha de mel
O circo o palhaço a arquibancada e o céu

120
SETE - feminino de luas e marés

Poesia em dias nublados

Com o corpo diluindo em sangue


a voz em greve de silêncio
a face desfigurada e ausente
decretaram o fim da vida neste continente

Destruíram minha morada


expulsaram-me da fria calçada
invadiram minha inspiração
e à poesia decretaram voz de prisão

Algemaram a esperança que restava


com a condução coercitiva da minh’alma
açoitaram até minha intuição
e minha mente perambula em confusão

A imensidão reduziu-se em prantos


meu corpo nu exposto em carne viva
desfaz-se a cada dia insandecido
no absurdo da gentil e nobre hipocrisia

Minhas dores são chagas necrosadas


a invadir meu peito frio e silente
que respira agônico e sofregamente
a espera do suspiro final que põe fim ao sofrimento

Do meu ventre vertem estrelas opacas


invisíveis na escuridão da indiferença
a repousar os instantes finais
sob a honra da glória nefasta dos imortais
121
SETE - feminino de luas e marés

O encontro marcado

Luminárias celebrativas
Desejos de embriagar
Agradável é o aroma no ar
Noite convidativa
Sinfonia natural
Mistérios a rondar

Coração incendiado
Olhar estelar
Flores coloridas, detalhes
Tecendo poemas visuais
Alma contemplativa
Tempo de despertar

Tudo em ti é inspiração
É paz, leveza e canção
O instante é propício
Ao encontro marcado
O corpo em ritmo cadenciado
À dança das sensações, o amor aflorado

122
SETE - feminino de luas e marés

Trago dentro de mim

Trago dentro de mim


O último sonho dos mortais
A espada afiada para decepar os ais
E a libertação dos sofrimentos nos cais

Trago dentro de mim


A sabedoria da raiz ancestral
A força e a justiça para acessar portais
O vinho sagrado que transmuta todo mau

Trago dentro de mim


Os cantos afros de templos milenares
O ritmo contagiante dos tambores
A beleza na alquimia das cores

Trago dentro de mim


O poder magístico da transformação
A pureza do sangue derramado neste chão
Nas lutas injustas que tombaram meus irmãos

Trago dentro de mim


As lágrimas causadas pelo preconceito
O leite negado aos próprios filhos
As cicatrizes na alma de correntes desumanas

123
SETE - feminino de luas e marés

Filha do ventre da terra

Filha do ventre da terra


Deusa e gentil primavera
Revestida de tons matinais
Arco-íris de reinvenções e sinais

Fértil imaginação
Menina, sonho e ilusão
Caminhante que transborda emoção
A margarida da canção

Loucura de mente parida


Multidão, deserta e florida
A consciência revelada e prometida
O líquido da fonte da vida

Serenidade e melódica manhã


Metafísica, beleza e felicidade
A juventude, o meio dia e a tarde
A perfeição o encontro e a eternidade

Maria dos continentes


Dócil, alegre e valente
Aquela que rompe correntes
E hoje repousa no solo feito semente

124
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Juliana Costa nasceu em 02 de fevereiro de 1990,


na cidade de João Monlevade, MG.
Desde 2014 publica anualmente na antologia
paulista Cadernos Negros e é colunista satírica do Blog
Ecos da Periferia, onde escreve a coletânea de textos
intitulada O Castelo Acadêmico. Cursou graduação em
Letras – Literaturas, na Universidade Federal de Viçosa,
atualmente é mestranda em Estudos Literários na
Universidade Federal de Juiz de Fora, cidade na qual
reside no momento.
125
SETE - feminino de luas e marés

O segredo

Mãe, eu quero ir brincar


Filho, não vá, fique aqui, bicho fardado pode lhe pegar
Mãe, preciso ir pra Escola
Filho, cuidado ao sair, vá e volte com o mesmo pé
Não quero a comoção como esmola
Caso algo lhe ocorra, vivo tendo fé
Uma fé que não é a prova de balas, meu menino.
Mãe, ouço sirenes lá no início da favela
Filho, espero que esta noite não tenha corpo e não tenha
vela
Mãe, ouço disparos
Filho, espero que seja dos corações, pulsando vida diante
do medo
Mãe, eu tenho um grande segredo
Filho, me diga, caso assim quiser
Eu vou ser presidente quando crescer
Filho, o futuro a Deus pertence ...
Mãe, Deus é a prova de balas?
Filho... acredito... que seja!
Mãe, eu mudei de segredo
Quando eu crescer eu quero ser um Deus preto.


126
SETE - feminino de luas e marés

Desninando

Criança preta não dorme


O bicho papão vem fardado
amedrontar-lhes o coração
Antes o medo era da fome
Agora o que a deixa preocupada
é o sangue irremovível dos asfaltos desta nação
Criança preta não tem medo de careta
Nem tem medo de assombração ou do próprio capeta
Tem medo do governo que a sua desgraça assina a caneta
Aprendem enganosamente que não podem ser gente de
caderneta
Experimentam antes de serem adultos a irracional baioneta
Criança preta morrendo
Não vira notícia e nem poesia
Não rima com nada, não soa bonito
Criança preta morrendo significa grande lucro
Menos um que vai de qualquer jeito para o sepulcro
E a vida continua
Mães, vós e tias
Carregando na alma
todas estas lágrimas invisíveis
E da música de ninar só lhes restam um verso:
“ Dorme filhinho, Dorme filhinho...”
e aquela vontade sofrida de desninar o filho da terra
rompendo do peito a dor em forma de cratera.

127

SETE - feminino de luas e marés

Dose negra

à Juliana Rosa , amiga e irmã.

Uma dose negra na garganta


só para começar o dia
vamos parar de hipocrisia
pois todo dia
a resistência
vem violenta
como poesia

128
SETE - feminino de luas e marés

Silêncio

Consigo ler os silêncios


com a perspicácia de quem lê o percurso dos rios.
A vida a brincar conosco
fazendo de nós mesmos um profundo poço
em que jogamos palavras em forma de desejo
Pois o mundo inteiro roda em nosso peito
E o silêncio é uma faísca
que promove indizíveis incêndios
de indiferença
comodismo e absoluta crença
de que a vida só a nós pertence
e o ego sempre vence
quando não rompemos com todas as prisões
manifestadas em oportunistas opiniões
daqueles que inventam, mas do vivenciam
a única oportunidade que temos de ser positivamente
humanos

Saibam que meu silêncio é diferente


Ele arrancará todos os dentes
Daqueles que falsamente sorriem.

129
SETE - feminino de luas e marés

Benzedeira

á benzedeira Dona Madalena (Viçosa- MG )

É bom saber
O que não conseguimos ver
Tem gente que trama pelas costas
Tem gente que desfere venenosas palavras
Pois para si não encontra respostas
E por isto deseja o ruim
Para toda gente que sorri
Madalena, a benzedeira
Lê a alma e seus conflitos
E ensina que alma também tem que ser guerreira
Livra-nos dos aflitos
Reza, pensa e aconselha
Mesmo que o mundo seja uma peleja
É necessário que amanhã o nosso olhar floresça

130
SETE - feminino de luas e marés

Luto

Brancura impondo moralidades e padrões


na simbologia do ódio
que sufocam milhões de corações
Cuidemos dos nossos
Cuidemos daqueles que uma sociedade inteira coloca a
parte
Cuidemos com abraços e não só com os olhos
Cuidemos antes que seja tarde
Luto, palavra que dói
Quando sinto tristeza ou quando sou fortaleza.
Luto contra as possibilidades de luto
E mesmo assim escuto:
Que somos vitimistas demais
Que somos exagerados demais
Enquanto eles são desumanos demais.
Meu luto é branco
Não fiquem com espanto
Pois a morte jamais foi negra
A tristeza não é preta
Branca são as navalhas que ceifam
Que fragilizam
a nossa mente e espírito
em nome de Deus ou santo manuscrito
Luto e irei lutar mais

131
SETE - feminino de luas e marés

O riso raiou

à Ana Paula F. Mendonça, uma prosa que gera poesia.

Cada dia a gente se repensa


repensa o porquê dos punhos erguidos
E quando foi que eles se ergueram pela primeira vez
Talvez, no ventre escuro de minha mãe
meus punhos foram gerados
E quando eu nasci, eles se ergueram tímidos
rasgando o véu social que já me condenava.
Depois no hostil cotidiano,
os meus punhos se ergueram
como poesia e como grito.

De vez em quando meus punhos ficam doloridos,


parecem que eles erguem o mundo e os milhares de
corpos negros executados
pelas mãos brancas de quem nunca perdeu a paz
ciente de que era dono de tudo o que os meus olhos
tocam,
dos nossos corpos e de nossa fala.
De vez enquanto uma lágrima desce
varrendo a face seca de quem retornou de um combate
Depois de uma, vem incontáveis ...
e um mar morto surge no rosto.
Antes do tempo amarrar a corda em nosso pescoço,
procurando uma boa árvore para nos pendurar em suas
futilidades.
o riso raiava !
e fazia do mar morto
uma terra fértil de dizeres e de vida.

132
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Letícia Ferreira Eça nasceu em junho de 1997,


São Paulo. Atualmente, cursa Construção de Edifícios,
na Faculdade de Tecnologia Victor Civita, e também
Ciência da Computação, na Universidade Cidade de São
Paulo.
Gosta de cachoeiras, parques e flores caídas ao chão.
Seus dias de inverno são aquecidos por seus amores, por
poesia, por música. Anseia levar vida onde não tem e
conhecer mais a Jesus, seu Deus, que mostra diariamente
o que é amor e como amar.
133
SETE - feminino de luas e marés

Colisão de dois mundos ou mais

A nossa brisa nostálgica


que nos traz uma quase paz
Será roubada.
E a abstinência por abismos despenca outra vez
em obstinações.
Em trapaças banalizadas
(com outrem) so, please
Live the consequence
and be the chaos, again.
Porque nos fizeram furacão
e agora
N
o
s
confrontamos
em nosso sopro

134
SETE - feminino de luas e marés

II

Fale comigo

Então vamos falar sobre natureza morta!


Da qual pintores em preto e branco reinventaram.
desgastaram
traduziram
Podemos debater sobre bebida russa
sobre a guerra por água
e até sobre a peça quebrada do nosso carro.
converse comigo
você trouxe o copo d’água que pedi?
está me ouvindo?
O som do incerto veio novamente essa manhã
Ele me arrasta! E me arranca os olhos
e me lincha a pele e os órgãos
e por não saber como terminar poesias
Eu te peço
que fale comigo.

135
SETE - feminino de luas e marés

III

Folhutopia

O manguezal suga
o rio
seu sangue suga
os barcos que passam
gaivotas sugam um pedaço
do céu
Mas
as folhas
mesmo na distância do seu lar
emergem tranquilas no rio
como folhas adotadas
felicitam-se com a própria sorte
folhas rentes mais ao rio
do que às suas mães
árvores
folhas mortas.
mais vivas que nunca, adaptam-se,
mudam de cor e recomeçam suas histórias
Em todo seu esplendor e simplicidade
as folhas são invejadas
por todos do reino
que as veem e sentem

136
SETE - feminino de luas e marés

IV

Rezando pelas ondas sozinha

Entre uma onda e outra


eu rezei
mas ao invés de paz,
recebi medo
e repúdio.
Entre uma onda e outra
eu rezei
E, meu corpo,
fosse o conjunto de todas as palavras
inventadas,
perdidas,
extintas,
era perturbado. Na estaca ou cruz,
pesava no prego amargo.
Era poema com todas as letras do mundo.
Minha reza foi sincera entre as ondas.
mas entre uma onda e outra,
foi que me perdi no profundo.

137
SETE - feminino de luas e marés

Almejo quebrantamento
e a dor pela dor do outro
Almejo compaixão, empatia
Choro
Almejo poesia vívida
Palavra que toca
A ferida e cura
Almejo o amor
Que lança fora todo o medo
almejo o amor
que tudo sofre e não procura
os próprios interesses
almejo o amor
que faz coração voltar a bater
e traz as pessoas de volta à vida

138
SETE - feminino de luas e marés

VI

saia da sua
fossa e venha
para o meu
colo.
venha direto
para o nosso
aconchego
saia do seu
conforto
e vem pro nosso
santuário.
acorde logo, que
a lei da vida
age sobre nós
somos templo
da esperança
pros mundos sem
forma,
pros engasgados
nos próprios choros
pros que tossem
pela metade
e dizemos em nossas
orações,
e que assim seja:
nos conduza, oh Deus
em nós sobre-viva
o amor a fé
e a esperança
amém. 139
SETE - feminino de luas e marés

VII

eu invento crises
invento flores
uma reza e uma
atmosfera nociva.
Eu invento um intento
um sossego e até um lugar
na lua, na quitanda, na praça
numa noite de quinta
invento uma insônia
invento uma nostalgia
um pronome de tratamento
e alguém pra almar

140
SETE - feminino de luas e marés

Foto:Carlos Magno

Líria Porto é mineira de Araguari, professora


e poeta. Tem dois livros editados em Portugal
(Borboleta desfolhada e De lua) e dois no Brasil (Asa de
passarinho e Garimpo - finalista do prêmio Jabuti 2015).
É também autora do blog Tanto mar, participa de
vários sites, jornais e revistas na internet, entre eles
Escritoras Suicidas, Germina Literatura, Zunái, Blocos
Online, Considerações do poema, Poesia Perfeita e
Mallarmargens.
Reside em Araxá, interior de Minas Gerais.
  141
SETE - feminino de luas e marés

degelo

eu já era uma mocinha


fazia xixi na cama

o tal cheiro d’amoníaco


me matava de vergonha

mas fechar a torneirinha


na melhor hora do sonho

como?

(eu tinha vontade líquida


e alma muito tristonha)

142
SETE - feminino de luas e marés

pré-menstrual

barulho de chuva
arrulho de água e serra

mato seco se enverdece


primavera insinua-se

lua surta no cais

143
SETE - feminino de luas e marés

la bella donna

os olhos são noites


o cheiro manhãs
são tardes seu colo
seu sexo agoras
os seios auroras
e o tempo advoga
a seu favor

144
SETE - feminino de luas e marés

término

como arrancar da pele


o suor de outro corpo
dentro dos nossos poros
a circular-nos nas veias
a encharcar-nos a alma
a infiltrar-se nos ossos?

água e sabão
não apagam
lembranças

145
SETE - feminino de luas e marés

devoção

olho minhas mãos as manchas a pele ressecada


lembro-me daquele menino – o zezé

passava os dedos pelo meu corpo e ficava admi-


rado
és tão lisa pareces capa de revista
santa de reza

146
SETE - feminino de luas e marés

desmerecimento

à mulher que se disputa


o céu a terra a florada
à mulher que se diz puta
nada?

147
SETE - feminino de luas e marés

matrioskas

as bisavós das avós


a mãe da mãe depois nós
as filhas netas bisnetas
as crias destas daquelas
e assim uma após outra
pelos séculos dos séculos

148
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Lívia Natália é baiana, de Salvador, poeta e contista.


Escreveu o livro de poemas Água Negra, 2010 (Prêmio
Banco Capital de Poesia) e Correntezas e outros Estudos
Marinhos, 2015.
Doutora em Teoria da Literatura e professora do
curso de Letras da Universidade Federal da Bahia. 

149
SETE - feminino de luas e marés

Freudiana

No mais fundo dos homens que amo há meu pai,


com sua carne de maresias.
Ele se desenha na pele dos meus homens
como o mar inscreve, no peixe, as escamas.
(Todo corpo em que derivo absorta
tem algo de sua voz pedregosa.)
Nas peles negras em que me banho
flutua sua existência de maré: prenhe de naufrágios.
Aos pés destes timoneiros delicados
que pensam singrar minhas águas
sou a kianda-sereia, um coral espelhado,
sou a ostra que se desmora em silêncio.
Sou a água eternamente translúcida.
Precipício denso de onde estes peixes bebem
- apenas - um silêncio delicado

150
SETE - feminino de luas e marés

As mãos de minha mãe

As mãos de minha mãe são imensas


e seguram seu corpo minúsculo
como as chagas de cristo lhes se sustentam a santidade.
Nos dedos vincados de veias grossas,
na curva que se enruga no mais preto
das dobras as mãos de minha mãe
perfazem os caminhos de meu mundo.
Se os búzios cantam nas palmas singradas
de rotas negras é para predizer maresias
e ondas dolentes em meu caminho.
As mãos de minha mãe, cada vez mais idosas,
guardam, em suas linhas, o segredo de nosso destino,
elas se cruzam no ventre da espera,
e nasce sempre feliz, sempre feminino.

151
SETE - feminino de luas e marés

Orisadidê

Arranca as percatas de seu cavalo


e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto e,
repetido, saúda a terra com a majestade de sua presença.
Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.
Caminha com sua carne de mito e,
quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.

152
SETE - feminino de luas e marés

O caso do vestido

De tempo e traça meu vestido me guarda.


Adélia Prado

Meu corpo não respeita as estações.


Chove grosso em cada dobra da cidade
E eu trago comigo um vestido de verão intempestivo.
Meu corpo não cede e,
vivo, arde no ligeiro das rendas,
nas maresias que lambem o ar.
Meu corpo não cede.
E o vestido que me desveste neste calor temporão
é todo bordado na minha pele: por dentro.

153
SETE - feminino de luas e marés

Meu caro amigo

Esta Nereide que te prende nas tramas dos seus lençóis,


te devorou. Ela te guarda no delgado de suas entranhas,
e virastes navio submerso no negrume imenso.
numa água violenta, mas sem procelas,
só suas mãos dançando
Sobre o mar de fios grossos.
Onde estás tudo é bruto, bichos ocultos bebem de sua
sombra.
A vida me atravessa e não posso te contar:
que emagreci e cortei os cabelos,
(eles agora crescem dobrando-se em cachos, como os
teus, miúdos).
Que estou mais forte.
Que quase sei lutar.
Que esta semana me achei grávida de um rebate falso.
Que tenho chorado.
E sou mesmo igual a ti: puro silêncio.
Enquanto esta Nereide penteia, com as mãos,
os teus cabelos, Vou desaprendendo a cantar,
achando o mundo menos belo,
e todos os naufrágios que fiz de mim,
pra te encontrar lambem as fanjas das ondas
por puro medo do profundo que há no mar.


154
SETE - feminino de luas e marés

Sina

Todo mês eu sangro.


Diversa de mim, atravesso águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede e,
do que sobra, algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.
Quando sangro, o animal onde moro
troca de pele por dentro,
expurgando entranhas.
Todo mês eu sangro.
Todo mês eu singro este mar,
em que me banho.

155
SETE - feminino de luas e marés

Carpideira

...chore-me uma enxurrada,


eu já chorei rios por você...
Mel Adún

Derramei duas ou três lágrimas por você,


apenas por que não irei ao seu enterro e,
portanto, estarás coberto pela impossibilidade das flores.
Chorei para lhe dar algum luto,
posto que não visto preto,
nem vou a cemitérios: minha religião!
(Dentre outras interdições que me dão vida,
minha religião me impede de sofrer à toa,
de ir a enterros, e de vestir-me de preto.)
Portanto, querido,
pranteando agora pela sua morte,
já te enfeito, te encomendo a alma
e me despeço de ti, para no meu logo,
logo recompor as cores de minha face,
e o vermelho que me aviva os lábios.
Já chorei rios por você,
neste meu terrível destino feminino.
E estas últimas lágrimas já nem engrossam a tempestade,
apenas enfeitam a terra onde te plantarei profundo.
Virá o seu enterro e não gastarei dinheiro algum no seu
caixão.
A cova de meu abandono, meu amor,
te abriga todo, como o colo de uma mãe.
Ali todo estarás deitado, longe da minha piedade,
no único berço que merece isto que já se perdeu:
O esquecimento.

156
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Cristhina Ramos

Maria Helena Latini publicou Roteiros de Vida, Ed.


Achiamé, 1991; Ângela e Antônio - 1ª edição – Ed. Blocos,
1992; Fio de Prumo, Editora 7 Letras, 2006; Ângela e
Antônio - 2ª edição ampliada e revista – Ed. Nitpress;
Duas Mulheres Entardecendo, em diálogo de textos com
Wanda Monteiro, Tempo Editora, 2014. Participou
das antologias Água Escondida, Niterói, 1994; Urbana –
Edição Histórica, Rio deJaneiro, 2001; Poesia Sempre,
Biblioteca Nacional, 2006; Communità Italiana, 2006;
Antologia dos Poetas Vivos, 2009, Um Brinde à Poesia, 2014
e Entretextos, 2015, entre outras. Alguns de seus textos
foram selecionados para espetáculos teatrais. Para teatro,
escreveu roteiro para Afropoemas (com textos dos poetas
Adão Ventura, Solano Trindade, Salgado Maranhão,
Carlos Orfeu, Conceição Evaristo, Maria da Paixão de
Jesus e Cristiane Sobral), O que é Poesia? (infanto juvenil)
e Histórias do Mar. 157
SETE - feminino de luas e marés

Poema branco

Bom é esse silêncio


que me veste
e me despe,
que me alimenta
e me faz dormir.

Zeloso,
faz para mim
uma mesa
em toalha de linho.
Prepara-me um banho
com pétalas de jasmins,
ervas aromáticas,
água tépida
e meia-luz.

Entendo-me bem com ele.


Esse amigo,
remanso
e refluxo.
Branco, branquíssimo;
pacífico:
Santo.

(Eu tenho uma casa


guardada no Silêncio.)

158
SETE - feminino de luas e marés

Duro

Há o silêncio
pacífico
e um outro,
invisível enxame
de vespas:
quando
o ar é pesado
e o rosto vira,
ao receber
surdas bofetadas
com luvas de pelica.

159
SETE - feminino de luas e marés

A palavra

A palavra
é feita de
som e sopro.

Vestida de sentidos,
recolhe em si
o silêncio.

160
SETE - feminino de luas e marés

Seringueira

O tempo era lento


Resina
no lento talhar de marcas
cortes e seivas
facas
dores
risos
cheiros
no lento gotejar
de cada dia

161
SETE - feminino de luas e marés

Perda

Perda dói
como qualquer outra dor:
sem remédio ou alarde.
Sentimento de roupa esfregada,
torcida
e batida
três vezes no tanque.

162
SETE - feminino de luas e marés

Certas perdas

É verdade.
É possível perder
o que nunca se teve.
A ilusão
é um nada fantasiado,
mas ocupa espaço.

163
SETE - feminino de luas e marés

Tempero

Aproveitei que estava


cortando cebola,
dei pra chorar por tudo.
A faca implacável
separando rodelas
que se dividiam, dividiam:
A mãe, o pai, o avô.
A casa, o que se perdeu
e o quase.
No jantar, ninguém notou;
mas comeu
carne temperada
com cebola e lágrima.

164
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Ana Carolina López Germano

Maria Lúcia López


nasceu em Catende,
Pernambuco. É autora de 8 livros de poesia. Um deles,
Acendedora de Estrelas, rendeu-lhe um convite para
participar de uma coletânea de poetas brasileiros
na Croácia, onde aparece ao lado de nomes como
Mario Quintana, João Cabral de Melo Neto, Carlos
Drummond de Andrade, entre outros. Membro da
Academia de Letras de Campos do Jordão e da Academia
de Letras de Professores da Cidade de São Paulo. Artista
plástica, terapeuta holística. Ainda em Catende, antes de
morar em São Paulo, foi radialista e trabalhou no Teatro.
É mãe, avó, acredita na transformação da humanidade
porque acredita no amor. 165
SETE - feminino de luas e marés

Retirante

Seria Maria das Mortes,


se não fugisse da seca, se não
resistisse à desolação. Se não
tivesse imigrado, qual bezerro assustado,
acuado, se fartando de lágrimas, chorava
Maria, o galo cantava, os ipês floriam.

Seria Maria da Esperança, se não tivesse


as marcas da fome, da sede, da solidão,
se não tivesse a lembrança de Maria criança,
sem afeto, sem teto, sem sonhos e sem pão

Fugia da seca do jeito que podia,


num jumento esquelético.
Trazia uma trouxa de trapos encardidos.
Deixara a gamela, a trempe, as panelas
de barro no chão. Deixara a lembrança do
lírio do brejo, seguiu seu destino,
no fim da estrada parou pra escutar, o
canto derradeiro do azulão.

Chorava Maria a sua ilusão,


a juriti cantava, e a cigarra vadia
saudava o verão. Seria Maria das Águas
possuidora de um poço de lágrimas.
Pensava baixinho, nos açudes, nos rios,
pensava baixinho pra não agourar.

Havia ausências de pão, de carinho,


chorava Maria com um filho no ventre
- Predestinação -
Enquanto a terra queimava, o gado morria
as andorinhas imigravam,
166 Maria gemia, Maria paria.
SETE - feminino de luas e marés

Meu nordestinado destino

Vivo brigando com o destino


por ter nascido no nordeste
e não morar no nordeste, mas
o nordeste mora em mim.

Meu pai tangia o gado, um vaqueiro


destemido, dono de muita alegria
vivia em cantoria.
Enquanto tangia o gado, o destino
me tangia.

167
SETE - feminino de luas e marés

Afrodite diria

Sentindo a calma da minha rua,


imitei uma deusa nua, que enfeitava
o corredor de manjericão.
Pensei no belo, que meus olhos já viram
e nas caricias que minhas mãos sentiram,
colhendo girassóis...
Não houve tempo para fechar a porta
foi deixado a mostra, nossos corpos nus.
Não houve tempo para sentir que o passado
fora de manhã. Se os afetos forem congelados,
O que será dos meus carinhos,
Sem os teus agrados?

168
SETE - feminino de luas e marés

Eis-me mulher

Vestidos de luz, pássaros azuis


bonecos de argila, cigarras vadias,
moram na minha cabeça

Trago no peito vendavais de paixões


seduções e carinhos desfeitos

Vinda das matas, cultivo a crença


nos mitos, lendas e fadas

Pra onde foi minha irmã coragem,


que me levava além,
numa carroça cansada onde bois sonolentos
se arrastavam no chão,
cuja carroça gemia, rangia,
no compasso do meu coração?

169
SETE - feminino de luas e marés

Há Em Mim Tantas Marias

Há em mim tantas Marias


que já nem sei o que fazer!
Entre tantas Marias, há uma fagueira,
outra Maria guerreira.
Há uma Maria incoerente, que nunca sabe
o que quer. Há uma carente outra dengosa,
há a Maria mulher.
Há uma que vela um irmão perdido,
outra que chora um amor traído.
Há a Maria veleiro de Corpo tão solto
que fracos ventos tangia
Há a Maria que só sabe amar,
rezar não sabia...
Há em mim tantas Marias - manias
de paixões sem fim,
que já nem sei o que fazer
de mim.

170
SETE - feminino de luas e marés

O corpo da lua

A lua nova surgia de mansinho e a esperança


E a esperança renascia. E num canto do rio
Sobre um lajedo, um jasmim adormecia.
Um lírio feito de brisa namorava orquídeas.
A noite seguia cerrada, sendo o palco
de aves, que cantavam o seu noturno
A lua exibia seu pandeiro de prata,
refletido seu Corpo,
retocando seus raios, numa imensa cascata
E cigarras cantavam, cantavam.

171
SETE - feminino de luas e marés

Alguém falou de amor

Alguém falou de amor


E um novo brilho alumiado
Tomou conta dos viadutos e passarelas
Da cidade. E versos livres acordaram
Recantos amanhecidos e arco íris
Que adormeceram encabulados.
Alguém falou de amor
E numa exata precisão
O asfalto revestiu se de azul pavão
E os cascalhos de verde clareado
E os sonhos adormecidos nas cinzas
Do desencanto foram novamente
Despertados. E as paixões caídas
Foram lentamente reerguidas.
Alguém falou de amor.

172
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Isabel Cristina Fonseca

Maria Sueli Fonseca Gonçalves, professora


formada em Letras pela USP. Nasceu em São Paulo.
Desde cedo se viu envolvida com a poesia. Ávida
por oferecer aos alunos uma oportunidade literária,
idealizou a Academia Estudantil de Letras (AEL),
que nasceu em 2005. O Projeto foi crescendo e hoje,
em fase de plena expansão, já é desenvolvido em mais
de 100 escolas da Rede Municipal de Ensino de São
Paulo. Crianças e jovens ocupam as cadeiras literárias
dos autores que escolhem. Realizam seminários, saídas
culturais, participam de eventos, representam no palco
obras da Literatura, escrevem em prosa e em verso. Sueli
atua na Academia de Letras dos Professores da Cidade
de São Paulo (ALP). É membro da Academia de Letras
de Campos do Jordão (SP ). Educadora, mãe, avó, segue
tecendo sonhos, lançando sementes, renovando as suas
esperanças de um mundo melhor. 173
SETE - feminino de luas e marés

Metamorfose

Na noite, uma luz, o amor...


O eco suave de um caminhar a dois...

Na rua, dois rostos enamorados,


Que se fitam suavemente, ternamente, de
repente...

A gente se cala e se embala


Na doçura que a noite exala...

No amor, uma luz: a noite!

174
SETE - feminino de luas e marés

Desencontro

Eu fui...
Você veio...
No meio,
Um pranto.

No canto,
Uma lágrima.

No fim,
Um sorriso.

(Que lástima!)

175
SETE - feminino de luas e marés

Duelo Amoroso

Ela chega de mansinho


como um calafrio discreto..

Percorre o teu corpo inteiro


e se instala por perto...

Depois...
murmura palavras ininteligíveis ao teu
ouvido..

E elas - as palavras -
saltitam como crianças arteiras que se
empurram
para disputar um lugar...

Todas elas se alojam no teu coração...


(por ordem de chegada, de forma desorga-
nizada)

Então, já não adianta mais nada:

Ela te arrebata, te prende,


te cega e te vicia...

E, em todas as vezes,
quem vence é a Poesia...

176
SETE - feminino de luas e marés

Meu Livro

Já se passaram dias
Já se passaram meses
Já se passaram anos

Talvez a longa gestação


tenha uma razão:

Estou gerando um livro


com o desvelo de uma mãe de filho
que aconchega, admira e acarinha o ventre

177
SETE - feminino de luas e marés

Milagre

O amor é para a vida toda


E até para depois de toda vida
O encanto se disfarça de pessoa
A pessoa se disfarça de encanto

O milagre é processado:

Não há tempo, não há lógica,


Não há meios, não há métodos,
Não há fases, não há frases...

Só há o primeiro capítulo
Só há o primeiro verso
E o livro inacabado
de uma vida inteira

178
SETE - feminino de luas e marés

Outra primavera

Nessa, não haverá apenas risos,


pássaros e flores...

Nessa, não haverá apenas encanto,


magia e esperança...

Nessa, não haverá apenas suspiros,


desejos e sonhos...

Nessa, não haverá apenas promessas,


olhares e espera...

Vai ser diferente essa primavera!

179
SETE - feminino de luas e marés

Você nos meus olhos

Andei por aí de olhos arregalados


E de coração aberto para o amor
Colhi flores imaginárias e fiz um buquê
Construí castelos no ar
E um dia encontrei você...

Você andava de olhos fechados


E de coração fechado para o amor
Colhendo restos de ilusão
Destruindo os seus próprios castelos
E um dia você me encontrou...

Prendemo-nos como dois elos...

Andamos por caminhos diversos


Você, eu e os meus versos...
Andamos por caminhos trocados,
Andamos por caminhos incertos:

Você, de olhos semi-fechados...


Eu, de olhos semi-abertos...

180
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo Pessoal

Norma de Souza Lopes, 45 anos, nasceu e vive


na cidade de Belo Horizonte. Filha de mãe gari e pai
pedreiro, é poeta e professora. Faz da poesia essa costura
cotidiana com a qual tece os afetos e a memória. Publicou
seu primeiro livro, Borda, em 2014, pela Editora Patuá.
Participou das antologias 29 de abril Versos da Violência
e Sobre lagartas e borboletas. Publica regularmente nas
Revistas Escritoras Suicidas, Germina Literatura e
Mallarmagens. Publica no blog Norma Din (http://
normadaeducacao.blogspot.com.br).

181
SETE - feminino de luas e marés

da vida

não fosse esse péssimo hábito


certamente inventado por barbados
de pensar que para mulher perdida
só os homens são lugar
eu bem que queria
ser mulher da vida

182
SETE - feminino de luas e marés

concessão

ouça o chamado da loba


é igual para todos os homens

possua cada orifício


com amor
ou com violência

mas que não se ouça


nem um gemido
que não seja permitido

nem um gemido
que não seja permitido

183
SETE - feminino de luas e marés

deusa de festim

ando cansada de ser mater dolorosa


uma miríade de deusas da fertilidade
só para gente padecer no paraíso
que falta me faz uma deusa de festim

na próxima maternidade juro que perco o


juízo
e trato de parir um tamborim

184
SETE - feminino de luas e marés

marias

sob o silêncio
marias suspeitam
toda guerra é inútil
e a melhor parte que lhes cabe
é ser as guardiãs dos vínculos

marias não atirariam pedras


elas saberiam
da subserviência das madalenas
a lascívia dos homens

há aquelas que nasceram


ou cresceram contaminadas
pela essência dos tiranos
assopremos em seus ouvidos
até possam se viram do avesso
e lembrar seu mais antigo nome
_ maria, maria!

185
SETE - feminino de luas e marés

todas as mães são solteiras

todas as mães são solteiras


disse margaret mead
ou outra margaret
com a qual
sempre concordei
a propósito
estou para dizer
mesmo sem ser mãe
somos sempre tão sós
nós, as mulheres
mesmo acompanhadas
sempre somos muito sós
a solidão é este vácuo, intervalo
quaresma sem cortar cabelo
resguardo, presença intermitente
companheira, essa sim, inseparável

186
SETE - feminino de luas e marés

lamento

Se me pedisse: - Canta!
Para ti eu emitiria
um som que marcasse meu tempo em sua alma
Se me pedisse: - Canta!
Para ti eu soaria
uma melodia que imprimisse meu rosto em seu corpo
Se me pedisse: - Canta!
Para ti eu reverberaria
notas que invadissem seus caminhos, sua casa, sua vida
Mas você não pede e eu fico muda
e essa música que é a força do tempo, do semblante e do
espaço
fica presa em minha garganta
Prefere deixar-me aqui, condenada à poesia
grito surdo e solitário
cárcere gutural de mim

187
SETE - feminino de luas e marés

inexorável

chega um dia que resta a uma mulher


amputar a vontade gangrenosa
de ser tudo e todos no mundo

chega um dia que resta a uma mulher


ir parindo a si mesma vagarosamente
até pôr-se completamente ao avesso

chega um dia que resta a uma mulher


mastigar suas memórias
como uma cadela à sua placenta

chega um dia que resta a uma mulher


renunciar aos companheiros de viagem
raposas que devoram seu o ventre

chega um dia que resta a uma mulher


aceitar a triste tarefa
de ser assopradora de ossos

188
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo Pessoal

Penélope Martins, nascida em 1973, ganhou esse


nome por vontade de sua mãe que já lhe traçou a sina
de tecer palavras. Advogada, por força da percepção
virginiana de lidar com a vida, formou-se pela Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo e seguiu
pós-graduação em Direitos Humanos, pela PUC de
Campinas. É escritora e narradora de histórias, colunista
de literatura e articuladora em oficinas para promover
leitura da escrita e da voz. Entre os livros já publicados,
Poemas do Jardim, Editora Cortez; Quintalzinho, Editora
Bolacha Maria e mais outros. Suas publicações podem
ser acessadas no blog Toda Hora Tem História.
189
SETE - feminino de luas e marés

I.
reaproveite os nossos restos
para dizer que fizemos poesia
naqueles dias em que vivíamos
sob um teto esfarelado
de papel.
apanhe sua agulha
para costurar as sobras
do amor que lhe faltou.
coma tudo.
coma
tudo.
deite numa esteira de palha
para digerir nossas mazelas, mas
projete na parede oca
minha farta descompostura
serpenteando
múltiplos gozos.
faça de mim algo sublime
de tão inútil. feche os olhos
e sonhe a linha da tua vida
na palma de uma mão
estendida por trocados.
a escuridão de nossa memória resistirá.
a solidão que nos habita resistirá.
nossos punhos marcados pelas palavras ditas.
nossos pés acorrentados em geleiras.

190
SETE - feminino de luas e marés

II.

seus músculos fartos,


seus ossos largos,
seus lábios fechados
determinação belicosa,
virilidade (in)contestável
na aptidão para dominar.
‘gracias’, homem,
seu tudo de nada me serve
é a saia que leva o sim
para ancorar filhos,
para chorar pais,
para arrebentar gerações.

191
SETE - feminino de luas e marés

III.

lá vai meu menino


entre cascalhos a marulhar
choro tímido. sofro por ele
essa dor de seguir ferido
as asas cortadas sem alçar
dois palmos do chão.
olha lá, ele se magoa nas pedras
olha como lhe brota visgo
de sangue. olha como ele me faz
morrer. ai, se ele voltasse
pra me beijar o umbigo
ai se viesse morar dentro de mim
e se nós esquecêssemos do tempo
em que o tempo
era de nós roubado.

192
SETE - feminino de luas e marés

IV.

O amor é um lugar
onde uma torneira pinga
incessantemente.
Atormentados, queremos seca,
mas de seca ninguém vive.
O amor é um lugar nenhum.

193
SETE - feminino de luas e marés

V.

ergo-me no vazio
rapto o brilho de uma estrela
no céu breu admirando o mundo
sou versátil, minha pequena,
tenho estado a ponto de me libertar.
findo minhas lembranças
sigo sem rumo, sem bússola, tua rosa
: dos ventos retornam as cartas de amor.
entrego-me à sorte de quem se entrega.
quem teme a dor mais íntima
quem ama sem saber do amor
miserável verdade.
passeio entre avenidas
enamoro os cristais de plástico
no fio da esperança.
sou quem pra guerra não precisa
de chamado. sou o arco envergado
e a flecha que sorve
o gole de fracasso. tudo que nunca teria.
lápide escrita
a perda é a pedra genuína.

194
SETE - feminino de luas e marés

VI.

era mais fácil não pensar teu nome


rasgar lembranças com desprezo
apressado. andava a esmo pela cidade
- fazia um puta frio em agosto - na tua
janela
aberta pra rua. e eu,
quem não avança o sinal,
quem não chega com atraso,
quem senta de pernas cruzadas
toma banho todos os dias. e era segunda,
a cidade cinza demais
a falta que me faziam os cigarros na bolsa.
a tua janela aberta pra rua. nós dois
que fumávamos da mesma marca.

195
SETE - feminino de luas e marés

VII.

mulherzinha. atrevida que só ela,


anda do lado de fora do passeio
à toa, sem medir valor do passo
a passo que firma a pedra
no chão. e o sangue verte
sua coragem de pássaro. voa
além da sombra do medo.
não diz ai.
parideira de mundo que é.

196
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Editora Objetiva

Roseana Murray, autora de livros de poesia e contos


para crianças, jovens e adultos. Graduada em Língua e
Literatura francesa pela Universidade de Nancy através
da Aliança Francesa.
Recebeu ao longo de sua carreira os Prêmios:
A.P.C.A, O Melhor de Poesia da F.N.L.I.J ( por quatro
vezes) , Prêmio A.B.L para livro infantil.
Faz parte da Lista de Honra do Organismo
Internacional I.B.B.Y que abriga os melhores autores de
literatura infanto-juvenil do mundo.
Desenvolve o Projeto de Leitura Café, Pão e Texto,
recebendo Escolas Públicas em sua casa para um café da
manhã literário.
Faz palestras sobre a Formação do Leitor.
Tem cerca de cem livros publicados. 197
SETE - feminino de luas e marés

Rosto

Lavo meu rosto


com as pedras secas
de um enigma

no oco das minhas mãos


meu rosto se reconhece
como uma fruta perdida
descansa um minuto
na lembrança das suas raízes

quantos milênios escorrem


nesse gesto gasto
de escrever o rosto
todas as manhãs?

em cada olho
dorme um mistério
como um grito longínquo

198
SETE - feminino de luas e marés

Natureza viva

A natureza me avassala
gaviões selvagens
cavalos e rios
invadem meus olhos
minhas veias
meus alados precipícios
dentro de mim a montanha

199
SETE - feminino de luas e marés

Segredo

No profundíssimo oceano
a água escreve
estranhos peixes sem olhos

em cada segundo
um mistério se equilibra
como um peixe cego

caminhar sobre a tênue linha


como quem andasse entre
as paredes de um segredo

Viver é apenas isso:


um passo atrás do outro
e lógica nenhuma

o tempo suspenso
entre dois abismos
dor e alumbramento

as estradas sonoras
são as que levam para dentro


200
SETE - feminino de luas e marés

Nudez

Na curva do ombro
onde o tempo deposita
gota a gota
seu peso
um beijo
como um pássaro
pousado

201
SETE - feminino de luas e marés

Escrita

Com seus labirintos vazios


o que dói é a vida
o destino desarrumando as esquinas

um mistério atravessa
nossos olhos distraídos
como um barco que invisível
cruzasse as montanhas

o que dói é a vida


e sua indecifrável escrita

202
SETE - feminino de luas e marés

Gente

A solidão e a incomensurável
noite que dorme nas coisas
o silencioso veludo das pedras
a camada de enigma que envolve

cada vida

às vezes acontece que me canso


de ser gente
andar pelas ruas tão de carne
e osso vestida
ah ser um bicho verdadeiro
comer paredes
morar no vento 

203
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Acervo pessoal

Samantha de Sousa, professora mestra em


Literatura, nasceu em Caxias-MA, mas viveu em
Paragominas-PA durante a maior parte de sua vida.
Ainda criança, entre os livros antigos de seu pai,
começou a criar laços fortes com a Literatura. Durante a
adolescência, quando a depressão começou a se mostrar,
a poeta encontra na escrita um ponto de fuga e de
encontro consigo mesma. A poeta encontra inspiração
em Sylvia Plath, Anne Sexton, Sá-Carneiro, Hilda Hilst,
entre tantos outros que marcaram sua trajetória artística
e pessoal. Já publicou em algumas antologias e em 2015
publicou seu primeiro livro, Peregrinações, pela editora
Literacidade. Também pode ser encontrada em seu blog
204 pessoal, umcafeparaminhagastrite.blogspot.com.
SETE - feminino de luas e marés

Vertigem

Um navio singra em teus olhos


Rasgando estas águas castanhas.
Mar turvo,
Deserto de silêncios,
Sempre a velejar mansamente
Num tempo suspenso
Sob tuas pálpebras cansadas.
Vigilantes ao que não se vê,
Teus olhos repousam
Perenes e ausentes
E eu me atiro em suas ondulações
Atiro-me e sou tragada.
Deixo-me levar por estas águas
Até teu cais:
Porto em ruinas
Não se pode ancorar.
Meus olhos deslizam
Para fora dos teus.
Em silêncio,
Tornamo-nos desertos.

205
SETE - feminino de luas e marés

Corrosão

Para além das fronteiras


Além da respiração
Além da carne

Turbulências em minha mente


Rajadas de vozes desconhecidas
Desejos indesejáveis
Olhos que me observam de dentro
Turbulências em minhas veias
Vórtice vermelho em meu peito

Eu desabo

Ruínas do meu corpo


Ruínas da minha memória
Meus dedos sangram
Arranquei as unhas com os dentes
Arranhei minha pele
Sangue macerado sob a pele

Eu desabo

Ruínas em meu corpo


Hálito de casa abandonada
Paredes condenadas pelo tempo

Eu desabo
206

SETE - feminino de luas e marés

Canção para o infinito

Para Rafael Fernández

Olhar firme,
Ele caminha como quem domina a estrada,
Senhor destes horizontes.
Não há medo em seus olhos
- Olhar de tigre –
Vigilante.
Sempre à distância.
Misteriosamente ao encalço.
Eu o sigo
Sorrateiramente em seu silêncio
E na sua risada.
Desenho mistérios nas palmas das minhas mãos
E ele as segura
E me guia.
Ele é meus olhos quando está escuro
E eu me deixo mergulhar neste intangível.
Eu me deixo guiar
Como a caça entregue ao fatal destino,
Eu me deixo devorar por seu desejo.
Somos lucidez e desatino,
Dança que se perde da música,
Feras que se abrandam na luta,
A hora suspensa,
O acaso.
207
SETE - feminino de luas e marés

Água latejando no silêncio

Água latejando no silêncio.


Passos que se arrastam invisíveis.
Rostos que se escondem nas paredes.

Aranhas mortas, aprisionadas na própria teia.

Eu me acumulo.
Como uma casa antiga, a poeira me consome.
Crostas de penumbra devoram minha pele.
O tempo se acumula em reminiscências.

[Minhas mãos perdem a consistência.


Tuas mãos levam o cigarro à boca.
O que eu fui se dissipa na fumaça,
O que tu foste se dissipa no que me torno.]

Olho-me no espelho:
Água turva.
Pântano estagnado.
Ranço de beijo impuro.

A água ainda lateja no silêncio.


Ecos latejam aos meus ouvidos.
Estou tecendo minha teia:

Vidro partindo
Estilhaços de meu corpo espalhados pelo chão.

208
SETE - feminino de luas e marés

Distâncias

Persigo inerte
o horizonte rabiscado em luz,
incandescente.
Rumor de horas aflitas
de passos que se perdem sem estradas,
tontos
como insetos rumo a chama.
Persigo as horas
vaguidões
horas trêmulas.
Sigo ao acaso
vazia de mim
sem lembranças
nua e sem rosto.
Sigo inerte
sem um corpo que me dê contorno
sigo sem rotas.
Persigo inerte o horizonte que se apaga,
horas aflitas que se calam.
Sou.
Simplesmente sou
e sigo.

Réstias de memórias.
Sigo ausente.

209
SETE - feminino de luas e marés

Sou feita de estradas

Sou feita de estradas


Da poeira colada em meu corpo
Do suor que molha o meu rosto
Sou feita de luzes alheias
Sou feita de lares estranhos

Ergo meus olhos para o além


O além — sempre distante
O além — sempre adiante
Ergo meus olhos e vejo
Sinto em meu corpo cada caminho

Sou feita de horizontes


O mundo inteiro está em mim.

210
SETE - feminino de luas e marés

Das invisibilidades

A vida é um livro de páginas raras:


Tudo o que é vida se esconde
Nas invisibilidades.

Tudo aquilo que os olhos tocam,


Os cheiros que não comovem,
Todos os atos minimamente observáveis,
Nada disso é estar vivo.

Acordar e ter os mesmos olhares


Sempre à espreita dos mesmos gestos,
Levantar e ter sempre as mesmas certezas,
Isto não é estar vivo.

As vozes que nada dizem,


As palavras que se repetem
Vazias, inertes, inúteis,
Nada disso é estar vivo.
Ainda não é estar vivo.

O viver se esconde nas invisibilidades:


Nas rosas furtadas,
Nos amantes proibidos,
No estranho pulsar
Que em prazer lateja sem se traduzir.

Viver não se diz, não se vê.


É o silêncio.
É o segredo.
São páginas furtadas
De um tempo suspenso no tempo. 211
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Patricia Ribeiro

Socorro Lira é compositora, cantora, instrumentista


e produtora cultural. Formada em Psicologia pela
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Em quinze
anos de carreira musical, lançou dez CDs, um EP e um
DVD. Já se apresentou em países da Europa, África
e América Latina, em inúmeras cidades do Brasil.
Ganhou o Troféu Catavento 2013 (Melhor Música)
da Rádio Cultura Brasil, Programa Solano Ribeiro e a
nova música do Brasil. Ganhou também o 23º Prêmio
da Música Brasileira de melhor cantora - categoria
regional - e o Prêmio Europa 98, da Associazione Senza
Frontiere, em 1998, na Itália. Lançou os livros de poesia:
212 Aquarelar (2007) e A pena secreta da asa (2015).
SETE - feminino de luas e marés

Aguaceiro

Em janeiro chorei um Amazonas


Fevereiro, um de seus afluentes
Carnaval, eu desci pelas correntes
Em abril, chovi o mês inteiro
Maio em flores, eu fio de nascente
Mês de Junho, enchi um são Francisco
Julho foi que meu riso, rio em risco,
escorreu para Agosto lentamente
em meu rosto banhado, com capricho,
dessas águas que inundam terra e gente
De Setembro a Outubro, o tempo inteiro
Quase fim, porém fim inda não era
Só dezembro anuncia novo inverno
no sertão onde mora meu inferno
Novamente chegou mais um janeiro

213
SETE - feminino de luas e marés

Intervalo

Aos dez ainda está nascendo


se for de muda, inda está pegando
Raízes, galhos se fortalecendo
nessa idade
Aos vinte é pleno inverno de sertão
igual uma explosão de alegria
a terra é bem menor que o coração
e o sol é quem cria
Trinta anos e a doce sensação de plenitude
Tudo feito!
Para daqui a pouco perceber
o quão imperfeito tudo é
Quarenta e já passamos da metade
A lei da gravidade se apresenta:
dói o pé
o peito
arde a fé
sem a física natureza de criança
sem a firme e odiosa esperança
juvenil
nem aquela confiança que, aos trinta, tem
(...)
nem, ao menos, a desculpa dos cinquenta,
sessenta e, quiçá,
cem

214  
SETE - feminino de luas e marés

Atitude

É o que me move
me comove e me convence
É a chuva que me chove
o argumento que vence
O alaúde que soa
entre o ruído da rua
e a solidão que povoa
Me pertence

215
SETE - feminino de luas e marés

Conselho quase afeto

Vire a página! Não digo para rasgá-la


passe por ela
Papel e caneta em punho
prepare o coração para outros poemas
novos com novos motivos
novos sobre os mesmos temas
mas, renove a poesia
Revolva-se todo dia
nas profundezas do chão
da alma
mantenha a terra arejada
cultive com calma
que o barato
está na intenção que motiva o ato

Portanto, vire a página!


Arranque do pé a bola de aço antes de mergulhar.
E vá!
Se não der de um fôlego só, respire
mas não deixe de virar
a página
bem como, de começar outra vez

Conte até três, se precisar


mas vá, porque o ensaio é valendo
a vida é agora, já

216
SETE - feminino de luas e marés

Vivendo e desaprendendo

Mãe disse para não andar com estranho


E eu? Andei
Para não falar com estranha
E eu... Falhei

217
SETE - feminino de luas e marés

Impedimento

Tem uma ferida que não sara


e faz aniversário
Tem uma ferida que até tem nome
de batismo ela se chama fome
Sobrenome mantém-se omitido
como de um filho de pai impedido
Há uma ferida que de tão ferida
de doer não para

Tem um ferimento tão, tão persistente


que de tão antigo se fez paciente
e resistente
no correr da vida

218
SETE - feminino de luas e marés

Elogio à coragem que me falta

Tem pessoa do tipo tão fluente


tão sim
tão cio
que me parece injusto dizer “gente”
Quando não é rio
é nascente

219
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Cassius Martins

Telma Cunha nasceu em São Francisco do Pará,


em 28 de dezembro de 1974. Teve poliomielite com
um ano e seis meses, passou vinte anos para aprender a
conviver com as sequelas. Hoje, aceita sua forma física
e desencanou de tentar mudar o que não pode, como as
pernas de “molambo”, resultado da paralisia. Recusa-se
a achar que essa transformação trata-se de “exemplo de
superação”, não é. Apenas entendeu que ser cadeirante,
não torna ninguém menos capaz de ser feliz. Desde
pequena escreve poesia, mas nunca havia mostrado a
ninguém. Até conhecer o Poeta Antônio Juraci Siqueira
que a fez perceber que escrever é SENTIR, mas abrir a
gaveta é DESNUDAR-SE!
Hoje, Telma tem três livros publicados: Voo de
220 Borboleta, Folhas Soltas e Sob os Lençóis de Eros.
SETE - feminino de luas e marés

Crepúsculo

No céu crepuscular,
Quase madrugada,
No enlevo doce do desejo
Do teu hálito.
Nesta agonia gostosa
Do Amazonas
que nos separa
Te aperto
Te cheiro
Te vejo
Tu és tudo isso:
O mais bonito.
És mistura.
Céu lilás
Melodia do rio.
Rio revolto.
Celestial.
Azul
Noturno.
Perdida no som da flauta,
Busco tua alma,
Sussurro
Suspiro
Sonho.


221
SETE - feminino de luas e marés

Oferenda

Tê-lo dentro de mim...


O que pode haver de mais profundo?
Diante de ti sou ateia em devotada reverência
entre juramentos de saliva
e sussurros suados de adoração
onde o céu e a terra se unem no profundo das águas
e os ecos ancestrais dessa paixão retumbam em mim.
És cavaleiro consagrado
da menina seduzida pela lua cheia
sereia que vagueia com medo de não voltar.
Dentro te fazes oferenda
e sob teus mistérios fecho os olhos para não cegar
porque quando estás dentro de mim
és Exu.
Deixa esta noite ser tua sacerdotisa
Iara
Amazona
Icamiaba
para em ti me transbordar
e provar o gosto da eternidade
na verdade abissal
dos nossos gozos.

222
SETE - feminino de luas e marés

Amado

O coração do meu amado


é nascente de rio
que me carrega para o mar
de sonhos!
Desenha o sol mais bonito
pra aquecer os vasinhos de rosas
da janela da minha alma!
O brilho do seu olhar,
tem magia e uma varinha de condão
que salpica estrelas no meu escuro,
planta borboletas coloridas
no meu riso e me faz dançar
dentro dos seus (a)braços
com a leveza de nuvem quando sorri!

223
SETE - feminino de luas e marés

Complexo de beleza

Sou dessas mulheres


de sorriso enluarado
vivo à flor da pele.
Amanhecendo
molhada de infinito.
Em mim,
perdem-se e acham-se sonhos.
Não caibo em padrões,
respiro livre
sem a rigidez de estereótipos.
Invisto meu tempo
em ser linda e feliz!

224
SETE - feminino de luas e marés

Sonho

Sonho
passear por avenidas
livres de barreiras
onde possa usufruir
de minha liberdade
Sonho,
indo e vindo
desfrutando do prazer
da magnitude do viver
sem precisar me isolar
ou me esconder.
Sonho,
caminhar em parceria
com meus irmãos
sem ficar excluída,
perdida na contramão.
Sonho
que as diferenças,
que me fizeram diferente
já não existem mais
e sem estigmas,
aceitem-me como sou
sou filha do amor.

225
SETE - feminino de luas e marés

Plenilúnio

Acordas em mim um incêndio.


A sensualidade está no suor,
Olhar, corpo, tudo.
Teu beijo me nutre
E não pode ser
Mensurado em palavras.
Sensorial. Sentimental.
Espiritual. É imenso!
Transcende a lógica
E supera os meandros
Do verbo.
Completo-me contigo.
Meu coração encontra-se
Ao me perder em ti.
Sou maior. Ganho o universo.
A plenitude.
-Extensão de mim.

226
SETE - feminino de luas e marés

Gr(ávida)

O riso da chuva
comendo a noite
em minha janela
faz sol
entre as minhas pernas.
Preciso
beber o poema
que o tempo não te deixou derramar
no meu ventre.

227
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Maria Vilma M. Carneiro

Vaneri de Oliveira, sulsancaetanense, como se fala


aos nascidos na sua terra. Pisciana por nascimento,
psicóloga por formação e sempre professora por atuação.
Há muito tempo descobriu que para alfabetizar era
preciso trazer o lúdico para o processo. Alfabetizou com
canto, com teatro e com dança. Em 1992, conheceu as
Danças Brasileiras e, em 1998, as Danças Circulares, que,
a partir de então, passaram a fazer parte do seu caminho
e de quem passava por ele. Elas lhe recordaram a arte do
simples, do respeito à Natureza e de toda Diversidade
sobre face da Terra. Levaram-na a pensar na existência
de um Mundo-Mãe-Sabedoria-Natureza, onde a cada
dia procura se dedicar à sua realização.
228
SETE - feminino de luas e marés

Conversa com a mãe de dentro I

Senhora , são tantas, mas tantas as vezes,


que em mim eu te sinto, tão verdadeira.
Sem medo, sem culpa, me sinto inteira
Para ouvir, o que tenta, através da vida falar
Quietinha, parada, te escuto de dentro, antes de perguntar!
Estando eu comigo, por vezes pergunto:
- Haverá tempo para tudo que preciso Ser!?
“Já é!”
- Mas me sinto ainda distante do que deveria!
“Está no caminho do que deve ser...”
- Por vezes fugi!
“Mas não consegue fugir da Essência, que nem sempre
te leva ao que gostaria, mas ao necessário, para ser o
que precisa...”
- Me perco... Às vezes encontro o que tira o caminho,
que sinto assim ofender!
“Ofender a si mesma é parar o caminho. Celebra a si
mesma e estará a percorrer...”

229
SETE - feminino de luas e marés

Conversa com a mãe de dentro II

- Me perco... Às vezes encontro o que tira o caminho,


que sinto assim ofender!
“Ofender a si mesma é parar o caminho. Celebra a si
mesma e estará a percorrer...”
- Não é fácil fazê-lo, são tantos os testes que me difi-
cultam!
“Os testes corrigem o caminho, não estão preocupados
com a consequência. Falam por si, se ouvi-los quiser...”
- Contudo me dói!
“Sofre pelo que escolhe não ter.
O ter que é preciso, não é inimigo, mas amigo do ser.
Ainda que o ter, seja a escolha do não.”
- O que mais quero ter, não me é entregue e não foi
por escolha!
“Para que possa saber procurar a si mesma. Há risco na
busca...”
- Que sempre dá medo!
“Não veja o medo que ser teu acredita, mas sim as
conquistas que realizou ...!
Pergunte sempre: - Para onde eu vou?! “
- Para onde eu vou?
“Não importa, desde que vá contigo...”
Estando eu comigo, por vezes pergunto:
- Haverá tempo para tudo que preciso Ser!?
E, pacientemente, Ela reinicia,
Com toda magia, a conversa a se ter...

230
SETE - feminino de luas e marés

Porque danço

Chuva caindo, água escoando,


com ela eu vou pros mares de dentro,
Os fins de mim mesma vou procurando
Tocando nas dores/amores que enfrento
Das coisas que orbitam, envolta ao meu centro,
há aquelas que outrora foram desejos,
e hoje são sombras , sem eco, mas tendo
pedaços de mim, que ainda eu vejo.
Poder é aquilo, que a coragem te pede,
saber despedir das coisas que amei.
Reusar o que nos liga e a força se inverte,
pras coisas que chegam, são minhas, e ainda não sei.
Há um som que te avisa, no seu novo tempo,
que a dança é outra com as coisas que tem.
Ou briga com os passos, que não encontram compasso,
ou usa seus braços, pra outra dança que vem!
Prepara que sempre a orquestra cambia,
a melodia que toca, pra você aprender:
Que nem sempre se é o que gostaria,
mas o necessário, que precisa Ser
Na dança que faço em meu centro orbitam,
os Eus que hoje sou, com os que não puderem ser.
Redimo os contrastes que se digladiam
e passam a ser forças do meu conhecer

231
SETE - feminino de luas e marés

Lama

Mela a lama a alma


Bem ilumina...
Mal elimina
Mel, Mãe, me molha, me olha
Água mole...
me leva além, Amém....
Amém

232
SETE - feminino de luas e marés

Feminino

No Mito é mistério, é Eva, Gaia, Nanã... Maria


Senhora, mora no meio da noite.
Menina, resplandece no início do dia !

Na História é Anita, Marilyn, Cora...Sofia,


Poderosa, abre caminhos fechados.
Humilde, o mundo dos sonhos amplia.

Na Natureza é ciclo, estrela, terra/água... mudança


Semente, guarda os mistérios do vir,
Ausente...saudade, retorno, esperança...

No Símbolo é Vitória, Liberdade, Morte...Ação


Individual é anima, alma, graça...
Coletivo é massa, revolta, união!

No sexo é fraco, é forte, é presente!


Porção: do homem, da mulher, de quem mais vier...
Noção: é do mundo, às vezes ausente.

É Palavra, Sofia, do Pai, do profeta, dos deuses...magia,


É Memória: da Pátria, da mãe, da avó, da infância.
É Vitória, do legado perdido que renasce dia após dia.

È o passado de um paraíso uterino...


Que grita “vida” num presente ascendente
Para a esperança de um futuro menino

  233
SETE - feminino de luas e marés

Eternidade

É terna idade
É ter na idade
a eterna unidade,
dos ciclos que movem,
que rodam,
que vêm...

E na busca de mim
Dança um eu que se finda
com Um Outro, sem fim ...

234
SETE - feminino de luas e marés

O movimento congelado

Quem de nós não o possuímos


em algum tempo/espaço do palco de nossas histórias?
Quem de nós não procura
a magia da libertação das danças interrompidas?
Quem de nós não deseja
o segredo que passa pela força do Velho,
no fluir do Novo

Então liberte... queira!

Se o vinho é o vinagre
da uva primeira,
Então os consagre
da mesma maneira

e o Livre se faz...!!!

235
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Esther Hamermesz

Vivian Schlesinger é paulista. Atua como medidora


de clubes de leitura, organiza o Jardim Alheio – Grupo de
Crítica Literária. Coordena grupos de ciclos de crítica e
oficinas de escrita na Casa das Rosas, no Clube Hebraica
e no Sesc. Poeta e tradutora. Começou a escrever poesia
aos 7 anos para poder respirar. Poemas seus foram
publicados no Brasil e no Exterior. Aos 40 perdeu a
audição; desde então, ouve mais. Tem sido jurada de
concursos literários, tais como o Jabuti; é colunista do
Jornal Rascunho e maratonista, para poder correr com
os quatro netos. Tem um namorado há quase 50 anos,
que a traz de volta à superfície quando naufraga.
236
SETE - feminino de luas e marés

Dia de visitas

Eleonora grita e relincha


poemas em três idiomas
rasga páginas
e as devora.
Talha códigos urgentes
com unhas, canetas e garfos
nos guardanapos, azulejos
na pele do antebraço.

Aos sábados enterra a cabeça


no ombro do marido,
pergunta dos mortos e ri
e chora.
Ela sabe.
Ele beija sua testa e chora
baixinho também.
Desembrulha um sorriso
e um bombom de oleandro.

237
SETE - feminino de luas e marés

Café

Cultivada próximo ao Equador


baila na língua, exótica
Atitlan, Korgua, Kilimanjaro
Noites frias produzem frutos
com o perfume do fogo,
a essência visível do cristal de cintura
fina,
vapores de cacau e flores,
amêndoas, jasmim.
Levíssimo toque de reticência

a acidez provocante

aguça o sabor,
dardos de orvalho.
Espuma envolve o colo

cor de avelãs,
pinceladas de veludo marrom escuro.

A textura se demora nos lábios.
Cultivada em grandes altitudes

o gosto é de alma perfumada.

feromônios do pôr-de-sol.

238
SETE - feminino de luas e marés


Nas planícies

é impregnada pelo cedro,

Cultivada em cativeiro

dos ventos das monções

rouba da noite
irrequieta transparência.
É maior o amargor

em quartos sem janelas:
o aroma atinge seu clímax
e se evapora.

239
SETE - feminino de luas e marés

Crema

Marinheiros entregam-se ao mar



ao soar das notas frutais, a crema

efêmera,
a melodia da sede mais insaciável.
Raios de sol bordam lençóis
monogramas do amanhecer,
regam desejos
de úmidos arbustos coníferos.

240
SETE - feminino de luas e marés

A morte, para principiantes

silêncio é químico
raiva, física
provocação, biológica
final é astronômico
sexo é musical
privação, zoológica
suicídio, gravitacional
indiferença, ah, essa é imperdoável.

silêncio é magma
raiva, erosão
provocação é tsunami
final é relâmpago
sexo, então, humus
privação, erupção
suicídio, leveza
indiferença, essa é veneno.

silêncio é raiva
raiva, obsessão
provocação é enchente
final é incêndio
se sexo é promessa
privação é liberdade
suicídio é resgate
indiferença, essa é morte.
241
SETE - feminino de luas e marés

Corte

deixar-te mergulhar
no vale perfumado
entre meus seios?

penetrar meu sonho


tempestade de areia
a me cegar?

na minha boca as palavras


estilhaços de espelho
para me engasgar?

sou dinheiro que você larga na mesa


amassado
sem contar

arranquei teu corpo do meu


e sangrei
mas acordei.

242
SETE - feminino de luas e marés

Dança dos ossos

Sua cólera intacta


sob fachada caiada,
aquece os ossos
nos passos do professor de dança.

Condena, ríspida,
a anistia da noite.
Sua raiva povoa o dia
Acasala vassalos à força,
roga pragas, impregna o ar
com vapores fétidos do passado.

Folhas secas da malediscência


caem da garganta e dançam, insanas,
apodrecem tudo que germina.
Veneno da inveja e da velhice
espalha pedras sobre leitos de flores,
de filhos, netos, bisnetos;
desfigura o passado,
odeia o futuro.

243
SETE - feminino de luas e marés

Morsa

lisa desliza
no gelo líquido da lua

olhos de canto
de sereia
voz de cristal
da geleira

ele escuta e torneia.

mais garroteia a morsa


mais ela serpenteia.

244
SETE - feminino de luas e marés

Foto: Fabiana Nogueira

Wanda Monteiro, escritora e poeta é uma


amazônida, nascida às margens do Rio Amazonas no
coração da Amazônia, em Alenquer no Estado do Pará,
Brasil. Reside há mais de 25 anos no Estado do Rio de
Janeiro mas só sente-se em casa quando pisa no leito de
seu rio. Advogada e mãe de três filhos. Nunca se afastou
de sua vocação literária. Nos últimos anos, a escritora
tem se dedicado exclusivamente à literatura, com
várias obras literárias ainda não publicadas. Participa,
como colaboradora, de vários movimentos culturais de
incentivo à leitura, em várias regiões do Brasil. Wanda
Monteiro publicou dezenas de seus textos poéticos
nas Antologias Poesia do Brasil do Proyecto Sur Brazil,
participando dos volumes IX, XI, XIII, XV. lançados no
Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul.
Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Editora
Amazônia, 2009, Poesia; Anverso, Editora Amazônia,
2011, Poesia; Duas Mulheres Entardecendo, Editora Tempo,
2011, Romance escrito em parceria com a escritora
Maria Helena Latini; Aquatempo – Sementes líricas,
Editora Literacidade, 2016. 245
SETE - feminino de luas e marés

do que padece essa gente


que arde febril de culpa
que guarda em silêncio a dúvida
e caminha no desamparo de respostas
?
do que vive essa gente
que não enxerga a poesia do peixe
que não compreende a inquietude da flor
e rejeita o beijo da dor
?
com que sonha essa gente
que não ouve o oco vivo da rocha
que não aceita a fecundidade do delírio
e não sabe do propósito da asa
?
quem sabe dizer dessa gente
que se arma em teia movente de gente
que se entrega à desumana trama de não se saber vivente

nasce
vive
morre
despossuída
no vago do poço de si.


246
SETE - feminino de luas e marés

II

cheiro-de-rio-voltando-chuva
margem de pouca areia
raízes vestidas de limo
o barco furando o vento
proa-feito de dois gumes
singrando o horizonte
a quilha cortando a pele do rio
líquido-espelho
crivado de lanças d”água
a espera crescendo na correnteza
e tua sempre verde-memória
bordada com o fio do tempo

247
SETE - feminino de luas e marés

III

a madrugada Já não me é mais doce


nem morna
já não tenho o afago de seu orvalho

gélida
a madrugada singra-me
vara-me
parte-me
deixando-me em ruínas

a madrugada Já não me é contemplação

no agora

a madrugada contempla meus escombros

248
SETE - feminino de luas e marés

IV

minha cabeça é um cais


aceso no olho do sol
e no olho da lua
ancoradouro de vozes
cantos
voos

cujo horizonte não é fio mas contorno


tudo é margem à espera de chegadas
e partidas

o mundo move-se dentro dela


sitiado de espantos
tudo acorda e dorme num relógio sem horas
pássaros caem em queda livre para nadar
peixes roubam suas asas para voar
e uma pedra desabrocha na flor da água...

é quando o poema rompe a fina película


de uma atônita realidade
para voar sobre edifícios e pessoas
jogando sobre eles suas plumas de sonhos.

249
SETE - feminino de luas e marés

há tanta areia dentro de mim


há sal cristalizando meus músculos
um mar ondula em meu corpo
seu exílio
ressaca contida de marés
mas um canto de liberdade
no voo de gaivotas
rasgando o céu de minha boca
ouvindo seu canto

o mar sobe

crescendo
crescendo
até transbordar

250
SETE - feminino de luas e marés

VI

a calma se esvai pelas horas


horas crescem no escuro
pálpebras em sofreguidão
fecham-se
abrem-se

o cansaço dos músculos


a recusa do repouso
demônios acordam
assombram o silêncio

o instinto aflorado de erguer


e soerguer a fé

a oração dita e redita como mantra


o abrir a janela
e o desejo de olhar para o céu
a busca de respostas nas estrelas

a lua me espreita insone


!
o desejo do sonho se contorce na insônia
como posso dormir
se a noite sempre me encharca de dúvidas

251
SETE - feminino de luas e marés

VII

tu que habitas essa ilha de memória


terra de parto
vida
e
morte
margeando saudade na areia
olha
procura por debaixo das coisas miúdas
os sentidos partidos ao meio pelo tempo
recusa a morte

corrente-leito-de-espera
do rio que já não é
aceita a vida

manhãs
do rio que será

o agora não é chegada


é partida

252
SETE - feminino de luas e marés

“o agora não é chegada


é partida”

Não chegamos ao final. Esse correr de água não cessa.


Essa sede não se sacia. Abismos, pontes, bifurcações
internas continuam pulsando. Asas ávidas continuam
buscando novos horizontes. Não chegamos ao final,
mas sim num ponto de partida, que ecoa entre luas e
marés nas vozes femininas deste nosso SETE.

Deolinda Nunes

253
SETE - feminino de luas e marés

Agradecimentos a todos que aceitaram o


convite e fazem parte dessa coletânea.

Agradecimentos a todos que, de alguma


forma, entrarão na ciranda expandindo a poesia
para além das prateleiras.

254

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