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A TÉCNICA PSICANALÍTICA ATRAVÉS DO BRINCAR:


SUA HISTÓRIA E SIGNIFICADO
(1955 [1953])

Nota Explicativa da Comissão Editorial Inglesa ,

Este é o artigo em que Melanie Klein mais se aproxima de escrever uma autobio-
grafia profissional e onde registra a história de seus primeiros tempos como analista
de crianças. Existem duas versões deste artigo. A primeira versão continha exem-
plos da interpretação do brincar das crianças que foram substituídos na segunda
versão, mais longa, por um relato dos casos de crianças; a última versão é a que
consta neste volume. Outras informações históricas adicionais podem ser encontra-
das no Prefácio à Primeira Edição de The Psycho-Analysis qf Children. O ponto de
maior interesse no presente artigo é o relato de Melanie Klein da descoberta especí-
fica que cada um desses primeiros casos possibilitou-lhe fazer.

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princfpio pensei que seria suficiente influenciar a atitude da mãe. Sugeri
que ela deveria encorajar a criança a discutir livremente com ela as muitas
8 questões não verbalizadas que obviamente estavam no fiindo de sua mente
e impediam seu desenvolvimento intelectual. Isto teve um bom efeito, mas
A TÉCNICA PSICANALÍTICA ATRAVÉS DO BRINCAR: suas dificuldades neuróticas não foram suficientemente aliviadas e logo
SUA HISTÓRIA E SIGNIFICADO foi decidido que eu deveria analisá-lo. Ao fazê-lo, desviei-me de algumas
» (1955 [1953]) das regras estabelecidas até então, pois eu interpretava o que pensava ser
mais urgente no material que a criança apresentava para mim e percebi
que meu interesse se centralizava em suas ansiedades e em suas defesas
contra elas. Esta nova abordagem logo confrontou-me com sérios proble-
Ao oferecer como introdução a este livro' um artigo fundamentalmente mas. As ansiedades que encontrei ao analisar este primeiro caso eram
dedicado à técnica através do brincar, fui estimulada pela consideração de muito agudas e, embora eu me sentisse fortalecida na crença de que estava
que meu trabalho com crianças e adultos e minhas contribuições à teoria trabalhando no caminho certo ao observar o alívio da ansiedade produzido
psicanalítica como um todo derivam, em última instância, da técnica atra- repetidas vezes por minhas interpretações, eu ficava por vezes perturbada
vés do brincar desenvolvida com crianças pequenas. Não quero dizer com pela intensidade das novas ansiedades que iam sendo trazidas à tona. Nu-
isto que meu trabalho posterior foi uma aplicação direta da técnica através ma dessas ocasiões, busquei o conselho do Dr. Karl Abraham. Ele res-
do brincar. Mas o insight que obtive sobre o desenvolvimento inicial, so- pondeu-me que, uma vez que minhas interpretações até então haviam pro-
bre os processos inconscientes e sobre a natureza das interpretações por duzido alívio e que a análise obviamente progredia, ele não via motivos
meio das quais pode-se abordar o inconsciente, teve influência de longo para mudar o método de abordagem. Senti-me encorajada por seu apoio e,
alcance no trabalho que fiz com crianças mais velhas e com adultos. de fato, logo nos dias seguintes, a ansiedade da criança, que havia chega-
Portanto, delinearei brevemente os passos através ^os quais meu tra- do a uma situação crítica, diminuiu enormemente, conduzindo a uma me-
balho desenvolveu-se a partir da técnica psicanalítica através do brincar, lhora adicional. A convicção obtida nesta análise influenciou intensa-
mas não tentarei fornecer um resumo completo de minhas descobertas. Em mente todo o curso do meu trabalho analítico.
1919, quando iniciei meu primeiro caso, algum trabalho psicanalítico com O tratamento foi conduzido na casa da criança, com seus próprios
crianças já havia sido feito, particularmente pela Dra. Hug-Hellmuth brinquedos. Esta análise representou o início da técnica psicanalítica atra-
(1921). No entanto, ela não empreendeu a psicanálise de crianças menores vés do brincar, porque desde o início a criança expressou suas fantasias e
de seis anos e, embora usasse desenhos e ocasionalmente o brincar como ansiedades principalmente através do brincar, e eu interpretava consis-
material, não os desenvolveu em uma técnica específica. tentemente seu significado para ela, com o resultado de que material adi-
Na época em que iniciei meu trabalho, tratava-se de um princípio es- cional aparecia em seu brincar. Isto quer dizer que eu já utilizava com
tabelecido que as interpretações deveriam ser dadas muito parcimoniosa- este paciente, em essência, o método de interpretação que se tomou ca-
mente. Com poucas exceções, os psicanalistas não haviam explorado as racterístico de minha técnica. Esta abordagem corresponde a um princípio
camadas mais profundas do inconsciente — e em crianças tal exploração fundamental da psicanálise - a associação livre. Ao interpretar não apenas
era considerada potencialmente perigosa. Esta postura cautelosa refletia- as palavras da criança mas também suas atividades com seus brinquedos,
se no fato de que, nesta época — e por anos seguidos —, considerava-se a apliquei este princípio básico à mente da criança, cujo brincar e atividades
psicanálise como adequada apenas para crianças do período de latência variadas — na verdade, todo o seu comportamento — são meios de expres-
em diante'. sar o que o adulto expressa predominantemente através de palavras. Tam-
Meu primeiro paciente foi um menino de cinco anos de idade. Referi- bém orientei-me sempre por dois outros princípios da psicanálise, estabe-
me a ele pelo nome de "Fritz" em meus primeiros artigos publicados'. A lecidos por Freud, que desde o princípio considerei fundamentais: que a
exploração do inconsciente é a principal tarefa do procedimento psicana-
lítico, e que a análise da transferência é o meio de atingir este objetivo.
Entre 1920 e 1923, ganhei maior experiência com outros casos de
crianças, mas um passo definitivo no desenvolvimento da técnica através
do brincar foi o tratamento de uma criança de dois anos e nove meses que
analisei em 1923. Dei alguns detalhes do caso desta criança sob o nome
fera era, no geral, hostil ao tratamento. Mais importante ainda, percebi
de "Rita" em meu livro The Psyco-Analysis of Children*. Rita sofria de
que a situação transferencial - a espinha dorsal do procedimento psicana-
terrores notumos e fobias de animais, era muito ambivalente para com sua
lítico — s ó pode ser estabelecida e mantida se o paciente for capaz de sen-
mãe e ao mesmo tempo tão apegada a ela que dificilmente podia ser dei-
tir que o consultório ou a sala de análise de crianças, e na verdade toda a
xada sozinha. Ela tinha uma neurose obsessiva acentuada e às vezes fica-
análise, é alguma coisa separada de sua vida familiar cotidiana. Isto por-
va muito deprimida. Seu brincar era inibido e sua inabilidade para tolerar
que é apenas sob tais condições que ele pode superar suas resistências
frustrações tomava sua educação cada vez mais difícil. Fiquei muito he-
contra vivenciar e expressar pensamentos, sentimentos e desejos que são
sitante a respeito de como abordar este caso, j á que a análise de uma
incompatíveis com as convenções sociais e que, no caso de crianças, são
criança tão pequena era um experimento inteiramente novo. A primeira
sentidos como contrastando com muito do que lhes foi ensinado.
sessão pareceu confirmar meus receios. Rita, quando deixada a sós comi-
go em seu quarto, demonstrou imediatamente sinais do que eu tomei como Fiz ainda outras observações significativas na psicanálise de uma me-
sendo uma transferência negativa: ela estava ansiosa e silenciosa e logo nina de sete anos, também em 1923. Suas dificuldades neuróticas aparen-
pediu para sair para o jardim. Eu concordei e fui com ela — posso acres- temente não eram sérias, mas seus pais estiveram por um certo tempo
centar, sob os olhares observadores de sua mãe e de sua tia, que tomaram preocupados com seu desenvolvimento intelectual. Embora bastante inte-
isto como um sinal de fracasso. Elas ficaram muito surpresas ao ver que ligente, não acompanhava o gmpo de sua idade, não gostava da escola e
Rita estava bastante amistosa comigo quando voltamos ao quarto dez ou algumas vezes matava as aulas. Sua relação com sua mãe, que havia sido
quinze minutos mais tarde. A explicação desta mudança foi que, enquanto afetiva e confiante, mudou desde que começou a escola: ela tomou-se re-
estávamos fora, eu interpretei a ela sua transferência negativa (sendo isto servada e silenciosa. Passei algumas sessões com ela sem conseguir muito
novamente contra a prática usual). A partir de poucas coisas que ela disse contato. Tinha se tomado claro que ela não gostava da escola e, a partir
e do fato de que ela havia ficado menos amedrontada quando estávamos do que ela timidamente disse sobre isto, assim como por outras observa-
fora, concluí que ela estava particularmente receosa de alguma coisa que ções, fui capaz de fazer umas poucas interpretações que produziram al-
eu poderia fazer a ela quando ela estava a sós comigo no quarto. Inter- gum material. Mas minha impressão foi a de que por esse caminho eu não
pretei isto e, referindo-me aos seus terrores notumos, liguei sua suspeita conseguiria ir muito além. Em uma sessão em que novamente encontrei a
de mim como uma estranha hostil ao seu medo de que uma mulher má a criança indiferente e retraída, deixei-a dizendo que voltaria num instante.
atacasse quando estivesse sozinha à noite. Quando, poucos minutos de- Fui ao quarto de minhas próprias crianças, juntei alguns brinquedos, car-
pois desta interpretação, sugeri que deveríamos retomar ao quarto, ela ros, pequenas figuras, uns poucos blocos e um trem, coloquei-os em uma
concordou prontamente. Como mencionei, a inibição de Rita ao brincar caixa e voltei à paciente. A criança, que não gostava de desenhar ou de
era acentuada, e no início ela dificilmente fazia alguma coisa a não ser outras atividades, ficou interessada nos pequenos brinquedos e imediata-
vestir e desvestir obsessivamente sua boneca. Mas logo vim a entender as mente começou a brincar. A partir deste brincar, depreendi que duas das
ansiedades subjacentes às suas obsessões e as interpretei. Este caso forta- figuras de brinquedo representavam ela mesma e um menino pequeno, um
leceu minha convicção crescente de que uma precondição para a psicaná- colega de escola sobre quem eu já havia ouvido antes. Parecia haver al-
lise de uma criança é compreender e interpretar as fantasias, sentimentos, guma coisa secreta sobre o comportamento destas duas figuras, e parecia
ansiedades e experiências expressos através do brincar ou, se as ativida- .que ela sentia ressentimento pelos outros bonecos por interferirem ou es-
des de brincar estão inibidas, as causas da inibição. piarem, e estes foram postos de lado. As atividades dos dois brinquedos
levavam a catástrofes, tais como sua queda ou colisão com carros. Isto era
Como com Fritz, empreendi esta análise na casa da criança e com repetido com sinais de ansiedade crescente. Neste ponto, eu interpretei,
seus próprios brinquedos. Mas, durante este tratamento, que durou apenas referindo-me aos detalhes do seu brincar, que alguma atividade sexual pa-
uns poucos meses, cheguei à conclusão de que a psicanálise não deveria recia ter ocorrido entre ela e seu amigo, que ela estava com muito medo
ser realizada na casa da criança. Pois descobri que, embora ela necessitas- de que isto fosse descoberto e que, por isso, desconfiava das outras pes-
se muito de ajuda e seus pais tivessem decidido que eu deveria tentar uma soas. Assinalei que, enquanto brincava, ela havia ficado ansiosa e parecia
psicanálise, a atitude de sua mãe comigo era muito ambivalente e a atmos- a ponto de parar sua brincadeira. Lembrei-lhe que ela não gostava da es-
cola e que isto poderia estar ligado ao medo de que a professora desco-
brisse sua relação com seu colega e a punisse. Sobretudo, ela estava com
' Vide mmbém On the Bringlng up ofChUren, ed. Rickman (1936), e The Oedipus CompU. in
medo de sua mãe, e portanto desconfiava dela, e agora poderia estar sen-
lhe l.if;htofEartyAnxieties (.1945).
tindo da mesma forma em relação a mim. O efeito desta interpretação so- be que seus brinquedos e o seu brincar com eles — o equivalente das asso-
bre a criança foi surpreendente: sua ansiedade e desconfiança primeira- ciações do adulto — são apenas conhecidos pelo analista e por ela mesma.
mente aumentaram, mas logo deram lugar a um evidente alívio. A expres- A caixa na qual eu apresentei pela primeira vez os brinquedos à menini-
são de seu rosto mudou, e embora ela nem admitisse nem negasse o que nha acima mencionada tomou-se o protótipo da gaveta individual, que faz
eu havia interpretado, demonstrou em seguida sua concordância produ- parte da relação privada e íntima entre analista e paciente, característica
zindo material novo e tomando-se muito mais livre em seu brincar e falar; da situação transferencial psicanalítica.
também as suas atitudes em relação a mim tomaram-se muito mais amisto- Não estou sugerindo que a técnica psicanalítica através do brincar
sas e menos desconfiadas. É claro que a transferência negativa, alteman- dependa inteiramente de minha seleção particular do material. De qual-
do-se com a positiva, aparecia repetidas vezes; mas, a partir desta sessão, quer modo, as crianças com frequência trazem espontaneamente suas pró-
a análise progrediu bem. Como fui informada, ao mesmo tempo passou a prias coisas e o brincar com elas entra como um fato natural no trabalho
haver mudanças favoráveis em sua relação com a família — em particular analítico. Mas creio que os brinquedos providos pelo analista devem ser,
com sua mãe. Seu desagrado pela escola diminuiu e ela tomou-se mais no geral, do tipo que descrevi, isto é, simples, pequenos e não-mecânicos.
interessada em suas lições; mas sua inibição na aprendizagem, que estava Os brinquedos, no entanto, não são o único requisito para uma análi-
enraizada em ansiedades profundas, só foi resolvida gradativamente, no se através do brincar. Muitas das atividades da criança são por vezes rea-
curso de seu tratamento. lizadas em tomo da pia, que é equipada com uma ou duas tigelinhas, co-
pos e colheres. Frequentemente a criança desenha, escreve, pinta, recorta,
conserta brinquedos, e assim por diante. À s vezes brinca com jogos em
que atribui papéis ao analista e a si mesma, tais como brincar de loja, mé-
Descrevi como o uso dos brinquedos que eu mantinha especialmente dico e paciente, escola, mãe e criança. Em tais jogos, a criança frequen-
para a criança na caixa em que eu os trouxe pela primeira vez provou ser temente assume o papel do adulto, expressando assim não apenas seu de-
essencial para sua análise. Esta experiência, assim como outras, ajudaram- sejo de reverter os papéis, mas demonstrando também como sente que
me a decidir quais brinquedos são mais adequados para a técnica psicana- seus pais ou outras pessoas de autoridade comportam-se em relação a ela
— ou deveriam comportar-se. Algumas vezes ela dá vazão à sua agressivi-
lítica através do brincar'. Percebi ser essencial ter brinquedos pequenos
dade e ressentimento sendo, no papel de um dos pais, sádica em relação à
porque seu número e variedade permitem à criança expressar uma ampla
criança, representada pelo analista. O princípio de interpretação permane-
variedade de fantasias e experiências. Para este propósito, é importante
ce o mesmo, quer sejam as fantasias apresentadas por meio dos brinque-
que esses brinquedos não sejam mecânicos e que as figuras humanas, va-
dos ou da dramatização. Pois, qualquer que seja o material utilizado, é es-
riando apenas em cor e tamanho, não indiquem qualquer ocupação parti-
sencial que os princípios analíticos subjacentes à técnica sejam aplicados'.
cular. Sua própria simplicidade permite à criança usá-los em muitas situa-
ções diferentes, de acordo com o material que aparece em seu brincar. O A agressividade é expressa de várias formas no brincar da criança,
fato de ela poder apresentar assim, simultaneamente, uma variedade de seja direta ou indiretamente. Frequentemente, um brinquedo se quebra ou,
experiências e fantasias ou situações reais também nos possibilita chegar a quando a criança é mais agressiva, ataques são feitos com faca ou tesoura
uma imagem mais coerente das atividades de sua mente. à mesa ou a pedaços de madeira; água ou tinta são esparramadas e a sala
Na mesma linha da simplicidade dos brinquedos, o equipamento do geralmente se transforma em um campo de batalha. É essencial permitir à
consultório de crianças também é simples. Não contém nada, com exceção criança trazer à luz sua agressividade. Mas o que conta mais é compreen-
do que é necessário à psicanálise*. Os equipamentos de brincar de cada der por que nesse momento particular da situação transferencial aparecem
criança são guardados trancados em uma gaveta particular, e ela assim sa- os impulsos destmtivos, e observar suas consequências na mente da crian-
ça. Sentimentos de culpa podem seguir-se logo após a criança ter quebra-
do, por exemplo, uma pequena figura. Esta culpa refere-se não apenas ao
São eles principalmente: pequenos homens e mulheres de madeira, geralmente de dois tama- estrago real produzido mas ao que o brinquedo representa no inconsciente
nhos ca^orcàLhos de mi,, balanços, trens, aviões, animais, árvores, blocos, casas, cer as
PS:, te"ou;Ít"- faca. lápi;. giz ou tinta. cola. bolas e bolas de gude. massa de modelar e

Um chão lavável. água corrente, uma mesa. algumas cadeiras, um pequeno sofá, algumas al- vro 1 neFsyco-Analysjs of Children (particularmente nos capítulos II, II[ e IV) Vide também
mofadas c um móvel com gavetas. ''er.mnificationinthePlayof Children(1929). <= i v ; . vme também
da criança, como por exemplo um irmãozinho ou irmãzinha ou um dos ato de agressão, e toma-se aparente a ternura para com o irmão ou irmã
pais. Portanto, a interpretação tem que lidar com estes níveis mais profun- que podem ter sido danificados em fantasia. Nunca é demais enfatizarmos
dos também. Algumas vezes, podemos deduzir, a partir do comportamento a importância de tais mudanças para a formação de caráter e para as rela-
da criança para com o analista, que não apenas a culpa mas também a an- ções de objeto, assim como para a estabilidade mental.
siedade persecutória são consequências de seus impulsos destrutivos, e É parte essencial do trabalho interpretativo que ele se mantenha em
que a criança teme a retaliação. compasso com as flutuações entre amor e ódio; entre felicidade e satisfa-
Em geral, sou capaz de transmitir à criança que eu não toleraria ata- ção de um lado e ansiedade persecutória e depressão de outro. Isto impli-
ques físicos a mim. Essa atitude não apenas protege o psicanalista como ca que o analista não deve mostrar desaprovação por ter a criança quebra-
também tem importância para a análise. Pois tais assaltos, se não forem do um brinquedo. Ele não deve, no entanto, encorajar a criança a expres-
sar sua agressividade, ou sugerir a ela que o brinquedo poderia ser con-
mantidos dentro de limites, podem provocar culpa e ansiedade persecutó-
sertado. Em outras palavras, ele deve permitir à criança vivenciar suas
ria excessivas na criança e, desse modo, aumentar as dificuldades do tra-
emoções e fantasias na medida em que aparecem. Sempre foi parte de mi-
tamento. Fui algumas vezes inquirida sobre o método através do qual eu
nha técnica não utilizar-me de influência moral ou educativa, mas ater-me
evitava ataques físicos, e penso que a resposta é que eu tomava muito
apenas ao procedimento psicanalítico que, resumidamente, consiste em
cuidado em não inibir as fantasias agressivas da criança. De fato, lhe era
compreender a mente do paciente e comunicar a ele o que ocorre nela.
dada a oportunidade de atuá-las de outras formas, incluindo ataques ver-
bais a mim. Quanto mais eu era capaz de interpretar em tempo os motivos A variedade de situações emocionais que podem ser expressas através
da agressividade da criança, mais a situação podia ser mantida sob con- de atividades lúdicas é ilimitada: por exemplo, sentimentos de fhistração e
de ser rejeitado; ciúmes do pai e da mãe, ou de irmãos e irmãs; a agressi-
trole. Mas com algumas crianças psicóticas foi ocasionalmente difícil
vidade que acompanha tais ciúmes; o prazer em ter um companheiro e
proteger-me contra sua agressividade.
aliado contra os pais; sentimentos de amor e ódio em relação a um bebé
• -', - • m • • ..^.yyy • recém-nascido ou a um bebé que está sendo esperado, assim como as re-
sultantes ansiedade, culpa e necessidade premente de fazer reparação. No
Descobri que a atitude da criança para com um brinquedo que ela da- brincar da criança, também encontramos a repetição de experiências e
nificou é muito reveladora. Frequentemente, põe de lado esse brinquedo — detalhes reais da vida cotidiana, frequentemente entrelaçados com suas
que representa por exemplo um irmão ou um dos pais e o ignora por um fantasias. É revelador que, algumas vezes, eventos reais muito importan-
tempo. Isso indica desagrado pelo objeto danificado, devido ao medo per- tes em sua vida deixem de entrar no seu brincar e em suas associações, e
secutório de que a pessoa atacada (representada pelo brinquedo) tenha se que, às vezes, toda a ênfase repouse sobre acontecimentos aparentemente
tomado retaliatória e perigosa. O sentimento de perseguição pode ser tão secundários. Mas esses acontecimentos secundários são de grande impor-
forte que encobre sentimentos de culpa e depressão que também são des- tância para ela pois despertaram suas emoções e fantasias.
pertados pelo dano produzido. Ou a culpa e a depressão podem ser tão
fortes que levam a um reforçamento dos sentimentos persecutórios. No
entanto, um dia a criança pode procurar pelo brinquedo danificado em sua
caixa. Isto sugere que, nessa altura, fomos capazes de analisar algumas Há muitas crianças que são inibidas em seu brincar. Tal inibição nem
defesas importantes, diminuindo assim os sentimentos persecutórios e tor- sempre as impede completamente de brincar, mas pode logo interromper
nando possível que o sentimento de culpa e a necessidade premente de re- suas atividades. Por exemplo, um menininho me foi trazido apenas para
parar sejam vivenciados. Quando isso acontece, podemos também notar uma entrevista (havia a perspectiva de uma análise no futuro, mas no mo-
uma mudança na relação da criança com aquele irmão representado pelo mento os pais iam para o exterior com ele). Eu tinha alguns brinquedos
brinquedo, ou em suas relações em geral. Esta mudança confirma nossa sobre a mesa e ele sentou-se e começou a brincar, o que rapidamente le-
impressão de que a ansiedade persecutória diminuiu e que, juntamente vou a acidentes, colisões e quedas de bonecos, que ele tentava levantar
com o sentimento de culpa e o desejo de fazer reparação, sentimentos de novamente. Em tudo isto ele mostrava muita ansiedade, mas, como não
amor, que estavam prejudicados por uma ansiedade excessiva, venham pa- havia ainda a intenção de um tratamento, abstive-me de interpretar. De-
ra o primeiro plano. Em outra criança, ou na mesma em um estágio poste- pois de alguns minutos, ele deslizou silenciosamente de sua cadeira, di-
rior da análise, a culpa e o desejo de reparar podem seguir-se logo após o zendo "Chega de brincar", e foi embora. Creio, a partir de minha cxpc-
riência, que se esse tivesse sido o início de um tratamento e eu tivesse in- e o pai entrechocavam seus genitais (naturalmente usando suas próprias
terpretado a ansiedade apresentada em suas atividades com os brinquedos palavras para genitais) e que ele pensava que, por eles fazerem isso, seu
e a transferência negativa correspondente, em relação a mim, eu teria po- irmão nasceu. Esta interpretação produziu mais material, lançando luz so-
dido resolver sua ansiedade o suficiente para que ele continuasse brin- bre sua relação bastante ambivalente com seu irmãozinho e com seu pai.
cando. Deitou um boneco-homem sobre um bloco, que ele chamou de "cama",
O próximo exemplo pode me ajudar a mostrar algumas das causas da dermbou-o e disse que ele estava "morto e liquidado". Em seguida, reen-
inibição do brincar. O menino, com a idade de três anos e nove meses, cenou a mesma coisa com dois bonecos-homens, escolhendo figuras que
que descrevi com o nome de "Peter" no livro The Psycho-Analysis of ele já havia danificado. Interpretei que o primeiro boneco representava
Children, era muito neurótico'. Para mencionar algumas de suas dificul- seu pai, que ele queria dermbar da cama da mãe e matar, e que um dos
dades, ele era incapaz de brincar, não podia tolerar nenhuma frustração, dois bonecos-homens era novamente o pai e o outro representava ele pró-
era tímido, queixoso e tinha pouco jeito de menino, ainda que às vezes prio, a quem seu pai faria o mesmo. A razão pela qual ele havia escolhido
fosse agressivo e autoritário, muito ambivalente com relação à família e duas figuras danificadas era o seu sentimento de que tanto o seu pai
intensamente fixado em sua mãe. Esta contou-me que Peter havia piorado quanto ele ficariam danificados se ele atacasse seu pai.
muito depois de umas férias de verão durante as quais, com a idade de de- Este material ilustra uma série de pontos, dos quais mencionarei ape-
zoito meses, ele compartilhou do quarto de seus pais e teve oportunidade nas um ou dois. Devido ao fato de a experiência de Peter de ter assistido à
de observar suas relações sexuais. Nessas férias, ele tomou-se muito difí- relação sexual de seus pais ter produzido um grande impacto em sua
cil de lidar, dormia mal e voltou a molhar a cama à noite, o que tinha dei- mente e despertado emoções intensas tais como ciúme, agressividade e
xado de fazer há alguns meses. Ele havia brincado livremente até essa ansiedade, isto foi a primeira coisa que ele expressou em seu brincar. N ã o
ocasião, mas deste verão em diante parou de brincar e tomou-se muito há dúvida de que ele já não tinha qualquer conhecimento consciente dessa
destmtivo com seus brinquedos - não fazia nada com eles a não ser que- experiência, que ela estava reprimida, e que apenas sua expressão simbó-
brá-los. Logo depois, nasceu seu irmão, o que aumentou todas as suas di- lica era possível para ele. Tenho motivos para acreditar que, se eu não ti-
ficuldades. vesse interpretado que os brinquedos entrechocando-se representavam
Na primeira sessão, Peter começou a brincar: logo fez dois cavalos pessoas, ele poderia não ter produzido o material que apareceu na segun-
chocarem-se e repetiu a mesma ação com diferentes brinquedos. Também da sessão. Além disso, se eu não tivesse sido capaz, na segunda sessão,
mencionou que tinha um irmãozinho. Interpretei a ele que os cavalos e as de lhe mostrar algumas das razões para sua inibição no brincar, interpre-
outras coisas que haviam estado entrechocando-se representavam pessoas, tando o dano feito aos brinquedos, ele muito provavelmente — como fazia
uma interpretação que ele primeiramente rejeitou e depois aceitou. Ele em sua vida normal — teria parado de brincar depois de quebrar os brin-
novamente fez com que os cavalos se chocassem dizendo que eles iam quedos. • "'"..lís'''^^Kí.^•;;•:, :í:;,/
dormir, cobriu-os com blocos e acrescentou: "Agora eles estão bem mor- Há crianças que, no começo do tratamento, não podem nem mesmo
tos. Eu os enterrei". Colocou os carros em uma fila, com a frente de um brincar como Peter ou o menininho que veio apenas a uma entrevista. Mas
dando para a traseira do outro — fila que, como ficou claro mais tarde na é muito raro que uma criança ignore completamente os brinquedos dis-
análise, simbolizava o pênis de seu pai — e fez os carros correr. Então, su- postos sobre a mesa. Ainda que se afaste deles, com frequência dá ao
bitamente perdeu a paciência e os atirou pela sala dizendo: " N ó s sempre analista algum insight sobre os seus motivos para não querer brincar.
quebramos logo nossos presentes de Natal. Não queremos nenhum". As- Também de outras formas o analista de crianças pode reunir material para
sim, em seu inconsciente, quebrar seus brinquedos representava destroçar interpretação. Qualquer atividade, tal como usar o papel para rabiscar ou
o genital de seu pai. Durante a primeira sessão, ele de fato quebrou vários recortar, e cada detalhe do comportamento, tais como mudanças na postu-
brinquedos. ra ou na expressão facial, podem dar uma pista do que está se passando na
Na segunda sessão, Peter repetiu parte do material da primeira, em mente da criança, possivelmente em conexão com o que o analista ouviu
particular a colisão de carros, cavalos, etc, e novamente falou de seu ir- dos pais sobre as suas dificuldades.
mãozinho, ao que eu interpretei que ele estava mostrando-me como a mãe Falei bastante sobre a importância das interpxretações para a técnica
através do brincar e dei alguns exemplos para ilustrar seu conteúdo. Isso
' r.ssa criança, cuja análise começou em 1924, foi outro dos casos que ajudou a desenvolver mi- me leva a uma questão que me tem sido feita com frequência: "As crian-
nha técnica através do brincar. ças pequenas são intelectualmente capazes de compreender tais interpreta-
ções?" Minha própria experiência e a de meus colegas têm sido de que, se V
as interpretações dizem respeito a pontos relevantes no material, elas são
plenamente compreendidas. É claro que o analista de crianças deve dar Ao rever os primeiros anos do meu trabalho, eu destacaria alguns fa-
suas interpretações tão suscinta e claramente quanto possfvel, e deve tam- tos. Mencionei no início deste artigo que, ao analisar meu primeiro caso
bém usar as expressões da criança ao fazê-lo. Mas, se traduz em palavras infantil, percebi que meu interesse se centrava em suas ansiedades e nas
simples os pontos essenciais do material a ele apresentado, ele entra em defesas contra elas. Minha ênfase sobre a ansiedade levou-me cada vez
contato com aquelas emoções e ansiedades que estão mais operantes no mais profundamente para dentro do inconsciente e da vida de fantasia da
momento. A compreensão consciente e intelectual da criança é, com fre- criança. Essa ênfase particular era contrária ao ponto de vista psicanalíti-
quência, um processo decorrente. Uma das muitas experiências interes- co de que as interpretações não deveriam ser muito profundas nem dadas
santes e surpreendentes daquele que se inicia na análise de crianças é en- frequentemente. Persisti em minha abordagem, apesar do fato de que en-
contrar, até mesmo em crianças muito pequenas, uma capacidade de insi- volvia uma niadança radical na técnica. Esta abordagem levou-me a um
ght que frequentemente é bem maior que a de adultos. Isso se explica em território novo, pois abriu a perspectiva da compreensão das fantasias in-
alguma medida pelo fato de que as conexões entre consciente e incons- fantis, das ansiedades e defesas arcaicas que eram, até então, em grande
ciente são mais próximas em crianças pequenas do que em adultos, e de parte, ainda inexploradas. Isso se tomou claro para mim quando iniciei a
que as repressões infantis são menos poderosas. Acredito também que as formulação teórica de minhas descobertas clínicas.
capacidades intelectuais do bebé são frequentemente subestimadas e que, Um dos diversos fenómenos que me impressionaram na análise de
de fato, ele compreende mais do que se acredita. Rita foi a severidade de seu superego. Descrevi, no livro The Psycho-
Ilustrarei agora o que disse através da resposta de uma criança pe- Analysis of Children, como Rita costumava desempenhar o papel de uma
quena a interpretações. Peter, de cuja análise dei alguns detalhes, tinha mãe severa e punitiva que tratava a criança (representada pela boneca ou
objetado fortemente à minha interpretação de que o boneco-homem que por mim) muito craelmente. Além disso, sua ambivalência em relação à
ele havia derrubado da "cama" e que estava "morto e liquidado" repre- mãe, sua necessidade extrema de ser punida, seus sentimentos de culpa e
sentava seu pai. (A interpretação de desejos de morte contra uma pessoa seus terrores notumos levaram-me a reconhecer que, nesta cnança de dois
amada suscita geralmente uma grande resistência em crianças, assim, co- anos e nove mese' - claramente remontando a uma idade muito antenor -
mo em adultos.) Na terceira sessão, Peter trouxe novamente material si- operava um superego severo e implacável. V i esta descoberta confirmar-
milar, mas agora aceitou minha interpretação e disse pensativamente: " E se nas análises de outras crianças pequenas e cheguei à conclusão de que
se eu fosse um papai e alguém quisesse jogar-me no chão detrás da cama o superego surge em um estágio muito anterior ao que Freud supunha. Em
e me matar e liquidar, o que eu pensaria disto?" Isso mostra que ele havia outras palavras, tomou-se claro para mim que o superego, tal como con-
não apenas elaborado, compreendido e aceito minha interpretação, mas cebido por ele, é o produto final de um desenvolvimento que se estende
que tinha também reconhecido muito mais. Ele compreendeu que seus por anos. Como resultado de observações posteriores, reconheci que o su-
próprios sentimentos agressivos dirigidos ao pai contribuíam para ter perego é algo que é sentido pela criança como operando intemamente de
medo dele, e também que ele havia projetado seus próprios impulsos no modo concreto, que consiste de uma variedade de figuras constmídas a
partir das experiências e fantasias da criança e deriva-se dos estágios nos
pai.
quais ela intemalizou (introjetou) seus pai >.
Um dos pontos importantes da técnica através do brincar sempre foi a
análise da transferência. Como sabemos, o paciente repete, na transferên- Essas observações conduziram, por sua vez, nas análises de meninas
cia com o analista, emoções e conflitos anteriores. É da minha experiência pequenas, à descoberta da principal situação de ansiedade feminina: a mãe
que podemos fundamentalmente ajudar o paciente ao levar de volta, por é sentid-i como o perseguidor primordial que, como objeto extemo e in-
meio de nossas interpretações transferenciais, suas fantasias e ansiedades temalizado, ataca o corpo da criança e lhe toma suas crianças imaginárias.
para o lugar onde elas se originaram, a saber, na infância e na relação Essas ansiedades surgem dos ataq-.es fantasiados da menina ao corpo da
mãe, que visam roubar-lhe seus conteddos, isto é, as fezes, o pénis do pai
com seus primeiros objetos, pois, ao reviver emoções e fantasias arcaicas
c as crianças, e resultam no medo da retaliação por meio de ataques simi-
e compreendê-las em relação a seus objetos primários, ele pode, por assim
lares. Encontrei essas a.isiedades persecutórias combinadas ou altemar.do-
dizer, reexaminar essas relações em suas raízes e, desta forma, diminuir
se com sentimentos profundos de depressão e culpa, e essas observações
cfclivamente suas ansiedades.
icvaram-me então à dcscob'írta do papel vital que a tendência a fazei re-
parações desempenha na vida mental. A reparação, neste sentido, é um uretral específica de tais ataques. Mas, em outras análises, realizadas em
conceito mais amplo do que os conceitos de Freud de "o desfeizer da neu- 1924 e 1925 (Ruth e Peter, ambos descritos em The Psycho-Analysis of
rose obsessiva" e de "formação reativa", pois inclui a variedade de pro- Children), também me tomei consciente do papel fundamental que os im-
cessos através dos quais o ego sente que desfaz o dano feito em fantasia, pulsos sádico-orais desempenham nas fantasias destmtivas e nas ansieda-
restaura, preserva e faz reviver objetos. A importância desta tendência, des correspondentes, encontrando assim, na análise de crianças pequenas,
a confirmação plena das descobertas de Abraham'Estas análises, que
intrinsecamente ligada como é a sentimentos de culpa, repousa também na
me deram maior campo para observação, uma vez que duraram mais do
grande contribuição que faz a todas as sublimações e, desta forma, à saú-
que as análises de Rita e Tmde", levaram-me a um insight mais completo
de mental.
sobre o papel fundamental dos desejos e ansiedades orais no desenvolvi-
Ao estudar os ataques fantasiados ao corpo da mãe, logo me deparei mento mental normal e anormal'*.
com impulsos sádico-anais e sádico-uretrais. Mencionei acima que reco-
nheci a severidade do superego em Rita (1923) e que sua análise ajudou- Como mencionei, eu já havia reconhecido em Rita e em Tmde a in-
me enormemente a compreender o modo pelo qual os impulsos destrutivos temalização de uma mãe atacada e, por isso, amedrontadora — o superego
dirigidos à mãe tomam-se a causa de sentimentos de culpa e perseguição. severo. Entre 1924 e 1926, analisei uma criança que estava de fato muito
Um dos casos através dos quais tomou-se clara para mim a natureza sádi- doente". Através de sua análise, aprendi muito sobre os detalhes específi-
cos de tal intemalização e sobre as fantasias e impulsos subjacentes às an-
co-anal e sádico-uretral destes impulsos destmtivos foi o de "Tmde",
siedades paranóides e manfaco-depressivas, pois vim a compreender a
com três anos e três meses de idade, que analisei em 1924'. Quando che-
natureza oral e anal de seus processos introjetivos e as situações de perse-
gou a mim para tratamento, ela sofria de vários sintomas, tais como terro-
guição intema que engendravam. Tomei-me também mais consciente dos
res notumos e incontinência de urina e fezes. Logo no início de sua análi-
modos pelos quais as perseguições intemas influenciam, através da proje-
se ela me pedia para fingir que eu estava na cama dormindo. Então, ela
ção, a relação com objetos extemos. A intensidade de sua inveja e de seu
dizia que iria me atacar e procurar por fezes (que descobri que também ódio demonstravam inequivocamente sua origem na relação sádico-oral
representavam crianças) em minhas nádegas, e que iria retirá-las. Depois com o seio da mãe e estavam interligadas aos primórdios de seu complexo
desses ataques, ela se agachava em um canto e brincava que estava na de Édipo. O caso de Ema me ajudou muito a preparar o terreno para uma
cama, cobrindo-se com almofadas (que serviam para proteger seu corpo e série de conclusões que apresentei no X Congresso Intemacional de Psi-
^ue também representavam crianças). Ao mesmo tempo, ela se urinava de canálise, em 1927", em particular a concepção de que o superego primiti-
fato e demonstrava claramente que estava com muito medo de ser atacada vo, constmfdo quando os impulsos e fantasias sádico-orais estão em seu
por mim. Suas ansiedades em relação à mãe intemalizada perigosa con- auge, subjaz à psicose — uma concepção que desenvolvi dois anos mais
firmaram as conclusões que formei pela primeira vez na análise de Rita. tarde ao salientar a importância do sadismo oral na esquizofrenia".
Estas duas análises foram de curta duração, em parte porque os pais acha-
Simultaneamente às análises até aqui descritas, pude fazer algumas
ram que uma melhora suficiente havia sido alcançada'".
observações interessantes relativas a situações de ansiedade em meninos.
Logo depois, fiquei convencida de que tais inpulsos e fantasias des-
As análises de meninos e homens confirmaram plenamente a concepção
tmtivas podiam ser sempre remontados aos impulsos e fantasias sádico-
de Freud de que o medo da castração é a principal ansiedade masculina,
oiais. De fato, Rita já o havia demonstrado bastante claramente. Em uma
mas reconheci que, devido à identificação arcaica com a mãe (a posição
ocasião, ela pintou de preto um pedaço de papel, rasgou-o, jogou os pe-
femiiuna que anuncia os estágios iniciais do complexo de Édipo), a ansie-
daços em um copo d'água, que levou à boca como se fosse beber, e disse
em voz baixa: "mulher morta"". Compreendi naquele momento que esse
rasgar e molhar o papel expressavam fantasias de atacar e matar sua mãe, '' (1924).
Cf. "A Short History of the Development of the Libido, Viewed in the Light ofMental Disorders"
fantasias estas que davam origem a medos de retaliação. Já mencionei que
'' Ruth teve 190 sessões, Peter 278.
foi com Tmde que me tomei consciente da natureza sádico-anal e sádico-
' * Essa convicção crescente sobre a importância fundamental das descobertas de Abraham foi
também o resultado de minha análise com ele, que começou em 1924 e foi prematuramente
"> Ci.TkePsycho-AnalysisofChMren. interrompida quatorze meses mais tarde devido â sua enfermidade e morte.
' ' Descrita sob o nome de "Ema" no livro The Psycho-Analysis of Children, capítulo III.
" Cf. Early Stages ofthe Oeãpus ConfUct (1928).
Cí.The ImportanceofSymbol-Formationin the Development of the Ego (1930).
404.
dade relativa a ataques ao interior do corpo é de grande importância nos Houve outras experiências que me ajudaram a atingir ainda outra
homens, assim como nas mulheres, e influencia e modela de diversas ma- conclusão A comparação entre Ema, indubita->'elmente paranóica, e as
neiras seus medos de castração. fantasias e ansiedades que encontrei em crianças menos doentes — que po-
As ansiedades originadas a partir dos ataques fantasiados ao corpo da deriam ser apenas chamadas de neuróticas - convenceu-me de que ansie-
mãe e ao do pai que ela supostamente contém provaram estar, em ambos dades psicóticas (paranóides e depressivas) subjazem à neurose infantil.
os sexos, subjacentes à claustrofobia (que inclui o medo de ser aprisiona- Fiz também observações similares nas análises de adultos neuróticos. To-
do ou enterrado no corpo da mãe). Pode-se ver a conexão dessas ansieda- das essas diferentes linhas de observação resultaram na hipótese de que
a iS eJade de natureza psicótica fazem parte, em certa medida, do desen-
des com o medo da castração, por exemplo, na fantasia de perder o pênis
volvimento infantil normal, sendo expressas e elaboradas no curso da neu-
ou detê-lo destruído dentro da mãe — fantasias que podem resultar em im-
rose infantil". No entanto, para expor essas ansiedades infantis, a análise
potência.
tem que ser levada às camadas profundas do inconsciente, e isto se aplica
Cheguei a observar que os medos relacionados a ataques ao corpo da
tanto a adultos quanto a crianças".
mãe e de sei atacado por objetos extemos e internos tinham uma qualida-
de e uma intensidade particulares que sugeriam uma natureza psicótica. Na introdução deste artigo, já foi assinalado que, desde o princípio,
minha atenção centrou-se sobre as ansiedades da criança, e que foi por
Ao explorar a relação da criança com objetos intemalizados, várias situa-
meio da interpretação de seus conteúdos que me senti capaz de diminuir a
ções de perseguição intema e seus conteúdos psicóticos tomaram-se cla-
ansiedade. Para tanto, tive que fazer pleno uso da linguagem simbólica do
ros. Além disso, o r conhecimento de que o medo de retaliação deriva-se
brincar, que reconheci como sendo uma parte essencial do modo de ex-
da própria agressivia. de do indivíduo levou-me a sugerir que as defesas
pressão da criança. Como vimos, o bloco, a figurinha, o carro não repre-
arcaicas do ego são dirigidas contra a ansiedade suscitada pelos impulsos
sentam apenas coisas que interessam à criança por si mesmas: no seu
e fantasias destmtivos. Repetidamente, cada vez que essas ansiedades psi-
brincar elas sempre têm, também, uma variedade de significados simbóli-
cóticas eram remontadas às suas origens, verificava-se que elas provinham
cos que estão interligados com as fantasias, desejos e experiências da
do sadismo oral. Reconheci também que a relação sádico-oral com a mãe
criança. Este modo arcaico de expressão é também a linguagem com a
e a intemalização de um seio devorado - e, portanto, devorador - consti-
qual estamos familiarizados nos sonhos, e foi aproximando-me do bnncar
tuem o protótipo de todos os perseguidores internos; e, além disso, que
da criança de um modo similar à interpretação de sonhos de Freud que
a intemalização de um seio danificado - e, portanto, temido — por um la-
do, e de um seio que satisfaz e que auxilia, po*- ousro. constitui o núcleo
do superego. Concluí também que, embora as ansiedades orais surjam em relacionando-o com material prévio, o paciente, scntando-se, perguntou-me em um tom
ameaçador: "Você vai mandar-me de volta ao hospital psiquiátrico?" Mas logo se acalmou e
primeiro li'gar, fantasias e desejos sádicos provenientes de todas as fontes
começou a falar mais livremente. Isso mostrou-me que eu estava no caminho certo e que eu
estão ativos em um estágio muito inicial do desenvolvimento e se sobre- deveria continuar a interpretar suas suspeitas e sentimentos de perseguição. Era certa medida,
põem às ansiedades orais". produziu-se uma transferência positiva, bem como uma negativa, em relação a mim. Mas, em
um certo ponto, quando seu medo de mulheres surgiu muito intensamente, ele me pediu o no-
A importância das r isiedades infantis que descrevi acima foi tambén. me de um analista homem ao qual pudesse se dirigir. Dei-lhe um nome, mas ele nunca procu-
demonstrada na análise de adultos muito doentes, alguns dos quais eram rou esse colega. Durante aquele mês, vi o paciente todos os dias. O analista que havia me pedi-
do para tomá-lo encontrou algum progresso em sua volta e desejou que eu prosseguisse a aná-
casos psicóticos fronteiriços". lise. Recusei, pois ficara plenamente consciente do perigo de tratar um paranóico sem qualquer
proteção ou outro arranjo adequado. Durante o tempo em que o analisei, ele frequentemente
' ' Essas e outras conclusões estão contidas nos dois artigos já mencionados, Early Stages of the ficava parado durante horas na frente da minha casa, olhando para minha janela, embora ape-
Oedipus Confuct e The Importance of Syinbol-Formation in the Development of the Ego. Vide nas em poucas ocasiões ele tocasse a campainha e pedisse para ver-me. Posso mencionar que
também Personification in lhe Play of CIúkIren (1929). depois de um breve período ele foi novamente interditado. Embora naquela época eu não tenha
' ' É possfvel que a compreensão dos conteúdos das ansiedades psicóticas e da u.gência em inter- tirado nenhuma conclusão teórica dessa experit.icia, creio que esse fragmento de análise pode
pretá-las tenha se tomado clara para mim na análise de um esquizofrénico paranóico que tratei ter contribuído para meu insight posterior sobre a natureza psicótica das ansiedades infantis e
por um mês. Em 1922, um colega que estava saindo de férias pediu-me para tomar por um mês para o desenvolvimento de minha técnica.
um paciente seu esquizofrénico. Descobri desde a primeira hora que eu não deveria permitir ao Como sabemos, Freud percebeu que não há diferença estrutural entre o normal e o neurótico, e
paciente permanecer em silêncio por qualquer período de tempo. Senti que seu silêncio impli- essa descoberta foi da maior importância na compreensão dos processos mentais em geral. Mi-
cava perigo, e em cuda um desses momentos interpretei suas suspeitas a meu respeito, por nha hipótese de que ansiedades de natureza psicótica estão onipresenles na infância e subjazem
txemplo, de que eu estava tramando com seu tio e que nós o interditaríamos legalmente outra à neurose infantil é uma extensão Í'^ descoberta de Freud.
vez (sua interdição havia ^ido suspenst recentemente) - material que ele expressou verbal- As conclusões que apresentei no último parágrafo são tratadas extensamente no livro The Psi-
mente em outras ocasiões. Uma vez em que eu havia interpretado seu silêncio dessa m;^neira. cbo-Analvsis of Children.
tadas ao seio), descobri que as relações de objeto iniciam-se quase no
descobri que poderia ter acesso ao inconsciente da criança. Mas temos
nascimento e surgem com a primeira experiência de alimentação. Desco-
que considerar o uso de símbolos de cada criança em conexão com suas
bri, além disso, que todos os aspectos da vida mental estão intimamente
emoções e ansiedades particulares e em relação com a situação total que é
ligados a relações de objeto. Também se fez evidente que a experiência
apresentada na análise. Meras traduções generalizadas de símbolos não que a criança tem do mundo extemo — que muito cedo inclui sua relação
têm sentido. ambivalente com o pai e com outros membros da família — é constante-
A importância que atribuí ao simbolismo conduziu-me, com o decor- mente influenciada — e por sua vez influencia — o mundo extemo que ela
rer do tempo a conclusões teóricas sobre o processo de formação de sím- está constmindo, e que situações externas e intemas são sempre interde-
bolos. A análise através do brincar havia mostrado que o simbolismo pos- pendentes, uma vez que a introjeção e a projeção operam lado a lado des-
sibilitava à criança transferir não apenas interesses, mas também fantasias, de o início da vida.
ansiedades e culpa a outros objetos além de pessoas''. Desta forma, muito
As observações de que na mente do bebé a mãe aparece primaria-
alívio é experimentado no brincar, e este é um dos fatores que o tomam
mente como um seio bom e um seio mau cindidos, e de que em poucos
tão essencial para a criança. Peter, por exemplo, a quem me referi ante-
meses, com a integração crescente do ego, os aspectos contrastantes co-
riormente, quando interpretei o fato de ter danificado um boneco como
meçam a ser sintetizados, ajudaram-me a compreender a importância dos
representando ataques a seu irmão, mostrou-me que ele não faria isto ao
processos de cisão e de manutenção das figuras boas e más" separadas,
seu irmão real, mas somente ao irmão de brinquedo. Minha interpretação
assim como a compreender o efeito de tais processos sobre o desenvolvi-
naturalmente deixou claro para ele que era realmente seu irmão que ele
mento do ego. A conclusão extraída da experiência de que a ansiedade
desejava atacar, mas o exemplo mostra que era somente através de meios
depressiva surge como um resultado da síntese pelo ego dos aspectos bons
simbólicos que ele podia expressar suas tendências destmtivas na análise.
e maus (amados e odiados) do objeto levou-me, por sua vez, ao conceito
Também cheguei à concepção de que em crianças uma inibição seve-
da posição depressiva, que atinge seu auge por volta do primeiro ano.
ra da capacidade de formar e usar símbolos, e, desta forma, desenvolver a
Esta é precedida pela posição paranóide, que se estende pelos primeiros
vida de fantasia, é sinal de séria perturbação''. Sugeri que tais inibições, e três ou quatro meses de vida e é caracterizada por ansiedade persecutória
a perturbação resultante na relação com o mundo extemo e com a realida- e processos de cisão". Mais tarde, em 1946", quando reformulei minhas
de, são características da esquizofrenia'*- concepções sobre os primeiros três ou quatro meses de vida, chamei este
Posso dizer, de passagem, que descobri ser de grande valor do ponto estágio (fazendo uso de uma sugestão de Fairbaim)" de posição esquizo-
de vista clínico e teórico o fato de que eu estava analisando tanto adultos paranóide e, ao me dar conta aos poucos de seu significado, procurei co-
quanto crianças. Desta forma pude observar as fantasias e ansiedades do ordenar meus achados sobre cisão, projeção, perseguição e idealização.
bebé ainda operantes no adulto, e avaliar na criança pequena o que pode-
Meu trabalho com crianças e as conclusões teóricas que dele extraí
ria vir a ser seu desenvolvimento futuro. Foi comparando a criança gra-
influenciaram cada vez mais minha técnica com adultos. Sempre foi um
vemente doente com a neurótica e a normal, e reconhecendo ansiedades
princípio fundamental da psicanálise que o inconsciente, que se origina na
infantis de natureza psicótica como causa de doença em adultos neuróti-
mente infantil, tem que ser explorado no adulto. Minha experiência com
cos, que cheguei às conclusões descritas acima".
crianças levou-me muito mais profundamente numa direção do que era a
prática anterior, conduzindo-me a uma técnica que possibilitou o acesso a
essas camadas. Minha técnica através do brincar ajudou-me, em particu-
Ao remontar, nas análises de adultos e crianças, o desenvolvimento lar, a ver qual material necessitava mais de interpretação no momento e o
de impulsos, fantasias e ansiedades às suas origens, isto é, aos sentimen- modo pelo qual esta seria mais facilmente transmitida ao paciente — e algo
tos dirigidos ao seio da mãe (mesmo em crianças que não foram amamen- deste conhecimento eu pude aplicar às análises de adultos'". Como foi as-

" Emrelaçãoa isso, cf. o importante artigo do Dr. Ernest Jones The Theory ofSymbotism {1916). ^^^^ Personification in the Play of Children (1929).
" The Importance of Symbol-Formation in the Development ofthe Ego (1930). 28 ^^y*^'*°Senesis ofManic-Depressíve States" (1935).
" Essa conclusão tem influenciado desde então a compreensão do modo esquizofrénico de co- "Notas sobre Alguns Mecanismos Esquizóides" (1946).
^ ^ Fairbaim, W. R. D., A Revised Psychopathology ofthe Psychoses and Neuroses (1941).
municação e encontrou seu lugar no tratamento da esquizofrenia.
A técnica através do brincar tem também influenciado o trabalho com crianças em outros cam-
" Não posso tratar aqui da difçrença fundamental que, além dos aspectos comuns, existe entre o
pos, como por exemplo na orientação de crianças e na educação. Foi dado um novo impulso ao
normal, o neurótico e o psicótico.
sinalado anteriormente, isso não significa que a técnica usada com crian-
ças seja idêntica à abordagem usada com adultos. Embora retracemos nos-
so caminho de volta aos estágios mais iniciais, ao analisar adultos é de
grande importância levar em conta o ego adulto, assim como, com crian-
ças, temos em mente o ego infantil de acordo com o estágio de seu desen-
volvimento. ' •
A compreensão mais plena dos estágios mais iniciais do desenvolvi-
mento, do papel das fantasias, ansiedades e defesas na vida emocional do
bebé, também lançou luz sobre os pontos de fixação da psicose adulta.
Como resultado, abriu-se um novo caminho de tratamento de pacientes
psicóticos pela psicanálise. Este campo, em particular a psicanálise de pa-
cientes esquizofrênicos, necessita de muito mais exploração. Mas o tra-
balho feito nesta direção por alguns psicanalistas incluídos neste livro pa-
rece justificar esperanças para o futuro.

desenvolvimento de métodos educacionais na Inglaterra com a pesquisa de Susan Isaacs na


Malting House School, Seus livros sobre este trabalho foram amplamente lidos e tiveram um
efeito duradouro sobre as técnicas educacionais neste país, especialmente no que diz respeito às
crianças pequenas. Sua abordagem foi fortemente influenciada por seu grande apreço pela
análise de crianças, e particularmente pela técnica através do brincar; e é em grande parte devi-
do a ela que a compreensão psicanalítica de crianças tem contribuído para o desenvolvimento
da educação na Inglaterra.

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